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4.

A ECONOMIA

O progresso e a riqueza económica da ilha causaram a


estupefacção de todos aventureiros e forão um forte incentivo à
presença de novos colonos e de avanço do processo de
reconhecimento das ilhas e litoral Atlântico. Tudo isto, segundo
Gaspar Frutuoso1, resultou do espiríto empreendedor dos primeiros
colonos madeirenses, que sob as ordens dos capitães empenharam-se
em "cultivar e beneficiar a terra para dar fruto".
João Gonçalves Zarco, após o reconhecimento da costa
meridional da ilha, fixou-se no Funchal enquanto Tristão Vaz
recolhe-se ao vale de Machico. É a partir destes dois pólos, mais
tarde sedes das capitanias, que irradiou a força dos
cabouqueiros. O processo foi rápido, tal como o testemunham os
cronistas. Zurara refere-nos que "em breve tempo foi grande parte
daquela terra aproveitada"2, sendo corroborado por Gaspar
Frutuoso3: "Foi assim tudo tanto em crescimento em ambas as
jurdições, com boa diligência de seus capitães, que em breve
tempo se povoou e enobreceu a ilha toda (...). Crescendo as
povoações e moradores com a fama da sua fatalidade..."
Desde o início da ocupação, é evidente o contraste entre as
ilhas do Porto Santo e Madeira. Assim, segundo Zurara na primeira
"não se pode em ela fazer lavra"4. A principal dificuldade
estava, segundo Valentim Fernandes5, no "não aver aguas a terra
em si esteril", o que implicou que "não se fez tanta obra nela
como em a iha de Madeira...". Aliás, esta última era "mais nobre
e mais rica e mais avendosa". A falta de águas só permitiu as
culturas de sequeiro e a valorização do pastoreio. Para Zurara a
sua importância está na criação de gado. É ele quem refere a
praga dos coelhos e a constatação de que "criam-se ali muitos
gados". Note-se que foi com a carta de doação da capitania do
Porto Santo que o infante se deu conta da importância do gado
bravo e apastorado. A estas duas junta-se a Deserta, que segundo
Zurara era "intenção de a mandar povoar com as outras", lançando-
se para isso gado.
Distribuídas as primeiras terras, um longo trabalho
esperava os primeiros colonos: as queimadas, a construção de
paredes encosta fora, para retenção da terra, o delineamento das
levadas para o regadio e aproveitamento da força motriz nos
moinhos, serras de água e, depois, engenhos açucareiros.

1
Livro Segundo das Saudades da Terra, P.D., 1979, p. 93.

2
Crónica de Guiné, Porto, 1973, p. 347.

3
Ob. cit., p. 94 e 97.

4
Ob. cit., p. 347.

5
Ob. cit., p. 113.
À mão de todos estavam as madeiras resultantes do abundante
arvoredo que cobria a ilha da Madeira6. O arroteamento das terras
implicava o seu desbaste. E foi aí que o colono encontrou uma das
primeiras riquezas, verdadeira dádiva da natureza. Com as
madeiras foi possível avançar na contrução naval e civil,
beneficiando a marinha e a cidade de Lisboa. Assim o refere
Jerónimo Dias Leite7: "E neste tempo pela muita madeira que daqui
levavão pera o reino começarão com ela a fazer navios de gavea, e
castello da vante, porque dantes não havia no reino..."
Todavia, esta riqueza e preciosidade das madeiras foi efémera. Em
pouco tempo aquilo que existia em abundância passou a ser uma
raridade, contribuindo para isso a necessidade de desbravar a
densa floresta para abrir as arroteias.

6
Confronte-se O manuscrito de Valentim Fernandes, Lisboa, 1940, 111-112.

7
Ob. cit., p. 20.
As queimadas comuns na Europa, tiveram aqui lugar e forão
responsáveis por um duradoiro incêndio. É o que refere João de
Barros: "...assim tomou o fogo posse da roça e do mais arvoredo,
que sete anos andou vivo no bravio daquelas grandes matas que a
natureza tinha criado avia tantas centenas de aunos. A qual
destruição de madeira posto que foi proveitosa para os primeiros
povoadores logo em breve começarem lograr as novidades da terra:
os presentes sentem bem este dano, por a falta que tem de madeira
e lenha: porque mais queimou aquele primeiro fogo do que
lentamente ora podera delepar força de braço e machado. Cousa que
o infante muito sentio e parece que como profecia vio esta
necessidade presente que a ilha tem de lenha: porque dizem que
mandava que todos plantassem matas,..."8. Algumas das fontes
insistem na durabilidade do incêndio que ateou na ilha o próprio
João Gonçalves Zarco para abrir clareiras. Todos os autores
referem o terrível espectáculo do fogo e o facto de Zargo e
companheiros terem fugido de terra, abandonando os seus haveres.
Hoje todos estão de acordo que este incêndio não durou sete nem
nove anos, devendo ser entendido como o sucedâneo de queimadas
para abrir clareiras onde lançar a semente e construir a casa de
habitação. Este fogo certamente que não atingiu a encosta norte
da ilha, que permaneceu por muito tempo como uma densa floresta,
aos poucos debastada para retirar a lenha necessária como
combustível e as madeiras para construir habitações e engenhos.
A importância das madeiras está bem patente no facto de o
infante ter determinado, nas cartas de doação e lembranças e
regimentos, de tributar o seu aproveitamento. Ele tinha direito
ao dizimo das madeiras usadas na construção de habitações e
latadas, das lenhas para uso caseiro e industrial. Todas estas,
mesmo em terras de sesmaria, eram sua propriedade, como se pode
inferir da doação na Madalena a Henrique Alemão: "com condição
que das ditas terras e lugar não pague senão o dizímo de tudo o
que seus der em ele, salvando paus de teixo, vino, canas e
quaisquer tintas que houver e gomas, que tudo seja para mim"9.
Contra isto reclamaram em 1461 os moradores do Funchal ao infante
D. Fernando no que não tiveram qualquer apoio. Também nas cartas
de doação das capitanias refere-se a esta importante industria.
Assim aqueles que construíssem serras de água10 deveriam entregar
ao capitão "um marco de prata em cada um ano ou seu certo valor
ou duas tábuas cada semana das que costumarem serrar", enquanto
ao infante era devido "o dizímo de todas as ditas serras segundo
pagam das outras coisas o que serrar as ditas serras". Acresce
que nos capítulos do regimento atribuído a D. João I está
valorizada esta actividade ligada ao aproveitamento das madeiras.
Aí alude-se os "de menos, que vivam do seu trabalho e de cortar
de talhar madeiras...", o que quererá significar que foi uma
actividade muito importante no primeiro momento de ocupação da
ilha.
8
Ásia, década primeira, Coimbra, 1932, p. 19.

9
ANTT, Livro das Ilhas, fl. 31v1.

10
Veja-se Jordão de FREITAS, Serras de Água da Madeira e Porto Santo, Lisboa, 1937.
A par disso é de notar o aproveitamento de outros recursos
que na época tinham grande valor comercial. Referimo-nos ao
sangue de drago11. Em ambas as ilhas eram abundantes os
dragoeiros, mas especialmente no Porto Santo ele mereceu maior
atenção dos povoadores, por ser o primeiro e principal recurso
disponível.
Outra importante fonte de riqueza terá sido a criação de
gado. Não obstante, alguns cronistas referirem a existência de
gado selvagem no Porto Santo, onde os castelhanos faziam
carnagem12, o certo é que nas ilhas não se encontrava qualquer
espécie animal indígena com utilidade para o homem. É por isso
que aqui, a exemplo do que virá a suceder nos Açores, o processo
de povoamento inicia-se com o lançamento de gado trazido do
reino13. Isto era uma forma, não só de testar a capacidade de
sobrevivência dos seres vivos, mas também de assegurar um
primeiro suplemento alimentar aos primeiros colonos14. Daqui
resultou que a criação de gado se transformou numa das primeiras
e principais riquezas. Assim o testemunha, em meados do século
XV, Cadamosto. Quanto ao Porto Santo ele refere que "é abundante
de carne de vaca, porcos selvagens e infinitos coelhos", enquanto
a Madeira é "abundante em carnes". Esta reserva de pastos
propiciava o desenvolvimento da pecuária, provocada pelo uso na
alimentação dos primeiros habitantes da ilha, mas também para o
abastecimento das embarcações que demandavam a costa africana
que, desde 1455, segundo nos informa Zurara, tinham aqui escala
obrigatória na ilha.

As culturas de subsistência e de exportação.

A organização do sector produtivo fez-se de acordo com as


exigências da dieta alimentar dos colonos e as solicitações do
mercado europeu. Assim, os elementos típicos da dieta cristã-
mediterrânica (os cereais, as videiras) são os primeiros a
embarcar. Só, depois, num segundo momento, surjiram os produtos
de grande procura nas cidades europeias: o pastel e cana de
açúcar.

11
Diz Cadamosto: "é uma goma, que eles estilam em certo tempo do ano, e se colhe por
esta maneira: fazem alguns golpes de cutelo no pé da árvore, e no auno seguinte em certo tempo,
as ditas cortaduras estilam a goma que cozem, e purificam e assim se faz o sangue".

12
Valentim Fernandes refere: Os castelhanos em conquistando as Canárias vieram ter a
esta ilha do Porto Santo em tempo, e acharam n'ella as cabras de que fizeram carnagem (...). E de
ahi avante quando iam sobre os canários sempre vinham a dita ilha fazer carnagem".

13
"cada veram mandava navios com animaes domesticos, ferro, e asso, e gado que tudo
frutificava grandemente" (Jerónimo Dias LEITE, ob. cit., p. 19).

14
Note-se o que sucederá mais tarde nos Açores e aqui com a ilha Deserta. O testemunho
de Zurara é paradigmático: "E fez lançar gado em outra ilha, que está a sete léguas da ilha da
Madeira, com intenção de a mandar povoar como as outras, a qual se chama a ilha Deserta..."
(ob.cit., cap.LXXXIII, p.349).
As condições em que se estabeleceram as primeiras arroteias
fizeram com que as sementes de cereal, lançadas sobre as cinzas
das queimadas, frutificassem em abundância. Diz Jerónimo Dias
Leite que de um alqueire semeado se colhiam sessenta, enquanto
Diogo Gomes refere "que uma medida dava cincoenta e mais".
Cadamosto corrobora o primeiro mas anota que esta relação foi
baixando devido à deterioração do solo. Ainda, segundo ele, a
ilha produzia 3000 moios de trigo de que só tinha necessidade de
um quarto. O demais era exportado para o reino, tal como o diz
Diogo Gomes: "E tinham ali tanto trigo que os navios de Portugal,
que por todos os anos ali iam, quase por nada o compravam". Em
data, que desconhecemos, estabeleceu o infante D. Henrique ou o
rei a obrigatoriedade de envio de mil moios para a Guiné, o que
era considerado, na década de sessenta um vexame para os
funchalenses, que prontamente reclamaram ao novo senhor da ilha,
no que não tiveram grande acolhimento por ser "trato de el-Rei".
Até à década de 70, a paisagem agrícola madeirense foi dominada
pelas searas, decoradas de parreiras e canaviais. A cultura
cerealífera dominava, então, a economia madeirense. A este
propósito refere Fernando Jasmins Pereira que no período
henriquino os cereais constituíram a base da colonização da
ilha15.
A fertilidade do solo, resultante das queimadas, fez com
que esta cultura atingisse níveis de produção espectaculares, que
a historiografia quatrocentista e quinhentista anuncia com
assiduidade, notando que o cereal se exportava para o reino e
praças africanas. Em meados do século, segundo Cadamosto, a ilha
produzia 3000 moios de trigo, que excedia em mais de 65% as
necessidades da parca população16. Este excedente, avaliado em
cerca de 2/3 da produção, era exportado para o reino e, segundo
os cronistas, vendido ao preço de quatro reais17. Desde 1461,
1000 moios foram suprir as carências dos assentamentos africanos,
ficando conhecidos como o saco da Guiné18.

15
. Fernando Jasmins Pereira, Alguns elementos para o estudo da História Económica da
Madeira, 99.

16
. Segundo Vitorino Magalhães Godinho (ibidem, 233). O consumo rondava entre os 930 e
1100 moios pelo que sobravam 1900 a 2000 moios.

17
. "Relação de Diogo Gomes", in Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, n1 5, 291-
292; Jerónimo Dias Leite, O Descobrimento da ilha da Madeira /.../, Coimbra, 1947, 180-181.

18
. A.R.M., C.M.F., Registo Geral, T, I., fl. 204-205, 3 de Agosto de 1461,
"Apontamentos e capitolos do Ynfante don Fernando pera ylha", in A.H.M., vol. XV, 11-20.
A partir da década de 60, com a valorização do comércio do
açúcar, as searas diminuíram em superfície e a produção
cerealífera passou a ser deficitária. Por isso, a partir de 1466,
a ilha precisava de importar trigo para sustento dos seus
vizinhos, sendo impossível manter as escápulas estabelecidas19.
Em em 1479, referia-se que a produção dava apenas para quatro
meses. Tudo isto derivou da acção dominadora dos canaviais,
aliada ao rápido esgotamento do solo e inadequação da cultura,
resultante de uma exploração intensiva, sem recurso a qualquer
técnica de arroteamento. O agravamento do défice cerealífero nas
décadas de 70 e 80, que conduziu à fome em 1485, foi a principal
preocupação das autoridades locais e centrais. Primeiro procurou-
se colmatar a falta com o recurso à Berberia, Porto, Setúbal,
Salónica; depois foi necessário definir uma área externa
produtora, capaz de suprir as necessidades dos madeirenses. Assim
sucedeu, desde 1508, com a definição dos Açores como principal
área cerealífera do Atlântico português: as ilhas açorianas
actuam como o celeiro de provimento da Madeira e capaz de a
substituir no fornecimento às praças africanas. A Madeira, que se
havia afirmado no período henriquino, como um importante mercado
de fornecimento de trigo, passou no governo fernandino à situação
de comprador, adquirindo mais de metade do seu consumo nas ilhas
vizinhas: Açores, Canárias20. Felizmente que a crise cerealífera
madeirense é concomitante com a sua afirmação no solo açoriano. O
rápido incentivo do povoamento deste arquipélago nas décadas de
60 e 70, conduziu ao igual desenvolvimento da cultura
cerealífera, de modo que esta se afirmava, em finais do século,
como a principal área produtora de trigo do Novo Mundo.
A insuficiente colheita cerealífera insular, acompanhada da
incidência de crises de produção, conduziram à valorização da
componente leguminosa e frutícola na dieta insular. Assim a
fruticultura e horticultura apresentar-se-ão como componentes
importantíssimas na economia de subsistência. Gaspar Frutuoso, em
finais do século XVI, alude com frequência às hortas e quintais,
que ornamentavam a paisagem humanizada, onde se produzia um
conjunto variado de legumes e frutas21. Estes, para além do uso
na dieta alimentar, eram também valorizados pelo uso no
provimento das caravelas que aportavam com assiduidade ao porto
do Funchal.
19
. Cadamosto, em meados do século XV, refere que de uma produção inicial de 1:60 se
havia passado para 1:30 ou 1:40 ("Navegações de Luís de Cadamosto", in A. Aragão, A Madeira vista
por estrangeiros). Giullio Landi ("Descrição da ilha da Madeira", ibidem, 84), em cerca de 1530,
dá conta dessa situação de modo explícito: "A ilha produziria em maior quantidade se semeasse.
Mas a ambição das riquezas fez com que os habitantes, descuidando-se de semear trigo, se dediquem
apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram maiores proventos, o que explica não se colher na
ilha trigo para mais de seis meses, por isso há uma carestia de trigo pois em grande abundância é
importado das ilhas vizinhas".

