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O anjo Gabriel se dirigia ao escritório do Supremo. Resmungava:


"Depois de velho, deu pra embirutar. Onde já se viu, repetir a
história numa época dessas! E eu que pensava que nostalgia era coisa só
de homens ... "
Primeiro corredor à esquerda, segunda porta a direita, o escritório.
Gabriel entrou direto, sem bater.
- Mas que desrespeito e esse? - berrou o Supremo, baixando uma
trinca de ases sobre a mesa. - Será que eu não posso nem jogar em paz?
- Perdão, Senhor - falou o anjo. - Mas é um assunto urgente.
- Vocês são engraçados! - protestou o Supremo. - Tudo é urgente,
tudo, menos os meus prazeres. Será que não percebem que o meu jogo
também é urgente? Ou acham que eu jogo de graça?
- Mas Senhor, é sobre aquele caso ...
- Aquele?
- Sim Senhor.
O Supremo, interessado, dispensou os parceiros da mesa e se voltou
para o anjo:
- Quer um charuto?
- Não Senhor, muito obrigado - respondeu Gabriel, o estômago
virando.
- Mas são ótimos charutos - insistiu o Supremo. - Vieram de Cuba, a
terra do meu concorrente.
- Não, não, obrigado.
O Supremo tirou uma longa baforada e inundou o escritório com uma
nuvem de fumaça azul e fedorenta. Com um sorriso estampado no rosto,
perguntou:
- Quais são as novidades?
- Senhor - falou o anjo -, eu acho a sua idéia uma loucura.
- E desde quando você acha ou deixa de achar alguma coisa por
aqui?
- Mas Senhor...
- Nem mas nem meio mas, rapaz! - falou o Supremo, apagando o
charuto para fumar depois. - Será que após tantos anos a meu serviço
você ainda não aprendeu? Quer arrebentar com a minha reputação?
Desde aquela vez em que lhe incumbi de ser o anunciador da chegada do
Meu Filho que tudo tem dado errado.
- Mas Senhor - protestou o anjo - daquela vez eu fiz tudo direitinho
conforme as suas ordens.
- Mas não me aconselhou! Acabou dando no quê? Pegaram lá o
menino, judiaram dele, fizeram o diabo. Se você, sua anta, tivesse me
aconselhado, eu não teria feito aquela puta besteira, não naquela hora.
- São águas passadas, Senhor. E, no final das contas, não foi tão ruim
assim. O Senhor acabou capitalizando aquele pequeno incidente em Seu
próprio benefício.
- Business, meu caro. Não e a toa que estou há tanto tempo na
administração. Mas anda, desembucha logo o que você tem pra falar.
- O que eu quero dizer, Senhor, é o seguinte: os tempos mudaram,
são outros. Não cola mais essa história de filho de Deus. Os homens
agora são diferentes, eles têm jornal, Internet, computador, cartão de
ponto eletrônico que acusa sem mostrar o dedo. Vão lá acreditar no Seu
filho? Outra vez? Vão nada! pegam ele e enfiam num hospício, que é um
dos calvários modernos. Além disso, sendo Maria o que era, virgem e
imaculada, mesmo assim alguns torceram o nariz. (Cá pra nós: difícil
engolir uma virgem grávida, mesmo naquela época.) E aí vem o Senhor,
querendo inventar um filho no ventre de uma mulher como aquela, uma,
uma ...
- Bem se vê que você ainda não é um anjo experiente, Gabriel. Não
se lembra que eu escrevo certo, et cetera et cetera?
- Mas Senhor ...
- É a modernidade, Gabriel, a modernidade. Eu preciso renovar os
meus métodos, agir mais de acordo com a época, senão o Vermelho me
passa a perna. Não pense você que eu penso que os homens não pensam.
Eu sei que eles inventaram a mídia, o DVD, o telefone celular. Sei. Mas
sei também, agora mais do que nunca, que os homens são uns
mundanos, uns ordinários. Que estão divorciados das coisas do céu. O
que podemos fazer, então? Já que o Mundo não vem mais ao céu, vamos
levar o céu ao Mundo! E o que pode ser mais mundano que uma mulher
daquelas?
- Mas será uma vergonha, Senhor! O nosso nome associado ao
pecado, à devassidão ...
- Existe outra maneira melhor para se aproximar dos homens? Não.
Vergonha nada, Gabriel. Estratégia. É preciso jogar o jogo, botar minhas
idéias novamente em circulação. Eu preciso fazer concorrência ao
Vermelho, ganhar o mercado antes que me esqueçam de uma vez.
- Tá bom, tá bom. O Senhor preocupado com marketing e eu com as
conseqüências. Depois não diga que eu não avisei.
- Muita gentileza da sua parte, mas olha, 'scutaqui: quem manda
nessa porra sou eu! Não quero saber de conversa. Você vai lá, anuncia
pra mulher a volta do meu filho e volta pra cá. Não quero saber de
enviado meu enfiado com safadezas. Você vai, cumpre a sua missão e só.
O menino, desta vez, não vai dançar.
- Mas Senhor ...
- Mas porra nenhuma! Some, Gabriel, desce, senão eu corto as tuas
asinhas pra você ver o que é bom!

