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As Canárias
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AS CANÁRIAS
ALBERTO VIEIRA
Durante séculos o Atlântico foi considerado o mar das trevas, incapaz de ser sulcado
pelas embarcações mediterrânicas e de se navegar com as técnicas de navegação em
uso. O empenho de cartagineses, árabes e peninsulares veio a revelar o contrário e a
torná-lo, a partir do século quinze, no principal centro de convergência dos interesses
europeus. A ponte entre os mundos antigo e moderno fez-se por via dos árabes, mas
foram os portugueses que materializaram a nova realidade e a definição do novo espaço
atlântico. Ao grego ou romano esta vasta massa de água materializava a dicotomia do
bem e do mal, expressa em visões aterrorizadoras, contrárias à navegação mas
favoráveis à sua afirmação como paraíso dos deuses da mitologia. Mas, para o europeu,
dos séculos XV e XVI, ele será a imagem de uma esperança de total mudança dos
interesses económicos. Onde o homem antigo via o paraíso inalcançável os peninsulares
colocavam à sua mão e tornava-o real.
Desde o século XIV que surgiram alegações de ambas as partes reivindicando a posse
destas ilhas junto do papado. Em 1345 D. Afonso IV, de Portugal, em resposta à bula
Vince Domini Sabahot de Clemente VI reclama a posse das Canárias, fundamentado na
prioridade do seu conhecimento e proximidade geográfica5. Passados cem anos D.
Duarte alega os mesmos argumentos para reclamar ao papa Eugénio IV a posse das
ilhas não conquistadas6. A anuência papal as pretensões portuguesas conduziu a
imediata reacção de Castela que se serviu do poder de intervenção dos seus juristas
junto do papa para obter a revogação da referida bula7. A pesquisa de Esteban Perez
Cabitos em 1477 denuncia a intenção da coroa castelhana em defender os seus direitos
de posse fazendo uso de toda a argumentação possível. No seguimento desta versão
forçada temos a intervenção dos cronistas oficiais, como Alonso de Palencia, Diego de
Valero e Andrés Bernaldes8.
Não obstante o facciosismo das fontes narrativas e de alguns estudos publicados até ao
presente, existem algumas análises abalizadas, como as de Peter Russel e Florentino
Perez Embid, que devem merecer a nossa intenção O primeiro em três ensaios
1
.vide Bibliografia
2
.Vide Bibliografia
3
. GOMES EANES DE ZURARA: Crónica de Guiné, Porto, 1973, caps. LXVIII. LXIX, LXXIX, XXXV, XCV; DE BARROS, J.:
Da Asia, década primeira, parte primeira, Lisboa, 1973, caps. I-XIII; RUY DE PINA: Cronica del rey Dom Joham II, Coimbra,
1950, pág. 26; GARCIA DE RESENDE: Cronica de Dom João II, Lisboa, 1973, pág. 45; FRUTUOSO, G.: Livro Primeiro das
Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1966, cap. IX, págs. 65-76.
4
. Ibid., pág. 69, O cronista das ilhas deverá referir-se à letra sicenre devotionis de 2 de Maio de 1421 (Monumenta Henricina, Vol.
lll, Lisboa, 1961, núm. 8, págs. 14-17) ou então à bula Romani Pontificis de 30 de abril de 1437 que revoga a bula Rex Regum de 8
de Setembro de 1436, veja-se Monumenta Henricina, Vol. Vl, 1964, núm. 21, págs. 41-43; Ibid., Vol. V, v o 9O, págs. 214-216;
Ibid., núm. 97, págs. 230-234. A Monumenta Henricina (citada pela abreviatura M.H.), 14 Vols., Coimbra, 1960-.1973,[publicada
sob os auspícios da Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da morte do Infante dom Henrique é o mais
importante repositório de documentação para o estudo das pretensões henriquinas às Canárias].
5
MH., Vol. Vl, 1964, núm. 89, págs. 207-214; ibid., núm. 90, págs. 214-216; ibid., núm. 97, págs. 230-234.
6
Ibid., Vol. V, 1963, núm. 129, págs. 254-258; ibid., Vol. IX, núm. 137.
