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INFÂNCIA E LINGUAGEM EM WALTER BENJAMIN: REFLEXÕES PARA A

EDUCAÇÂO
Patrícia Corsino1

Não são as coisas que saltam das páginas em direção à criança que as
contempla- a própria criança penetra-as no momento da contemplação, como
nuvem que se sacia com o esplendor colorido desse mundo pictórico. Frente
ao seu livro ilustrado a criança coloca em prática a arte dos taoístas
consumados: vence a parede ilusória da superfície e, esgueirando-se entre
tapetes e bastidores coloridos, penetra num palco onde o conto de fada vive(...)
Neste mundo permeável, adornado de cores, onde a cada passo as coisas
mudam de lugar, a criança é recebida como companheira. Fantasiada com
todas as cores que capta lendo e vendo, a criança entra no meio de uma
mascarada e também participa dela (Benjamin, 1984, p.55).

Introdução
Entre ensaios e fragmentos, teorias, reflexões, imagens e alegorias, histórias e
rememorações, as palavras de Benjamin guardam a magia de a cada leitura nos cobrir
pela neve do lido2. Este filósofo alemão guardou nos seus escritos a força da
clarividência3, indo além do seu tempo. Para ele, o texto é um palco de idéias onde
forma e conteúdo são indissociáveis e é nos pequenos objetos, nas sobras do
banquete, no lixo da história, nos fragmentos, no micro, que ele busca o macro, o
múltiplo, as várias possibilidades de leitura de uma realidade que também é múltipla.
Leitura inspirada na mística da cabala judaica, com amplas possibilidades,
comprometida com a realidade, com a mudança e com o futuro - redentor do passado
pelas vozes dos vencidos- portanto, revolucionária.
Para Benjamin o conceito é um mediador entre as idéias abstratas e os
fenômenos empíricos: as idéias se relacionam com as coisas como as constelações
com as estrelas e cada idéia é um sol com outros sóis, comenta Konder (1989,p.90),
Nesta perspectiva, as idéias são autárquicas: são mônadas. A mônada é uma unidade
indivisível constituída de todos os elementos existentes, uma forma independente que
contém a imagem de todas as outras formas. Toda mônada, por sua vez, embora
tenha em si elementos do mundo e das idéias é diferente da outra, pois não existe
dois seres ou situações perfeitamente iguais.
Para Benjamin as idéias possuem um “recinto” próprio: a linguagem4.A
linguagem é a “casa” das idéias, é na e pela palavra que as idéias podem ser

1
Doutora em Educação pela PUC-Rio, professora da Faculdade de Educação da UFRJ.
2
BENJAMIN, W. Rua de Mão Única. In Obras Escolhidas vol. II. São Paulo: Brasiliense, 1993 b, p.37.
3
BENJAMIN,W. Doutrina das Semelhanças. In Obras Escolhidas vol. I. São Paulo: Brasiliense, 1993a,
p.112.
4
BENJAMIN, W. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana. In Sobre Arte, Técnica
Linguagem e Política. Lisboa: Antropos, 1992, p.177
2

formuladas e comunicáveis a nós mesmos e ao outro. A realidade nos é apresentada


pela linguagem, ela existe e se expressa na língua, nos possibilitando também
conhecê-la e expressá-la. Benjamin chega a afirmar que não há acontecimento ou
coisa, seja na natureza animada, seja na inanimada que, de certa forma, não participe
da linguagem5.
Esta centralidade da linguagem na vida do homem traz uma questão
fundamental para os marxistas: em que medida as mudanças na infra-estrutura, nos
modos e condições de produção, interferem nas superestruturas? Que relações
recíprocas existem entre infra-estrutura e as superestruturas? Indagações partilhadas
também por Mikhail Bakhtin (1992) que acrescenta que a palavra por penetrar em
todas as relações entre indivíduos, será sempre o indicador mais sensível de todas as
transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam (p.41).
Benjamin, impregnado com as questões de sua época e sensível às mudanças
em curso, em sua crítica à modernidade denuncia o empobrecimento da linguagem
expressiva, do intercâmbio de experiência, da capacidade de narrar e de estabelecer
elos de coletividade, a substituição da experiência pela vivência, a perda da aura da
obra de arte na era da reprodutividade técnica.Todas estas mudanças, que para o
autor instauraram uma nova barbárie, vão se exacerbar no mundo contemporâneo,
trazendo novos textos, nova organização espaço-temporal e, conseqüentemente,
novos signos.
O autor relaciona a idéia de progresso e de desenvolvimento ao
empobrecimento da experiência humana e alienação da linguagem. Faz uma crítica à
concepção evolucionista de história como tempo contínuo que caminha
irremediavelmente para o futuro que, em nome do progresso, descarta o passado. Nas
palavras do autor: a idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável
da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo (Benjamin, 1993,
p.229).
Ao longo de sua obra, Benjamin vai tratar da linguagem em diferentes ensaios
e de diferentes formas, tornando este tema um dos pontos centrais de suas reflexões,
permitindo pensar criticamente a realidade capitalista em que vivemos e suas
conseqüências na cultura e nas formas do sujeito agir, pensar e se expressar.
Benjamin também traz uma importante contribuição para se pensar a infância.
Em seus escritos, Rua de mão única, Infância berlinense e Imagem e pensamento, o
autor não se limita a trazer recordações da sua infância, mas, dando voz ao menino,
traz a forma como ele via e sentia o mundo, falando também de um momento histórico