20
. Giulio Landi em 1530 refere a sua importação das ilhas vizinhas (Ibidem) e Pompeo
Arditi em 1567 refere que o "trigo que aí se colhe é muito bom, mas tão pouco que não chega para
a terça parte da ilha; por isso são obrigados a importá-los das Canárias e das ilhas dos Açores"
"Viagem à ilha da Madeira e aos Açores", in ibidem, 130). Gaspar Frutuoso (ob.cit., L1 II, 114) em
finais do século, elucida que a ilha precisa de importar anualmente doze mil moios de trigo.

21
. Saudades da Terra, L1 I; caps. XII-XX; L1 II, caps. IX, XV-XIX; L1 III, caps. LVI-
LVIII; L1 VI, caps. III-IV, XXXII-XXXIII, XXXVII, XLI, XLVII.
Os cabouqueiros peninsulares transportam conjuntamente com
os poucos grãos de cereal alguns bacelos das boas cepas
existentes no reino, de modo a poderem dispor do precioso
rubinéctar para o ritual cristão e alimento diário. A videira
adaptou-se com facilidade ao solo insular e conquistou uma
posição importante na economia de troca. Cadamosto, que em meados
do século XV visitou a Madeira, ficou deslumbrado com o rápido
crescimento da cultura, aduzindo que a ilha "tem vinhos,
muitíssimo bons; se se considerar que (...) é habitada há pouco
tempo são em tanta quantidade, que chegam para os da ilha e se
exportam muitos deles"22. A partir da segunda metade do século
XVI procedeu-se a uma transformação na vida agrícola madeirense.
Os trigais e os canaviais deram lugar ás latadas e balseiras, a
vinha tornou-se a cultura exclusiva do colono madeirense, à qual
passou a dedicar toda a sua acção e engenho. O vinho adquiriu o
primeiro lugar na economia madeirense, mantendo-se por cerca de
três séculos.
A evolução viti-vinícola madeirense é apresentada de modo
exemplar por alguns visitantes. Em 1547 Hans Standen definia a
economia da ilha pelo binómio vinho/açúcar, enquanto, em Maio
desse ano a vereação funchalense decidia o preço do vinho, uma
vez que "as mais pessoas della vivem de vinhos"23. O reforço
disto sucede na década de 70, altura em que o vinho viria a
apresentar-se como o primeiro e principal produto de
exportação24. Em 1583 T. Nichols referia que "la producción
principal de este país es una gran cantidad de vino
excepcionalmente bueno, que se lleva a muchos lugares"25. E, em
1590, Torriani dava conta da abundância de vinho na ilha,
referindo que "superou em mucho lo que en su tiempo habia visto
Alvise da Mosto"26.

MUITO AÇÚCAR E POUCO PASTEL

Enquanto os produtos anteriormente referenciados surgem


como uma necessidade emergente da dieta alimentar dos colonos
europeus, outros há que aparecem como uma imposição da Europa
Atlântica, ou seja, com a finalidade de suprir as necessidades do
mercado europeu. A Europa distribuiu os produtos de cultivo pelas
áreas adequadas e assegurou as condições à sua implantação,
escoamento e comércio. Nestas circunstâncias surge a cana-de-

22
. "Navegação /.../", in António Aragão, ob. cit., 37.

23
. A.R.M., C.M.F., n1 1308, fl. 44, 14 de Maio de 1547.

24
. Segundo Duarte Lopes em 1578, Vitorino Magalhães Godinho, ob. cit., III, 244.

25
. Alejandro Cioranescu, ob. cit., 122.

26
. Descripcion e Historia de la islas Canarias /.../, Santa Cruz de Tenerife, 1978,
266.
açúcar. Os incentivos da coroa e municípios, aliados à elevada
procura pelos agentes europeus, actuaram como mecanismo de
desenvolvimento e expansão da cultura. A cana-de-açúcar, pelo
alto valor económico no mercado europeu-mediterrânico foi um dos
primeiros e principais produtos que a Europa legou e impôs às
novas áreas de ocupação. Primeiro chegou à Madeira e daí passou
para os Açores e Canárias.
A cana-de-açúcar, na primeira experiência além-Europa,
evidenciou grandes possibilidades de desenvolvimento fora do
habitat mediterrânico. Esta evidência catalizou as atenções do
capital estrangeiro e nacional, que apostaram no crescimento e
promoção desta cultura na ilha. Só assim se poderá compreender
este rápido avanço. Se nos primórdios da ocupação do solo insular
se apresentava como uma cultura subsidiária, a partir das últimas
décadas do século XV aparece como o produto dominante, situação
que se manteve até à primeira metade do século XVI.
Os canaviais aparecem, num segundo momento, por iniciativa
do infante que os mandou vir da Sicília. Neste caso os
testemunhos são claros27, sendo de referir Cadamosto: "E por ser
banhada por muitas águas, o dito senhor mandou pôr nesta ilha
muitas canas de açúcar, que deram muito boa prova"28. Isto é
documentado, mais tarde em 1511, por Simão Gonçalves da Câmara:
*que vendo a calidade da terra desta ilha e a temperamça della
pareceo-lhe que se podia dar açucares e sabendo a aspeza da terra
e os grandes trabalhos que os primeiros pouoadores tinham em a
romperem determinou como muito virtuoso ajudar a seus lavradores
e tambem pelo proveito que lhe disso seguia de mandar trazer a
planta das canas a esta terra e ordenou e quiz que pondo ele a
dita pranta em cada um ano e os lauradores pudessem o esmoutar e
tirar e laurar e plantar+29. A primeira plantação teve lugar no
Funchal, num terreno do infante, conhecido como o campo do duque.
Daqui os canaviais foram levados para Machico, onde se fabricou o
primeiro açúcar - 13 arrobas -, que foi vendido a cinco cruzados
a arroba30.
Sabe-se que o infante permitiu aos povoadores a construção
de engenhos para a laboração do açúcar sujeitando-se ao pagamento
de 1/3 da produção. Destes apenas temos notícia do construído por
Diogo Teive, conforme autorização escrita do próprio infante de
145231. Daqui se infere da existência de um lagar propriedade do
senhor infante. O fabrico do açúcar fazia-se em exclusivo neste
lagar já existente e no novo engenho de água, pois "que eu não dê
lugar a ninguém que possa fazer outro semelhante e não se podendo
todo fazer que eu dê lugar a quem me prouver que faça outro".

27
Confronte-se J. Dias LEITE, ob. cit.; Gaspar FRUTUOSO, ob. cit., p. 146.

28
Ob. cit., p. 37.

29
ANTT, C.C., 10 parte, maço. 27, doc. 22.

30
J. Dias LEITE, ob. cit., p. 102; Gaspar FRUTUOSO, ob. cit., p. 146.

31
RGCMF, T. I, fls. 132-132v1, publ. AHM, Vol. XV, pp. 7/8.
Do primeiro açúcar começou a fazer-se exportação. Assim
Cadamosto dá conta da promissora produção: "... e fabricaram-se
açúcares pela quantidade de quatrocentos cântaros, tanto na
primeira cozedura, como da mistura e pelo que posso perceber,
far-se-á com o tempo maior quantidade (...). Fazem-se ali também
muitos doces cobertos com suma perfeição". Para Diogo Gomes os da
ilha "fabricam açúcar em tal quantidade que é exportado para as
regiões orientais e ocidentais".
A cana sacarina usufruindo do apoio e protecção do senhorio
e da coroa, conquista o espaço arroteado das searas, expandindo-
se a todo o solo arável da ilha. Aí poderemos distinguir duas
áreas: a) a vertente meridional (de Machico à Calheta), com um
clima quente e abrigada dos alíseos, onde os canaviais atingem os
400 m de altitude; b) o nordeste, dominado pelas plantações da
capitania de Machico (Porto da Cruz e Faial até Santana), solo em
que as condições mesológicas não permitem a sua cultura além dos
200m, nem uma produção idêntica à primeira área.
A capitania do Funchal agregava no seu perímetro as melhores
terras para a produção do açúcar, ocupando a quase totalidade do
espaço da vertente meridional. À capitania de Machico restava
apenas uma ínfima parcela desta área e todo um vasto espaço
acidentado impróprio para a cultura. Assim, em 1494, do açúcar
produzido na ilha, apenas 20% da capitania de Machico e o
sobrante da capitania do Funchal; em 1520 a primeira atinge 25% e
a segunda os 75%.
Criadas as condições a nível interno por meio do incentivo
ao investimento de capitais na cultura da cana-de-açúcar e
comércio de seus derivados, do apoio do senhorio, da coroa e da
administração, a cana estava em condições de prosperar e de se
afirmar, por algum tempo, como o produto dominante da economia
madeirense. O incentivo externo do mercado mediterrâneo e nórdico
aceleraram este processo expansionista.
No século dezasseis alterou-se a situação preferencial do
açúcar madeirense. Na década de 30 consumou-se em pleno a crise
da economia açucareira, e o ilhéu viu-se na necessidade de
abandonar os canaviais ou de os substitiur pelos vinhedos, o que
sucedeu de modo evidente a partir de meados do século XVI. A
historiografia tradicional vem apresentando múltiplas explicações
para esta crise, assentes fundamentalmente na actuação de
factores externos. No entanto Fernando Jasmins Pereira com o seu
estudo sobre o açúcar madeirense, contraria essa opinião fazendo
assentar a crise em determinantes comdições ecológicas e sócio-
económicas da ilha, definindo como primordial o primeiro factor:
"...a decadência da produção madeirense é primordialmente
motivada por um empobrecimento dos solos que, dada a limitação da
superfície aproveitável na cultura, vai reduzindo inexoravelmente
a capacidade produtiva"32. Deste modo, a crise da economia
açucareira madeirense não se explica apenas pela concorrência do
açúcar das Canárias, Brasil, Antilhas e S. Tomé mas, acima de
tudo, pela conjugação de vários factores de ordem interna: a
carência de adubagem, a desafeição do solo à cultura e as
32
. Ibidem, p. 150.
alterações climáticas. A concorrência do açúcar das restantes
áreas produtoras do Atlântico, bem como a peste (em 1526) e a
falta de mão-de-obra vieram agravar a situação de crise do açúcar
madeirense.

O pastel, a exemplo do açúcar, era um importante produto


no mercado da Europa nórdica e mediterrânica. A abundância de
urzela e sangue de drago no mercado insular condicionou o
aparecimento dos mercadores italianos e flamengos que, na procura
de materiais corantes, trouxeram consigo o pastel. A planta
cultivou-se com sucesso na Madeira, mas foi nos Açores que
encontrou condições favoráveis à sua expansão. A sua referência
na Madeira fica-se pelo século XV, sendo, depois, suplantada pelo
sangue de drago e urzela.

A PESCA. Os madeirenses, mercê da sua instalação ribeirinha,


foram exímios marinheiros e pescadores, extraíndo do mar um
grande número de recursos com valor alimentar. A actividade
piscatória, nos principais portos e ancoradouros, deveria
absorver grande quantidade de vizinhos, pois a costa e o mar alto
eram ricos em peixe e mariscos.
A área marítima definida pela costa ocidental africana,
entre o cabo Aguer e a entrada do golfo da Guiné, era muito
abundante em peixe, sendo frequentada pelos vizinhos das Canárias
e da Madeira e pelos pescadores algarvios e andaluzes. Não
obstante o monopólio da coroa castelhana e a sua exploração em
regime de sociedade, actuavam aí com assiduidade pescadores
portugueses, e particularmente os madeirenses e algarvios.
Todavia, o balanço das capturas feitas pelos insulares não se
apresentava habitualmente favorável sendo insuficientes para
cobrir as necessidades do mercado local, pelo que os municípios
se viam na obrigação de regulamentar a pesca e o comércio do
pescado. Além disso os madeirenses não dispensavam o pescado em
salga e fumado de outras áreas piscatórias europeias ou vizinhas.

NOVOS PRODUTOS NOVOS MUNDOS. Para muitos de nós, descobrimentos


significam apenas o encontro de novas terras e culturas. Mas, à
transmigração dos homens juntaram-se as plantas e animais. Fala-
se de uma espécie de arca de Noé, onde o europeu reuniu animais,
plantas. Todos atravessaram o oceano e foram postar-se em todo o
mundo no lugar dos nativos. Isto foi o princípio, também, para a
valorização europeia no mundo descoberto.
A esta primeira imposição da biota europeia sucedeu o
descobrimento do outro mundo. É o deslumbramento com o homem, a
flora e fauna, com elevada vanatagem para o europeu. Primeiro, a
dieta alimentar, pouco variada, é enriquecida com raízes (inhame,
batata), frutos (abacate, ananás, anona, maracujá, papaia, tomate
e banana) e grãos (milho e arroz). Estamos perante uma revolução
à escala mundial que contribui para acabar com a diferenciação
dos espaços continentais. Hoje, o simples gestão de apanhar e
comer um produto tropical ou subtropical banalizou-se em qualquer
recanto do mundo Atlântico.
As ilhas revelaram-se como espaços privilegiados para esta
revolução. Para os portugueses tudo começou nas ilhas da Madeira
e Porto Santo. Foi aqui a primeira escala da nossa arca de Noé.
No Porto Santo, em 1419, soltaram-se os primeiros coelhos. Depois
lançou-se à terra os primeiros grãos (trigo e cevada) e as
plantas (vinha, cana de açúcar). Mas a este impacto europeu
sucedeu o do novo mundo, entretanto revelado, sendo de acentuar a
função das ilhas como autênticos viveiros dessa transmigração de
plantas que passam a adquirir um valor económico e alimentar. A
Madeira é proclamada o jardim botânico experimental onde essas
espécies se encontram.
Hoje, para entender a realidade ecxonómico-alimentar da ilha
é necesssário recuar à época dos descobrimentos. A variedade
botânica e animal da nossa ilha é corolário desta aventura da
flora e fauna gerada pelos descobrimentos europeus do século XV.
Este acesso a novos produtos revolucionou a dieta alimentar ao
nível mundial, tornando-a mais variada e rica. Hoje a nossa mesa
é devedora desta realidade.

