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Josep Mª Pascual Esteve

GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA:
CONSTRUÇÃO COLETIVA DO
DESENVOLVIMENTO DAS CIDADES

Tradução
João Carlos Vitor Garcia
A minha esposa, Àngels
Guiteras, pelo seu apoio,
confiança e sugestivas
observações quanto ao
conteúdo do texto.

2
Agradeço a confiança das
pessoas e entidades que
promoveram a edição brasileira,
em especial à Fundação
Astrojildo Pereira e a João Carlos
Vitor Garcia, pela tradução e
adaptação do texto. E
minha especial gratidão pelos
comentários e correções do
texto original feitos por Júlia
Pascual.

3
PREFÁCIO
APRESENTACÃO
INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA
INTRODUÇÃO................................................................................................................................9
1.GOVERNANÇA: UMA NOVA ARTE DE GOVERNAR........................................................12
IDEIAS PRINCIPAIS............................................................... ...........................13
GOVERNANÇA: DESCENTRALIZAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E COLABORAÇÃO COM A SOCIEDADE CIVIL........14
A GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA É MAIS DO QUE UMA DIMENSÃO DA AÇÃO DE GOVERNO .............16
OS MODOS DE GOVERNAR NA DEMOCRACIA: BUROCRÁTICO, GERENCIAL E GOVERNANÇA. .21
A GOVERNANÇA É A ARTE DE GOVERNAR PRÓPRIA DO GOVERNO RELACIONAL EMERGENTE...........25
A GOVERNANÇA É O MODO DE GOVERNAR DA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO........................32
2.GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA: CONSTRUÇÃO COLETIVA DO
DESENVOLVIMENTO HUMANO.............................................................................................34
IDEIAS PRINCIPAIS .............................................................. ...........................35
A FINALIDADE DA GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA É O DESENVOLVIMENTO HUMANO.......................36
A GOVERNANÇA EXIGE E PRECISA DE DEMOCRACIA.......................................................37
A COESÃO SOCIAL É O MOTOR DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL..........................37
A COESÃO SOCIAL É O PRINCIPAL OBJETIVO DA GOVERNANÇA...........................................40
A GESTÃO RELACIONAL É A MODALIDADE DE GESTÃO CARACTERÍSTICA DA GOVERNANÇA..............42
A GESTÃO RELACIONAL SE ASSENTA EM UM CONJUNTO DE TÉCNICAS E INSTRUMENTOS...............44
PARA DESENVOLVER-SE, A GOVERNANÇA PRECISA TER ÊXITOS ELEITORAIS VISÍVEIS....................47
3.O GOVERNO RELACIONAL E A GOVERNANÇA SE ASSENTAM NAS MUDANÇAS
SOCIAIS E NA EMERGÊNCIA DA SOCIEDADE-REDE.......................................................49
IDEIAS PRINCIPAIS .............................................................. ...........................50
NOVA DESIGUALDADE SOCIAL E NOVA VISÃO DA POBREZA.......................................... .....52
A INDIVIDUALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS E A GERAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL........................54
RISCO E VULNERABILIDADE SOCIAL.................................................... ....................56
IMIGRAÇÃO: IDENTIDADE E MULTICULTURALIDADE................................. ........................57
MUDANÇAS NA FAMÍLIA................................................................................ .....59
A CIDADE À MEDIDA DAS MULHERES.................................................. ....................60
UMA NOVA VISÃO DO TEMPO E ESPAÇO...................................................... .............62
A CENTRALIDADE DOS VALORES NA ORGANIZAÇÃO SOCIAL..............................................63
A GLOBALIZAÇÃO DO SOCIAL ............................................... ..............................64
MUDANÇAS NAS FORMAS DE PRESTAÇÃO E GESTÃO DOS SERVIÇOS DE BEM-ESTAR SOCIAL ..........66
CONCLUSÃO: DA GERÊNCIA À GOVERNANÇA............................................... ................67
4.A REVALORIZAÇÃO DA POLÍTICA NO GOVERNO RELACIONAL............................69
IDEIAS PRINCIPAIS............................................................... ...........................70
O GOVERNO PROVEDOR E A CRISE DA POLÍTICA LOCAL ................................. .................71
A DEMOCRACIA É BÁSICA PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NA SOCIEDADE-REDE .............72
O GOVERNO RELACIONAL NECESSITA DE QUALIDADE DEMOCRÁTICA.....................................74
A POLÍTICA DEMOCRÁTICA COMO CAPACIDADE DE REPRESENTAÇÃO....................................... 75
UM NOVO PAPEL PARA O ELEITO LOCAL.............................................. .....................76
5.A LIDERANÇA DO POLÍTICO ELEITO NA GOVERNANÇA..........................................77
IDEIAS PRINCIPAIS............................................................................ ...............78
CAPACIDADE DE VISUALIZAR OS INTERESSES E HABILIDADES DA CIDADANIA............................79
UMA NOVA VISÃO DO PODER.................................................. ............................81
A LIDERANÇA REPRESENTATIVA É RELACIONAL ................................ ...........................81
A LIDERANÇA REPRESENTATIVA É CAPACITADORA........................................................ ..82
A DISTINÇÃO ENTRE POLÍTICA E GERÊNCIA...................................................... ..........83
O REPRESENTANTE POLÍTICO É O PRINCIPAL AGENTE DE MUDANÇA.................................... ..86

4
A NOVA TAREFA: TORNAR VISÍVEL O APOIO SOCIAL ÀS POLÍTICAS.......................................87

6.FUNDAMENTOS PARA LIDERAR A COESÃO SOCIAL A PARTIR DO GOVERNO


LOCAL............................................................................................................................................89
IDEIAS PRINCIPAIS................................................................ ...........................90
OS 7 PILARES PARA A LIDERANÇA POLÍTICA.................................... ...........................91
O ENVOLVIMENTO DO GOVERNO LOCAL ........................................... ........................92
ANTECIPAR-SE E CANALIZAR SITUAÇÕES DE CONFLITO....................................................95
O APOIO NECESSÁRIO À LIDERANÇA RELACIONAL .............................................. ...........97
7.PERFIL POLÍTICO PARA A LIDERANÇA REPRESENTATIVA NA GOVERNANÇA:
VALORES, HABILIDADES E ATRIBUTOS..............................................................................98
IDEIAS PRINCIPAIS ............................................................... ...........................99
OS VALORES QUE SUSTENTAM A LIDERANÇA REPRESENTATIVA............................................99
HABILIDADES OU APTIDÕES DO PERFIL POLÍTICO PARA A PRÁTICA DA GOVERNANÇA...................101
PRINCIPAIS ATRIBUTOS PARA A PRÁTICA DA GOVERNANÇA.................................. .............103
8.OS GOVERNOS LOCAIS: PROTAGONISTAS NA ERA DA GOVERNANÇA...............105
IDEIAS PRINCIPAIS ............................................................. ...........................106
AS CONDIÇÕES DE ÊXITO DO NÍVEL LOCAL .............................................................107
A PREFEITURA COMO ORGANIZADOR COLETIVO..................................... .....................108
O PODER LOCAL: RIQUEZA DOS PAÍSES E REGIÕES ...................................................108
OS MUNICÍPIOS AUTOINSSUFICIENTES.............................................................. .......109
A CRESCENTE IMPORTÂNCIA DOS GOVERNOS INTERMUNICIPAIS ........................................ .110
9.A GOVERNANÇA DO BEM-ESTAR SOCIAL.....................................................................112
IDEIAS PRINCIPAIS ............................................................. ...........................113
O BEM-ESTAR SOCIAL: VANGUARDA DA GOVERNANÇA................................................114
A REESTRUTURAÇÃO DA GESTÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DO BEM-ESTAR SOCIAL...................115
A GESTÃO DE REDES E A PARTICIPAÇÃO CIDADÃ .............................................. ..........124
A PARTICIPAÇÃO COMO ENVOLVIMENTO DA CIDADANIA NA CONSTRUÇÃO DA CIDADE..................125
O APOIO SOCIAL ÀS ESTRATÉGIAS E POLÍTICAS ................................ .........................128
A ORGANIZAÇÃO MUNICIPAL NECESSÁRIA PARA A GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA........................129
REFERÊNCIAS SELECIONADAS...........................................................................................131
1. BIBLIOGRAFIA............................................................... ...........................132
2. LINKS ELETRÔNICOS ........................................................ ..........................133

5
Introdução à edição brasileira

Os conceitos nas ciências sociais e políticas nem sempre têm o


mesmo significado para todas as escolas e autores: poder, classe
social, sociedade civil, capital social etc. Isto também ocorre nas
ciências físicas, como no caso da incerteza quântica ou mesmo do
conceito de relatividade, o que pode dificultar tanto a compreensão
dos fenômenos como a organização da ação que tenham tais
conceitos em conta. Esta é uma dificuldade que não se pode evitar,
dados os distintos contextos socioculturais em que são usados ou
seus significados em idiomas diversos. Portanto, é preciso explicitar
os conceitos que se utilizam e diferenciá-los de outros usos, em
especial dos que têm um significante ou significado contrário. Este é
o caso do conceito de governança, que é utilizado em alguns meios
intelectuais e políticos como modo de governar corporativo, que
diminui a importância da democracia e do papel da política, ou seja,
em sentido completamente antagônico do utilizado neste livro. Por
esta razão, é importante explicitar o conceito de governança neste
prólogo.

O que se entende por governança? Como assinala Renate Mayntz em


um trabalho que reúne os distintos significados do conceito, por
governança se entende, desde os anos 90, uma nova maneira de
governar, diferente do modelo hierárquico, um modo mais corporativo
em que os atores estatais e não estatais – e, em geral, a sociedade
civil – participam em redes públicas e privadas.1 Desde aquela
década, tem aumentado o consenso no sentido de que a eficácia e
legitimidade da atuação do governo fundamentam-se na qualidade da
interação entre os distintos níveis de governos e, em especial, entre
os governos e as organizações empresariais, sociais e a cidadania em
geral. Governança é, portanto, uma nova forma de governar própria
da sociedade-rede, é o modo de governar para fazer frente à
crescente complexidade e diversidade das sociedades
contemporâneas, que se caracterizam pela interação de uma
pluralidade de atores, relações horizontais, pela participação da
1
Ver “New challenges to governance theory”, European University Institute, The Robert Schuman
Centre Florence – Jean Monnet Chair Papers nº 50 (1998).
6
sociedade no governo e sua responsabilidade de fazer frente aos
desafios socialmente colocados.

Este conceito foi intencionalmente mal interpretado por alguns


setores, que consideraram que a governança permite um certo
“relaxamento” das funções do governo democrático e prioriza as
relações entre o governo e as grandes corporações empresariais e
institucionais em detrimento das relações com a cidadania em geral,
produzindo, deste modo, o aviltamento dos valores públicos e da
própria política. Esta concepção é própria tanto dos
neoconservadores, que buscam a dominação da sociedade através
dos grandes interesses corporativos, como dos críticos que vão a seu
reboque e tão somente invertem seus argumentos, sem, contudo,
serem capazes de encontrar uma estratégia própria. Seja como for, é
preciso diferenciar-se desta concepção e, para isso, é necessário
entender o uso do conceito de governança que se faz neste livro
como governança democrática.

O que é governança democrática? O movimento de cidades e regiões


denominado AERYC (América-Europa de Regiões e Cidades), que
promove a governança democrática como sendo o modo de governar
cidades mais adequado à sociedade contemporânea, a define como
“uma nova arte de governar os territórios (o modo de governar
próprio do governo relacional), cujo objeto é a capacidade de
organização e ação da sociedade, através da gestão relacional ou de
redes, tendo como finalidade o desenvolvimento humano”. 2 Em
outras palavras, não se trata apenas de gerir as relações e
interdependências dos atores e setores da cidadania que interagem
em determinada situação ou diante de desafios sociais que nos
propomos a enfrentar, mas de fazer isso em função dos valores do
desenvolvimento humano.3 Governança democrática implica a
condução do desenvolvimento econômico e tecnológico em função
dos valores de equidade social, coesão territorial, sustentabilidade,
ética e ampliação e aprofundamento da democracia e da participação
política.

A governança democrática, de acordo com o conceito que adotamos,


se caracteriza por:

• O envolvimento da cidadania na solução dos desafios


sociais. Uma boa governança necessita de uma
cidadania ativa e comprometida com a coisa pública, isto
é, a de todos e de todas. Por isso, é preciso que existam
canais de participação e de responsabilidade de todos,
porque a cidade é uma construção coletiva cujo
resultado depende das ações e interações de todos os
cidadãos.
• O fortalecimento dos valores cívicos e públicos. O
progresso e a capacidade de inovação de uma cidade
dependem da densidade e diversidade das interações de
toda a população. Os valores de respeito, convivência,
confiança, solidariedade e colaboração são essenciais
para construir a cidade de todos e de todas. Governança

2
Ver www.aeryc.org
3
Como definidos pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
7
democrática é uma opção por valores cívicos e
democráticos.
• A revalorização da política democrática e do papel do
governo representativo. A governança representa uma
mudança no papel do governo em relação à sociedade.
O governo não aparece simplesmente como provedor de
recursos ou de serviços, mas fundamentalmente como
representante da cidade, de suas necessidades e
desafios. O governo não apenas dispõe de
competências, mas também de incumbências. A ele
cabe tudo o que preocupa a cidadania, e por isso ele
assume o papel de estruturador da capacidade de
organização e ação da cidade e das relações entre os
distintos níveis de governo. Portanto, na governança
democrática o papel do governo como representante da
cidadania adquire maior importância do que nas etapas
de governo anteriores.
• A construção compartilhada do fortalecimento do
interesse geral. Na governança, o interesse geral não é
atribuído a um grupo de funcionários ou de políticos. O
interesse geral é uma construção coletiva que deve ser
liderada pelos políticos eleitos como representantes da
cidadania, a partir das necessidades e interesses
legítimos de todos os setores cidadãos. Governança
democrática significa uma ação de governo específica
para que todas as necessidades e desafios dos cidadãos
estejam presentes tanto na deliberação como no
desdobramento das políticas e, muito especialmente,
dos setores mais vulneráveis.
• A transparência e a prestação de contas são também
condições essenciais da governança democrática. Sem
elas dificilmente o governo da cidade poderá articular os
distintos atores em uma ação comum com apoio e
envolvimento da cidadania.

Consequentemente, a governança democrática exige e necessita de


democracia, e seu desdobramento significa não só o aprofundamento
nos aspectos da representação da cidadania como da participação
cidadã na construção de uma cidade voltada para o desenvolvimento
humano.

José Mª Pascual Esteve

8
Introdução

9
Este livro discute a importância da política para promover a coesão
social nas cidades e nos municípios. Em especial, pretende mostrar o
valor que a liderança política representa para a construção coletiva de
cidades com maior inclusão social.
A política democrática está sofrendo uma crise de legitimidade, não
por ser incapaz de resolver os seus problemas, mas porque a maioria
dos políticos não pode enxergá-los.4 Neste sentido, para contribuir com
o entendimento de aspectos desta questão através da reavaliação da
política e da figura do político como elementos essenciais para o
desenvolvimento humano, o livro trata de um novo enfoque da relação
entre o governo local e a cidadania, de uma nova arte de governar
denominada governança democrática, em cuja base se acha a gestão
relacional ou a gestão das interdependências nas interações sociais.
O trabalho examina uma nova arte de governar e gerir os territórios,
que se assenta nas mudanças em curso na nossa sociedade e nas
transformações que levaram à superação das formas de governar
centradas na prestação e gestão de recursos e serviços. Tais
transformações são analisadas, especialmente, nos seus aspectos
sociais e sua relação com o modo de governar e de entender a política,
como são os casos das políticas de bem-estar social e da liderança
política necessária para articular iniciativas cidadãs de coesão e
inclusão social.
Além de analítico, o livro é fundamentalmente propositivo e destinado
aos políticos e técnicos que atuam na administração dos municípios,
assim como àqueles que prestam serviços aos governos locais. Sua
leitura, entretanto, pode ser útil a todos que se interessam pelo
conjunto dos temas de âmbito local. As propostas apresentadas têm
por base a análise da evolução da sociedade e da crise da maneira de
governar e de entender a política e, especialmente, do papel do
político. Por isso, descreve as características da nova liderança política
e dos apoios e suportes técnicos e organizacionais que a liderança
relacional requer.
Uma vez que um dos seus objetivos é servir como ferramenta para os
políticos com responsabilidades de governo, e como estes, geralmente,
são pessoas muito envolvidas e empenhadas nas tarefas do dia a dia e
com pouco tempo para a leitura, concebemos os capítulos de tal modo
que a sua leitura seja inteligível em si mesma, não sendo necessária,
embora desejável, a leitura dos capítulos antecedentes ou posteriores.
Pela mesma razão, além de elaborarmos um índice detalhado,
enfatizamos no início de cada capítulo as ideias-chave.
O primeiro capítulo, intitulado "Governança: Uma nova arte de
governar", introduz e explicita as diferenças entre os conceitos de
governabilidade, governança e bom governo. É um capítulo analítico e
conceitual, cujo objetivo é distinguir os principais tipos de governo e
modos de governar observados nos regimes democráticos. A conclusão
é que o governo relacional, através do modo de governar denominado
4
A. Einstein já havia observado que “os problemas importantes que enfrentamos não podem ser
resolvidos com o mesmo enfoque de pensamento que tínhamos quando os criamos.” O
especialista em grandes organizações J. Gardner observou, nos anos 60 do século XX, que “a
maioria das organizações doentes desenvolveram uma cegueira funcional em relação aos seus
próprios defeitos. Não sofrem por não poder resolver seus próprios problemas, mas por não poder
vê-los.”
10
governança democrática, em cuja base está a gestão relacional ou a
gestão das interdependências entre agentes e setores da cidadania, é
o governo que corresponde à sociedade do conhecimento ou
sociedade-rede.
O segundo capítulo, "Governança Democrática: Construção coletiva do
desenvolvimento humano", discute a finalidade e as características
distintivas da governança e da gestão relacional como arte de
governar. O terceiro capítulo identifica e descreve as grandes
mudanças sociais em curso nas nossas cidades e municípios e que hoje
estão moldando as novas agendas políticas.
O capítulo seguinte descreve a crise política que as mudanças sociais
têm provocado no modo de governar denominado "gerencialismo", que
esteve em voga até o final da década de 90. Por outro lado, é reforçado
o papel da democracia – entendida, sobretudo, como eleição e
representação –, tanto como valor e fim quanto como meio para o
desenvolvimento social contemporâneo. Também é analisado o novo
papel do político eleito como uma das chaves para a qualidade
democrática.
O quinto capítulo identifica as principais características da liderança
relacional ou representativa, que aparece como o principal agente da
mudança direcionada para o desenvolvimento humano. No sexto
capítulo, com base em uma definição de coesão social, em
consonância com os programas URBAL da União Europeia, são tratados
os pontos-chave para que o governo local possa liderar a coesão social
do seu território e o apoio técnico de que precisa.
O capítulo seguinte descreve o perfil do político necessário para poder
liderar as cidades inclusivas, bem como as principais habilidades e
capacidades requeridas.
No oitavo capítulo são identificadas as razões por que os governos
locais assumem um papel mais importante na sociedade-rede, assim
como a importância dos governos intermunicipais. No nono e último
capítulo, intitulado "A Governança do Bem-Estar Social", é examinada a
reestruturação da gestão dos serviços públicos do bem-estar social na
era da governança. Em particular, são identificados os desafios da
provisão de recursos e da gestão dos serviços por parte das prefeituras
e como eles devem ser abordados.
O livro é complementado por uma bibliografia e alguns links eletrônicos
para quem quiser se aprofundar no tema.

11
1. Governança: Uma
nova arte de
governar

12
Ideias Principais

1. Governança Democrática é:
descentralização, participação e
colaboração com a sociedade civil.

2. A governança democrática é mais do


que uma dimensão de cooperação ou
participação na ação de governo: é
uma nova arte de governar.

3. Os modos de governar na democracia


são: Burocrático, Gerencial e
Governança.

13
Governança: descentralização, participação e
colaboração com a sociedade civil
A governança é um conceito que está se estendendo amplamente na
Europa, especialmente após a publicação pela União Europeia, em
2001, do Livro Branco sobre Governança Europeia, elaborado pela
Comissão Europeia e dirigido por J. Vignon.5
O fato de que tenha sido a Comissão Europeia que promoveu o
conceito de governança como uma forma de governar baseada na
horizontalidade e no acordo está relacionado, precisamente, com a
prática deste governo supranacional, que tem que articular os
interesses dos diferentes governos dos estados-nação. Mas o que o
relatório trata é da incorporação dos governos regionais e governos
locais, além da sociedade civil, na construção da Europa.
R. Mayntz, J. Prats e o próprio Vignon, em textos posteriores ao
relatório europeu, têm definido a governança como uma nova arte de
governar na democracia. J. Prats6 assinala que, apesar dos diferentes
significados do conceito de governança, nos últimos anos está
ocorrendo na Europa um amplo acordo para considerar a governança
como um novo modo de governar. Isto porque vem se constatando,
gradualmente, que a eficácia e a legitimidade dos governos
democráticos baseiam-se cada vez mais na qualidade da interação
entre eles e as organizações empresariais e sociais, bem como em uma
boa gestão das relações entre os diferentes níveis de governo.
A palavra governança7 é frequentemente utilizada, de modo pouco
preciso, como sinônimo de governabilidade ou de bom governo.
Governança é uma nova arte de governar que tem na gestão das
interdependências entre os atores seu principal instrumento de
governo. A governança gere as relações entre os atores para tomar
decisões sobre a cidade e desenvolver projetos complexos com a
colaboração interinstitucional, público-privada ou envolvimento dos
cidadãos. É, portanto, um termo não qualificativo no sentido de que se
refere a um mecanismo de gestão governamental. Bom governo, sim, é
como se pode classificar a ação de um governo através de sua forma
de governar. Esta forma de governar pode ser a governança, de modo
que poderíamos falar de "boa governança" (como também de "má
governança"), mas também pode ser o modo de classificar qualquer
5
No citado Livro Branco, o conceito de governança está associado a cinco princípios
fundamentais: abertura, participação, responsabilidade, eficácia e coerência. Princípios que visam
a reforçar as relações da UE com a sociedade civil e uma maior utilização das capacidades dos
agentes locais e regionais para lançar as bases para uma definição clara dos objetivos políticos da
UE e estabelecer os papéis e as responsabilidades de cada instituição. Governança está
diretamente associada a uma aposta do governo na descentralização, participação cidadã e
colaboração com a sociedade civil.
6
J. Prats, “Gobernabilidad democrática para el desarrollo humano: Marco conceptual y analítico”
em Instituciones y Desarrollo nº 10, 2001, pp. 103 a 148.
7
O vocábulo governança ainda não está inserido no dicionário do Instituto de Estudos Catalães,
mas seu uso foi autorizado como uma tradução de "governance", em 2001. Ele foi, entretanto,
incluído, em 2001, no Dicionário da Real Academia da Língua Espanhola com uma definição muito
genérica, mas de forma correta. Governança é definida como "a arte ou o modo de governar que
se propõe como objetivo alcançar o desenvolvimento econômico, social e institucional
sustentável, promovendo um equilíbrio saudável entre Estado, sociedade civil e economia de
mercado."
14
outra forma de governar diferente da governança, como a gerencial ou
a burocrática. Por governança se entende, em sentido restrito, a
aceitação e o cumprimento de regulamentos, processos institucionais e
de resolução de conflitos, bem como de políticas do setor público por
parte da sociedade civil e, em particular, dos seus principais atores.
Ingovernabilidade é, por outro lado, a desobediência civil, incapacidade
dos mecanismos institucionais para resolver os conflitos sociais, não
aceitação das regras do jogo institucional. A governabilidade é um
atributo ou classificação de uma situação social e, em qualquer caso,
pode ser um resultado das ações de governo, de um bom governo, de
uma boa governança, ou de outro modo de governo bem exercido em
uma determinada situação. Mas é importante não confundir um
atributo ou um resultado com o modo objetivo de governar.
Em algumas ocasiões, também tem sido equiparado a uma concepção
anterior do termo político inglês "governance", que se referia ao
impacto da gestão das políticas e dos recursos do setor público no
desenvolvimento de uma sociedade ou território. Por exemplo, a
Comunidade Autônoma da Cantábria tem um excelente sistema de
indicadores para medir o impacto da ação governamental em sua
comunidade.
Também não podemos confundir governança democrática com a
dimensão relacional, ou seja, com a colaboração e a participação da
sociedade civil no modelo de governo atualmente dominante, o
denominado governo provedor ou gestor de recursos e serviços. Ela é
uma nova maneira de governar que implica uma nova forma de
compreensão da política e do papel do político.
R. Gomà e I. Blanco assinalam que entender a governança como uma
arte de governar que se baseia em um sistema de participação e
colaboração e atores significa também reconhecer a complexidade
como elemento intrínseco do processo político, o que situa os poderes
públicos em uma nova posição nos processos de governo. E para
assumir esse novo posicionamento a administração precisa exercer
novos papéis e dispor de novos instrumentos.8
Para J. Subirats, a importância da governança tem tamanho peso que
as diferenças entre as comunidades derivam de sua capacidade de
avançar na governança e, concretamente, da capacidade de suas
instituições representativas disporem de um projeto de futuro
compartilhado e das cumplicidades que este projeto possa gerar no
conjunto da cidadania.9
Enfim, é muito frequente confundir, na ação de um governo, a
governança com a dimensão relacional de participação cidadã ou de
cooperação, seja esta público- privada ou interinstitucional, e não
percebê-la como um novo modo de governar. Por esta razão, é preciso
que vejamos o tema com um pouco mais de cuidado neste capítulo e,
especialmente, no seguinte.
Argumenta-se de modo cada vez mais frequente por parte dos
especialistas em ciências sociais e políticas, particularmente, que o
8
I. Blanco e R. Gomà, “Gobiernos locales y redes: retos e innovaciones”. Instituto de Gobierno y
Políticas Públicas, 2002.
9
Ver J. Subirats, “¿Qué gestión Pública para qué sociedad? Una mirada prospectiva sobre el
ejercicio de la gestión pública en las sociedades europeas actuales”. Instituto de Gobierno y
Políticas Públicas. UAB, 2003.

15
envolvimento da cidadania é fundamental para que um governo atue e
desenvolva serviços em função das necessidades e desafios dos
cidadãos e, desse modo, desenvolva uma gestão de qualidade.
Também se aponta, de modo perfeitamente compatível com a
afirmação anterior, que a participação cidadã é uma garantia para a
melhoria da qualidade democrática de uma administração.
Por outro lado, dada a insuficiência de recursos públicos para fazer
frente às necessidades sociais, bem como o fato de que a sociedade
atual é cada vez mais interdependente, considera-se que são gerados
mais espaços de interação, como é o caso de desenvolvimento de
projetos, em que são necessárias a colaboração institucional e a
cooperação pública e privada. Portanto, conclui-se que esta dimensão
da gestão das interdependências será um tema de grande
desenvolvimento por parte dos governos, especialmente dos governos
locais.
Ou seja, tanto do ponto de vista participativo como da colaboração
entre atores, a governança será a dimensão da gestão governamental
à qual teremos que dar mais atenção a partir de agora. Em minha
opinião, essas afirmações estão corretas, mas são insuficientes porque
tratam a governança simplesmente como mais uma dimensão de
governo, e não como uma nova arte de governar ou modo de governar
que tem na dimensão relacional (isto é, na colaboração
interinstitucional e público-privada e no envolvimento da cidadania) a
sua principal prioridade e o eixo estruturante da ação de governo.

A governança democrática é mais do que uma


dimensão da ação de governo

Para melhor caracterizar a governança como uma nova arte (modo) de


governar e para diferenciá-la de outras maneiras, creio ser adequado
distinguir, por um lado, os governos-tipo ou modelos de governo que se
diferenciam pela relação principal que estabelecem com a cidadania; e
esta relação do governo com a cidadania leva a uma articulação
específica das diferentes funções de governo.
Por outro lado, distinguimos os modos de governar ou modelos de
governação,10 que constituem a maneira pela qual o governo exerce
sua ação de governar. Eles se definem fundamentalmente pelas
finalidades que buscam alcançar, os valores e princípios em que
baseiam suas funções, o tipo de gestão específico que desenvolvem
para atingir seus objetivos, bem como a “função” que atribuem aos
políticos, aos profissionais da administração e à cidadania na maneira
de governar.
Com frequência se confundem os modelos de governo com os modos
de governar ou modelos de governação11 porque, como parece

10
Governação é usado no mesmo sentido como definido pelo Dicionário da Real Academia da
Língua Espanhola: "Ação e efeito de governar/exercício do governo." Compreendemos,
naturalmente, por um governo um "conjunto de organizações e indivíduos que dirigem um
território e as funções que eles desempenham". Assim, modelos de governação ou formas de
governar são modelos de exercer a ação dos governos.
11
Quando se fala tanto de modelos de governação ou de governos-tipo se utiliza a metodologia
do tipo ideal de Max Weber, que a define como: "Construção mental para analisar um fenômeno
histórico ou social em que se elegem e enfatizam determinados aspectos do fenômeno. O objetivo
16
razoável, a cada governo deveria corresponder um modo de governar
específico. Mas, como teremos oportunidade de aprofundar, isto nem
sempre foi assim, o que tem causado muitos problemas. Em particular,
no modelo ou paradigma de governo provedor e gestor, ao qual
corresponderam dois modos de governar ou modelos de governação: o
burocrático e o gerencial. O modelo de governação pode ser
implementado tanto por governos supranacionais, nacionais, regionais
ou locais.
Para entender melhor esta tríplice diferenciação começaremos pelo
mais simples ou básico, isto é, pelas funções e dimensões de toda ação
de governo territorial em relação à sociedade.
Existem três grandes funções ou dimensões básicas da ação de
qualquer governo territorial em relação à sociedade: a função legal ou
normativa para regular a atividade da sociedade civil, mas também
política; a função provedora e gestora (direta ou indireta) de serviços à
comunidade; e uma terceira, que podemos chamar relacional – que
inclui todas as atividades relacionadas à participação cidadã, aos
acordos e cooperação com a sociedade civil e também com outras
administrações.
A função legal e normativa (L) é, por exemplo, dar cumprimento a uma
norma urbanística, de ordenamento do uso do solo, de vigilância
sanitária, de mobilidade etc. O cumprimento dessas normas necessita,
além dos órgãos jurídico, administrativo e de fiscalização, de alguns
serviços de polícia municipal, limpeza e coleta de lixo etc.
Portanto, encontramos uma segunda dimensão ou função de gestão de
serviços (G), que foi ampliada na Espanha, sobretudo a partir dos anos
80, com os serviços sociais, desportivos, culturais, educacionais, de
saúde, promoção do emprego e desenvolvimento econômicos etc., ou
seja, com recursos e serviços não apenas associados ao desempenho
da sua competência e função reguladora, e destinados a gerar
proteção ou bem-estar público.
A terceira função, que temos denominado relacional (R), abrange as
questões da consulta, do diálogo, participação, parceria e cooperação
com a sociedade civil, principalmente, mas também com outras
instituições, sejam elas nacionais ou internacionais.
Os modelos de governo ou governo-tipo – ou, ainda, se preferirem,
paradigmas de governo12 – são definidos pelo tipo de relacionamento
que se estabelece entre governo e cidadania. Ou seja, pela principal
finalidade (e não só) que se atribui à ação de um governo para
proporcionar à sociedade, seja ela a garantia da ordem legal ou o bem-
estar a partir da provisão de recursos ou melhoria da capacidade de
organização e ação de uma sociedade.
Todos os tipos de governo desenvolvem as três dimensões ou funções
de governo, mas em cada tipologia ou modelo de governo existe uma

da construção de tipos ideais é o de servir como base de comparação na análise dos fenômenos
históricos e sociais concretos, uma vez que torna possível mostrar a proximidade ou afastamento
deles em relação ao tipo ideal (puro). Ver M. Weber, Conceitos sociológicos fundamentais, edição
de J. Abellán. Madri: Alianza Ed., 2006, p.180.
12
Deve-se o uso do termo paradigma no âmbito científico ao historiador e filósofo da ciência
Thomas Khun, que o introduziu no seu livro clássico A estrutura das revoluções científicas. Nele,
paradigma é definido como "uma constelação de realizações – conceitos, valores, técnicas etc." –
compartilhadas por uma comunidade científica e usadas por ela para definir problemas e soluções
legítimas.
17
função principal ou prioritária distinta, que desempenha um papel
estruturante em relação às outras duas.
Assim, identificamos três governos-tipo na democracia ou modelos de
governo territorial: governo racional ou jurídico, governo provedor e
gestor, também chamado protetor, e governo relacional.
O governo racional-legal tem por finalidade velar ou garantir o
funcionamento do mercado e a sociedade liberal; a função
predominante é a normativa e legal. As outras funções ou dimensões
têm um papel secundário. O esquema básico de articulação das
funções do governo racional-legal é o seguinte:

Esquema I: Articulação das funções básicas do governo


racional-legal

L
Legal

G R
Provedor e Gestor Relacional
Legal Provisión /

O governo protetor ou provedor e gestor tem como finalidade principal


a proteção social e o bem-estar; sua função predominante é a
prestação e gestão de serviços. A gestão de serviços pode ser realizada
diretamente pelo governo ou organismo público, ou ser contratada
externamente. O esquema é o seguinte:

Esquema II: Articulação das funções do governo provedor


e gestor

G
Provedor e Gestor

L R
Legal Relacional 18
Legal Provisión
O governo relacional ou promotor é o governo próprio da sociedade-
rede ou sociedade do conhecimento. Sua finalidade é melhorar a
capacidade de organização de uma sociedade e gerir as principais
redes sociais para o desenvolvimento humano. Sua principal função
estruturante é a relacional. O esquema é o seguinte:

Esquema III: Articulação das funções básicas do governo


relacional

R
Relacional

L R
Legal Relacional
Legal Provisión /

Para exercer a ação governamental baseada na relação principal que


se estabelece entre o governo e a cidadania, isto é, com base na
função que tem o papel principal ou estruturador das demais, os
governos desenvolvem maneiras diferentes ou modelos de governação
ou modos de governar. Ou seja, um governo-tipo atua através de um
modelo de governação.
Por modelo de governação ou modo de governar, entenderei
propriamente o enfoque com que um governo assume e exerce seu
papel em relação à sociedade civil ou, o que quer dizer o mesmo, o tipo
de atuação através do qual um governo torna efetiva a articulação e
coordenação das três funções e dimensões do governo.

O modelo de governação inclui a finalidade e os valores que presidem a


ação, o tipo de gestão característico da maneira de governar e os perfis
do político e do profissional da administração. Identificaremos, seguindo

19
a classificação feita por J. Prats, em um recente e excelente trabalho,
três modelos de governação: burocrático, gerencial e governança.13

Esquema IV: Articulação das funções, modelos de governo


e de governação

Funções Legal, Provisão e


básicas Gestão, Relacional

Modelos de Articulação
governo funções básicas
ou (Relação Governo
Governo-Tipo com a cidadania)

- Valores
Modelos de - Gestão: técnicas
Governação - “Papéis”:
(modos de político,
governar) cidadania,
adminisrador

Portanto, a governança não é a dimensão ou a função relacional da


atuação de um governo, mas o modo de governar específico do
governo relacional, que assim se caracteriza porque a função relacional
assume o papel principal e estruturador das ações de governo.
A governança, portanto, vai implicar, de uma forma concreta, a
reestruturação global da maneira de governar de um governo local. Na
governança existem as dimensões da gestão de recursos e da
normativo-legal, mas estas se reestruturam a partir da priorização da
13
J. Prats, “La Construcción Social de la Gobernanza” em Vidal J. M. Beltrán e J. Prats,
Gobernanza. Diálogo Euro-Iberoamericano. Madri: INAP, 2005, pp. 21-78.
20
função relacional do governo, isto é, da participação cidadã, da
cooperação com a sociedade civil e da colaboração
intergovernamental.
É por isso que dizemos que a governança é o modo de governar
próprio do governo-rede ou relacional, que é o adequado à nova
sociedade em rede, também denominada sociedade do conhecimento.