O anjo Gabriel desceu num beco, atrás do bordel. Viu, pela


janelinha dos fundos, as pernas da escolhida. Quase uma menina. "Velho
tarado", pensou.
Com um cigarro espetado na boca, panamá na cabeça, as asas
escondidas dentro de um elegante terno de linho branco, Gabriel parou
diante da porta. Tocou a campainha e uma mulher de lingerie veio
atender. E ele entrou.

Ela gostava desde sempre. Mas diante do cliente, principalmente se


ele tivesse grana e se mostrasse disposto a pagar umas notas a mais por
uma história comovente, ela caprichava nas cores do drama: éramos
muito pobres, ela dizia, a lagriminha de crocodilo prestes a saltar do
olho, cinco irmãos menores, sabe como é. O pai eu não conheci, sumiu
antes de eu nascer. Foi o porco do meu padrasto quem determinou pra
mim essa vida. Mas ele me queria só pra ele, a puta dele. Minha mãe
não ligava. Acho mesmo que, quanto mais ele me pegasse, mais feliz ela
ficava. Assim, pelo menos, ele não ficava atrás dela, a barba por fazer
pinicando o pescoço, pedindo o que ela já não estava mais disposta a
dar. A menina aqui, portanto, sofrendo o diabo na mão daquele cafajeste
– e sem ganhar um tostão. Daí que eu, cansada do inferno, fiz a malinha
e caí no mundo. Uns tantos dias de frio e de fome eu passei, mas um dia
a dona Linda me viu na rua e enxergou o meu talento por trás da sujeira
que já me escondia a cara. Foi assim que eu vim pra cá.
Ela contava esta história com muita freqüência, e às vezes era o pai
no lugar do padrasto, ou o vizinho, outras vezes o namorado - mudava os
protagonistas masculinos ao sabor do que lhe dava na veneta. Só a figura
da mãe, envolta numa névoa amarga, estava presente em todas as
narrativas. Era a mãe, de fato, o objeto do seu ódio.
- Ainda vou ter essa mulher implorando o meu perdão, de joelhos –
falava. – Aí eu chuto bem a cara dela, vocês vão ver.1
Apesar da sua bagagem de dor e abandono, no entanto, ela se
divertia. Gostava da liberdade, das amigas, da festa interminável que
era a noite. A putaria tinha o seu lado bom, não era o monstro que todos
pintavam. Um trabalho que precisava ser feito, como dizia a patroa,
Linda, a dona do negócio.
- Eu curto – ela dizia. – Quanto mais homem numa noite, melhor. O
desejo, porra! Não sou dessas aí que pegam três e já reclamam de
cansaço. Elas só querem o dinheiro na moleza. Eu gosto mesmo é do
labirinto dos beijos, dos paus todos, das mãos que me jogam e me
batem e me apertam. Esse é o trabalho. O dinheiro, no fim, apenas
enfeita o que eu mais gosto de fazer.
- Se gosta mesmo, Maria, tem cliente novo na casa – falou a patroa.
– É aquele esquisitão ali.

Maria foi caminhando devagar em direção à salinha mal iluminada,


repleta de clientes e fumaça. O esquisitão? Qual deles? Todos ali eram
esquisitos, uns mais, outros menos. A conversa fiada de sempre, eles
posando de descolados, uma descontração que só existia ali. Lá fora
certamente eram homens sérios, responsáveis, respeitáveis pais de
família. Mas no puteiro não, eram todos ricos e devassos e bêbados,
tarados, maníacos em potencial. Esquisitões.
- Maria? – Gabriel perguntou.
Ela se sentou sem olhar pra ele, cruzou as pernas com naturalidade
estudada. Daí foi levantando os olhos devagar, o olhar percorrendo cada
centímetro do terno de linho um tanto fora de moda.
- Você tá ridículo com essa roupinha aí – ela disse enfim, e exibiu o
sorriso. – Muito prazer.
Gabriel sorriu de volta, sentou também.
- Eu precisava compor um personagem – ele falou. – Essa coisa de
malandragem me pareceu apropriada.
- Pros anos 30, 40, talvez. Estamos no século XXI, meu amigo. A
malandragem hoje não veste mais ternos de linho branco, nem usa
panamá. Onde é que você esteve vivendo nos últimos anos?
- Você não acreditaria se eu contasse.