O COMÉRCIO

A estrutura sócio-económica do mundo insular articula-se de


modo directo, com as solicitações de economia europeia-atlântica.
Como região periférica do centro de negócios europeus, ajusta o
seu desenvolvimento económico às necessidades do mercado europeu
e às carências alimentares europeias. Depois, aperta-se esta
vinculação mercê da situação de mercado consumidor das
manufacturas. A tudo isto acresce, por vezes, a função de
intermediário nas ligações entre o Novo e Velho Mundo. Note-se
que a partir de princípios do século XVI, 0 Mediterrâneo
Atlântico define-se como o centro de contacto e apoio ao comércio
africano, índico e americano.
Partindo desta situação subalternizadora do mercado insular
é comum definir-se a economia das ilhas pelo carácter periférico
da função estratégica onde se jogaram os interesses hegemónicos
europeus além-atlântico. A função de apoio à navegação resulta
apenas do posicionamento geográfico. O elo europeu é mais forte
que o americano ou asiático, sendo responsável pelo o seu
desenvolvimento económico. A estrutura comercial esboça-se de
modo complicado, definindo-se de forma heterogenea. Não existe
uma linearidade na sua definição, mas sim uma variedade de áreas,
circuitos comerciais e intervenção de agentes nacionais e
estrangeiros.

MERCADOS E PRODUTOS

Os interesses da burguesia e aristocracia peninsulares


entrecruzam-se no processo de ocupação e desenvolvimento
económico das ilhas. Esta componente peninsular foi reforçada com
a participação da congénere mediterrânica que acorre aos reinos
da Península, atraída por novos mercados e uma fácil e rápida
expansão dos negócios. Os italianos, oriundos das diversas
cidades-estado, ligados às grandes sociedades comerciais
mediterrânicas, participou activamente no processo de
reconhecimento, conquista e ocupação do novo espaço atlântico.
O investimento de capital de origem mercantil, nacional ou
estrangeiro surge numa óptica da nova economia de mercado
europeia, sendo gerador de novas riquezas capazes de um activo
comercio, que foi o denominador comum para os produtos a explorar
e a introduzir no solo. Neste processo foram valorizados os
produtos activadores desta nova economia de mercado, ou seja, as
madeiras, a urzela, o sangue de drago, o pastel, os cereais, a
cana de açúcar e o vinho.
Na Madeira, desde meados do século XV, manteve-se um trato
assíduo com o reino, activado, de início, com as madeiras,
urzela, trigo e, depois, com o açúcar e o vinho. Este movimento
alargou-se, depois, às cidades nórdicas e mediterrânicas, com a
presença de estrangeiros interessados no comércio do açúcar. A
evolução é de tal modo rápida e as operações lucrativas que em
1493 a Fazenda Real lançou uma imposição sobre o movimento do
porto da cidade para a despesa de construção da cerca e muros33.
Este acelerado ritmo de crescimento da ilha foi responsável pela
atracção de diversas correntes migratórias. Assim o testemunha em
1508 o monarca D. Manuel, ao justificar a elevação do Funchal a
cidade: "teem creçido em mui gramde povoraçam e como nella vivem
muytos fidalgos cavaleyros e pessoaes homrradas e de gramdes
fazendas pollas quaaes e pello grande trauto da dyta ylha..."34.
Giulio Landi, que escreveu cerca de 1530, traça-nos o
retrato do burgo funchalense: "Aqui chegam frequentemente
mercadores de países muito distantes: de Itália, França,
Flandres, Inglaterra e da Península Ibérica, que para lá levam
aquelas coisas que fabricam panos da ilha e dela transportam
aquelas de que a ilha é produtora, tais como açúcar e vinho, por
lá haver em grande abundância"35. O mesmo refere que a Madeira se
abastecia de cereais nas ilhas vizinhas e que o vinho é vendido
"a mercadores que o levam à Península Ibérica e para outros
países setentrionais"36. Em 1567 Pompeo Arditi, na curta passagem
pelo Funchal, testemunha que o comércio estava baseado no açúcar,
conservas e vinhos, e que a ilha assegurava a subsistência das
suas gentes com o recurso ao cereal das Canárias e os Açores37.
33
. A,R,M,. C.M.F., registo geral, T. I, fl. 172-179, 21 de Junho de 1493, "carta do
duque em que manda que se faça cerca e muros nesta Villa do Funchal", publ.in A.H.M., XVI, 287.

34
. Ibidem, fl. 278v1-279, Sintra, 21 de Agosto de 1508, "carta del rey noso Señor em que
faz cidade a este Funchal, publ. in A.H.M., XVIII, 512-513.

35
. "Descrição da ilha da Madeira", in A Madeira vista por estrangeiros, 1981, 83.

36
. Ibidem, 86.

37
. "Viagem à ilha da Madeira e aos Açores /.../, in Ibidem, 130.
Estas memórias de viagem, distanciadas no tempo em trinta e sete
anos, atestam que a crise açucareira da primeira metade do século
não provocou o colapso da economia madeirense. Primeiro, porque o
açúcar local, não obstante a quebra sofrida, continuou a ser um
dos mais valorizados e procurados pelo mercado europeu. Depois, o
vinho veio preencher a lacuna deixada em aberto.
O momento de esplendor de finais do século, conforme
descrições de Frutuoso e Torriani, resulta certamente do comércio
do vinho que, desde a década de 70, vinha conquistando mercados
na Europa e a América. O primeiro exalta a opulência madeirense:
"A ilha da Madeira (...) tão afamada e guerreira com seus
ilustres e cavaleiros capitães, e tão magnânimos, e com generosos
e grandiosos moradores; rica com seus frutos; celebrada com seu
comércio que Deus põe no mar oceano ocidental por escala,
refúgio, colheita e remédio dos navegantes que de Portugal e de
outro reynos vão, e de outros portos e navegações vêm para que
diversas partes, além dos que de força ela somente navegam,
levando-lhe mercadorias estrangeiras e muito dinheiro para se
aproveitar do retorno que dela lutam para suas terras,(...) com
seu licor e doçura, como um néctar e ambrosio provê as Índias
ambas, a Oriental aromática e a Ocidental dourada, chegando e
adoçando seus frutos de extremo a extremo quase o mundo todo"38.
O segundo salienta a intensa actividade comercial do porto
funchalense com a África e a Europa: "El comercio es muy
importante, y se hace navios que vienen a esta ciudad de Funchal
de todas las partes del África Cristiana, de Itália, España,
França, Alemana y Escocia, de modo que se ha apodado de "pequeña
Lisboa"39. Esta piccola lixbona inseria-se de modo evidente na
economia europeia atlântica, participando do trato com o Velho e
o Novo Mundo, servindo de entreposto de comércio para as suas
riquezas e das áreas vizinhas. A oferta madeirense baseava-se,
essencialmente, na produção agrícola.
A economia alicerçou-se no confronto das solicitações da
economia de subsistência e de mercado: no primeiro caso
condicionaram a valorização dos componentes da dieta alimentar (o
vinho, os cereais), enquanto no segundo implicaram a inserção da
economia insular na europeia através da exploração de produtos,
como o açúcar e o pastel. Os produtos referenciados, pelas razões
apontadas, impuseram-se no mercado insular, galvanizando todo o
sistema de trocas.

38
. Saudades da Terra, L1 II, 1968, 99, 100.

39
. Descripcion e Historia del Reino de las islas Canarias, 266.
A Madeira, até à afirmação da economia açucareira, a partir
de meados do século XV, evidenciou-se como o principal celeiro
atlântico, fornecedor das praças e das áreas carecidas dele no
litoral português. Para isso, a coroa traçou uma política
cerealífera, definida pela abertura de duas rotas de escoamento:
uma orientada no sentido dos portos do reino (Lisboa, Porto,
Lagos), incentivada em 1439 por meio de isenções fiscais; outra
imposta por D. Afonso V, tinha como finalidade o abastecimento
das praças do litoral africano e guineense. Esta última solução
definia-se pelo monopólio ou direito preferencial com um contrato
firmado com os mercadores40. As dificuldades sentidas, a partir
de 1461, agravadas na década seguinte, ditaram profundas
alterações da economia madeirense que conduziram a uma inversão
do comércio do cereal. As tentativas do Infante D. Fernando, em
1461 e 1466, para manter a dominante cerealífera na economia
madeirense e as consequentes rotas de escoamento esbarraram com a
alta rentabilidade e valorização da cultura do açúcar. Deste
modo, o impulso da safra açucareira e o aumento populacional
estão na origem de uma insuficiente produção cerealífera e na
necessidade de definição de um mercado fornecedor. Esta evidência
implicou a tomada de medidas no sentido de estabelecer uma área
abastecedora do cereal que a ilha carecia. O que veio a acontecer
a partir de 1483, com a definição da saca do trigo necessário ao
consumo madeirense nas ilhas vizinhas41. Para atrair este produto
a coroa estipulara em 1508 a isenção da dízima de entrada e a
partir de 1527 foram custeados os encargos com a descarga, sacos
e armazenamento42.
A coroa, ao mesmo tempo que procurava definir um celeiro de
abastecimento da Madeira, actuava no sentido de preencher a
lacuna deixada em aberto pela ausência do trigo madeirense. A sua
concretização só foi possível mediante uma constante e rigorosa
intervenção régia. No século XVI, definido de modo rigoroso o
celeiro de provimento nas ilhas vizinhas, a questão cerealífera
atenua-se, agravando-se apenas com as crises sazonais das áreas
produtoras. Este insuficiente aprovisionamento obrigou o ilhéu a
socorrer-se do velho continente, com quem manteve um activo
comércio a troco de açúcar. Assim a Madeira recebeu 42% de cereal
da Europa e 40% das Canárias, enquanto na Europa domina o mercado
flamengo com 32%.
A cultura da vinha alastrou a todo o espaço insular e o
vinho adquiriu um lugar importante nas trocas externas,
nomeadamente no mercado afro-americano. Até à união das duas
coroas a Madeira manteve o monopólio do comércio de vinho com os
portos afro-brasileiros. A partir de 1598, com a proibição do
comércio com o Brasil, como forma de evitar o contrabando do
40
. Vitorino Magalhães Godinho, Ibidem, III, 234.

41
. Documento de 10 de Dezembro transcrito por A.A.Sarmento, A Madeira e as praças de
África, Funchal, 1932, 43-45.

42
. A.R.M., C.M.F., registo geral, T. I, fl. 196v1, 17 de Agosto de 1508, "carta de
meryces que el Rey noso Señor fez a esta Villa do Funchall", A.H.M., XVIII,506-508; Ibidem, n1
1305, fl. 273, Vereação de 28 de Junho de 1527.
açúcar brasileiro, a Madeira perde a posição favorável que
detinha neste mercado. Desde meados do século XV que se exportava
o vinho madeirense para as diversas partes do mundo, sendo muito
apreciado pelo europeu, onde chegava junto com o açúcar às
principais praças nórdicas, como Ruão, Orleans, Flandres e
Londres. Além disso era fornecido ás naus da rota da Índia e
Brasil e enviava-se às praças marroquinas e às feitorias da área
do Golfo da Guiné.
O regime do comércio do açúcar madeirense nos séculos XV e
XVI, segundo opinião de Vitorino Magalhães Godinho, "vai oscilar
entre a liberdade fortemente restringida pela intervenção quer da
coroa quer dos poderosos grupos capitalistas, de um lado, e o
monopólio global, primeiro, posteriormente um conjunto de
monopólio cada qual em relação com uma escápula de outra
banda"43. Deste modo o comércio apenas se manteve em regime livre
até 1469, altura em que a baixa do preço veio condicionar a
intervenção do senhorio, que estipulou o exclusivo do seu
comércio aos mercadores de Lisboa44. O madeirense, habituado a
negociar com os estrangeiros, reagiu veementemente contra esta
decisão, pelo que o Infante D. Fernando, restringidas as suas
possibilidades, arrematou em 1471 todo o açúcar a uma companhia
formada por Vicente Gil, Álvaro Esteves, Baptista Lomelim,
Francisco Calvo e Martim Anes Boa Viagem45. Desta decisão
resultou um conflito aceso entre a vereação e os referidos
contratadores. Passados vinte e um anos a ilha debatia-se ainda
com uma conjuntura difícil no comércio açucareiro, pelo que a
coroa retomou em 1488 e 1495 a pretensão de monopólio do
comércio, mas apenas conseguiu impõr um conjunto de medidas
regulamentadoras da cultura, safra e comércio, que ocorrem em
1490 e 1496. Esta política, definida no sentido da defesa do
rendimento do açúcar, saldou-se mais uma vez num fracasso. Por
isso, em 1498 foi tentada uma nova solução, com o estabelecimento
de um contingente de cento e vinte mil arrobas para exportação,
distribuídas por diversas escápulas europeias.
Estabilizada a produção e definidos os mercados de comércio
do açúcar, a economia madeirense não necessitava desta rigorosa
regulamentação, pelo que em 1499 o monarca revogou algumas das
prerrogativas estipuladas no ano anterior, mantendo-se, no
entanto, até 1508 o regime de contrato para a sua venda. Só nesta
data foi revogada toda a legislação anterior, activando-se o
regime de liberdade comercial46. O estabelecimento das escápulas
43
. Ob. cit., IV, 87.

44
. A.R.M., C.M.F., registo geral, T, I, fls. 1-1v1, Alcochete, 14 de Julho de 1469,
carta do infante sobre o trato do açúcar, in D.A.H.M., XV, 45-47;Ibidem, fls.1v1-2v1, 25 de
Setembro de 1469, carta dos regedores do Funchal in A.H.M., XV, 47-49; Ibidem, fls. 5v1-6, Lisboa,
16 de Outubro de 1478, carta régia sobre o trato do açúcar, in A.H.M., XV,57; Ernesto Gonçalves,
"João Gomes da Ilha", in A.H.M., XV, 40-47; Idem "João Afonso do Estreito",in D.A.H.M., n1 17
(1954), 4-8.

45
. A.R.M., C.M.F., n1 1296, fls. 30v1-31v1, 11 e 28 de Outubro de 1471; Ibidem, n1 1296,
fl. 41, 12 de Fevereiro de 1472, Ibidem, n1 2, 1296, fls. 52v1-53, 17 de Agosto de 1472.

46
. A.R.M., C.M.F., registo geral, T. I, fls. 308v1-309, Sintra, 7 e 8 de Agosto de 1508,
alvará régio, publ. A.H.M., XVIII, 503-504.
em 1498 definia de modo preciso o mercado consumidor do açúcar
madeirense, que se circunscrevia a três áreas distintas: o reino,
a Europa nórdica e mediterrânica. As praças do Mar do Norte
dominavam este comércio, recebendo mais de metade das referidas
escápulas. Entre elas evidenciava-se a Flandres, enquanto no
Mediterrâneo igual posição é atribuída a Veneza, conjuntamente
com as três cidades levantinas:e Chios e Constantinopla.
Se compararmos as escápulas com o açúcar consignado às
diversas praças europeias no período de 1490 e 1550, verifica-se
que o mercado daqui emergente não estava muito aquém da
realidade. As únicas diferenças relevantes surgem com a Turquia,
França e Itália, sendo de salientar na última um reforço da
posição. Todavia esta diferença (quase 22%) poderá resultar da
actuação das cidades italianas como centros de redistribuição no
mercado mediterrânico.
Os dados disponíveis para o comércio do açúcar na Madeira,
neste período, evidenciam a constância dos mercados flamengo e
italiano. O reino, circunscrito aos portos de Lisboa e Viana do
Castelo, surge em terceiro lugar apenas com 10%. Observe-se que o
último porto adquiriu, desde 1511, grande importância no comércio
do açúcar com o reino e daí para Castela e Europa nórdica. No
período de 1581 a 1587 Viana é o único porto do reino mencionado
nas exportações de açúcar, mantendo uma posição inferior a 1490-
155047. Nas transações com o mundo mediterrânico existiam
igualmente alguns entrepostos, como sãoos casos de Cádiz e
Barcelona. Estas cidades surgem no período de 1493 a 1537 com os
portos de apoio ao comércio com Génova, Constantinopla, Chios e
Águas Mortas.