5
BENJAMIN, W apud. KONDER, L. Ideologia na Linguagem: a reflexão de Benjamim. In Revista
Palavra 2, Rio de Janeiro: Departamento de Letras, PUC- Rio, 1994,p.19.
3

e de uma sociedade. Os textos e fragmentos vão dando voz à criança totalmente


inserida na história, parte da cultura e produtora de cultura. Ao recuperar o mundo da
cultura dos pais, ao mesmo tempo recupera a maneira de ver da criança, a sua
sensibilidade, seus hábitos, desejos, afetos e valores e, sob este ângulo vai
reafirmando a especificidade do mundo infantil. Esta objetividade permite ao leitor o
despertar da sua própria infância e nesta rememoração, emerge o tempo saturado de
agoras, quebra-se a idéia de tempo linear e amplia-se o sentido de coletividade, O
menino Walter fala dele, do seu momento histórico e inserção sócio-cultural, trazendo
uma história que é simultaneamente individual e coletiva, história que pode ser
continuada e re-significada dentro de cada um de nós a partir da nossa experiência de
ser criança, história que também continua na experiência de ser criança em qualquer
tempo e espaço.
A infância para Benjamin é uma categoria central no estudo do homem e se
encontra no centro de sua concepção de memória. Como afirma Kramer (1996,p.30),
a infância é chave para a compreensão de uma época por meio da face criança do
menino Walter que, ao rememorar momentos da sua própria história, fala também de
um momento da história da humanidade, entrecruzando presente, passado e futuro.
A atualidade do pensamento de Benjamin e suas reflexões sobre infância e
linguagem são importantes fontes para se pensar o sujeito e a educação.Neste
trabalho, apresento algumas idéias de Benjamin sobre a linguagem e vou rastreando
pistas para pensar as crianças e a educação. Pistas que têm me permitido melhor

situar as crianças na história, na sociedade e na cultura e, também, agir criticamente


com elas, tanto no que concerne à prática pedagógica cotidiana, quanto à prática de
pesquisa com crianças e suas interações. Como afirma Kramer (1996), com base em
Benjamin e Agamben:
só o ser humano pode ser in-fans (etimologicamente, em latim, aquele que não fala).
Então, ao contrário dos animais, o homem – como tem uma infância, ou seja, não foi
sempre falante – aparece como aquele que precisa, para falar, constituir-se como
sujeito da linguagem e dever dizer o seu eu. Nessa descontinuidade é que se funda a
historicidade do ser humano. Se há uma história, se o homem é um ser histórico, é só
porque existe uma infância do homem, é porque ele deve apropriar-se da linguagem.
Se assim não fosse, o homem seria natureza e não história, e se confundiria com a
besta (p.38).

E é justamente o encontro desta infância do homem, que se constitui como


sujeito da linguagem, que me conduziu neste trabalho. O homem apropriando-se da
linguagem, dizendo o seu eu como própria condição de sua historicidade. Com os
textos de Benjamin passo pela linguagem adâmica com o poder nomeador da palavra,
vou à origem da linguagem, entendida pelo autor como uma manifestação do sujeito,
expressão fundada no gesto, entro na linguagem mimética, que muito além de
4

produzir semelhanças, toca o extra-sensível, finalizo com a linguagem na


modernidade, que embora Benjamin a considere uma nova barbárie, ao ser revelada,
dialeticamente nos permite pensar uma barbárie positiva, em que a educação das
crianças pode ser um dos caminhos para se escovar a história a contrapelo.

A linguagem adâmica

A linguagem da natureza é comparável a uma senha secreta, que cada


sentinela passa à próxima na sua própria linguagem, mas em que o
conteúdo da senha é a linguagem da própria sentinela. Toda a
linguagem superior é tradução da inferior, até que na última clareza
desabroche a palavra de Deus, que é a unidade deste movimento da
língua. (Benjamin, 1992,p.196)

Em 1916, sob forte inspiração teológica, Benjamin escreve o ensaio Sobre a


linguagem geral e a linguagem humana6. Neste texto o autor apresenta a linguagem
como um princípio orientado para a comunicação de conteúdos intelectuais que se
estende não só a todos os domínios de manifestação espiritual do homem, mas
também a todas as coisas. Pois a tudo é essencial a comunicação de seu conteúdo,
sua essência espiritual. E a linguagem de uma essência espiritual é aquilo que nela é
comunicável7. A linguagem para o autor é, portanto, um medium da comunicação.Para
Benjamin, o homem comunica a sua própria essência espiritual na sua linguagem,
denominando todas as coisas.
A essência lingüística do homem é, pois, o fato dele designar as coisas. Assim,
o autor entende que Deus fez as coisas reconhecíveis pelo seu nome e confiou ao
homem continuar a sua obra denominando-as de acordo com o seu reconhecimento.
Para isso, ele faz uma tradução, um contínuo de conversões do que não tem nome ao
nome, participando de uma revelação. O pecado original do espírito lingüístico se dá
quando a palavra passa a comunicar algo além de si mesma. E é quando o poder
nomeador da palavra cede lugar à função comunicativa da palavra que ela torna-se
um mero signo. Para Benjamin, começa assim, uma outra mudez, a da natureza que
não fala por si, pois passa a ser designada pelo homem, suportando uma
multiplicidade de vozes. Desta forma, o autor considera que a linguagem não é
apenas comunicação do comunicável, mas simultaneamente símbolo do
incomunicável8. A esta dimensão polissêmica da linguagem o autor contrapõe a
linguagem burguesa instrumental, monológica e fragmentada.