Os modos de governar na democracia: Burocrático,


Gerencial e Governança

Iremos começar por uma breve descrição dos vários modos de


governar, ou modelos de governação, para depois descrever, na seção
seguinte, os governos-tipo que põem em prática tais modelos.
O modo burocrático.Tem por objetivo garantir o cumprimento da lei e a
igualdade jurídica de oportunidades dos cidadãos, com a finalidade de
contribuir com a regulação das condições de estabilidade econômica e
social, o desenvolvimento do estado de direito e do livre mercado.
Este modo se desenvolve a partir dos Estados liberais e democráticos
da metade dos anos 50 do século XIX e predomina até os anos 80 do
século XX. Os valores do governo são: respeito e sujeição à lei,
igualdade de todos os cidadãos perante a lei, autonomia da sociedade
civil para identificar o interesse geral e racionalidade (adequação dos
meios aos fins).
Para exercer a função de regulação e de segurança jurídica, a
administração se vale de uma categoria profissional: a burocracia ou
funcionalismo. Esses profissionais, para poder realizar seu trabalho,
requerem independência política, objetividade e impessoalidade do seu
próprio trabalho, que deve ajustar-se à legislação em um contexto de
racionalidade (adequação dos meios aos fins). Para que possam
cumprir sua missão, os funcionários são protegidos legalmente e os
postos de trabalho regulamentados. Os valores que presidem a
burocracia são os que acabamos de apontar e que se diferenciam
plenamente dos valores relacionados à economia, produtividade e
eficiência que predominam no modo gerencial. Entre os profissionais
da burocracia predominam as especialidades vinculadas ao direito.
O político eleito com a responsabilidade de governar é o representante
dos cidadãos para dar cumprimento às normas da sociedade com a
ajuda da burocracia, que, por ter proteção especial, impede o
governante eleito de usar o poder para fins pessoais ou partidários. Os
políticos, com o apoio da burocracia, identificam e gerenciam o
interesse geral.
A cidadania, neste modo de governar, tem um papel inativo, limitado
praticamente à consulta. Tanto a cidadania como a iniciativa privada e
social são os que devem, através do mercado e da livre iniciativa,
alcançar o maior bem-estar possível através do marco legal-regulador
e garantidor da liberdade do mercado e da ação social. O governo é o
representante eleito da sociedade e em seu nome exerce sua ação
normativa e reguladora.
O tipo de gestão que se desenvolve neste modo de governar é a
gestão de procedimentos. Trata-se de estabelecer cuidadosamente os

21
processos e regulamentá-los. A tarefa do burocrata é seguir os
procedimentos e não assegurar resultados. Estes, se supõe, resultarão
do cumprimento da regulamentação estabelecida. Nisto, não difere dos
processos próprios do maquinismo industrial, dos métodos tayloristas.
A diferença com a produção de bens e serviços reside em que seu
posto de trabalho não é flexível e que os processos da administração
não estão organizados em função da produtividade. Os serviços, para
garantir a conformidade com os regulamentos, são organizados por
estes mesmos processos.
O modo gerencial de prestação e gestão de recursos públicos. Começa
nos anos 80, tem seu esplendor nos 90 e na atualidade ainda é o modo
dominante.
Os objetivos são a economia, a eficácia e a eficiência (os três “E”) na
prestação e gestão de serviços. Sua preocupação principal é a
produtividade na produção dos serviços e, em geral, do conjunto da
administração.
A gestão específica deste modo de governar é a gestão empresarial
dos serviços. Ou seja, o conjunto de técnicas, instrumentos e processos
através dos quais se enfrenta a prestação e gestão dos serviços são
introduzidos, ou melhor, tenta-se introduzi-los, a partir do mundo
empresarial; e os principais profissionais dirigentes da administração
são buscados no mundo empresarial e, mais concretamente, do mundo
dos negócios. Assim, fala-se da terceirização de serviços, gestão da
qualidade orientada ao cliente-usuário, reengenharia de processos,
marketing de serviços etc. Pretende-se orientar a gestão para os
resultados econômicos e de produtividade.
Acredita-se que a produtividade e os três “E” acima mencionados
devam ser os valores dominantes não apenas em função dos serviços
públicos, mas também do conjunto da administração; e não poucas
vezes se quis aplicar a reengenharia de processos, própria da gestão
de serviços, às funções governamentais destinadas a assegurar os
direitos da cidadania e às funções relacionais, gerando não só colapsos
de governabilidade, mas também importantes colapsos no
funcionamento da democracia.
Entre os profissionais do governo, há uma demanda de formação em
economia, mas é dada prioridade, em especial, à formação nas escolas
empresariais e de administração.
Dada a importância da gestão empresarial dos serviços neste modo de
governar, o papel do político eleito fica desfocado e se confunde com o
de gerente. Desponta e se valoriza, especialmente, o papel dos
administradores ou gerentes, que assumem papéis de maior relevância
à custa dos políticos eleitos, saídos das fileiras dos partidos políticos –
ou acabam predominando os extratos gerenciais dos altos escalões da
direção política.
A governança democrática. É um modo de governar que está
emergindo na atualidade como consequência da crise do
governo provedor e gestor de recursos e, em especial, pela
obsolescência e anomalias provocadas pelo modo gerencial.

22
Nas palavras de D. Inneraty, sua finalidade é “a colaboração entre o
governo e a sociedade civil para a regulação dos assuntos coletivos
com critérios de interesse público”.14
O que caracteriza a governança como modo de governar é a gestão
das interdependências, gestão relacional (ou de redes). É um tipo de
gestão específico que se baseia em um conjunto de técnicas e
instrumentos e processos para alcançar a construção compartilhada do
desenvolvimento humano em um território.
Os valores próprios da governança que a fazem avançar como modo de
governar são: respeito, tolerância, participação, racionalidade,
confiança, compromisso e colaboração.
Ou seja, a governança se baseia na gestão das interdependências, mas
não é igual à gestão relacional, sendo, na verdade, muito mais ampla.
Governança é uma ação de governo que tem múltiplas dimensões:
normativo-legal, provedora e de gestão de serviços; porém, ao ter
como seu principal objetivo a colaboração entre a sociedade civil e o
governo para responder aos desafios sociais, é a gestão relacional que
assume a relevância e o papel estruturante de todas as funções de
governar. As funções legal e de gestão de serviços são reestruturadas
pela governança, de tal modo que as características exigidas das
mesmas serão diferentes das que adquiriram nos modos burocrático e
gerencial.
A governança coincide com o modo gerencial em sua rejeição ao
governo hierárquico, mas, ao contrário dele, não vê no mercado nem
nas técnicas empresariais aplicadas à gestão governamental a
alternativa aos problemas e desafios sociais, identificando na própria
sociedade a solução dos problemas. A tarefa do governo é a de
envolver os cidadãos na resolução dos seus próprios problemas,
cooperando com eles e melhorando a capacidade coletiva de atuação.
A governança também partilha com o modo burocrático a ideia de
legalidade, de controle público e da necessidade de procedimentos
administrativos, mas atribui grande prioridade aos procedimentos
informais de interação cidadã, na qual intervém para mediar e facilitar
a cooperação entre os atores e setores da cidadania envolvidos.
Na governança o político tem um papel de representante eleito, mas
diferentemente do modo burocrático, este papel é muito relevante na
sociedade devido ao fato de que atua como aglutinador e organizador
do interesse geral, a partir dos legítimos interesses e desafios dos
diferentes atores e setores da cidadania.
A cidadania e a iniciativa social e privada têm um papel muito ativo. A
tarefa do governo consiste em articular uma ampla cooperação pública
e privada, e uma intensa colaboração cidadã no desenvolvimento
humano. Ou seja, fortalecer e coordenar as principais redes sociais em
uma determinada direção.
Por sua vez, passa a ter mais valor um tipo de profissional polivalente,
que tem como funções a mediação e a negociação relacional, em apoio
aos políticos eleitos, dotado de amplos conhecimentos na elaboração
de estratégias e possuidor de um enfoque abrangente das ciências
sociais. Esta área das ciências sociais é a que apresenta maior
desenvolvimento na era da governança. Prevê-se que, dada a
complexidade e variedade das situações sociais na governança, bem
14
Ver D. Inneraty, El nuevo espacio público. Madri: Ed. Espasa – Calpe, 2006, p. 209.
23
como a necessidade de amplos conhecimentos e novas técnicas, será
necessária uma ampla terceirização da assistência técnica e, mais
particularmente, com entidades que correspondem à classificação de
“think tanks”.
No quadro I, são apresentadas de maneira resumida as características
diferenciadoras dos distintos modos de governar, em relação às suas
principais variáveis.

QUADRO I: MODOS DE GOVERNAR NA DEMOCRACIA:


Principais características

Modo de
Governar Burocrático Gerencial Governança
Variáveis
Função ou dimensão Prestação e
estruturante da Normativa / Gestão Relacional
atividade do governo Legal Infraestruturas e
serviços
Gestão de redes
Gestão sociais ou
Tipo de gestão Gestão por Empresarial por
predominante procedimentos relacional
produtividade ou (construção
resultados coletiva do
desenvolvimento
humano)
Legalidade,
Principais valores autonomia Economia Confiança
sociedade civil. Eficácia Compromisso
Neutralidade Eficiência Colaboração
Credibilidade e
Visão da qualidade no Credibilidade e Satisfação do confiabilidade da
exercício do governo confiabilidade cliente e usuário organização das
dos interdependência
procedimentos s
Demandante- Demandante-
Papel do cidadão Peticionário passivo: cliente ativo: cooperador
Administrado ou usuário e corresponsável
Reivindicativo
Papel das associações Reivindicativo Reivindicativo contratado
e empresas contratado externo

24
corresponsável
externo
Líder da
Papel do político Representante Eleito/gerente construção social
do eleitorado (organizador
coletivo)
Fonte: Elaboração própria, inspirado em J. Alguacil (2006), R. Gomà (2003), J. Prats
(2005).

A governança é a arte de governar própria do


governo relacional emergente

Já vimos que existem três funções ou dimensões-chave da ação de


governo. A organização assimétrica destas funções-chave e o seu
desenvolvimento pela ação do governo deram lugar a distintos modos
de governar. Nesta seção veremos os governos-tipo ou modelos de
governo que se configuraram nos distintos modos específicos de
governar.
A classificação dos tipos de governo que se configuraram de maneira
singular nos modos ou artes de governar, que proponho, é a que tem
como critério classificatório a relação principal que se estabelece ou
pretende estabelecer-se entre o governo territorial e a cidadania. O
resultado são três governos-tipo: o governo racional-legal, o governo
provedor e gestor, também denominado “protetor” ou do “bem-
estar”15 e o governo relacional ou governo em rede, que também foi
denominado “promotor” (J. Prats), “cooperador” ou “capacitador” (D.
Innerarity).

O governo racional-legal

O governo racional-legal corresponde à visão de governar anterior ao


do Estado protetor ou do bem-estar. Nesta concepção a função
principal de um governo em relação à cidadania é garantir as
condições gerais para o bom funcionamento da economia de mercado
e do estado de direito. O governo tem um papel claramente regulador.
A função principal e estruturante do governo é o cumprimento das
normas. Seu modo de governar específico é o que já se assinalou como
burocrático, que foi descrito magistralmente por Max Weber.16
O governo racional-legal, especialmente em seu nível local, gerencia e
presta diretamente serviços como segurança, limpeza, atenção à
população de rua (pessoas sem teto etc.). Mas esta é uma função
menor ou mesmo marginal, e sempre se justifica em relação ao apoio
destes serviços ao papel regulador ou como forma de estabelecer
garantias ao livre desenvolvimento das iniciativas das empresas e
cidadãos. A função do governo não é atuar de maneira ativa com
recursos públicos na economia, nem no apoio à igualdade de
oportunidades sociais ou redução da pobreza e da exclusão social.

15
Pretendo objetivar ao máximo a descrição e por isso não uso as palavras proteção e bem-estar,
por estarem envolvidas em disputas políticas e gerarem reações imediatas e pouco críticas de
apoio ou rejeição.
16
Max Weber o definiu como tipo de dominação racional-legal, descrito em seu famoso Economía
y Sociedad Madri: F.C.E., 1929, pp. 170-217.
25
Neste modelo existe a função relacional, que consiste em desenvolver
a participação e o acordo da cidadania na elaboração das normas
legais, que o governo deverá fazer cumprir, e na aprovação prévia
pelas câmaras municipais. Não se trata da participação na definição
dos serviços e dos sistemas de qualidade na prestação de serviços
próprias do governo gestor, muito menos da participação cidadã e da
colaboração público-privada para transformar a cidade ou o território,
em geral, na perspectiva do desenvolvimento humano.
No governo racional-legal, a função relacional é muito reduzida; a
cooperação cidadã, em não poucos casos concretos de governo, fica
circunscrita ao diálogo para alcançar a manutenção da ordem pública.
As funções estruturadas deste governo, como a prestação de serviços
e a função relacional, são administradas pelo tipo de gestão que já
assinalamos como própria do modo burocrático: a gestão por
procedimentos.
Neste modelo de governo racional-legal o papel do governo é
subordinado sempre aos governos nacionais e regionais. A principal
função é normativa e reguladora e, neste aspecto, os governos locais
são necessariamente subordinados à legislação cujo cumprimento
corresponde ao nível nacional ou federal ou similar, a qual,
logicamente, não podem transgredir.
As alterações nesta forma de governo se originaram nos desequilíbrios
que o próprio mercado gera. A não intervenção dos fundos públicos na
economia e na coesão social levou ao agravamento das desigualdades,
à ampliação da pobreza e à instalação de uma situação de conflito
social permanente. O papel de garantidor do cumprimento de uma
legislação e de manutenção das condições do mercado levou à
percepção de que o governo é um obstáculo e se opõe às
reivindicações sociais dos mais desfavorecidos (ainda que, em não
poucos casos, esta atitude governamental fosse uma vontade
manifesta).

O governo provedor e gestor


O governo provedor e gestor – nascido nos anos 50 do século XX e
ainda hoje modelo de governo dominante – corresponde à visão do que
se denominou Estado protetor do bem-estar.
O papel do governo provedor e gestor de recursos e serviços se
desenvolveu na Europa. Foi assumido no contexto da Guerra Fria e da
ameaça do denominado “bloco socialista dos países do leste”, pela
aplicação das teses de Keynes sobre a intervenção do governo na
economia, através do gasto público, e as propostas de Beveridge sobre
a ampliação da cobertura da seguridade social para todos os cidadãos.
Os desafios do desenvolvimento econômico e as necessidades sociais
ou de bem-estar tornaram-se matéria de intervenção governamental e
os cidadãos se voltaram para todos os níveis de governo na busca da
satisfação de suas demandas e reivindicações sociais.
Neste paradigma encontramos duas etapas definidas pelo modo de
governar que prevaleceu em cada período: o burocrático e o gerencial.

A etapa burocrática
26
O modo burocrático próprio do governo racional-legal foi o que se
aplicou ao novo paradigma de governo a partir dos anos 50, e que se
tornou hegemônico até os anos 80. Ele foi aplicado com os mesmos
valores e com a proteção jurídica dos funcionários públicos, porém
agora já não era somente gerenciar algumas poucas prestações e
serviços ligados às funções de regulação, mas também a prestação de
serviços orientados à satisfação de necessidades sociais, que estavam
se convertendo na função principal e prioritária dos governos.
Os políticos e profissionais da gestão pública não entenderam que se
encontravam ante um novo paradigma de governo, ou seja, ante uma
reestruturação da organização e funções do governo, e agiram como se
fosse tão somente uma ampliação da sua atuação. Não tiveram a
consciência de que era preciso governar de um modo diferente.
Efetivamente, Max Weber (que sem dúvida foi quem melhor
caracterizou o modelo racional-legal, ou modo burocrático de
dominação) considerava que a burocracia era também um modo de
gerir os serviços e não apenas de garantir a legalidade, a
independência e a estabilidade do governo. Porém, era bastante
consciente das limitações de uma gerência ampla dos serviços por este
tipo de gestão. Neste sentido, Giddens17 nos recorda que o principal
argumento de Weber contrário ao socialismo era que este significaria
uma grande burocratização do Estado e, em particular, do governo, o
que acabaria levando à ineficiência na gestão e à autonomia da
burocracia como grupo de poder, que faria o governo funcionar em
função de seus interesses de grupo particular, como efetivamente
ocorreu.
De fato, a gestão de recursos e serviços públicos exige economia,
eficácia e eficiência (os denominados três “E”), que, como já
observado, não são valores próprios da burocracia e nem valores pelos
quais ela é protegida como grupo profissional. A gestão burocrática
aplicada à gestão de serviços foi e é altamente ineficiente, provocou e
ainda provoca significativas deseconomias que devem ser sustentadas
com mais carga fiscal para os cidadãos e, pior ainda, limita o alcance
dos serviços públicos a eles.
O paradigma do governo gestor, ao desenvolver-se com o modo
burocrático, trouxe com ele a necessidade de reforma permanente,
desde o seu começo, para torná-lo mais eficiente. Entretanto, os
distintos instrumentos de reforma – descentralização, centros de
controle, orçamentos-programas etc. – inscreveram-se no modo
burocrático e no tipo de gestão que o caracteriza – a gestão de
procedimentos.

A etapa gerencial

O modo gerencial baseado na imitação da gestão das empresas


privadas recebe o nome de sua principal escola, o new management ou
“nova gestão pública”.18 Pretende não apenas substituir o modo
burocrático nos serviços voltados para satisfazer uma necessidade

A. Giddens, Política y Sociología en Max Weber. Madri: Ed. Alianza, 1976, pp. 76-82.
17

18
Os autores mais conhecidos desta escola, assim como seu principal livro, são D. Osborne e T.
Gaebler, La Reinvención del Gobierno. Barcelona: Ed. Paidós, 1995.

27
social (serviços sociais, assistência médica, centros culturais,
equipamentos desportivos etc.), como os que apoiam diretamente o
cumprimento de uma norma governamental (coleta de lixo, serviços de
limpeza, estacionamento e, inclusive, alguns tão problemáticos como
polícia, gestão urbana e segurança), pela aposta na terceirização dos
serviços públicos, pela criação de um “mercado” ou “quase-mercado”
de serviços públicos, pela gestão orientada ao cliente ou usuário etc.
Considera-se que a produtividade e os três “E” antes mencionados
devem ser os valores dominantes, não apenas da função da prestação
e gestão de serviços, mas do conjunto da administração.
Nesta etapa, a função relacional e participativa se desenvolve mais que
no modelo racional-legal, mas de forma sempre vinculada e
subordinada ao papel de provedor de recursos desempenhado pelo
governo. De fato, o modelo provedor e gestor teve por base um acordo
social através do qual o setor público proporcionou serviços e
benefícios econômicos que constituem salário indireto. Isso possibilitou
a estabilidade dos rendimentos e dos salários nas empresas privadas. A
participação cidadã, por sua vez, fica restrita ao âmbito das
necessidades e no desenho das políticas e serviços, não se traduzindo
em compromisso de cooperação para dar uma resposta coletiva aos
desafios sociais.
Por outro lado, a concepção gerencial passa a incorporar não apenas a
gestão dos serviços financiados com recursos públicos, mas também a
prestação de serviços pelas empresas privadas e iniciativas sociais. A
justificativa desta incorporação se deu a partir do argumento de que o
governo teve seu peso relativo diminuído, dadas as limitações do
crescimento do gasto público para atender as necessidades sociais. Na
etapa gerencial, não apenas se considera a necessidade de incorporar
novos atores sociais, e em especial as empresas, mas também
prospera a ideia de que o governo deve imitar o modelo de gestão
empresarial. Em última instância, o objetivo era dar maior destaque
aos empresários e às empresas, tanto na gestão e prestação de
serviços como na iniciativa social, como forma de suplementar a ação
de governo, que somente se entendia como prestador de serviços.
A adoção do modo gerencial no paradigma de governo provedor e
gestor, no entanto, tinha igualmente uma justificativa ética baseada na
necessidade de se evitar o desperdício do dinheiro público e,
sobretudo, de criar mais infraestrutura e serviços com uma despesa
pública que se constatava não poder crescer indefinidamente. A
extensão dos três "E" para toda e qualquer ação governamental, como
uma cópia dos métodos empresariais das multinacionais, aliada ao fato
de se enxergar o cidadão como um mero cliente ou usuário, em muitos
casos levou à desconsideração do conceito de serviço público e ao
questionamento das garantias legais e do respeito pelos direitos que a
ação do governo deve proporcionar, o que tem acontecido em muitos
governos, e não apenas na América Latina.
Neste caso, não apenas a prestação e gestão de benefícios e serviços
eram considerados dominantes, mas toda a ação de governo.
Considerava-se que o modo de governar deveria corresponder aos
valores empresariais da gestão de serviços. Desta maneira foi
favorecida a consolidação de uma concepção clientelista da ação de
governo e da política em geral, sobretudo onde os valores
democráticos estavam pouco consolidados.

28
Em suma, o enfoque que estamos expondo, de definir o modelo de
governo como uma maneira de abordar a articulação das funções do
governo, leva a dizer que o lema do governo gestor poderia ter sido
burocracia o quanto for necessário, gestão eficiente o quanto for
possível e, certamente, teria tido menos efeitos perversos do ponto de
vista democrático.
No esquema gestor, as prefeituras têm um papel mais relevante como
prestadoras de serviços do que no modelo racional-legal, porém
secundário em relação aos governos nacionais e federais ou similares;
na maioria dos casos, os governos locais dependem das competências
e transferências de recursos dos outros níveis de governo.

O governo-rede ou relacional
O governo relacional é aquele que tem como finalidade a construção
do desenvolvimento humano de forma compartilhada com a sociedade
civil, e cujo modo específico de governar é o que denominamos
governança democrática.
Como já assinalamos reiteradamente, sempre existiu a governança
entendida, simplesmente, como gestão das interdependências ou das
relações entre o governo e os atores e setores da cidadania. Isto,
porém, de maneira altamente residual e condicionada por outras
funções e dimensões que serviram de eixo vertebrador da ação de
governo.
A novidade, a mudança de paradigma, está no fato de que a
governança torna-se o modo próprio do governo relacional. E este
modo de governar, que se baseia e se estrutura a partir da gestão
relacional ou das interdependências, deixa de ser residual para ser o
modo principal ou estruturante do governo.
Hoje em dia a cooperação entre atores, a participação e a colaboração
da cidadania não são consideradas apenas uma dimensão emergente,
mas uma função estrututurante da ação de governo na sociedade do
conhecimento ou sociedade-rede. Isto se deve, fundamentalmente, à
constatação de que existem cada vez mais desafios e necessidades
sociais que não podem ter resposta em uma ação baseada no gasto
público, por mais eficiente que seja a sua gestão. O governo se vê,
assim, diante da necessidade de propor a melhoria da capacidade de
organização e ação para que o conjunto da sociedade enfrente os
desafios e as necessidades crescentes que condicionam o progresso
humano.
Tal como na última fase do governo provedor, considera-se necessário
incorporar novos atores para a obtenção da melhoria da qualidade de
vida; porém, ao contrário da etapa gerencial, não se trata de reduzir a
relevância do governo democrático, mas de atribuir a ele um novo
papel como organizador coletivo de uma ampla ação social.
Neste contexto, a gestão relacional ou gestão das interdependências
(ou de redes) passa a ser a base da nova ação de governo. Portanto, o
governo relacional deve realizar uma reestruturação das funções de
proteção legal de direitos, da gestão eficiente da qualidade dos
recursos e serviços para colocá-los em função da construção coletiva
do território, que tem na gestão relacional seu principal, embora não
único, instrumento.

29
Reestruturação significa mudança de orientação. A função relacional se
converte em estruturante (porque agora o objetivo do governo
relacional é a melhoria da capacidade de organização e ação dos
territórios) e aumenta sua complexidade e a magnitude de seus
objetivos, assim como os âmbitos em que se aplica. A participação
cidadã (elemento essencial da função relacional) é agora,
fundamentalmente, corresponsabilização e compromisso.
Por sua vez, a gestão de serviços na governança deve ser eficaz e
eficiente, mas não apenas do ponto de vista da redução dos custos e
da produtividade, uma vez que esta mesma gestão deve incorporar
uma melhoria no compromisso de ação comunitária dos usuários e
familiares envolvidos e contribuir para o fortalecimento do tecido
associativo do lugar em que se situa. Os benefícios e serviços se
integram e apoiam os processos de desenvolvimento comunitário.
A função normativa e legal, que sem dúvida deve ser exercida por
funcionários, deve adequar os procedimentos de contratação externa
de serviços às novas finalidades de eficácia e contribuição ao
desenvolvimento comunitário, assim como ao fortalecimento e
ampliação dos novos espaços da cidadania; ou seja, frente aos espaços
de deliberação e acordos entre governo, atores, iniciativa social e
movimentos sociais em geral, o papel singular da função legal ou
normativa em um governo relacional será o de conceber os marcos
institucionais reguladores, assim como os incentivos e restrições da
atuação dos atores e setores da cidadania para estimular, fortalecer e
dar estabilidade à ação coletiva em que os participantes procuram
maximizar suas expectativas no âmbito do interesse geral. Isto é, ter
em conta que o interesse geral é uma construção coletiva na qual
participam.
A seguir, veremos com mais detalhe, aplicada ao setor de bem-estar
social, a reestruturação das diferentes funções no governo relacional e,
especialmente, a orientação que recebem através do seu modo de
governar: a governança.
Neste modelo de governo é fundamental a proximidade às
interdependências dos atores para construir projetos coletivos e
promover uma cultura empreendedora e cívica na cidadania. Por isso, o
papel dos governos locais no sistema do conjunto dos Estados-nação é
claramente emergente e relevante. Também o são os governos
regionais, porém estes entendidos, cada vez mais, como gestores das
interdependências entre os distintos municípios.
Como conclusão desta seção, é fundamental reter a seguinte visão do
governo relacional:
O governo relacional assume um papel renovado e uma centralidade
social na sociedade-rede, ao considerar-se a articulação social, a
melhoria da capacidade de organização e ação das sociedades, uma
responsabilidade pública democrática, com grande impacto no
desenvolvimento humano das cidades e regiões.
No quadro II é apresentado um resumo dos governos-tipo a partir dos
seus principais elementos distintivos.

QUADRO II: GOVERNOS-TIPO NA DEMOCRACIA (relação


entre governo e sociedade)

30
Governo-Tipo
Racional-legal Provedor e Relacional
Elementos Gestor
distintivos
Provedor de Organizador
Relação Regulador/ infraestruturas coletivo do
estruturante com a normativo e serviços desenvolvime
sociedade civil nto
Burocrático (1ª Governança
Modo de governar
Burocrático etapa) (expectativa
Gerencial (2ª racional)
etapa)
Papel do município
Protagonista
no modelo de Subordinado Secundário (expectativa
administração
razoável)
nacional
Fonte: Elaboração própria, inspirado em J. Alguacil (2006), R. Gomà (2003), J.
Prats (2005)

As vantagens ou desvantagens de se usar uma concepção ou outra,


desde que sejam rigorosas e se adaptem às regras da lógica,
dependerão da capacidade de previsão das mesmas.
A concepção que é apresentada acima, ao destacar como governo-tipo
o governo provedor, registrou um modo de governar adequado a outro
modelo de governo (racional-legal), porém totalmente inadequado à
nova relação que o governo estabelecia com a sociedade civil. Isso nos
serve de alerta para que, ao surgir o governo relacional, não
continuemos utilizando o modelo de governação gerencial ou que a
governança seja considerada, de maneira incorreta, simplesmente
como uma dimensão a mais deste modo de governar, o que sem
dúvida dificulta alcançar os objetivos do desenvolvimento humano.
A confusão é real. Recentemente um conhecido autor, M. Shapiro 19,
chamou a atenção para o fato de que a perspectiva da governança se
desenvolve no âmbito da gestão pública através da sua conexão com a
escola da “nova gestão pública” e os perigos que esta acarreta para a
legitimidade democrática. Outro importante autor, Guy B. Peters,
embora reposicione o tema e identifique a governança como uma nova
arte de governar distante do modo gerencial, que proporciona um
renovado papel ao governo democrático, também aponta para o perigo
de se associar a governança com a corrente que atribui ao governo um
papel menor, para dar mais importância a outros agentes, em especial
aos econômicos.
Entender a governança como uma dimensão a mais do governo
provedor, e ou geri-la através do modo gerencial, significaria retardar o
novo papel do governo como um organizador coletivo e a valorização
do governante eleito como representante da cidadania.
Por esta razão é que no quadro anterior foi colocado como expectativa
razoável que a governança seja o modo de governar próprio do
governo relacional na sociedade-rede ou sociedade do conhecimento,
por ser o mais adequado. Porém, mesmo que seja o mais apropriado,
isso não quer dizer que o seu desenvolvimento esteja assegurado.
19
M. Shapiro "Un derecho administrativo sin límites: reflexiones sobre el gobierno y la
gobernanza". Em A. Cerrillo (coord); La Gobernanza hoy: 10 textos de referencia. Madri: Ministerio
de Administración Pública, Instituto Nacional de la Administración Pública, 2005, pp 203-212.

31
Ainda mais quando temos o exemplo de que o governo provedor se
desenvolveu, numa primeira etapa, através do modelo de governação
próprio do governo racional-legal: o modo burocrático.
Ainda que a governança comece a ser um paradigma com progressiva
importância nas ciências sociais como arte de governar, é incipiente e,
em não poucos casos, se desenvolve no interior do modo gerencial de
governar, confundindo-se com uma nova fórmula para dar maior
relevância ao papel dos agentes econômicos. O aparecimento da
governança como prática de governo precisa de êxitos bem conhecidos
e de vitórias eleitorais para aqueles que a implementarem. Para isto
são necessários métodos e técnicas específicas e um novo tipo de
liderança política, que é preciso sistematizar e difundir.20 O predomínio
do modo gerencial atrasa e dificulta a inovação do modo de governar.
O governo local, por sua proximidade com as relações que se
estabelecem entre os atores no território, pode gerir melhor a
complexidade social. Mas isso tampouco significa que venha a ocorrer,
mas simplesmente que, de um ponto de vista racional, existem
condições para que haja um incremento do papel dos governos locais.
Se vão conseguir ou não, vai depender, fundamentalmente, de sua
ação prévia, de que sejam capazes de abrir espaços como
organizadores da coletividade, e dos êxitos que alcancem no
desenvolvimento humano nos territórios em que abram os espaços
mencionados.

A governança é o modo de governar da sociedade do


conhecimento

A denominada globalização, tal como a define o Fundo Monetário


Internacional, consiste em fluxos de informações, mercadorias, serviços
e pessoas que cruzam os territórios e os fazem interdependentes. Os
fluxos são produzidos, distribuídos, recebidos e consumidos
fundamentalmente nas cidades e áreas metropolitanas. A economia e a
sociedade globais se assentam no sistema de cidades. Os territórios se
tornam mais interdependentes econômica, social e culturalmente.
A sociedade do conhecimento ou sociedade informacional, na
expressão conceitual de Castells, ao basear-se na inovação
permanente, favorece a especialização flexível nas empresas e
entidades sociais. Estas, para inovar, não podem fazê-lo em todos os
aspectos, necessitando fazê-lo naquilo que mais conhecem, em suas
melhores habilidades e capacidades. Este processo de inovação requer
a organização em rede das diferentes empresas, entidades e
instituições para produzir bens e serviços. A capacidade de articular as
funções de pesquisa, formação, produção, comercialização e
distribuição é a chave para o desenvolvimento. A organização em rede
e o uso das tecnologias da informação são, segundo Castells, 21 fator
central tanto para o desenvolvimento econômico quanto para o social.
A sociedade do conhecimento se baseia em redes, na gestão dos
conhecimentos das pessoas nos departamentos, empresas, entidades
e organismos públicos. Ela posiciona os profissionais e as equipes no
topo dos processos produtivos. Na sociedade industrial, o trabalhador
20
Para isso, foi criado o movimento de governantes eleitos e profissionais, em 2003, voltado para
o desenvolvimento da governança, denominado América Europa de Regiões e Cidades, AERYC.
Ver a página web www.aeryc.org
21
Ver M. Castells, Observatorio Global. Barcelona: Ed. La Vanguardia, 2006, pp.151-193.
32
era um apêndice da máquina; o importante era o processo no qual se
inseriam as pessoas. Contrariamente, na sociedade do conhecimento,
as tecnologias da informação e os processos produtivos são
desenhados para servirem de suporte para que as pessoas e equipes
possam gerar valor através da produção de conhecimentos. A
densidade e qualidade das interações entre departamentos e empresas
é o principal fator crítico para a criatividade e inovação.
A principal vantagem econômica de um território é cada vez mais a
vantagem colaborativa. Neste sentido, a economia depende da coesão
social ou, para ser mais preciso, do capital social, que foi definido por
Putnam de uma maneira muito semelhante à capacidade de
organização e ação: “O capital social refere-se ao conjunto formado
pela confiança social. Às normas e redes para resolver os problemas
comuns. As redes de compromisso cívico, tais como associações de
bairros, as federações desportivas e as cooperativas, constituem uma
forma essencial de capital social. Quanto mais densas forem estas
redes, mais possibilidades existirão de que os membros de uma
comunidade cooperem para obter um benefício comum.”22
Os indivíduos são cada vez menos autossuficientes. Por um lado,
aumentam sua autonomia em relação à família e às instituições sociais
e políticas; por outro, suas necessidades são cada vez mais crescentes
e complexas e, para satisfazê-las, precisam de uma grande amplitude
de redes sociais.
A sociedade e a economia aparecem como uma construção coletiva
assentada em redes. Gerir a sociedade-rede é gerir as relações, é
desenvolver a governança.
A tarefa principal de um governo democrático consistirá em promover
o desenvolvimento humano no território a partir da criação,
fortalecimento e coordenação das redes econômicas, sociais e
culturais. Por isso é que, sem dúvida, a governança é o modo mais
adequado de governar.

22
R. D. Putnam, Making Democracy work: Civic traditions in modern Italy. Princeton: Princeton
University Press, 1993, p.125.
33
2. Governança
Democrática:
Construção coletiva
do desenvolvimento
humano
34
Ideias Principais

1. A finalidade da governança
democrática é o
desenvolvimento humano:
democracia, equidade social,
desenvolvimento econômico.
2. A governança como modo de
governar exige e precisa de
democracia.

3. A coesão social é o motor e não


o resultado do
desenvolvimento.
4. A coesão social entendida como
capacidade de organização e
ação é o principal objetivo da
governança democrática.

35
Ao longo do presente livro serão tratadas mais detalhadamente as
características da governança e, em especial, sua aplicação na área do
bem-estar social. Ao chegar até este ponto, porém, me atrevo a propor
uma definição de governança democrática:
A governança democrática é a arte de governar os territórios do
novo governo relacional, próprio da sociedade do conhecimento,
cujo objeto é a capacidade de organização e ação de uma
sociedade; seu principal meio é a gestão relacional ou das
interdependências e sua finalidade é o desenvolvimento
humano.
Neste capítulo, comentarei os distintos aspectos desta definição, para
uma maior compreensão.