47
. Joel Serrão, "Nota sobre o comércio do açúcar entre Viana do Castelo e o
Funchal...", in Revista de Economia, III, 209-212.
A ordenança de 1498 não determinava apenas o contingente
das diversas escápulas mas também a forma da sua comercialização.
A coroa, para facilitar o seu escoamento, monopoliza as escápulas
de Roma e Veneza, vinte mil arrobas de Flandres e três mil de
Inglaterra, num total de quarenta mil arrobas, o equivalente a
33% do total. A este açúcar juntava-se o quantitativo do quinto
ou quarto e da dízima de exportação, que o rei carregava por meio
de contrato estabelecido com as grandes companhias nacionais e
internacionais. Os réditos arrecadados com os direitos era
exportado para Flandres e Veneza. No período de 1495 e 1526
receberam, respectivamente cento e sessenta mil e vinte e seis
mil arrobas. As escápulas, até 1504, e o produto dos direitos
reais eram canalizados para o comércio europeu, quer por
carregação directa, quer por negócio livre ou a troco de pimenta.
Este açúcar era arrendado por mercadores.

1.O DESCOBRIMENTO

Em 8 de Setembro de 146048 o infante D. Henrique, na


qualidade de senhor das ilhas do arquipélago da Madeira, dava a
entender o seu protagonismo no seu descobrimento com a seguinte
expressão: "...novamente achei". Novamente, é interpretado por
todos como pela primeira vez pelo que antes não haviam sido
encontradas ou se o foram delas não ficara rastro na memória
escrita e colectiva. Não sabemos qual terá sido o objectivo do
Infante em proferir tal expressão, uma vez que a tradição
histórica, divulgada em algumas crónicas coevas, testemunha o
conhecimento destas ilhas desde meados do século XIV. Para alguns
ela prende-se com a disputa em torno das Canárias e da
necessidade de preservar o seu domínio quando aquelas estavam
irremediavelmente perdidas. O "praescritio longissimo temporis"
do direito romano, que fazia depender a posse de uma terra
encontrada do seu abandono e da anterioridade do conhecimento,
parece ser o argumento de peso.
A Historiografia, da época dos descobrimentos e do momento
da partilha do continente africano, está impregnada das opções
que deram razão e legitimaram a posse dos novos espaços
descobertos e ocupados. Esta questão é habitualmente resolvida
pela sua ligação à partilha do mundo, estabelecida pelos
tratados, sancionados pelas bulas papais e raras vezes é
equacionada à luz do direito da época e da interpretação dos
tratadistas. Em 1435 nas alegações apresentadas por D. Afonso de
Cartagena, bispo de Burgos, no concílio de Basileia, justificando
a posse e conquista das Canárias pelos Reis de Castela, são
elucidativas. Portugal argumentava o seu direito à posse destas

48
É de notar a forma como tudo surge na "Relação de Francisco Alcoforado". O autor,
depois de referir o descobrimento de Machim, refere que el-Rei ordenou a João Gonçalves Zarco que
"fose descobrir aquella terra".
ilhas na vizinhança, ocupação e necessidade de cristianização. A
contra-argumentação do bispo de Burgos nega os pressupostos
portugueses e define as três formas que legitimam a posse:
nascimento, descoberta e ocupação.
A questão do descobrimento de Madeira entroca nesta
realidade. Francisco Alcoforado, o nosso primeiro cronista do
descobrimento, refere que Machim e companheiros ao depararem-se
com a Madeira entenderam "que era terra nova puzerão em vontade
pedirem aos reis de Espanha", talvez, pensando na sua proximidade
à Tingitânia. Por outro lado, Jerónimo Dias Leite, outro cronista
madeirense da segunda metade do século XVI, testemunha diferente
opção dos portugueses: "E pelos padres mandou benzer agua que
andarão aspargindo pelo ar e pela terra, como quem desfazia
encantamento, ou tomava posse em nome de Deus daquela terra
brava, e nova nunca lavrada nem conhecida desde o principio do
mundo até aquela hora". O acto de posse em nome da coroa
portuguesa era justificada pelo facto de nunca ter sido conhecida
e ocupada.
Concluídos os grandes descobrimentos, os argumentos que
legitimarão a soberania estão assentes na posse a partir da
ocupação. Esta tese fez escola no século XIX e comandou o
processo de partilha do continente Africano com a conferência de
Madrid. Descobridores e novos colonizadores decidem que só a
ocupação efectiva legitima o direito de soberania. Correlacionada
com a questão dos fundamentos legitimadores da soberania está a
visão da Historiografia da época dos descobrimentos e
oitocentista. O século XIX foi o momento mais importante para a
Historiografia dos descobrimentos49. Em plena euforia
nacionalista e colonial nasce a História e a visão que ficou a
marcar o nosso imaginário até ao presente: o hino Nacional e o 10
de Junho são exemplo disso. No momento da partilha todos se
arvoram em descobridores e os portugueses sentem-se no direito de
reclamar a anterioridade da sua acção, dos seus conhecimentos e
direitos históricos. Foi esta a função do Visconde de Santarém,
Joaquim Bensaúde.
É de acordo com esta realidade que deve ser enquadrada a
discussão sobre a descoberta da Madeira. A prioridade portuguesa
do descobrimento da Madeira, surge também em 149350, na voz de D.
João II: "porquanto essa ilha não foi de nossos antepassados nem
dela tiveram direito algum ou domínio antes de ser descoberta e
ocupada pelo senhor rei nosso bisavô...". O mesmo sucede nas
crónicas oficiais, conforme se poderá verificar pelos textos de
Francisco Alcoforado e Jerónimo Dias Leite51. Todavia, as fontes
narrativas do século XVI não são unânimes quanto a isto, sendo

49
. Pierre Chaunu, Expansão europeia do século XIII a XV, S. Paulo, 1978, pp.179-195.

50
Saudades da Terra, ed. 1873, p. 675-677.

51
Esta mesma argumentação foi aduzida no debate em torno do descobrimento da ilha por
Roberto Machim, no século XIV. Para alguns, foram os ingleses que criaram a "lenda" no século
XVII para mais facilmente conseguiram a sua posse, como se vinha reclamando no dote de infanta D.
Catarina. Confronte-se Eduardo PEREIRA, Ilhas de Zargo, Vol. II, Funchal, 1989, pp. 856-865; "A
Lenda de Machim" in Congresso do Mundo Português, Vol. III, T. I, Lisboa, 1940, pp. 189-207.
possivel reunir uma diversidade de versões, muitas delas
contrárias da oficial, defendida pelo infante e a coroa.
Hoje, parece ganhar consistência a ideia de que o
descobrimento das ilhas teve lugar em época anterior à primeira
presença dos portugueses, sendo sua a acção no século XV
entendida como reconhecimento, ou como o referem alguns,
descobrimento oficial52. As duvidas surgem quando procuramos
resposta para os aspectos de pormenor. A eterna questão de quem,
como e quando foi descoberto o arquipélago não parece de fácil
solução. Os inúmeros estudos sobre o tema lançaram-nos para um
mar de dúvidas e incertezas. As datas exactas do encontro e de
início do povoamento, situação que serve as efemérides e o
empenho da sociedade política, não encontram fundamento
histórico, porque algumas das mais credíveis fontes coevas
divergem neste particular. A isto associa-se a dificuldade em
identificar os verdadeiros protagonistas: quem ordenou as
expedições quatrocentistas e quem as comandou? A tradição, que
filia a ideia do encontro quatrocentista, releva o protagonismo
dos homens da casa do infante D. Henrique -- isto é, de João
Gonçalves Zarco com Tristão Vaz--, que é como quem diz do próprio
infante. De fora ficam Roberto Machim, os anónimos castelhanos e
o incógnito navegador, Afonso Fernandes, este último referido
apenas por Diogo Gomes53.
Outra duvida de não menor importância prende-se com o
protagonismo da coroa e do infante no processo de reconhecimento
e ocupação da Madeira. A ela está associada outra, mais geral,
sobre o protagonismo da coroa e da casa do infante nos
descobrimentos. O debate não é novo e tão pouco deverá
considerar-se encerrado54. Tudo isto foi sustentado por Gomes
Eanes de Zurara, com o texto que ficou conhecido por Crónica de
Guiné, o seu panegírico do infante. O próprio Infante refere que,
desde 1425, participou activamente no arquipélago madeirense mas
a documentação oficial só o menciona como tal a partir de 1433,
data em que recebeu do rei o direito de posse. Compiladas
informações disponíveis, nomeadamente nos cronistas, é evidente a

52
Durante muito tempo discutiu-se o alcance dos seguintes conceitos: reconhecimento,
descobrimento e achamento. Veja-se J. VIDAGO, O conceito da palavra descobrimento no século XVI,
separata n1 155-156 revista Vértice; Gago COUTINHO, Nautica dos descobrimentos, vol. II, Lisboa,
1952; Jaime CORTESÃO, "O que é o descobrimento ?", in Os descobrimentos portugueses, vol. IV,
Lisboa, 1981, pp.909-923; Armando CORTESÃO, "Descobrimento e descobrimentos", in Garcia da Orta,
n1 especial, 1972, pp.191-200; Joaquim Barradas de CARVALHO, "A prè-história e a história das
palavras Descobrir e descobrimento (1055-1567)-(em busca da especificidade da expansão
portuguesa)" in História, n1.6, Lisboa, Abril de 1980, 30-38; Luís de ALBUQUERQUE, "Algumas
reflexões a proposito da palavra descobrimento", in Islenha, n1.1(1987), 7-11.

53
As Relações do descobrimento de Guiné e das ilhas dos Açores, Madeira e Cabo Verde,
sep. do Boletim da Sociedade de Geografia, 1898-1899.

54
Tenha-se em conta as comemorações do IV centenário de sua morte (1960) que teve
reflexos evidentes nesta realidade, sendo de realçar a colecção henriquina da responsabilidade de
Costa Brochado. Veja-se Duarte LEITE, Coisas de Vária História, Lisboa, 1941; António Domingues
de Sousa COSTA, Infante D. Hemrique na Expansão Portuguesa, Braga, 1963 A Madeira não ficou
alheia a isto como se pode verificar pelo volume do Arquivo Histórico de Madeira (XII-1960-61). A
este propósito é de realçar os textos publicados por Eduardo PEREIRA, "Infante Don Henrique e a
Geografia Histórica das capitanias de Madeira" in AHM, XII, 21-54; "V Centenário henriquino, Sua
projecção na História da Madeira", AHM, XIII, (1962-63), 42-70; Ernesto GONÇALVES, "O infante e a
Madeira", in Portugal e a Ilha,Funchal, 1992, 19-22.
dificuldade em diferenciar até onde chegou o real protagonismo de
ambos. A única certeza é de que a partir de 1433 o infante D.
Henrique actuou de pleno direito no arquipélago, sendo o seu
senhor.
É, na verdade, a partir da década de trinta que as ilhas
passaram a assumir importância nos descobrimentos portugueses.
Elas afirmam-se com áreas de cultivo de produtos com alto valor
mercantil, caso dos cereais, vinho e açúcar, e como porta
charneira para a expansão além-atlântico, uma vez perdidas as
esperanças henriquinas na posse e conquista das Canárias.

AS VERSÕES DO DESCOBRIMENTO

De acordo com o texto de Gaspar Frutuoso o descobrimento da


Ilha da Madeira teve lugar a 1 de Julho de 1419, desembarcando os
portugueses na baía de Machico no dia seguinte, da visitação de
Santa Isabel55. Esta versão poderá ser encarada como a oficial e
a que conquistou a aprovação do madeirense que a estabeleceu como
o marco para o dia da Região Autónoma.

55
Note-se que até esta data é questionada à luz de um estudo do calendário, uma vez que
em 1419 o dia 2 de Julho não foi num domingo, como o pretende afirmar Gaspar Frutuoso. Por
curiosidade anote-se que em 1590, uma das datas apontadas para a redação do livro sobre a
Madeira, o dia 2 de Julho coincide com um domingo o que poderá ter levado o autor a semelhante
equívoco.
O descobrimento da Madeira, tal como Gaspar Frutuoso o
apresenta, embora considerado como uma verdade adquirida e
intransponível, carece de fundamentação e merece, à luz da
crítica histórica, inúmeros reparos. Estamos perante uma opção
oitocentista que teve como base os testemunhos dos cronistas dos
séculos XV e XVI, mais divulgados e que possibilitam a
fundamentação desta tese oficial, isto é, de Gomes Eanes de
Zurara56, João de Barros57, Gaspar Frutuoso58.
Na actualidade, com a revelação de algumas fontes, como os
textos de Francisco Alcoforado (1878-1961), de Jerónimo Dias
Leite (1947) e o aparecimento de novos dados, é possível avançar
novos dados sobre o descobrimento da ilha. Eis uma sintese das
nossas conclusões. Todos os autores que abordam a questão são
unânimes em considerar o povoamento do arquipélago como obra
portuguesa, tendo como obreiro o infante D. Henrique e por
executor João Gonçalves Zarco, com ou sem o apoio de Tristão Vaz.
Apenas Giulio Landi é de opinião diferente, afirmando que tudo
foi feito por Machim. A polémica tem lugar quanto à data do
descobrimento e à sua autoria. Para uns, as ilhas foram
descobertas por portugueses: João Gonçalves Zarco com Tristão
Vaz, ou Afonso Fernandes. Para outros é da iniciativa de
estrangeiros: castelhanos (o Porto Santo), ou ingleses (Madeira).
Numa breve sinopse podemos estabelecer quatro versões
coevas do descobrimento da Madeira, que serviram de base a todas
as restantes:

1. Relação de Francisco Alcoforado, atribui o descobrimento


da ilha ao inglês Robert Machim e o reconhecimento aos
portugueses;

2. Relação de Diogo Gomes59 apresenta o descobrimento como


de iniciativa do piloto português Afonso Fernandes e o
povoamento a João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz;

3. Zurara atribui a João Gonçalves Zargo e Tristão Vaz o


achamento das ilhas bem como o reconhecimento e povoamento;