6
BENJAMIN, W. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana. In Sobre Arte, Técnica
Linguagem e Política. Lisboa: Antropos, 1992, p177-196.
7
Idem p.177-178
8
Idem p.194
5

Ao trazer a linguagem da natureza, Benjamin dá um sentido semântico ao


mundo físico. As coisas falam ao homem e falam desde a infância, de muitas coisas e
de muitas maneiras. Assim, a jóia da mãe no menino Walter torna-se ao mesmo tempo
uma sociedade e um talismã protetor: A Rua Blumeshof9, onde as duas avós de
Benjamin moraram, transformou-se no Reino das Sombras das avós imortais e uma
mercearia, num monumento ao avô:
Paulo Freire (1997), partilhando da mesma idéia, se refere à casa onde
passou a infância, o mundo das suas primeiras leituras.E como Benjamin e Paulo
Freire, Pasolini (1990) também entende que as coisas têm um discurso e acrescenta
ainda que a realidade física educa a carne de um menino como forma do seu espírito.
Assim, ele lê a cortina de sua casa como a marca do mundo pequeno-burguês que lhe
constituiu e lhe serviu, como referência, durante muito tempo da sua vida. Pois esta
linguagem pedagógica das coisas foi para ele um espírito repressivo e autoritário,
invencível durante muitos anos, até que pudesse perceber que existiam mundos

diferentes daquele.

Embora Benjamin afirme que a linguagem adâmica venha sendo substituída


cada vez mais por uma linguagem instrumental, ela ainda se manifesta em diferentes
situações da nossa vida, em que nomear, antes de qualquer finalidade comunicativa, é
uma revelação do nomeado ao nomeador, uma continuidade da criação que não se
esgota. Muitos artistas se referem a esta possibilidade de ouvir as coisas e de nomeá-
las, nós nomeamos nossas produções, um filho que nasce, apelidamos as pessoas
próximas. As crianças também nomeiam seus brinquedos, objetos, pessoas.
As reflexões de Benjamin nos instigam a pensar, tanto a realidade enquanto
texto que se abre à significação de cada um, quanto o próprio movimento do sujeito
neste processo de criação-nomeação do mundo. O que traz algumas questões para se
pensar as crianças- mas não só elas- e o seu cotidiano: o que a realidade tem
revelado às crianças? Como tem se presentificado a dimensão nomeadora da palavra
neste cotidiano? Que espaços têm sido abertos à percepção e à criação das crianças?
Os adultos que lidam com as crianças têm valorizado sua sensibilidade e sua
expressão? Que linguagens - verbais e não verbais- dispõem para suas expressões?
Como se aproximam da arte, nas suas diferentes manifestações? Adultos e crianças
têm participado de situações em que possam perceber e falar das coisas da sua vida
como algo cósmico, além do visível, deixando aflorar os múltiplos sentidos revelados a
cada uma? Em que situações são locutores e ouvintes da linguagem da natureza,

9
Segundo a nota do tradutor do texto, Blumeshof significa literalmente pátio das flores em alemão.
Seriam as avós também as flores daquela rua?
6

linguagem das coisas - sentinelas com a senha secreta capaz de abrir caminhos para
o extra-sensível?

A origem da linguagem: entre gestos e sons


A partir do momento em que o homem usa a linguagem para estabelecer uma
relação viva com ele próprio ou com os seus semelhantes , a linguagem já não
é um instrumento , não é um meio; é uma manifestação, uma revelação da
nossa essência mais íntima e do laço psicológico que nos liga a nós próprios e
aos nossos semelhantes.(Goldstein apud Benjamin, 1992, p.229)

No seu ensaio Problemas de Sociologia na Linguagem, escrito em 1945,


Benjamim discute a origem da linguagem, manifestando sua preocupação com os
mecanismos teóricos e políticos que obscurecem a marca da luta de classes na
linguagem (Konder,1994). Questiona as “evidências” das teorias onomatopaicas da
origem da linguagem, critica as teorias positivistas e as dimensões ahistórica e
progressista de ciência. Tomando como referência os estudos de Marr traz os
movimentos das mãos, os gestos e movimentos do corpo como os primeiros meios de
criação lingüística. Benjamin cita os estudos de Vygotsky sobre os chimpanzés10 e
concorda que haveria uma fase pré-lingüística do pensamento, uma inteligência
prática baseada no uso de instrumentos11 e uma fase pré-intelectual da linguagem
(gestos e alívio emocional) que em algum ponto se convergiriam12. Como Vygotsky,
Benjamin também busca na ontogênese da linguagem infantil, elementos para
entender a filogênese. Conclui, da mesma forma que o psicólogo russo, que ela ocupa
na infância o exato lugar que é reservado mais tarde ao processo de pensamento
13
propriamente dito .É interessante ressaltar que, para Vygotsky (1991 p.121) o gesto
é o signo visual que contém a futura escrita da criança, eles são a escrita no ar e os
signos escritos são gestos que foram fixados.
Benjamin considera o gesto anterior ao som e o elemento fonético baseado
num elemento mímico-gestual. Desta forma, o som da linguagem não seria
necessariamente uma onomatopéia e sim um complemento audível ao gesto mímico
visível e totalmente expressivo por si. Aos poucos, todos os gestos teriam sido
acompanhados de um som que, como é mais econômico (embora menos expressivo),