7
Ibid., Vol. VI, núm. 19, págs. 79-83; ibid., núm. 57, págs. 139-199; Veja-se RUSSEL, P. E.: «El descubrimiento de las
Canarias...», págs. 26-28.
8
Madrid, 1970, liber 33, cap. V, págs. 75-77; Veja-se LOPEZ DE TORO, J.: La conquista del Gran Canana en la Cuarta Década del
Cronista Alonso de Palencia, 1478-1480, in Anuario de Estudios Atlanticos, XVI, 1970, págs. 325-393; MORALES PADRÓN, F.:
Canarias, Crónicas de su conquista, Las Palmas, 1978.
publicados em Portugal a Espanha equaciona a questão à luz da documentação
disponível e da ambiência da época. Assim em 1971 enquadrava essa disputa no âmbito
da pretensão peninsular pela posse e conquista da costa africana9. Mais tarde
equacionava a mesma questão de acordo com o direito da época para depois explicitar,
baseado nos cronistas, as razões que levaram o infante D. Henrique a esta disputa10.
Para Perez Embid a questão deverá ser encarada num âmbito mais vasto da disputa das
coroas peninsulares pela conquista e domínio do Atlântico. A razão do conflito se
localizar, entre 1415 e 1454, nas Canárias resulta do facto de o infante D. Henrique e os
mercadores andaluzes cobiçarem a posse das ilhas. Note-se que as ilhas eram o único
bastião avançado para a afirmação da hegemonia peninsular na costa ocidental
africana.11
A questão ou disputa das ilhas Canárias nos séculos XIV e XV é o prelúdio de novas
disputas e do confronto dos objectivos monopolistas, bem patentes nos reinos
peninsulares. A defesa do Mare Clausum e a sucessão das coroas peninsulares
provocaram o afrontamento entre Portugal e Castela, ao mesmo tempo que catalizaram
as atenções das coroas europeias para uma intervenção directa ou indirecta no conflito.
Deste modo o litígio entre coroas peninsulares desenrolou-se em dois palcos afins: a
9
«Fontes documentais...», págs. 5-33.
10
El descubrimiento de las Canarias..., págs. 26-28; O Infante D. Henrique e as ilhas Canarias (...), págs. 11-13, 22, 39.
11
Ob. cit., págs. 111-175.
12
Esbozo de un estudio de la influencia portuguesa en la cultura internacional canaria, in Homenaje a Elias Serra Ráfols, 1. 1970,
pág. 372.
13
. Gran Canaria y los contactos con las islas portuguesas atlanticas: Azores, Madera, Cabo Verde y Santo Tomé, in Congresso
Internacional de História Maritima, Las Palmas, 1982; Id. MARTIN SOCAS, M.: Emigración y comercio entre Madeira y Canarias
en el siglo XVI, in Os Açores e o Atlântico séculos XIV a XVIII, Angra do Heroísmo, 1984.
Península Ibérica e o Atlântico ocidental. No primeiro tivemos desde 1336 uma
sucessão interminável de conflitos e tratados de paz ou aliança. No período de 1336 a
1494 assinaram-se dezoito tratados de paz ou aliança14. As alianças matrimoniais e os
laços de parentesco da casa real peninsular condicionaram a política de sucessão e
implicaram assíduas disputas pela posse ceptro real.
17
Le Canarien, Cronicas de la conquista de Canarias, La Laguna/Las Palmas, Vol. 1, 1960. doc. 100. 440-441, Valladolid. 26 de
Junho de 1412: ibid.. Vol. ll. cap. XXVI. 98-100.
18
LADERO QUESADA, M. A.: Los señores de Canarias en su contexto sevillano (1403-1477), in Anuario de Estudios Atlánticos,
núm. 23, 1977. págs. 127-128; MAGALHAEs GODINHO, V.: «A Economia das Canárias nos séculos xlv e xv. in Revista de
História S. Paulo, 1952. Em 1434 o papa Eugénio IV proíbe pela bula Regimini gregis a escravização dos canários (M. H., V, núm.
28, págs. 89-93); ibid., núm. S2, págs. 118-123, letras ucator omnium de 17 de Dezembro; ibid., núm. 93, págs. 184-185, letras
oudum nostras de 13 de Janeiro de 1436.