4. Cadamosto aponta o descobrimento pelos homens do infante


D. Henrique e o povoamento por João Gonçalves Zargo e
Tristão Vaz.

56
Crónica de Guiné, Porto, 1937, cap. CXXXII, pp.189-196.

57
Asia, decada I, livro I, caps. II e III.

58
Saudades da Terra. livro segundo, Ponta Delgada, 1979, cap.I a VIII

59
"Relações do descobrimento da Guiné e das ilhas dos Açores, Madeira e Cabo Verde", in
Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 1898-99, pp. 25-28.
Anote-se que os textos de João de Barros e Gaspar Frutuoso
foram e continuam a ser o principal sustentáculo da tese oficial
do descobrimento henriquino. Os seus arautos, aproveitando-se das
lacunas do texto de Zurara, afinam pela visão posterior de
Barros, repetida com grande evidência em Frutuoso. No entanto,
quanto a este último, apenas o fazem de modo parcelar, uma vez
que ignoram todas as outras versões aí compiladas. A divulgação
de fontes inéditas, que apresentam argumentos contraditórios
desta versão, não os convencem, pois tudo o que o contrariasse
era considerado como falso ou apócrifo.
O debate que começou no século XIX, tendo como ponto de
partida o estudo de Álvaro Rodrigues de Azevedo60, deu origem ao
aparecimento de várias teses sobre o descobrimento da Madeira. A
polémica recrudesceu na décadas de cinquenta e sessenta do nosso
século, por altura da comemoração da morte do Infante D.
Henrique61. Entretanto, para tràs ficara a evocação do quarto
centenário do descobrimento da Madeira, uma importante
manifestação histórica e política do primeiro quartel do
século62.
Não obstante, o vasto número de estudos existentes que, de
um ou de outro modo, abordam a questão do descobrimento, podemos
dizer que todas versões orientam-se de acordo com quatro ideias-
base, que resumem toda a informação e fundamento do problema:

1.TESE QUATROCENTISTA, os que argumentam, a partir de


Zurara, João de Barros e Gaspar Frutuoso, considerando o
arquipélago descoberto pelos portugueses no século XV, e destacam
a acção de Zargo e Tristão Vaz e o infante D. Henrique. A sua
formulação e fundamento foi definido, a partir de 1873, por
Álvaro Rodrigues de Azevedo. Mais tarde, com o quinto centenário
do descobrimento da ilha, é retomada por Fernando Augusto da
Silva, saindo reforçada em 1960, no momento do quinto centenário
da morte do infante D. Henrique, por Eduardo Pereira.

2.TESE TRECENTISTA contrapõe os seus defensores ao


conhecimento quatrocentista a prova documental e cartográfica do
seu achamento no século XIV. No entanto, divergem entre si,
quanto à autoria das expedições que conduziram ao conhecimento do
arquipélago. Assim, para uns, a descoberta deveu-se a genoveses,
catalães ou venezianos; outros apontam as mesmas expedições, mas
ao serviço da coroa portuguesa, o que valoriza a iniciativa
nacional do empreendimento. Em abono da autoria portuguesa do

60
"Nota III. Descobrimento do archipelago da Madeira Por Zargo e Tristão Vaz", "Nota
IV. Descobrimento do archipelago da Madeira: diversas tradições, lendas e noticias", "Nota V.
Descobrimento da ilha da Madeira por ingleses: caso de Machim e Anna de Arfet", publicado in
Saudades da Terra(...), Funchal, 1873, pp. 329-339, 340-348, 348-429.

61
Confronte-se Arquivo Histórico da Madeira, vol. XII, 1960-61.

62
Pe. Fernando Augusto da SILVA, "Quincentenario do descobrimento da Madeira", in
Elucidário Madeirense, vol. III, pp. 163-168. A propósito disto foi feita um publicação
comemorativa: V centenário do descobrimento da Madeira, Funchal, 1922.
descobrimento temos em 1894 Brito Rebelo63 que, baseado num
documento de 1379, tenta esboçar uma explicação para o topónimo
Machico. Segundo ele teria sido um certo Machico, mestre de
barca, quem descobriu a ilha da Madeira, tendo desembarcado no
local que mereceu o seu nome.

63
Livro de Marinharia, Lisboa, 1903.
3. TESE DE MACHIM, os que argumentam, em complemento da
segunda tese, que o conhecimento do arquipélago resultou da
aventura de Robert Machim. É vasta bibliografica sobre esta tese,
sendo, no entanto, poucas as perspectivas aí enunciadas, uma vez
que é evidente o apego às visões clássicas, quer na afirmativa,
quer na negação. Neste último caso a ideia expressa-se de acordo
com o enunciado de Álvaro Rodrigues de Azevedo64 e Eduardo
Pereira65. Assim, em 1873, o primeiro referia já sete
interpretações diferentes da referida tese, que no essencial se
resumem a três opiniões, amplamente divulgadas:

- a negação da veracidade do relato, considerando-o pura


lenda e carente de fundamento histórico, porque não aparece
em Zurara;

-a afirmação da verdade do relato, apresentando o necessário


fundamento histórico;

- a conciliação das versões anteriores no processo do


conhecimento da ilha.

64
Ob.cit., nota V.

65
"A lenda de Machim", in Congresso do Mundo Português, vol. III, tomo 1, Lisboa, 1940,
pp. 188-208.
Esta versão do descobrimento foi definida pela primeira
vez, em 1812, por N. C. Pitta66, a que se seguiu, em 1869, H.
Major67. No entanto, só a partir deste último mereceu a sanha de
Álvaro Rodrigues de Azevedo e Camilo Castelo Branco68, que
lançaram uma onda de descrédito sobre a aventura de Machim. Na
actualidade, A. G. Rodrigues69, Pita Ferreira70 e Armando
Cortesão71 retomaram-na procurando apagar o descrédito vigente. O
primeiro preocupou-se em comprovar documentalmente a existência
das personalidades envolvidas no relato, através de uma busca nos
arquivos ingleses. O segundo, por seu turno, fundamenta a
veracidade do relato dado por Francisco Alcoforado e os factos
que se relacionam com o achado da cruz, que o testemunha, por
Robert Page72. Entretanto, Armando Cortesão, contraria a critica
dos seus detractores ao referir que as versões da aventura são
todas portuguesas, não sendo razoável a opinião divulgada da sua
origem inglesa. A intenção destes dois últimos não foi a defesa
da descoberta de Machim, mas sim enquadrar o facto no
conhecimento trecentista, ou na tradição remota, conforme atestam
as fontes greco-romanas.
A defesa da ideia do descobrimento da ilha por Machim está
subjacente à existência e veracidade da relação de Francisco
Alcoforado. Para muitos é uma criação do século XVII e, por isso
mesmo, carece de fundamento a versão que veicula. Muito se
escreveu sobre isto, mas apenas Ernesto Gonçalves73 teve a
coragem de avançar com uma análise de crítica interna, onde veio
a revelar-nos alguns problemas. Mais recentemente, Luís de Sousa
Melo74 retomou este tipo de análise com novos dados. A isto
acresce a aportação de David Pinto Correia que estabelece o seu

66
Account of the island of Madeira, Londres, 1812.

67
Vida do Infante D. Henrique, Lisboa, 1876.

68
Sentimentalismo e História, Porto, 1897.

69
D. Francisco Manuel de Melo e o descobrimento da Madeira, Lisboa, 1935, sep. Biblos;
"Machim, Machico, Melo e Madeira", in Biblos, vol. XVI, t.II, pp. 567-571.

70
Notas Para a História da ilha da Madeira. Descoberta e inicio do povoamento, Funchal,
1957; A relação de Francisco Alcoforado, Funchal, 1961(sep.DAHM, n1.31); "O caso Machim à face dos
documentos", in Das Artes e Da História da Madeira, n1.25-26-27, 1957.

71
"O descobrimento do Porto Santo e da Madeira e o Infante D. Henrique", Revista da
Universidade de Coimbra, vol. XXIII, 1973, pp.305-317; "A História do descobrimento da ilha da
MAdeira por Roberto Machim em fins do século XIV", in Revista da Universidade de Coimbra, vol.
XXIII, pp. 292-409.

72
Isto valeu-lhe um ataque cerrado do Visconde do Porto da Cruz(Revista Portuguesa,
n1.84) e Eduardo Pereira("Adenda", in Ilhas de Zargo, vol. II, pp. 857-865). A resposta do autor
surgiu em "As notas para a História da ilha da Madeira"no Pelourinho, Funchal, 1959.

73
"Estudo da *Relação de Francisco Alcoforado+", "Algo mais acerca da *Relação de
Francisco Alcoforado+", im Portugal e a Ilha, Funchal, 1992, pp. 235-255, 257-268.

74
"O texto de Francisco Alcoforado", in Atlântico, n1.5, 1986, pp. 19-26.
enquadramento no panorama literário quatrocentista75.

4. TESE ECLÉTICA, os que procuram uma opinião de consenso


entre as várias fontes e versões, perfilhando soluções
intermédias, ou reforçando a sua dúvida em face de todas as
anteriores. Assim, Jordão de Freitas76 e João Franco Machado77
procuram conciliar as fontes que atestam um conhecimento
trecentista com aquelas que apontam apenas para o século
seguinte, concluindo por um processo contínuo de conhecimento ou
reconhecimento e divulgação na Europa. Armando Cortesão e J. A.
Betencourt78 defendem a ideia de um conhecimento desde tempos
antigos. No entanto, concordam, ainda que parcialmente, com as
restantes versões, buscando nelas a informação necessária e
esclarecida para a sua fundamentação.

Perante o que atràs ficou dito parece-nos ilógico continuar


a defender a opinião, embora comumente aceite, do primeiro
conhecimento em 2 de Julho de 1419, por João Gonçalves Zarco e
Tristão Vaz. Além disso, a opinião de Gaspar Frutuoso parece-nos
pouco válida, uma vez que relata um facto que não presenciou e
que se passara há mais de 160 anos, recorrendo, por isso, à
tradição escrita e oral. Por outro lado, o mesmo autor, que serve
de fundamento à versão oficial, nos cinco volumes que dedicou à
história das ilhas do Atlântico, não apresenta uma certeza do
descobrimento quatrocentista e henriquino, antes fica-se pela
compilação do maior número de versões existentes até a data da
sua escrita.

75
"Da história à literatura-ainda o descobrimento da Madeira", in Actas III Colóquio
Internacional de História da Madeira, Funchal, 1993, pp.201-206.

76
Quando foi descoberta a Madeira ?, Lisboa, 1911.

77
"O conhecimento dos arquipélagos no século XV",in História da Expansão Portuguesa no
Mundo, vol. I, pp. 269-273; "A relação de Francisco Alcoforado", in Arquivo Histórico da Marinha,
vol.I, 1936, pp.317-329.

78
Descobrimentos, guerras e conquistas dos Portugueses em terras do ultramar nos
séculos XV e XVI, Lisboa, 1881-82.
2. A OCUPAÇÃO DAS ILHAS

O povoamento e o consequente processo de valorização


económica da Madeira surgem, no contexto da expansão europeia dos
séculos XV e XVI, como o primeiro ensaio de processos, técnicas e
produtos que serviram de base à afirmação dos Portugueses no
espaço atlântico, continental e insular. Aqui foram lançadas, na
década de 20, as bases sociais e económicas daquilo que será
definido como a civilização atlântica. Tudo isto resulta do facto
de a Madeira ter sido a primeira área atlântica a merecer o
impacto da humanização peninsular. Enquanto nas Canárias tardava
a pacificação dos aborígenes, conhecidos como guanches, e se
esvaneciam as esperanças da posse henriquina, na Madeira os
cabouqueiros europeus lançavam-se num plano de exploração
intensiva do solo virgem. Ao empenhamento dos tradicionais
descobridores juntaram-se os interesses da coroa, do infante D.
Henrique e da comunidade italiana residente em Portugal.
Os testemunhos dos cronistas são evidentes quanto ao facto
da inexistência de uma população sob o solo madeirense. Assim,
para além das referências à abordagem do Porto Santo por
castelhanos, vindos das Canárias, e da presença de Machim na baía
de Machico, nada mais indiciava uma preocupação anterior de
humanização destas ilhas. Cadamosto, afirma "que fora até então
desconhecida" e que "nunca dantes fora habitada". Idêntica é a
opinião de Jerónimo Dias Leite79, peremptório em afirmar, que
perante os navegadores se deparava uma "terra brava e nova, nunca
lavrada, nem conhecida desde principio do mundo até aquela hora".
Deste modo o empenho das gentes e autoridades peninsulares,
aliado ao investimento e experiência italiana, contribuíram para
que em pouco tempo na Madeira a densa floresta fosse substituída
por extensas clareiras de arroteamento.
À luz do acima enunciado, torna-se forçoso considerar que a
acção lusíada na década de 20 deve ser entendida como um processo
de povoamento, e nunca de colonização, pois estámos perante uma
porção de terra inabitada cuja paisagem foi humanizada apenas com
a entrada portuguesa80. Esta situação favoreceu o processo de
ocupação, permitindo o ensaio de técnicas, produtos e formas de
organização do espaço, sem qualquer entrave humano. Os resultados
disto foram de tal modo profícuos que o exemplo madeirense teve
um lugar relevante na expansão peninsular, sendo a referência ou
modelo para as experiências de povoamento que se seguiram.

79
Descobrimento da Ilha da Madeira (...), Coimbra, 1957, p. 9.

80
Confronte-se o que diz a este propósito Carreiro da
COSTA em Esboço Histórico dos Açores, Ponta Delgada, 1978, p.53
Um dos muitos aspectos polémicos sobre os primórdios da
História da Madeira é a data em que o solo virgem começou a ser
desbravado pelos primeiros colonos europeus. Os cronistas são
unânimes em definir o ano de 1420 como o de começo. Todavia,
surgem opiniões diferentes, como a do infante D. Henrique, que em
1460 declarava: "começei a povoar a minha ilha da Madeira averá
ora XXXb anos...", isto é, a partir de 1425 ele iniciara o
povoamento da ilha. Mas, na doação régia de 1433, o monarca
afirmara "que agora novamente o dito infante per nossa autoridade
pobra". Quererá isto dizer que só nesta data o infante assumiu o
comando do processo ? Não. Pelo menos esta não é a opinião do
infante, que nas cartas de doação das capitanias apresenta João
Gonçalves Zarco, Tristão Vaz e Bartolomeu Perestrelo, como os
primeiros povoadores por seu mandado. Será que só podemos falar
de povoamento a partir de 1425 ou 1433, contrariando a opinião
dos cronistas ? A resposta parece ser também negativa, à luz
daquilo que nos dizem dois documentos. Primeiro, uma sentença do
Duque D. Diogo de 6 de Fevereiro de 148381 refere que "podia
haver cinquenta e sete anos, pouco mais ou menos, que a essa ilha
fora João Gonçalves Zargo, capitão que fora nessa ilha, levando
consigo sua mulher e filhos e outra gente...". Depois, noutra
sentença Diogo Pinheiro, vigário de Tomar em 1499, afirma:
"podera bem haver oitenta anos que a dita ilha era achada pouco
mais ou menos e se começara a povoar"82. Esta versão é
corroborada em 27 de Julho de 1519 por acórdão da Câmara do
Funchal em que se dá conta do início do povoamento há cem anos
atrás. Ambos os documentos abonam versões diversas: enquanto o
primeiro coincide com a data apontada pelo infante, o segundo
corrobora os cronistas. Por tudo isto a única conclusão plausível
é de que o povoamento efectivo terá começado a partir do fim do
último quartel do século XV. Os seis anos que medeiam entre esta
data e o seu reconhecimento não deverão ser encarados como de
total alheamento, pois nada nos leva a afirmar que o processo
tivesse parado.
De acordo com as crónicas quatrocentistas e quinhentistas,
o processo, que decorreu a partir de 1418, foi faseado. Zurara
refere quatro expedições à ilha antes que o infante ordenasse o
envio dos primeiros colonos e clérigos para o arranque da
ocupação e aproveitamento económico. A mesma ideia surge na
"Relação de Francisco Alcoforado". Pe. Manuel Juvenal Pita
Ferreira83 especifica melhor as quatro viagens:

1.Dezembro 141884. primeira viagem de reconhecimento do


81
ANTT, Convento de Santa Clara, maço 1, ref. Pe. Manuel Juvenal Pita FERREIRA, O
arquipélago da Madeira terra do senhor infante, p.132.