A finalidade da governança democrática é o


desenvolvimento humano

Utilizo aqui o conceito de desenvolvimento humano adotado pelo


Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Ou seja,
o desenvolvimento humano compreende não somente o
desenvolvimento econômico, mas também a redução das
desigualdades sociais, a sustentabilidade ambiental e o fortalecimento
da democracia.
O desenvolvimento humano inclui os temas do chamado capital ético,
isto é, os valores dos atores e da cidadania em especial – o capital
social ou a capacidade de gerar tecido organizativo empresarial e
social para finalidades relacionadas com o bem comum. Inclui objetivos
de bom governo democrático, isto é, relacionados ao aprofundamento
da democracia, a participação e deliberação cidadã, a reforma da
administração pública, a colaboração intermunicipal e regional. Trata-
se de um conceito de desenvolvimento integral que inclui,
naturalmente, critérios de atuação e objetivos que serão referência
para os diversos planos setoriais e políticas públicas, em especial
planos de ordenamento territorial e, particularmente, urbanístico. O
desenvolvimento humano se apoia em um quadrilátero virtuoso:
econômico, social, territorial-sustentável e democrático.
A opção pelo desenvolvimento humano é uma opção pluralista. Não
significa que todas as opções políticas coincidem com as propostas
eleitorais apresentadas à população. Claro que o desenvolvimento
humano implica que se leve em conta os quatro fatores do
desenvolvimento, mas as prioridades ou pesos atribuídos a cada um
deles nas políticas concretas é o que irá distinguir as opções eleitorais.
Este conceito de desenvolvimento humano está relacionado com a
mudança de visão do desenvolvimento e do papel das pessoas nele,
que a sociedade do conhecimento ou a sociedade-rede incorpora. De
fato, durante o pleno desenvolvimento da sociedade industrial, o
homem (entendido como genérico de mulher e homem) era
considerado um apêndice da máquina. Sua produtividade, multiplicada
pela divisão do trabalho e pelas máquinas, era o elemento-chave do
desenvolvimento. Este, por sua vez, era entendido em sua vertente
mais restrita como crescimento econômico, em cuja origem estavam os
investimentos em infraestrutura e grandes equipamentos. Já na
36
sociedade do conhecimento, ao ser este a principal fonte de valor
agregado, as pessoas, as equipes profissionais e a organização em
rede das empresas atingem a sua máxima relevância. A tecnologia – e,
em especial, as tecnologias da informação – se converte no suporte
necessário para que as pessoas e equipes produzam conhecimentos.
Ao centrar-se nas pessoas, o desenvolvimento e a visão que se tem
dele se aproximam mais das múltiplas dimensões de suas
necessidades e, portanto, se tornam mais amplos. Por outro lado, o
bem-estar já não se encontra no governo (em sua oferta de serviços),
mas está nas pessoas. São elas que produzem bem-estar a partir de
sua capacidade de usar os serviços colocados à sua disposição.

A governança exige e precisa de democracia

É possível entender a governança sem que a sua finalidade seja o


desenvolvimento humano, ou, ainda, pensar em uma governança não
democrática?
Se entendermos a governança em sentido estrito, como uma atividade
especial do governo que busca a colaboração de atores em um tema
concreto, e não como uma forma habitual de governar, é possível
entendê-la como não democrática, sempre que os acordos entre o
governo e os atores sejam realizados de costas para os cidadãos e
motivados por uma política clientelista. Ao contrário, como modo de
governar habitual, de um governo local que busca melhorar a
capacidade de organização e ação de uma sociedade, se exige
democracia, uma vez que se tornam necessárias a liberdade de
circulação das ideias e interesses, assim como organizações abertas e
flexíveis com as quais seja possível chegar a acordos sobre interesses
legítimos. Por outro lado, a governança exige participação e
envolvimento cidadão. Dificilmente uma política que não se baseie em
valores democráticos e de desenvolvimento humano poderá
desenvolver-se através de amplos processos de compromisso social.
Para outro tipo de objetivos prefere-se que não haja luz nem
taquígrafos.
De fato, e para evitar qualquer tipo de confusão ao denominar o modo
de governar próprio do governo relacional, utilizamos a expressão
governança democrática, conscientes de que se pode usar a gestão de
interdependências em um sentido contrário ao desenvolvimento
humano e aos próprios direitos humanos, ainda que sempre como
atividade isolada e não como modo habitual de governar.
Na governança democrática, infelizmente, também podem acontecer
espaços de encontro clientelista, mas de maneira isolada, como em
qualquer modo de governar. Porém, neste modo de governar, por seu
caráter aberto e participativo, é muito mais fácil conhecer estas
práticas clientelistas e, por isso mesmo, torna-se mais difícil que
aconteçam.

A coesão social é o motor do desenvolvimento


econômico e social

A coesão social foi tradicionalmente entendida como o


desenvolvimento de políticas públicas e mecanismos de solidariedade

37
para o acesso da cidadania aos benefícios e serviços de bem-estar
financiados com fundos públicos. A coesão social, portanto, era
considerada como um resultado do desenvolvimento econômico,
entendido fundamentalmente como crescimento da renda. Esta é
básica para poder aumentar os impostos e financiar os serviços
públicos de saúde, serviços sociais, educação, cultura etc., que geram
bem-estar social e educação. Neste esquema próprio do modelo de
crescimento da sociedade industrial, ao situar o desenvolvimento
econômico como principal prioridade, justificou-se a sua busca por
qualquer meio, não somente suspendendo os direitos sociais, mas
também os direitos democráticos. O importante e fundamental era que
houvesse investimento, especialmente em infraestrutura, tecnologia e
grandes equipamentos que incrementassem a produtividade.
Na atualidade, o tema está passando por grandes transformações. O
conceito de coesão social foi ampliado e, paralelamente com o
surgimento da sociedade-rede ou do conhecimento, a coesão social
começa a ser entendida como um fator prévio ao desenvolvimento
econômico e social sustentado e sustentável. Vejamos ambos os
aspectos.
O escritório de coordenação do programa Eurosocial observa: “De uma
perspectiva individual, a coesão social supõe a existência de pessoas
que se sentem parte de uma comunidade, participam ativamente em
diversos âmbitos de decisão e são capazes de exercer uma cidadania
ativa.” 23 Acrescenta três novos elementos à coesão social: sentimento
de enraizamento, cidadania ativa e participação social.
No mesmo sentido do programa mencionado, a organização do
governo britânico I&DEA24 define uma comunidade socialmente coesa
através de quatro características:
1. Tem uma visão e um sentimento de enraizamento
compartilhado.
2. A diferença de circunstâncias, ambiente e culturas é valorizada
como um fato positivo.
3. Independentemente do seu ambiente, as pessoas têm
oportunidades de vida semelhantes.
4. Desenvolve relações fortes e positivas entre pessoas de
ambientes muito diversos, quer seja no trabalho, na escola ou
no bairro.
Neste ponto, e considerando que o programa Eurosocial e, em especial,
o I&DEA definem a coesão social pela qualidade, complexidade e
diversidade das relações entre os cidadãos e vizinhos, antecipo uma
tese: a coesão social, entendida como atributo de relações sociais,
deve ser considerada como fator-chave e desencadeante do
desenvolvimento humano. Isto é, mais do que resultado da distribuição
de renda ou acesso a equipamentos e serviços financiados pelo
desenvolvimento econômico anteriormente ocorrido no território,
defendo que é preciso existir coesão social prévia, concebida como
condição para que ocorra um desenvolvimento territorial endógeno,
sustentável e sustentado no tempo.
23
Ver Fundación Internacional y para Iberoamérica de Administración y Políticas Públicas – FIIAPP,
Documento de discussão da Jornada “A coesão social: um desafio para a Europa e América
Latina”, 2007, p. 1.
24
Ver www.idea-knowldege.gov.uk
38
De fato, como consequência do aparecimento da sociedade-rede ou
sociedade do conhecimento, que transformou tanto a concepção do
desenvolvimento econômico como a do desenvolvimento social,
constatou-se que não são as infraestruturas que geram o crescimento
econômico e a renda. Estas impactam a sociedade gerando
produtividade e alto valor agregado apenas se inseridas na
organização de redes sociais e empresariais. Este novo enfoque serviu
para demonstrar a caducidade do ponto de vista anterior, e pode ser
mostrado que o fundamental e prioritário é conseguir o avanço da
coesão social, entendida como capacidade de organização e ação. Ao
propiciar a utilização dos recursos físicos e humanos disponíveis, ela é
que é capaz de gerar atualmente, por si mesma, não apenas um maior
desenvolvimento da produtividade, e consequentemente da renda e
dos serviços públicos, mas do desenvolvimento humano em geral, uma
vez que promover a coesão de uma sociedade exige democracia e,
naturalmente, sustentabilidade, isto é, capacidade de regeneração dos
recursos do entorno territorial.
A melhoria da capacidade de organização é um valor intangível, com
maior impacto no desenvolvimento humano.
Por desenvolvimento humano (econômico, social, cultural, sustentável
e democrático) de um território, na atualidade, se entende, sobretudo,
alcançar um diferencial entre o que uma sociedade faz e o que é capaz
de fazer em relação ao seu entorno econômico e social. Pode-se objetar
que esta definição é também válida para outros períodos históricos, o
que é absolutamente certo. Entretanto, o predomínio do enfoque do
pensamento da sociedade industrial e dos governos gestores e
provedores, que atribuía o desenvolvimento econômico às
infraestruturas e equipamentos, dificultava visualizar outros fatores
que atualmente podemos identificar. Com as lentes da antiga
concepção, não se podia observar a amplitude dos fatores que geram o
desenvolvimento e, em especial, a importância da capacidade de
transformação da própria sociedade. Como explicaria Einstein, é
preciso um novo enfoque para conseguir um avanço nas ciências,
neste caso, na teoria do desenvolvimento.
As infraestruturas, podemos afirmar claramente, são importantes para
o desenvolvimento econômico, mas não são estritamente necessárias
e em absoluto suficientes. O desenvolvimento depende da capacidade
de organização e ação de uma sociedade. Em outras palavras, da
capacidade de articular seu potencial humano e o capital físico com a
finalidade e objetivo de promover o progresso de modo amplamente
compartilhado. Do mesmo modo que existe uma capacidade de
organização adequada, é possível identificar projetos de capital físico
adequados para melhorar sua competência e a geração de valor. O
esquema é o seguinte:25

25
J. M. Pascual Esteve em La Gestión Estratégica de las Ciudades: Un instrumento para Gobernar
las Ciudades en la Era Infoglobal. Sevilha: Junta de Andalucía, 2002.
39
DESENVOLVI MENTO
TERRI TORI AL

CAPACI DADE DE
CAPI TAL FÍ SI CO E HUMANO
ORGANI ZAÇÃO

A coesão social é o principal objetivo da governança

As razões anteriores justificam que a capacidade de organização e


ação de um território seja o objetivo principal do novo modo de
governar.
Pois bem. Quais são os fatores estruturantes da capacidade de
organização e ação ou, o que é o mesmo, da construção coletiva do
desenvolvimento humano? No meu entendimento, hoje já podemos
identificar os seguintes fatores:26
 Existência de uma estratégia compartilhada entre os
principais atores. Uma estratégia integral e integradora com
claros compromissos de ação em permanente atualização,
centrada no bem-estar das pessoas e baseada nos interesses
dos principais atores.
 Um modelo de interação social entre os principais atores,
adequado:
• Aos desafios e exigências do desenvolvimento
contemporâneo, que permita enfrentar os conflitos
inevitáveis com flexibilidade e confiança de chegar a
acordos com benefícios recíprocos.
• Às correlações de força ou equilíbrio de poder entre
eles.
• Às configurações mentais ou culturais que promovam
o respeito e o conhecimento recíproco e se orientem à
ação a partir de compromissos igualmente recíprocos.
O modelo de interação entre os agentes econômicos, sociais
e políticos é fundamental para a determinação da estrutura
produtiva de qualquer região ou país. A falta de flexibilidade
do modelo e a cooperação entre poucos, através do qual se
“submete” a maioria, produzem insegurança e, com ela, a
ausência de visão de médio e longo prazos, assim como o
uso de tecnologias que utilizam pouco capital fixo. Um
modelo aberto e flexível favorece a confiança e a aposta
empresarial e social, que se traduz em um importante
desenvolvimento econômico e social.
 A presença de redes de atores para o desenvolvimento de
projetos-chave e complexos. Os projetos em rede permitem
articular os esforços de distintos atores públicos e privados,
26
Para uma explicação mais detalhada, ver J. M. Pascual Esteve, Estrategia Urbana y Gobernanza.
Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona (Área de Promoción Económica), 2007.

40
ao serem capazes de combinar os diferentes interesses e
desafios de objetivos comuns e socialmente úteis.
A estratégia territorial exige o compromisso de ação por
parte dos principais atores do território para desenvolvê-la.
Porém, a partir de uma posição de atores entendidos como
organizações coerentes em si mesmas, com relações entre
elas frequentemente conflitantes, é necessário um processo
de construção de redes até que os compromissos concretos
de ação sejam alcançados. Isto a partir de uma situação
inicial distinta em cada território, até que as relações entre
os âmbitos público e privado, entre administração e
sociedade sejam situadas no terreno da corresponsabilidade.
Este processo de melhoramento relacional27 deve ter um
tratamento coordenado, mas, logicamente, diferenciado do
processo de definição da estratégia territorial. O resultado
do processo é conseguir a identificação de uma estratégia
concreta com um compromisso claro de ação.
 Uma cultura de ação e compromisso cívico distanciada tanto
da cultura da satisfação quanto da queixa, do burocratismo
e do niilismo. A cultura de ação deve proporcionar:
• Um sentimento de enraizamento e identificação
com a cidade ou região. Dispor de um sentido
coletivo aberto, não fechado.
• Atitude aberta, tanto à inovação como à
integração social e cultural de novas pessoas e à
inserção em estratégias territoriais mais amplas
que o próprio município, a própria região e nação.
• Esperança realista no futuro, que permita ver
além da realidade, se esta é sombria (“Queremos
promessas, não mais a realidade”, diziam os
argentinos durante uma de suas crises
econômico-financeiras), e que gere expectativas
racionais nas inversões de capitais e nos esforços
humanos.
• Legitimação e reconhecimento social da figura da
pessoa e instituição promotora.
• Respeito e confiança na atuação dos outros
atores, que é a base para a geração do capital
social.
 O apoio social e a participação cidadã. As estratégias e os
principais projetos estruturantes devem dispor de um
importante apoio social, e este será mais efetivo se a
participação cidadã for estimulada e garantida, entendida
em dois sentidos: como garantia de que seus principais
desafios e expectativas serão considerados nas estratégias,
e como condição para sua responsabilização e envolvimento
social gerador de capital social.
27
Ver a respeito X. Mendoza, “Las transformaciones del sector público en las sociedades
avanzadas: Del Estado del Bienestar al Estado Relacional”, Papeles de Formación de la Diputación
de Barcelona (1996) e A. Vernis, “La relación público-privada en la provisión de servicios
sociales”, Papeles de Formación de la Diputación de Barcelona (1995).
41
 A existência de lideranças formais e informais entre os
atores institucionais-chave, com capacidade de aglutinar e
representar a maioria dos interesses, pactuar e respeitar
institucionalmente suas decisões. A liderança principal deve
corresponder, como já assinalamos, à instituição mais
democrática, isto é, a escolhida por toda a cidadania. Do
contrário, nos encontraríamos com uma liderança
corporativa a partir da qual não é possível construir o
interesse geral, uma vez que se reduz ao corporativo. Como
assinala J. Subirats, “o grau de liderança das instituições
representativas no processo de governança das
comunidades vai derivar de sua capacidade para envolver o
restante dos atores, agentes e pessoas presentes na
sociedade na construção de um modelo de futuro
compartilhado”.28
 A articulação de políticas regionais e locais. Trata-se de
conceber a região como sistema de cidades e municípios,
com capacidade de:
• Combinar as políticas regionais e locais com
objetivos e instrumentos no conjunto do território,
com as estratégias locais com capacidade de dar
especificidade e integridade ao conjunto de
ações, fortalecendo a cooperação pública e a
colaboração cidadã.
• Articular os municípios não a partir de uma
organização territorial fixa, mas de uma maneira
flexível e adaptável em função do projeto-rede.
Quer dizer, dos territórios que abarcam o
desenvolvimento do projeto.
• Dispor de regras de jogo formais e informais que
pautem a interação entre administração regional
e as municipais, assim como as intermunicipais.
 A habilidade de uma cidade para posicionar-se frente ao
futuro. Isto é, a capacidade de antecipar-se a novos desafios,
renovando permanentemente a estratégia, gerando novos
projetos e dando novos enfoques aos temas sociais.

A gestão relacional é a modalidade de gestão


característica da governança

O fato de serem as cidades os principais centros de inovação e


desenvolvimento econômico e social dos países deve-se,
fundamentalmente, à densidade das interações entre seus distintos
membros e organizações. Da complexidade, diversidade, intensidade e
qualidade dessas interações dependerão as vantagens comparativas
do desenvolvimento humano que uma cidade ou região metropolitana
terá.

28
J. Subirats, “¿Qué gestión pública para qué sociedad?. Una mirada retrospectiva sobre el
ejercicio de la gestión pública, en la sociedades europeas actuales” em Instituto de Gobierno y
Políticas Públicas. UAB.
42
A gestão relacional é o tipo de gestão pública que, no nosso caso, é
levada a cabo pelos governos territoriais para incrementar a
intensidade, qualidade e diversidade das interdependências e
interações dos atores econômicos, sociais e institucionais e os distintos
setores da cidadania. Seu objetivo é melhorar a criatividade, a
confiança, a colaboração e a cultura empreendedora e de ação cívica
do conjunto da cidadania para conseguir, coletivamente e de maneira
compartilhada e cooperativa, um maior desenvolvimento humano.
A gestão relacional é própria do que se denominou sociedades
inteligentes, ou seja, aquelas que, segundo as palavras de A. Marina,
incrementam a capacidade de criação e de solidariedade dos
cidadãos.29
Logicamente, a pretensão não é gerenciar todas as relações sociais,
mas tão somente aquelas que têm relação com a construção
compartilhada do desenvolvimento humano. Os âmbitos privilegiados
da gestão relacional entre os governos territoriais e a sociedade civil
são:
Por um lado, as relações com os agentes com maior capacidade de
transformação do território, por seus recursos e competências ou por
sua legitimação social pelo conhecimento e estatura moral. Neste
grupo encontramos:
 As relações intergovernamentais: tanto entre
diferentes níveis de governo em distintos âmbitos
territoriais, como relações multilaterais entre
governos do mesmo nível territorial, sejam
intermunicipais ou inter-regionais.
 As relações com grandes instituições:
universidades, centros de pesquisa e
desenvolvimento, câmeras de comércio,
fundações culturais e educacionais de prestigio,
igrejas etc.
 As relações com o setor econômico privado:
setores econômicos produtivos e financeiros,
empresas de capital de risco, confederações e
associações empresariais etc.
 As relações com agentes sociais e profissionais:
sindicatos, agremiações profissionais, associações
de moradores, importantes movimentos sociais
etc.

Por outro lado, relações destinadas a articular o tecido social e


fortalecer o capital social do território:
 As relações com entidades sociais que têm
também um papel de intermediação.
 Uma tarefa de mediação para alcançar um espaço
de inter-relação entre entidades sociais.

29
J. A. Marina, La inteligencia fracasada. Barcelona: Editorial Anagrama, 2004.

43
Por último, sem que neste caso signifique em absoluto baixa
prioridade:
 Relações diretas com os cidadãos entre os
períodos eleitorais. É importante dispor de
múltiplos mecanismos de informação,
comunicação e deliberação tanto para conhecer
diretamente opiniões, desafios e necessidades, e
conseguir, efetivamente, que as políticas
respondam aos interesses do conjunto da
cidadania, como para fortalecer uma cidadania
ativa.
 Participação eleitoral. Deve ser considerado que
são as eleições democráticas o principal e mais
decisivo modo de assegurar que as políticas
governamentais tenham em conta as
preocupações dos cidadãos. A qualidade da
representação é o que há de essencial numa
democracia e a liderança baseada na
representação é o principal fator de êxito na
governança democrática.

A gestão relacional se assenta em um conjunto de


técnicas e instrumentos

A gestão relacional como instrumento de governança não é somente


um enfoque da realidade social e, em especial, do modo de governar.
Ela necessita também de técnicas e instrumentos que façam dela um
mecanismo eficaz do desenvolvimento humano. Precisamente, este
novo enfoque é o que permite transformar novos métodos em
instrumentos de gestão ou identificar e adaptar antigas técnicas,
propiciando-lhes um papel renovado na gestão das relações sociais.
Sem dúvida, o avanço da gestão relacional e as próprias
transformações que sua aplicação propicia condicionarão o surgimento
de novas técnicas e o aperfeiçoamento das existentes.
Em uma publicação da Área de Promoção Econômica da Província∗ de
Barcelona, expliquei em detalhes as características de uma série de
técnicas que já demonstraram sua eficácia na gestão relacional, e que
enumero a seguir para que o leitor tome conhecimento do amplo leque
de ferramentas já existente:30
 Os planos estratégicos, desenvolvidos nos territórios a partir
da cooperação público-pública e público-privada e a
participação cidadã, constituem um bom início da gestão
relacional própria da governança ao dotar os territórios de
uma estratégia compartilhada entre os principais atores e

No original, Diputación (Província). Trata-se de um governo supramunicipal de âmbito territorial
denominado Província. Na Espanha, a organização territorial é a seguinte: os municípios se
agrupam em Províncias e estas se agrupam em Comunidades Autônomas (equivalentes aos
estados no Brasil). Os órgãos de governo da Província são eleitos pelas prefeituras em função do
número de vereadores, que, por sua vez, depende do tamanho da população do seu município.
(Nota do tradutor)
30
J. M. Pascual Esteve, Estrategia Urbana y Gobernanza, op. cit.
44
com um amplo apoio social. O planejamento estratégico
assim entendido constitui a fase inicial ou fase de
planejamento propriamente dito da gestão das
interdependências ou gestão estratégica.31 A metodologia
dos planos estratégicos é um bom instrumento para o início
da governança territorial.32
 A negociação relacional dos conflitos públicos. As técnicas de
negociação relacional constituem um bom instrumento para
o desenvolvimento da gestão de interdependências ou
gestão relacional. A negociação relacional é um tipo de
negociação com características próprias, porque o resultado
buscado por parte de um dos negociadores é consolidar e
melhorar a relação entre os protagonistas para obter maior
confiança mútua e poder desenvolver projetos com base na
cooperação.
 Técnicas de mediação. No paradigma do governo gerencial,
era costume o governo ser uma das partes. Em conflitos
entre grupos sociais no território, é difícil encontrar o
governo fazendo o papel de mediador entre os atores. Na
perspectiva da governança, em que os governos locais e
regionais assumem a liderança na construção coletiva do
território, a mediação é, sem dúvida, um dos recursos dos
políticos e profissionais da administração. Na mediação, o
papel da administração é intervir para que uma situação
conflituosa entre atores sociais possa encontrar uma solução
e, no processo, melhore a imagem das partes e a confiança
entre elas. A ação do governo é a de ser catalisador de um
acordo sem converter-se em parte do mesmo.
 Técnicas de participação cidadã e apoio social às políticas
públicas. Das estratégias de participação deve-se passar à
participação como estratégia para fortalecer a capacidade de
organização e ação. Das inúmeras técnicas de participação,
na área da gestão relacional, são especialmente úteis as que:
(1) se baseiam em procedimentos claros e simples, com
finalidades precisas que facilitam a expressão de ideias e
desafios sobre um tema ou assunto e, naturalmente,
impedem que se prolonguem eternamente os debates.
Participação é método e organização. Do contrário, a
participação se reduz a poucos participantes, pouco
reflexivos, dado que seu interesse é menos convencer do que
se impor pelo cansaço; (2) ajudem a gerar confiança,
colaboração e responsabilidade cidadã nos acordos
realizados; (3) permitam legitimar objetivos e projetos da
cidade e obter um importante apoio da cidadania aos
mesmos.
 Métodos e técnicas de gestão de projetos em rede. As
técnicas para a gestão de redes são fundamentalmente de

31
Para o desenvolvimento desta tese, ver J. M. Pascual Esteve, De la planificación a la gestión
estratégica. Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona, 2001.
32
J. M. Pascual Esteve, La estrategia de las ciudades. Los planes estratégicos como instrumento:
métodos, técnicas y buenas prácticas. Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona, 1990. Neste livro
exponho um conjunto de métodos e técnicas que são úteis para a elaboração de planos
estratégicos territoriais que servem como início da governança.

45
dois tipos: a gestão da dinâmica da rede, que abarca desde a
inclusão dos atores-chave ao fomento de projetos que
consolidem os interesses comuns. As técnicas de gestão de
estruturas para adequá-las aos objetivos para os quais foram
criadas e permitam fortalecer uma cultura ou uma
perspectiva comum. É particularmente útil para a gestão de
redes o uso das matrizes de atores no marco da gestão
sistêmica por objetivos.33
 Gestão da cultura empreendedora e cívica da cidadania. A
tecnologia para fortalecer as características de uma cultura
empreendedora e de ação entre a cidadania é muito recente
e tive a oportunidade de sistematizar os indicadores para o
monitoramento de sua evolução através de pesquisas
aleatórias e por amostragem para o Centro de Estratégias e
Desenvolvimento de Valência (Ceyd, na sigla em espanhol).
O processo de gestão da cultura empreendedora exige, na
perspectiva da governança democrática, uma grande
transparência e um acordo democrático entre os principais
setores da cidadania para desenvolvê-la.
Não obstante, dispomos de instrumentos cujos efeitos podem
ser observados em curto prazo, muito embora sejam poucos
os resultados conjunturais. Referimo-nos às técnicas de “city
ou regional marketing” interno, ou seja, o marketing voltado
para a identificação dos próprios cidadãos com o seu
território.
A respeito do marketing interno, do ponto de vista da
governança, é recomendável o enfoque e as metodologias
propostas por T. Puig, relacionadas à criação de uma marca
do território construída de maneira coletiva e com
capacidade de convencer e comover.34 É aconselhável adotar
o posicionamento do Ceyd relativamente à gestão da
memória, cujo direcionamento deve estar voltado para a
geração de uma consciência coletiva capaz de unir tradição e
modernidade e aproveitar o passado para fundamentar
aspirações e valores democráticos e solidários para o
presente e o futuro, isto é, olhar o passado com os olhos do
futuro, tal como observava H. Arendt.35
 “Coaching” para a liderança relacional. Na governança, o que
se fortalece é o valor da representação do político, e dele se
requer capacidade para escutar, dialogar, compreender,
convencer, comover e motivar para a ação coletiva e para a
responsabilização e compromisso social da cidadania.
Por outro lado, na governança os resultados da sua ação já
não são tanto os serviços, e sim o nível geral do
desenvolvimento econômico e social alcançado no território
durante seu mandato e o grau de coesão social alcançado
com a cidadania. É preciso apresentar o balanço da sua
gestão relacional, e para isso são necessárias novas formas,
novas atitudes e novas habilidades.
33
Ver J. M. Pascual Esteve La estrategia de las ciudades: métodos, técnicas y buenas prácticas.
Barcelona: Ed. Diputación de Barcelona, 1999, pp. 157-162.
34
Ver T. Puig, La Comunicación cómplice con los ciudadanos. Madri: Siglo XXI, 2003.
35
Ver J. M. Pascual Esteve, “La gestión de la memoria en la estrategia de las ciudades”. Revista
del CEYD, Valência, 2005.(www.ceyd.org)
46
 As técnicas de construção de consensos. Não é necessário
insistir na importância destas técnicas na governança. De
fato, as técnicas anteriormente citadas sobre negociação
relacional e participação cidadã incluem necessariamente o
consenso. Mas existe uma grande pluralidade de
metodologias e técnicas amplamente testadas, além das
citadas, que devidamente adaptadas podem ser utilizadas
nos diferentes âmbitos em que se desenvolve esta nova arte
de governar.
 O enfoque abrangente nas ciências sociais. Na governança é
necessário compreender o que diz cada ator em seu contexto
social e poder entender não apenas o que expressa, mas
como e por que o diz. A compreensão dos atores e a análise
dos conflitos a partir das distintas perspectivas das partes
são condição absolutamente necessária, embora
naturalmente insuficiente para o bom desenvolvimento da
governança. Trata-se de fazer inteligível a base subjetiva em
que repousam os fenômenos sociais; a análise objetiva
desses fenômenos é perfeitamente possível e compatível
com o fato de que as ações humanas têm um caráter
subjetivo. Este enfoque, também denominado interpretativo
da ação social, tem em Max Weber seu autor mais clássico, e
está voltado para a compreensão do sentido de uma ação
para um ator, dando a conhecer os motivos entre a atividade
objetivamente observada e seu sentido para o mencionado
ator.36
 A direção sistêmica por objetivos.37 As técnicas de
administração por objetivos são um bom instrumento para a
gestão relacional. Não é este o caso da direção baseada em
procedimentos protocolizados para se chegar a um resultado,
uma vez que se trata de estabelecer objetivos comuns a um
conjunto de atores que constituem um sistema social e, de
acordo com eles, concretizar de maneira inovadora seus
objetivos através de projetos cujo gerenciamento deve ser
feito em rede.

Para desenvolver-se, a governança precisa ter êxitos


eleitorais visíveis

Como já observado, o governo relacional, com a governança como seu


modo específico de governar, é um novo paradigma de governo que
está avançando nas ciências sociais, embora não constitua o modo de
governar habitual nem na América nem na Europa. Para desenvolver-
se, além das técnicas, a governança precisa de conteúdos nas políticas
públicas e, especialmente, de êxitos eleitorais visíveis.
Atualmente, e apesar da sua crise, é o governo gestor com o seu modo
gerencial de governar que constitui a forma dominante de fazer
política. Sem dúvida, uma das razões que explicam a permanência do
36
Podemos encontrar a exposição metodológica da sociologia compreensiva em Sobre la Teoría
de las Ciencias Sociales (Barcelona, Península, 1971) e também em Economía y Sociedad, op.
cit., no qual mantém a importância da subjetividade para a análise sociológica.
37
Para conhecer o enfoque sistêmico, recomenda-se a leitura de L. Bertalanffy, La Teoría General
de Sistemas. Madri: F.C.E, 1981.

47
“gerencialismo” como modo habitual de governar é que se acha
amplamente na consciência das pessoas o modo gerencial como a
forma correta de fazer “política” (confundindo-se a prática dominante e
o hábito com a postura correta e adequada). Considera-se que a
política demanda o cidadão (sem ter em conta que, neste caso, se
observa a lei de Say, que nos diz que a oferta, no caso a política,
condiciona a demanda) e que qualquer posicionamento transgressor do
modo de governar citado tende a ser rechaçado. A governança deve
superar estes grandes obstáculos para se constituir como modo
comum de governar os territórios.
Por isso, como qualquer paradigma social em fase inicial, a governança
só avança em experiências pontuais. Alguns poucos dirigentes políticos
inovadores, em circunstâncias determinadas, colocaram em prática
processos de governança, muitas vezes sem conceituá-los como tal.
Essas experiências devem ser objeto privilegiado de análise e
divulgação para melhorar o entendimento e possibilitar a concretização
deste modo de governar, sobretudo se com a implantação da
governança for constatado um importante progresso econômico e
social através da colaboração entre governo e sociedade civil. Em
especial, é importante para a superação dos velhos modelos políticos a
análise e divulgação dos êxitos eleitorais obtidos depois da aplicação
das políticas baseadas no novo modo de governar. Estes são os
principais caminhos para gerar um “caldo de cultura” idôneo para o
surgimento de novas experiências de governança, para romper o
obscurantismo na cultura política representado pelo gerencialismo.
A governança como modo de governar tem uma grande autonomia em
relação aos conteúdos das políticas, mas esta autonomia não é total.
Existem as condições especiais, econômicas e sociais, que favorecem
esta nova arte de governar.
Os conteúdos concretos das políticas dos governos territoriais
condicionam o bom desenvolvimento da governança. Sem dúvida, uma
opção por uma cidade compacta, não segregada, baseada na
complexidade e diversidade das relações humanas no espaço público,
favorece a gestão relacional de qualidade. O envolvimento dos
usuários e familiares nos programas voltados para o bem-estar social e
para a educação, a difusão dos valores relacionados ao sentimento de
“pertencer”, o comprometimento e a atribuição de um valor simbólico
aos espaços coletivos, para convertê-los em lugares de encontro e
convivência, são também condicionantes que favorecem o
desenvolvimento do governo relacional e da governança como modo
de governar as cidades.
Os objetivos do Movimento AERYC (América-Europa de Regiões e
Cidades) para a governança territorial têm esta tríplice finalidade:
análise e divulgação das técnicas e instrumentos de gestão relacional e
governança; boas práticas de desenvolvimento humano e êxito
eleitoral baseado na governança; e identificação de conteúdos para a
promoção da governança. Esta última, a partir da perspectiva dos
grandes desafios confrontados pelos territórios: cidades, regiões,
imigração, gestão do tempo etc.

48
3. O Governo Relacional
e a Governança se
assentam nas
mudanças sociais e na
emergência da
sociedade-rede

49
Ideias Principais

1. Nova desigualdade social e nova visão


da pobreza.
2. A individualização das relações sociais
e a geração de capital social.
3. Risco e vulnerabilidade social.
4. Imigração: identidade e
multiculturalidade.
5. Mudanças na família: socialização
com base na diversidade de
famílias.

6. A cidade à medida das mulheres:


uma exigência.
7. Uma nova visão do tempo e espaço
na sociedade-rede.
8. A centralidade dos valores na
organização social.
9. A globalização do social.
10. Mudanças nas formas de prestação
e gestão dos serviços de bem-estar
social.

50
A mudança nas formas de governar os territórios não se justifica
apenas pela necessidade de governar aprofundando a democracia e
para alcançar maior eficácia e eficiência das políticas públicas, mas
pelo fato de que está ocorrendo uma grande transformação em nossa
sociedade que afeta a economia, a estrutura social, a organização do
espaço, a educação, a cultura e, naturalmente, a estrutura do governo
e o modo de governar.
Estamos vivendo o processo de transição da sociedade industrial para
a sociedade-rede ou sociedade do conhecimento. Isto significa uma
mudança social tão importante como foi a passagem da sociedade
agrícola e artesanal à sociedade industrial.38
A sociedade-rede assentada nas tecnologias da informação e
comunicação tem na geração do conhecimento e na inovação, a partir
da interação de diferentes agentes (pessoas, empresas, atores, setores
produtivos etc.), a principal fonte de valor agregado. A principal fonte
de produtividade é o capital cultural ou intelectual, que é gerado e
fortalecido a partir da qualidade e intensidade das interações humanas
e empresariais, ou seja, da qualidade da organização das redes. Nas
últimas etapas da sociedade industrial, predominava a organização
fordista, e uma de suas principais características era a absorção pela
empresa, na sua própria estrutura, da maioria das funções relacionadas
com a produção (marketing, assistência jurídica, comercialização etc.).
Na atualidade, e dada a necessidade de inovar permanentemente, as
empresas se especializam de maneira flexível naquilo que é a sua
atividade central e terceirizam a maior parte das atividades de apoio à
sua produção específica. Os conceitos de inovação, flexibilidade e
adaptabilidade substituíram a especialização, continuidade e
reprodução de atividades e produtos.
Neste capítulo não vamos descrever todas as mudanças que afetam a
transformação das nossas cidades. Trataremos tão somente daquelas
que atingem mais diretamente a situação social das pessoas e grupos
sociais, particularmente dos que se relacionam mais diretamente com
as políticas de bem-estar social e sua gestão por parte dos governos
locais.
No quadro seguinte, observamos as interdependências das mudanças
tecnológicas, econômicas e sociais e, muito especialmente, das
transformações sociais. Identificamos os principais desafios sociais que
a gestão estratégica das cidades deve se propor enfrentar, isto é,
aquela gestão cujo objetivo seja conduzir a cidade a patamares de
maior qualidade de vida na sociedade global da informação e do
conhecimento.
Para simplificar, só assinalamos no quadro a influência da tecnologia
nos desafios sociais, e omitimos o impacto destes desafios na
tecnologia. Não obstante, devemos ter presente que existe uma
interdependência dos distintos âmbitos estruturais e variáveis que o
conformam.

38
Ver M. Castells, La Era de la Información. Madri: Ed. Alianza, 2000. Vol.I.
51
Os desafios Sociais
Análisedetendências

Tecnologia Economia EstruturaSocial DesafiosSociais

Estrutura ocupacional
Nova desigualdade
Informaçãoe Economia Mercado de trabalho
comunicação Informacional Individualização das relações sociais
oudo Sociedade risco
conhecimento Nova pobreza

d
-re
Risco e vulnerabilidade

Imigração terceiros países Identidade/ Multiculturalidade

Mudanças na família
Economia Igualdadede gêneros
Global Sociedade-rede
Crise na organização dos
Importância do capital social benefícios

D
fio
e
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Reestruturação do Estado do Crise fórmulas de intervenção

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bem-estar
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Novo papel dos territórios Globalização do social

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Novos Centralidade ética e valores Cultura dos valores


Genética
setores
Econômicos

A seguir, descrevemos os desafios sociais a partir das mudanças que


estão ocorrendo na estrutura social das cidades.