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Esse tema poderá ser desenvolvido mais adiante.
Do outro lado da salinha a patroa, dona Linda, lançava olhares pra
Maria. Era preciso faturar.
- Quer beber alguma coisa, gostosão?
Gabriel hesitou. Fazia séculos que não bebia.
- Absinto.
- Tem uísque. Cerveja também. Paga uma pra mim?
Gabriel balançou a cabeça, tirou o chapéu, tornou a sorrir.
- Hoje posso gastar à vontade. O patrão paga.
As bebidas chegaram pouco depois, e Maria deu o serviço:
- 50 reais, meia hora. Se quiser ficar mais, a gente combina. As
outras meninas cobram mais 20 pelo anal. Eu não. Comigo vai de brinde.
E ainda beijo na boca. Quer subir agora?
Gabriel abaixou um pouco os olhos, guardou o sorriso no bolso.
- Quantos anos você tem?
- 17.
- Você fala muito bem pra alguém da sua idade.
Ela sorriu.
- Eu sou esperta e a noite ensina quem quer aprender.
- 17 anos. O Supremo tá maluco mesmo.
- Que supremo é esse?
Gabriel fez um gesto apontando para o alto.
- O poderoso chefão.
Maria tomou um gole de cerveja. Gabriel colocou o seu copo na
mesinha, sem beber.
- Olha, querido – falou Maria. – Tá vendo aquela mulher ali?
Gabriel encontrou os olhos de Linda.
- Sim, e daí?
- Daí que aquela é a minha poderosa chefona. Eu adoraria ficar aqui
batendo papo com você, mas aquela mulher só pensa em faturar. E eu
trabalho pra ela.
- Entendi.
Gabriel enfiou então um cigarro na boca, tornou a colocar o chapéu
e foi em direção à Linda. Percebeu, enquanto avançava, que alguns
homens riam e cochichavam.
- Pecadores cretinos – pensou o anjo.

Um quartinho bem fuleiro: a cama solitária ocupando o centro, um


lençol de tecido barato mal escondendo as manchas do velho colchão.
Nenhum travesseiro. As paredes cinzentas e vazias, livres de quadros ou
qualquer outra coisa. Um banheiro minúsculo, azulejos faltando aqui e
ali. O cheiro de mofo ocupando o lugar do oxigênio.
- Ou você é rico, ou maluco – ela falou.
- Por quê?
Ela sentou na beirada da cama, as pernas ligeiramente abertas.
- Ninguém nunca comprou a minha noite inteira. A maioria dos
clientes paga meia hora mas resolve o assunto em cinco minutos. Entra,
goza e sai. E você me quer a noite inteira. Desse jeito eu vou começar a
me achar...
- Não é bem o que você tá pensando – ele falou.
Ela tirou a calcinha com rapidez. Quando começava a tirar o
vestido, foi interrompida:
- Não precisa.
Maria abriu mais os olhos, sorriu.
- Com roupa? Você me quer com roupa?
- Não quero você. Não desse jeito.
- E como é que você gosta?
Gabriel sorriu de novo, paciente. Procurou uma cadeira e sentou.
Colocou um cigarro na boca, tirou, tornou a colocá-lo no maço.
- Não vim aqui pra isso – disse.
- Que pena – falou Maria. – Justamente agora que eu tava a fim...
Gabriel tirou o chapéu, os olhos indicando o seu desconcerto.
Gostava, no entanto, daquela situação. Nunca imaginara estar num
quarto como aquele, com uma mulher como aquela. Uma menina,
corrigiu-se. Mesmo assim, os seus olhos, a forma como falava, tudo isso
lhe provocava uma sensação muito agradável, um calor na ponta das
asas, que se remexiam contra o tecido do paletó, uma repentina prisão
de linho branco.
- O Supremo – falou enfim, os dedos afastando uma gota de suor que
lhe escorria pela testa -, o Supremo tem outros planos pra nós. Pra você,
melhor dizendo.
Maria fechou as pernas lentamente, apanhou a calcinha no chão e
ajustou o vestido. Seu rosto era pura decepção.
- Quer ir direto ao assunto, moço? Embora tenha pago pela noite
inteira, não tô com essa paciência toda...
- Gabriel. Meu nome é Gabriel.
- Que seja. Desembucha.
- O negócio é o seguinte: eu sou um anjo...
- ... e eu sou o demônio. Tá legal, já sei disso faz tempo.
- Eu sou um anjo, Maria, e o Supremo me mandou aqui pra te passar
uma mensagem.
- Supremo, supremo, você só fala nele. Quem é esse cara, afinal?
- Deus.
Maria colocou a calcinha, ajeitou os peitos no vestido de maneira a
deixá-los a ponto de saltar pelo decote. Seu mais novo propósito: trazer
o anjo o mais rápido possível para o caos de beijos e abraços do seu
inferno particular.
- Deus? E o que poderia Deus querer comigo?
- Você não está me levando a sério, Maria.
- Tô sim, mas nunca vi Deus entrar pela porta deste puteiro. Acho
que ele nunca veio aqui.
- Ele está em todos os lugares.
- Mas não neste quarto. Aqui estamos só nós dois, querido.
Gabriel sentiu o corpo encharcado. O fio de suor que antes lhe
escorria pela testa tinha agora se transformado numa grande mancha
escura e pegajosa na altura do peito, sob os braços, uma mancha viscosa
e escorregadia que se alastrava em todas as direções, sem controle. Suas
asas se moviam contra a sua vontade, um volume disforme e agora
pesando nas costas, duas lâminas emplumadas lutando freneticamente
para se libertar do paletó.
Percebendo a estranha movimentação de Gabriel, Maria perguntou:
- Você tá bem?
A resposta de Gabriel não trouxe nenhuma palavra, apenas um
guincho metálico e ininteligível. Maria se afastou dois passos, os olhos
arregalados.
- Desculpe – ele falou, enfim. – Perdi um pouco o controle.
- Quem é você, afinal?
Gabriel então, involuntariamente, flutuou dois centímetros acima
do chão. Ela desabou na cama, os olhos grudados no rosto dele, que
subia cada vez mais alto.
- Desculpe – ele repetiu. – Não devia ser desse jeito.
Ela percebeu então que um grande M de penas longas e claras surgia
por trás da cabeça do homem. Asas.
- Eu avisei que era um anjo – ele falou.
Maria fechou os olhos, abriu, fechou de novo, tornou a abrir. Não era
sonho: Gabriel estava um metro acima da cama, as asas se movendo com
leveza. Se o Supremo tinha mesmo um plano para ela, era hora de botar
as cartas na mesa.
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Retomando o controle da situação, Gabriel desceu e fechou as asas.