19
M.H., Vol. III. núm. 18, págs. 14-16, concedido na mesma data por 5 anos pela letra Sincere Devotions publ.; ibid., núm. 9, págs.
16-17. A 26 de Maio o monarca solicitou a concessão perpétua, veja-se ibid., núm. 10, págs. 17-18.
20
M.H., Vol. V, núm. 137, 143.
21
Ibid.,lX, núm. 95, págs. 121-123.
22
Ibid., IX, núm. 174, págs. 273-275, 9 de Março de 1448.
23
Ibid., Xl, núm. 138, págs. 172-179, 25 de Maio de 1452; ibid., núm. 236, págs. 239-245, de Abril de 1454.
24
Ibid., Xll, núm. 144, págs. 30-32, 27 de Maio de 1456; ibid., XIII, núm. 151, págs.
conseguida por via do tratado estabelecido no ano de 1479 em Alcáçovas e confirmado
pelos monarcas no seguinte em Toledo. A sua assinatura assinala o abandono definitivo
das pretensões portuguesas pela posse das Canárias e o aparecimento de novos locais de
disputa além do Bojador.
Quais os motivos que levaram a esta mudança de atitude ? O período de 1450 a 1474 é
marcado por múltiplas peripécias que condicionaram a intervenção dos reinos
peninsulares nas Canárias. Por um lado morte do infante D. Henrique, em 1460, em
consonância com os avanços expansão atlântica relegaram para segundo plano as
Canárias e, por outro, as tensões internas de Castela atenuaram as suas reivindicações.
Note-se que o monarca Henrique IV de Castela chegou mesmo a doar em 1455 aos
Condes de Atouguia e Vila Real o senhorio das ilhas de Canárias Tenerife e Palma25.
Perante isto a coroa portuguesa, de imediato, solicitou a confirmação papal da referida
doação26. No entanto o monarca castelhano mediante a reclamação de Fernão de Peraza,
foi obrigada a revogar esta doação. O tratado de Toledo (1480) marca o abandono
definitivo das pretensões portuguesas à posse das Canárias e o aparecimento de novos
motivos ou locais disputa27. O reconhecimento da impossibilidade de usurpação ou
posse das Canárias por parte de Portugal não resultou de uma derrota da diplomacia
portuguesa e das hostes lá enviadas mas antes das alterações da conjuntura socio-
política definidas pelo avanço da expansão atlântica. As Canárias que num primeiro
momento eram imprescindíveis para o apoio à navegação e comércio no litoral africano
perderam esta posição com o início do povoamento da Madeira, com o avanço das
navegações para sul e com a criação de feitorias, como a de Arguim em 1445, quer
ainda com a evolução da ciência náutica e construção naval, que permitiram uma maior
autonomia das embarcações. Além disso a cobiça da burguesia andaluza pela zona do
golfo da Guiné, materializada em incursões assíduas entre 1475-1479, tornaram urgente
uma solução satisfatória que não lesasse os interesses da política exclusivista
portuguesa, estabelecida em 1454. O rápido (re) conhecimento do litoral africano com a
gesta henriquina, bem como a valorização socioeconómica desta nova área impuseram
esta viragem na política ultramarina portuguesa.
A partir de meados do século XV, são assíduas as referências a escravos canários na ilha
da Madeira como pastores e mestres de engenho. A sua presença na ilha deveria ser
importante nas últimas décadas do século XV. Os documentos clamando por medidas
para acalmar a sua rebeldia são indício disso. Muitos deles mantiveram-se na Madeira
fiéis à tradição do pastoreio. Estranhamente, nos testamentos do século XV, não
encontramos indicação de qualquer escravo guanche. Para além dos dois escravos que
possuía o capitão Simão Gonçalves da Câmara, sabe-se que João Esmeraldo, na
Lombada da Ponta do Sol, era também detentor de escravos desta origem, sem ser
referido o número. Cadamosto, na primeira passagem pelo Funchal em 1455, refere ter
visto um canário cristão que se dedicava a fazer apostas sobre o arremesso de pedras.
Será que o Pico Canário (Santana) e o lugar do Canário (Ponta de Sol) referem-se ao
escravo ou ao pássaro tão comum nestes arquipélagos? Note-se que em abono do último
caso temos a referência de que João Esmeraldo era possuidor de escravos desta origem
na sua Lombada, que não obstante estar cerca da vila, pertencia à jurisdição do
município do Funchal.