Nova desigualdade social e nova visão da pobreza

O fundamental para entender os novos processos de dualidade e


polarização social nas cidades, anteriormente mencionados, é
compreender que existe uma mudança no principal fator de geração
das desigualdades de renda e poder em relação às cidades industriais.
Nestas, era o acesso à propriedade do capital o fator fundamental para
organizar os processos de produção e distribuição social dos bens e
serviços na cidade, e, em especial, para alcançar um maior retorno
econômico. Da renda dependia em boa medida o acesso a melhor
educação, saúde, cultura e lazer. Daí resulta terem os benefícios do
Estado do bem-estar sido direcionados tanto para assegurar a
universalização dos serviços sociais, educacionais e de saúde básicos
como para garantir determinados níveis de renda para setores
vulneráveis da população – aposentados, desempregados, portadores
de necessidades especiais –, como melhor forma de lutar contra a
pobreza e a desigualdade social.
Na atualidade, a União Europeia considera a pobreza em termos
relativos de desigualdade. No II Programa de Luta contra a Pobreza,
esta foi definida como aquela situação em que se encontram as
famílias que recebem menos da metade da renda média da sociedade
de referência. Esta definição continua hoje vigente no âmbito europeu.
Na cidade da informação, o acesso ao capital cultural está se
constituindo no principal fator gerador da desigualdade social, ainda

52
que não o único. Nela, o fundamental é a capacidade de transformar a
informação em conhecimento. Este é o principal gerador de valor
agregado. O capital cultural não são conhecimentos concretos sobre
arte e ciências. Capital cultural é a capacidade socialmente adquirida
de produzir conhecimento partindo do acesso universal à informação.
Capital cultural é proporcionado pelo domínio da linguagem, do
conhecimento de conceitos, das técnicas de raciocínio, da faculdade de
criar e imaginar; é conhecimento e é atitude positiva em relação à
inovação e à aprendizagem constante durante toda a vida.39
O capital cultural é fruto de uma educação em sentido amplo, que
acontece na família, na escola, nas interações sociais. Depende da
intencionalidade educativa que se atribua aos processos de
socialização primária e secundária que acontecem na cidade.
Nem a igualdade de oportunidades nem a redução da pobreza podem
ser alcançadas através da garantia de acesso aos serviços básicos e
níveis de renda mínima. Isto será uma condição necessária, mas não
suficiente. Para garantir habilidades sociais, educacionais e culturais
básicas, será preciso desenvolver uma ação social global. Só assim
poderão ser dadas oportunidades à equidade na sociedade do
conhecimento.
A criação de conhecimento vem sendo o primeiro fator gerador de
renda, e o domínio social e empresarial se consolidam por esta via,
como já observado por sociólogos e economistas como J. K. Galbraith,
A. Gouldner, N. Bentham e A. Touraine. São os novos intelectuais, a
inteligência, ou uma nova classe dirigente, cujos instrumentos de
poder são a capacidade de criar e gerir conhecimentos.
Junto a este novo fator diferencial dos processos de desigualdade
contemporâneos, encontramos outras singularidades específicas. Em
primeiro lugar, a dualização da estrutura ocupacional urbana. A
terceirização nas cidades se desenvolve em dois polos muitos
diferentes, o crescimento dos serviços avançados que requer uma força
de trabalho muito qualificada e, também, o incremento do terciário de
baixa qualificação, muito relacionado com os empregos pouco
qualificados no setor de lazer e hotelaria. Porém, também empregos
relacionados com o que se denomina bolsa de empregos intensivos em
mão-de-obra. Este é o caso dos serviços de ajuda a domicílio,
assistência doméstica, lavanderia, mensagens etc. Os empregos
intermediários diminuem seu peso relativo, correlacionados com a
redução do tamanho da indústria, do impacto das tecnologias da
informação e das técnicas de gestão baseadas na reengenharia de
processos, que reduzem os postos de trabalho intermediários.
A oferta de postos de trabalho de baixa qualificação nas cidades
europeias e norte-americanas constitui um atrativo para imigrantes de
países do Terceiro Mundo, e um incentivo para empregadores abrirem o
mercado de trabalho aos estrangeiros.

39
B. Bernstein, Clases, Códigos y Control. Vols. I e II. Madri: Ed. Akal, 1988 e 1989.
53
A individualização das relações sociais e a geração de
capital social

A inovação constante em processos e produtos exige flexibilidade na


estrutura ocupacional, para o que se requer uma força de trabalho com
uma ampla formação de base polivalente que a permita adaptar-se às
mudanças no sistema produtivo.
A individualização das relações trabalhistas é outra característica da
era da informação e do conhecimento. A especialização flexível e a
tendência já assinalada de as empresas formarem redes locais e
internacionais reduzem o tamanho de cada uma das unidades
produtivas tomadas individualmente. Do mesmo modo, o trabalho com
tecnologias da informação, da comunicação e também da robótica,
individualiza os processos de trabalho e, ao contrário do trabalho
mecânico da sociedade industrial, os trabalhadores na era do
conhecimento não se submetem às maquinas e controlam o processo
produtivo de maneira individual e não coletiva.
Isto faz com que as organizações trabalhistas e, muito especialmente
os sindicatos, cujas estruturas e objetivos surgiram na era industrial,
estejam atravessando um processo de crise de adaptação para
preservar a dignidade das condições de trabalho dos novos tipos de
trabalhadores – com a tipologia mais ampla e diversificada de postos
de trabalho, mais fragmentados em um maior número de empresas,
com maior autonomia no processo produtivo e formação, e inseridos
em um ambiente que está mudando o processo de formação das
classes sociais.
Isto não quer dizer que não existam desigualdades sociais, inclusive
desigualdades crescentes. Porém, as desigualdades baseadas na
organização em classes sociais e, em especial, na consciência de
classe, perderam sua posição principal ou centralidade na sociedade.
A individualização nas relações trabalhistas se articula com a maior
individualização das relações familiares, resultantes da revolução social
nas práticas sociais e nos valores que as legitimavam, representada
pelo processo de autonomia da mulher através de sua plena
incorporação à educação superior, ao mercado de trabalho e à
atividade política. Uma sociedade mais individualizada não significa,
necessariamente, uma sociedade mais egoísta e com maiores níveis de
isolamento, mas simplesmente uma sociedade menos determinada
pelas ações coletivas e mais sujeita às ações de cada uma das pessoas
que formam a sociedade concreta.
Individualização significa, por um lado, um processo de desvinculação
das instituições e grandes organizações sociais e, por outro, um
processo de nova vinculação a outras formas de vida social em que os
indivíduos adquirem uma maior importância no desenvolvimento de
suas próprias biografias.
O florescimento das ONGs nas cidades pode ser relacionado com o
trabalho de intermediação que elas exercem entre as pessoas e a
sociedade. Quer dizer, uma intermediação mais flexível e atenta às
particularidades ou singularidades pessoais, de caráter mais voluntário
e menos coercitivo do que as grandes organizações tradicionais –
54
partidos, sindicatos e igrejas. A cidade é cada vez menos um sistema
baseado nas grandes organizações, estruturando-se mais através do
conjunto de redes de atores institucionais e pessoais que se formam
nos âmbitos da economia, da cultura, da política e da ação
comunitária.
As transformações sociais urbanas situam o indivíduo, enquanto tal, no
centro das interações e relações sociais, e isto representa a crise dos
modos de vida urbana tradicionais.
Em algumas cidades que se definem mais por sua constante
transformação do que por sua ordem social, não existe, como observou
A. Touraine,40 nenhum outro lugar fora do próprio indivíduo em que seja
possível conjugar estratégias econômicas e identidades culturais. Um
novo direito específico emerge em nossas sociedades caracterizadas
pela globalização econômica e pelo encontro de culturas, o direito à
individualização, que segundo o citado sociólogo tem que fortalecer a
capacidade de cada ator individual ou coletivo alcançar a
individualização, isto é, dar um sentido geral e próprio ao conjunto de
condições das interações e comportamentos que formam sua
existência e, portanto, a transformam em uma experiência.
Neste sentido, as sociedades contemporâneas, ao se basearem mais
nos indivíduos do que nas grandes organizações (igrejas, sindicatos,
partidos...) e grupos sociais (classes, cooperativas profissionais, grupos
com status social elevado...), facilitam as relações horizontais entre a
cidadania e, com isso, a criação de capital social.
Por capital social se entende “as expectativas de cooperação
alimentadas por redes institucionais – as associações – que se
materializam em pautas de cooperação continuadas”.41
A geração de capital social, segundo o estudo de Putnam,42 é o que
explica o maior avanço econômico e social e a qualidade da vida
política democrática. A vantagem colaborativa é uma das principais
forças motoras do desenvolvimento social, econômico e político, com
um valor superior à disponibilidade de capital econômico e à oferta de
infraestruturas e serviços.
Gerar capital social nas cidades do conhecimento significa, hoje, em
primeiro lugar, capacidade para criar os espaços nos quais cristaliza o
movimento associativo. Porém, o florescimento de associações e seu
fortalecimento é uma condição necessária, mas não suficiente. Para
gerar capital social em uma cidade é preciso que exista ajuda mútua
entre associados e, muito especialmente, que as finalidades
associativas facilitem a cooperação para a produção de bens públicos.
Uma cidade cheia de associações com finalidades singulares ou
exclusivas para si mesmas será uma cidade com uma denominada
sociedade civil organizada, porém incapaz de cooperar e promover
confiança.43
A ampliação e o fortalecimento do tecido associativo para a geração de
capital social são um desafio inevitável para os governos locais que
pretendem desenvolver sua cidade na era do conhecimento.

40
Ver A. Touraine, Igualdad y Diversidad. México: F.C.E., 2001.
41
Ver C. Boix, Introdução ao livro Para que la democracia funcione. Barcelona: Ed. Proa, 2000.
42
Op. cit.
43
Ver Boix, op. cit., pp. 20-29.
55
Dizer cidades da informação e do conhecimento é o mesmo que dizer
cidades da educação, em que a educação geral aumenta notadamente
e, sobretudo, um grupo social cada vez mais numeroso dispõe de
educação superior que se recicla, necessariamente, em períodos
temporais cada vez mais curtos. Isto significa um aumento do que
Giddens denominou reflexividade social da cidadania. Nestas condições
a política democrática mais adequada é sem dúvida a que se baseia na
autonomia dos cidadãos, na sua liberdade, não apenas de eleger, mas
também de produzir a opção mais interessante. A chave consiste na
educação e na cultura de valores e solidariedade que permitam
articular a autonomia como base de uma interdependência geradora
de confiança, colaboração e sentido comunitário, potencializando de
forma equilibrada o reconhecimento de direitos com os deveres ou
responsabilidades cidadãs.
Uma sociedade educadora dificilmente é compatível com a visão de
uma gestão pública distante das preocupações e demandas dos
cidadãos, como tampouco é compatível com um sistema de garantias
de Direitos e Responsabilidades organizado com base no Estado-Nação
e concebido de cima para baixo. A democracia não apenas não corre
perigo em um mundo global na era do conhecimento, como pode ser
fortalecida e aprofundada se o governo democrático for concebido
como um governo de proximidade, capaz de articular interesses e
gerar colaboração e corresponsabilização. Ou seja, a democracia na
nova cidade significa descentralização de competências e recursos
para os governos locais, para que eles possam, como veremos,
inaugurar uma nova forma de governar baseada na gestão de redes
cidadãs.

Risco e vulnerabilidade social

O desenvolvimento da sociedade-risco impacta a nova estruturação


das relações sociais. Por um lado, a vulnerabilidade é consequência da
individualização das relações sociais em um tempo de flexibilização da
estrutura ocupacional, no qual as transformações econômicas e
tecnológicas são constantes. Por outro, entretanto, a vulnerabilidade
cria uma nova cultura de provisoriedade que está favorecendo tanto as
respostas do tipo intimista, que buscam a segurança no próprio “eu” -
seja do tipo espiritual, como o budismo, as interpretações subjetivas do
cristianismo, as psicológico-terapêuticas do tipo autoajuda, ou o apoio
emocional. Ou, ainda, respostas do tipo social, criando culturas
positivas para a mudança e inovação de natureza pessoal e, em
especial, criando ou participando nas organizações sociais de caráter
setorial ou territorial que estão na origem do aparecimento das teorias
sobre o capital social e do novo impulso comunitário tão em voga na
sociologia atual. Esta, sem dúvida, é uma perspectiva a ser
incorporada nas políticas sociais urbanas que tenham como objetivo
fortalecer a sociedade civil, e que são as que podem ser mais eficazes
na cidade contemporânea.
A vulnerabilidade social se associa diretamente a outra característica
da vida urbana atual, que é o risco. O fato de entendermos nossas
sociedades como sociedades de risco deve-se, fundamentalmente, às

56
pesquisas e reflexões de U. Beck.44 Este professor da Universidade de
Munique considera o risco como uma característica própria da cidade
que se volta em direção ao futuro e que rompe efetivamente com o
passado, com suas tradições e costumes. Não se trata de um risco
externo à cidade, mas de riscos produzidos pela própria cidade em
transformação, como a mudança nas relações familiares, na produção,
na nossa intervenção no meio ambiente, nos sistemas de proteção e
segurança social, na ruptura com as tradições. Trata-se de um risco
produzido pela própria cidade (desenvolvimento da indústria genética,
insustentabilidade, nova pobreza...).
Sociedade-risco significa que os conflitos sociais deixam de ser
tratados como problemas de ordem e segurança e começam a ser
considerados como problemas de risco. O que significa que não têm
soluções preestabelecidas e inequívocas, mas que se distinguem por
sua ambivalência e podem ter suas “soluções” expressas em termos de
probabilidade.
Assumir socialmente o risco significa optar por inovação45 e criação, e
buscar a segurança assumindo os riscos e abandonando as certezas da
sociedade industrial, afrontando e tentando dirigir as transformações.
Em outras palavras, trata-se de construir um projeto coletivo para dar
intencionalidade às ações dos atores urbanos que são as geradoras de
risco. Não optar por um projeto de futuro integral e integrador significa
dar mais possibilidades ao desenvolvimento, em nossas cidades, das
opções negativas de enfrentamento do risco, como o fundamentalismo
– entendido como defesa de tradições inadequadas, por não serem
mais funcionais para a garantia da qualidade de vida na cidade –, ou o
racismo, como forma de culpar terceiros pelos riscos de perda dos
costumes e tradições supostamente autóctones.

Imigração: identidade e multiculturalidade

O baixo crescimento vegetativo da população nas cidades europeias,


conjugado ao incremento da oferta de postos de trabalho pouco
qualificados e ao forte incremento da população ativa sem
possibilidades de ocupação nos países pouco desenvolvidos, explica o
importante fenômeno imigratório que está ocorrendo em direção às
principais cidades europeias.
Para entender este fenômeno e adotar uma perspectiva adequada ao
seu tratamento é preciso perceber quatro questões importantes:
 Mais do que um problema, a imigração será uma solução
sempre que coincida com a existência de postos de
trabalhos suficientes para serem oferecidos à população
imigrante, e desde que não exista concorrência entre
imigrantes e a população local. A disputa por postos de
trabalho é a principal fonte de conflitos e segregação,
que se expressa não poucas vezes em termos racistas
por parte da população local com menor nível de
qualificação. A correlação que os estudos sociológicos
têm demonstrado no sentido de que um maior nível de
44
U. Beck. La sociedad del riesgo. Madri: Ed. Paidós, 1992.
45
As respostas aos novos desafios e riscos a partir das visões e certezas das políticas próprias da
sociedade industrial e do Estado do Bem-estar contribuem para o colapso social.
57
escolaridade corresponde a atitudes menos xenófobas
encontra explicação no fato de que a população
qualificada não entra em disputa com os imigrantes, já
que esta em sua grande maioria é uma força de trabalho
de baixa qualificação.
 Em segundo lugar, os baixos níveis de renda e a
necessidade de encontrar grupos com a maior afinidade
possível para relacionar-se fazem com que em todas as
cidades existam sempre determinados bairros que
funcionam, efetivamente, como receptores de
imigrantes. Se a situação de uma boa parte dos
imigrantes é de pobreza ou de extrema pobreza e os
governos locais não dispõem de recursos para investir na
renovação urbana, serviços e equipamentos, tais bairros
se degradam e a população local passa a atribuir à
imigração tanto a degradação de suas condições de vida
e de valor dos seus imóveis como a segregação social
dos mesmos, particularmente se existe a presença de
atividades ilícitas e o bairro é rotulado como perigoso.
Em muitas ocasiões os conflitos nesses bairros são
rotulados como racistas, o que leva à segregação de
seus moradores em dois grupos antagônicos, à
intensificação e ampliação dos mesmos e, o que é mais
importante, a uma concepção inadequada de sua
natureza, o que dificulta encontrar uma solução baseada
em acordo.
 A imigração estrangeira (e, em especial, a que vem de
lugares com idioma e religião significativamente
diferentes aos do país receptor) se relaciona a setores da
sociedade receptora como fator de perda de identidade,
de tradições e costumes. À parte a debilidade histórica e
sociológica desta argumentação, posto que as
configurações culturais e idiomáticas de um país em um
momento dado costumam ser produto da interação de
realidades culturais plurais ao longo de sua história, é
certo que hoje (como consequência da globalização e do
encontro cultural ao nível planetário, assim como da
individualização das relações sociais) nos encontramos
diante de uma reafirmação da identidade ou
singularidade territorial e cultural.
 Esta identidade entendida como sentimento de
pertencer, como uma expressão de singularidade
cultural que interage no interior da cultura universal em
constante mudança, conduz à modernidade e à
convivência e criatividade cultural, e à globalização da
diversidade, segundo os especialistas.46 Porém, sem uma
política ativa de respeito ao pluralismo e de tolerância
cultural, facilmente podem unir-se, numa mesma visão
segregacionista, a reafirmação da identidade com a
defesa fundamentalista das tradições, costumes, e uma

46
Ver, por exemplo, U. Beck, La democracia y sus enemigos. Madri: Ed. Paidós, 2000, e M.
Castells, La era de la información. Vol. II. El poder de la Identidad. Madri: Ed. Alianza, 2001.
58
intolerância às expressões culturais respeitosas dos
direitos humanos dos novos cidadãos.47
Em resumo, a verdadeira globalização cultural acontece nos
municípios, nas cidades, que são o espaço de relacionamento, de
encontro, de formação de amizades e inimizades entre pessoas de
diferentes origens culturais. As cidades se encontram ante um
fenômeno com novas dimensões, e não somente o seu futuro
dependerá do tipo de ação coletiva que triunfe em cada uma delas e
das possibilidades de atuação dos governos locais, como dependerá
também a convivência do planeta, que cada vez mais é um sistema de
articulação de cidades.

Mudanças na família

A família formada por dois cônjuges e seus descendentes é, cada vez


mais, apenas um dos diferentes modelos de família que encontramos
na cidade atual. Sobressai o aumento das famílias monoparentais por
diferentes razões:
 O envelhecimento da população faz com que existam
cada vez mais famílias monoparentais pelo falecimento
de um dos cônjuges, geralmente o homem, devido à
maior expectativa de vida da mulher. Este fato se vincula
à separação física dos pais e filhos no território
metropolitano. Isto dificulta a ajuda mútua no seio da
família e, portanto, gera maior dependência dos serviços
sociais.
 Por outro lado, há também o aumento das famílias
monoparentais chefiadas por jovens, principalmente de
mulheres com filhos, devido ao rompimento do
casamento. Este tipo de família é consequência direta do
processo de emancipação das mulheres.
Em um patamar inferior ao das famílias monoparentais, porém
em ascensão, encontramos famílias polinucleares, nas quais
convivem chefes de família de diferentes núcleos familiares. Esta
é uma das consequências da pobreza em que vivem muitos
imigrantes, que se veem obrigados a reagrupar distintas famílias
ou membros de distintos núcleos familiares em uma só família.
A existência de casais de fato, ainda em que muitas cidades
tenha pouca relevância estatística, é sem dúvida um fenômeno
com tendência a crescer, particularmente se tomamos como
referência o que ocorreu nos países do norte da Europa.
Este crescimento da tipologia familiar tem consequências muito
importantes, que superam as evidentes implicações para o mercado
imobiliário e se vinculam à programação de novos serviços de
assistência e, muito especialmente, ao estímulo dos processos de
ajuda mútua extrafamiliares, em particular nos bairros e setores
sociais.
Por outro lado, em uma perspectiva de apoio social que considere a
grande maioria da cidadania, o pluralismo no convívio em nossas
cidades faz com que se tenha que falar mais de políticas de família do
que de política de apoio à família.
47
Ver G. Sartori. La sociedad multicultural. Madri: Ed. Taurus, 2001.
59
A cidade à medida das mulheres

Observamos a importância da emancipação das mulheres, ao nos


referirmos ao processo de individualização das relações sociais e às
mudanças na tipologia das famílias na cidade contemporânea.
Porém, é necessário dedicar uma seção específica ao que, sem dúvida,
é o processo de mudança mais importante nas relações sociais que
atualmente está acontecendo nas cidades do Ocidente: a chamada
revolução das mulheres.
Trata-se de uma revolução pacífica, profunda e perseverante que está
revolvendo as relações de autoridade e poder que se assentam e se
reproduzem nos espaços da vida cotidiana em nossas cidades.
O aparecimento da cidade está intrinsecamente ligado ao papel da
mulher. As cidades surgiram por volta do ano 7000 a.C., sendo
consideradas as primeiras Catal Huyuk, que se situava perto do Irã e
Iraque, e Jericó, atualmente na Palestina. Na cidade, zona de
intercâmbio de objetos entre nômades e caçadores, como pontas de
lança e peles, nasceu a agricultura, que fixou a população e cujos
produtos também passaram a ser objeto de comércio. A cidade cria a
agricultura e, portanto, a civilização. Entretanto, a origem da
agricultura e da cidade como promotora da civilização é a mulher.
Eram elas que se dedicavam à colheita e conservação de alimentos,
que começaram a plantar e inventaram a agricultura, permitindo assim
sustentar o crescimento demográfico das primeiras cidades. Nestas
não houve patriarcado e a principal protagonista foi a mulher.48
A mulher deixou de ter um papel relevante quando a agricultura se
estendeu para fora das cidades e se converteu na atividade dominante.
Foi quando então apareceu o patriarcado, contemporâneo em muitas
sociedades primitivas do aparecimento da exploração. Desde então, a
história do autoritarismo, da repressão e exploração se relaciona à
dominação da mulher. As sociedades, ou etapas sociais de uma mesma
sociedade, mais repressivas e exploradoras coincidem com uma maior
intensidade na dominação da mulher. É difícil saber se foi a opressão
generalizada que gerou a dominação da mulher ou se a dominação
dela é que é a chave para entender o aparecimento do autoritarismo.
O certo é que no Ocidente, nos países do Primeiro Mundo inseridos na
era infoglobal, o processo de emancipação da mulher está significando
a quebra das relações de autoridade e dominação estabelecidas na
sociedade industrial, está mudando a estrutura do mercado de trabalho
e dá sustentação ao surgimento de novas relações sociais e familiares.
A cidade infoglobal pressupõe a entrada massiva da mulher no
mercado de trabalho. Na maioria dos países do Primeiro Mundo, o
número de mulheres nas universidades é superior ao dos homens há
muito tempo. A população feminina tem maior êxito escolar que a
população masculina. Isto, evidentemente, não significa que na maioria
das cidades as desigualdades de gênero e o domínio masculino nos
postos de direção das empresas e instituições públicas ainda não
sejam notórios, mas o que nenhum analista pode deixar de ressaltar é
o processo de mudança em curso.

48
Ver E.W. Soja. “La mujer dominó las primeras ciudades”. Entrevista em La Vanguardia, 8/8/2001.
60
As transformações urbanas anteriormente apontadas, como a
individualização das relações sociais, o aparecimento de novos tipos de
família, a criação de capital social etc. estão intrinsecamente ligadas
ao processo de emancipação da mulher.
Entretanto, o mais interessante é que o movimento de mulheres tenha
se voltado recentemente para a análise da cidade – da sua morfologia
até seus conteúdos, das infraestruturas à cultura, do seu passado ao
seu futuro – e desenvolva suas perspectivas de ação a partir do ponto
de vista da mulher.
A visão da mulher perpassa a cidade em sua totalidade. 49 Os espaços
públicos, a moradia, a mobilidade, a assistência social e a saúde, a
educação e a cultura, o turismo... tudo é repensado a partir do seu
ponto de vista. Estamos diante do posicionamento mais amplo e
integrador que um movimento social jamais fez sobre a cidade,
justamente pela ampla diversidade de “papéis” que as mulheres
assumem na cidade: estudante, trabalhadora, mãe...
Por outro lado, a visão da cidade a partir da perspectiva das mulheres
integra outros pontos de vista sobre a mesma. Este é o caso da cidade
das crianças formulada pela pedagogia ativa; em sua condição de mãe
e educadora, a mulher assume a postura de forjar a cidade a partir da
condição dos meninos e meninas. Ela também assume as posições
sobre a acessibilidade defendidas pelo movimento urbano
protagonizado por pessoas portadoras de necessidades especiais, ao
coincidir no tempo as necessidades de mobilidade de todas as
mulheres no período de gestação e maternidade com as das pessoas
com problemas físicos. Assume, igualmente, as políticas por mais bem-
estar e autonomia dos idosos, em razão da sensibilidade derivada do
seu papel de guardiã da família, que a divisão social do trabalho lhe
impôs.
A emancipação das mulheres e, em especial, os avanços na igualdade
de gênero em que o homem também assume novos papéis e
perspectivas, contribuirão sem dúvida para o fato de que tanto
mulheres como homens assumam um projeto de cidade mais
equilibrada, acessível, sustentável e equitativa, isto é, um projeto de
cidade de todos.
A Cidade do Conhecimento pode encerrar o ciclo que se iniciou logo
depois que as mulheres inauguraram as civilizações, o fim da era
patriarcal, mas o mais certo é que hoje as mulheres já estão
reestruturando as relações sociais e os modos de conceber a vida
cotidiana.
Muito embora para isso a política de igualdade de gênero deva
contemplar hoje, mais do que nunca, ações positivas para os coletivos
de mulheres em posição mais desfavorável do ponto de vista da
emancipação da mulher. Em especial, o impacto na desigualdade das
mulheres imigrantes, que vivem em maior nível de pobreza econômica
e relacional associado a uma maior relação de dependência aos
homens.

49
Ver as conclusões do I Congresso das Mulheres de Barcelona. Prefeitura de Barcelona.
61
Uma nova visão do tempo e espaço

O progressivo avanço na direção da cidade da informação e do


conhecimento significa a ruptura dos modelos referenciais de espaço e
tempo próprios da cidade industrial.
Entre tais mudanças, podem ser destacadas as seguintes:
 Rompe-se a separação, ao longo da vida, do tempo de
aprendizagem, tempo de trabalhar e tempo de
aposentar. A aprendizagem ocorrerá ao longo de toda a
vida, e será combinada com o tempo de trabalhar e
também com o tempo de aposentadoria. Por sua vez, o
tempo de trabalhar se combina com o lazer e a
qualidade de vida. A aposentadoria rompe os rígidos
condicionantes da idade e se estende ou se reduz,
atendendo, cada vez mais, a situações concretas e,
inclusive, individuais.
 Todos os tempos da vida se fazem presentes em um
momento dado e se tornam interdependentes.
 Aparece uma nova relação tempo/distância. As
tecnologias da informação permitem o funcionamento
em tempo real da economia, das relações sociais. A
comunicação é feita de modo imediato e as distâncias se
aproximam através da comunicação escrita, sonora e
visual.
 O trabalho tem uma continuidade permanente ao longo
do espaço. As diferenças de horário entre os continentes
permitem a continuidade nos trabalhos, nas empresas
de conhecimento que trabalham em rede, uma vez que
um mesmo projeto pode ser continuado ao finalizar a
jornada de trabalho em outro país com diferença horária.
 O fim da divisão entre espaço de trabalho e o espaço
doméstico, devido ao fato de que as Tecnologias da
Informação e da Comunicação (TIC) permitem às equipes
trabalhar em rede em espaços diferentes e conectar-se a
partir de qualquer lugar e em qualquer momento.
 As TICs permitem em boa medida criar um ambiente do
“lá” no “aqui”, acompanhando as notícias, criando um
ambiente de música e de comunicação, de tradição;
permitem a vivência de culturas diferentes num mesmo
espaço.
Estas rupturas espaço-temporais apenas começaram e ainda é cedo
para identificar com clareza as mudanças em profundidade que serão
capazes de introduzir nas relações sociais e na dinâmica das cidades.
Mas qualquer estratégia urbana deve estar atenta para tais
transformações e seu impacto social para que a cidade possa ser
direcionada a metas de autonomia dos cidadãos e progresso social.

62
A centralidade dos valores na organização social

A emergência da ética dos valores, inclusive acima da ética das


normas, é mais uma característica da sociedade contemporânea.
A questão ética na gestão pública e privada e, em geral, sua
revalorização social não são consequência de uma reação social à sua
ausência nos comportamentos econômicos, sociais e políticos – que é,
de fato, um tema muito discutível –, mas se deve, fundamentalmente,
a dois temas estruturais:
 A inovação social
 O desenvolvimento da indústria genética
O intenso e extenso processo de inovação econômica e social rompe os
hábitos e normas de comportamento estáveis para gerar um ativo, ou,
inclusive, proativo processo de adaptação permanente a mudanças e a
novos desafios sociais. A mudança, ainda que possa parecer uma
contradição em termos, é a constante das novas cidades. Por isso, suas
regras e normas são um instrumento inadequado para os
comportamentos sociais, econômicos e políticos. Vem daí a
necessidade de se enfatizar os valores que inspiram e são marcos de
referência para a constante geração e readaptação dos sistemas e
normas de comportamento social e de gestão empresarial e
institucional.
No âmbito empresarial surgiu um novo tipo de gestão:50 a gestão por
valores, que visa a dar um novo quadro de referência para os
empregados, diretores, acionistas, fornecedores e clientes em um
ambiente de mudanças tecnológicas, culturais e pessoais. Mudanças
que, sem dispor de referências, provocam insegurança e ansiedade em
todos os grupos que formam a empresa.
A formação baseada em valores é o que melhor pode orientar os
cidadãos – cada vez menos incorporados às grandes organizações
sociais – a renovar seus processos de socialização.
A educação aparece outra vez como o novo fator crítico para a nova
sociedade, mas desta vez a educação orientada para valores. A
pergunta que segue é óbvia: quais valores promover? Como promover
valores e evitar os conflitos éticos e culturais em países cada vez mais
multiculturais? A resposta ainda é mais óbvia que a pergunta:
tolerância e respeito ao pluralismo, solidariedade, conhecimento e
racionalidade, liberdade e equidade. Em outras palavras, fortalecer os
direitos humanos e os valores que os fundamentam, pois são, como
demonstrou A. Sen, entre muitos outros, uma aspiração
verdadeiramente universal.51 Uma só proibição: proibido proibir. Uma
só intolerância: não tolerar a violação dos direitos humanos.52 Tudo o
mais – línguas, religiões, artes, vestimentas – são fatores de
conhecimento e enriquecimento cultural. A educação, ou melhor dito, a
socialização através de valores estruturados a partir da tolerância
entre diferentes grupos sociais e culturais, deve ser objeto de um

50
K. Blanchard e M. O’Connor, Dirección por valores. Barcelona: Gestión 2000, 1998.
51
A. Sen, Desarrollo y Libertad. Barcelona: Ed. Destino, 1998.
52
W. Kymlicka explica como coexistem os direitos das minorias com os direitos humanos e
também como os direitos das minorias estão limitados pelos princípios de liberdade, democracia e
justiça social. Ver seu livro La ciudadanía multicultural. Madri: Ed. Paidós, 1995.
63
grande pacto social entre todos aqueles que atuam no espaço das
interações sociais cotidianas: a cidade.
A reafirmação de valores vem, por sua vez, motivada pelo
desenvolvimento da investigação genética humana e, em especial, de
suas aplicações, do desenvolvimento de uma nova indústria e, com ele,
de um novo mercado global: o dos produtos genéticos aplicados aos
homens. Este novo setor econômico provoca, neste caso em escala
global, o estabelecimento dos valores que fundamentam um
comportamento ético e códigos de conduta que permitem diferenciar,
nas áreas da saúde e da agricultura, as aplicações benéficas das
perversas – como a criação de subespécies humanas. O
desenvolvimento desta indústria condiciona a centralidade dos valores
como guia consciente da ação humana nos âmbitos local e global.