10
Vygotsky também baseou seus estudos nas teorias de Marr.
11
Baseado nesta proposição, Benjamin confirma sua tese de que o domínio do uso de instrumentos
precederia ao da linguagem. É interessante ressaltar que para Vygotsky a invenção e o uso de signos
como meios auxiliares para solucionar um dado problema psicológico (lembrar, comprar coisas, relatar,
escolher etc) é análogo à invenção e uso de instrumentos, só que agora no campo psicológico. O signo
age como um instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento no
trabalho(VYGOTSKY, L Formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes 1991, p.59).
12
Para Vygotsky este ponto é exatamente o momento em que o pensamento torna-se verbal e a linguagem
racional, transformando o biológico do homem em sócio histórico.
13
Vygotsky cit in Benjamin, 1992, p.223.
7

se revelando menos dispendioso e exigindo menos energia, passou a predominar. O


autor defende, assim, uma teoria mimética da linguagem num sentido muito mais lato,
ou seja, o instinto de um movimento expressivo mimético através do corpo. Reforça o
lado expressivo da linguagem, vista não como um meio, mas como uma manifestação,
uma revelação da nossa essência mais íntima.
Benjamin nos faz perceber os gestos e expressões das crianças pequenas
como enunciados, portanto, direcionados e situados social e historicamente, ligando-
se a enunciações anteriores e a enunciações posteriores. Os gestos indicativos, as
imitações, as brincadeiras infantis, os jogos de faz-de-conta são movimentos
expressivos da linguagem. Movimentos que marcam os primeiros anos de vida , mas
que não se limitam a este período. O pensamento benjaminiano nos alerta para a não
linearidade da história, não cabendo uma visão desenvolvimentista-evolucionista do
homem. Por sua vez, esta linguagem não-verbal é uma composição de sentidos além
das palavras e exige que o outro preencha o espaço deixado pela ausência delas. O
acabamento é dado pelo outro. Encontrar este gesto revelador, então, é ir ao encontro
de nós mesmos e dos outros.
Mas como aconteceu na filogênese, na medida em que as crianças adquirem a
linguagem verbal vão utilizando cada vez mais a economia e a concisão da palavra
para se expressar, deixando o gesto em segundo plano. Porém, como afirma Bakhtin
(1992), o corpo nunca deixa a palavra totalmente sozinha. O rosto, as mãos, as
expressões, as entonações e acentos apreciativos completam o texto. São os extra-
verbais e os não ditos que toda enunciação carrega. Cabe ressaltar, que esta
substituição, por sua vez, não trata apenas de uma questão de economia e precisão é
também fruto da educação, de ações intencionais do adulto sobre a criança. O gesto
vai sendo reprimido desde de muito cedo porque a movimentação da criança
incomoda o adulto, é sinal de desordem. E assim, os adultos se encarregam de
disciplinar o gesto infantil.
A escola tem muita dificuldade de lidar com a movimentação e a expressão
corporal da criança. Além de não cultivar a expressão do corpo, vai aos poucos,
moldando os movimentos, formando corpos dóceis, como diria Foucault14 , restritos
aos gestos homogêneos das rotinas disciplinares. Quanto maior a disciplina nos
espaços institucionalizados, menor é o lugar do corpo. Mas as crianças não são
totalmente domesticáveis, são desordeiras e sempre encontram uma fresta, uma
brecha para escapar do instituído.
Na pesquisa com crianças, um dos nossos objetivos tem sido justamente
perceber o que escapa ao controle do adulto. Quais as formas encontradas pelas
14
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: 1993
8

crianças para não se assujeitarem ao instituído, para fugirem do controle? Como


interferem e mudam as ordenações do adulto? De que maneira expressam suas
reordenações?

A linguagem mimética: da brincadeira à leitura, o extra-sensível

A natureza engendra semelhanças: basta pensar na mímica. Mas é o homem


que tem a capacidade suprema de produzir semelhanças. Na verdade, talvez
não haja nenhuma de suas funções superiores que não seja decisivamente co-
determinada pela faculdade mimética. ( Benjamim, 1993 a, p.108)

No seu ensaio A doutrina das semelhanças, escrito em 1933, Benjamin15


ressalta que esta faculdade mimética tem uma história tanto ontogenética como
filogenética. A brincadeira infantil, para o ensaísta, é a escola desta faculdade. Nas
suas brincadeiras as crianças não se limitam a imitar pessoas, mas também objetos,
coisas, elementos da natureza. Elas brincam a partir dos destroços e com restos
estabelecem uma nova relação entre os materiais, formando o seu próprio mundo das
coisas.
A criança colecionadora, caçadora, que na sua brincadeira transgride a ordem,
transformando tudo, se esconde, se perde, se acha, se mimetiza. É gente, bicho,
planta, fantasma, gigante, herói. No jogo infantil, o espaço de ser e de criar em
plenitude, reside o encontro com a magia da linguagem, apesar das “arrumações”
impostas pela casa e pela escola. Benjamin abre o brincar à sua dimensão mágica,
naquilo que se aproxima do sagrado, unindo a infância de todos os homens e de todas
as épocas.
É interessante observar que no curso da história muitas coisas “desceram” do
mundo sacro ao mundo laico. Benjamin16 aponta a obra de arte, cujo valor de culto deu
lugar ao valor de exposição, porém podemos citar o teatro, alguns brinquedos como a
boneca e o pião, que já formam objetos ritualísticos, os jogos de trilhas e tabuleiros e
os contos de fadas ou maravilhosos, cujo núcleo mais antigo deriva, segundo Vladmir
Propp17, dos rituais de iniciação usados nas sociedades primitivas. Na linguagem
mimética do brincar infantil, a transgressão da ordem das coisas estaria na “subida” à
magia do sagrado?
Para Benjamin, na filogênese, o significado do comportamento mimético é bem
mais amplo do que hoje consideramos semelhança.