34. ANTT, Cabido da Sé do Funchal, maço 1, n1 1, 20 de Fevereiro 1499.

83
Notas para a História de Madeira. I. Descoberta e início do povoamento, Funchal,
1957.

84
Note-se que Jordão de FREITAS (*Madeira, Porto Santo e Deserta. Ilhas que o infante
"novamente achou e povoou"+, in C.M.P., Vol. III, T.1, Lisboa, 1940, 169-172). Considera que a
primeira viagem só teve lugar em 1419.
Porto Santo;

2.Principio de 1419.segunda viagem ao Porto Santo;

3.Junho de 1419. primeira viagem à Madeira


4. Maio de 1420. segunda viagem à Madeira.

A forma de ocupação e valorização económica da Madeira foi


ao encontro das solicitações da conjuntura interna do Reino e do
espaço oriental do Atlântico. No primeiro caso, surge como
resposta à disputa das Canárias e à ingente necessidade de
encontrar um ponto de apoio para as operações ao longo da costa
africana. Zurara faz disso eco ao referir que as embarcações
portuguesas faziam escala obrigatória na Madeira, onde se proviam
de *vitualha as ilhas da Madeira, porque havia aí já abastança de
mantimentos+85. Para os cronistas tudo começou no Verão de 1420.
Nesta data o monarca ordenou o envio de uma expedição comandada
por João Gonçalves Zarco para dar início à ocupação da ilha.
Acompanhavam-no Tristão Vaz Teixeira, Bartolomeu Perestrelo,
alguns homiziados que *querião buscar vida e ventura forão
muitos, os mais delles do Algarve+86.
De acordo com o capítulo de uma carta régia87, João
Gonçalves Zarco foi incumbido de proceder à distribuição de
terras, conforme o regulamento entregue. Estes capítulos de um
pretenso regimento para a distribuição de terras são diferentes
dos demais que se seguiram, pois para além da demarcação social
dos agraciados estabelecem um prazo alargado de 10 anos:

1. os vizinhos de mais elevada condição social e possuidores


de proventos recebem-nas sem qualquer encargo;

2. os pobres e humildes que vivem do seu trabalho apenas as


conseguiram mediante condições especiais, só adquirindo as
terras que possam arrotear com a obrigatoriedade de as
tornar aráveis num prazo de dez anos.

Estas cláusulas, a serem verdadeiras, favorecem a posição


fundiária dos primeiros povoadores e contribuíram para o
aparecimento de grandes extensões, mais tarde vinculadas.
A partir de 1433, com a doação do senhorio das ilhas ao
infante D. Henrique, o poder de distribuir terras é uma
atribuição do senhorio, mas *sem prejuizo de forma do foro per
nos dado aas ditas ilhas em parte nem em todo nem em alheamento

85
Crónica da Guiné, cap. XXXII.

86
J. Dias LEITE, ob.cit., 15-16; Gaspar FRUTUOSO, ob.cit., 53.

87
Esta carta foi pela primeira vez referenciada por Álvaro Rodrigues de AZEVEDO sendo,
todavia considerada apócrifa por alguns historiadores, como José Hermano SARAIVA (Temas de
História de Portugal, vol. II, pp.109-112)
do dito foro+88. Isto prova, mais uma vez, que a primeira
iniciativa e regulamento de distribuição de terras coube ao
monarca. O infante, fazendo uso destas prerrogativas, delegou nos
capitães parte dos seus poderes de distribuição de terras. A isso
junta-se um novo regimento ou foral, que confirma as ordenações
régias, estipulando que as terras deverião ser dadas apenas por
um prazo de cinco anos, findo o qual caducava o direito de posse
e a possibilidade de nova concessão.

88
A.R.M., C.M.F., registo geral, T. I, fl. 128-132, publ. in Arquivo Histórico da
Madeira, vol. XV, pp.20-25.
A primeira missão dos capitães foi proceder à divisão de
terras, como testemunha Francisco Alcoforado, ao referir que João
Gonçalves Zarco, após a segunda viagem, empenhou-se em tal
tarefa. Uma das prerrogativas desta função era a possibilidade de
reservar para si e familiares algumas das sesmarias. E foi isso
que o mesmo fez. Ainda, segundo Francisco Alcoforado, João
Gonçalves Zarco apropriou-se do alto de Santa Catarina, no
Funchal e as terras altas de Câmara de Lobos. Mais além, na
Calheta, tomou dois Lombas para os seus filhos João Gonçalves e
Beatriz Gonçalves.
Nas décadas seguintes, a concessão de terras de sesmaria e a
legitimação da sua posse geraram vários conflitos, que implicaram
a intervenção do senhorio ou o arbítrio do seu ouvidor. Em 1461,
os madeirenses reclamaram contra a redução do prazo para
aproveitamento das terras, dizendo que estas eram *bravas e
fragosas e de muitos arvoredos+. Contudo, o infante D. Fernando
não abdicou do preceituado no foral henriquino e apenas concedeu
a possibilidade de alargamento do prazo mediante análise
circunstanciada de cada caso pelo almoxarife89. Desde 1433 e até
1495, a concessão de terras de sesmaria era feita pelo capitão,
em nome do donatário. A carta deveria ser lavrada pelo escrivão
do almoxarifado, na presença do capitão e do almoxarife. No seu
enunciado constavam obrigatoriamente as condições gerais que
regulavam este tipo de concessão do terreno, capacidade de
produção e a cultura adequada à sua exploração, bem como o prazo
de aproveitamento. O colono ou sesmeiro estava obrigado a cumprir
o clausulado e apenas findo o prazo estabelecido podia vender,
doar, *escambar o fazer dela e em ela como sua própria coisa+.
De todas as cartas de doação de terras a mais completa é a
datada de 1457. Aí surgem exaradas as condições em que foi
estabelecida a posse das terras. Esta poderá ser considerada uma
carta modelo, pois aí estão todas as recomendações: limites da
terra, as benfeitorias a implantar e o tipo de culturas (vinhas,
canaviais, horta).

OS LUGARES E FREGUESIAS

O povoamento da ilha, iniciado na década de 20 a partir dos


núcleos do Funchal e Machico, rapidamente alastrou por toda a
costa meridional, surgindo novos núcleos em Santa Cruz, Câmara de
Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol e Calheta. As condições
orográficas condicionaram os rumos da ocupação do solo
madeirense, enquanto a elevada fertilidade do solo e a pressão do
movimento demográfico implicaram o rápido processo de humanização
e valorização sócio-económica da ilha. A costa norte tardou em
contar com a presença de colonos, contribuindo para isso as
dificuldades de contacto por via marítima e terrestre. Não
obstante, refere-se já na década de 40 a presença de gentes em S.
Vicente, uma das primeiras localidades desta vertente a merecer
uma ocupação efectiva.
89
A.R.M., C.M.F., registo geral, T. 1, fls. 204-209, publ. in AHM, vol XV, pp.11-20.
O progresso do movimento demográfico foi de encontro ao
nível de desenvolvimento económico da ilha e reflecte-se na
estrutura institucional. A criação de novos municípios, paróquias
e a reforma do sistema administrativo e fiscal foram resultado
disso. Como corolário tivemos ao nível religioso o desmembramento
das iniciais paróquias e o aparecimento de novas: Santo António,
Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol, Arco da Calheta e
Santa Cruz. Isto reflecte-se ao nível administrativo com o
aparecimento dos primeiros juizes pedâneos de Câmara de Lobos e
Ribeira Brava e, depois, os municípios da Ponta do Sol e Calheta,
respectivamente em 1501 e 1502.
Entretanto, na capitania de Machico o progresso não foi tão
evidente porque o meio não oferecia as mesmas condições em termos
de contactos e da afirmação da economia agrícola. Deste modo, só
a localidade de Santa Cruz foi uma excepção, disputando por vezes
a primazia com Machico. Daí resultou a criação da vila em 1515.
Inserido no perímetro desta capitania estava toda a costa norte,
que, pelas dificuldades de acesso, foi alvo de um povoamento
tardio e lento. Isto contrastava com a do Funchal, onde o
progresso se deu a um ritmo galopante, o que motivou em 1508 a
elevação do principal núcleo de povoamento a cidade. Esta atitude
da coroa é justificada pelo elevado número de fidalgos e
cavaleiros que aí viviam e o importante movimento comercial do
porto90.

OS POVOADORES

Aos primeiros obreiros e cabouqueiros seguiram-se diversas


levas de gente, entusiasmadas com o progresso atingido pela ilha.
Neste grupo surgem trinta e seis apaniguados da casa do infante,
na sua maioria escudeiros e criados, que adquiriram uma posição
proeminente ao nível administrativo e fundiário91. Mesmo assim
João Gonçalves Zarco sentiu dificuldade em encontrar varões de
qualidade para desposarem as suas filhas, tendo solicitado ao
monarca o seu envio do reino92. Isto poderá ser o indicativo de
que a aristocracia reinol apostava mais nas façanhas bélicas em
Marrocos do que num projecto de povoamento. A enxada não lhes era
familiar. Por outro lado confirma o fracasso de Zarco no
recrutamento de gente nobilitada, que teve de ser suprida com
aqueles que pretendiam "buscar vida e ventura"93.
O processo de povoamento foi faseado podendo-se definir três
momentos:
90
. Arquivo Regional da Madeira, Câmara Municipal do Funchal, tomo I, fls. 278v1-279.

91
Sobre a presença e importância das gentes da casa do infante veja-se João Silva de
SOUSA, "A casa do infante D. Henrique e o arquipélago de Madeira (algumas notas para o seu
estudo)", in Colóquio Internacional de História da Madeira, Vol. I, Funchal, 1989, 108-127.

92
Saudades da Terra, 217-218.

93
Confronte-se Jerónimo Dias LEITE, ob.cit., p.16.
1.na década de vinte tivemos os aventureiros e companheiros
de Zargo e Tristão,

2.em meados da centúria surge novo grupo, atraído pela fama


das riquezas da ilha, alguns deles filhos-segundos de
famílias nobilitadas do norte,

3.a partir da década de sessenta, após a morte do infante,


é o entusiasmo contagiante de estrangeiros, nomeadamente,
oriundos das cidades italianas, a quem as portas se abriram.

É comum afirmar-se que os primeiros povoadores da Madeira


são oriundos do Algarve. Esta ideia filia-se na tradição algarvia
da gesta expansionista e na expressão de Jerónimo Dias Leite
*muitos do Algarve+94. Todavia, a dedução parece-nos apressada,
uma vez que faltam provas que a corroborem. Senão, vejamos. Numa
listagem dos primeiros povoadores referidos nos documentos e
crónicas, a presença nortenha (64%) é superior à algarvia (25%).
Por outro lado, os registos paroquiais da freguesia da Sé (desde
1539), no período de 1539 a 1600, confirmam esta ideia, uma vez
que os nubentes oriundos de Braga, Viana e Porto representam 50%
do total, enquanto os provenientes de Faro não ultrapassam os
3%95. Tudo isto contraria o estudo de Alberto Iria que não foi
capaz de responder as dúvidas que o tema suscita e de dar
credibilidade à sua opção algarvia96. Todavia, os mais eminentes
investigadores madeirenses hesitam entre a procedência minhota ou
algarvia dos primeiros colonos97. Ernesto Gonçalves, por exemplo,
é peremptório em apontar a ascendência minhota dos primeiros
obreiros do povoamento do arquipélago98.
Tendo em conta que o povoamento da Madeira é um processo
faseado, com a participação de colonos oriundos dos mais
recônditos destinos, e que de todo o Reino surgem gentes
empenhadas nesta experiência tentadora. É de prever a confluência
de várias localidades, em especial as áreas ribeirinhas - Lisboa,
Lagos, Aveiro, Porto e Viana -, adestradas no arroteamento de
terras incultas. Se é certo que do Algarve partiram muitos dos
apaniguados da casa do infante, com uma função importante no
lançamento das bases institucionais do senhorio, não é menos

94
Ob. cit., 16; Gaspar FRUTUOSO, ob.cit., 54.

95
Luís Francisco de Sousa MELO, "A imigração da Madeira" in História e Sociedade, n1 6,
1979, 39-57; Idem, "O Problema de origem geográfica do povoamento" in Islenha, n1 3, 1988, 19-34.

96
O Algarve e a Madeira no Século XV, Lisboa, 1974, sep. de Ultramar; confronte-se com
a crítica de Fernando J. PEREIRA em O Algarve e a Madeira, Braga, 1975.

97
Fernando Augusto da SILVA, *Do começo do povoamento madeirense+, in Das Artes e
História da Madeira, Vol. VIII, n1 37, 5; Joel SERRÃO, *Na alvorada do mundo atlântico+, in
Ibidem, vol. VI, n1 31, 1961, 6.

98
*No Minho ao sol de Verão+, in Ibidem, vol. IV, n1 21, 1955, 45-46; Fernando Vaz
PEREIRA Famílias da Madeira e Porto Santo, vol. I, Funchal, s.d., pp. 224 (n1 1) e 248 (n1 1).
certo que do norte de Portugal, nomeadamente da região de Entre
Douro e Minho, tivemos os cabouqueiros necessários ao
desbravamento da densa floresta e preparar o solo para as
culturas mediterrânicas - cereal, vinha, cana-de-açúcar e pastel.
O Norte de Portugal, quer pelo facto de ser a região do país mais
densamente povoada, quer pela sua permanente vinculação à
economia madeirense, exerceu por isso uma decisiva influência na
sociedade nascente.