A globalização do social

Sem dúvida, um dos principais desafios relativos ao futuro apontados


pelos governos urbanos é a mundialização das políticas sociais, das
políticas urbanas de impacto integrador.
Como já assinalamos, a globalização é econômica, mas também
tecnológica, informativa e cultural. As transformações que nos afetam
não se reduzem a uma zona do planeta, mas se estendem a todas as
partes, ainda que sua influência nas estruturas econômicas, sociais,
culturais e familiares seja diferente em função das coordenadas
geográficas e culturais dos países.
A globalização tem, naturalmente, aspectos positivos como o
crescimento da riqueza, a inovação e o desenvolvimento tecnológico, a
superação das fronteiras e as novas possibilidades de encontro entre
culturas. Entretanto, é verdade que os efeitos da mundialização são
muito desiguais, e a globalização significa novas formas de exclusão e
pobreza para muitos países. A globalização significou maior
marginalização para a África Subsaariana – consumo abaixo do
equivalente a um dólar americano – e alcança 215 milhões de pessoas,
na Ásia atinge 550 milhões e na América Latina, 150 milhões de
pessoas.53
A globalização em seus aspectos econômicos e tecnológicos está
transformando o próprio conceito de pobreza. Esta já não se entende
como associada ao desemprego, mas à estrutura da renda. Assim,
estima-se que, de cada dez famílias urbanas pobres na América Latina,
sete são pobres devido ao baixo rendimento do trabalho, duas são pelo
desemprego de alguns de seus membros, e uma, por ser formada por
um número elevado de crianças. Os níveis de pobreza relativos à
América Latina são superiores aos dos 25 membros da União Europeia,
tomando por base o limiar de 60% da mediana da renda. A
comparação das médias simples de cada região mostra valores de 28%
da população na América Latina e 15% para a União Europeia.54
É um equívoco considerar a existência apenas de uma via ou de um só
caminho predeterminado no desenvolvimento da globalização, e que
esta, inevitavelmente, gera mais desigualdade e exclusão. Há uma

53
Dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD.
54
Dados da Cepal, 1998 e 2006.
64
pluralidade de vias para organizar a crescente interdependência das
distintas partes do mundo. As estratégias de ação são hoje possíveis e
devem ser dirigidas para a transformação necessária e eficaz da
organização social do mundo. Um dos principais atores desta
transformação são as cidades, e, muito especialmente, as políticas e
estratégias urbanas.
Já afirmamos que o global emerge do urbano. Por isto, com a
organização da cidade e com o modelo de desenvolvimento que nossas
cidades escolherem, é possível contribuir de maneira decisiva à
organização da sociedade futura em nível mundial. As cidades formam
uma rede de nós urbanos, com distintos níveis, com distintas funções,
que se estendem por todo o planeta e que funcionam como centro
nevrálgico da nova sociedade mundial.
Deste ponto de vista, é um erro de graves consequências sociais fixar-
se apenas nos aspectos da concorrência entre as cidades, como tantas
vezes se faz, e deixar de contemplar e fortalecer as relações de
complementaridade e colaboração entre elas.
As cidades, e em especial os governos urbanos responsáveis, devem
assumir de maneira progressiva a gestão dos processos de suas
próprias mudanças e, de maneira coordenada entre elas, o avanço na
direção de uma maior coesão social em nível continental e
intercontinental. Os governos das cidades devem articular a ação local
com a global.
Neste sentido, na primavera do ano 2000, as principais federações e
associações internacionais de cidades se reuniram em Valência a
convite do governo da cidade, no contexto do seu Plano Estratégico. Ali
criaram as bases de um movimento internacional de cidades, que inclui
as associações mencionadas ou redes mundiais de cidades existentes,
com o objetivo comum de assumir como prioridade sua ação de
globalização do social, para que as cidades assumam uma posição
relevante na construção da solidariedade mundial.
Construir uma globalização mais integradora a partir das cidades
significa que cada cidade adote uma visão ampla do desenvolvimento
urbano, tecnológico, econômico, social, cultural e educativo, guiado por
valores de sustentabilidade, equidade e pluralismo, e baseado na
colaboração e confiança entre os atores urbanos e no envolvimento da
cidadania.
Os desafios sociais urbanos que um movimento internacional e
pluralista de cidades deveria priorizar, por serem os mais comuns, são
os seguintes:
 A política de moradia e, em especial, a reabilitação e
revitalização dos bairros urbanos.
 A segurança cidadã que contemple aspectos de
prevenção e promoção social.
 A geração de oportunidades de emprego.
 A convivência na diversidade cultural.
Segundo a área de Análise e Previsão da Unesco, dar um teto digno a
todos significaria construir nos próximos 40 anos o equivalente a mil
cidades de três milhões de habitantes, ou reconstruir boa parte das
cidades existentes.
65
É necessário desenvolver políticas de moradia a preços reduzidos e
para todos, e fazer isto do modo mais sustentável do ponto de vista
ambiental. É preciso criar espaços públicos de qualidade que atuem
como lugar de encontro, convivência e colaboração entre os cidadãos,
e nos quais se pratiquem a democracia e o respeito à diversidade como
forma de enriquecimento cultural.
Os governos locais devem contribuir para reduzir e superar o apartheid
urbano. A polarização social de muitas cidades e a segregação social
do espaço urbano estão na base do surgimento dos “enclaves
privados” protegidos por forças de segurança próprias. Estes enclaves
são social e culturalmente homogêneos, como o são os subúrbios
pobres, e a ampliação de uns e outros significa o desaparecimento dos
espaços públicos que são a base da cidadania.55
Superar estes enclaves de exclusão significa proporcionar segurança
cidadã. A segurança urbana tem três componentes – os três “P” da
segurança: Proteção aos cidadãos, porém num sentido amplo. Que os
cidadãos se sintam seguros ante o delito e a violência, mas também
frente a catástrofes, enfermidades, envelhecimento etc. Para isto é
necessária a prevenção, no sentido da antecipação, mas também a
promoção social dos socialmente segregados. Devemos ter sempre
claro que são os processos de marginalização e exclusão social que
explicam em grande medida a delinquência urbana.
Reduzir as condições de exclusão significa, além disso, gerar novas
oportunidades de ocupação e de coesão no tecido social para inserir as
pessoas na comunidade. Para o primeiro, é necessário gerar
investimentos produtivos e desenvolver a educação. Educação
permanente ao longo de toda a vida para todos os cidadãos e cidadãs,
baseada nas quatro aprendizagens que o informe Delors para as
Nações Unidas aponta: aprender a fazer, aprender a conhecer,
aprender a ser e aprender a conviver.
Esta última aprendizagem é a que permite que o agrupamento de
pessoas de diferentes procedências geográficas e origens culturais
construa a nova cultura urbana, transformando com criatividade e
pluralismo cultural, e em convivência com a diversidade, o que poderia
se tornar um choque entre culturas.
Os desafios sociais urbanos são interdependentes, condicionam-se,
razão pela qual é preciso, como dito anteriormente, dar-lhes uma
solução integral em um projeto de desenvolvimento urbano. Este
projeto deve aglutinar e coordenar os esforços de todas as
administrações envolvidas, de todos os atores privados e de toda
iniciativa social que interfira na transformação da cidade. Logicamente,
a direção deste projeto deve ser exercida pelo governo democrático
mais próximo dos cidadãos, que é o que melhor pode organizar a rede
de atores envolvidos.

Mudanças nas formas de prestação e gestão dos


serviços de bem-estar social

Foram introduzidas importantes modificações na gestão pública dos


serviços na área do bem-estar social na década de 90 do século XX. Do
predomínio da gestão pública direta dos serviços, passou-se,
paulatinamente, à gestão indireta ou contratação externa para a
55
F. Mayor, Un mundo nuevo. Unesco, 2000.
66
gestão de serviços financiados com fundos públicos. Esta contratação
fez com que surgisse o setor privado, tanto com finalidades lucrativas
quanto não lucrativas, como opção para a gestão de serviços públicos
terceirizados.
Por outro lado, a ampliação de determinados benefícios sociais a vários
setores da população também favoreceu os serviços de bem-estar
social financiados pelo setor privado por sua rentabilidade. O setor
privado foi também favorecido pela extensão da responsabilidade
social corporativa das empresas, através da qual as empresas decidem
de maneira voluntária integrar a realização de uma série de objetivos
sociais em suas operações comerciais e produtivas, e nas relações com
seus interlocutores.
Por último, os processos de individualização, não de individualismo
social, e a crise das grandes organizações sociais – partidos, sindicatos,
igrejas – fez surgir uma nutrida oferta de associações e movimentos
sociais que têm como finalidade contribuir para a resposta aos desafios
sociais que as cidades apresentam.
Tudo isto leva a que estejam sendo produzidas mudanças nas
respostas da sociedade aos desafios sociais. Na atualidade, nenhum
setor, seja público ou privado, dispõe de toda a informação e, muito
menos, da capacidade de atuação para fazer frente às demandas da
sociedade.

Conclusão: da gerência à governança

Hoje é preciso trocar o modo gerencial de governar pela gestão


relacional ou das interdependências próprias da governança. As
principais razões são:
 Estamos diante de novas formas de desigualdade e pobreza,
distintas do não acesso a determinado nível de benefícios
econômicos e serviços que justificaram o aparecimento do
governo provedor. Ante as novas formas de desigualdade
relativas ao capital cultural e social e à dualização digital
etc., a prestação pública continua sendo necessária, mas é
absolutamente insuficiente.
 O surgimento de desafios e necessidades intangíveis torna
ineficaz uma ação baseada nos recursos econômicos e na
prestação de serviços.
 O gasto público, que supera 50% do PIB, pode crescer, mas
de maneira lenta. Já as necessidades e desafios sociais
disparam. Isto é, as necessidades crescem em proporção
geométrica enquanto os recursos públicos crescem em
proporção aritmética. O crescimento das necessidades
sociais e a busca de novos caminhos para sua satisfação são
sinônimo de progresso.
 A multiplicação de agentes no âmbito do bem-estar social
implica o reposicionamento do papel do governo para
assegurar a qualidade e a coordenação da oferta para que
esta possa chegar a todos e, especialmente, aos cidadãos
mais necessitados e vulneráveis.

67
Tudo isso exige um novo posicionamento do governo local. Este deve
priorizar seu papel de organizador de uma resposta coletiva. O novo
papel do governo é o de promover e articular a construção coletiva da
cidade, especialmente do bem-estar social.
Assumir esta posição exige, como veremos, atuar em muitas direções e
dimensões. Uma delas é a dimensão política. A necessidade de
qualidade da representação política e da cidadania, o novo papel que
deve ter o político eleito com responsabilidades de governar e o tipo de
liderança que deve exercer são exigências das quais não se pode
escapar para alcançar o desenvolvimento da governança, embora em
muitas ocasiões se tenha evitado o tema e privilegiado as abordagens
técnicas, metodológicas ou da organização da participação social. Por
isso vamos tratar em detalhes estes temas nos próximos capítulos.

68
4. A revalorização da
política no Governo
Relacional

69
Ideias Principais

1. Crise da política em razão da


permanência do governo
provedor e gestor.
2. A democracia é básica para o
desenvolvimento econômico na
sociedade-rede.

3. O governo relacional é uma


oportunidade para fortalecer a
qualidade democrática.

4. A política democrática é
entendida, prioritariamente,
como capacidade de
representação.
5. A participação é básica para
assegurar a boa representação.

6. Um novo papel para o político


local é chave para a qualidade
democrática.

70
A governança democrática requer a revalorização da política e do
político eleito, ao situar as relações entre o governo e a política de um
modo muito diferente do governo provedor e gestor e, muito
especialmente, do modo gerencial de governar.

O governo provedor e a crise da política local

A crise do governo que estabelece a relação principal com a cidadania


através da oferta de recursos financiados com fundos públicos e da
gestão de serviços públicos, como já observado, deve-se ao fato de
que o gasto público sobre o PIB atinge cifras próximas ou superiores a
50%. Os governos já não podem confiar que os gastos públicos sejam
suficientes para satisfazer as necessidades sociais, cada vez mais
amplas e complexas. Por outro lado, a perspectiva da sociedade-rede
ou interdependente mostra que a resposta aos desafios sociais é
coletiva, uma pluralidade de atores intervém, e o envolvimento de
amplos setores da cidadania se torna necessário.
A continuidade do governo provedor e do modo gerencial de governar,
em especial, uma vez quebradas as bases que o sustentavam, provoca,
em boa medida, a desvalorização da política e do político vivida pelas
sociedades democráticas. Hoje, quando mais se estende a democracia
no planeta, menos valorizada ela se encontra em muitos países.
A substituição do governo provedor faz-se necessária para a
revitalização da democracia entre a cidadania pelos seguintes motivos:

 A política parece ser menos relevante no modo como as


pessoas veem os seus destinos individuais e coletivos. A
restrição da oferta de novos recursos sem visualizar um novo
paradigma de governo significa que os governos
democráticos não respondem às novas necessidades sociais,
o que acaba produzindo uma desvalorização e descrédito da
política e do político.

 O não cumprimento dos programas eleitorais: a desconfiança


na oferta política. A continuação de programas políticos
baseados na oferta de serviços para os quais não há recursos
provoca uma primeira reação de engodo, passa para a
desconfiança e pode chegar à indiferença e ao mais alto
absenteísmo dos cidadãos em relação à política.

 A diferenciação política pela desqualificação. Este é outro dos


efeitos da persistência do governo provedor. A ausência de
políticas inovadoras e não centradas em serviços e benefícios
para os que têm poucos recursos leva à não diferenciação
entre os programas eleitorais. A semelhança programática é
acompanhada em não poucas ocasiões pela diferenciação
pessoal, pelo insulto. As acusações constantes e não
comprovadas de corrupção ou desperdício entre os próprios
políticos produziram um grave retrocesso democrático e a
descrença nos valores da representação dos eleitos, que são,
nem mais nem menos, os valores da democracia. Os políticos
são a principal causa do seu próprio desprestígio.
71
 O comportamento político de “soma zero” ou “todos
perdem”. O sistema democrático é um sistema de ganhar-
perder. O número de vereadores, deputados e senadores é
fixado por lei; se um partido ganha deputados, outros
perdem. Em matéria eleitoral não se pode aplicar o ganha-
ganha, o que leva à dureza da luta política.56 Esta dureza, em
um contexto de modelo de governo inadequado e na
ausência de inovação política, se estende ao terreno da
desqualificação mútua dos contendores, e esta, por sua vez,
leva ao descrédito generalizado da política.

A democracia é básica para o desenvolvimento


econômico na sociedade-rede

Sen, Prêmio Nobel de Economia, sem dúvida é o economista que


estudou com maior profundidade a relação entre liberdade,
desenvolvimento e equidade.57 Para este autor, a democracia constitui
o principal meio para conseguir o desenvolvimento econômico e social.
Seus principais argumentos sobre o impacto da democracia no
desenvolvimento econômico são:
 Em primeiro lugar, assinala que o desenvolvimento não
pode ser entendido apenas como incremento da renda,
mas também como maiores oportunidades para a
equidade e bem-estar. Para Sen, o exercício dos direitos
e liberdades também tem um valor em si mesmo para a
vida e o bem-estar social.
 A democracia propicia que maior atenção seja dada às
necessidades das pessoas, entre elas a educação, a
saúde e os serviços sociais. Estes são fatores-chave para
a geração de capital humano que, juntamente com o
capital social, são as principais bases do
desenvolvimento econômico.
 A democracia permite o livre intercâmbio de valores e
ideias, a partir dos quais podem ser criadas prioridades
compartilhadas de grande alcance social e de grande
mobilização dos recursos humanos.
Aos argumentos de Sen podemos acrescentar outros que os
complementam:

56
Outra razão da crise da política, porém desvinculada do governo provedor, é a existência de
instrumentos políticos dos partidos, sem dúvida necessários à democracia, que não levam em
consideração a cidadania. O fato de que as cadeiras sejam em número fixo e, portanto, a
abstenção seja desconsiderada, leva a que a luta frontal entre os partidos não tenha muito em
conta a participação eleitoral e a opinião dos cidadãos. Chega-se, inclusive, a desenhar
estratégias eleitorais para aumentar a abstenção, o que é sem dúvida uma perversão. Para uma
estreita relação entre partidos e cidadania, assim como para limitar a luta virulenta pela vitória ou
a derrota apenas para o outro, talvez fosse conveniente vincular, em alguma medida, o número
de eleitos ao nível de participação eleitoral. Desse modo, havendo incremento do número de
eleitos pelo aumento da participação, existiria um motivo para os partidos colaborarem entre si e
uma maior sensibilidade em relação às preocupações cidadãs.
57
Ver especialmente o livro Desarrollo y Libertad. Barcelona: Ed. Destino, 1998.
72
 Castells observou, como principal fator da evolução dos
países da antiga URSS58 para a democracia, que os
regimes autoritários não podiam fazer frente ao novo
desafio da economia informacional, que exigia liberdade
de informação para poder produzir conhecimentos e
inovação.
 No mesmo sentido, Prats59 mostra como as relações
institucionais entre os atores ou, o que é o mesmo, o
modelo de interação deles, incide diretamente no
desenvolvimento econômico. O modelo de interação
revela a capacidade de inovação, a flexibilidade para a
incorporação de novos atores e a reforma das estratégias
dos atores tradicionais. O marco de interação determina a
classe de conhecimentos e habilidades necessárias para
adaptarmos à era infoglobal. As características do modelo
de interação hoje necessárias são: abertura, flexibilidade
e integração. Estas, como é óbvio, se baseiam nos
mesmos valores da democracia política.
 Putnam demonstrou que a maior capacidade de
colaboração entre os atores, que é o que se denomina
capital social, nas cidades do Norte da Itália, é o fator que
explica o desenvolvimento diferenciado em relação às
cidades do Sul.60 A democracia não só facilita a geração
destas vantagens colaborativas, mas também o capital
social, ao significar participação e colaboração cidadã,
que é condição para que a democracia funcione.
 O bom funcionamento das instituições facilita o
desenvolvimento econômico, como bem registrou o BID
em seu informe: “Mais além da política”, de 2000.
Concluindo, são justamente as instituições democráticas
as que melhor facilitam o desenvolvimento, ao possibilitar
uma representação efetiva e permitir o controle dos
políticos e governantes.
 Em um importante estudo empírico em 90 países, entre
1960 e 1989, Rodrik61 mostrou que os sistemas
democráticos contribuíam com quatro vantagens
econômicas frente aos autoritários: a variação do
crescimento a longo prazo era menor, a estabilidade a
curto e médio prazos era maior, as crises exógenas eram
melhor controladas e o nível de salários era mais elevado.
Ainda que Rodrik não aponte, estas vantagens sem
dúvida podem ser consequência das razões antes
enunciadas.
As razões pelas quais as democracias permitem articular o
desenvolvimento econômico com equidade e sustentabilidade são
ainda mais evidentes:
 As democracias, por respeito aos direitos civis e políticos
de toda a população, permitem levar em consideração os
58
M. Castells, La Era de la Información. Vol. 3. Madri: Alianza Ed., 2000.
59
J. Prats, Bolivia: El desarrollo posible, las instituciones necesarias. Barcelona: Instituto de
Gobernabilidad, 2003.
60
D. Putnam. Making Democracy Work. Princeton: Princeton University Press, 1990.
61
D. Rodrik, Democracy and Economic Performance. 1997.
73
interesses e necessidades dos grupos sociais mais
desfavorecidos. De fato, com as mobilizações dos
trabalhadores na Europa, foram incorporados os direitos
sociais aos direitos políticos e civis democráticos.
 Na busca da estabilidade política, os governos
democráticos tentam estabelecer amplos acordos e
alianças sociais, para o que devem articular diferentes
interesses sociais.
 Dotados de um maior poder político, os movimentos
sociais pressionaram para uma maior equidade na
distribuição da renda, no acesso igualitário aos serviços e
no respeito à sustentabilidade.
As oportunidades observadas nas democracias para impulsionar o
desenvolvimento econômico e social estão diretamente relacionadas
às possibilidades que oferecem para articular formas de interação
flexíveis e estáveis, baseadas na confiança e na cooperação, nas
possibilidades de articular diferentes interesses em amplos projetos,
na capacidade de mobilização e responsabilização da cidadania a
partir de valores compartilhados.
Em conclusão, o aproveitamento das potencialidades e oportunidades
do desenvolvimento econômico e coesão social depende da
capacidade de gestão das interdependências dos atores sociais e
institucionais. Esta gestão das interdependências é precisamente,
como vimos, o que caracteriza a nova arte de governar: governança ou
governo-rede, tal como indicou Mayntz, entre outros.62

O governo relacional necessita de qualidade


democrática

O governo assume um novo e singular papel, com o que adquire uma


nova importância política em sua qualidade de representante eleito:
assume o papel de articulador do interesse geral, a partir dos
interesses legítimos dos diferentes atores e setores da cidadania. O
governo já não deve imitar as empresas, mas inovar na sua relação
com a cidadania.
O governo já não vê a sua atuação limitada pela relação entre gasto
público e PIB, mas, sim, que pode assumir novas e complexas
necessidades a partir do envolvimento de todos os atores e setores que
influem favorável ou desfavoravelmente nas respostas às mesmas.
Os programas econômicos e sociais, pelas razões anteriores, podem
aumentar substancialmente o escopo dos objetivos de
desenvolvimento a serem considerados, podendo, portanto, se
diferenciar das propostas eleitorais.
As ações de governo sustentadas na definição de objetivos de
desenvolvimento humano, e não na prestação de serviços no território,
permitem uma maior e melhor colaboração em vários níveis de
multilateralismo entre governos. Isto é, entre governos locais, regionais
ou estaduais ou, ainda, entre governos do mesmo nível. Dá um
62
R. Mayntz, “Nuevos Desafíos a la teoría de la Governance” em Instituciones y Desarrollo. Nº 7.
Instituto Internacional de Gobernabilidad, 2000.
74
significado mais amplo e profundo à participação cidadã, entendida
como corresponsabilização da cidadania, e não simplesmente como
reivindicativa ou auxiliar das políticas públicas.

A política democrática como capacidade de


representação

A governança democrática exige o fortalecimento organizativo e da


representação da sociedade civil. A tarefa de construir o interesse geral
a partir dos interesses dos distintos atores e setores sociais é mais
efetiva se os diferentes interesses estiverem bem definidos e os
interlocutores representarem os diversos coletivos. Governança
democrática e capacidade de representação são conceitos que se
condicionam mutuamente. Maior representatividade, melhor
governança e vice-versa. De todos os modos, o papel determinante é o
da governança. Isto é, uma prática decidida do governo baseada na
gestão das interdependências tem, sem dúvida, efeitos organizativos e
de melhoria da representação da sociedade civil.
Porém, sem dúvida, o fator crítico para uma boa governança
democrática é a qualidade de representação do governante eleito. Se a
liderança na gestão das interdependências em um território pertence a
uma universidade, ao empresariado ou à igreja etc., estamos diante de
uma liderança corporativa, pois mesmo que ela se origine de uma
instituição democrática, seu representante foi eleito por empresários,
universitários, comunidade religiosa etc. Na verdade, o único
representante votado por todos os cidadãos e apenas enquanto
cidadãos é o político eleito. Apenas se este assumir a liderança,
existirão as condições para que a governança seja realmente
integradora.
Sem dúvida, um dos déficits democráticos que pode envolver a
governança é a exclusão dos setores que não dispõem de capacidades
organizativas ou de interlocução na defesa de seus interesses. O
político-governante caracterizará sua aposta na democracia através de
ações positivas que desenvolva para conseguir a melhoria da
capacidade de representação dos interesses de todos os setores e, em
especial, dos mais vulneráveis. Esta tarefa, ainda que se refira a todos
os âmbitos do governo local, corresponde muito frequentemente de
modo específico aos políticos com responsabilidades de governo nas
áreas de bem-estar social.
A democracia, como afirma com veemência Zafra,63 é representação.
Se esta falha, o que falha é a democracia. As denominadas
democracias participativas e deliberativas são, sem dúvida, aspectos
que contribuem para assegurar que se produza uma boa representação
ao longo dos mandatos entre as eleições, mas é muito pouco razoável
pensar que um complemento possa substituir o essencial, que é a
eleição do representante e a qualidade da representação como
ingredientes básicos da democracia.

63
M, Zafra, El Ayuntamiento como Gobierno Facilitador de Consensos. Barcelona: F. Pi i Sunyer,
2003.
75
Um novo papel para o eleito local

Em um governo relacional, cujo principal papel é organizar a


capacidade coletiva para promover o desenvolvimento humano, o
papel do eleito é justamente o de gestor64 dos processos das
interdependências dos distintos atores e setores da cidadania.
Para reger a articulação das interdependências, para encaminhá-las na
direção do desenvolvimento humano, o gestor municipal dispõe de sua
capacidade como produtor de legislação (que em um governo local é
pouco significativa, com exceção da área de urbanismo), de algum
recurso econômico que pode aplicar (cujo crescimento, como foi
apontado, tende a zero, ainda que a descentralização seja um tema
pendente na maioria dos países da UE e, particularmente, na Espanha)
e da legitimidade e reconhecimento como eleito (que na atualidade
está em crise, mas que pode ser recuperada).
Sem dúvida, é a legitimidade política que valoriza o papel nos
processos de negociação relacional, mediação e busca de acordo. A
valorização da política importa para que o eleito possa influir na
coordenação e mediação das relações entre os distintos atores.
Podemos agora dizer: a legitimidade importa para que o gestor possa
ser o organizador coletivo; porém, assumir o novo papel também é
fonte de legitimidade. O que, então, é mais importante ou tem um
papel determinante, se não quisermos cair numa tautologia?
Sem dúvida, ambos os processos interagem, mas o papel determinante
hoje, por parte dos políticos, é assumir a mudança do papel de eleito
local para o de gestor de recursos para a construção coletiva do
desenvolvimento humano e do interesse geral do conjunto do território,
ou de um setor de atividade. E fazê-lo dispondo das habilidades
específicas e das técnicas necessárias, o que propiciará a revalorização
e o reconhecimento da representação política, à qual a perspectiva do
governo relacional e a governança dão novas e renovadas
oportunidades.

64
Vereador, que na Espanha tem função executiva. No original, consejal, quer dizer o que rege ou
governa. Dicionário da Língua Espanhola.
76
5. A liderança do Político
Eleito na governança

77
Ideias principais

1. Liderança representativa: capacidade de


visualizar os interesses e habilidades da
cidadania.

2. A liderança representativa é relacional


e não dominadora ou substituta da
cidadania.

3. A liderança representativa é
capacitadora e não dominadora.

4. Saber a distinção entre os papéis do


político e do gerente é básico na
governança.
5. A liderança pela direção política e
moral.
6. O representante político é o principal
agente de mudança.
7. Uma nova tarefa política: tornar visível
o apoio social, para que a participação
possa fluir.

78
Capacidade de visualizar os interesses e
habilidades da cidadania
Existe uma infinidade de definições de liderança. Covey 65 seleciona 15,
mas elas se referem, em sua grande maioria, a lideranças em
empresas e grandes organizações. Para encontrar uma definição
adequada a um líder democrático é preciso recorrer ao que há de mais
elementar. Líder é aquele que conta com seguidores. Para um líder
democrático, os seguidores são os eleitores. Portanto, a liderança
política representativa será aquela que dispõe de eleitores que
consideram que seus interesses estão representados pela política da
pessoa a quem denominamos líder.
Isto significa que um líder político representativo não é tanto o que
conhece e oferece programas atraentes para ter um eleitorado, mas
uma pessoa capaz de fazer com que os atores sociais e o conjunto da
cidadania compreendam seus verdadeiros interesses, assim como suas
capacidades, de tal modo que sejam assumidas como próprias.
Para isto devemos saber fazer a distinção entre posicionamento e
interesse. Posicionamento é a reivindicação que um ator ou um grupo
social formula para defender seus interesses. O interesse é o que o ator
social realmente busca e deseja. Frequentemente, posicionamento e
interesse se confundem. O interesse poucas vezes é claramente
identificado em um conflito social. Nele, costumam entrar em
contradição os posicionamentos, mais do que os interesses. Apenas em
relação aos posicionamentos a luta é inevitável; com os interesses, o
acordo é possível.
Vejamos um exemplo. Um grupo de cidadãos de um bairro popular se
opõe à abertura de um centro de tratamento para dependentes
químicos. E a Prefeitura, apoiada pelas associações de familiares de
pessoas dependentes e outras associações civis, não quer desistir de
implantar o centro em um dos poucos espaços adequados existentes
na cidade. A partir daqui aparecem as acusações de que uns querem
prejudicar o bairro e de que aos outros faltam compreensão e
solidariedade, e o conflito acaba tomando corpo. Na verdade, os
interesses dos dois grupos são mais complexos e diversos e poucas
vezes aparecem expressos em conflitos. Os moradores do bairro estão
preocupados com a possível desvalorização de sua região e das suas
casas, o que é muito compreensível dado o preço da moradia e os
esforços necessários para pagá-la. Também estarão preocupados pelo
possível aumento da insegurança, devido a ser frequentemente
associado, no imaginário coletivo, o consumo de drogas com a
delinquência. Possivelmente também estarão preocupados com a
sujeira, pela deterioração dos padrões de comportamento atribuída a
essas pessoas e, obviamente, pelo aumento do tráfico de drogas no
bairro e que o consumo acabe chegando a seus filhos. Por outro lado, a
Prefeitura e as associações de familiares e outras organizações sociais
consideram que é necessário que a cidade disponha deste tipo de
equipamento e canalize suas esperanças de reabilitação, e que são
poucos os locais adequados e disponíveis na cidade para tal prática.

65
S.R. Covey, El 8º hábito. Barcelona: Ed. Paidós, 2005, pp. 391 a 400.
79
Estes interesses podem ser compatibilizados em um projeto integral
que dê segurança e contrapartida aos moradores do bairro para que
seus interesses sejam assegurados. Como, por exemplo, através da
construção de elementos simbólicos, espaços públicos, subvenções
para reabilitação de construções, medidas para melhoria do trânsito,
enfim, medidas que repercutam na manutenção ou melhoria do valor
do patrimônio imobiliário dos moradores. Além disso, podem ser
tomadas medidas que assegurem a implementação de políticas que
melhorem a segurança e desestimulem o consumo de drogas e,
também, de políticas que melhorem a limpeza no bairro.
Esta tarefa de identificar, através de espaços de deliberação e
mediação, projetos que compatibilizem interesses é, sem dúvida, uma
das principais responsabilidades da liderança representativa na
governança. Esta tarefa de identificação de interesses e mediação
deve ser uma função regular do governo local, sem circunscrevê-la ao
fato de que na situação conflituosa estejam envolvidas competências
legais ou recursos municipais. Ao contrário, é necessário que este tipo
de intervenção se torne referência para a criação de espaços de
intermediação sempre que as contradições entre atores tenham
impacto na configuração física ou cultural da cidade, ou ainda na
convivência entre grupos e setores da cidadania.
A tarefa de representação cidadã com base em interesses implica,
obviamente, a criação de espaços de cidadania, de participação, nos
quais haja deliberação e construção de conhecimento mútuo, confiança
e compromisso de ação. Neste sentido, a participação é um espaço
necessário e que torna possível a representação. Nunca pode ser
concebido, na democracia, como substituto da representação cidadã.
Podemos sintetizar a liderança representativa no seguinte esquema:

Conhecer desafios,
demandas, expectativas,
interesses…

ELEITO CIDADANIA

Transmitir a
potencialidade e
capacidade de ação
(possibilitar a ação da
sociedade)
Para uma tarefa de representação cidadã que tenha por objetivo o
envolvimento da cidadania no “fazer a cidade”, o eleito precisa de
métodos de participação que o ajudem a identificar os interesses que
se escondem por trás dos posicionamentos, e que os próprios
interessados possam reconhecê-los. Por sua vez, precisa ter
capacidade de análise e conhecimento dos conteúdos, para poder
desenhar os projetos de futuro que integrem de maneira complementar
e sinérgica os distintos interesses em jogo. O importante destas
técnicas não é que o político eleito tenha um conhecimento direto das
mesmas, mas que lhe sejam proporcionadas por profissionais da
gestão relacional que, sem dúvida, nos governos relacionais terão
80
maior relevância que os gestores de serviços, para poder dar apoio ao
trabalho de liderança, que é a tarefa própria e insubstituível do político
eleito.
Entretanto, em uma tarefa de gestão relacional, e em circunstâncias
em que não há prestação de serviços públicos, é essencial a
legitimidade do político eleito, que repousa na revalorização da política
e dos políticos, no comportamento como expressão de valores éticos e
na eficácia baseada no uso de novas metodologias e técnicas.

Uma nova visão do poder

A governança dá ao governo democrático uma nova relevância. Em um


governo cuja atuação tenha por base a provisão de recursos, a
limitação destes em relação ao PIB leva necessariamente à perda de
peso do governo democrático na sociedade. Contrariamente, a
perspectiva da construção do interesse geral em cada setor, em cada
projeto envolvendo os atores e buscando o apoio da cidadania, dá sem
dúvida um novo e renovado papel ao governo e à política democrática,
de muito maior alcance que o modo gerencial, e permite superar a
visão do público como um setor diferenciado, inclusive, em oposição ao
setor privado ou à iniciativa não lucrativa.
Este novo papel muda, naturalmente, a concepção que se tem do
poder. Se por poder se entende a imposição da própria vontade aos
demais, seja através da lei e da força ou de condicionantes produzidas
pelos recursos públicos, a governança significará, sem dúvida, uma
perda de poder. Em troca, se o poder é entendido como a capacidade
de fazer valer ou realizar os próprios interesses, o poder dos atores
sociais e do governo fica reforçado.66 O do governo, em especial, por
sua liderança na construção do interesse geral a partir dos interesses
legítimos e pela renovada relevância social dos políticos eleitos, que
melhora e legitima o “papel” do político na sociedade.

A liderança representativa é relacional

Vimos que a liderança representativa necessária à governança é


relacional; ela busca fortalecer as densidades de interação dos
distintos atores. Não procura substituir a sociedade com a sua
liderança e torná-la dependente de suas propostas e planos de ação.
O interesse do líder relacional será influir nas pessoas para que estas
enfrentem seus problemas. Em lugar de oferecer soluções, levantam
questões e, mais que solucionar conflitos, sua principal missão é propor
desafios coletivos.
Já foi dito que a liderança relacional constrói propostas compartilhadas
a partir da identificação de interesses, e não aspira a proporcionar
programas eleitorais para agradar a um eleitorado passivo, que elege
entre produtos em um mercado no qual não intervém como produtor.
Uma oferta de produtos que não se baseie no conhecimento profundo
dos interesses, necessidades e desejos da cidadania, converte a
dinâmica política em crescimento desmesurado e impossível de
66
Ver J. K. Galbraith, La Anatomia del Poder. Barcelona: Ed. Plaza y Janés, 1984, pp. 45-61.
81
propostas que não “satisfazem” a ninguém, e que em uma época de
poucos recursos deslegitimam a política eleitoral. O crescimento pelo
crescimento, como assinala Capra, é crescimento cancerígeno
(também em termos de propostas eleitorais), que mata a própria classe
política, e com ela, a democracia.67
Uma analogia com o esporte pode servir para ilustrar. A liderança
capacitadora é o jogador que arma o jogo de sua equipe para que
todos os jogadores obtenham o máximo rendimento de si mesmos. Ao
contrário, o dominador é aquele jogador que toda a equipe joga para
ele, para que seja decisivo. Por isto, a liderança dominadora crê que os
membros da sua equipe têm pouco valor e necessita que todos se
ponham a seu serviço, ainda que seja para o fim coletivo de vencer.
Frequentemente se entendeu a liderança como aquela situação na qual
uma pessoa tem a capacidade de expressar as necessidades e
sentimentos da coletividade, fazer propostas, desenhar o futuro da
coletividade e assumir todo o risco da sua realização, fazendo com que,
deste modo, a cidadania siga confiando nela. É a figura do líder
“caudilhista”. Em situações de crise aguda, esta liderança pode ser
possível, porém em absoluto é desejável, por suas conotações
autoritárias, e porque implica uma situação de desorganização social
ou comunitária. Por outra parte, em uma sociedade que avança na era
das redes e do conhecimento, este tipo de liderança é de todo
inadequado, produz graves fraturas no sistema de relações sociais e
dificulta a constituição de redes. O líder representativo também
necessita expressar os desafios, emoções e sentimentos da cidade,
porém o faz a partir da consulta, isto é, da construção coletiva.
Entenda-se bem. Em outras palavras, na busca do diálogo, da consulta,
da participação, sem deixar de dispor de ideias e de gerar emoções e
sentimentos. Sua liderança consistirá em saber identificar a visão de
futuro e saber convencer e comover a cidadania; porém, estas
características próprias da liderança, ao contrário do líder caudilhista,
serão obtidas através do diálogo e da consulta. Serão uma construção
coletiva na qual teve um papel facilitador, sem contudo perder a
capacidade de representar esta visão de futuro e gerar sentimentos e
ações coletivas. Do contrário, não poderá liderar a coletividade.

A liderança representativa é capacitadora

A boa atuação de um líder representativo se mede em função de que,


uma vez finalizada a ação, houve aumento do nível de organização e
envolvimento da cidadania. Ao contrário, uma liderança dominadora
avaliará sua ação em função do aumento de sua influência e domínio
entre a cidadania.
Para o líder eleito, nada do que acontece em sua cidade lhe é estranho.
Está claro que, na maioria dos casos, o que preocupa a cidadania não
será obrigatoriamente uma competência municipal, nem o município
necessariamente disporá de recursos para enfrentá-los, mas o líder
atuará como interlocutor de sua cidade frente a outras administrações,
facilitará o envolvimento de atores privados e amplos setores da
cidadania interessados para organizar a resposta e obter os resultados
esperados.
67
F. Capra, La trama de la vida. Barcelona: Ed. Anagrama, 1998.
82
O líder representativo constrói consensos e forja pactos e alianças,
obtém o apoio e envolvimento cidadão ao expressar as suas
necessidades e desafios e os assume como seu representante eleito.
A liderança política na governança pede uma cidadania ativa. A
principal finalidade de sua atuação é melhorar a capacidade de
atuação.
Fixará os objetivos políticos de tal modo que seus resultados envolvam
o conjunto da cidade. Não só se fixará nas competências legais ou na
disponibilidade de recursos municipais, mas em objetivos de
desenvolvimento humano no qual todos os setores da cidadania
tenham responsabilidades.
Seu êxito consistirá em apresentar os avanços conseguidos no
município, mais do que o cumprimento de algumas propostas eleitorais
que ninguém controla.
Continuando a analogia com a área esportiva feita anteriormente, o
líder representativo avaliará o êxito pela posição que sua equipe
conquistou na tabela de classificação. Já o dominador só se fixará em
seus resultados pessoais: gols, cestas, tempos conseguidos etc. Para
ele, o resultado da equipe é menos importante porque ela depende de
seus resultados pessoais.
A liderança representativa, isto é, relacional e capacitadora, tem em
conta que o cidadão atribui ao prefeito ou prefeita tudo o que acontece
na cidade. Seja positivo ou negativo, seja de competência municipal ou
não, as responsabilidades por ação ou omissão são atribuídas pela
cidadania ao prefeito ou prefeita. Para a cidadania é difícil identificar o
responsável por um equipamento ou serviço público no emaranhado de
competências existentes. É mais fácil que demonstre sua satisfação em
função de temáticas gerais da cidade: mobilidade, meio ambiente,
espaços públicos, emprego, prática esportiva e oferta cultural. Isto é,
aspectos importantes da vida cotidiana com grande capacidade de
produzir bem-estar; porém, esta é uma produção que envolve muitos
atores, e a tarefa do governo local é justamente gerir suas
interdependências para organizar coletivamente a produção do bem-
estar mencionado.