O paletó e a camisa estavam imprestáveis.
- Quero só ver como vou sair daqui sem ser notado – disse.
Ainda espantada, Maria respondeu:
- Você não é anjo? Mesmo que te vejam por aí, com as asas de fora,
ninguém vai acreditar.
- Você ainda não acredita?
Maria parou pra pensar. Anjos, pra ela, sempre pertenceram a um
outro mundo, bem diferente do seu. Não havia espaço para anjos em sua
vida, em seus pensamentos. Não havia espaço para anjos em sua cama.
E aquele Gabriel ali, bem à sua frente, as asas. Mesmo que quisesse, não
podia ignorá-lo. Difícil não acreditar em algo tão concreto.
- Você falou em uma mensagem... de Deus. Pra mim. Que
mensagem? E por quê?
Já livre da camisa e do paletó, Gabriel parecia uma pintura
renascentista contra as paredes vazias do quarto. Nu da cintura pra
cima, um corpo muito branco, as asas mais claras ainda, era uma figura
estranha. Esquisitão. Seu rosto, no entanto, estava tranqüilo, como se já
tivesse passado por aquilo.
- É um assunto delicado – ele disse. – Volta e meia o Supremo
enlouquece, e quando aquele velho biruta enfia uma coisa na cabeça,
nem o diabo, se me permite a liberdade da palavra, consegue tirar.
- Tá – ela falou. – Mas o que é que eu tenho a ver com isso?
- Vou ser curto e grosso: o Supremo quer que você seja a mãe do
filho dele.
Maria emudeceu. Mãe do filho de Deus? Que porra era aquela?
- Você tá me tirando – falou enfim. – Acha que eu tenho cara de
besta, é?
- Calma, calma.
- Escuta aqui, seu anjinho de araque! Mãe do filho de Deus, que eu
saiba, foi Maria...
- Você é Maria, não é?
- A outra Maria, a Virgem Maria. De virgem eu não tenho nada, nem
o signo. Eu sou puta, entendeu bem, P-U-T-A!
- Eu avisei o Supremo, mas ele não quis saber. Ele chama a isso de
Modernidade. Acha que botar um filho aí na sua barriga é um exemplo
disso, porque o mundo agora é outro, e que os homens são uns devassos,
et cetera, et cetera. Um filho de Deus gerado por uma puta seria uma
aproximação do Céu com a Terra, uma prova da humildade divina ou algo
assim. Pura viagem Dele, mas o que se vai fazer? Ele é o patrão, e eu só
obedeço ordens.
Maria teve um ataque de riso: ela, mãe de um filho de Deus! Mais
fácil ser mãe de um filho do padeiro, do mecânico, de qualquer um. Mais
fácil ser mãe de um filho do anjo Gabriel.
- Um filho da puta, é? É isso o que ele quer? Se o outro, que era filho
de virgem, já sofreu feito um cão, imagina esse...!
Gabriel concordou silenciosamente. Era da mesma opinião, repetir a
História seria um erro, ainda mais nesses tempos. Um novo Cristo seria
apenas um maluco a mais, mais um sofredor entre milhares. A não ser
que o Supremo trocasse o seu perfil, fizesse do seu filho um vencedor,
ou um homem rico, um político influente, a quem o povo costuma ouvir
com um pouco mais de atenção. Mas, conhecendo o chefe como
conhecia, Gabriel não acreditava nisso. O Supremo era muito apegado às
tradições. Permitia-se, sim, alguns excessos, mas pouca coisa, pequenos
vícios inspirados nos homens. Embora adorasse a palavra modernidade,
no que dizia respeito às coisas da Fé, no entanto, costumava ser
inflexível. Traria o novo Jesus tal qual o outro, com as mesmas falas, o
mesmo roteiro de penitência.
- Não cabe a nós – falou Gabriel – julgar o Supremo. Ele escreve
certo por linhas tortas e o caralho a quatro, como vocês dizem aqui.
Maria olhou bem para a cara do anjo. Sentiu que precisava acabar
com aquela história imediatamente, ou sua vida se transformaria no
caos. Onde já se viu, nunca fora religiosa, e agora estava ali naquela
situação ridícula, conversando com um anjo ou sabe-se lá o quê, a um
passo de tornar-se mãe do novo Salvador. Logo ela, que só se punha de
joelhos pra fazer boquete nos clientes...
- Sai do meu quarto – ela falou, a voz inacreditavelmente serena. –
Cai fora.
- Não posso sair assim – falou Gabriel.
Maria foi até a porta e a abriu.
- Sai – ela repetiu.
Sem camisa, com as asas meio abertas, ele saiu.
- Acreditou, pelo menos, no que eu disse?
- Não – ela respondeu, batendo a porta na cara do anjo.
6