OS ESCRAVOS. A Madeira, porque próxima do continente africano e


envolvida no seu processo de reconhecimento, ocupação e defesa do
controlo lusíada, tinha as portas abertas a este vantajoso
comércio. Deste modo a ilha e os madeirenses demarcaram-se nas
iniciais centúrias pelo empenho na aquisição e comércio desta
pujante e promissora mercadoria do espaço atlântico. À ilha
chegaram os primeiros escravos guanches, marroquinos e africanos,
que contribuiram para o arranque económico do arquipélago.
O comércio entre a ilha e os principais mercados
fornecedores existiu, desde o começo da ocupação do arquipélago,
e foi em alguns momentos fulgurante. Impossível é estabelecer com
exactidão a quantidade de escravos envolvida. A deficiente
disponibilidade documental, para os séculos XV a XVII, não o
permite. Carecemos dos registos de entrada da alfândega do
Funchal e dos contratos exarados nas actas notariais.
Os escravos que surgem no mercado madeirense são na quase
totalidade de origem africana, sendo reduzida ou nula a presença
daqueles de outras proveniências, como o Brasil, América Central
e India. Isto pode ser resultado, por um lado, da distância ou
das dificuldades no trafico e, por outro, das assíduas medidas
limitativas ou de proibição, como sucedeu no Brasil e India.
Apenas o mercado africano, dominado pela extensa costa ocidental,
em poder dos portugueses, não foi alvo de quaisquer proibições.
Aí as únicas medidas foram no sentido de regular o tráfico, como
sucedeu com os contratos e arrendamentos.
O litoral Atlântico do continente africano, definido,
primeiro, pelas Canárias e Marrocos e, depois, pela Costa e Golfo
da Guiné e Angola, era a principal fonte de escravos. E aí a
Madeira foi buscar a mão-de-obra necessária para abrir os poios
e, depois, plantar os canaviais. Primeiro foram os escravos
brancos das Canárias e Marrocos. Depois os negros das partes da
Guiné e Angola.
As condições particulares da presença portuguesa no Norte
de África definiram aí uma forma peculiar de aquisição. Os
escravos eram sinónimo de presas de guerra, resultantes das
múltiplas pelejas, em que se envolviam portugueses e mouros. Para
os madeirenses, que defenderam com valentia a soberania
portuguesa nestas paragens, os escravos mouros surgem ao mesmo
tempo como prémio e testemunho dos seus feitos bélicos. Eram
poucos os que podiam ostentar os seus triunfos de guerra. Outra
forma de aquisição era o corso marítimo e costeiros, prárica de
represália comum a ambas as partes.
Idêntica situação ocorreu na India onde os madeirenses
também se evidenciaram nas diversas batalhas aí travadas, como
sucedeu com Tristão Vaz da Veiga.
Na Costa Africana, além do Bojador, os meios de
abastecimento de escravos eram outros: primeiro tivemos os
assaltos e razias, depois o trato pacífico com as populações
indígenas. Tudo isto implicava uma dinâmica diferente para os
circuitos de comércio e transporte. Aqui os cavaleiros e
corsários são substituídos pelos mercadores.
A presença na Madeira de um significativo número de
escravos de Canárias, Norte de África e Costas da Guiné deverá
ter propiciado, ao nível social e material, múltiplas aportações
ao quotidiano madeirense. É comum apontarem-se inúmeras
influências do grupo nas tradições, nomeadamente no folclore e na
alimentação madeirense. Esta ideia, ainda que hoje se tenha
generalizado, não resulta de uma investigação científica mas sim
de meras observações empíricas ou suposições. A etnografia é
prenhe em observações deste tipo: no campo do folclore regional,
as músicas e as danças que não se enquadram no filão português
são, imediatamente, associadas a este grupo. Por isso algumas
danças e cantares, típicas do folclore madeirense, são resultado
da presença dos escravos: o charamba, o baile pesado, a mourisca,
a canção de embalar e o baile da meia volta são universalmente
aceites pelos folcloristas madeirenses como resultado desta
cultura legada pelos escravos.

3. AS INSTITUIÇÕES

O infante D. Henrique assumiu, desde 1433, de pleno direito


a posse das ilhas e, como tal, tratou, no imediato, de
estabelecer uma adequada estrutura administrativa:

1.procedeu à distribuição das terras pelos seus apaniguados


que estiveram empenhados no reconhecimento delas;

2.estabeleceu os regimentos para o governo das capitanias;


3.definiu os seus direitos e usufrutos;

4.ordenou o lançamento de sementes - cereais - e o


transplante de videiras e socas de cana.

Em pouco tempo a ilha da Madeira transformou-se numa horta que,


de direito, lhe pertencia. A tudo isto juntou-se uma estrutura
institucional adequada, tendo como ponto de partida o Infante e
as prerrogativas estabelecidas pela coroa em 1433.

4.1. As capitanias

Foi a 26 de Setembro de 143399 que o infante D. Henrique


99
ANTT, Chancelaria D. Duarte, L1 I, fl. 18, publ. J. M. Silva MARQUES, Descobrimentos
Portugueses, Vol. I, Lisboa, 1988, 271-272.
recebeu das mãos de D. Duarte a posse vitalícia das ilhas de
Madeira, Porto Santo e Deserta. De acordo com esta doação o ele
detinha a seguinte capacidade de intervenção:

1. Jurisdição civel e crime, limitada;

2. Usufruto de rendas e direitos;

3.Capacidade de livre intervenção na valorização do espaço;

4. Distribuição de terras pelos seus criados e demais


povoadores.

No último ponto a coroa estabelece que a referida concessão


de terras fosse feita "sem perjuizo da forma do foro per nos dado
aas dictas jlhas em parte nem em todo nem amalheamento do dicto
foro", com a capacidade de o poder "quitar parte ou todo". Esta
situação remete-nos para a existência de um diploma anterior do
mesmo monarca, que não é possível encontrar e que alguns fazem
coincidir com os capítulos de uma carta de D. João I, inserida
noutra de 7 de Maio de 1493100.
Aqui estão claramente expressas algumas limitações, isto é,
aspectos em que a coroa não abdica da sua própria intervenção:

100
ANTT, Provedoria da Fazenda do Funchal, n1 1150, fl. 101, publ. J. M. Silva MARQUES,
ob. cit., supl. Vol. I, pp. 109-110.
1. A doação é vitalícia;

2. Justiça, com jurisdição do civil e crime, é também


limitada;

3. Respeito pelas normas já estabelecidas;

4. Direito cunhar moeda.

Na mesma data a coroa concedeu também todo o espiritual das


ilhas à ordem de Cristo. Esta doação foi feita a pedido do
infante: "E por o jffante dom anrrique meu jrmão regedor e
governador de dicta ordem que no llo Requereo". No entanto, a
coroa reserva para si "o foro e o dizimo de todo o pescado que se
nas dictas jlhas matar".
A validade deste diploma era limitada, correspondendo ao
tempo de governo do monarca. Após a sua morte, tudo requeria a
confirmação do novo rei. E, foi na realidade isso que sucedeu em
1 de Junho de 1439101, e 11 de Março de 1449102, tendo D. Afonso
confirmado a anterior doação.

NOME VIDA GOVERNO DATA CONCESSÃO

D. Henrique 1394-1460 1433-1460 26 de Setembro de 1433

D. Fernando 1433-1470 1460-1470 3 de Dezembro de 1460

D. João -1472 1470-1472(1) 10 de Outubro de 1470

D. Diogo 1452-1484 1472-1484(1) 11 de Janeiro de 1473

D.Manuel 1469-1521 1484-1495


1)Entre 1470-79 o governo foi assegurado por D. Beatriz, mãe dos donatários, em virtude da
menoridade de ambos.

No período que medeia até 1497 o governo das ilhas esteve


entregue à Ordem de Cristo, sendo a administração assegurada por
governadores e administradores vitalícios. Apenas entre 1470-79,
em face da memoridade destes - no caso D. João(1470-71) e D.
Diogo(1472-74)- o governo foi assegurado por D. Beatriz, na
qualidade de tutora dos seus filhos. Em 1484 a sua administração
passou para a posse do Duque D. Manuel que, quando foi coroado
rei em 1495, abriu uma porta para a mudança desta estrutura
institucional, concretizada em 27 de Abril de 1497103. Assim
desaparece o senhorio passando as ilhas para a posse da coroa.

101
ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 19, fl. 19v1, publ. por Monumenta Henricina,
VI (1964), pp. 316-317.

102
ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 37, fl. 52v1, publ. ob. cit., Vol. X (1969),
p. 34.

103
. ARM, CMF, t.I, fls.272v1-275, in AHM, vol. XVII(1973), 363-364.
Tal como estava preceituado na primeira doação de 1433 o
infante D. Henrique tinha poder de proceder à divisão das terras
das ilhas e distribui-las como entendesse, estando apenas
limitado quanto aos direitos adquiridos resultantes da
intervenção da coroa. É o caso de João Gonçalves Zarco e Tristão
Vaz, os primeiros obreiros do reconhecimento das ilhas. Eles
recebem o encargo de, em nome do infante, coordenarem as tarefas
de povoamento dos novos espaços. São os capitães em representação
do donatário, por isso, ficaram conhecidos como capitães do
donatário e não capitães donatários como são impropriamente
referidos por alguma bibliografia. Note-se que esta última
situação quer dizer que os mesmos eram em simultâneo capitães e
donatários, como sucedeu, por exemplo em S. Tomé. O documento que
o estabelece juridicamente não surge em simultâneo para as três
áreas, existindo entre eles alguns anos de diferença. O primeiro
a ser contemplado foi Tristão Vaz que em 8 de Maio de 1440104
recebeu o "carrego" das terras entre o Caniço e a Ponta de
Tristão que ficou conhecida como a capitania de Machico.
Este diploma é uma peça fundamental, uma vez que estabelece
os mecanismos de intervenção dos interessados e preludia uma nova
estrutura de mando. Assim, Tristão Vaz exercia o governo em nome
do infante - "que elle a mantenha por mym em justiça e em
direiro" - de acordo com as seguintes condições:

1. Doação era hereditária como o estabelecia a lei Mental;

2. Administração da justiça, de acordo com os poderes a ele


consignados e os foros do infante;

3. Privilégios de fruição própria:


1. Monopólio dos moinhos, excepto nos braçais
2. Monopólio de fornos de poia, excepto fornalha para
uso próprio
3. Exclusivo condicionado da venda de sal
4. Redizima de todas as rendas havidas pelo infante
5. Poder de distribuir e retirar terras, sem embargo do
o infante o fazer.

As duas cartas posteriores, que legitimam a posse das


capitanias do Porto Santo e Funchal, seguem de perto este
enunciado, acrescentando alguns pormenores, que aqui não
mereceram qualquer referência. Assim, na de 1 de Novembro de
1446105, em que o rei concedia a posse de ilha do Porto Santo a
Bartolomeu Perestrello, acrescenta-se estas novas regalias:

1. Direitos sobre serras de água e outros engenhos;

104
ANTT, Chancelaria D. João III, 1055, fl. 184, publ. J. M. Silva MARQUES, ob.cit.,
Vol.I, pp. 403-404.

105
ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, l1.33, fl. 85, publ. J. M. Silva MARQUES, ob.cit.,
Vol. I, pp. 449-450.
2. Possibilidade de venda das terras de sesmarias;

3. Usufruto comum do gado bravio, excepto o pastorado.

A última carta a ser concedida foi a João Gonçalves Zarco,


a 1 de Novembro de 1450. Ela segue de perto as duas anteriores,
surgindo já com os acrescentos supra referidos. Esta foi,
todavia, a primeira a merecer a confirmação régia a 25 de
Novembro do mesmo ano106. Aqui o Rei confirma a doação que passa a
perpetua, a pedido do infante, mas estabelece uma emenda: "E que
onde diz na carta do dito tio que a apelação de morte ou
talhamento de membro venha perante ele, queremos que venham
perante nos segundo he conteudo na carta delRei meu senhor e
padre suso escrita...". As demais doações para Machico e Porto
Santo também mereceram a confirmação da coroa, mas só se conhece
a de Machico de 18 de Janeiro de 1452107, com o mesmo enunciado da
do Funchal, apenas não refere a usurpação de alçada cuja
legalidade estava já reposta.
No decurso do governo henriquino surgiu o problema da
sucessão na capitania de Porto Santo. Bartolomeu Perestrelo terá
morrido em 1457, deixando em aberto a sucessão, uma vez que o
filho varão, Bartolomeu Perestelo, era menor de 7 anos sem
capacidade para assumir ainda o governo da capitania. Entretanto,
a sua mãe Isabel Moniz, optou pela venda ao genro, Pedro Correia
da Cunha, capitã da ilha Graciosa. Esta operação foi confirmada
pelo infante D. Henrique em 17 de Maio de 1458108. Todavia, na
maioridade do referido Bartolomeu Perestrelo, a seu pedido, a
coroa considerou-a nula, não obstante estar já confirmada pelo
infante D. Henrique109.
Esta estrutura de poder foi alvo de alterações no final do
século XV, por acção de D. Manuel. Em 1497 o monarca acabou com o
senhorio, passando para a coroa toda a capacidade atribuída em
1433 ao senhorio. Esta nova situação condicionou a capacidade de
intervenção dos capitães, confrontados com a presença de
funcionários régios e a presença de novas estruturas da fazenda
real e justiça. Mesmo assim o capitão continuou a ser um
interlocutor activo, por iniciativa própria ou através do seu
ouvidor, nos municípios.

OS REGIMENTOS

106
ANTT, Chancelaria D. Afonso V, l1.37, fl. 52v1,publ.J. M. Silva MARQUES, ob. cit.,
Vol. I, pp. 488-489.

107
ANTT, Livro das Ilhas, fl. 21, publ. J. M. Silva MARQUES, ob. cit, pp. 490-491.

108
Ibidem, fls. 28-29, publ. por J. M. Silva MARQUES, ob. cit., pp. 547-549; com
confirmação régia de 17 de Agosto de 1459, publicada in Archivo dos Açores, II, pp. 11-14.

109
Conforme confirmação régia de 15 de Março de 1473, ANTT, Livro das ilhas, fl.93v1.
Confronte-se Gaspar FRUTUOSO, Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p. 66.
Durante o período de senhorio o arquipélago conheceu cinco
donatários com uma intervenção diversa. A documentação disponível
é o espelho disso. Do governo de vinte e sete anos do infante D.
Henrique ficaram poucos documentos. Esta lacuna poderá ser
resultado da sua perda, mas fundamentalmente da sua não
existência, pois a administração das ilhas no começo do
povoamento fazia-se com poucos regimentos. O fundamental era o
foral do infante e as cartas de doação. Do primeiro sabe-se
apenas ter existido, pois é o infante quem o anuncia em 1440, na
carta de doação da capitania de Machico: "E o que eu ey daver na
dita ilha he comtheudo no forall que pera ella mandey fazer". O
mesmo aparece em Jerónimo Dias Leite110 que da conta de "humas
lembranças" do infante "em que lhe encomendava muito ha justiça
principalmente, e ha lavrança da terra (...)". Delas o autor
enuncia algumas, rematando: "e outras cousas mais meudas com o
tudo se contem no regimento e lembrança (que ficão em meu
poder)".
A herança legada pelo infante D. Henrique ao seu filho
adoptivo, o infante D. Fernando, era merecedora de uma aturada
atenção. Por isso os madeirenses enviaram os seus procuradores ao
reino com um extenso rol de reclamações. A todos os domínios
atendeu o novo senhor, mas manteve sempre a fidelidade aos
princípios do seu antecessor. Estas exigências dos moradores
espelham o progresso social e económico da ilha. Da intervenção
do senhorio ressalta a vinda em 1465 do ouvidor, Dinis Anes de
Grã, e a posição assumida pelos juízes ordinários na
administração da justiça. A actividade de D. Beatriz vai no
sentido da organização do sistema tributário com a criação em
1477 das alfândegas do Funchal e Machico, e o delineamento de um
sistema defensivo que, por oposição dos moradores, só veio a ser
concretizado mais tarde. É, todavia, como o governo de D. Manuel,
como senhorio e rei, que ficaram sedimentadas as estruturas
institucionais. Estámos perante um conjunto de medidas que
preparam o Funchal para ser cidade e, depois, sede de bispado.