A distinção entre política e gerência

No modo gerencial de governar, próprio do governo provedor e gestor


de recursos, se confunde o papel do político e o do gerente ou, de
modo geral, do gestor. De fato, foi produzida uma subordinação da
política à gerência, valorizando-se muito mais o papel gerencial e
simplesmente de gestão do que o do político eleito com funções de
governo.
Esta subordinação da política à gerência assumiu formas diferentes. A
mais lamentável é o desprestígio do político eleito e sua
desautorização por parte dos profissionais da gestão. Outra tem sido o
fato de que os gerentes ganharam relevância sobre os políticos,
criando-se a figura do prefeito-gerente, ou do vereador-gestor. Este
enfoque tem sido acompanhado da tentativa de converter a prefeitura
numa empresa, em alguns casos, inclusive, como a maior empresa do
município.
83
O grande problema deste posicionamento, isto é, do modo gerencial de
governar, é que a prefeitura, e menos ainda os serviços de bem-estar
social, não são uma empresa, e querer torná-los semelhantes levou em
muitos casos a desconsiderar sua responsabilidade pela aplicação da
lei, própria de qualquer administração democrática, e o papel do
cidadão passou do papel de súdito, próprio do modelo burocrático, ao
de cliente ou consumidor, e não como cidadão propriamente dito. Ou
seja, como sujeito ativo de direitos, a quem o governo deve ser capaz
de representar.
Na governança democrática, o papel do político não apenas é
revalorizado em relação ao gestor ou gerente. Ele também deve ser
capaz de gerir os serviços com eficácia e, como veremos, em função do
seu impacto no desenvolvimento comunitário.
Porém, sem dúvida, o mais importante é a nítida separação das
funções de gerência ou gestão das funções e “papéis políticos” que a
governança proporciona. No quadro seguinte são destacadas as
diferenças citadas:

GERENTES ELEITOS NA GOVERNANÇA


1. Organizam e proporcionam recursos 1. Constroem o interesse geral

2. Fazem as coisas corretas


2. Fazem corretamente as coisas
3. Centram-se na criação de uma visão
3. Centram-se nos processos de comum
trabalho
4. Perguntam-se o quê e quando
4. Perguntam-se como e onde 5. Preocupam-se com o significado das
coisas para as pessoas
5. Preocupam-se em fazer as coisas 6. Dão prioridade aos objetivos sociais,
aos valores e “posicionam” as pessoas
6. Dão prioridade aos procedimentos, numa direção
estruturas, controle e qualidade da
gestão 7. Confiam nas pessoas e sua capacidade
de mudança e compromisso
7. Confiam nos procedimentos e 8. Interessam-se pela eficácia (cumprir
controles objetivos)

8. Interessam-se pela produtividade 9. A participação como construção e


envolvimento da cidadania

9. A participação como cliente e


usuário de serviços

É importante o equilíbrio entre a administração e a representação, mas a prioridade é a


liderança representativa para fortalecer a capacidade de organização e ação. A
liderança é chave em tempos de mudança.

É óbvio que estas diferenças são plenamente compatíveis. Mais ainda,


sua compatibilidade permite dar um caráter sinérgico à atuação do
governo local. Neste sentido, cabe destacar que a prestação e gestão
dos recursos do profissional da gestão não só está subordinada à
construção do interesse geral como deve ser um dos suportes nos

84
quais esta construção deve basear-se. Porém, em caso algum pode se
entender que o interesse geral consiste no desenvolvimento de uma
prestação de serviços e sua gestão eficiente.
O papel do gerente é, precisamente, preocupar-se com uma gestão
eficiente, isto é, com a produtividade; porém uma produtividade posta
a serviço do cumprimento de objetivos sociais, cuja identificação tenha
sido liderada pelo representante eleito.
Em seu papel de líder capacitador, o que o preocupa,
fundamentalmente, é o significado que as coisas e projetos têm para
as pessoas. Procura que elas sejam identificadas como um direito e um
dever. Quer dizer, evitará que seja vista como favor e, muito menos,
como uma ação clientelista ou, ainda, como uma ação que provoque
dependência ou subordinação. Deve ser uma ação realizada pelo
governo que corresponda à satisfação de direitos sociais, que reverta
em maior compromisso com a autonomia pessoal e coletiva dos
cidadãos, e que esta autonomia se expresse em compromisso ativo e
solidário com o conjunto da sociedade. Já a preocupação do gerente é
fazer bem as coisas, mas no marco político estratégico e com
significado para a cidadania estabelecido politicamente.
Em última análise, a tarefa do governante eleito é articular
coletivamente a estratégia. Ou seja, “o quê” e o “quando”. E, ao
considerar esta estratégia, competências e recursos municipais, o
profissional da gestão ou o gerente estabelecerá o “como”, isto é, os
procedimentos e metodologias; e o “onde”, o lugar mais adequado
entre os possíveis.

A liderança estabelecida através da direção política


e moral

Gramsci, filósofo humanista e político, fundador do partido comunista


italiano, se distanciou muito da política leninista de sua época.
Entendia a tarefa do partido comunista como a construção de um
grande bloco social e popular que abarcaria a maioria da sociedade. A
aglutinação desta maioria social se daria através da hegemonia
política. Ou seja, pela capacidade de direção cultural e moral de um
grupo social – no seu caso, o partido comunista –, que atuaria como um
intelectual coletivo e estruturaria o bloco social.
Hoje estamos em outro momento histórico, embora a proposta de
Gramsci de aglutinar um grande conjunto social, através da direção
cultural e moral, deva ser levada em conta.68 É importante entender,
contudo, que não se trata mais de gerar um grande bloco contra
alguém ou classe social, mas de construir o interesse geral a partir dos
interesses legítimos dos diferentes setores sociais. É claro que, em não
poucas ocasiões, setores sociais minoritários ficam à margem deste
acordo, mas esta minoria não se transforma em inimigo a ser abatido.
Tampouco aqui afirmamos que se trata de construir o socialismo ou o
comunismo, mas de avançar em condições dadas na direção do
desenvolvimento humano. Nem mesmo se trata de priorizar um
“ismo”, seja liberalismo, socialismo ou nacionalismo, mas de enfatizar

68
Ver N. Bobbio, “Gramsci y la Concepción de la Sociedad Civil” em Gramsci y las Ciencias
Sociales. Mexico: Ed. Pasado y Presente, 1997, pp. 65-94.
85
e priorizar os valores e atitudes democráticas de fortalecimento dos
direitos humanos e as atitudes de respeito, tolerância, abertura e
criatividade. O mais importante é que hoje a democracia não pode ser
entendida simplesmente como um meio, mas como meio e fim. Por
último, já não se vê o partido como o grande organizador desse amplo
acordo social, mas sim os líderes eleitos no exercício das funções de
governo, a pessoa eleita como representante pela maioria dos
cidadãos, seja para governar o conjunto da população que vive em um
território, seja para assumir a responsabilidade de uma política setorial,
como é o caso da política de bem-estar social. Entretanto, para isto, é
imprescindível que o governante eleito não realize sua tarefa tendo em
conta apenas seus eleitores, mas todo o conjunto de habitantes do
território ou cidade, ainda que possa partir dos interesses (não dos
posicionamentos) de seus eleitores aos quais, sem dúvida, deve
corresponder à confiança nele depositada.
Estamos, pois, em sintonia com Gramsci no sentido de que, na
governança democrática, a construção coletiva do desenvolvimento
humano deve ser realizada através de valores, atitudes e
responsabilidade. A estratégia compartilhada e os projetos baseados
em um compromisso coletivo de ação estão fundamentados no
conhecimento e guiados por valores.
A direção política se refere, na governança democrática, ao governo da
pólis, isto é, ao conjunto da cidade. No estabelecimento de alguns
objetivos para a sociedade e no desenvolvimento de políticas ou
projetos para alcançá-los coletivamente. Assim como no
estabelecimento de metodologias precisas para distinguir entre
interesses e posicionamentos, e do conhecimento dos conteúdos das
políticas para poder desenhar os cenários de futuro e os projetos que
permitam articular os interesses e compromissos de ação. Para isso, o
político eleito necessita ampliar e fortalecer sua capacidade estratégica
e relacional. Não bastam a ele suas qualidades pessoais; ele necessita
de apoio e assistência técnica especializada em gestão de serviços,
procedimentos legais e administrativos. Necessita de assessoramento
específico em gestão relacional. Este tipo de assessoria, dado que se
desenvolve em um ambiente em mudança permanente, e de grande
complexidade e diversidade, precisa de serviços contratados
externamente (ainda que coordenados internamente), de think tanks,
isto é, de serviços de alta inovação política e social, que possam dar ao
dirigente apoio à sua tarefa de construir o interesse geral através da
confiança, do acordo, da colaboração e do compromisso.

O representante político é o principal agente de


mudança

A necessidade de profissionais externos e internos para fortalecer a


capacidade da liderança relacional do representante político, através
do suporte e assistência técnica, faz lembrar, no âmbito do bem-estar
social, a ideologia do trabalhador social como agente de mudança, que
teve força nos anos 70 e até o princípio dos 80 na Catalunha.
É certo que o papel do trabalhador social, como os educadores,
psicólogos e sociólogos, contribui para o desenvolvimento comunitário
ao fortalecer a capacidade de uma comunidade. De fato, como já

86
observado anteriormente, uma das tarefas prioritárias para a
governança democrática é o fortalecimento da organização dos grupos
e comunidades vulneráveis, para que participem de pleno direito na
construção do interesse geral em seu território. Daí decorre a
importância do trabalho social comunitário como prioridade crescente
na perspectiva do futuro imediato.
Porém, como no caso do gestor ou gerente, a tarefa se inscreve no
marco das políticas de construção coletiva do bem-estar, que deve,
sem dúvida, ter como protagonista o político, o representante da pólis
ou cidade.
Podemos dizer, com toda clareza, que o agente principal de mudança,
já que não existe um agente único na democracia consolidada, é o
político eleito. É desejável que ele seja o principal líder da capacidade
de organização e ação de um território. Qualquer enfoque que coloque
em um profissional o papel de agente de mudança em uma democracia
só pode ser entendido como uma relíquia do pensamento tecnocrático
e autoritário.

A nova tarefa: tornar visível o apoio social às


políticas

Um dos temas mais preocupantes do trabalho político é, sem dúvida, a


oposição de setores da cidadania à tomada de decisões de caráter
transcendente sobre assuntos de interesse coletivo. Maquiavel, em O
príncipe, já alertava o mandatário sobre este aspecto, na introdução de
reformas e novas leis: “Aquele que queira introduzi-las (as novas leis ou
reformas), terá como inimigos todos os que se beneficiavam das
antigas. E aqueles que as novas leis favoreçam serão apenas apáticos
defensores das mesmas.”69 As razões da tibieza, segundo Maquiavel,
são o medo em relação aos adversários que tinham uma situação de
privilégio anterior, e o fato de que a confiança na inovação, nos novos
projetos, só se adquire realmente ao ser comprovado que funciona. No
século XXI, em uma democracia consolidada, a segunda explicação é,
sem dúvida, a mais relevante.
O certo é que, ante novas políticas e projetos, o que se visualiza por
parte do cidadão (através dos meios de comunicação interessados,
alguns, em ressaltar as más notícias, ou por ocupação de espaços
públicos por meio de manifestações e outros atos) são os setores que
se opõem, os que estão em desacordo com a implementação dos
projetos. Os que estão de acordo, na melhor hipótese, desaparecem no
meio da maioria silenciosa.
Por outro lado, em muitas propostas de participação, estas aparecem
como “a plenária dos não eleitos”, isto é, o lugar de expressão das
demandas e das queixas daqueles que não têm representação
eleitoral, que têm pouca influência nas decisões políticas. Este espaço,
sem dúvida de grande interesse do ponto de vista democrático, não
pode ser considerado o espaço de participação do conjunto da
cidadania, porque simplesmente não é. No mesmo sentido, muitas
vezes a participação cidadã é apenas o espaço em que se manifestam
os setores descontentes.

69
N. Maquiavel, El Príncipe. Barcelona: Ed. Veron, 1974, p. 24.
87
A construção do interesse geral em cada política setorial, em cada
projeto, significa que é preciso entender os espaços de participação e
de deliberação cidadã de maneira ampla e muito flexível, tal como
vamos expor nos capítulos seguintes. De modo que, efetivamente,
sejam visíveis os acordos sociais, que se visualizem de maneira clara
os setores que deles se beneficiam e, muito especialmente, aqueles
setores vulneráveis cuja situação possa ser melhorada.
A liderança do representante eleito em espaços de ampla deliberação e
colaboração é, sem dúvida, uma das tarefas básicas em um governo
que se defina como relacional.

88
6. Fundamentos para
liderar a coesão social
a partir do governo
local

89
Ideias Principais

• A coesão social é um conceito amplo que


precede o desenvolvimento e não é somente
sua consequência.
• A coesão social equivale à capacidade de um
território de fazer frente a seus próprios
desafios.
• É preciso uma liderança política assentada em
novos pilares de gestão para promover a
coesão social das cidades.
• Liderar a coesão social é antecipar-se e
canalizar os conflitos entre os cidadãos.
• A liderança relacional precisa de apoio técnico
renovado.

Já mencionamos que a coesão social não pode ser entendida apenas


como um resultado do desenvolvimento de um território. Pelo
contrário, é preciso partir de alguns níveis necessários de coesão para
que se alcance um desenvolvimento endógeno sustentado e
sustentável. Neste sentido, ela deve ser entendida como capacidade
de organização e ação de um território para enfrentar seus próprios
desafios econômicos, sociais, político-democráticos e de
sustentabilidade. Quer dizer, de uma maneira muito semelhante a
como se tem entendido historicamente o trabalho de desenvolvimento
comunitário por parte dos trabalhadores da área social.
Uma cidade ou município, em geral, estará mais integrado
socialmente, ou disporá de maior capacidade de organização e ação
sempre que:
- Disponha de uma grande e ampla visão compartilhada do território,
assim como das bases e eixos sobre os quais deve se assentar uma
estratégia que envolva a grande maioria dos atores sociais e
cidadãos.
- Exista um profundo e amplo sentimento de identidade com a
cidade por parte de todas as distintas comunidades e setores que a
compõem, e que se distinguem por sua procedência geográfica,
cultural ou social.
- Seja desenvolvido um processo de maior valorização das diferenças
entre as pessoas, frente a sua procedência geográfica e cultural.
- Sejam desenvolvidas relações diversas e intensas entre as pessoas
nos distintos âmbitos sociais: trabalho, escola, lazer, bairro etc.

90
- Exista um processo mais intenso e extenso de redução das
desigualdades sociais e geração de novas e maiores oportunidades
vitais para o desenvolvimento de projetos de autonomia individual
ou grupal ao alcance da cidadania, independentemente de sua
procedência, origem e ambiente cultural.
Nesta perspectiva, e tendo em conta que no território se produzem
processos complexos de coesão-desintegração social, o governo local
que tenha como objetivo o desenvolvimento de um território
socialmente mais integrado deverá exercer seu trabalho em uma
dimensão dupla. Por um lado, uma tarefa de dar impulso aos fatores
que geram coesão, e, por outro, um trabalho de prevenção e
canalização de situações conflituosas, que sempre são geradas em
uma cidade ou município.

Os 7 pilares para a liderança política

Um político eleito com a vocação de liderar a construção de uma


cidade mais inclusiva deve elaborar uma política que se fundamente
nos seguintes pilares ou bases.

1) Criar uma visão social do município e seu futuro. Trata-se de dirigir,


como representante do seu município, a elaboração e o
desenvolvimento de uma estratégia compartilhada entre todos os
atores e setores da cidadania. O mais importante desta estratégia é
a visão ou modelo de futuro do município. É básico para a coesão
social que esteja claramente refletida a dimensão social do modelo
de cidade, uma vez que em muitas cidades existe somente um
modelo urbanístico e ou econômico. Uma visão que, além de ser
entendida e aceita pela grande maioria dos cidadãos, gere adesão
e compromisso cidadão para levá-la a cabo. Para isto é
imprescindível uma elaboração participativa, que todos os setores
sociais e cidadãos se sintam parte da mesma e, deste modo,
possam orientar sua atuação na mesma direção. 70 O fundamental é
o compromisso cidadão com a cidade, isto é, com os demais
cidadãos.

2) Atrair e envolver todos os setores da cidadania. A elaboração de


uma estratégia compartilhada que seja inclusiva, isto é, que não
exclua a presença das necessidades e desafios de nenhum grupo
social, exige o desenvolvimento de ações positivas para conseguir
que os grupos mais desfavorecidos socialmente estejam
claramente representados na política de coesão social. É preciso
estar sempre vigilante para que a participação não se restrinja aos
setores mais organizados e com maior capacidade propositiva. Se
isto ocorrer, existe o perigo de fortalecer a segregação social entre
o grupo social mais amplo e os excluídos.

3) Gerar capital social. Trata-se de integrar as diferentes pessoas e


grupos sociais no desenvolvimento de projetos comuns ou em
redes. Para isto deve desenvolver-se toda uma programação para
que os setores da cidadania possam reconhecer seus interesses
comuns ou complementares e se desfaçam as falsas percepções
70
Recomenda-se a elaboração de um plano estratégico, cuja finalidade seja alcançar uma cidade
inclusiva. Ver a este respeito os trabalhos do Marco Estratégico de Barcelona, promovido pela
associação público-privada ABAS (Asociación Barcelona para la Acción Social). www.abas.org
91
que uns têm sobre os outros. Promover as suas interações para que
obtenham maior confiança mútua e possam chegar a
compromissos de ações conjuntas ou complementares.

4) Mediar conflitos entre atores e setores da cidadania. O governo


local deve atuar com enfoque e técnicas de negociação relacional
de conflitos, cuja finalidade seja fortalecer as relações entre as
entidades que negociam, nos temas em que tenha sua
competência envolvida. Também deve ser facilitador e mediador de
conflitos entre atores e entidades cidadãs. A coesão social de um
território depende de sua capacidade de enfrentar e resolver
positivamente conflitos. Um município que progride não é aquele
onde inexistam conflitos, mas aquele que os confronta buscando
novos cenários, novas situações em que os diferentes interesses
possam se complementar. Por isto, é importante dispor de espaços
de intermediação facilitadores do encontro de interesses legítimos
entre os grupos, setores e entidades da cidadania.

5) Conseguir vitórias rápidas e visualizar a realização de projetos. É


importante, para promover a coesão, que a cidadania experimente
uma realização visível de projetos tangíveis para o bem-estar da
comunidade. A partir de uma perspectiva de mobilização e
participação nos assuntos coletivos, o mais importante não é tanto
o projeto tangível que afeta um número reduzido de cidadãos, mas
os efeitos intangíveis na consciência cidadã do saber fazer e
gerenciar com eficácia e honradez. Por isto, a realização de projetos
deve enquadrar-se em um projeto de geração de cultura cívica e
empreendedora da cidadania. Dar intencionalidade educativa a
tudo o que se faça, para que a comunidade compreenda, confie e
se envolva.

6) O desenvolvimento de uma comunicação efetiva baseada nos


valores do humanismo ou do republicanismo cívico. A comunicação
deve basear-se na realidade dos projetos e de suas circunstâncias.
A comunicação efetiva não tenta substituir a realidade, mas tomá-
la como base para as mensagens e os significados que se deseja
transmitir a partir de uma situação objetiva. A comunicação tem
que se apoiar em uma informação clara, transparente,
documentada e na qual se possa acreditar.

7) Envolver o conjunto do governo local na temática da coesão social.


Este pilar não é o último por ordem de importância. Muito pelo
contrário, pois, se a coesão social não for um objetivo assumido por
toda a administração, são criados obstáculos dificilmente superados
para liderar os processos de coesão social por parte dos governos
locais. Por seu papel importante, dedicamos a ele uma seção
específica.

O envolvimento do governo local

A coesão social, ou mesmo a realização de objetivos sociais em um


município, não é tarefa exclusiva de um departamento ou secretaria.
Assim, por exemplo, para garantir as necessidades básicas de uma
população ou reduzir a pobreza em um território – embora a
92
responsabilidade para alcançar este objetivo costume ser da secretaria
de assistência social, por ter mais competências e recursos específicos
– devem ser envolvidas as áreas de saúde, obras públicas (saneamento
básico, espaços públicos, iluminação etc.), transporte, moradia,
educação e esporte (que se converteu em necessidade básica de
saúde), uma vez que as tais necessidades são mais amplas que o
acesso a equipamentos e prestação dos serviços sociais.
O fundamental para integrar socialmente um município é que a
atuação do conjunto do governo se oriente por objetivos sociais. Que a
atuação de todas as áreas ou departamentos tenha por referência os
mesmos objetivos de coesão social, redução das desigualdades e
desequilíbrios territoriais.
É muito importante que o responsável pela assistência social, que vai
liderar as ações para a integração social, tenha muito claro o que deve
demandar das outras áreas do governo para que o conjunto do
município avance no sentido de alcançar o maior grau de coesão
possível.
A este respeito, o primeiro fórum de responsáveis pela área de bem-
estar social da Província de Barcelona∗ dedicou um grupo de trabalho
destinado à identificação dos critérios sociais para a produção de
espaço público, que é um dos temas de maior envolvimento na
geração de capital social, e na prevenção de conflitos sociais.71 As
principais constatações foram:
 A configuração do espaço público ou, inclusive, a carência do
mesmo, foi considerada como uma das expressões mais
claras do que é a sociedade: “... é a sociedade inscrita na
terra” (Lefebvre). Porém, o espaço público, enquanto
construção coletiva de uma cidade dirigida por uma
prefeitura democrática, também é a expressão do que se
quer ser, uma antecipação da sociedade do futuro e, por sua
vez, um instrumento de transformação da cidade ou do
município atual na perspectiva do município que se deseja
no futuro.
 Na visão democrática da nova sociedade-rede, ou também
denominada sociedade do conhecimento, o espaço público é
considerado fundamentalmente como gerador de capital
social. Na avaliação do impacto de um espaço público, tem
que ser levado em conta, sobretudo, a intensidade e
qualidade das relações sociais que favorece.
Um espaço público desenhado a partir de uma clara definição de
objetivos sociais a serem alcançados pela cidadania pode ter os
seguintes impactos positivos:
 Dar centralidade e, em consequência, iniciar a recuperação
de periferias, sempre que se recuperem espaços marginais,
segregados e inacessíveis, de encontro, onde possam
emergir atividades econômicas, sejam casas comerciais ou
escritórios. Tem como consequência incrementar o preço do

No original, “I Forum de Regidors i Regidoras de Benestar Social”, organizado pela Diputación de
Barcelona. Os “Regidors” e “Regidoras”, também denominados Concejales e Concejalas
(vereadores e vereadoras), são pessoas eleitas em eleições locais e, na Espanha, têm
responsabilidades executivas na equipe de Governo. (Nota do tradutor)
71
O grupo foi presidido por Josep Mª Lahosa. Diretor de Serviços de Prevenção da Prefeitura de
Barcelona, e Concejal (vereador) de Bem-estar Social da Prefeitura de Villanova.
93
solo nos arredores, fato que significa um crescimento da
renda da vizinhança.
 Gerar identidade. Por converter os espaços em lugares. Isto
é, espaços significativos para a cidadania. Espaços dignos,
bonitos, com valor simbólico, que permitam que as pessoas
se sintam como sendo do lugar, do bairro. O sentimento de
“pertencer” é chave para a autoestima e a geração de
envolvimento e responsabilização dos moradores em relação
ao bairro e a eles mesmos; e inicia e fortalece o processo de
progresso do conjunto do bairro.
 Gerar capital social. Constituir um espaço de encontro e
convivência gera conhecimento mútuo, identifica e difunde,
através das relações de vizinhança, os desafios do bairro e
permite a colaboração entre vizinhos.
 Constituir um equipamento aberto para a prática de esportes
e atividades de lazer para todo mundo, mas muito
especialmente para a vizinhança com menos possibilidades
de renda e com moradias mais deterioradas, que são os que
mais usam o espaço público.
 Fortalecer a cultura popular e de bairro, para a realização de
festas populares e atividades culturais e solidárias de rua.
 Promover a integração cultural da diversidade de origens –
geográficas, línguas e idades – como consequência dos
impactos anteriormente apontados.
A partir destas considerações, foram estabelecidos critérios que o
responsável pela área de bem-estar social deve demandar da
equipe de governo, para conseguir maior coesão social nos projetos
de espaço público:
 Acessibilidade para todas as pessoas em todos os espaços,
cumprir os critérios da LISMI (idosos, crianças, pessoas com
mobilidade reduzida...)∗
 Multifuncionalidade. Dispor de espaços para crianças, jovens
e idosos, assim como para diferentes usos – esportivo, lazer,
comercial etc. – é básico para conseguir ser um lugar de
encontro e convivência entre as gerações.
 Participação dos moradores e dos profissionais de assistência
social para que se identifiquem com clareza os diferentes
desafios e expectativas dos diversos segmentos da
população no desenho e realização do projeto.
 Que melhore a imagem do bairro ou do município, pela sua
beleza (não quer dizer que seja mais caro) e por sua
utilidade.
 Simbolismo. Que haja elementos que recuperem a memória
do bairro ou do município. Assim como símbolos que
favoreçam a identificação do bairro e a autoestima dos
moradores. “Monumentalizar as periferias.”


Trata-se de uma lei espanhola que garante os direitos das pessoas com necessidades especiais. A
sigla significa Ley de Integración Social del Minusválido. (Nota do tradutor)

94
 Prevenção. O espaço aberto permite identificar situações de
risco que possibilitam um tratamento social. É importante
tratar os temas com sentido de antecipação para a melhora
da convivência. Por exemplo, o tratamento de grupos de
jovens “desajustados”, o aparecimento de “bêbados” etc.
 Segurança. Conseguir espaços públicos seguros não significa
cercá-los nem privatizar o seu uso. Têm que ser levadas em
conta a iluminação e a visibilidade em todos os lugares, para
que gerem ambientes seguros. É preciso assegurar que os
moradores possam facilmente chamar a polícia caso
necessário.
 Integração. Conseguir que as pessoas de origens diversas
participem no uso do espaço público.
De modo semelhante, estes critérios devem ser aplicados ao conjunto
dos departamentos municipais e, assim, contando com os mesmos
recursos, mas orientados por critérios sociais, sejam alcançados
avanços importantes na coesão social dos municípios.

Antecipar-se e canalizar situações de conflito

Foi dito acima que, para liderar a coesão social, era preciso
desenvolver um trabalho em duas dimensões. Uma, desenvolver os
pilares sobre os quais repousa a coesão, e outra, prevenir e canalizar
as situações conflituosas entre diferentes grupos sociais ou setores da
cidadania.
Os processos de coesão social podem ser obstaculizados ao
aparecerem conflitos que, se forem indevidamente canalizados, levam
à segregação mútua entre setores comunitários.
A exclusão social é definida por dois componentes: uma situação social
diferenciada em função de uma ou mais variáveis (procedência
geográfica, cultural ou social, valores e crenças, opções e atitudes
sexuais, gênero, nível de renda etc.) em relação ao grupo social mais
amplo (definido em função das variáveis sociais consideradas), e uma
reação de rejeição ou segregação do grupo social mais amplo com
respeito ao minoritário em todos ou alguns dos níveis ou âmbitos de
uma sociedade (econômicos, sociais, territoriais ou políticos).
A diferença social, a desigualdade ou mesmo o desvio em relação a
atitudes e condutas predominantes e suportadas pelos costumes ou
normas geram exclusão social se não for criada uma reação social
segregacionista ou excludente. Determinadas situações sociais
condicionam, sem dúvida, o aparecimento da reação de exclusão:
elevados níveis de desemprego, a insegurança cidadã, situações de
miséria econômica e de habitação, a ocupação exclusivista do espaço
público etc. Porém, a reação excludente tem seus mecanismos próprios
de geração: desconhecimento do outro, incompreensão de atitudes e
reações, medo do diferente,72 cultura não pluralista73 etc. Em geral, a

72
Neste sentido, recomenda-se o livro de Z. Baugman, Confianza y Temor en la Ciudad. Barcelona:
Ed. Arcadia, 2006.
73
É comum os meios de comunicação difundirem a opinião de políticos e profissionais europeus
demandando que os imigrantes de terceiros países aceitem os valores e atitudes das sociedades
receptoras, do mesmo modo que os europeus deveriam assumi-las no caso de emigrarem para
seus países de origem, esquecendo que as sociedades europeias se definem como pluralistas.
95
reação social excludente é antecedida pela sistematização de
preconceitos sociais ou etiquetas que um grupo social elabora em
relação aos “outros”.
Uma ou um político que lidere processos de coesão ou inclusão social
deverá atuar, com apoio do governo municipal, de modo a antecipar
situações para reduzir as desigualdades sociais e os desequilíbrios
territoriais entre os bairros, mas também, e sobretudo, na prevenção e
redução dos obstáculos intangíveis à coesão social e dos mecanismos
que geram a exclusão social.
Pela importância deste segundo aspecto, assim como pela sua
novidade e por esta tarefa inscrever-se plenamente na gestão
relacional, são identificadas a seguir as tarefas a serem empreendidas
pelo político com responsabilidades de governo para prevenir e
canalizar os conflitos enfrentados por grupos e setores do município.
- Uma das principais tarefas é, sem dúvida, facilitar a informação
clara, documentada e confiável sobre os diferentes grupos sociais
que, por procedência geográfica e cultural, se localizam no
território. Em especial, proporcionar informação sobre as principais
contribuições positivas que o grupo em questão (e em perigo de
sofrer reação excludente) faz à sociedade e ao município em
particular, e difundi-las de maneira massiva e permanente.
- Dispor de espaços de encontro entre os principais agentes
responsáveis por processos de socialização: igrejas, universidades,
escolas, associações de moradores e de imigrantes, sindicatos de
trabalhadores e empresários, que realcem os valores e
características comuns que podem favorecer a interação e relação
estável entre setores da comunidade. Fazendo declarações
conjuntas na celebração das diferentes festividades, perante
eventos locais e externos que podem inibir a segregação mútua, e
mediando conflitos locais.
- Assegurar que todos os moradores e moradoras participem das
políticas cidadãs e municipais sobre o território, para que
acumulem o conhecimento de todo o município e articulem as
respostas às necessidades e desafios de todos os setores da
cidadania.
- Promover e fortalecer redes associativas que integrem pessoas de
diferentes procedências geográficas, culturais e sociais, com a
prefeitura atuando como liderança comunitária.
- Dispor de amplos, flexíveis e fortes vínculos entre a prefeitura e as
entidades do terceiro setor em todos os bairros do município.
- Fazer, sempre que possível, pactos para a inclusão social com todas
as forças sociais e políticas democráticas do município e, em
especial, nos temas relativos à imigração.
Estes mecanismos preventivos funcionam com grande eficácia nos
casos de aparecimento de conflitos entre grupos de vizinhos. É muito
importante que os eleitos tenham uma atitude aberta em relação ao
conflito e uma consciência clara tanto frente aos riscos como às
oportunidades. Esta é a melhor forma de prever e gerir os conflitos,
incrementando a consciência das interdependências dos grupos.
Líderes políticos sem capacidade para identificar tanto as
interdependências internas como as externas à Prefeitura e ao

96
município são um freio para as sociedades complexas e abertas em
que vivemos.
Em qualquer caso, o líder político relacional nunca buscará o domínio
dos valores e comportamentos de um grupo social sobre outros,
tampouco o isolamento ou a segregação cultural dos grupos sociais. Ao
contrário, buscará o máximo apoio e colaboração para o predomínio
dos valores que favoreçam a maior interação possível baseada na
comunicação aberta e no conhecimento e compreensão mútuos, assim
como no estabelecimento de relações estáveis entre os distintos
grupos sociais no território.

O apoio necessário à liderança relacional

A liderança política relacional necessária para articular a coesão social


é muito diferente da que se precisa para gerir os recursos e serviços
municipais. É conveniente que o político representativo possa dispor,
ao nível interno ou mediante a contratação externa, dos seguintes
tipos de apoio:
- Conhecimento especializado nas técnicas que assinalamos
anteriormente de gestão relacional: planejamento estratégico,
participação, gestão de redes, negociação relacional etc.
- Um mapa de atores sociais do seu território, que lhe proporcione
uma informação sobre o conjunto de atores públicos, voluntários,
organizações sociais sem fins lucrativos, associações de moradores
e comunitárias, assim como seus principais projetos relacionados
com os temas da inclusão e coesão social. Assim como dispor de
fortes vínculos com este conjunto e dos mecanismos para enlaçar
atividades e projetos.
- Manutenção de um sistema de informação sobre as variáveis que
podem incidir na quebra da convivência entre setores comunitários:
evolução do desemprego, dos índices de delinquência e vítimas,
déficit de serviços básicos e moradias, programação de serviços e
equipamentos que possam ser objeto de rejeição por grupos de
moradores.
- Um registro atualizado para saber quem chega ao território e as
zonas ou bairros em que se assentam.
- Poder utilizar com rapidez e flexibilidade diferentes meios de
comunicação: boletins, imprensa, rádio e televisão local, assim
como capacidade para pôr anúncios, editar folhetos etc.
Não se entende que seja necessário dispor de todos e cada um desses
instrumentos para liderar politicamente a coesão social em um
território; cabe assinalar, unicamente, que eles são convenientes para
construir uma política de coesão social mais eficaz. Por outro lado,
quanto menor for a população e a complexidade do território, menos
sofisticação será preciso nos mecanismos de apoio técnico.

97
7. Perfil político para a
liderança
representativa na
governança: Valores,
habilidades e
atributos

98
Ideias Principais

1. Os valores próprios das sociedades


abertas e do republicanismo ou
humanismo cívico sustentam a
liderança representativa.
2. Habilidades ou aptidões específicas do
perfil político são necessárias para a
prática da governança.
3. Principais atributos do político para a
prática política na governança.

Entenderemos por perfil político a soma integral de habilidades ou


aptidões, atributos e valores mais importantes para que uma pessoa,
ou um coletivo político eleito possa exercer de maneira mais adequada
a liderança representativa em um governo relacional.