15
BENJAMIN,W. Obras escolhidas vol. I :magia e ténica , arte e política. São Paulo: Brasiliense,1993a
p.108-113.
16
BENJAMIN,W. A obra de Arte na era da reprodutividade técnica. In Obras escolhidas vol. I :magia e
ténica , arte e política. São Paulo: Brasiliense,1993 a, p. 165-196.
17
Cit in RODARI, Gianni. Gramática da Fantasia. São Paulo: Summus Editorial, 1982,p.64-65.
9

Pois nem as forças miméticas nem as coisas miméticas, seu objeto, permaneceram as
mesmas no curso do tempo; que com a passagem dos séculos a energia mimética,
abandonou certos espaços, talvez ocupando outros.(...)Pois o universo do homem
moderno parece conter aquelas correspondências mágicas em muito menor
quantidade que o dos povos antigos ou primitivos. A questão é se se trata de uma
extinção da faculdade mimética ou de sua transformação(Benjamin, 1993 a, p. 109)

Os antigos encontraram semelhanças, por exemplo, entre a posição dos os


astros no instante do nascimento e as pessoas, criando a astrologia, cuja semelhança
está na ordem do extra-sensível. Hoje, de acordo com Benjamin, esta semelhança
extra-sensível está presente na linguagem. É ela que estabelece a ligação entre o
falado e o intencionado, entre o escrito e o intencionado e entre o falado e o escrito
(idem, p.111). A escrita transformou-se assim, ao lado da linguagem oral, num arquivo
de semelhanças, de correspondências extra-sensíveis. Desta forma, desenvolveu-se a
dimensão “mágica” junto à dimensão semiótica da linguagem. Pois, os elementos
miméticos da linguagem só podem vir à tona sobre um fundamento que lhes é
estranho- a dimensão semiótica e comunicativa da linguagem. O texto, seja ele oral ou
escrito, é o fundo do qual emerge o semelhante num lampejo. E como esta
semelhança extra-sensível está presente em todo ato de leitura:
abre-se nesta camada profunda o acesso ao extraordinário duplo sentido da palavra
leitura em sua significação profana e mágica. O colegial lê o abecedário, e o astrólogo
o futuro contido nas estrelas. No primeiro exemplo, o ato de ler não se desdobra em
seus dois componentes. O mesmo não ocorre no segundo caso, que torna manifestos
os dois estratos da leitura: o astrólogo lê no céu a posição dos astros e lê ao mesmo
tempo, nessa posição, o futuro e o destino(idem, p.112).

Benjamin explica que o dom mimético, antes fundamento da clarividência,


migrou gradativamente para linguagem oral e escrita. A clarividência confiou à escrita
e à linguagem as suas antigas forças (idem, p.112). E é por isso que podemos
considerar a linguagem como um medium em que as coisas se encontram e se
relacionam, não diretamente como no espírito do vidente ou do sacerdote, mas em
suas essências.
Assim, mesmo a leitura profana, para ser compreensível, partilha com a leitura mágica
a característica de ter que submeter-se a um tempo necessário, ou antes, a um
momento crítico que o leitor por nenhum preço pode esquecer se não quiser sair de
mãos vazias.(Benjamin, 1992 a, p.113)

Da magia do brincar à magia da leitura, é necessário um tempo para deixar


emergir a semelhança extra-sensível dos objetos, e das palavras lidas. Tempo de
encontro consigo mesmo, com a sua história, com a sua subjetividade, com suas
experiências de vida, com seu acervo particular de imagens recolhidas e de textos
lidos. Tempo de processar, de ler tanto o traço visível, quanto o invisível do texto,
trabalho de reescrita do vidente, do adivinha e também do ouvinte que precisa
10

conseguir se deixar tomar pela leitura. Este tempo que não é apenas cronológico e
linear, mas intenso, psicológico e fragmentado, portanto subjetivo18. Tempo próprio da
infância, que se transforma no curso da vida de cada um, tempo também reflexo do
nosso tempo sócio, histórico e cultural.
Partilhar como o menino Walter de uma leitura mágica vencendo a parede
ilusória da superfície para penetrar no palco da história e depois sair dela com o corpo
todo tomado, é o próprio objetivo do ato de ler. Mas é lido o que é tomado pelo
ouvinte/leitor/artista/criança desordeira como texto. Neste sentido, observa-se que se
por um lado, as crianças vão construindo seus signos a partir de sua experiência com
o mundo objetivo e do contato com as formas culturalmente determinadas de
organização da realidade, no mundo permeável das suas brincadeiras e histórias,
adornado de cores, onde a cada passo as coisas mudam de lugar, a criança é
recebida como companheira. Fantasiada com todas as cores que capta lendo e
vendo, a criança entra no meio de uma mascarada e também participa dela
No trato com as crianças algumas questões se impõem: como elas organizam
a realidade?O que suas produções revelam? Como re-elaboram e recriam os
elementos da cultura? Que cores captam de suas leituras? Que fantasias vestem e
para onde vão com elas?