O MUNICÍPIO

Quanto às estruturas de governo das capitanias sabe-se que,


para além da presença do capitão e do almoxarife, havia o
município. Mas este tinha uma intervenção muito limitada. Assim,
no caso do Funchal, não existem paços do concelho, nem bandeira e
selo. A par disso, os juízes e procurador do concelho eram
impostos pelo capitão, contrariando os regimentos do reino que
estabeleciam a eleição dos pelouros. A tudo isto junta-se uma
recomendação ao capitão: "que em esta parte nos não torve", o que
nunca aconteceu, uma vez que ele, por iniciativa própria ou do
seu ouvidor, foi sempre um entrave ao normal curso da vida
municipal.
O relativo menosprezo do infante pela regulamentação dos
diversos domínios jurisdicionais do senhorio madeirense poderá
110
Ob. cit., p. 26
resultar do facto de a ilha no período inicial não o necessitar e
da preocupação do mesmo de não criar obstáculos ao impulso
povoador. Todavia, as referências indirectas a alguns destes
documentos, que não chegaram até nós, atestam o seu real
interesse no rápido avanço do povoamento da ilha. As isenções e
privilégios, exarados no seu foral, conseguidos junto da coroa
para os subditossão exemplo disso111. O extenso rol de reclamações
apresentado em 1461, após a sua morte, ao sucessor no senhorio, o
Infante D. Fernando, poderão ser o testemunho de um relativo
menosprezo ou antes da tendência centralizadora da política
henriquina.

111
Privilégio de isenção da dizima e portagens nas mercadorias enviadas ao reino: ANTT,
Chancelaria de D. Afonso V, l1. 19, fl.17v1, carta de 1 de Junho de 1439, publ., J. M. S. MARQUES,
ob.cit., vol.I, Lisboa, 1988, pp.400; ANTT, Chancelaria de D.Afonso V, l1.25, fl. 13v1, carta de
18 de julho de 1449, publ. in idem, ibidem, pp.439-440.
O infante D. Fernando, ao assumir, em 1460, o governo da
casa senhorial do seu tio, herdou um pesado fardo político-
administrativo, por isso,procurando adequar o governo de ilha à
nova conjuntura política e à satisfação das reclamações dos
procuradores enviados ao Reino, definiu em Agosto de 1461 uma
nova dinâmica institucional, económica e religiosa através dos
seus *apontamentos+112. Os poderes discricionários e os
privilégios dos capitães sofreram uma grande machadada mercê da
aplicação plena da jurisdição exarada nas doações de que se faz
uma pública-forma de modo que não possa "entender aalem delle em
poer outros foros e a costumes". Ao mesmo tempo estabeleceu-se a
necessária vinculação da jurisdição do capitão às directivas
régias e da estrutura municipal, conjugadas com o reforço da
intervenção do almoxarifado. O avanço mais significativo é dado
com o município, que se libertou do controlo e intervenção
discricionária do capitão, passando os seus oficiais a serem
eleitos entre os homens-bons, que fazem parte do rol aprovado
pelo senhorio. Esta autonomia é expressa ainda na concessão do
selo e da bandeira. No campo económico, os referidos apontamentos
anotam a necessidade de adequar a orgânica administrativa ao
nível do desenvolvimento económico da ilha. Primeiro procura-se
estabelecer uma adequada repartição das águas, tão necessárias à
faina açucareira, depois, é o apoio indispensável aos
assalariados e pequenos proprietários. No domínio comercial, a
intervenção fernandina foi pautada por uma abertura da ilha aos
agentes de comércio nacionais e estrangeiros, que motiva a sua
discordância em favor da pretensão dos madeirenses para a
expulsão dos judeus e genoveses.
Era chegado o momento de mudança, pois havia-se ultrapassado
o estado zero de desenvolvimento e a ilha só poderia avançar com
estas mudanças. A sociedade complexifica-se e requere
regulamentos adequados a todas as solicitações do quotidiano. Foi
esta a principal tarefa do infante D. Fernando, que teve
continuidade nos seus sucessores, nomeadamente D. Manuel, na
qualidade de senhorio e rei. O Infante D. Henrique havia lançado
a semente, cabendo ao seu herdeiro fazê-la medrar e colher o
fruto e foi isso que na realidade aconteceu com os diversos
regimentos e normativas que se seguiram.
As primeiras décadas do século XVI são definidas por uma
profunda alteração na estrutura municipal madeirense. Assim os
municipios sede das capitanias foram desmenbrados dando lugar a
novos. No Funchal tivemos a criação dos da Ponta de Sol(1501) e
Calheta(1502), enquanto em Machico foi apenas o de Santa
Cruz(1515), ficando toda a costa norte sob a alçada de Machico
até 1744, altura em que surgiu o primeiro município em S.
Vicente.

IGREJA

112
Veja-se Joel SERRÃO, "O infante D. Fernando e a Madeira, 1461-1470", in Das Artes e
da História da Madeira, 4, 1950, 10-17; Manuel J. Pita FERREIRA, "O infante D. Fernando, terceiro
senhor do arquipélago da Madeira, 1460-1470", in ibidem, 33, 1963, 1-22.
A dois de Julho de 1420 desembarcou João Gonçalves Zarco no
vale de Machico e, de imediato, procedu à posse da terra em nome
do rei e à sua sagração com a primeira missa, rezada pelos
franciscanos que o acompanharam na viagem. O texto de Francisco
Alcoforado é muito claro: "(...) determinou sair em terra e levar
consigo dois padres que trazia, saindo em terra deu graça a Deus
mandou benzer agua e aspargela pelo ar (...) mandou dizer missa
(...) Foi a primeira missa que se disse (...) "113
Em Maio do ano imediato, João Gonçalves Zarco regressou à
ilha com três navios e a disposição de proceder ao seu
povoamento. De novo o desembarque em Machico e "a primeira coisa
que fez foi traçar uma igreja de Invocação de Cristo..."114.
Depois, foi o novo reconhecimento da costa, com o assentamento de
colonos. Todos os actos eram precedidos pela construção de uma
igreja ou ermida. No Funchal foram as capelas de Santa Catarina e
a de Nossa Senhora do Calhau, sendo a última considerada pelo
autor "a primeira casa de igreja que se fez na ilha"115. Mais além
em Câmara de Lobos a do Espírito Santo, na Quinta Grande a de
Vera Cruz, nos Canhas a de Santiago, na Estrela (Calheta) a de
Nossa Senhora da Estrela. E conclui o cronista: "...começou a por
em obra a edificação das igrejas e lavrança da terra". O templo
religioso é o ponto de divergência do processo de povoamento e
foi em torno dele que surgiram as primeiras habitações de madeira
para dar abrigo aos colonos. Daqui resultou a importância
fundamental da igreja em todo o processo.
De acordo com a doação régia de 26 de Setembro 1433116 o
infante, como mestre da Ordem de Cristo, recebeu também a
capacidade de intervenção na esperitualidade do novo espaço. O
Vigário de Tomar, local sede da ordem, era quem, em nome do
infante, estabelecia a estrutura religiosa, provendo os
ministros. Apenas a arrecadação dos dízimos eclesiásticos
permanecia a cargo do almoxarife do infante117. O governo
espiritual ficou entregue ao vigário de Tomar, sede da Ordem de
Cristo e na condição de nullius diocese118, enquanto ao
administrador da ordem competia a construção dos templos, nomear
os ministros e pagar o seu vencimento. À parte isso, todas as
ilhas, estabeleceram-se ouvidorias com o objectivo de organizar e
exercer o governo eclesiástico. A situação mudou em 1514 com a
criação do bispado do Funchal e, depois em 30 de Dezembro de 1551
com o regresso à coroa do padroado.
113
A Relação de Francisco Alcoforado, publ. por José Manuel de CASTRO, Descobrimento de
Ilha da Madeira ano 1420..., Lisboa, SD, p. 90.

114
Ibidem, p. 93.

115
Ibidem, p. 93.

116
J. M. Silva MARQUES, ob. cit., I, p. 273, 400.

117
Fernando Jasmins PEREIRA, "Bens Eclesiásticos - Diocese do Funchal" in Estudos sobre
História da Madeira, Funchal, 1991, pp. 325-327.

118
. Isto é, não sujeita a qualquer diocese.
Para cada capitania foi nomeado um vigário, que dependia
directamente do de Tomar, tendo como função administrar a
esperitualidade no recinto da sua jurisdição. Destes apenas se
conhece o nome dos de Machico e Funchal, respectivamente Frei
João Garcia e João Gonçalves. Parece que esta situação perdurou
por todo o governo do infante D. Henrique, uma vez que em 1461119
uma das exigências dos moradores do Funchal era o aumento do
clero, de modo que fosse assegurado o serviço religioso aos
moradores de Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Arco
da Calheta. O próprio infante preocupou-se com a administração
religiosa do arquipélago, ordenando a construção de igrejas e
capelas, conforme se deduz do seu testamento de 1460120.
Não agradou ao infante a pretensão dos franciscanos das
Canárias de quererem introduzir-se na ilha, ficando subordinados
ao vigário dessas, tal como o estabelecia a letra "dum ad
prellara" do papa Nicolau V em 10 de Dezembro de 1450121. Estes
havião-se fixado no arquipélago vizinho desde 1436, mediante
autorização do Papa Eugénio IV. Tal situação era entendida como
uma ingerência nos direitos adquiridos pela Ordem de Cristo e uma
afronta, tendo em conta o empenho do infante na conquista de
algumas dessas ilhas. Mesmo assim a ordem seráfica firmou-se na
vida religiosa madeirense criando conventos no Funchal, Câmara de
Lobos, Santa Cruz(1476), Ribeira Brava, Calheta(1670) e Machico.
Neste contexto relevam-se os conventos de S.Francisco do Funchal
e o de Santa Clara. O primeiro, para albergar os frades, foi
construído a partir de 1474, enquanto o segundo, de freiras, foi
erguido por iniciativa de João Gonçalves Camara, segundo capitão
do Funchal, no espaço onde o seu pai havia edificado a sua capela
da Conceição de Cima( em oposição à da Conceição de Baixo,
construída junto ao mar). Antes disto tivemos os primeiros
cenóbios de S. João da Ribeira (Funchal) e S. Bernardino de
Sena(Câmara de Lobos).
Quanto aos diversos templos religiosos, que foram erguendo
os povoadores em toda a ilha, não existe consenso entre os
diversos historiadores nem dados que abonem com segurança a data
exacta de construção122. É de salientar que a tradição veiculada
por Álvaro Rodrigues de Azevedo123 e o Pe. Fernando Augusto da
Silva124 apresenta algumas paróquias criadas em 1430, 1440 e 1450.
119
RGCMF, T. I, fls. 204-209, publ. AHM, XV, pp. 11-20. Vejamos o que é dito: "Em esa
parte da ylha ho sennor ynfante meu padre que Deos aja nunca pos mays de hum capellam porque
emtam a gente era pouca E agora he em mays multiplicaçam asy que hum soo capellam nom pode
abrajer a todollos logares..."

120
J. M. Silva MARQUES, ob. cit., I, p. 590.

121
Confronte-se Monumenta Henricina, III, (1961), pp. 53-54.

122
Confronte-se Padre Fernando Augusto da SILVA, Subsídios para a História da Diocese
do Funchal, Funchal, 1946, pp. 22-35, 299-376; Padre Manuel Juvenal Pita FERREIRA, O Arquipélago
da Madeira Terra do Senhor Infante de 1420 a 1460, Funchal, 1859, pp. 308-352.

123
"Notas", Saudades da Terra, Funchal, 1873, pp.534-566.

124
Subsídios para a História da Diocese do Funchal, pp.22-35.
Não sabemos em que se fundamenta tal ideia, uma vez que nas
reclamações dos moradores do Funchal em 1461, documento já
citado, refere-se a existência de um só capelão que dizia missa
no Funchal125.

125
Em 1466 continua a referir-se só um vigário (RGCMF, I, fls. 216-219v1, publ. AHM, XV,
pp. 36-40).
Extinto o senhorio, a Ordem de Cristo através do vigário de
Tomar continuou a superintender o governo eclesiástico das ilhas
até que em 12 de Junho de 1514, pela bula "Pro excellenti", foi
criado o bispado do Funchal com jurisdição sobre toda a área ocu-
pada pelos portugueses no Atlântico e Indico. Até esta data todo
o serviço episcopal era feito por bispos titulares aí enviados
pelo vigário de Tomar, sendo de referir as visitas a Angra em
1487 e aos arquipélagos da Madeira e Açores (entenda-se Funchal,
Angra e Ponta Delgada) em 1507 e 1508. Mas o progresso económico
e social deste vasto espaço levou à criação em 1534 de novas
dioceses, cujas áreas foram desanexadas do Funchal: as de Goa,
Angra, Santiago e S. Tomé. Entretanto em 31 de Janeiro de 1533 a
diocese do Funchal foi elevada à categoria de metropolitana e
primaz, englobando "a Madeira e Porto Santo, as ilhas Desertas e
Selvagens, aquela parte continental de åfrica, que entesta com a
diocese de Safi[m] e bem assim as terras do Brasil, tanto as já
descobertas, como as que se vierem a descobrir". Esta foi uma
situação passageira. Além disso a bula papal não foi expedida do
Vaticano, por a coroa a não ter pago, o que coloca a dúvida da
existência real do arcebispado do Funchal. Em 1551 o papa Júlio
III revogou passando o Funchal para simples bispado sufragâneo de
Lisboa, que passará a assumir a função de primaz das terras
atlânticas, enquanto a de Goa preencherá idênticas funções para
as terras orientais.

NOME GOVERNO

Diogo Pinheiro 1514-1526

Martinho de Portugal 1533-1547

Frei Gaspar do Casal 1551-1556

Jorge de Lemos 1556-1569

Fernando de Távora 1570-1573

Jerónimo Barreto 1574-1585

Luis de Figueiredo de Lemos 1586-1608

Frei Lourenço de Távora 1610-1618

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