30
Veja-se SIEMENS, L., e, BARRETO, L.: Los esclavos aborigenes canarios en la isla de la Madera (1455-1505), in Anuario de
Estudios Atlanticos, núm. 20, 1974, págs. 111-143 e o nosso estudo «O comércio de cereais das Canárias para a Madeira nos séculos
xvl e xvil», in Coloquio de Histona Canario Americana (1984), Las Palmas,1988.
31
ABREU GALINI)O, Fr. J.: História de la conquista de las siete islas de Canarias, Santa Cruz de Tenerife, 1977. pág. 134:
ARTUR SARMENTO A., ibid., pág. 20.
32
FRUTUOSO, G.: Saudades da Terra, L.° 1, Ponta Delgada, 1966, 69; ibid., L.° IV,Vol. II, Ponta Delgada, 1981. pág. 263; DIAS
LEI1E, J.: Descobrimento da ilha da Madeira..., Coimbra. 947, pág. 32; M.H., Vol. IX, núm. 174, págs. 273-275.
33
FRUTUOSO, G.: Ob. cit., L." IV, Vol. I, Ponta Delgada, 1977, págs. 103-113; AUGUSTO A SIlVA, F.: Bertentourt, in
Elucidario Madeirense, Vol. I, Funchal, 1984. 138-139: HENRIQUES DE NORONHA. H.: Nobiliario genealógico das familias que
passaram a viver esta ilha da Madeira..., Vol. 1. S. Paulo, 1947, 51-74; Nobiliario de Canarias, Tomo 1, La Laguna, 1952. pags.
595-600; DE LA ROSA OLIVEIRA, L.: Los Bettencourt en Las Canarias y en América, A.E.A., núm. 2. 1')56, págs. 130-135.
Bettencourt, por exemplo, casou com Rui Gonçalves da Câmara, filho-segundo do
capitão do donatário do Funchal e futuro capitão do donatário da ilha de S. Miguel. A
compra em 1474 por Rui Gonçalves da Câmara da capitania da ilha S. Miguel implicou
a ramificação desta família aos Açores. Com D. Maria Bettencourt seguiu para Vila
Franca o seu sobrinho Gaspar que mais tarde viria a encabeçar o morgadio da tia em S.
Miguel, avaliado em 2.000 cruzados34. Os filhos deste, Henrique e João evidenciaram-
se na época pelos serviços prestados à coroa, tendo recebido em troca muitos benefícios.
Henrique de Bettencourt preferiu o sossego das terras da Band'Além, R Ribeira Brava,
onde vivia em riquíssimos aposentos. Aí institui um morgadio e teve uma intervenção
muito activa na vida municipal e nas campanhas africanas. Os seus descendentes
destacaram-se na vida local e nas diversas campanhas militares em África, Índia e
Brasil35.
34
Veja-se FRUCTUOSO, G.: Saudades da Terra, L.° IV, Vol. II, Ponta Delgada, 1981, 261-272.
35
. Ibid., L." II. Ponta Delgada, 1968, págs. 227, 274; DIAS LEITE, J.: Ob. cit.. págs. 39-41 72: DE FREITAS DRLMOND, J. P.:
Documentos historicos e geographicos sobre a ilha da Madeira, ms. da Biblioteca Municipal do Funchal. fols. 9-10v:
GONQALVES, E.: Os homens-bons do Concelho do Funchal em 1471, in Das Artes e da História da Madeira, Vol. V. núm. 4.
Pags. 8 e74.
consequência e causa das migrações humanas. Todavia tal intercâmbio só adquiriu a
plenitude no século XVI, incidindo preferencialmente no comércio de cereais dos
mercados de Tenerife, Fuerteventura e Lanzarote. A proximidade da Madeira ao
arquipélago canário e o rápido surto do povoamento e valorização sócio-económica do
solo orientaram as atenções do madeirense para esta promissora terra. Assim, decorridos
apenas vinte e seis anos após a ocupação do solo madeirense, embrenharam-se na
controversa disputa pela posse das Canárias ao serviço do infante, em 1446 e 1451.