Os valores que sustentam a liderança representativa

Os valores próprios da liderança representativa na governança são


aqueles da discussão relacional, dos valores e das atitudes que
favorecem, segundo Popper, o desenvolvimento científico.74 Estes são a
liberdade em todas as suas facetas e, muito especialmente, a liberdade
de informação, a circulação e debate de ideias, a tolerância e o
respeito ao outro, a suas opiniões e crenças, a humildade frente a suas
próprias ideias, ou seja, os valores das sociedades abertas.
A governança democrática precisa dispor de técnicas para poder
desenvolver-se. Porém, necessita mais ainda de valores e virtudes, ou
de atitudes dos políticos para dar impulsão à sua potencialidade. Neste
sentido, Ortega y Gasset mostrou como o sentido e a própria causa da
técnica se encontra fora dela, a saber: no emprego que o homem dá a
suas energias latentes e liberadas pela técnica; e observou para a sua
época que as crises nos desejos, ideias e valores são a razão pela qual
toda potencialidade da técnica não tenha servido para nada.75

74
K. Popper, La sociedad abierta y sus enemigos. Barcelona: Ed. Paidós, 2006.
99
Hoje há também uma crise de valores, como nas primeiras décadas do
século passado. Em especial, ressalta um questionamento generalizado
dos políticos e dos valores éticos que devem presidir a atuação da
denominada classe política democrática. Mas este lamento
generalizado de quebra moral e perda de valores não pode ser
atribuído a casos concretos de corrupção política; como observou D.
Innerarity, essas crises de valores acompanharam sempre o processo
de modernização social e política.76 Hoje, como já dito, estamos ante
uma necessidade de mudança nas formas de governar dado o
esgotamento do modelo de governar baseado na prestação e gestão
de recursos, assim como em uma forma de fazer política própria de
sociedades bem delimitadas territorialmente e integradas
politicamente no marco do Estado-nação.
As metodologias e técnicas da gestão relacional se inspiram e só
podem desenvolver-se em um contexto de valores e virtudes próprios
das sociedades abertas. De outro modo, é muito difícil identificar
estratégias compartilhadas, estabelecer a negociação relacional, ou
desenvolver o enfoque abrangente em ciências sociais etc.
A governança requer duas condições para ser considerada como um
novo enfoque em ciências sociais, e como um modo apropriado de
governar na sociedade-rede: que a verdade ou a falsidade de suas
teses principais, das bases detalhadas e explicativas, seja
demonstrável pela lógica e que suas explicações se adaptem aos fatos
e sejam, portanto, suscetíveis de prova. Porém, o fato de que este novo
enfoque de governar seja considerado objetivo ou racional-científico
não significa que esteja livre de valores, como lembra Hempel. 77 Pelo
contrário, como já observamos, existem valores e condições sociais e
econômicas que permitem um maior/menor desenvolvimento desta
teoria, tanto em nível conceitual quanto prático.
Neste sentido, deve entender-se que as políticas estão condicionadas
pelo ambiente econômico, social, tecnológico e institucional em que se
inscrevem. Porém, condicionadas não quer dizer determinadas, posto
que as decisões políticas são também fruto da liberdade e
responsabilidade de quem decide.78
A governança democrática, como seu nome indica, necessita das
regras e procedimentos democráticos e se consolidará à medida que os
valores e atitudes próprias da sociedade aberta e democrática sejam
interiorizados pela sociedade e seus líderes políticos sejam sua
expressão prática, e não apenas pelo respeito às regras do jogo
democrático. A organização atual da sociedade-rede, baseada nas
interdependências, requer um marco democrático de responsabilidades
que não pode ser assegurado de maneira centralizada nem hierárquica
pelos governos; precisa, sim, de uma responsabilidade com cooperação
entre os atores e setores da cidadania, definida e organizada de forma
plural.79
75
Ver J. Ortega i Gasset, Meditación sobre la técnica y otros ensayos. Madri: Revista de Occidente,
Alianza Ed., 2002, pp. 53-55.
76
D. Innerarity, El Nuevo Espacio Público. Madri: Ed. Espas Calpe, 2006, p. 188.
77
“A adequada solução para um problema não só exige o conhecimento dos meios técnicos, mas
também de padrões para avaliar os meios alternativos à nossa disposição; e este segundo
requisito coloca problemas reais.” Em La explicación científica. Barcelona: Paidós Ed., 2005, p.
118.
78
Ver J. Prats, “Ética del oficio político”, em Instituciones y desarrollo. Nº 14-15 Nov. 2003, pp.
205 a 209.
79
D. Innerarity, op.cit., p.199.
100
A argumentação anterior também nos serve para destacar que a
governança democrática é uma forma de governar própria de
determinadas ideologias políticas ou partidos políticos. Com efeito, a
partir da aceitação das regras do jogo democrático, qualquer opção
política pode desenvolver as metodologias da gestão relacional ou das
interdependências, uma vez que estas são objetivas. As opções
políticas, portanto, não se distinguem pelo uso das técnicas de gestão
nem pelo modo de governar adotado, mas pelos valores que
perseguem com o modo de governar, e que se expressam pelos eleitos
e representantes políticos.
No paradigma do governo como gestor do gasto público, a distinção
não se devia ao tipo de gestão, mas, sobretudo, à finalidade do gasto;
se era prioritariamente militar ou social, e se a decisão do gasto
correspondia a maior ou menor proximidade com o cidadão. Na
governança, a distinção se fará em função da prioridade acerca das
finalidades do progresso humano, seja o desenvolvimento econômico,
a equidade ou a coesão social, a sustentabilidade ou o
desenvolvimento da ética democrática ou republicana. Todos eles são
valores compatíveis e interdependentes, mas também sujeitos à ordem
de prioridade, em especial se consideramos conjunturas concretas nas
quais é preciso optar pelo que tem um valor predominante. Dito com
toda clareza, a construção coletiva e consciente do progresso humano
nos territórios será feita em função de alguns valores ou em função das
pessoas e grupos políticos que tenham sido eleitos democraticamente.

Habilidades ou aptidões do perfil político para a


prática da governança

As habilidades para a liderança em governança não devem ser


entendidas tanto como habilidades pessoais, fruto de uma
personalidade ou formação, mas como habilidades e aptidões
coletivas. Isto é, aptidões construídas pelo eleito e equipe ou equipes
técnicas que o assessoram na sua atividade política na prefeitura.
As principais habilidades ou aptidões para exercer este tipo de
liderança são:
 Visão de futuro para o território
 Iniciativa para a gestão da mudança: definição de
objetivos
 Desenho de processos e organizações: capacidade de
adaptação
 Comunicação e motivação: convencer e comover
 Construção de alianças: domínio das interdependências
A visão de futuro ou a capacidade de imaginar cenários é fundamental
para alcançar uma articulação de interesses. É comum que a
confrontação entre atores se produza com base em uma situação ou
projeto dado. Buscar o maior acordo possível e necessário significa
muito frequentemente articular os interesses e desafios em cenários
futuros a serem construídos coletivamente, ou imaginar projetos

101
factíveis em que todos possam ganhar de maneira correspondente ao
esforço ou investimento.
A gestão das expectativas cidadãs é uma habilidade muito importante.
Gerar expectativas que não se realizam provoca frustração. Sua
consequência é a desmobilização da cidadania e a geração de
desconfiança política. Tão importante como a não realização efetiva
das expectativas é a percepção de que estas não se cumprem; os
resultados são os mesmos. Esta segunda modalidade é mais frequente
na realização dos projetos estruturantes na cidade, uma vez que a sua
realização não é imediata. Um projeto complexo percorre
necessariamente diferentes etapas (formulação, estudo prévio,
desenho do projeto executivo, orçamento, início de execução) que se
estendem por um tempo que pode ser excessivo e pode ter seus
avanços não percebidos. É preciso não gerar expectativas irrealizáveis,
mas também dispor de uma política de comunicação adequada para
que os avanços sejam percebidos.
Existe uma fórmula que, se bem que não seja exata, é preciso ter
sempre em conta como referência: satisfação é “igual” ou semelhante
à percepção das realizações menos as expectativas que a cidadania
tenha criado. Ou seja, quanto maiores as expectativas em relação à
percepção, menor será a satisfação ou maior será a frustração.
De todos os modos, para que uma cidade possa avançar, necessita de
expectativas razoáveis e críveis, pois do contrário não se avança. Vale
lembrar o caso extremo do lema que apareceu pintado nas ruas de
Buenos Aires quando se desvalorizou sua moeda: “Queremos
promessas, não mais realidades.” À realização de expectativas, cabe
responder imediatamente com outras novas. Para gerir expectativas é
aconselhável ter em conta, além da que acabamos de mencionar, o
caso das corridas de cachorros galgos: quando a lebre se encontra
muito longe, o galgo não corre, não avança, mas se a lebre fica mais
perto, o galgo a agarra e também não corre; é preciso situá-la a uma
distância adequada para que o galgo acredite “razoavelmente” que a
agarrará, mas não consegue alcançá-la e continua correndo. A lebre é
a expectativa e o galgo a cidade, e o que importa é que a cidade
sempre corra, sempre avance.
Iniciativa para a gestão da mudança: gerir as expectativas significa
tomar a iniciativa para começar e dar continuidade às mudanças. É
evidente que não basta apenas vislumbrar, mas iniciar os processos de
mudança para que, a partir da situação atual, se atinja a situação ou
cenário futuro considerado possível e desejável. Para isto é preciso
dotar-se de uma estratégia e colocá-la em prática. As forças de
transformação devem ser identificadas, e definidos os objetivos
compartilhados de maneira clara e factível, assim como deve ser
iniciada, de maneira exemplar e com visibilidade, a gestão da
mudança.
O desenho de processos para a participação cidadã e a realização de
acordos é uma aptidão necessária para gerir a mudança corretamente.
A participação deve assegurar o conhecimento permanente dos
desafios e necessidades dos diferentes setores para conseguir apoio
da cidadania, se a estratégia e os projetos adotados assumirem os
desafios e necessidades identificados. Os processos de mudança não
seguem trajetórias fixas; os próprios avanços introduzem mudanças na
situação de partida, o que significa que a estratégia ou projeto

102
identificado aparece com maior clareza e riqueza de matizes que, sem
dúvida, exige a reprogramação não só dos conteúdos estratégicos, mas
também dos espaços organizacionais em que se canaliza a cooperação
pública e privada e a participação.
A comunicação e motivação cidadã80 para conseguir deslanchar com
maior plenitude a capacidade de ação da coletividade. Comunicar
objetivos percebidos pela população como respostas a suas demandas,
que por sua vez são factíveis e necessários, sem dúvida convence.
Porém, a razão não basta para a ação. É preciso também canalizar os
sentimentos em uma mesma direção. Por isto, a possibilidade de
comover é inseparável da de convencer. Uma sem a outra não
consegue envolver a cidadania em seu conjunto.
A construção de alianças é condição necessária para a governança. A
identificação das interdependências dos atores é condição necessária,
porém o que é realmente crítico é passar desse reconhecimento à
construção de alianças, isto é, à geração de compromissos de ação. A
esta condução que vai da identificação de interdependências ao
compromisso chamamos de gestão relacional. Ela deve partir do
reconhecimento mútuo pelos atores de suas interdependências,
promover ou fortalecer a confiança recíproca para poder chegar a
compromissos sólidos de ação.

Principais atributos para a prática da governança

Embora as aptidões possam ser, e é aconselhável que sejam,


construções compartilhadas entre as pessoas eleitas e suas equipes, os
atributos são fundamentalmente pessoais de quem se elegeu.
Os principais atributos, ou seja, atitudes permanentes ou instauradas
da liderança que facilitam o desenvolvimento das aptidões necessárias
à governança são:81
 Saber escutar: para poder conhecer a fundo as necessidades e
interesses, mas também as contradições, dos quais surgem os
posicionamentos ou reivindicações dos atores e setores da
cidadania; é básica para poder entender as sensibilidades.
 Empatia: a habilidade para entender os problemas, desafios,
emoções e sentimentos, sabendo colocar-se no lugar do outro.
 Imaginação: atributo necessário para gerar visões de futuro do
território e projetos compartilhados novos ou reformulados que
gozem de importante apoio social.
 Inovação: a atitude de fazer coisas novas ou as mesmas coisas
de maneira diferente facilita o início de uma nova gestão
pública.

Para o desenvolvimento desta capacidade, recomenda-se o livro de T. Puig, La Comunicación


80

Municipal Cómplice con los Ciudadanos. Barcelona: Ed. Paidós, 2003.


81
Os atributos foram especialmente selecionados pelo autor. Para um amplo leque dos atributos
da liderança recomenda-se J. Boyett, Lo mejor de los gurus. Barcelona: Ed. Gestión. 2001.
Também S.R Covey, El 8º Hábito. Barcelona: Ed. Paidós, 2005.

103
 Habilidade no trato: gerar confiança significa um tratamento
respeitoso e compreensivo com os outros, e saber incorporar
todas as sensibilidades aos compromissos de ação.
 Curiosidade para conhecer todos os pontos de vista: entendê-
los a partir dos contextos e situações em que são produzidos é,
sem dúvida, uma condição importante para a sua modificação a
partir da compreensão dos envolvidos e conseguir, assim, sua
compatibilização.
 Aprender de maneira continuada: é uma atitude essencial para
dispor dos conhecimentos necessários para construir novos
cenários ou projetos que incorporem a grande maioria dos
interesses e pontos de vista dos atores e setores da cidadania
envolvidos.
Encontramos, também, atributos pessoais necessários a toda e
qualquer liderança, tais como integridade, serenidade,
responsabilidade, proatividade, sentido de humor, preocupação com os
demais etc. Sem dúvida, ajudam a liderança representativa como
qualquer outra atividade na vida em que se aspire a ser feliz, porém
não são específicos para a liderança própria da governança
democrática. Entretanto, é preciso levar em conta que, muito
frequentemente, confundem-se, com pouco rigor profissional, os livros
sobre liderança com receitas de autoajuda.

104
8. Os Governos Locais:
Protagonistas na era
da governança

105
Ideias Principais

1. Os governos locais têm maior êxito


na gestão de serviços às pessoas e
na gestão das relações entre os
setores da cidadania.

2. A prefeitura, como organizadora


coletiva, é o governo protagonista
na sociedade-rede.

3. Os municípios não autossuficientes

4. A crescente importância dos


governos intermunicipais

106
A gestão relacional ou de redes própria da governança posiciona os
governos locais em uma situação ímpar para ser o governo
protagonista desta nova arte de governar. Dito de outro modo, o local
pode ser o nível de governo característico e chave do modo relacional
de governar. Porém, dispor de oportunidades não significa que elas
sejam aproveitadas. A identificação deste novo papel e as condições
para o seu aproveitamento são tratadas neste capítulo.

As condições de êxito do nível local

Há muitas décadas que são conhecidos na Europa os fatores de êxito


de um governo local, ainda que os outros níveis de governo insistam
em não reconhecê-los.
Em 1986, em plena emergência do modo gerencial de governar,
Margaret. Tatcher encomendou um estudo sobre a eficácia dos
governos locais na Inglaterra para a gestão dos serviços de assistência
social. O objetivo da ilustre governante era poder demonstrar que a
fragmentação municipal era um inconveniente a superar, e que uma
maior eficácia na gestão justificaria a centralização de tais serviços.
Com estes propósitos, encarregou um reconhecido gestor de centros
comerciais, Sir Roy Griffiths, para fazer o informe.
O informe Griffiths, ao contrário do que se supunha, recomendou o
reforço dos governos locais. Considerou-se, no informe, que eles eram
o nível mais adequado para gerir as políticas de assistência social. As
razões que expôs não podiam ser mais emblemáticas:
 Os governos locais, por estarem mais próximos do ambiente
onde vivem as pessoas, são os que melhor podem identificar
suas necessidades. Note-se que não é uma proximidade
física, mas das relações entre as pessoas e comunidades com
seu entorno social e territorial.
 Também podem desenvolver uma ação mais integral,
coordenando diferentes tipos de serviços para satisfazer as
demandas sociais.
 A partir do nível local, pode-se organizar o voluntariado e
provocar uma resposta social mais ampla às necessidades
sociais.
 A partir dos governos locais é mais fácil coordenar a
assistência social financiada com recursos públicos e
privados.
As vantagens comparativas dos governos locais nos serviços
assistenciais são facilmente estendidas ao conjunto dos serviços
voltados para o bem-estar social. Todas as vantagens observadas têm
um denominador comum: a proximidade. Porém, como já apontado,
não se trata de uma proximidade física – a menor distância da
cidadania, que a torna mais acessível –, mas da proximidade que
permite um maior conhecimento das relações entre as pessoas e as
comunidades, e com o seu ambiente social e territorial.

107
A prefeitura como organizador coletivo

A sociedade do conhecimento ou sociedade-rede torna irrelevante a


proximidade física dos governos locais, uma vez que as tecnologias da
informação tornam acessíveis qualquer administração a partir de
qualquer lugar do mundo. Em troca, reforça até o mais alto grau a
proximidade relacional, porque o fundamental é a organização e gestão
de redes de atores. As tecnologias da informação incidem na produção
de valor, se existe uma organização em rede que permita maximizar
suas possibilidades. Neste sentido, entender a prefeitura como o
principal organizador coletivo das redes sociais é o que possibilita seu
papel de governo protagonista na sociedade-rede.
O informe Griffiths é um exemplo de que, já no modo gerencial, a
prefeitura poderia ter tido um papel mais importante na administração
do Estado. Para isso, necessitava da transferência de competências e
recursos de outros níveis da administração. Somente com maiores
competências e recursos as prefeituras poderiam ampliar a
importância do seu papel no modelo de governo provedor e gestor de
recursos. Por isso, na Espanha, e na Catalunha em particular, a ação
conjunta dos municípios tem consistido em alcançar uma segunda
descentralização, até hoje não conseguida, de competências e
recursos. Sem, de modo algum, negar a importância da
descentralização de competências e recursos para os governos locais
promoverem o desenvolvimento humano, na sociedade-rede o papel
central das prefeituras é determinado por sua atuação como
organizador coletivo, pelo seu impacto na melhoria da capacidade de
organização e ação de todos os atores e pessoas em um território.
O papel das prefeituras consiste precisamente em ir além de suas
competências, sejam elas quais forem, para assumir os desafios das
suas cidades. Nada que aconteça, ou os seus cidadãos necessitem, é
alheio a uma prefeitura que tenha adotado a governança como modo
de governar. Sua tarefa não consiste em tentar achar solução para os
recursos que não tem, nem qualquer administração terá, mas em
desenvolver uma ampla ação multidimensional que implique recursos,
geração de uma cultura de ação, organização comunitária, colaboração
interinstitucional e público-privada para dar uma resposta coletiva, no
sentido de que envolve toda a sociedade para a solução dos seus
desafios.
Em última análise, as competências e os recursos nas mãos dos
governos locais não são importantes em si mesmos, mas enquanto
instrumento para aumentar a capacidade das prefeituras convocarem
os atores sociais e os cidadãos para organizarem os processos de
responsabilização cidadã e parceria público-privada.

O Poder Local: riqueza dos países e regiões

Hoje, depois dos estudos de Jacobs, Sassen, Castells e de tantos outros,


inclusive dos informes do Banco Mundial, parece já estar estabelecido
que as cidades são a riqueza das nações e que a era infoglobal se
assenta em um sistema mundial de cidades. Os fluxos de informação,
bens e pessoas que se tornaram mais interdependentes são
produzidos, organizados e distribuídos nas cidades e regiões
metropolitanas.

108
O que hoje deve ser fixado é que o desenvolvimento dos territórios
depende fundamentalmente dos governos locais – municipais e
intermunicipais. Seu papel de organizador coletivo das redes e
interações sociais no território é, como já observado, sua dimensão
mais singular e influente no desenvolvimento econômico, social e
humano.
A modernização da Espanha é, sem dúvida, a modernização das suas
cidades, e o mesmo poderíamos dizer da modernização da Catalunha.82
Os governos locais na Espanha são os principais responsáveis pela
inovação urbana. É certo que a porcentagem dos recursos públicos nas
mãos das prefeituras não chega a 13% do gasto público total, e é o
mesmo desde o início da democracia, após o fim do franquismo. O
desempenho das prefeituras na Espanha na transformação das cidades
foi dado pelo seu papel relacional. De fato, os cidadãos foram aos
governos locais com suas reivindicações e demandas, e estes, ao não
disporem das competências e recursos, não puderam responder
diretamente às mesmas. A falta de resposta poderia ter levado à sua
deslegitimação, porém boa parte deles respondeu pondo em marcha o
planejamento estratégico da cidade em conjunto com os principais
atores econômicos, sociais e institucionais. Também foram feitos
planos setoriais para promover o bem-estar social, educação, esporte e
saúde etc., as agendas 21, assim como foram desenvolvidas múltiplas
experiências de participação e envolvimento da cidadania, processos
de cooperação público-privada que, sem conceituá-los deste modo,
serviram para dar início à governança.
Esta tarefa inovadora de protagonizar e articular a construção coletiva
da cidade deve ser o principal objetivo dos governos locais, que desse
modo passarão a ser o nível de governo fundamental na sociedade-
rede.

Os municípios autoinssuficientes

Os municípios, como consequência da interdependência de fluxos de


todos os territórios, aumentam o seu nível de autonomia. Não
dependem de um único município, seja este capital de estado ou
centro de uma área metropolitana. A multiplicação das influências
territoriais incrementa a autonomia dos municípios, que podem
reestruturar suas relações com diferentes territórios. Isto, sem dúvida,
explica o desenvolvimento de planos estratégicos em municípios de
reduzido tamanho populacional.
Porém, ao definir sua estratégia, ainda que não a definam bem, eles se
dão conta de que necessitam da colaboração de outros municípios e
regiões para melhorar a qualidade de vida de sua população. As redes
não terminam no município e se estruturam em territórios mais
amplos, em função do tema tratado: bem-estar social, turismo, cultura,
segurança etc. Ou seja, o encaminhamento de uma resposta aos
desafios sociais requer a colaboração intermunicipal. O município é, na
grande maioria dos temas, insuficiente para dar sozinho uma resposta
adequada.
Ele deve ser considerado a unidade básica de um sistema de redes –
regional, macrorregional ou internacional – de cidades que interagem

82
G. Clark em La gobernanza territorial: un nuevo arte de gobernar. Sevilha: Junta de Andalucía,
2007.
109
em uma temática concreta. Gerir a qualidade de vida da população de
um município também é a gestão das relações externas
intermunicipais.

A crescente importância dos governos


intermunicipais

Neste contexto das redes municipais, adquirem grande importância os


níveis de administração que têm a responsabilidade pela promoção e
suporte à intermunicipalidade.
No conjunto do Estado espanhol existe uma grande fragmentação
municipal e um importante “minifundismo” municipal. Os Conselhos
Provinciais (Diputación), na qualidade de administrações locais, têm
desempenhado historicamente o papel de governo supramunicipal. Os
municípios pequenos delegaram aos Conselhos competências, provisão
e gestão de recursos que, pelo seu tamanho, não poderiam assumir.
Desse modo, os Conselhos assumiram competências e serviços que
gerenciam para âmbitos superiores a cada município, atuando como
governos supramunicipais.
Os Conselhos Provinciais assumiram ao longo da sua história o
financiamento e a gestão de serviços e equipamentos que na
atualidade, na Espanha, são competência dos Estados (Comunidades
Autónomas ou Departamentos). Este fato, juntamente com as políticas
de investimento e subvenções dos Conselhos aos municípios, fez com
que muitos estados queiram acabar com os Conselhos por considerá-
los concorrentes. A este motivo se soma ainda o fato de que o território
provincial representa uma divisão territorial adotada pelo Estado
Nacional, e não corresponde à divisão que alguns estados consideram
adequadas a eles. Não é finalidade deste trabalho entrar neste debate,
afirmar a necessidade de um governo supramunicipal, seja lá que
nome tenha. Porém, o que uma sociedade em rede precisa e, em
particular, a governança territorial também, é sobretudo de um
governo intermunicipal.
O governo supramunicipal é necessário para fornecer os equipamentos
e serviços de competência exclusivamente municipal e que um
segmento de prefeituras não pode proporcionar a seus municípios. O
governo supramunicipal não é, portanto, uma novidade. É,
simplesmente, uma maneira de dar continuidade à função de
prestação e gestão de serviços das prefeituras.
Diferentemente, um governo intermunicipal constitui uma novidade e é
uma dimensão com vocação para prosperar na sociedade-rede. As
dimensões da atuação intermunicipal são fundamentalmente as
seguintes:
 Estabelecer um marco de referência comum sobre desafios e
objetivos a serem desenvolvidos no território, para que
facilite a colaboração entre municípios.
 Produzir espaços de intermediação para articular a
cooperação entre prefeituras.
 Fortalecer as aptidões estratégicas, relacionais e
organizativas dos governos locais para o desenvolvimento da
governança, tanto no interior de cada território como nas
relações externas com outros atores e níveis de governo.
110
 Apoiar a liderança institucional das prefeituras e, em
especial, de seus prefeitos e prefeitas, para fortalecer sua
capacidade de representação e suas habilidades para
construir o interesse geral em seu território, a partir dos
interesses legítimos dos atores e setores cidadãos.
Os Conselhos, como governos supramunicipais, estabeleceram
relações de hierarquia com as prefeituras. Se bem que sua tarefa
consista em apoiá-las no desenvolvimento de suas competências, ao
disporem de recursos escassos e terem que priorizar as ajudas, se
estas não são feitas através de instrumentos objetivos, acabam por
gerar relações de domínio e subordinação. Em troca, a dimensão
intermunicipal exige horizontalidade, atuação lado a lado com as
prefeituras, uma vez que se trata de gerar redes de municípios.

111
9. A governança do Bem-
Estar Social

112
Ideias Principais

1. O Bem-Estar Social: vanguarda da


governança.
2. É necessário reestruturar a gestão
dos serviços públicos de bem-estar
social na governança.
3. A gestão de redes e a participação
cidadã. Eixos estruturantes do
governo relacional.

4. A participação como envolvimento


da cidadania no “fazer cidade”.

5
. O apoio social às estratégias e
políticas.

113
O Bem-Estar Social: vanguarda da governança

A governança, como assinalamos anteriormente, é a arte de governar


ou modo de governar específico do governo relacional. Este, por sua
vez, é o que emerge com a sociedade-rede, também denominada
sociedade do conhecimento. Hoje a governança se encontra em uma
etapa ascendente, deslocando o caduco modo gerencial de governar
que, além disso, comportou – e, sobretudo, sua permanência ainda
comporta – grandes déficits nas duas grandes dimensões da
democracia: a qualidade da representação do eleito e a participação e
colaboração cidadã na gestão da cidade.
O bem-estar social é um setor que está tendo um papel de vanguarda
no desenvolvimento da governança local na Catalunha. Esta afirmação
se sustenta na constatação empírica. A cidade de Barcelona conta com
um plano estratégico setorial, o Plano Integral de Serviços Sociais,
primeiro plano que evoluiu no sentido de dar início aos processos de
governança democrática. A associação público-privada criada para
impulsionar seus projetos foi definida em 2005, de maneira totalmente
pioneira nas políticas de bem-estar da Catalunha e Espanha, ao passar
a definir-se como associação promotora de governança no âmbito do
bem-estar na cidade. O fórum dos gestores, do qual falaremos mais à
frente, é uma experiência singular e inovadora no âmbito europeu, já
que reúne as pessoas eleitas com responsabilidades de governo na
área do bem-estar social com o objetivo de fortalecer projetos,
conteúdos, técnicas e boas práticas na nova arte de governar.∗
O fato de que as políticas de bem-estar social na Província de
Barcelona se encontrem em uma situação avançada para assumir o
desenvolvimento da governança democrática deve-se, entre outras, às
seguintes razões principais:
 O impacto do enfoque do desenvolvimento social
comunitário, que teve um importante desenvolvimento nos
anos 70 e princípios dos anos 80. Ainda que, posteriormente,
este enfoque tenha ficado subordinado à necessária
ordenação e gestão de um importante fluxo de recursos e
serviços que chegaram, a perspectiva do trabalho social
comunitário não se perdeu, apesar de não ter sido
favorecida. A governança democrática não tem semelhança
com o trabalho comunitário. A governança é um modo de
governar e o trabalho comunitário é uma dimensão do
trabalho social. Deve-se ter em conta, por exemplo, que os
enfoques teóricos do trabalho comunitário não contemplam o
papel do governo e do político eleito de uma maneira
explícita. Mas, claro, têm em comum a finalidade de que a
própria sociedade, em um caso, e a comunidade, em outro,
assuma a realização de seus próprios desafios.
 É um dos âmbitos do governo local em que se constata com
a maior crueza a impossibilidade de que o crescimento dos
recursos públicos satisfaça as crescentes necessidades
sociais. Nasce daí sua disposição para inovar em políticas
públicas.

Vide nota anterior sobre o fórum. (Nota do tradutor)
114
 A gestão próxima ao usuário e seu entorno social e territorial
permitiu o desenvolvimento do trabalho social como um
trabalho relacional, destinado a estabelecer os vínculos entre
os grupos sociais vulneráveis com a comunidade territorial, e
os usuários com seu entorno relacional, familiar e de
trabalho. Estas atividades foram denominadas trabalho social
comunitário e social sistêmico, respectivamente.
 A tradição de colaboração entre governos locais e ONGs foi
muito maior na Província do que no conjunto da Catalunha e
Espanha, o que permitiu a rápida compreensão da
necessidade de coordenar atores para gerir projetos sociais
complexos. Por outro lado, permitiu que as organizações sem
fins lucrativos fossem contratadas pela administração para
gerir os serviços financiados com fundos públicos. Em muitos
lugares do Estado espanhol a abertura de processos de
terceirização dos serviços significou, desde o começo, a
entrada de grandes empresas comerciais procedentes de
setores sem experiência na área de prestação de serviços
sociais.
 Os serviços de bem-estar social, em especial a assistência
social, opuseram maior resistência à cultura empresarial,
própria da última etapa do governo provedor. O trabalho
relacionado com as temáticas de alta necessidade social,
pobreza e exclusão, próprias de muitos setores do bem-estar
social, levou à recusa da apropriação lucrativa dos recursos
que poderiam ser revertidos a estes âmbitos de atuação.
Esta resistência às empresas de fins lucrativos e a existência
de um importante tecido social facilitaram a transição rápida
do modelo burocrático ao modelo de governança com pouca
influência do modo gerencial, que provoca uma rejeição na
maioria dos profissionais do setor.
 Uma tradição bem assentada na assistência social é a
diferenciação entre demanda e necessidade na atenção à
população usuária. Esta distinção que aparecia como conflito
no modo gerencial, que entendia a qualidade como
satisfação aos pedidos dos clientes ou usuários, constitui um
bom enfoque para um dos pilares do desenvolvimento da
governança, uma vez que esta, como já apontado, distingue
entre o que é interesse ou necessidade e o que é
posicionamento ou demanda.

A reestruturação da gestão dos serviços públicos do


bem-estar social

A governança, como modo de governar próprio do governo relacional,


incorpora, naturalmente, a função de prestação e gestão de serviços
públicos no município. Esta função deve desenvolver-se, sem dúvida,
através dos critérios de eficácia e eficiência. Entretanto, a gestão de
serviços e, em especial, a sua eficácia e eficiência são reconfiguradas
na governança relativamente ao modo gerencial de governar.
O modo gerencial tem como preocupação a improdutividade dos
serviços financiados com fundos públicos geridos burocraticamente, e
busca na imitação das empresas privadas os métodos e instrumentos
115
para melhorar a produtividade e, deste modo, alcançar um maior
número de usuários ou clientes dos serviços públicos. A eficácia, que
se define em realização dos objetivos (ser eficaz é cumprir objetivos),
no modo gerencial de governar era e é entendida como a cobertura
dos serviços, financiados com fundos públicos, sobre a população
potencialmente ou manifestamente demandante. Eficiência, que se
define pela relação entre eficácia e custos, consiste, no modo
gerencial, em aumentar a cobertura com o mínimo custo possível.
A aplicação do modo gerencial na área do bem-estar social, em
comparação com outros setores das políticas públicas, era e é delicada
porque o incremento da cobertura não necessariamente significa a
satisfação das necessidades dos usuários, que é o verdadeiro objetivo
das políticas sociais. Assim, por exemplo, ainda que exista uma relação
direta entre pessoas vacinadas e a prevenção de uma enfermidade, o
aumento do número da cobertura dos serviços à infância não significa,
que tenha sido reduzido o risco de exclusão ou sua dependência
psíquica ou sua vulnerabilidade social. Isto depende de como se
trabalha no serviço e, logicamente, de haverem sido definidos com
clareza os objetivos do mesmo e feita a sua avaliação com sistemas de
indicadores adequados.
Um dos principais problemas das políticas sociais é que se passou de
um sistema de gestão burocrático, baseado em procedimentos
administrativos e com funcionários públicos, à terceirização através de
licitações, em que a produtividade é o critério dominante. A uma crítica
injusta à gestão por procedimentos burocrático-administrativos (que
ainda que não sirvam para gerir serviços, mantêm a função da garantia
de direitos e de racionalidade legal) se juntou a exaltação de tudo que
procede do mundo dos negócios.
Na governança, ainda que admitindo que o aumento de cobertura se
relacione diretamente com a satisfação da necessidade do usuário,
como no caso de alguns serviços em domicílio dedicados a pessoas
com grandes dependências permanentes, o critério de eficácia não é o
mesmo do modo gerencial. Não é simplesmente o incremento da
cobertura, mas o impacto do serviço na capacidade de organização e
ação do conjunto da cidadania para satisfazer ou dar respostas às
necessidades e desafios sociais. Isto é, o que a governança exige como
critério de eficácia ou, o que é o mesmo, como cumprimento de
objetivos próprios do seu modo de governar, é que a prestação e
gestão de serviços financiados com fundos públicos tenham uma
dimensão comunitária. Que contribuam para melhorar a capacidade de
resposta do conjunto da sociedade. Na governança é preciso exigir da
gestão dos serviços a complementaridade com outros serviços do
município, para formar redes de atuação público-privadas sob a
responsabilidade pública, assim como o envolvimento comunitário de
famílias e usuários em ações de melhoria do capital social, ou, em
termos mais tradicionais, de desenvolvimento comunitário.
O esquema que diferencia o modo de governar gestor ou gerencial da
governança aplicado à área do bem-estar social é o seguinte:

Esquema gestor Esquema governança

Desenvolvi mento Desenvolvimento


social social

Participação I nfraestruturas Capacidade de


I nfraestruturase desenvolvimento organização
serviços e serviços
comunitário

116
Políticas Bem-estar Políticas Bem-estar
Social Social
Damos-nos conta de que a prestação de serviços públicos deve
impactar o desenvolvimento comunitário, e, por isto, o envolvimento
social é um critério essencial para abordar a eficácia dos serviços na
perspectiva da governança.
A eficiência se relaciona diretamente, na governança, com o custo dos
serviços que não são eficazes. Quer dizer, que incidem diretamente
tanto na satisfação das necessidades dos usuários como no
desenvolvimento da capacidade da comunidade no território em que se
situam.
Em qualquer política pública em um governo relacional, a governança –
e, naturalmente, a área de bem-estar social – responderia ao seguinte
esquema:

Governança Territorial: nova


arte de governar

Âmbito legal-
(1)
burocrático

(2)

Provisão e
Gestão relacional ou gestão de
(1)
(3)
estratégica recursos

Capacidade de
organização do território

Progresso econômico e (1) A posição da função de âmbito legal gerida pela burocracia
social profissional e a provisão da gestão e recursos gerida por
profissinais não burocráticos são suporte da gestão estratégica.
A linha pontilhada significa que a gestão relacional e de
recursos têm que responder à legalidade e normas
democráticas.
A seta 3 significa que os recursos próprios devem articular-se
nos objetivos da gestão estratégica.

Assim, temos um âmbito de legalidade para garantir os direitos de


todos os cidadãos, dirigido por funcionários, isto é, por trabalhadores
especialmente protegidos das mudanças políticas e institucionais para
garantir ao máximo a neutralidade e adequação à lei dos
procedimentos de contratação, participação e colaboração
interinstitucional e público-privada. É de se supor que a participação e
colaboração serão as áreas de maior desenvolvimento normativo na
governança.
Uma prestação e gestão de serviços que não impactará somente na
melhoria dos índices de cobertura, mas especialmente na capacidade
do desenvolvimento comunitário.

117
O âmbito relacional, que assume na governança o papel estrutural de
todas as funções de governo, é o que terá maior nível de
desenvolvimento, uma vez que consiga apoiar-se em um conjunto de
metodologias e técnicas específicas que constituem a gestão
relacional.
No âmbito da função de prestação e gestão de serviços, a passagem
do modo gerencial para a governança deve significar a promoção das
seguintes mudanças mais importantes:
 De perspectiva: será contemplado, por parte do governo, o
conjunto da oferta de serviços de bem-estar social no
território.
 De concepção da qualidade: será priorizada a qualidade das
redes – a intensidade e qualidade das interações entre
serviços para assegurar uma ação integral.
 De contratação de serviços: importância da gestão
comunitária.