A linguagem e a Modernidade

Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos


jovens . De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma
prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países
longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. O que foi feito de tudo isso?
Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser
contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser
transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado hoje por um
provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua
experiência? (Benjamin, 1993 a, p.114)

Se nos ensaios anteriores Benjamin tratou a linguagem abordando a sua


dimensão mística, adâmica e extra-sensível, nos ensaios Experiência e pobreza,
escrito em 1933, O Narrador e a Obra de Arte na era de sua reprodutividade técnica19
em 1936, o autor vai olhar a linguagem à luz das mudanças provocadas na cultura
pelos modos de produção capitalista da modernidade.

18
Hohan (2004,p.54) chama atenção para as diferentes palavras usadas pelos gregos para designar o
tempo: (i) chrónos que seria o número de movimentos segundo o antes e o depois- o que foi e não é mais
e o que ainda não foi e será ,(ii) o Kairós que significa medida, proporção e que em relação com o
tempo, momento crítico, temporada, oportunidade e (iii)Aión- que designa a intensidade do tempo na
vida humana, um destino, uma duração, uma temporalidade não numerável nem sucessiva, intensiva.
19
Os três ensaios foram publicados em BENJAMIN,W. Obras escolhidas vol. I :magia e ténica , arte e
política. São Paulo: Brasiliense,1993 a
11

Experiências desmoralizantes para o homem como a I Guerra Mundial, com os


soldados voltando silenciosos, a inflação exacerbada vivida pela Alemanha, com o
dinheiro no centro de todas as conversas, a fome, o descrédito nos governantes e a
sobreposição da técnica ao homem, determinaram uma pobreza de experiências
comunicáveis. Benjamin então, se pergunta: qual seria o valor do nosso patrimônio
cultural, se não há mais uma experiência a ser transmitida às novas gerações, se a
experiência não se vincula mais às pessoas?
E ele mesmo responde que esta subtração da experiência é na verdade uma
pobreza que não se limita à esfera privada, mas abraça toda a humanidade,
inaugurando uma nova barbárie. Porém nosso ensaísta, buscando uma brecha neste
processo, introduz um conceito novo e positivo de barbárie. Novo, pois se aproxima e
se afasta da antiga barbárie, uma vez que é fruto do mesmo processo civilizatório
iluminista que buscou a sua superação. Positivo, porque esta pobreza de experiência
também impele o homem a ir em frente e construir o novo com o pouco que tem. Ou
seja, Benjamin admite que haja um espaço criativo da barbárie, pois ela ao mesmo
tempo em que rompe com a tradição é também fiel ao seu tempo.
O autor analisa algumas manifestações artísticas que já anunciam e
denunciam este novo, entre elas, a arquitetura de vidro, que é um material tão duro e
tão liso que nada se fixa. Não tem aura, é inimigo do mistério e da propriedade e não
deixa rastro20. Este novo ambiente se distingue bastante do lar burguês do veludo,
marcado pelos inúmeros vestígios deixados por seus habitantes, pela tradição
impressa na solidez dos móveis e nos detalhes dos objetos. Distingue-se também do
plástico contemporâneo, descartável, sem consistência e densidade
Benjamin vai mais longe na sua análise sobre a pobreza de experiência,
dizendo que os homens atuais não aspiram às novas experiências, ao contrário,
aspiram libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo que possam ostentar
sua pobreza externa e interna21. Rompendo com o passado, devorando a cultura, os
homens cansados, solitários e sem história, descansam assistindo TV22.
O homem moderno é mais um na multidão condenado à solidão pela
impossibilidade de intercambiar experiências. No seu dia-a-dia não há tempo para
viver a experiência, só há lugar para a vivência que não dá espaço para assimilar o
que foi vivido, pois é conseqüência de um choque permanente, do eternamente novo,
sem rastros e desenraizado de história. Já passou o tempo em que o tempo não

20
BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza. In Obras escolhidas vol. I :magia e ténica , arte e política. São
Paulo: Brasiliense,1993 a, p.117.
21
Idem, p.118.
22
Benjamin cita as aventuras do camundongo Mickey.
12