Gabriel se viu diante do corredor estreito, sozinho. Um vento leve e


quente soprava seus cabelos, agitava as penas de suas asas. Devagar,
avançou até a escada. E começou a descer.
A pequena sala repleta de sorrisos, gritinhos, gemidos e fumaça. Ele
sentiu medo que notassem suas asas, que o confundissem com outra
coisa. Mas nada, ninguém sequer o percebeu. Dona Linda, a patroa,
sentada atrás do caixa, segurava uma taça. Gabriel se aproximou
lentamente, colou sua boca ao ouvido da mulher e assoprou. Ela coçou a
orelha com um gesto automático. Nem por um segundo se deu conta do
anjo ao seu lado. Daí então Gabriel enfiou um dedo na taça e levou-o à
boca. A patroa tomou um gole em seguida. O anjo repetiu o gesto, dessa
vez com dois dedos. A mulher sorria, apenas.
- Muito bom – pensou ele.
Livrou-se então das calças, agora completamente desnecessárias.
Ficou na salinha ainda por alguns instantes, se divertindo, passeando nu
entre os clientes e as putas, usufruindo do raro prazer de estar sem ser.
Quando enfim se cansou da brincadeira, foi para a rua.
Fiapos de luz entre as nuvens indicavam que a noite estava prestes a
acabar. Para Gabriel, que não dormia há séculos, esse detalhe não fazia
diferença alguma. Seu tempo era um fluxo contínuo, sem começo e sem
fim, um filme interminável que exibia apenas nuances de luz e sombra.
Quando o sol deu os primeiros gritos de luz, a atenção de Gabriel foi
conduzida até uma estranha coluna que ocupava o centro de uma praça.
Era um grande bloco de concreto, muito alto e largo, sem adornos de
qualquer espécie, um objeto que, de tão simples, despertava
desconfiança.
Sem nem ao menos saber por que, Gabriel se deixou levar pelas asas
até o alto da coluna. Lá não havia nada, como já esperava – mas restava
uma estranha sensação, algo que não conseguia explicar. Um incômodo,
algo como se aquela coluna de alguma forma o espiasse, em silêncio,
como se guardasse um segredo que cabia a ele desvendar.
Segundos depois, já com os dois pés bem plantados na rua, a má
sensação se dissipando no ar, o anjo percebeu que algo vibrava em suas
costas. Levou a mão até a asa esquerda e lá encontrou o aparelho
celular.
- Alô – disse -, quem é?
- Quem mais poderia ser, Gabriel? – trovejou a voz. – É o teu Pai!
Os olhos do anjo se voltaram pra cima.
- Pois não, Senhor. Em que posso ajudá-lo?
- Fez a anunciação conforme as minhas ordens?
- Anunciação?
- Passou a mensagem pra mulher, Gabriel?
- Pra menina, o Senhor quer dizer.
- Deu o recado, porra?
Gabriel afastou um pouco o fone do ouvido. A dolorosa voz do
Senhor.
- Dei sim. Mas acho que ela não gostou muito da história.
- Eu já imaginava. Hoje ninguém mais quer segurar essa bucha.
Ainda bem que você continua aí.
- Posso voltar agora?
- Não, não pode, Gabriel. Você fica até ela concordar.
O rosto do anjo se contraiu.
- Mas Senhor, eu não posso ficar aqui. Eu não pertenço a este
mundo, não saberia me conduzir entre os homens...
- Não confia mais no seu Deus, meu filho?
As pernas e as asas de Gabriel tremeram ao mesmo tempo.
- Não é essa a questão...
- Não tem questão, Gabriel. Isso é uma ordem!
- Mas o que é que eu faço, Senhor?
- Se vira, Gabriel. Se vira.
Como se tivesse sido atingido por um raio, o telefone celular saltou
da mão do anjo e caiu na calçada, espatifando-se.
- Era só o que me faltava... – disse ele.
Um homem se aproximava, apressado. Quando chegou perto o
suficiente de Gabriel, falou, a censura na voz:
- Você não tem vergonha não, xará? Com as coisas todas aí de fora...
O anjo sentiu o rosto avermelhar.
- Perdão. Não imaginava que pudesse ver as minhas asas.
- Asas? Tá maluco? Tô falando é desse seu pinto aí.
Gabriel cobriu o membro com a mão direita e com a esquerda
procurou as asas. Não encontrou nada. Foi nesse momento que aceitou,
definitivamente, que os desígnios de Deus são mesmo incontornáveis.

Aldo V. saiu de casa apressado, uma sacola de plástico abarrotada


de roupas na mão. Desceu a rua até a esquina, virou à esquerda e, com
passos largos, chegou à praça. Parou um segundo, observou com desdém
a coluna de concreto que ocupava todo o espaço central, e então tornou
a andar. Seus olhos procuravam uma placa que indicasse o nome da
praça. Não encontraram. Vivia há anos naquela região, e só agora se
dera conta de que não sabia o nome da praça. Nem das ruas. Misteriosos
são os caminhos do Homem, pensou.
Não muito longe dali encontrou Gabriel, nu e constrangido.
- O senhor aceitaria uma folha de parreira – perguntou ele, um
sorriso que misturava bondade e cinismo.
- Acho que uma folha só não vai ser suficiente – respondeu o anjo. –
Creio que daqui pra frente as minhas necessidades vão ser cada vez
maiores.
Aldo V. passou a sacola para o anjo.
- Aí vai encontrar tudo o que precisa – falou. – Por ora.
Gabriel estava acostumado aos milagres, por isso não estranhou o
gesto do homem.
- À qual ordem você pertence?
O homem franziu a testa.
- Ordem?
- É. À qual ordem de anjos você pertence?
Aldo pensou que algo mais faltava a Gabriel além da roupa. Mas isso
não era da sua conta. A boa ação do dia fora praticada, era mais um
crédito para a sua entrada no Céu.
- Acho que isso é tudo o que posso fazer pelo senhor hoje – disse.
- O Supremo não mandou mais nada?
- Supremo?
- É, o Supremo. Não foi ele quem te mandou aqui?
Aldo olhou para o rosto de Gabriel e notou que, apesar da situação,
ele estava muito bem barbeado. Notou também suas unhas, limpinhas.
- Ninguém me mandou – falou ele. – Sempre faço isso, gosto de
ajudar os mendigos.
- Mendigo? Eu sou um anjo!
- Tá bom, querido. Cadê as asinhas, então?
Gabriel lançou um olhar por sobre o próprio ombro, em vão.
- Sei. Você é um anjo. E eu sou a rainha da Inglaterra.
Antes que o anjo pudesse falar qualquer coisa, Aldo se afastou.
- Mendigo... – repetiu Gabriel, indignado.
8

As roupas não eram elegantes, um pouco apertadas até, mas, diante


das circunstâncias, Gabriel não podia reclamar. Não estava gostando das
coisas, mas sabia como era o Supremo: também Ele sofria de tédio, e o
que poderia ser pior do que o tédio de Deus? Por essas e outras o
Supremo inventava essas situações sem pé nem cabeça: pra se divertir,
pra escapar das longas agulhas enferrujadas da eternidade. Era assim
com ele, com os outros anjos, com os santos todos. Toda a hierarquia
celeste estava submetida aos seus caprichos. O primeiro que ousou
reclamar mergulhou pra sempre nas profundas do inferno.
Gabriel não queria igual destino. Não concordava com a sua missão,
mas não era maluco a ponto de deixá-la sem cumprir. Sua opinião não
contava. O Céu tinha propósitos misteriosos que ele não alcançava. E
nem queria. Dores de cabeça, nada mais. O Supremo que desatasse os
nós, que é pra isso que estava lá.

Ao acordar de seus pensamentos, Gabriel se encontrou diante de um


sobrado antigo, as paredes pintadas de um rosa decadente. Olhou pra
cima e conseguiu adivinhar o nome da casa no néon apagado: Maison
Rouge.
- Lá vou eu de novo – ele disse, e começou a subir as escadas.
Quando atingiu a sala principal da Maison, tudo o que encontrou foi
o silêncio, copos e garrafas vazias sobre as mesas. Uma paisagem
devastada. Lembrou então da noite anterior, da festa de beijos e pernas,
e subitamente foi invadido por uma sensação de impotência. Toda a
alegria enfim é isso, pensou, um grande e silencioso nada.
No momento em que partia para o andar de cima, onde ficavam os
quartos, uma voz rompeu o silêncio:
- Aonde o senhor pensa que vai?
Gabriel se voltou lentamente e seus olhos encontraram a patroa,
metade do corpo ainda escondido na sombra.
- Maria. Preciso falar com ela.
Linda se aproximou, acendeu um cigarro e fixou o olhar em Gabriel
por alguns instantes.
- Tá pensando que aqui é a casa da mãe Joana, é? – falou. – Vai
entrando assim, sem ser anunciado, como se estivesse na própria casa?
Pode não parecer, mas aqui é um lugar de respeito, ouviu bem, senhor...
- Gabriel.
- Gabriel. Pois é, mas o senhor chegou tarde. Ou cedo demais. As
meninas já se recolheram.
- É que eu preciso falar com a Maria. Deixamos um assunto pendente
ontem à noite.
Linda abaixou os olhos, a fumaça do cigarro lançando fantasmas
azuis no ar.
- Maria foi embora. Saiu faz dez minutos.
- Foi pra casa?
- Aqui era a sua casa. Ela foi embora pra sempre.
O espanto nos olhos, Gabriel fez as perguntas de praxe: por que, pra
onde, como assim. Linda, os olhos esvaziados de qualquer sentimento,
se limitou a balançar a cabeça.
- Quando sair feche a porta, por favor. Eu preciso dormir.
Antes mesmo que Gabriel pudesse piscar, a patroa desapareceu
novamente nas sombras, deixando atrás de si apenas um rastro de
fumaça.

A rua já não representava nenhuma novidade para Maria, mas agora


as circunstâncias eram outras. Não se via mais dormindo sob as
marquises e usando caixas de papelão como cobertores. Isso pertencia a
um tempo romântico, se é que pode chamar assim, um estágio da vida
em que as ausências e mesmo os sofrimentos mais intensos ainda
guardavam aquela pequena fagulha de esperança. Mas os tempos eram
outros e a esperança de Maria agora tinha outro nome: dinheiro. Tinha
mais que o suficiente no bolso, um outro tanto espalhado por contas
abertas aqui e ali – mas e depois? Poderia voltar para a Maison com
aquela cara de vaca arrependida, mas sabia que as coisas jamais
voltariam a ser como antes. Pedir emprego em outra casa não estava em
seus planos mais imediatos. A única coisa que ocupava os seus
pensamentos era a fantástica conversa de Gabriel, a delirante proposta
do anjo. Do anjo... Tinha muito de maluquice naquilo tudo: Deus,
Supremo, um filho, ora essa!, ela a mãe de um filho de Deus! Dera
ouvidos a um maluco, mas algo dentro dela se partira: de repente
resolveu largar a putaria, embora gostasse, cair no mundo novamente
feito uma menininha assustada, mudar seus horizontes em nome de algo
que ainda não sabia direito o que era. Maluquinha também ela, trocar o
certo pelo incerto, fazer o que da vida de agora em diante? A idéia de se
tornar uma respeitável senhora dona de casa, essas coisinhas cretinas a
que as mulheres sem perspectivas se sujeitavam desde a idade das
cavernas não a estimulava nem um pouco. Por mais que se esforçasse,
no entanto, não conseguia ver uma perspectiva, dar um rumo aos seus
pés que avançavam com a determinação de um naufrágio. A rua,
portanto, longe de ser novidade, tornara-se abrigo, abraço, conforto. O
lar que, agora se dava conta, nunca abandonara de fato.