A visão do conjunto da oferta de serviços do território

Ao centrar-se em objetivos para o conjunto da população do território


e, a partir daí, gerir as interdependências de todos os atores que atuam
em uma situação social, o governo local, na governança, não apenas se
fixará na oferta de serviços específicos, mas no conjunto da oferta de
serviços no município e sua área de influência. E, no mínimo, tentará
articular os atuais e futuros prestadores para que, em conjunto,
possibilitem que sejam alcançados os objetivos de cobertura para toda
a população do município.
É próprio do modo gerencial de governar atender apenas o percentual
da população que será coberto pelos recursos públicos oriundos do
município, sejam estes próprios ou obtidos por transferência de outros
níveis da administração. Assim, por exemplo, um planejamento
municipal pode indicar um objetivo de cobertura para os serviços de
assistência em domicílio financiados pelo município que alcance 4% da
população alvo e, na verdade, só atingir os 2%. A partir dessa
defasagem definirá, com data precisa e possível – digamos, quatro
anos –, o incremento de recursos próprios e das transferências de
outras administrações para conseguir o aumento da cobertura.
Esta forma de atuar dos governos locais, tão centrada na atividade
setorial e no impacto populacional que pode obter, desconsidera o
nível de cobertura necessário para o conjunto da população que
depende do município, esquecendo que foram escolhidos como
representantes por todos os cidadãos para cuidar da satisfação de
todos, e não só daqueles aos quais pode chegar através de sua ação
setorial.
Um governo relacional se fixará nos níveis de cobertura a serem
alcançados no conjunto do município e buscará articular e coordenar
com todos os atores as medidas necessárias para tal. É preciso um
planejamento compartilhado e também uma gestão das

118
interdependências dos atores para atingi-los. Assim, no mesmo
município do exemplo anterior, detecta-se que o nível de cobertura
necessário é de 6%, a oferta financiada é logicamente a mesma, 2%,
mas na nova perspectiva identifica-se que outros 2% são cobertos pela
iniciativa social e privada, e, além disso, 75% da população
dependente está sob o cuidado de familiares. No novo modo de
governar, o que procede é constituir um grande acordo estratégico
entre a prefeitura, a iniciativa social e empresarial e os demais níveis
de governo para desenvolver ações coordenadas destinadas a alcançar
os 6% de cobertura necessários.
A aplicação da “Lei de Promoção da Autonomia Pessoal e Atenção a
Pessoas em Situação de Dependência”, denominada coloquialmente
“Lei da Dependência”, está significando um aumento da oferta de
serviços nos municípios. Dada a procedência distinta dos fundos
públicos, a terceirização da gestão dos serviços e o incremento da
variedade dos mesmos, torna-se necessário assegurar a coordenação e
a complementaridade da oferta de serviços. Não fazê-lo (a capacidade
de conseguir maior bem-estar pelo aumento da oferta) diminuirá em
função da muito provável fragmentação da oferta. A tarefa de liderar a
constituição de um marco referencial para a colaboração e
complementaridade dos serviços no município é um novo tipo de ação
que corresponde à prefeitura, para o que necessitará de nova
capacidade de organização.
Um objetivo se destaca de maneira especial na governança: a oferta de
serviços públicos deve contribuir para o fortalecimento da sociedade
civil e, em particular, de sua capacidade para assumir maiores
responsabilidades sociais. As políticas de oferta de serviços públicos
devem contribuir para a melhora da qualidade de vida da população
com necessidades e também dos familiares e vizinhos que assumam
tarefas de solidariedade social.
Trata-se de evitar que o compromisso social da sociedade civil seja
debilitado por uma configuração inadequada de políticas de bem-estar
social. Um exemplo de má política se produziu em alguns municípios da
Província de Barcelona, ao contratarem externamente, sem analisar as
redes sociais do território, e com fundos públicos, a figura dos
profissionais de atividades recreativas para a infância nos bairros
(monitores), cujo efeito foi o contrário do que se pretendia: destruíram
a atividade profissional, e também a voluntária, que se desenvolvia nas
paróquias e entidades de moradores. O conjunto da oferta para a
infância diminuiu. Em troca, a introdução dos serviços municipais que
dão suporte às famílias acolhedoras, denominadas “respir”,∗ está
favorecendo a incorporação de pessoas acolhedoras e a qualidade de
sua atenção, ao disporem de diversas atividades para as pessoas
assistidas. Deste modo, familiares e voluntários acolhedores podem
combinar suas atividades cotidianas com a solidariedade familiar e de
vizinhos.

A qualidade das redes: as marcas de garantia


Centros de descanso de curta permanência para idosos ou pessoas com problemas físicos ou
psíquicos, para dar um tempo para "respirar" aos familiares que se encarregam do seu cuidado,
para permitir-lhes tirar férias, alguns dias de descanso ou mesmo um dia para cuidar de algum
assunto pessoal. (Nota do tradutor)

119
O novo modo de governar implica integralidade na concepção das
necessidades das pessoas e, portanto, precisa da articulação do
conjunto de serviços para que representem uma oferta de qualidade.
Em outras palavras, que o conjunto de serviços públicos e de iniciativa
das organizações sociais possa cobrir todas as necessidades das
pessoas, no caso em que elas sejam de natureza pública – objetivo das
políticas sociais.
Uma pessoa com necessidade de assistência em um momento
determinado pode precisar de ajuda domiciliar e teleassistência. Em
outro momento, pode precisar do seu ingresso em um centro de
descanso, ou em uma residência assistida e, outra vez, de uma
assistência domiciliar etc. A atenção integral, portanto, precisa de uma
coordenação de serviços baseada na qualidade. Dado que a oferta de
serviços para propiciar a atenção integral em um município se acha
fragmentada em uma pluralidade de instituições, torna-se necessário o
estabelecimento de uma marca que englobe o seu conjunto.
Na Espanha, as autoridades portuárias são exemplos do bom
funcionamento de uma marca. Os portos precisam, para sua
competitividade, assegurar objetivos, como garantir, por exemplo, que
um carregamento de calçados chegue a seu destino no prazo de sete
dias. Para conseguir isto, um porto precisa coordenar a ação de
diferentes operadores e atores, tanto na cidade de origem como no
destino: consignatários, transportadores, agentes aduaneiros,
empresas de contêineres, estivadores, rebocadores, operadores
ferroviários, entre outros.
Para alcançar tal coordenação, organiza-se uma marca de qualidade. A
marca tem um conselho de direção formado pela autoridade portuária,
o Estado e a prefeitura da cidade. Os operadores também integram a
marca, desde que cumpram uma série de condições e compromissos
operacionais. Por sua vez, os clientes que contratam os serviços da
marca têm a garantia do cumprimento dos mesmos. Em caso de
descumprimento por parte de algum operador, a marca impõe as
sanções previamente estabelecidas e, se reiterada a falha, cabe a sua
expulsão.
Para a articulação de serviços, a qualidade é insuficiente – o
procedimento das normas ISO e a metodologia EFQM se centram na
qualidade no interior de cada serviço. As marcas de qualidade podem
exigir de cada operador tais normas, mas elas garantem a qualidade
de cada serviço e, também, a sua coordenação.
Em uma oferta de serviços de bem-estar social, cada vez mais ampla e
fragmentada, é preciso uma ação dos governos locais apoiados pelos
demais níveis de poder para promover e dirigir uma marca de
qualidade em um território.
Uma marca de qualidade em serviços de bem-estar social deverá, no
mínimo, dispor dos seguintes elementos:
 Um serviço de recepção de novos sócios que solicitem
ingressar na marca de qualidade.
 Exigências mínimas de funcionamento interno para cada um
dos serviços distintos incluídos na marca.

120
 Uma identificação dos compromissos de coordenação entre
cada tipo de serviço.
 Um serviço de queixas e reclamações próprio da marca de
qualidade para usuários, familiares e vizinhos.
 Uma normativa de bonificações e sanções, inclusive
expulsão, para os serviços que não cumpram as regras.
 Uma política de comunicação e divulgação da marca de
qualidade para a cidadania e entidades sociais.
As marcas de qualidade são, sem dúvida, um claro instrumento de
gestão relacional, de governança. Através deste instrumento, o
governo local assume um papel de maior relevância social como fiador
da qualidade e da atenção integral do que desempenhava como
simples prestador ou gestor de determinados serviços.
Na governança, a responsabilidade pública não somente consiste em
responder pela qualidade dos serviços financiados com recursos
públicos, mas, e fundamentalmente, em responsabilizar-se pela
resposta coletiva aos desafios e necessidades sociais da população, e
garantir a qualidade da atenção integral dos usuários dos serviços.
As marcas de qualidade começam a ter uma clara expansão quando
são aplicadas no âmbito turístico, assistência sanitária, nas instalações
esportivas, no transporte coletivo intermodal de passageiros etc., e, em
breve, seguramente, serão aplicadas nos serviços de bem-estar social
na Província de Barcelona.
É preciso que se vá preparando para o futuro das marcas de qualidade
na área do bem-estar social, assim como também para organizar a
oferta de serviços com critérios de governança, isto é, para que
tenham um impacto positivo na capacidade de organização e resposta
comunitária. Deve-se iniciar de modo imediato a revisão dos critérios
de adjudicação nas licitações públicas para a contratação externa dos
serviços de bem-estar social.

A contratação externa para a gestão de serviços com


base no desenvolvimento comunitário
A experiência da gestão burocrática de serviços, cuja crítica e
superação deu origem ao modo gerencial, é suficiente para pensar que
a gestão pública dos serviços de assistência social não seja direta,
através de profissionais da administração, mas por terceirizados
contratados externamente. Por outro lado, a complexidade de
situações e necessidades sociais requer uma ampla gama de
profissionais e uma grande capacidade de adaptação e, portanto, de
flexibilidade, que fazem com que uma organização burocrática – no
sentido de que sua finalidade é zelar pela legalidade, tem natureza
necessariamente normativa e é protegida para garantir direitos – não
possa assumir a gestão destes serviços.
A governança exige contratação externa dos serviços financiados com
recursos públicos em igual ou maior proporção do que no modo
gerencial, mas será preciso suprimir e introduzir critérios de prioridade
nos processos de contratação externa. Em especial, os seguintes:

121
 Um critério essencial para a terceirização, que já podia ter
sido estabelecido no modo gerencial, é o de definição dos
objetivos de impacto na população usuária. A identificação
destes objetivos permite a medição posterior de resultados
nos serviços sociais, e levam a não pressupor que um
incremento de produtividade seja suficiente para aferir a
eficácia no cumprimento de objetivos de fortalecimento da
autonomia pessoal ou de inserção social. É muito importante
recordar que se eficiência é um cociente em que o
numerador é a eficácia e o denominador é o custo, no caso
em que a eficácia tenda a zero, por mais produtivos e de
baixo custo que sejam os serviços, a eficiência será zero.
Este resultado é com bastante frequência esquecido por
aqueles que se consideram entusiastas da produtividade em
serviços sociais, uma vez que, se não há resultados, de nada
serve a produtividade ou o baixo custo das atividades ou
serviços ineficientes.
Parece óbvio que, na contratação externa de serviços sociais,
o fundamental seja a existência de cláusulas perfeitamente
mensuráveis através de indicadores, tanto para identificar as
características das entidades a serem contratadas e garantir
sua responsabilidade social como para regular e controlar a
qualidade da atenção na atividade dos serviços e medir os
resultados. Ao contrário do que é hoje prática habitual, a
variável custo na contratação de serviços na área de
assistência social só deveria pontuar na adjudicação no caso
de um hipotético empate na pontuação dos critérios de
qualidade na atenção e nos resultados sociais propostos a
serem alcançados.
Só pela pequena capacidade de inovação pode-se entender
que na gestão dos serviços públicos, ainda hoje, persistam
critérios econômicos próprios do industrialismo, que, entre
outros, considera em sua contabilidade as pessoas como
gasto e os equipamentos e máquinas como ativo.
 À parte deste critério de racionalidade própria de qualquer
tipo de gestão dos recursos públicos, a gestão relacional – ou
de interdependências própria da governança – exige uma
série de outros critérios para que a prestação dos serviços
repercuta positivamente na geração de tecido social, ou no
seu fortalecimento, e na adaptação à diversidade social
própria do território. Só desse modo conseguirá os resultados
essenciais e a articulação necessária com as políticas de
desenvolvimento comunitário e as políticas públicas do
território.
 A coordenação com os serviços sociais e pessoais do
território para estabelecer uma cobertura na rede que
permita uma resposta integral aos desafios sociais através da
complementaridade dos serviços.
 A dimensão comunitária da gestão do serviço, de tal modo
que facilite a máxima inserção dos usuários e familiares em
associações e movimentos de interesse social. São muito
destacados na Província de Barcelona os serviços geridos por
associações dedicadas à assistência a pessoas com
122
dependência física e psíquica, assim como os dedicados à
prevenção e assistência aos dependentes químicos, em que
se canaliza a participação de pessoas usuárias e familiares
para as tarefas de voluntariado para a prevenção de riscos e
à ajuda mútua.
 A contribuição ao desenvolvimento da cultura cívica no
território e, deste modo, contribuir para a geração de capital
social.
Dado que “o traje não faz o monge”, não se pode concluir que as
entidades sem fins lucrativos sejam as depositárias da contratação
externa dos serviços em um governo relacional. Porém, parece
razoável que não sejam empresas ou entidades sem finalidades nem
práticas sociais, nem muito menos as que procedem de setores como
construção civil, construção de estradas, canais e portos ou com
especialidade na coleta e tratamento de resíduos sólidos, para citar
alguns exemplos reais, as que consigam maior pontuação nos
processos licitatórios de serviços sociais públicos. Esta é, no mínimo,
uma prova da confusão de critérios a que se pode chegar na gestão
pública. E, sem dúvida, constitui uma prova da permanência do modo
gerencial baseado na denominada escola da “Nova Gestão Pública”,
que optou pela imitação das empresas privadas, em vez de inovar na
gestão pública, que é do que realmente se trata.

123
A gestão de redes e a participação cidadã

A gestão relacional – ou seja, das relações sociais que constroem a


sociedade propriamente dita, já que esta é uma configuração espaço-
temporal de relações sociais que se localizam em um território – é o
instrumento fundamental da governança democrática, como
observamos anteriormente.
A gestão relacional tem duas dimensões fundamentais: a gestão de
redes ou das interdependências83 propriamente ditas e a participação
cidadã, à qual podemos agregar uma terceira, que é o apoio social às
estratégias e políticas públicas.
Por redes entendemos uma série de nós interconectados. Os nós não
são em temas sociais homogêneos, pois têm uma importância desigual
ou assimétrica. Uma situação social tem a configuração de rede se esta
depende da interação de um conjunto de atores e seu desenvolvimento
ou evolução depende da dinâmica que estabeleçam de maneira
consciente ou inconsciente entre si. Neste sentido, ainda que não se
tenha atuado em consequência disso, toda questão social é uma
questão de redes ou de interdependências de atores.
As redes sociais têm um sentido mais forte que as interações sociais.
Tudo interage com tudo, mas a rede se distingue porque existe uma
clara interdependência de um número reduzido de atores para
enfrentar um desafio ou uma situação social.
De maneira semelhante, um projeto em rede significa que a realização
do mesmo depende da ação de diferentes atores que contribuem com
recursos econômicos ou humanos para a realização do mesmo, e sem
eles a realização não seria possível.
As redes, portanto, implicam horizontalidade para poder identificar os
interesses e desafios dos distintos atores, articular estes interesses de
maneira complementar em estratégias, projetos, e compromisso de
ação para realizá-los.
O exercício da liderança na gestão de redes por parte do governo local
significa a possibilidade de criar e programar redes em função de
distintos objetivos sociais compartilhados, e, por outra parte, a
capacidade e habilidade para conectar distintas redes de atores de tal
modo que compartilhem objetivos e possam dispor de um maior
volume de recursos para os seus objetivos.
Na opinião de Castells, a importância de um nó em uma rede depende
de sua capacidade de contribuir para os objetivos da rede. 84 Em nosso
caso, em uma rede de atores, a liderança política é alcançada pela
capacidade de representação dos distintos interesses e pelo
desenvolvimento das habilidades para realizá-los através de políticas e
projetos.
Na perspectiva da governança, enfrentar um desafio ou um projeto
significa a necessidade de convocar todos os atores, mas não todos os
setores ou organizações que têm a ver, quer dizer, que serão direta ou
indiretamente beneficiados ou prejudicados pelo mencionado desafio
83
Ver M. Castells, La Galaxia Internet. Barcelona: Ed. Plaza y Janes, 2001, pp.15 a 29.
84
M. Castells, La Sociedad Red: una visión global. Madri: Ed. Alianza, 2006, p. 27.
124
ou projeto. As redes, como observado, agrupam atores
interdependentes – organizações e pessoas que têm tanto a
capacidade para desenvolver o projeto como para impedir que este
atinja seu objetivo. Falamos de interdependências de rede ou,
inclusive, de cooperação público-privada e institucional só nestes
casos.

A colaboração que a partir do governo local deve ser estabelecida


considera, no mínimo, os seguintes âmbitos:
 As relações intergovernamentais: tanto com governos de
distintos níveis territoriais como multilaterais com governos
do mesmo nível, sejam intermunicipais ou inter-regionais.
 As relações com grandes instituições: universidades, centros
de pesquisa e desenvolvimento, câmaras de comércio,
fundações culturais e educativas de prestígio, igrejas etc.
 As relações com o setor econômico privado: setores
econômicos produtivos e financeiros, empresas de capital de
risco, confederações e associações empresariais etc.
 As relações com agentes sociais e profissionais: sindicatos,
associações profissionais, associações de moradores,
movimentos sociais importantes etc.
A gestão relacional não é apenas gestão de redes, pois incorpora
também a dimensão participativa. Do contrário, ela seria uma gestão
excludente, uma vez que as organizações ou setores com pequeno
poder de ação ou reação não seriam levadas em conta. O que nos
assegura de que estamos falando de governança democrática, de uma
construção do interesse geral, é a dimensão participativa, o fato de
contar com todos os setores envolvidos e interessados. A distinção
entre gestão de redes, participação cidadã e apoio social a políticas ou
projetos é muito importante devido a suas consequências práticas.
Uma indiferenciação dificulta a operacionalização da governança.

A participação como envolvimento da cidadania na


construção da cidade

Em um sentido amplo, a gestão de redes e a política de apoio social


podem ser entendidas como participação cidadã. Mas aqui, justamente
para dar maior capacidade operacional à governança e seu principal
instrumento, a gestão relacional, será preciso mais.
Entende-se por participação cidadã o processo de envolvimento do
conjunto de setores da sociedade através de entidades e organizações
sociais, que não são propriamente atores em um âmbito concreto. O
objetivo principal é conhecer seus interesses, desafios e necessidades
para poder diferenciá-los dos seus posicionamentos.
A participação cidadã implica necessariamente a criação de espaços de
cidadania para a deliberação. Estes espaços devem ser, por sua vez,
flexíveis e bem organizados, com metodologias rigorosas e bem
orientadas para o objetivo de identificar, sistematizar e dar prioridade
aos interesses e necessidades sociais.

125
A participação da cidadania tem um impacto básico na capacidade de
organização e ação que a gestão relacional persegue – a articulação de
uma ampla rede social e o fortalecimento do capital social.
Por capital social se entende o conjunto de redes que as pessoas
podem formar para resolver problemas comuns. São redes de
compromisso cívico como entidades esportivas, associações de
moradores e culturais etc. Quanto mais densas são estas redes,
maiores as possibilidades de que os cidadãos cooperem para gerar
oportunidades comuns de bem-estar.85 Construir capital social requer
conhecimento do “outro”, a geração e preservação da confiança e
compromisso de atuar conjunta e coordenadamente.
A participação cidadã é entendida como um conjunto de processos que
têm por finalidade o envolvimento da cidadania no desenvolvimento da
cidade, isto é, que cidadãos se sintam parte da cidade. Participação
não é, na governança, um simples processo para canalizar demandas,
sugestões ou recomendações à administração municipal. Trata-se de
que as pessoas reconheçam sua importância no passado, presente e
futuro da cidade e se responsabilizem pelo andamento da mesma.
Participação é compromisso e colaboração cidadã.
No modo gerencial de governar, também encontramos processos de
participação, mas neste caso se dirigem à administração como clientes
e usuários, para que esta melhore a prestação e gestão de recursos e
serviços. Assim, encontramos processos participativos para fazer
recomendações e sugestões em:
 Análise das situações sociais.
 Programas para a gestão pública.
 Serviços que se adaptem às necessidades dos usuários.
 Realização de serviços públicos.
 Avaliação de resultados.
Na governança, estes processos são uma dimensão subordinada. O
importante é criar espaços, como fizeram muitos planos estratégicos,
em que o cidadão descortina o conjunto do território e não apenas a
oferta municipal ou pública, e se coloca em uma situação de
corresponsabilidade.
Para finalizar esta seção, é importante observar que muito
frequentemente ocorrem erros na concepção dos processos
participativos, que levam à inoperância dos mesmos e debilitam a
importante contribuição da participação cidadã à democracia local e
como dimensão que não só completa mas qualifica a democracia, que
é fundamentalmente representação. Entre os principais erros,
encontramos:
 Confunde-se participação com elaboração de estratégias ou
de projetos. A elaboração de estratégias e projetos é uma
tarefa complexa e precisa, de rigor técnico e conceitual, pelo
que não se pode deixar esta tarefa aos processos
participativos. Tal como já observado, os processos
participativos devem identificar desafios e interesses, e estes
são o principal insumo para a elaboração de estratégias. O
85
Ver D. Putnam, Making Democracy Work: Civic traditions in modern Italy. Princeton: Princeton
University Press, 1993. p. 125.
126
contrário significaria obter estratégias e projetos sem
legitimação nem apoio social, e o processo de elaboração
não teria impacto na melhoria da capacidade de organização.
 Atribui-se erroneamente à participação cidadã a aprovação
das estratégias e projetos. De fato, a participação irá
referendar e dar consentimento majoritário à estratégia e,
sobretudo, aos projetos. Mas a aprovação dos mesmos
depende dos atores que têm capacidade para levá-los a
termo. A aprovação participativa de projetos sem o
compromisso prévio dos atores relevantes para a sua
execução não traz a garantia de que estes serão
concretizados, com o que se produz uma importante
frustração de expectativas nas pessoas e uma desconfiança
nos processos participativos. Desconfiança que surge de
serem propostas aos participantes deliberações que não lhes
dizem respeito. Dos processos participativos podem, sim, sair
critérios de atuação que orientem a ação política e a gestão
de redes.
 Juntamente com o ponto anterior, verificamos que os
processos participativos se colocam como o lugar adequado
para a tomada de decisões que correspondem à atuação dos
eleitos e, de fato, reivindicam substituir os órgãos de
representação política. Este é um erro de graves
consequências democráticas, uma vez que qualquer
processo participativo é setorial-corporativo. A convocação
para os processos participativos se subordina a temas
predefinidos e os participantes, quando muito, representam
suas organizações, e não são escolhidos pelo conjunto da
cidadania. Considerar estes processos como substitutos das
instituições surgidas de votações gerais é, sem dúvida, uma
atitude antidemocrática e só explicável em situações em que
os processos eleitorais tenham sido corrompidos.
 Não se distingue com clareza duas dimensões da
participação. A participação cidadã na elaboração de políticas
municipais financiadas com recursos públicos da participação
cidadã no “fazer cidade”, em fazer parte de organizações
sociais, desportivas, culturais, de moradores etc., de adotar
comportamentos cívicos e, naturalmente, da participação
eleitoral. Ambas são importantes e se condicionam
mutuamente, mas os métodos para o seu desenvolvimento
são distintos e, sem dúvida, a segunda dimensão é
determinante.
A participação cidadã na elaboração e monitoramentos das políticas,
em condições de normalidade democrática, qualifica a democracia. Por
isto, sua finalidade deve ser concebida de tal modo que favoreça a
participação eleitoral e o interesse pelo monitoramento da política. Um
dos principais indicadores dos processos de participação cidadã
(embora não dependa apenas da participação) deveria ser o aumento
da participação eleitoral, o interesse pela política e o prestígio da figura
do representante político.

127
O apoio social às estratégias e políticas

O apoio social frequentemente engloba a participação, mas tem


finalidades próprias. Aqui não se trata de identificar os interesses dos
distintos setores da sociedade, mas de buscar o apoio social às
estratégias e projetos. Dito de outro modo, trata-se de promover e dar
visibilidade ao apoio da cidadania.
Uma das regras principais da eficácia do marketing de cidades é que
não se pode dar visibilidade ao que não se tem, isto é, o marketing
urbano deve assentar-se nas qualidades que efetivamente existem no
território. Da mesma maneira, os métodos para conseguir o apoio
estão destinados ao fracasso se as estratégias ou projetos não
correspondem aos interesses e necessidades expressadas ou sentidas
pela população.
Sem a existência prévia da participação cidadã, no sentido
anteriormente dito, dificilmente se conseguirá um amplo apoio social.
Muito embora sejam necessárias medidas que vão muito além dos
processos participativos para se alcançar um amplo apoio social.
Ainda que existam eventos que combinam com êxito um amplo
processo de participação com a visualização do apoio social, como no
caso das conferências de exploração estratégica, ambos os processos
devem ser pensados de maneira diferenciada.86
Conseguir um amplo apoio social é básico para uma estratégia de
futuro, porque proporciona a coesão da base social que pode sustentar
as mudanças sociais envolvidas.
A visibilidade do apoio social constitui, por sua vez, uma
“demonstração de força" para os promotores das estratégias, políticas
e projetos e, ao mesmo tempo, serve para dar a eles a coesão
necessária para empreender as ações.
Para conseguir um apoio social é necessária, sem dúvida, uma política
de comunicação e difusão da estratégia ou dos projetos estruturantes.
Embora este não seja um livro de técnicas sobre políticas de
comunicação urbana, é preciso dizer que a comunicação para a
sociedade com o objetivo de conseguir um forte apoio deve enquadrar-
se em uma cultura que promova o envolvimento da cidadania, e não a
simples aceitação. Para isto, a comunicação deve ter duas dimensões:
comover e convencer. O convencimento virá dos conteúdos
estratégicos e da facilidade com que possam ser explicados. Para
comover é preciso comunicar valores, muito especialmente os
seguintes:
 O sentimento de enraizamento e de identidade com a cidade,
que deve ser fortalecido como instrumento para gerar
responsabilidade social e predispor para ações voluntárias e
solidárias para com os outros.
 A autoestima cidadã para enfrentar os desafios do futuro com
esforço, porém com confiança.

Trata-se de uma metodologia criada pela equipe da “Estrategias de Calidad Urbana”; ver
86

www.equ.es

128
 O sonho realista em relação ao futuro, se as ações individuais
são inseridas na tarefa coletiva; trata-se de valorizar a
contribuição cidadã no trabalho coletivo.
 A união entre tradição e modernidade na cidade, para
articular todos os setores da cidadania em uma mesma
perspectiva de futuro, que será aquela que olhe o passado
com os olhos de futuro.
A gestão de rede de atores, combinada com um amplo processo de
participação cidadã e de apoio social, inseridos todos os três em um
marco estratégico, articula a coesão social prévia e necessária para
que se produza o desenvolvimento humano na cidade.

A organização municipal necessária para a


governança democrática

Em uma organização municipal cujo foco principal seja a prestação de


serviços e a gestão de recursos, o principal apoio para o político com
responsabilidades de governo é um gerente ou uma gerente de
serviços com especialidade em gestão. É comum que esta pessoa de
apoio seja especializada em administração de empresas – é o que já
mencionamos como o modo gerencial.
Na governança democrática, em que a gestão municipal sofre uma
importante transformação, também os organogramas passam a ser
modificados. O principal apoio ao prefeito serão as pessoas
especializadas em gestão relacional. Isto porque se trata de direcionar
a gestão dos recursos e serviços no sentido de apoiar a melhoria da
capacidade de organização e ação da cidade ou município.
Nas prefeituras que optam pela governança, se produz uma mudança
no peso específico dos profissionais e departamentos. As mudanças de
organograma dependem do tamanho e complexidade das prefeituras e
áreas municipais. Porém, com a exceção do topo da estrutura
executiva, que é assumido por uma pessoa com enfoque e capacidade
nas técnicas de gestão relacional, nestes governos locais já se
observam tendências para a organização municipal da governança
como:
 O surgimento dos departamentos de participação e
cooperação cidadã que dependem diretamente do prefeito
ou secretário responsável por uma área de atuação.
Logicamente a participação não é entendida apenas como
participação na elaboração e monitoramento das políticas
municipais, mas como participação na cidade, nos processos
de melhoria da coesão social.
 Uma concentração em um só departamento subordinado ao
líder político de profissionais com responsabilidade na
definição e promoção de estratégias, participação e
comunicação cidadã, assim como dos programas ou projetos
interdepartamentais.
 Uma importância maior para as políticas transversais e,
sobretudo, para a gestão das interdependências de
departamentos para alcançar objetivos sociais.

129
Em geral, os departamentos e áreas são definidos por
prestações de serviços: esportes, ensino, serviços sanitários e
serviços sociais. O que ocorre é que alguns não se definem pelo
tipo de benefícios e serviços que prestam, mas por objetivos de
impacto na população, e se denominam, por exemplo, saúde em
vez de serviço sanitário, educação em vez de ensino, ou
inclusão social em vez de serviços sociais etc., que são objetivos
compartilhados por outros sistemas de serviços e benefícios.
A gestão relacional vai além da transversalidade. A
transversalidade das políticas, como por exemplo a promoção
da igualdade de gênero, tem como finalidade que os
departamentos, áreas etc., isto é, as estruturas verticais,
compartilhem a consecução de um objetivo comum sem que
seja objetivo de nenhuma delas em particular. A
transversalidade exclui a gestão operacional, os órgãos
transversais não participam de projetos operacionais, apenas
monitoram o impacto produzido na sua finalidade. Todavia os
objetivos sociais de impacto, como “dar cobertura às
necessidades básicas” ou “reduzir as desigualdades em capital
educacional ou cultural”, exigem a articulação de diferentes
sistemas de benefícios: serviços sociais, serviços sanitários,
ensino, moradia etc., mas neste caso se necessita de uma
gestão de tipo operativo interdepartamental e interinstitucional;
por esta razão, fala-se de gestão das interdependências.
Estas tendências irão se configurando de maneira progressiva na
maioria dos governos locais e nos departamentos de bem-estar social
ou serviços sociais, em especial, dada a falência do modo gerencial
como consequência da mudança das condições econômicas e sociais
que o fizeram surgir.

130
Referências
selecionadas

131
Abaixo são indicadas as referências bibliográficas e páginas eletrônicas mais
diretamente relacionadas à temática do livro e possivelmente úteis ao leitor
que queira se aprofundar na mesma.

1. Bibliografia

AERYC (II Conferencia Internacional). Regiones y Ciudades ante el


Desarrollo Humano Contemporáneo: La Governanza Democrática.
Sevilha: Junta de Andalucía, 2006.
AERYC (I Conferencia Internacional). Estrategia Regional y Governança
Territorial: La Gestión de Redes de Ciudades. Sevilha: Junta de
Andalucía, 2004.
ALGUACIL, J. (org.). Poder Local y Participación Democrática. Barcelona:
El Viejo Topo, 2006.
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Desarrollo más allá de la
Política. Washington D.C.: BID, 2001.
BAUGMAN, Z. En Busca de La Política. México: F.C.E., 2002.
BECK, U. La Democracia y sus enemigos. Barcelona: Paidós, 2000.
BLANCO, I y Gomà, R. Gobiernos locales y redes: retos e innovaciones.
Instituto de Gobierno y Políticas Públicas, 2002.
CASTELLS, M. Observatorio Global. Barcelona: Ed. La Vanguardia, 2006.
CENTELLES, J. El Buen Gobierno de la Ciudad. La Paz: IIG, 2006.
CERRILLO, A. (org.) La Governanza Hoy: 10 Textos de referencia. Madri:
INAP, 2005.
GIDDENS, A. Europa en la Era Global. Barcelona: Paidós, 2007.
INNERATY, D. El Nuevo Espacio Público. Madri: Espasa, 2006.
KYMLICKA, W. La ciudadanía multicultural. Barcelona: Paidós, 1995.
MOUFFE, Ch. El retorno de lo Político. Barcelona: Paidós, 1999.
OVEJERO, F. MARTÍ, J. L., GARGARELLA, R. Nuevas Ideas Republicanas.
Barcelona: Paidós, 2003.
PASCUAL ESTEVE, J.M. La Estrategia Territorial como inicio de la
Governanza Democrática: Los planes estratégicos de 2ª generación.
Barcelona: Diputación de Barcelona, 2007.
PASCUAL ESTEVE, J.M. La Gestión Estratégica de las Ciudades: Un
instrumento para gobernar las ciudades en la Era Infoglobal. Sevilha:
Junta de Andalucía, 2002.
PRATS, J. A los príncipes republicanos: Governanza y desarrollo desde
el republicanismo cívico. Madri: INAP, 2006.
PUIG, T. La Comunicación Municipal Cómplice con los Ciudadanos.
Barcelona: Paidós, 2003.
SUBIRATS, J. “¿Qué gestión pública para qué sociedad? Una mirada
prospectiva sobre el ejercicio de la gestión pública en las sociedades

132
europeas actuales”. Instituto de Gobierno y Políticas Públicas. UAB,
2003.
VIDAL BELTRAN, J.M. y PRATS, J. Governanza. Diálogo Iberoamericano.
Madri: INAP, 2005.
VVAA. Las democracias urbanas en Europa. Madri: INAP, 2006.
ZAFRA, M. El ayuntamiento como gobierno facilitador de consensos.
Barcelona: Fundación Pi i Sunyer, 2007.

2. Links eletrônicos

www.abas.org ABAS (Asociación Barcelona para la Acción Social) é uma


parceria público-privada dedicada à promoção da governança na área
do bem-estar social na cidade de Barcelona. É interessante pelos seus
documentos e projetos que promovem esta nova forma de governar.
www.aeryc.org AERYC (América-Europa de Regiones y Ciudades), é um
movimento internacional que tem como finalidade o desenvolvimento
da governança territorial. A página eletrônica contém, entre outros
temas de interesse, os livros com as principais conferências e
apresentações de suas conferências anuais, assim como boas práticas
em governança. São de especial interesse, por sua singularidade, os
temas de gestão regional através dos sistemas de cidades e as
conclusões de suas conferências anuais.
www.diba.es/servsocials É interessante para o conhecimento dos
programas de apoio das políticas de bem-estar social às iniciativas
locais na Província de Barcelona.
www.iigov.org É a página do Instituto Internacional de Governabilidade
da Catalunha. Suas publicações eletrônicas têm grande interesse e, em
especial, a revista do instituto especializada na temática da
governança. Sua revista eletrônica Instituciones y Desarrollo também
merece atenção.

133
Josep Maria Pascual Esteve
Jose Maria Pascual Esteve

Especialista em gestão estratégica de territórios e políticas públicas. Sócio e


diretor da empresa Estratégias de Qualidade Urbana. É também presidente da
Fundação Cidadania e Bom Governo e membro fundador e coordenador técnico
da Associação Internacional América-Europa de Regiões e Cidades (AERYC).

Entre 1975 e 1985 foi professor da Faculdade de Economia da Universidade de


Barcelona.

Na área de planejamento estratégico de cidades dirigiu, entre outros, os


planos estratégicos de Valência, Sevilha, Gijón, Comarca de Avilés, Encamp y
Pas de la Casa (Andorra), Gerona, Mollet y Viladecans. Assessorou
tecnicamente a elaboração dos planos estratégicos de Málaga, Mataró, Gerona.
Foi também diretor técnico do Mapa dos Planos Estratégicos da Província de
Barcelona e o Plano Estratégico da Província de Córdoba.

Foi especialista da Cepal para a redação do documento preparatório do


seminário “Lecciones y experiencias del Programa URB-AL en 2007.

Publicou diversos livros nas áreas de planejamento estratégico urbano e


regional e de política social, entre os quais se destacam:

• La estrategia territorial como inicio de la gobernanza democrática.


Los planes estratégicos de segunda generación. Diputación de
Barcelona, Barcelona, 2008.

134
• Estrategia Regional y Gobernanza Territorial: La gestión de redes de
ciudades. Junta de Andalucía, Sevilla, 2004 y América-Europa de
Regiones y Ciudades.
• La gestión estratégica de las ciudades. Un instrumento para gobernar
las ciudades en la era info-global. Junta de Andalucía. Sevilla, 2002.
• La Estrategia de las ciudades. Los planes estratégicos como
instrumento: métodos, técnicas y buenas prácticas. Diputación de
Barcelona y Centro Iberoamericano de Desarrollo Estratégico.
Barcelona, 1999.

Publicou, também, artigos nas áreas de economia urbana e planejamento


estratégico.

Foi também expositor e coordenador de diferentes seminários internacionais


sobre temas urbanos na Argentina, no Brasil, na Colômbia, no Chile, na
Espanha, no México e no Uruguai.

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