contava. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado. Com efeito, o
homem conseguiu abreviar até a narrativa23.
A linguagem da modernidade, não é mais a narrativa que trazia a experiência
passada de pessoa para pessoa, mas sim a informação que traz a brevidade da
novidade, carregada de explicações - conforme o ensaísta, justamente a arte de narrar
está em evitar explicações, deixando o sujeito livre para interpretar a história como
quiser. Uma linguagem empobrecida, sem laços de coletividade, sem uma
comunidade de ouvintes. Portanto, uma linguagem que se tornou monológica, sem
troca, sem diálogo, sem marcas do e no outro.
A sede do novo da informação e o seu precoce envelhecimento fazem parte de
uma sociedade que desconsidera a tradição e a história, cujos processos produtivos,
aliena o homem do seu trabalho, roubando-lhe a autonomia do antigo trabalho
artesanal. Benjamin diz que a narrativa era acompanhada pelas mãos que teciam e
ela de certa forma também é uma comunicação artesanal. Não está interessada em
transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela
mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se
imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.24
Neste mergulho, retira-se dele a conservação do que foi narrado (memória) e
ensinamentos úteis para vida pela possibilidade de continuar a história (conselhos).
Portanto, na relação narrador e ouvinte criam-se laços afetivos, promove-se encontros
e diálogos, emergindo a dimensão expressiva da linguagem.
Todas estas transformações mudam a sensibilidade e a forma das pessoas
assimilarem o vivido, de se verem e de verem o outro. O que tem provocado no sujeito
a sucessão de choques típica vivência? A sociedade capitalista da modernidade
trouxe uma nova materialidade que tem interferido nas formas de apreensão da
realidade. E se existem coisas que podemos sentir, ver e fala, existem também coisas
que só a arte pode mostrar e revelar. Pois ela anuncia o devir e transforma o finito no
infinito. É a linguagem expressiva levada às últimas conseqüências. Sua concretude é
o próprio refletir e refratar da realidade.
Benjamin aponta as mudanças que ocorreram com a obra de arte na era da
sua reprodutividade técnica, mostrando as profundas transformações na sua forma de
recepção, agora pelas massas, e nas estruturas perceptivas do sujeito. Segundo o
ensaísta, quando a arte passa a ter novas técnicas para a sua reprodução como a
fotografia e o cinema, ela perde a sua aura, a ocorrência única, o seu aqui e agora e
também o seu testemunho histórico, mas se democratiza ao ganhar as massas:
23
BENJAMIN, W. O Narrador . In Obras escolhidas vol. I :magia e técnica , arte e política. São Paulo:
Brasiliense,1993 a, p.206.
24
Idem, p.205
13

A relação do sujeito com a obra de arte que era individual e direta, hoje é
coletiva. Com isso, a arte ganha uma função política e social que antes não tinha. O
seu antigo valor de culto, que exigia a contemplação e o recolhimento, migra para o
valor de exposição, para o olhar, levando à dispersão, à distração e também à
fragmentação. Libertada do seu âmbito ritual, aumentam as oportunidades de
exposição dos seus produtos.25
A reprodução desloca a obra do seu tempo e do seu espaço. O olho que
espreita por uma objetiva é capaz de conseguir focar um ângulo da obra e da própria
vida que não se conseguiria ver a olho nu, aproximando o que estava distante e
possibilitando novos olhares. Segundo Benjamin26, esta aproximação tornou-se hoje
imperiosa:
A aproximação das coisas pela imagem que o cinema possibilita, cria novas
relações do sujeito com a realidade, alterando o modo com que a sua percepção
sensorial se organiza. O cinema foi feito para distração das massas e os sucessivos
choques causados por sua seqüência de imagens têm um componente perceptivo tátil
que prevalece dentro do universo da ótica. As imagens cinematográficas, por sua vez,
ganham alto valor de exposição e acabam recriando o valor de culto que é re-
apropriado pelas massas sob a forma de consumo- o fetichismo da mercadoria. Esta
mudança de paradigma estético e sensorial traz novos elementos para a construção
da subjetividade.
Benjamin presenciou a utilização do cinema pelo nazismo que impôs a sua
ética e a sua estética através das imagens. Viu a estetização da política e a politização
da arte. Porém, são justamente estas imagens que possibilitam hoje olharmos para o
passado e, captando os sinais dos derrotados, pensarmos o presente para transformar
o futuro.
Quando Benjamin nos anos trinta nos revela esta cultura do vidro, reflexo da
vivência, pondo a nu a pobreza da linguagem e da experiência comunicável, a perda
da aura da obra de arte, a nova estética (e ética) da recepção das massas e o império
da imagem, antecipava um processo que tomou grandes proporções no mundo
contemporâneo. Jameson(1997) analisa no seu livro Pós-modernismo:a lógica cultural
do capitalismo tardio as características atuais: o achatamento; a superficialidade (ou
superfícies múltiplas); o esmaecimento do afeto e a frivolidade na cultura pós-
moderna; a fragmentação e o isolamento do sujeito; a sincronia no lugar da diacronia;
o pastiche da linguagem, trazendo o novo que se repete no sempre igual, a eterna
cópia que não distingue o original da reprodução (diferente da paródia que resgata o
25
Idem, p.86.
26
BENJAMIN, W. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Antropos, Relógio D’Água
Editores, 1992, p.81-82.
14

vivido re-significando-o); a nova lógica do simulacro; recortes e colagens sobrepondo


imagens, canibalizando os estilos e esmaecendo a historicidade; as narrativas
descentradas, a estética da fragmentação esquizofrênica que rompe as cadeias de
significação e a temporalidade da sentença, trazendo a primazia do presente,
desintegrando o tecido narrativo; a mudança no espaço construído, o hiper-espaço,
transformando objetos, relações e sensações.
Com tudo isto, temos a sensação de que a linguagem expressiva foi totalmente
devorada pela linguagem informativa, instrumental, fragmentada, por uma textualidade
que não constrói elos de significação. O custo da tempestade do progresso, tornando
o mundo desnaturalizado. Mas é ainda Benjamin que nos traz a dialética presente em
cada mudança, abrindo uma brecha para pensarmos numa barbárie positiva.
Como se apropriar das características do mundo contemporâneo para construir
conhecimento? Nos conformamos em passar pela vida sem nos perceber e perceber o
outro? Podemos não conseguir mais deixar marcas por não construir elos de
significação? É ainda possível assumir outros lugares e perceber que o mundo não é
único e ver o que o novo pode apontar daquilo que foi perdido?

