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Clarice e a tauromaquia

Impossível ler Clarice impassível. É que ela lida com a matéria prima, com o que

está atrás do pensamento, com aquilo lá que tentamos esconder. Precisamos

olhar e não ver, mas aí ela vem e escancara

claricemamente: “Tem uma passagem estreita dentro de mim, tão estreita que

suas paredes me lanham toda, mas essa passagem desemboca na largura de

Deus. Nem sempre tenho força para atravessar esse deserto sangrento, mesmo
sabendo que se me forçar a me doer todo entre as paredes, mesmo sabendo que

desembocarei para a luz aberta de um dia trêmulo de sol macio.” (Um Sopro de

Vida). Ler Clarice é um rito de passagem, uma forma de vir-a-ser.

O conto “Búfalo” do livro ‘Laços de Família’ revela um pouco dessa crueldade

necessária ao conhecimento do que é humano, demasiado humano. Artaud dizia

que só através da crueldade a criação e a vida são possíveis. É o que vamos

poder viver ao ler.

Um narrador onisciente nos apresenta toda a história e todos os sentimentos e

todas as reflexões da personagem. As falas acontecem mescladas à narração, na

terceira pessoa do singular.

O conto começa por uma conjunção adversativa, que já nos remete ao espaço

de uma dúvida. Um 'mas' inicia a história, e já não sabemos onde, porque e como

tudo começou, tudo já começado. Esse espaço de estranhamento e

indeterminação é reiterado: a mesma conjunção é usada mais três vezes nos três

parágrafos iniciais.
“Onde aprender a odiar para não morrer de amor?”(pg 163). A luta entre Eros

e Thanatos, amor e ódio, vida e morte pulsa durante todo o tempo do conto. O

tempo impossível do conto: onde encontrar ódio em plena primavera? Na

primavera onde as “bestas...se cristianizam em patas que arranham mas não

dói”(pg 163). O espaço do conto é muito conhecido pela autora, e ela mesma diz

a gênese desse conto na segunda parte de A Legião Estrangeira(1964)

intitulada “Fundo de Gaveta”: “ 'O Búfalo' me lembra muito vagamente um rosto

que vi numa mulher ou em várias, ou em homens, em uma das mil visitas que fiz a
jardins zoológicos. Nessa, um tigre olhou para mim, eu olhei para ele, ele

sustentou o olhar, eu não, e vim embora até hoje. O conto nada tem a ver com

tudo isso, foi escrito e deixado de lado. Um dia reli-o e senti um choque de mal-

estar e horror”1. Numa carta escrita de Washington, em 1956, Clarice diz: “ Um

dia desses tive um ódio muito forte, que eu nunca me permiti; era mais uma

necessidade de ódio. Então escrevi um conto chamado “O Búfalo”, tão, tão forte,

que por experiência fui ler para Mafalda, Arnaldo Pires..., eles sentiram até um

mal estar. O rapaz disse que o conto todo parece feito de entranhas...”2. Assim, já

não sabemos se o autor é o narrador ou a personagem, ou se é todos. O sujeito

se perde e se multiplica na escritura.

Esse conto é uma descida aos infernos, sete círculos mais um, cada círculo

representado por um animal. O oitavo passageiro, alienígena e tão conhecido, é a

própria treva encarnada, o chifrudo, o coisa-ruim, o ódio ébano em olhos carmim,

que a mulher foi buscar. A mulher, Orfeu outro, não desce para buscar o amor,

mas para matá-lo. E descobre que matar o amor-em-si é mesmo morrer.

Esse conto, uma entrada no labirinto de Creta, o círculo vicioso da montanha-

russa como signo maior da viagem sem saída, do carma. Um labirinto onde ela,

1Sá, Olga de. Clarice Lispector Atravessia do Oposto,1993, Anna Blume ed., pg 198
2idem, pg 197

2
“rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas fechada”(pg 157) continua a andar

procurando a saída, até descobrir que não existe saída porque “A jaula era

sempre do lado onde ela estava” (pg 162). Um labirinto sem fio de Ariadne, mas

com outro fio, “dentro dela escorria enfim um primeiro fio de sangue negro” (pg

166). Um Teseu sem espada, mas com um punhal. Um mimnotauro que precisa

ser morto.

Mais uma das fábulas grotescas de Clarice nos esclarece quem somos. De

maneira lancinante, como numa punhalada, ficamos sabendo com pavor, de uma
outra noite escura da alma, desse breu que também nos compõe, e saímos da

leitura como se estivéssemos nos "sacudindo de um atropelamento"(pg 161).

Então percebemos: fomos tão fundo que acabamos vendo do outro lado da

passagem "o céu inteiro e um búfalo"(pg 168).

Obs: com carinho, feito elegia pelos 20 anos da sua morte.

gerson dudus/97

bibliografia consultada

3
1. ARTAUD,Antonin. O Teatro e seu Duplo. Trad. Teixeira Coelho. SP, Ed. Max

Limonad,1987.

2. BOOTH,Wayne C. A Retórica da Ficção.Trad. Maria Tereza H. Guerreiro,

Lisboa/Port., Ed. Arcádia,1980.

3. CANDIDO,Antonio. A Personagem de Ficção. SP, Ed. Perspectiva,1972,

3.a edição.

4. FILHO,Domício Proença. Pós-Modernismo e Literatura. SP, Ed. Ática, 1988.

5. LISPECTOR,Clarice. Laços de Família. RJ, Francisco Alves Ed., 1991, 24.a


edição.

6. _______________. A Paixão Segundo GH. RJ, Ed. Nova Fronteira, 1986,

13.a edição.

7. _______________. Um Sopro de Vida. RJ, Francisco Alves Ed., 1991, 9.a

edição.

8.REMATE DE MALES n.° 9, Revista do Depto. Teoria Literária UNICAMP,

Campinas/SP, 1989.

9.SÁ, Olga de. Clarice Lispector A travessia do Oposto. SP, ANNABLUME Ed.,

1993.

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