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Solidão. Embora fosse esse um sentimento tão particularmente


humano, foi assim que Gabriel se sentiu quando deixou a Maison. Um
vazio tão grande que pela primeira vez se sentiu abandonado por Deus.
E, de fato, tinha sido abandonado. Não gostava de pensar dessa maneira
tão fatalista, mas Deus, sim, o tinha abandonado, largado à própria
sorte no centro do picadeiro humano. Essa constatação, mais que um
pensamento, provocou no anjo uma súbita divisão: um lado seu, mais
fiel aos seus princípios e à sua fé, ficava indignado com a idéia. Desde
que se entendia por anjo que o Supremo estivera presente, mesmo nos
momentos que considerava mais particulares. Deus era a companhia e a
certeza, a resposta, o amparo que se espera um segundo antes da
queda. Seu outro lado, no entanto, que até então se mantivera em
serena contenção, agora pulsava idéias inconcebíveis para um anjo: a
dúvida, ele sabia, a dúvida era o veneno da fé, e o mundo que conhecia
fora erguido pela certeza da fé. Este mesmo mundo agora tremia vítima
de uma estranha febre da alma, os vapores pestilentos da dúvida. Sim,
porque agora, como nunca antes,duvidava. E por quê? “Misteriosos são
os caminhos do Senhor”, repetia vezes sem fim com a clara intenção de
aplacar a febre que o consumia por dentro. Misteriosos, sim, pensava a
seguir, mas acho que o Supremo passou da conta, essa história de trazer
outro filho danificou o que lhe restava de bom senso, e o respeito pelos
seus auxiliares tinha corrido feita água suja para dentro do ralo. Porque
era assim que se sentia agora: água suja, coisa sem valor, um chiclete
mascado durante séculos pelo divino e cuspido numa poça repleta de
desdém.
Cheio de culpas e ódios, então, o espírito remoendo dores que ele
sequer imaginara possuir, Gabriel se viu diante de uma rua deserta e
longa, sem referências de espécie alguma, nenhum ponto que pudesse
identificar como alívio para suas preocupações mais imediatas. A rua
deserta, compreendeu, era uma metáfora do mundo e mais ainda: era
uma metáfora dos espíritos não só dos homens, mas dos anjos também,
um desenho cru do que era e do que estava por vir.
Maria, por exemplo, onde encontrá-la agora? E como fazer entrar na
cabeça daquela menina as idéias delirantes do Supremo? Por mais
esperta ou malandra que fosse, a menina era jovem demais para
compreender os desígnios do Altíssimo. Os delírios do Altíssimo. Gabriel
pensava ainda que aquilo tudo era uma espécie de pecado por parte
daquele que abominava os pecados: como é que o Supremo podia
condenar uma jovem àquela pena tão árdua? Já não bastavam os
castigos infligidos à primeira Maria, a Virgem? Por que o Supremo queria
mais uma vez jogar à fogueira da maldade humana mais uma inocente?
Fazê-la sofrer por conta de um capricho seu? Sim, porque repetir a volta
do Filho, numa época dessas, nada mais poderia ser do que um capricho
de um ser entediado, cansado de jogar cartas e consumir charutos. Falta
do que fazer, isso sim. Ou melhor, falta de foco no que fazer, uma vez
que o mundo precisava e muito da Sua intervenção. Mas o Supremo
desde sempre escolhia as suas prioridades, fossem elas sensatas ou não
aos olhos dos anjos. Um tirano que não precisava da opinião de ninguém.
A cada vez que se deixava invadir por pensamentos dessa natureza
Gabriel sentia o coração encolher, como se mãos invisíveis o apertassem
com o claro objetivo de colocá-lo novamente no caminho do silêncio e
da resignação. E ele sabia do que se tratava: era o Supremo vigiando
cada passo e cada pensamento seu, um olho que vigiava
constantemente. Gabriel sabia – mas por algum motivo desconhecido,
desde que viera para o mundo dos homens sua mente se abrira de tal
maneira que nem mesmo ele se compreendia completamente. A venda
havia caído, os olhos agora enxergavam livres. Por isso a dureza dos
pensamentos, as facas da compreensão. A verdade, enfim. Que poderia,
como nas Escrituras, libertar, mas também condená-lo à eterna danação.
Quando enfim se deu conta dos próprios pés, Gabriel se encontrou
longe da Maison, num lugar desconhecido. De familiar apenas a praça
que abrigava a grande coluna que crescia em direção ao céu, a coluna
plantada no chão como uma enorme espada de concreto.
Um tremor percorreu o corpo de Gabriel no exato instante em que
pousou os olhos na coluna. Um calafrio. Sem nem ao menos pensar, deu
meia volta e ganhou a rua na direção contrária. Não tinha certeza, mas
julgava já ter passado por ali, embora a paisagem surgisse diferente a
cada passo. Era como se tivesse vindo por ali, mas o ar tinha um cheiro
diferente, até mesmo a luz era outra. Ao fim de cinco minutos de uma
caminhada repleta de sustos e surpresas, eis Gabriel novamente diante
da praça, a coluna fria emitindo censuras silenciosas.
- Mas que porra! – exclamou o anjo. – Pensei ter ido, mas na
verdade voltei. Maldita coluna!
De novo os calafrios, ainda mais intensos. Mas Gabriel compreendeu
que de nada adiantava fugir.

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