À guisa de conclusão: recolhendo os cacos e costurando a linguagem em


fragmentos

Com a concepção e o nascimento, os pais não deram somente a vida a seus filhos,
eles, ao mesmo tempo, introduziram-nos em um mundo. Educando-os, eles assumem
a responsabilidade da vida e do desenvolvimento da criança, mas também a da
continuidade do mundo. Estas duas responsabilidades não coincidem de modo algum e
podem mesmo entrar em conflito. (Hannah Arendt apud Fourquin, 1993 p.13)

Hannah Arendt deixa claro que a educação não pode prescindir do passado e
que o mundo precisa da ação educativa como conservação e preservação de si
próprio. Se hoje se anuncia a morte da narrativa tradicional pautada na reminiscência
e a conseqüente perda da historicidade, cabe à educação costurar os fragmentos com
os fios da linguagem. Tal como Teseu vencendo o minotauro e podendo se libertar do
labirinto com o fio dado por Ariadne, cabe a nós, educadores, segurar firme o fio, uma
frágil linha que pode romper a qualquer hora, para encontrar o caminho de volta e não
sucumbir no labirinto.
Compreender o processo em curso e buscar o caminho nos desvios, nas
imperfeições e nos nós, significa também entender que o que temos em mãos é frágil
e pouco, mas que pode ser o suficiente para se escovar a história a contrapelo.
A educação é inevitável porque o bebê humano nasce prematuro. Ela é ainda
responsável pelo mínimo de conservação de que o mundo necessita. Sendo assim,
15

acredito nela como uma possibilidade de resgatar, ressignificar e redefinir as perdas


anunciadas por Benjamin, lidando positivamente com a barbárie.
E é a criança, na sua ontogênese, quem nos revela o potencial transformador
da educação. Pois a criança sofre a cultura, mas o tempo todo também transgride e
inventa. A criança desordeira não só desarruma como também abre a gaveta e vê na
dobra da meia a “tradição”, pois as coisas falam e ecoam no adulto-adolescente-
criança que cada um conserva e estes rastros não se apagam pois o tempo infantil
ainda é tecido artesanalmente:
Armários
O primeiro armário que se abriu por minha vontade foi a cômoda. Bastava-me puxar o
puxador, e a porta, impelida pela mola, se soltava do fecho. Lá dentro ficava guardada
minha roupa. Mas entre todas as minhas camisas, calças, coletes, que deviam estar ali
e dos quais não tive mais notícias, havia algo que não se perdeu e que fazia minha ida
a esse armário parecer sempre uma aventura atraente . Era preciso abrir caminho até
os cantos mais recônditos: então depara minhas meias que ali jaziam amontoadas,
enroladas e dobradas da maneira tradicional, de sorte que cada par tinha o aspecto de
uma bolsa. Nada superava o prazer de mergulhar a mão em seu interior tão
profundamente quanto possível. E não apenas pelo calor da lã. Era a “tradição”
enrolada naquele interior que eu sentia em minha mão e que, desse modo, me atraía
para aquela profundeza ( Benjamin, 1993b, p.122)

A linguagem que nos constitui renasce em cada criança. Seus gestos impõem
seus desejos, sua fala egocêntrica acompanha o brincar, para ser ouvida chora, berra,
puxa pela mão, removendo o adulto da indiferença. É por isso que criança dá trabalho,
ela exige que o adulto se volte para ela. E neste voltar-se os olhos se encontram e a
relação se estabelece.
O mundo nunca foi tão completamente humano, a cultura se tornou uma
27
segunda natureza . E não há nada de mais humano que a própria linguagem. É
justamente pela retomada da linguagem expressiva, no tecer das histórias contadas
para a criança que a narrativa benjaminiana revive e se renova.
E se não morreram, vivem até hoje”, diz o conto de fadas. Ele é ainda hoje o primeiro
conselheiro das crianças porque foi o primeiro da humanidade, e sobrevive,
secretamente, na narrativa. O conto de fadas nos revela as primeiras medidas
tomadas pela humanidade para libertar-se do pesadelo mítico. O conto de fadas
ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças, que
o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e
arrogância...O feitiço libertador do conto de fadas não põe em cena a natureza como
uma entidade mítica, mas indica a sua cumplicidade com o homem liberado.
(Benjamin,1993 a, p.215)

A liberação do homem hoje está justamente em remar contra a fragmentação e


a dispersão, reatando os elos da coletividade, completando o vazio deixado pelo
individualismo. Se hoje a textualidade se aproxima da sucessão de imagens
recortadas por cada toque no botão do controle remoto, é preciso ora deter o controle,

27
Jameson, opt. cit. p.13.
16

ora reconstituir os flashes, buscando o fio. Se a linguagem tornou-se utilitária e banal,


é preciso restaurar a sua dimensão expressiva.
A escola nunca foi tão fundamental nesta recomposição dos fragmentos. Sua
função hoje não deveria se pautar na transmissão do conhecimento, pois as
máquinas fazem melhor, mas sim, na possibilidade de socialização, de discussão e
digestão das informações, no resgate da historicidade, na troca, na interlocução, na
composição dos textos sobrepostos, na passagem da pastiche à paródia, no
intercâmbio de experiências. Pois ela talvez seja um dos poucos espaços que tenha
condições de restaurar a convivência, a fala, a escuta e a expressão e também de
possibilitar a crítica e a reflexão, resgatando a humanidade do homem.

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