A presença madeirense na empresa canária conduziu a uma maior aproximação dos dois
arquipélagos ao mesmo tempo que influenciou o traçado de vias de contacto e comércio
entre os dois arquipélagos. Pela Madeira tivemos, primeiro, o saque fácil de mão-de-
obra escrava para a safra do açúcar e, depois, o recurso ao cereal e à carne, necessários à
dieta alimentar do madeirense. Pelas Canárias foi o recurso à Madeira com o porto de
abrigo das gentes molestadas com a conturbada situação que aí se viveu no século XV.
Em 1476 com a conquista levada a cabo por Diogo de Herrera, muitos dos descontentes
com a nova ordem emigraram para a Madeira ou Castela. Esta corrente migratória
resultante do descontentamento gerado em face da conquista e ocupação do arquipélago
canário iniciara-se já por volta de meados do século XV, sendo seu arauto Maciot de
Bettencourt. O sobrinho do primeiro conquistador das Canárias, amargurado com o
evoluir do processo e em litígio com os interesses da burguesia de Sevilha, cedeu o
direito do senhorio de Lanzarote ao infante D. Henrique mediante avultada soma de
dinheiro, de fazendas e regalias na Madeira. Iniciava-se assim uma nova vida para esta
família de origem normanda que das Canárias passa à Madeira e aos Açores,
relacionando-se aí com a principal nobreza da terra, o que lhe valeu uma lugar de relevo
nas sociedades madeirense e micaelense do século XV. Acompanharam o desterro de
Maciot de Bettencourt a sua filha Maria e os sobrinhos e netos Henrique e Gaspar.
Todos eles conseguiram uma posição de prestígio e avultadas fazendas mercê do
relacionamento matrimonial com as principais famílias da Madeira. D. Maria
Bettencourt, por exemplo, casou com Rui Gonçalves da Câmara, filho-segundo do
capitão do donatário do Funchal e futuro capitão do donatário da ilha de S. Miguel.
O impacto lusíada nas Canárias surgiu muito cedo tendo a Madeira como um dos
principais eixos do movimento. A presença alargou-se às ilhas de La Palma, Lanzarote,
Tenerife e Gran Canaria. Os portugueses assumiram um lugar de relevo, situando-se
entre os principais obreiros da valorização económica das ilhas. Eles foram exímios
agricultores, pescadores, pedreiros, sapateiros, mareantes, deixando marcas indeléveis
da portugalidade na sociedade canária. A tradição bélica e aventureira de alguns
madeirenses levou-os a participar activamente nas campanhas de conquista de Tenerife,
recebendo por isso, como recompensa, inúmeras dadas de terra. Daí resultou a forte
presença lusíada nesta ilha, onde em algumas localidades, como Icode e Daute, surgem
como o grupo maioritário. Aliás Granadilla foi fundada por Gonzalo Gonzalez Zarco
filho de João Gonçalves Zarco, capitão do donatário do Funchal. A prova mais evidente
da importância da comunidade lusíada na ilha está documentada nos "acuerdos del
cabildo de Tenerife" onde foram sempre referenciados em segundo lugar. O mesmo se
poderá dizer para a ilha de La Palma onde os portugueses marcaram bem forte a sua
presença, tendo a testemunhá-lo a existência de alguns registos paroquiais feitos em
português. Entretanto em Lanzarote o forte impacto madeirense está comprovado pelas
inúmeras referências da documentação e pelo testemunho de Vieira y Clavijo de que a
Madeira era familiar para os lanzarotenhos que era aí conhecida como a ilha.
Uma vez que os contactos entre a Madeira e as Canárias foram mais frequentes é
natural a presença de uma importante comunidade madeirense nesse arquipélago, com
principal relevo para as ilhas de Lanzarote, Tenerife e Gran Canária. Aí foram agentes
destacados no comércio e transporte entre os dois arquipélagos ou artífices,
nomeadamente sapateiros. Os açorianos, maioritariamente das ilhas Terceira e S.
Miguel, surgem em menor número e preferentemente ligados à faina agrícola. A classe
mercantil de origem madeirense nas Canárias segue um rumo peculiar. Eles ao contrário
dos flamengos e italianos não se avizinham de imediato, mantendo o estatuto de
estantes. A necessidade de fixação é quase sempre o corolário do progresso das suas
operações comerciais e dos investimentos fundiários.
O comércio entre as ilhas dos três arquipélagos atlânticos (Madeira, Açores, Canárias)
resultava não só da complementaridade da sua exploração económica mas também da
sua proximidade e assiduidade de contactos. A Madeira, mercê da sua posição
privilegiada entre os arquipélagos dos Açores e das Canárias, do seu parcial alheamento
das rotas indicas e americanas apresentava condições favoráveis para o estabelecimento
desses contactos com as ilhas vizinhas. É de salientar que com as Canárias, não obstante
a sua conquista e dependência à coroa espanhola, os contactos são muito mais assíduos
e importantes. Para isso contribuiu a proximidade dos dois arquipélagos, a atracção
exercida pela terra canária nos madeirenses e a permanente hostilização açoriana ao
estabelecimento da rota do comércio de cereais 49. Esta última situação contribuiu para
o reforço do relacionamento entre a Madeira e as Canárias, nomeadamente com
Tenerife, Lanzarote e Fuerteventura.
36
Descrição da ilha da Madeira, in A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, pág. 34; Viagem à ilha da Madeira e aos
Açores..., in ibid., pág. 226; TORRIANI, L.: Descripcion del reino de las islas Canarias. . ., Santa Cruz de Tenerife, 1978, págs. 45-
46
das Canárias (57%), na sua maioria oriundo das ilhas de Lanzarote (69%), Tenerife
(16%) e Fuerteventura (69%). A ilha de Tenerife surge em lugar de destaque até 1523,
cedendo esta posição à ilha de Lanzarote que domina, a partir de então, todo o comércio
de cerais com a Madeira. Note-se que no século XVII das 27.817 fanegas de trigo
canário entrado no Funchal 78% é proveniente de Lanzarote apenas 14% de
Fuerteventura, que substitui Tenerife.
A ilha de Lanzarote foi nos séculos XVI e XVII o principal granero canario de
abastecimento da Madeira. O cereal era assim o principal produto e a justificação para a
permanência deste elo de ligação, traçado em princípios do século xv pela comunidade
normanda daí oriunda. Todavia, este relacionamento mercantil não se ficou a dever
única e exclusivamente ao cereal pois o madeirense procurava assegurar nesta ilha o
abastecimento de carne e queijo. Neste volumoso trato comercial as ilhas vizinhas de
Tenerife e Gran Canaria tiveram uma intervenção importante, actuando como centros de
recepção e redistribuição da mercadoria de Lanzarote ou como portos de divergência
das principais rotas que ligavam esta ilha à Madeira. Assim as praças comerciais de Las
Palmas, Santa Cruz, Garachico substituíram-se aos portos de Arrecife, Arriete e
Graciosa que funcionavam apenas como portos de escoamento da mercadoria de
Lanzarote ''.
A data de 1640 marca o terminus desse relacionamento humano e comercial, sendo esta
situação consequência ou represália do fim do domínio filipino no império lusíada. A
conjuntura político-institucional rompeu com esta tradição de contactos entre estas ilhas
vizinhas. Esta aproximação que surgira como resultado dessa ambiência de confronto
das coroas peninsulares é desta feita vítima desse afrontamento. Se pela parte canária
essa quebra vai de encontro a uma conjuntura hostil ou pouco propiciadora desse
relacionamento, marcada pela constância das crises cerealíferas e pela abertura das rotas
americanas, ao invés na Madeira essa situação causou graves problemas com o
abastecimento de cereais, só solucionados com o reforço da rota açoriana, europeia e,
mais tarde, com as farinhas americanas 52 . A situação de afastamento acentua-se em
finais do século XVII (1663) e princípios do seguinte (1703) quando a política
concertada de Portugal e Inglaterra conduziu a definição do exclusivo de comércio do
vinho madeirense no mercado colonial britânico 53. Deste modo a ambição e disputa
das coroas europeias pelo exclusivo ou domínio do comércio atlântico da mesma forma
que contribuíram para o prelúdio da aproximação da Madeira com as Canárias
conduziram ao seu fim, olvidando toda uma tradição histórica sedimentada nessas
conexões.
ILUSTRAÇÕES: