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ALBERTO VIEIRA

PORTUGAL
Y LAS ISLAS
DEL ATLANTICO

EDITORIAL
MAPFRE
Director coordinador: José Andrés-Gallego
Disefio de cubierta: .José Crespo

Obra publicada con el apoyo


de la Fundación Calouste Gulbenkian
de Lisboa

O 1992,Alberto Vieira
O 1992,Fundación MAPFRE América
O 1992,Editorial MAPFRE, S. A.
Paseo de Recoletos, 25 - 28004 Madrid
ISBN: 84-7100-347-3 (rústica)
ISBN: 84-7100-348-1 (cartoné)
Depósito legal: M. 25819-1992
Impreso en 10s talleres de Mateu Cromo Artes Grhficas, S. A.
Carretera de Pinto a Fuenlabrada, dn. Km. 20,800 (Madnd)
Impreso en Espana-Printed in Spain
PRIMEIRA PARTE : A REVELAÇÄO DO ESPAÇO E OCEANO ATLÅNTICO

INTRODUÇÄO

O Atlântico näo é só uma imensa massa de água, polvilhada de ilhas, pois a ele associa-se
uma larga tradiçäo histórica que remonta à Antiguidade, donde resultou o nome de baptismo.
Aqui deparamo-nos com um conjunto polifacetado de ilhas e arquipélagos que se tornaram
relevantes no processo histórico do Oceano, quase sempre como intermediários entre o mar-
alto e os portos litorais dos continentes europeu, africano e americano. As ilhas anicham-se,
de um modo geral, junto da costa dos continentes africano e americano, pois apenas os
Açores, Santa Helena, Ascençäo e o grupo de Tristäo da Cunha se distanciam dela.
Desde o pioneiro trabalho de Fernand Braudel1 que às ilhas foi atribuída uma posiçäo
chave na vida do oceano e do litoral dos continentes. A partir daqui a Historiografia passou a
manifestar grande interesse pelo seu estudo. Note-se ainda que, segundo Pierre Chaunu2 , foi
activa a intervençäo dos arquipélagos da Madeira, Canárias e Açores, ue dsignou
Mediterrâneo Atlântico, na economia castelhana dos séculos XV e XVII.
Para o Atlântico português a conjuntura era diversa, pois a actuaçäo em três frentes - Costa
da Guiné, Brasil e ïndico - alargou os enclaves de domínio ao sul do oceano. Neste contexto
surgiram cinco vértices insulares de grande relevo - Açores, Canárias, Cabo Verde, Madeira e
S. Tomé - imprescindíveis para a afirmaçäo da hegemonia e defesa das rotas oceânicas dos
portugueses. Aí assentava a coroa portuguesa os principais pilares atlânticos da sua acçäo,
fazendo das ilhas desertas, lugares de acolhimento e repouso para os náufragos, ancoradouro
seguro e abastecedor para as embarcaçöes e espaços agrícolas dinamizadores da economia
portuguesa. No primeiro caso podemos referenciar a Madeira, Canárias, Cabo Verde, S.
Tomé, Santa Helena e Açores, que emergem, a partir de princípios do século XVI, como os
principais eixos das rotas do Atlântico.
Aqui há necessidade de diferenciar aquelas ilhas que se afirmaram como pontos
importantes das rotas intercontinentais, como as Canárias, Santa Helena e Açores, e as que se
filiam nas áreas económicas litorais, como sucede com Arguim, Cabo Verde, e o arquipélago
do Golfo da Guiné. Todas, à excepçäo de S. Tomé, vivem numa situaçäo de dependência em
relaçäo ao litoral que as tornou importantes. Apenas a de S. Tomé, pela importância da cana
de açúcar, esteve fora desta subordinaçäo por algum tempo.
O protagonismo das ilhas das Canárias e dos Açores é muito mais evidente no traçado das
rotas oceânicas que se dirigiam e regressavam das Indias ocidentais e orientais, resultado da
sua posiçäo às portas do oceano. Elas actuaram como via de entrada e de saída das rotas

1
. O Mediterrâneo e o Mundo Maditerrânico na época de Filipe III, 2 vols., Lisboa, 1984 (1ª edição em 1949).

2
. Sevilla y América. siglos XVI y XVII, Sevilha, 1983.
oceânicas, o que motivava a maior incidência da pirataria e corso na regiäo circum-vizinha.
Mas os dois arquipélagos näo foram apenas áreas de apoio, uma vez que o solo fértil permitiu
um aproveitamento das suas potencialidades por meio das culturas europeio-mediterrâneas.
Foi esta última vertente que os projectou para um lugar relevante na História do Atlântico.
A valorizaçäo sócio-económica dos espaços insulares näo foi unilinear, dependendo da
confluência de dois factores. Primeiro os rumos definidos para a expansäo altântica e os níveis
da sua expressäo em cada um. Depois as condiçöes propiciadoras de cada ilha ou arquipélago
em termos físicos, de habitabilidade ou da existência ou näo de uma populaçäo autóctone.
Quanto ao último aspecto é de salientar que apenas as Antilhas, Canárias e a pequena ilha de
Fernäo do Pó, no Golfo da Guiné, estavam já ocupadas quando aí chegaram os marinheiros
peninsulares. As restantes encontravam-se abandonadas -- näo obstante falar-se de visitas
esporádicas às ilhas dos arquipélago de Cabo Verde e S. Tomé por parte das gentes costeiras -
- o que favoreceu o imediato e rápido povoamento, quando as condiçöes do eco-sistema o
permitiam. Se na Madeira esta tarefa foi fácil, não obstante as condições hostis da orografia, o
mesmo näo se poderá dizer dos Açores ou de Cabo Verde, onde os primeiros colonos tiveram
que enfrentar diversas dificuldades. Para as ilhas já ocupadas as circunstâncias foram
diferentes, pois enquanto nas Canárias os castelhanos tiveram que se defrontar com os
autóctones por largos anos(1402/1496), em Fernäo do Pó e nas Antilhas foi mais fácil vencer
a resistência indígena.
Nos séculos XV e XVI este conjunto variado de ilhas e arquipélagos firmou um lugar de
relevo na economia atlântica, distinguindo-se pela funçäo de escala económica ou mista: no
primeiro caso surgem as ilhas de Santa Helena, Ascençäo, Tristäo da Cunha, para o segundo
as Antilhas e a Madeira e no terceiro as Canárias, Os Açores, Cabo Verde, Säo Tomé e
Príncipe.
Neste grupo emergem a Madeira e as Canárias pelo pioneirismo da ocupaçäo que, por isso
mesmo, se projectaram no restante espaço atlântico por meio de portugueses e castelhanos.
Daqui resulta a evidente vinculaçäo económica e institucional da Madeira ao espaço atlântico
português, como o é das Canárias com as ïndias de Castela. Daí também a importância que
assume para o estudo e conhecimento da História do Atlântico a valorizaçäo da pesquisa
histórica sobre ambos os arquipélagos. Se nas Canárias tal necessidade se tornou um facto
com o empenho de muitos investigadores e instituiçöes, nomeadamente a partir do Colóquio
de História Canario-Americana (1977), na Madeira só em 1986 com a criaçäo do Centro de
Estudos de História do Atlântico. Na verdade, nos últimos quinze anos, as condições criadas
ao nível institucional levaram a que surgisse uma nova geração de jovens historiadores
insulares, que têm procurado desenterrar dos arquivos a realidade recôndita dos seu
antepassados.
Por tudo isto fica justificada a nossa opçäo pela abordagem do protagonismo das ilhas
portuguesas do Atlântico, relevando a sua afirmaçäo na estratégia lusíada de domínio deste
espaço e usufruto que nelas tiveram das inúmeras potencialidades económicas.
I. A REVELAÇÄO DO OCEANO

Por vezes os conceitos que corporizam determinada realidade histórica colocam-nos


inúmeras ciladas, que podem pôr em causa esse mesmo conhecimento. Vem isto a propósito
do uso dos conceitos mais adequados para definir o que realmente se passou no século quinze
com a revelaçäo ao Ocidente daquilo a que viria a ser a nova realidade atlântica: as ilhas.
Certa Historiografia, partindo de uma visäo europocêntrica do mundo e do pretenso
pioneirismo da iniciativa da gentes das plagas lusitânicas, pretende ver nisto um acto
descobridor e, na consequente fixaçäo, uma forma de colonizaçäo. Ambos os conceitos viciam
a realidade e por isso mesmo têm sido motivo de acesa polémica. Hoje o problema é
meramente académico, substituindo-se o seu uso por outros conceitos, como encontro de
culturas, redescobrimento, reconhecimento. E poucos säo já aqueles que mantêm a
terminologia tradicional.
O Atlântico, considerado uma revelaçäo ou redescobrimento quatrocentista dos
portugueses, passou a assumir um lugar de protagonista activo em épocas muito anteriores a
esta centúria. Desde a Antiguidade, nomeadamente a partir do século VI A.C., que surgem
testemunhos abonatórios da presença dos povos ribeirinhos do Mediterrâneo nas suas águas3.
Primeiro os cartagineses e depois os árabes preludiaram a gesta concretizada em pleno no
século XV pelos portugueses e castelhanos.
Säo inúmeros os documentos de vária índole (textos narrativos, portulanos e vestígios
arqueológicos) que abonam em favor do conhecimento do oceano pelos povos mediterrânicos
em data muito anterior à presença portuguesa. O lendário relato da Atlântida, imortalizado por
Platäo, os textos narrativos de autores clássicos greco-romanos, e as mais recentes pesquisas
arqueológicas assim o denunciam. Mas o facto de alguns dos testemunhos assumirem, até ao
momento, apenas a dimensäo da lenda, como sucede com a Atlântida e a viagem de Robert
Machim, têm levado muitos historiadores a manter a clássica perspectivaçäo da realidade.
Na actualidade abundam os testemunhos abonatórios de um conhecimento, ainda que
limitado, do Atlântico, das ilhas e plagas ocidentais do continente africano. Deste modo a
gesta portuguesa iniciada em 1418, segundo a tradiçäo, com a primeira viagem à Madeira,
assume apenas a funçäo reveladora à Cristandade ocidental do novo mundo e näo a
descoberta. Mais importante que a descoberta, foi a valorizaçäo sócio-económica que definiu
a iniciativa dos portugueses.

3
. Uma das mais recentes aportações reveladoras do interesse dos povos mediterrânicos pelos espaços insulares atlânticos pode ser comprovada,
ainda que só para as Canárias, em Marcos Martinez, Canarias en la Mitologia, Las Palmas, 1992. Confronte-se A. von Humbolt, Cristóbal Colón
y el descubrimiento de América, 2 vols, Madrid, 1925 e 1926; A. García y Bellido, Las islas atlánticas en el mundo antiguo, Las Palmas, 1967.
As provas que fundamentam a presença dos argonautas antigos nestas paragens acumulam-
se e vêm sendo apontadas desde o século XVI pela Historiografia portuguesa, como o
testemunham António Galväo, Damiäo de Góis e Gaspar Frutuoso. Todavia o empenhamento
da historiografia nacional nas reivindicaçöes emanentes da partilha oitocentista do continente
africano, conduziu a uma opiniäo afirmativa, mantida até à actualidade, da prioridade lusíada
no conhecimento do Atlântico ocidental, oriental e índico. A publicaçäo em 1954 do polémico
estudo de Armando Cortesäo4 sobre a carta náutica de 1424, em que o autor se declarava a
favor do testemunho da literatura greco-latina, foi mal acolhido. Desta forma se corporizava
uma nova realidade do processo de conhecimento do oceano.
Durante séculos o Atlântico foi considerado o mar das trevas, incapaz de ser sulcado pelas
embarcaçöes mediterrânicas e de se submeter às técnicas de navegaçäo em uso. O empenho de
cartagineses, árabes e peninsulares veio a revelar o contrário e a torná-lo, a partir do século
quinze, no principal centro de convergência dos interesses europeus. A ponte entre o mundo
antigo e moderno fez-se por via dos árabes, mas foram os portugueses que materializaram a
nova realidade. Ao grego ou romano esta vasta massa de água materializava a dicotomia do
bem e do mal, expressa em visöes aterrorizadoras, contrárias à navegaçäo mas favoráveis à
sua afirmaçäo como paraíso dos deuses da mitologia. Mas para o europeu, dos séculos XV e
XVI, ele será a imagem de uma esperança de total mudança dos interesses económicos. Onde
o homem antigo via o paraíso inalcansável, os peninsulares tornavam real o mítico paraíso.
Esta criatividade literária greco-romano-árabe deu origem a várias ilhas fantásticas, que
surgem com maior acuidade desde o século XIV, como o alvo preferencial de alguns
navegadores incautos. Primeiro divulgou-se a Atlântida, depois as Afortunadas, Hespérides,
Antília (ou Sete Cidades), S. Brandäo e Brasil. As três últimas, que surgem pelo menos desde
o século XIV, dominaram a imaginaçäo dos cartógrafos nesta e posteriores centúrias,
cativaram o interesse de outros tantos navegadores, persistindo, em alguns casos, até ao século
dezanove.
A ilha de S. Brandäo manteve-se na cartografia desde o século XIII ao XIX, sendo
deslocada para os espaços inexplorados do oceano. Entretanto a Antília atraiu alguns
portugueses, como Fernäo Teles (1474), Fernäo Dulmo (1486), Joäo Afonso do Estreito e os
irmäos Corte-Reais, que solicitaram junto da coroa o necessário direito de posse. Para Gaspar
Frutuoso5 estas e outras ilhas näo passaram de meras fantasias dos literatos europeus que o
precederam. Na sua obra está bem expressa a total oposiçäo a esta realidade e à Atlântida de
Platäo, sendo vários os argumentos apresentados para fundamentar a sua ideia. Resta saber se
esta opinião é corroborada por todos os seus contemporâneos. Todavia a última perdurou até
hoje, conquistando inúmeros adeptos nos diversos ramos da ciência, que lhe dedicaram muito
tempo em estudos e pesquisas que se tornaram infrutíferos.
Neste contexto as iniciativas portuguesas, desbravadoras do vasto oceano, atribuíram a
nova imagem à realidade atlântica. å visäo de Avieno sobrepôs-se a de Duarte Pacheco Pereira
ou de D. Joäo de Castro e Pedro Nunes. A situaçäo preferencial do português levou-o à defesa
do mare nostrum, que depois teve de ser partilhado com Castela e mais tarde com vários
outros europeus. Esta partilha quatrocentista mereceu o comentário incisivo de Gaspar
Frutuoso: "näo entendo esta mistura, como neste mar houve dois senhores diversos". Na

4
. The Nutical Chart of 1424, Coimbra, 1954

5
. Saudades da Terra. livro primeiro, Ponta Delgada, 1969, capítulos XXVIII-XXX.
verdade só a constatação da conjuntura política permitirá entender a razão desta disputa e
partilha pelas duas coroas peninsulares.
Em face disto podemos afirmar que o conhecimento das ilhas e litoral africano ganhou
forma na Antiguidade, sendo expresso num confronto entre a lenda e a realidade, de que o
mito da Atlântida é a versäo mais entusiástica. A Atlântida surge pela primeira vez na obra de
Platäo - Timeu e Crítias de 421 A.C -, como corolário de uma tradiçäo antiga que definia o
mar ocidental de uma forma especial. Aí se situava a mansäo dos deuses, o local de destino
dos heróis da mitologia grega, definido como a Makaron Nesoi (=ilhas afortunadas).
O conhecimento da costa africana, teria resultado de algumas expediçöes realizadas de que
se destacam: a primeira por ordem o faraó Necao II em 610 A.C., depois a viagem de
Sataspes(480-470 A.C.) até à Guiné, e o périplo de Hanäo em 485 A.C.com sessenta navios
desde Cartago, que teria percorrido a costa africana até Cabo Verde. Estas e outras viagens
referenciadas näo têm cativado o interesse da historiografia que se mostra renitente em aceitar
a verdade dos relatos contidos nos textos clássicos. A Historiografia dos séculos XVIII e XIX
afirmava peremptoriamente a veracidade destas informaçöes e defendeu a ideia de que os
fenícios projectaram o seu empório comercial na costa ocidental africana. Apenas os
portugueses, pela voz dos seus eruditos mantiveram a tese de que esta área estava por revelar
no início das navegaçöes henriquinas.
Os autores clássicos ( desde Homero, Píndaro, Hesíodo, Plínio o Velho, Diodoro Sículo,
Plutarco, Ptolomeu e Ovídeo) corporizam e testemunham nos escritos que nos legaram a
primeira abordagem pelos povos mediterrânicos a partir do século V A.C..
A estas ilhas foram atribuídos vários nomes e ficaram como palco de inúmeros
acontecimentos da mitologia grega. Talvez por isso mesmo, devido a esse misto de lenda e
realidade, que incorpora os testemunhos, eles näo têm merecido o necessário acolhimento da
historiografia europeia. Todavia as preocupaçöes recentes da Arqueologia poderäo conduzir a
uma mudança para o conhecimento do Atlântico. Note-se, por exemplo, que a referência à
estatua da ilha do Corvo por António Galväo e Gaspar Frutuoso e a notícia do encontro em
1749 de moedas púnicas na ilha do Corvo, que näo obstante ter entusiasmado alguns
investigadores como Podolyn, Humbolt e Ernesto do Canto, näo conseguiu firmar a sua
veracidade. A última foi reabilitada com a pesquisa arqueológica de B. Iserlin6. Quanto à
hipotética estátua equestre, que teria existido na ilha do Corvo ficou, demonstrado por José
Agostinho que a mesma era uma ilusäo óptica7.
Convém esclarecer que näo é nossa intençäo afirmar, tal como o fez o Visconde de
Santarém, que o descobrimento das ilhas teve lugar apenas no século XV. Mas referir, a
exemplo de Luís de Albuquerque8 , que das ocasionais ou assíduas viagens "näo perdurou
memória da experiência adquirida" capaz de guiar ou motivar as expediçöes posteriores dos
séculos XIV e XV. Dizemos experiência adquirida e näo conhecimento! Pois das expediçöes,
perpetuadas pela literatura perdurou apenas um conjunto de ilhas, com nomes variados e
indiscriminadamente colocadas ao longo da costa africana até ao golfo da Guiné.

6
. B.S.J. ISERLIN, "Did Carthaginnian mariners reach the island of Corvo (Azores)? Report on the results of joint field investigations indertaken
on Corvo in June 1983", in Rivista de Studi Fenici, XII, ROma, 1084, 31-46.

7
. José AGOSTINHO, "Achados arqueológicos nos Açores", in Açoreana, IV, 97.

8
. "Atlântico" in Dicionário de História de Portugal, I, LLisboa, 1975, 247-249.
Por outro lado esta visäo que tem prefigurado a História do Atlântico antes do século XV é
demasiado reducionista, por tentar definir o nível de conhecimento à presença ou passagem de
apenas os europeus, ignorando qualquer iniciativa das populaçöes africanas, desde Marrocos
até ao golfo da Guiné. A tal perspectivaçäo europocêntrica sobrepöe-se a realidade do
Atlântico dominado por ilhas vizinhas ou näo da costa africana, alvos de assíduas visitas ou de
uma fixaçäo de gentes, como sucedeu no arquipélago das Canárias e na ilha de Fernäo do Pó.
A presença de uma populaçäo autóctone oriunda da costa africana atesta que o espaço insular
näo se manteve desconhecido e que certamente muitos dos textos que para nós se afiguram
como mera ficçäo têm que ser reapreciados à luz desta nova realidade.
Os aborígense do arquipélago canário foram resultado de dois surtos emigratórios: um
primeiro, em data incerta, entre 2500 e 1000 A.C., que levou à fixaçäo das primeiras gentes
nas ilhas próximas do Cabo Juby (Lanzarote e Fuerteventura); e um segundo entre os séculos
VI e IX, provocado pelo avanço árabe no Norte de åfrica, que conduziu ao total povoamento
do arquipélago.
Em Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe é referenciada a presença de gentes africanas antes
da chegada dos portugueses no século XV. Todavia as ilhas encontravam-se abandonadas à
sua chegada na segunda metade do século XV, o que demonstra que estes encontros, a terem
lugar, deveriam ter sido fortuitos. O povoamento delas näo apresentava, então, qualquer
interesse, sendo ocasional o da ilha de Ano Bom.
Se para estes arquipélagos, porque próximos da costa, o contacto com as populaçöes do
litoral africano foi uma realidade. O mesmo já näo se poderá dizer da Madeira e dos Açores,
cujo distanciamento do litoral, e a navegabilidade dos mares circunvizinhos näo foram de
molde a favorecê-lo, ainda que de forma ocasional. Talvez por isso mesmo seja impossível
detectar o rasto da sua existência e conhecimento na tradiçäo histórico-literária, o que näo
sucede com as Canárias, por exemplo.
Ao devassar do oceano na Antiguidade sucedeu nas décadas iniciais da Idade Média um
período de esquecimento. Estivemos perante um acantonamento ao velho continente e mar
mediterrânico, sendo o Atlântico considerado, por isso mesmo, um mar tenebroso. A ideia
começou a ganhar forma com Avieno, que o define como Ophiusa (= Mar das Trevas).
Apenas os geógrafos árabes conhecedores da tradiçäo clássica e atentos às expediçöes dos
seus compatriotas, continuavam a acreditar na navegabilidade do mar para além das colunas
de Hércules.
Este conhecimento manteve-se por muito tempo fora da área de influência dos povos
peninsulares. A causa disso foi a conjuntura envolvente da alta Idade Média, em que se
sobrepöe a concepçäo ptolomaica do mundo ocidental, onde imperava a inabitabilidade e
intransponibilidade da zona tórrida9. Assim o acesso aos mercados asiáticos só seria possível
pelo mar do Levante.
O oceano continuará por muito tempo como um mar intransponível, repercutindo-se em
Edrisi (1099-1154) as teses de Séneca e Avieno. Mas com o advento do novo milénio algo
estava para acontecer no Ocidente: as cruzadas, por um lado, os progressos técnicos (bússola,
o leme e o navegar à "bolina") e económicos, por outro, conduziram à abertura dos portos
oceânicos. Deste modo às isoladas expediçöes árabes: primeiro dos aventureiros de Lisboa em
1147, depois de Ibn Fatima e Mohamed Ben Ragano, seguiram-se outras, com alguma
frequência, sob o comando de italianos, bretöes, bascos, biscainhos e cataläes, ao longo do
9
Confronte-se W. G. L. RANDLES, Da terra plana ao globo terrestre, Lisboa, 1990.
século XIV. Das últimas, para além do testemunho em texto, perdurou a sua expressäo na
cartografia, a partir de finais do primeiro quartel do século catorze.
Desde o século XIII a costa ocidental africana, aquém do Bojador, passou a ser devassada
pelas populaçöes ribeirinhas do litoral mediterrânico que, dando continuidade à tradiçäo
clássica da pesca, encontraram aqui infindáveis riquezas. Primeiro o aproveitamento dos
recursos disponíveis nos mares circundantes. Depois a procura de plantas tintureiras (urzela) e
o resgate de escravos canários. Após a pioneira viagem dos irmäos Vivaldi, em 1291,
seguiram-se outras entre 1342 e 1339, sendo de referenciar as
hipotéticas viagens dos "Matelots de Cherebourg", antes de 1312, de Lanzarotte de Malocello,
ao serviço do rei de Portugal, cerca de 1310 e, finalmente, a de Angiolino del Tegghia de
Corbizi e Nicoloso de Recco em Junho de 1341, ao serviço de D. Afonso IV de Portugal.
Outras viagens tiveram lugar cuja notícia escapou ao nosso conhecimento. Elas, no
entender de Raymond Mauny10, deixaram traços evidentes na cartografia do século XIV.
Desde 1325 os portulanos e cartas passaram a representar as ilhas, sendo a imagem quase
irreal, mas a partir de meados da centúria ela aperfeiçoa-se em termos de perfil e de posiçäo.
No caso da Madeira a evoluçäo é flagrante. Em 1339 na carta Dulcert no seu local surgem três
ilhas com o nome de S. Brandäo ou das Donzelas. No Atlas Mediceu de 1350 elas foram
substituídas por outras com o nome real e actual (Porto Sco, I.de lo Legname, I.Deserte),
faltando apenas as Selvagens que aparecem cinco anos depois no Atlas de Abraäo Cresques.
Em qualquer dos casos o contorno e posiçäo aproximam-se da realidade. Quanto às ilhas do
sul apanto-se, ainda que erradamente, que a "ixola otinticha" da carta de Andrea
Bianco(1448?) com uma das ilhas de Cabo Verde, possivelmente descoberta por Vicente Dias.
O progresso na representaçäo cartográfica da Madeira resultou de uma assídua observaçäo
presencial a que näo pode ser alheio o incremento das expediçöes ao vizinho arquipélago das
Canárias. Em 1344 o próprio papa de Avinhäo estava ao corrente do que aí se passava,
concedendo o senhorio das ilhas Afortunadas a D. Luís de La Cerda. Tal ordem condicionou
uma acesa disputa pelo arquipélago das Canárias, que só terá o seu epílogo em 1479 com o
tratado de Alcáçovas. Enquanto os monarcas de Leäo e Castela manifestavam o seu regozijo,
a posiçäo do rei português D. Afonso IV foi de desagravo e reivindicação, por carta de 12 de
Fevereiro de 134511. A recusa era fundamentada pela proximidade geográfica e pelas
expediçöes realizadas, pois, como refere o monarca lusitano, "os nossos naturaes foräo os
primeiros que acharäo as mencionadas ilhas". Também o protelamento da conquista é
justificado pela "guerra que se ateou primeiro entre nós e os reis sarracenos".
Quanto ao arquipélago açoriano, muito mais adentro no aceano e aquém da costa africana,
a presença na cartografia näo está ainda devidamente esclarecida. Note-se que inúmeros
historiadores têm identificado o arquipélago como sendo as ilhas fantásticas desenhadas no
local dos verdadeiros Açores. A primeira é a "insula de bracir", identificada com a Terceira,
na carta dos irmäos Pizzigani de 1367. Depois num Atlas de Jaffuda Cresques de 1375-77
apareceem seis ilhas no sítio dos Açores, a que se juntaram mais duas em 1384. Esta
representaçäo teve continuidade na cartografia posterior e também havia sido expressa pela
primeira vez no "Libro Del Conoscimiento" de meados da centúria. Luís de Albuquerque12 e
10
. Raymond MAUNY, Les Navigations médievales sur les côtes ssahariennes antérieures à la découverte portugais (1434), LLisboa, 1960.

11
. Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses, LLisboa, 1986, 165-169.

12
. As Navegações Portuguesas no Atlântico e no Índico, LLisboa, 1989, 43-44.
Gaetano Ferro13 näo concordam com a sua associação aos verdadeiros Açores. Um dos
aspectos que fundamentam a sua tese é o facto de as cartas de Cristóväo Soligo de 1455 e de
Gracioso Benincasa (1482) apresentarem ao lado dos verdadeiros Açores aquelas ilhas que até
entäo se pensava representar o arquipélago.
As expediçöes portuguesas ao longo da costa africana näo ficaram alheias à presença em
Portugal de Manuel Pessanha, contratado em 1317 por D. Dinis para criar a frota real e
preparar os marinheiros nos conhecimentos necessários na arte de marear. Na realidade, a já
referenciada viagem de 1341 às Canárias, é apontada como uma consequência disso. Note-se,
ainda, que o rei D. Dinis havia conseguido em 132014 o necessário apoio por parte do papado
para levar a cabo uma guerra de corso na costa africana, o mesmo acontecendo com o seu
sucessor em 134115. A presença de armadas nestas paragens é um indício de que os mares
eram frequentados com assiduidade. Para além disso estas viagens propiciaram aos
marinheiros um primeiro conhecimento das ilhas próximas, havendo, por outro lado, uma
relaçäo entre a última armada e a expediçäo enviada neste ano às Canárias.
O confronto aberto em terras peninsulares com os árabes fez esquecer por algum tempo a
disputa pelo novo espaço oceânico. Os portugueses tinham esperado até à sua definitiva saída
do Algarve e à soluçäo de problemas internos para regressarem ao oceano. O mesmo sucedeu,
mais tarde, com os reis católicos que fizeram depender o apoio à viagem de Colombo da
vitória na guerra contra os mouros, que teve lugar em Granada no início de 1492.

OS MITOS E AS LENDAS

A par destas notícias, mais ou menos verídicas, de viagens desbravadoras do oceano


Atlântico persiste no primeiro milénio um conjunto variado de lendas que falam das
expediçöes aí realizadas. A tradiçäo clássica, que apresenta o oceano como um espaço
paradisíaco, apenas acessível aos deuses e heróis, ganha expressäo na literatura da Idade
Média. Durante muito tempo acreditou-se que o Eden da Bíblia se situava algures no
Atlântico. A busca do paraíso é um recôndito desejo dos navegadores, que persiste, ainda, em
Colombo.
O momento conturbado que se vivia na Europa, pautado, por um lado, pelas invasöes
normandas, por outro, pela ameaça dos árabes, provocou um conjunto de lendas
denunciadoras desta saída forçada. Tudo parecia indicar que a solução estava no Atlântico.
Primeiro tivemos, no século VI, a aventura do monge irlandês S. Brandäo, que fugindo com
os seus companheiros aos normandos encontrou assento numa ilha de delícias, no meio do
oceano. Depois em 714 foi a vez de um arcebispo e seis bispos lusitanos fugirem às investidas
dos mouros tendo encontrado no percurso uma ilha, a Antília ou ilha das Sete Cidades. Esta
ilha, representada na carta portuguesa de 1424, é associada por Armando e Jaime Cortesäo às
Antilhas.
13
. Monumenta Henricina, I, Coimbra, nº 97, 230-234.

14
. J.M.Silva MARQUES, Descobrimentos Portugueses, I, 40-42.

15
. Ibidem, 66-70
Ambos os episódios tiveram eco na cartografia dos séculos XIV e XV que as representa
sempre em espaços inexplorados ou pouco conhecidos do oceano. Por vezes elas confundem-
se com os arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias, mas a sua perpetuaçäo até uma fase
tardia revela a inexistência de qualquer relaçäo com as verdadeiras.
Num período tardio surge a viagem de Robert Machim à Madeira, considerada por uns
como lenda e, por outros, como um facto real. A forma como o relato é apresentado, na versäo
original de Francisco Alcoforado16, adulterada por Valentim Fernandes17 ou romanceada por
D. Francisco Manuel de Melo, na Epanáfora Amorosa de 1660, näo é de molde a propiciar o
nosso total apoio. Em qualquer dos casos surgem anacronismos de ordem interna e externa
que nos fazem antever um misto de lenda e verdade. Depois de um aceso debate, aberto em
1873 por ålvaro Rodrigues de Azevedo18, o tema passou a ocupar inúmeros investigadores até
à actualidade. Daí resultou o aparecimento do texto original da referida viagem e a
fundamentaçäo genealógica da existência do protagonista da aventura. Verdade ou lenda, o
certo é que o mesmo relato ficará a ilustrar o panorama literário madeirense como testemunho
do conhecimento do arquipélago em pleno século XIV.
É de referir, a propósito, que a versäo contada por Valentim Fernandes, onde Robert
Machim é referenciado como um degredado, encontra semelhanças com o descrito em
documento de 140619. Nesta data, de entre o numeroso grupo de cidadäos expulsos de
Inglaterra encontrava-se um Machim e um Machico.

O DESCOBRIMENTO OU ENCONTRO DO SÉCULO XV

Näo obstante a existência de dados reveladores de um conhecimento dos arquipélagos


atlânticos aquém dos trópicos, a partir do século XIV, a historiografia continua a insistir na
tese do descobrimento quatrocentista. Para isso terá contribuído a conjuntura nacionalista da
segunda metade do século XIX, que estabeleceu esta opçäo como resposta às ditas
expoliaçöes lançadas pelos franceses, castelhanos ou ingleses. As intervençöes de J. J. da
Costa Macedo20 e do Visconde de Santarém21 deram corpo à tese oficial da História dos

16
. "Relação de Francisco Alcoforado", in Arquivo Histórico da Marinha, I, Lisboa, 1936, 317,329.

17
. O Manuscrito de Valentim Fernandes, Lisboa, 1940, 106-108.

18
. "Notas", in Saudades da Terra, Funchal, 1873.

19
. Public Reccord Office, Rotuli Parliamentorum, VII, 571-572.

20
. Memórias para a História das Navegações e Descobrimentos PPortugueses, Lisboa, 1819.

21
. Memória sobre a Prioridade dos Descobrimentos Portugueses na Costa Ocidental Africana, Lisboa, 1958.
Descobrimentos. Durante muito tempo continuou a pensar-se que era crime de lesa-majestade
apresentar-se a descoberta dos arquipélagos em data anterior à chegada dos portugueses.
Esta defesa intransigente dos descobrimentos portugueses procurou fundamento nos
cronistas do reino, onde colheu os argumentos da sua tese e de combate aos detractores. A
tradiçäo fez dela uma verdade irrefutável22.
A partir da década de quarenta do presente século começaram a surgir opiniöes contrárias,
fundamentadas numa aturada e séria investigaçäo. Daí resultou que a tese da descoberta
quatrocentista do Atlântico Oriental se desfez com argumentos evidentes da cartografia ou
fontes narrativas. No caso da Madeira e dos Açores, se folhearmos as "Saudades da Terra" de
Gaspar Frutuoso23, uma das fontes primárias em que assentava a defesa da tese oficial do
descobrimento de ambos os arquipélagos, vamos encontrar os argumentos que a contrariam. O
autor ao escrever, em finais do século dezasseis, esta resenha sobre a história das ilhas, reuniu
tudo o que encontrou na tradiçäo oral e escrita. Deste modo ao lado do testemunho do
descobrimento quatrocentista surgem-nos outros, com a mesma evidência, que apontam para
um conhecimento em data anterior.
Desta e doutras questöes relacionadas com o conhecimento das ilhas atlânticas
apresentaremos uma breve síntese do debate havido até ao momento. Daqui sobressai uma
verdade, talvez a única certeza: näo há consenso na Historiografia quanto à data e nome dos
descobridores das ilhas e a cada época, escola ou corrente corresponde uma tese diferente, que
em nada contribui para a soluçäo do problema. Para a Madeira, Açores e Cabo Verde
continua-se a discutir a prioridade ou näo do descobrimento pelos portugueses. Nas Canárias,
já ocupadas desde tempos recuados, a questäo está em saber quem primeiro contactou com
este povo e de lá trouxe o primeiro resgate de escravos.
Desde a Antiguidade à baixa Idade Média sucedem-se relatos avulsos a atestar esta
abordagem, mas, sem dúvida, o mais importante quanto ao arquipélago foi a disputa entre
portugueses e castelhanos pela sua posse. E é disso que iremos tratar.
A disputa das ilhas Canárias nos séculos XIV e XV é o prelúdio de novos confrontos com
objectivos exclusivistas, bem patentes nos reinos peninsulares24. A defesa do mare clausum e
os problemas da sucessäo das mesmas coroas foram os principais responsáveis pelo conflito
que teve lugar em dois palcos afins: a Península Ibérica e o Atlântico Oriental.

O dealbar de uma nova era no século XV conduziu a profundas mudanças na geografia


política da Europa Ocidental. O Mediterrâneo cede lugar ao Atlântico. A partir de entäo o
último oceano, considerado intransponível, passa a afirmar-se como um dos principais palcos
dos acontecimentos onde intervêm as coroas peninsulares, melhor posicionadas para a disputa.
As ilhas situadas às portas do Novo Mundo têm um papel primordial no processo de
transmutaçäo. Deste modo a disputa pelo vasto oceano inicia-se no mundo insular, pois do seu
domínio dependerá o exclusivo das navegaçöes e comércio no Atlântico para sul. Assim o
entenderam os monarcas de Portugal e Castela, que desde o século XIV, estiveram envolvidos
numa acesa disputa pela sua posse. Por Portugal tivemos, primeiro, D. Afonso IV e depois, o
Infante D. Henrique. O último, a partir de finais do primeiro quartel do século XV, apostou
22
O ponto da situação pode ser feito em Pierre Chaunu,Expansão europeia do século XIII ao XV,São Paulo, 1978 (1º ed.1969), pp.183-196.

23
. Confronte-se os livros segundo, terceiro, quarto e ssexto das Saudades da Terra.

24
. Peter E.RUSSELL, O Infante D. Henrique e as ilhas CCanárias. Uma dimensão mal compreendida da biografia henriquina, LLisboa, 1979.
forte nesta empresa. O alheamento parcial da coroa castelhana favoreceu o reforço da posiçäo
henriquina em face do seu opositor, a burguesia andaluza. Esta aposta do Infante na conquista
das Canárias e a forma de intervençäo na Madeira e nos Açores levou Charles Verlinden a
perguntar-se se estava nos intentos do infante criar um estado insular.
A viagem de Jean de Betencourt em 1402 evidencia, por um lado, o afastamento da
Normandia da opçäo atlântica e, por outro, o reforço da terra andaluza, uma vez que o referido
expedicionário apenas conseguiu conquistar o apoio da comunidade sevilhana, nomeadamente
da família Las Casas. Depois o conquistador submeteu-se à suserania do rei de Castela, no
sentido de cativar apoios, o que veio a legitimar, à priori, a soberania castelhana. å burguesia
andaluza interessava a posse das ilhas porque se apresentavam como um mercado importante
para o comércio de escravos e materiais corantes e, mesmo, como base de apoio para
posteriores incursöes no litoral africano. O monarca de Castela, grato pela intervençäo de
Afonso de Las Casas neste processo, decidiu premiar o seu esforço, solicitando em 2 de Maio
de 1421 a confirmaçäo papal para a posse das ilhas de Gran Canaria, Tenerife, La Gomera e
La Palma.
Perante o evoluir dos acontecimentos ao infante D. Henrique restavam apenas duas
alternativas: a soluçäo diplomática fazendo valer os direitos portugueses junto do papado ou o
recurso a uma intervençäo bélica, legitimada pelo espírito de cruzada, uma vez que os
guanches eram pagäos. Assim tivemos as viagens de D. Fernando de Castro (1424-1440) e
António Gonçalves da Câmara (1427).
Nas alegaçöes apresentadas em 1435 no Concílio de Basileia defrontaram-se as duas
opçöes políticas das coroas peninsulares: a portuguesa pela voz do bispo de Viseu, D. Luís
Amaral, e a castelhana pelo bispo de Burgos, D.Alonso de Cartagena. Na dissertaçäo do
último foram apresentadas as normas que pautavam o direito internacional da época no que
concerne à legitimaçäo da posse das ilhas atlânticas25. Algumas das razöes aí aduzidas já
haviam sido invocadas no século XIV por D. Afonso IV para contrariar a ordem papal de
conceder a D. Luís de La Cerda o senhorio das ilhas Afortunadas. Mas numa e noutra frente
as conquistas foram efémeras e näo permitiram uma soluçäo imediata do conflito que
perdurou por mais alguns anos, que só foi conseguida por via do tratado estabelecido no ano
de 1479 em Alcáçovas e confirmado pelos monarcas no seguinte em Toledo. A sua assinatura
assinala o abandono definitivo das pretensöes portuguesas pela posse das Canárias e o
aparecimento de novos locais de disputa além do Bojador.
Quais os motivos que levaram a esta mudança de atitude ?
Por parte dos portugueses ela näo deriva apenas do facto de estarmos perante uma opçäo
henriquina, e que terá morrido em 1460 com o infante, pois que se associam também
mudanças provocadas no espaço Atlântico com o avanço de reconhecimento de terras para
sul. As Canárias, que num primeiro momento eram imprescindíveis para o apoio à navegaçäo
e comércio no litoral africano, perderam-na em favor da Madeira ou das feitorias recém-
criadas na costa africana, como foi o caso de Arguim (1445). Além disso os avanços na
técnica náutica e construçäo naval permitiam uma maior autonomia das embarcaçöes
deixando de ser necessária esta escala. Por último acresce o facto de a burguesia andaluza
estar empenhada no comércio da Costa da Guiné, fazendo aí várias incursöes, que colocavam
em perigo o exclusivo comercial lusíada. Perante este panorama só uma soluçäo era possível:
a via diplomática por meio da assinatura de um tratado de partilha do oceano.
25
. J.M. Silva MARQUES, Descobrimentos portugueses, t. I, 886-88, 291-346.
A proximidade da Madeira ao arquipélago canário em consonância com o rápido surto do
povoamento e valorizaçäo económica do solo madeirense orientaram as atençöes dos
primeiros colonos para uma activa intervençäo na disputa ao lado do infante. Primeiro foi
Joäo Gonçalves, sobrinho de Zarco, que em 1446 foi enviado pelo infante à ilha de Lanzarote
para firmar o contrato de compra da ilha com Maciot de Betencourt, depois foi a forte
presença dos madeirenses na armada para lá enviada em 1451. Daí resultou inevitavelmente a
abertura de uma rota de contacto entre os dois arquipélagos, que perdurou nas centúrias
seguintes.
Enquanto nas Canárias se fala apenas em conquista, cujo inicial obreiro foi Jean de
Betencourt, para os arquipélagos portugueses, abandonados quando da ocupaçäo, o debate
subsistiu em torno da autoria e da data do seu descobrimento. As lacunas e contradiçöes das
fontes diplomáticas ou narrativas näo propiciam qualquer consenso. Para Cabo Verde a
disputa gira apenas em torno do nome do descobridor, na Madeira e nos Açores näo existe
acordo quanto à data e ao nome do verdadeiro descobridor.
Quanto aos Açores há os que defendem a tese tradicional apontando Gonçalo Velho como
o seu descobridor em 1439, e os que fundamentam a sua tese numa legenda da carta Valsequa
(1439), que afirma peremptoriamente o descobrimento em 1427 por Diogo de Silves26. Esta
última opçäo conquistou a historiografia no momento presente. A controvérsia gerada resulta,
fundamentalmente, da precaridade das informaçöes reunidas nos textos coevos (Gomes Eanes
de Zurara e Diogo Gomes) ou na confusa organizaçäo das diversas versöes, como sucede por
exemplo em Gaspar Frutuoso27 e seus seguidores.
A partir da versäo frutuosiana do descobrimento dos Açores a Historiografia dos séculos
dezanove e presente encarregou-se de estabelecer várias teses, que podem ser resumidas em
quatro: trecentista, quatrocentista, henriquina e gonçalista. As três últimas defendem o seu
encontro no século quinze, divergindo apenas quanto à sua autoria: marinheiros anónimos,
que tanto podiam ser da casa do Infante D. Henrique ou Diogo de Silves, numa viagem de
retorno da costa ocidental africana, ou Gonçalo Velho Cabral, cerca de 1431. Esta última
resulta da interpretação dada à referência feita por João de Barros sobre estas ilhas. Mas aí e
nos demais documentos Gonçalo Velho é citado apenas como povoador, situação corroborada
também por Zurara e Diogo Gomes.
Da primeira versäo o principal fundamento é a cartografia do século XIV, onde surgem
representadas umas ilhas que se pensa serem as dos Açores. Contudo näo há consenso quanto
à sua autoria. Para uns foram marinheiros italianos ou cataläes, enquanto outros referem a
intervençäo de portugueses e pilotos genoveses ao serviço de D.Afonso IV. Alguns
historiadores negam esta última possibilidade dizendo que tais representações cartográficas
são fantásticas e nada têm a ver com os verdadeiros Açores. Aprova disso é a sua presença ao
lado das ilhas verdadeiras nas cartas dos séculos XV e XVI.
Quanto ao arquipélago da Madeira o problema apresenta-se mais difícil, uma vez que as
versöes säo tantas quantos os cronistas que a tal propósito escreveram. Em Francisco
Alcoforado28, Joäo de Baros29, António Galväo30, Valentim Fernandes31, Jerónimo Dias

26
. A questão foi amplamente discutida por Damião Peres, História dos Descobrimentos Portugueses, Porto, 1983, pp.71-77.

27
. Gaspar FRUTUOSO, ob. cit., livros III, IV e VI.

28
. "A relação de...", in Arquivo Histórico da Marinha, vVol.I, 1963, 317-329.

29
. Asia.década primeira, Lisboa, 1988, livro primeiro ccapítulos II e III.
Leite32, Gaspar Frutuoso surgem-nos diferentes interpretaçöes do acontecimento com diversos
protagonistas. Aqui o facto mais saliente é o relato da aventura de Robert Machim,
apresentado em diversas versöes. Mas vejamos, ainda que sumariamente, a forma como o
problema tem sido abordado pelos cronistas e Historiografia.
Todos os autores referenciados säo unânimes em considerar o povoamento da Madeira
como obra portuguesa, tendo como dirigente o infante D. Henrique, apoiado em Joäo
Gonçalves Zarco, com ou sem a colaboraçäo de Tristäo Vaz. A polémica tem lugar quanto à
data do descobrimento e à autoria. Para uns as ilhas foram descobertas por portugueses: Joäo
Gonçalves Zarco com Tristäo Vaz, ou apenas Afonso Fernandes. Para outros foi uma
iniciativa de estrangeiros: castelhanos no Porto Santo e ingleses na Madeira. De acordo com
isso podemos definir quatro versöes coevas, que serviram de base à Historiografia do século
dezanove e presente:

1. Relaçäo de Francisco Alcoforado, atribui o descobrimento da ilha ao inglês Roberto


Machim e o reconhecimento e ocupaçäo aos marinheiros do infante,
2. Relaçäo de Diogo Gomes, considera o feito como iniciativa do piloto português Afonso
Fernandes, mantendo o povoamento como uma tarefa henriquina,
3. Gomes Eanes de Zurara, na crónica, atribui a Joäo Gonçalves Zarco e Tristäo Vaz a
tripla missäo de achamento, reconhecimento e ocupaçäo,
3. Cadamosto, prefere deixar vaga a referência a autoria, sendo concreto apenas quanto aos
povoadores.

A partir desta informaçäo, consignada nos textos dos cronistas coevos ou quasi-coevos,
encontrou a Historiografia os meios para fundamentar a tese do descobrimento do
arquipélago. Desde o primeiro estudo de ålvaro Rodrigues de Azevedo (1873) até às mais
recentes publicaçöes poderemos estabelecer duas formas de encarar a questäo. Para uns o
conhecimento terá sucedido no século XIV, como resultado das expediçöes portuguesas às
Canárias, sendo prova disso os portulanos e cartas da época, ou a aventura de Roberto
Machim. Enquanto outros, baseados nos textos de Zurara, Joäo de Barros e Gaspar Frutuoso,
afirmam que o descobrimento teve lugar no século quinze por iniciativa de Joäo Gonçalves
Zarco e Tristäo Vaz.
Estranhamente nos documentos da Chancelaria régia aqueles que a tradiçäo aponta como
os descobridores das ilhas näo são referenciados como tal mas apenas como povoadores. Aliás
o infante D. Henrique em carta de 18 de Setembro de 146033 referia-se à Madeira como ilha
que "novamente achei", enquanto D. Joäo II noutra carta de 8 de Maio de 149334 refere que a
mesma havia sido "descoberta y ocupada" por seu bisavô.

30
. Tratado dos Descobrimentos, Barcelos, 1987.

31
. O Manuscrito de Valentim Fernandes, Lisboa, 97- 131.

32
. Descobrimento da ilha de Madeira e Discurso da vida e Feitos dos capitães da dita ilha, Coimbra, 1947.

33
. Monumenta Henricina, vol. XIII, nº 193, 347-349.

34
. Alvaro Rodrigues de AZEVEDO, "Notas", in Saudades da Terra, 1873, 675-677.
Conjugadas estas informaçöes com as anteriormente referenciadas a conclusäo mais
plausível para o caso da Madeira e dos Açores é que o seu conhecimento era anterior à
presença dos portugueses, que surgem como redescobridores e povoadores deste novo espaço.
As abordagens anteriores näo foram suficientes para lhes atribuir o real valor que lhes estava
reservado no século XV. Desde entäo elas firmaram-se como protagonistas activas do novo
mundo. A Madeira foi por muito tempo um porto necessário às navegaçöes ao longo da costa
africana, enquanto os Açores mantiveram idêntica missäo nas viagens para ocidente e no
retorno das viagens exploratórias da costa africana e das grandes rotas oceânicas.
De acordo com Zurara35 a Madeira emerge, a partir de 1445, como o principal porto de
escala para as navegaçöes ao longo da costa ocidental africana. O rápido surto económico da
ilha, associado às já referidas dificuldades encontradas nas Canárias, assim o determinaram.
Os excedentes agrícolas que a ilha produzia eram suficientes para abastecer as caravelas
henriquinas de biscoito, vinho e demais víveres frescos.
A Madeira foi por algum tempo a escala obrigatória das viagens portuguesas no Atlântico,
sendo uma das provas disso a passagem pela ilha de Cadamosto, em meados do século
quinze. A partir do século seguinte o arquipélago madeirense perderá esta funçäo em favor de
Cabo Verde ou das Canárias, pelo que a referência nos roteiros será ocasional. Desde entäo a
escala madeirense só se justificará pela necessidade de aprovisionamento de vinho, pois os
ventos de nordeste e sudoeste dificultavam-na.
Como corolário destas circunstâncias a Madeira firmou-se como um local importante nas
navegaçöes e descobrimentos no Atlântico Oriental. O rápido surto de desenvolvimento
económico e o empenho dos principais povoadores em dar continuidade à empresa de
reconhecimento do Atlântico reforçaram a posiçäo da ilha, relevando os serviços prestados
pelos madeirenses.
Para a aristocracia nascente o empenho nas acçöes marítimas e bélicas foi ao mesmo tempo
uma forma de homenagem ao monarca ou senhorio e de aquisiçäo de benemesses ou
comendas. Tais condicionantes atraíram todos os madeirenses, sem exclusäo de idade. Em
1445 Fernäo Tavares, de idade avançada, participou numa das expediçöes sendo armado
cavaleiro no Cabo Resgate. Zurara36 confirma a situaçäo, salientando que a presença dos
madeirenses nas viagens henriquinas se orientou pelos princípios e tradiçöes da cavalaria
medieval, tendo como objectivo primordial servir o seu amo, o infante D. Henrique. A esta
acçäo aderiram os elementos mais influentes das casas dos capitäes do Funchal e Machico,
que entre 1445 e 1460 foi bastante evidente.
Mas os cavaleiros madeirenses näo se preocuparam apenas com as viagens africanas, pois
também estiveram envolvidos em diversas batalhas de defesa das praças marroquinas e depois
na busca de mar e terra desconhecidos para Ocidente, a partir dos Açores. Quanto às praças
africanas para além deste apoio bélico é de salientar a presença sempre constante da ilha
fornecendo materiais de construçäo para as fortalezas, custeando as despesas ou abastecendo-
as de cereal.

35
. Crónica de Guiné, Porto, 1973, caps. XXXI, XXXV, LI, LXVIII, LXXV, LXXXV, LXXXVII.

36
. ob. cit., caps. LXVIII, LXX, LXXV, LXXXVII.
AS VIAGENS PARA OCIDENTE

A partir do reconhecimento das ilhas açorianas, na década de vinte do século XV, as


possibilidades da volta pelo largo nas expediçöes africanas e o avanço para o Ocidente foram
uma realidade. Os testemunhos da existência de terra para além da linha do horizonte
ocidental das ilhas começaram a surgir com frequência nas plagas açorianas e madeirenses:
pedaços de madeira, cadáveres, canoas, inúmeras sementes, despertavam a natural curiosidade
dos insulares37. Na extensa praia da ilha de Porto Santo era frequente o aparecimento de
troncos de madeira e de sementes de árvore, trazidos pela corrente do golfo, sendo famosa a
castanha do mar ou "fava de Colombo" (entada gigas). Parte significativa desses destroços
legados pelo mar eram usados na construção e como combustível, uma vez que na ilha a
floresta era escassa.
A tudo isto veio juntar-se um conjunto variado de lendas medievais, que despertaram de
novo a atençäo dos navegadores insulares e os conduziram à gesta desbravadora dos mares
ocidentais. Primeiro foi a viagem de Diogo de Teive e Pero Vasquez de la Frontera, depois
seguiram-se outras, de que temos notícia de algumas através do pedido antecipado da posse
das terras que pensavam descobrir. Muitas destas cartas pertencem a madeirenses, ligados à
safra açucareira. E foi com o dinheiro conseguido com esta cultura que financiaram as suas
frustradas expedições, pois a coroa nunca aceitou financia-las. Tão pouco estaria disponível
para o fazer com Colombo.
As expediçöes para Ocidente, que precederam a primeira viagem de Cristóväo Colombo,
continuaram até finais do século XV. Destas, realizadas entre o último quartel do século XV e
os anos iniciais da centúria seguinte, resultou o conhecimento da Terra Nova e da costa da
América do Norte. Primeiro foi Joäo Vaz de Corte Real, capitäo de Angra, que participou nas
viagens para o NW por ordem do rei Cristiano I da Dinamarca, no período de 1472-1476,
depois seguiram-no Vasco Eannes Corte Real e os seus irmäos Gaspar e Miguel, que entre
1501-1502 reconheceram a costa setentrional da América do Norte.
As provas disso säo várias mas há a tendência para a reafirmaçäo da pedra de Dighton, cuja
leitura é por muitos contestada e hoje não colhe apoio da comunidade científica. Esquece-se a
referência do texto de Gaspar Frutuoso, a carta de 17 de Outubro de 1501 de Sebastiäo
Cantino e o planisfério do mesmo, datado de 1502, onde säo declarados como os seus
verdadeiros descobridores. Ainda outra carta de 1506 apresenta para tal área a seguinte
legenda: "Terra de Corte Real". Seguiu-se depois Joäo Alvares Fagundes38.
Acrescente-se ainda que, em finais do século quinze, residiam na Madeira dois indivíduos
cujo apelido - Terra Nova - se associa facilmente a esta área, mas é difícil saber qual a relaçäo
possível com as terras ocidentais. Um deles, Anrique surge em 1486 no Funchal como fiador
de um alfaiate, enquanto o outro, Guirarte, é apresentado no estimo do açúcar de 1498 com
proprietário de canaviais nas partes do fundo.
Entretanto nos anos de 1491 e 1492 Pedro Barcelos e Joäo Fernandes o lavrador teriam
partido para aí ao serviço do rei português, resultando daí a descoberta da terra a que se
chamou do Lavrador. A prova disso é apresentada num documento de 1511, onde o mesmo é

37
. Arquivo dos Açores, IV, 433-437.

38
. LUís de ALBUQUERQUE, Estudos de História, vol. V, Coimbra, 1977, 109-134.
citado ao serviço dos ingleses de Bristol. Numa carta de Lázaro Luís de 1563 surge esta
sugestiva legenda: "A Terra do Lavrador q[ue] descobrio Joam Alvares".

COLOMBO E AS ILHAS

A entusiástica adesäo de açorianos e madeirenses à procura das terras ocidentais despertou


o interesse de Colombo quando fixou residência na Madeira e Porto Santo, o que veio a
contribuir para a definiçäo e amadurecimento do plano de abordagem da India por esta via.
Discute-se a data da gestação do projecto colombino, mas não a importância dos contactos
com as gentes das ilhas na decisão final.
Colombo foi na verdade o homem das ilhas, pois durante os cinquenta anos de vida
percorreu inúmeras delas no Mediterrâneo e Atlântico. Neste último oceano esteve a norte, na
Islândia, e a sul, devassando o espaço oceânico e as ilhas da costa oriental (Madeira, Canárias,
Cabo Verde e Açores) e ocidental (Antilhas). A sua presença neste grupo inicia-se na década
de setenta do século XV pela Madeira. Aqui aportou o navegador na qualidade de mercador
de açúcar e daqui, parece ter saido como um marinheiro empenhado na descoberta das terras
ocidentais.
A primeira viagem terá sucedido no Veräo de 1478, onde veio por ordens de Paolo di
Negro para conduzir a Génova, às mäos de Ludovico Centurione, dois mil e quatrocentas
arrobas de açúcar. A ilha, as suas gentes e produtos näo lhe eram estranhos. Certamente que
entre os seus companheiros e compatrícios falar já dela como a terra do pastel e do açúcar. Era
assim que a conheciam. Por outro lado ao pisar o solo madeirense näo se sentiria sozinho uma
vez que contaria com a presença de compatrícios seus que aí se fixaram, atraídos pelo
comércio do açúcar. Note-se que é precisamente a partir da década de setenta que se
identificam alguns italianos na Madeira: Francisco Calvo, Baptista Lomelino, e António
Spinola, depois, Joäo António Cesare, Jerónimo Cernigi. Muitos deles fixaram morada na
ilha, atraídos pela produção açucareira, e, mercê do relacionamento matrimonial com as
donzelas das principais famílias, adquiriram uma posiçäo relevante na sociedade e economia
madeirenses.
Em 1479 Colombo estava de novo em Lisboa, mantendo vivo o interesse pelo arquipélago,
o que o levou a consorciar-se com Filipa de Moniz, filha de Bartolomeu Perestrelo, capitäo do
donatário na ilha do Porto Santo, também ele de origem italiana. O casamento deu-
se, segundo Bartolomé de Las Casas, em Lisboa no final de 1479 e depois disso o casal teria
vindo residir no Porto Santo e Madeira, onde nasceu o único filho, Diogo.
Esta permanência, ainda que temporária, nas duas ilhas facultou-lhe o conhecimento das
técnicas de navegaçäo usadas pelos portugueses, a possibilidade de participar em algumas
expediçöes à costa da Guiné e abriu-lhe as portas aos segredos, guardados na memória dos
argonautas insulares, sobre a existência de terras a Ocidente. Fernando Colombo e Bartolomé
de las Casas insistem que foi a partir da estância na Madeira que o mesmo definiu o plano da
viagem, com base nos escritos e cartas de marear que recebeu das mäos da sogra. Esta uma
incógnita difícil de dundamentar, uma vez que Bartolomeu Perestrelo não é referenciado pela
tradição histórica madeirense como navegador.
Colombo ouviu histórias e relatos dos aventureiros madeirenses, sendo-lhe facultadas as
provas materiais da existência das terras através dos destroços trazidos pelas correntes
marítimas. Deste modo à sua saída da MAdeira levava consigo a firme certeza da existência
próxima das plagas ocidentais. A ilha e as suas gentes ficaram-lhe no coraçäo e nunca mais os
esqueceu. A sua gratidäo ficou expressa em 1498 com a sua passagem, quando da terceira
viagem, pelo Porto Santo e Madeira onde, segundo B. de Las Casas, foi alvo de uma
apoteótica recepçäo.
Nesta terceira viagem Colombo demorou-se por algum tempo nas ilhas orientais: primeiro
a Madeira e Porto Santo, depois Gran Canaria e La Gomera e, finalmente, as ilhas do Sal,
Boavista e Santiago. O objectivo da passagem por Cabo Verde era claro: atingir um paralelo
mais a sul no sentido de encontrar o rumo certo para o encontro do Cipango e, ao mesmo
tempo, carregar gado vacum para a sua ilha Hispaniola.
Se destas ilhas Colombo guardava gratas recordaçöes o mesmo näo se poderá dizer das
açorianas, onde aportou apenas em 1493 no regresso da primeira viagem. Após uma violenta
tempestade de que foi vitima a notícia de terra firme, no caso a ilha de Santa Maria, seria um
bom presságio caso o acolhesse de bom agrado mas näo foi isso que aconteceu. Ele,
considerado primeiro corsário e, depois, pelo uso da bandeira castelhana, um intruso nos
mares portugueses, foi mal recebido em terra pelo capitäo Joäo de Castanheira. Talvez por
isso mesmo nas três viagens que se seguiram o navegador näo mais aportou aos Açores,
passando sempre ao largo. Mas esta primeira viagem teve o mérito de traçar o rumo das rotas
de comércio do novo mundo, ficando Angra, no dizer de Gaspar Frutuoso, como a "escala do
mar ao poente".

AS ILHAS DO SUL

Enquanto prosseguia a azáfama valorizadora dos arquipélagos da Madeira e Açores,


continuavam as viagens de reconhecimento da costa africana, que conduziriam à sua
revelaçäo total e das ilhas vizinhas. Várias foram as dificuldades que surgiram ao longo desse
percurso e que condicionaram os rumos de reconhecimento da costa: primeiro o problema do
retorno mercê dos alíseos do nordeste e da corrente das Canárias, depois a sobreposiçäo do
interesse comercial ao interesse geográfico com o comércio dos escravos, e, finalmente, a
morte do infante D. Henrique em Novembro de 1460, considerado o principal obreiro das
viagens. Foi neste intervalo de tempo que se descobriram as ilhas do arquipélago de Arguim
por Nuno Tristäo, Gonçalo de Sintra e Cadamosto nos anos de 1443 e 1444. De imediato se
estabeleceu uma feitoria em Arguim (1455) que se firmou como um importante entreposto
para o comércio e navegaçäo na área.
O descobrimento português das ilhas de Cabo Verde e S. Tomé só terá lugar muito mais
tarde, num momento em que o povoamento da Madeira estava já numa fase avançada. As
ilhas do primeiro arquipélago säo visitadas pelos marinheiros do infante D. Henrique ainda
em sua vida, sendo resultado do avanço das viagens para sul. O reconhecimento do cabo verde
(1444) e depois da costa até à Serra Leoa (1460) terá conduzido ao encontro das ilhas
próximas da costa que assumiram o nome do cabo em questäo.
Para a Historiografia depara-se mais um dilema. A quem atribuir o descobrimento das
ilhas, qual a data exacta para a sua concretizaçäo?
Confrontadas as fontes narrativas verifica-se a existência de vozes discordantes e a
apropriaçäo indevida, segundo alguns, por parte de Cadamosto do descobrimento das ilhas de
Boavista e Santiago e de António da Noli das que Diogo Gomes se dizia como descobridor.
Outros, ainda, adiantam o feito para 1445, sendo o seu protagonista o navegador Vicente
Dias39.
Um breve parêntesis para dizer que era comum na época atribuir àqueles que se diziam
descobridores das ilhas a sua administraçäo, daí resultou a disputa pela prioridade do encontro
das ilhas de Cabo Verde. Perante isto surgem opiniöes diversas quanto à autoria deste feito,
apontando uns a iniciativa de Vicente Dias, Antonio da Noli, Diogo Gomes ou Cadamosto e,
outros a parceria de Diogo Gomes e Antonio da Noli40. De todos realce especial para
Cadamosto que nos legou o testemunho da sua descoberta no relato das suas navegações41 e
do encontro da maioria das ilhas do arquipélago. Diz ele: "... depois, pela fama destas quatro
ilhas (Maio, Santiago, Sal, Boavista) que eu tinha encontrado, outros... as foram descobrir...".
Diferente é, no entanto, a ideia expressa nas fontes diplomáticas que definem de modo
preciso o nome do descobridor. Em carta régia de 19 de Setembro de 1462 declarava-se que
Antonio da Noli havia sido o descobridor de cinco ilhas --Santiago, Boavista, Maio, Sal e
Fogo--, ainda em vida do infante D. Henrique, isto é antes de 18 de Novembro de 1460.
Noutra carta de 28 de Outubro de 1462 surge Diogo Afonso como o descobridor das demais
ilhas do arquipélago, tendo ocorrido a revelaçäo nesta data ou em época anterior. Este Diogo
Afonso, escudeiro do infante D. Fernando, era também seu contador na ilha da Madeira e um
dos muitos madeirenses que se empenharam no descobrimento da costa ocidental africana.
Além disso deverá lembrar-se que o infante D. Henrique no testamento de 28 de Outubro de
1460, depois de aludir às ilhas do arquipélago da Madeira, fala da "Guinea com suas ilhas", o
que deverá ser considerado uma alusäo segura às ilhas orientais de Cabo Verde, descobertas
no ano por António da Noli. Mais tarde, a 3 de Dezembro, o rei doava cinco destas ilhas ao
infante D. Fernando, referindo que as mesmas haviam já pertencido ao infante D. Henrique. A
elas vieram juntar-se as ocidentais por carta de 19 de Setembro de 1462, o que prova terem
sido conhecidas no intervalo de tempo que medeia entre as duas doaçöes por Diogo Afonso.
Na cartografia é patente a vinculaçäo das ilhas a António da Noli, pois num mapa de 1488-
1493 ele aparece como descobridor e noutro de Juan de La Cosa de 1500 elas säo
referenciadas como as "yslas de Antonio o del cavo verde".
Tal como o dissemos a morte do infante D. Henrique condicionou o ritmo das viagens
exploratórias da costa africana. Elas só foram retomadas em Novembro de 1469 como
consequência do arrendamento do comércio da área a Fernäo Gomes. Um das cláusulas do
contrato obrigava ao reconhecimento anual de uma determinada área de costa. Foi
precisamente no seu decurso que, entre 1470 e 1472, Joäo de Santarém e Pedro de Escobar
descobriram as ilhas do Golfo da Guiné. Primeiro S. Tomé e Príncipe (de início designada de
Santo António), depois Fernando Pó e Ano Bom. O nome das duas últimas é denunciador da
autoria e data do descobridor. As restantes ilhas do
Atlântico foram descobertas no decurso das primeiras viagens para a ïndia: Joäo da Nova
descobriu Trindade(1501) e Santa Helena(1502), enquanto a Tristäo da Cunha se deve o
descobrimento em 1506 do arquipélago a que foi atribuído o seu nome.

39
.Damiaão Peres, História dos Descobrimentos Portugueses, Coimbra, 1960, 137.

40
. Esta discussão é apresentada por Luís de Albuquerque, "O descobrimento das ilhas de Cabo Verde", in História Geral de Cabo Verde, tomo I,
Lisboa/Praia, 1991, pp.23-39.

41
.Jm.Silva MARQUES, Descobrimentos Portugueses, suplemento ao vol.I,Lisboa, 1944, 232-235.Confronte-se Viagens de Luís Cadamosto e de
Pero de Sintra, edição de Damião Peres, Lisboa, 1948.
II. A OCUPAÇÄO DAS ILHAS

A Madeira foi de todas as ilhas a primeira a merecer uma ocupaçäo efectiva por parte dos
colonos europeus. Por isso ela emerge no contexto do espaço atlântico como uma área
pioneira e depois modelo para os processos, técnicas e produtos que serviram de referência
para a afirmaçäo portuguesa.
O povoamento iniciou-se a partir de 1420 e os primeiros colonos tinham ao seu dispor
inúmeras condiçöes propiciadoras do êxito da iniciativa. Era uma ilha que estava abandonada,
aberta a qualquer iniciativa de povoamento, rica em madeiras e água e com boas enseadas
para a sua abordagem. O mesmo näo sucedia nos Açores ou nas Canárias, Cabo Verde e S.
Tomé, onde surgiram inúmeras dificuldades à fixaçäo peninsular. No primeiro caso foram os
sismos e vulcöes que fizeram afugentar os primeiros colonos. No segundo, a presença de uma
populaçäo autóctone - os guanches - difícil de dominar, enquanto nas últimas duas foram as
condiçöes inóspitas do seu clima que dificultaram a presença europeia.
Por tudo isto a Madeira merece uma referência especial, uma vez que serviu de modelo
para as demais actividades de ocupaçäo levadas a cabo pelos portugueses e castelhanos no
espaço atlântico.
Tal como já aqui demos conta, näo obstante a existência de provas irrefutáveis sobre o
conhecimento das ilhas aquém do Bojador desde tempos remotos, só em princípios do século
XV surgiu a necessidade de as reconhecer e ocupar. A conjuntura peninsular, a que se alia
inevitavelmente a disputa pela posse das Canárias, condicionou a imediata aposta portuguesa
no povoamento da Madeira.
De acordo com os cronistas o processo foi faseado. Zurara refere-nos quatro expediçöes, a
partir de 1418, que conduziram ao redescobrimento, reconhecimento e ocupaçäo por meio do
envio dos primeiros colonos. Aqui discute-se a data e o comando das tarefas de povoamento.
Os cronistas insistem na activa intervençäo do infante D. Henrique, mas os documentos e o
próprio infante referem algo diferente. Assim é o mesmo infante diz que só em 1425 tomou
conta do processo, enquanto a documentaçäo estabelece o ano de 1433 como o de início da
sua intervençäo como senhor da ilha, ficando ela, segundo o dizer de Joäo Gonçalves da
Câmara em 1511, num "horto do senhor infante". Mas o próprio D. Afonso V declarava em
1461 que Joäo Gonçalves Zarco fora o primeiro povoador aí enviado pelo infante, o que
contraria a ideia defendida por alguns, de que a coordenaçäo desta tarefa pertenceu ao rei, por
intermédio do vedor da fazenda Joäo Afonso. De concreto apenas se sabe que foi no uso dos
plenos poderes que o infante D. Henrique distribuiu, a partir de 1440, as terras do arquipélago
àqueles que haviam procedido ao seu reconhecimento e seriam os seus capitäes.
Dizem os cronistas que a ocupaçäo das ilhas da Madeira e do Porto Santo teve lugar no
Veräo de 1420 e que os promotores da iniciativa (Joäo Gonçalves Zarco, Tristäo Vaz Teixeira
e Bartolomeu Perestrelo) se fizeram acompanhar de homens, produtos e instrumentos
necessários para aí lançarem a semente europeia. Esta era a terceira de um conjunto de
expediçöes realizadas ao arquipélago nos dois anos que a antecederam.
Com a distribuiçäo das terras pelos três povoadores, as ilhas do Porto Santo e Madeira
ficaram divididas em três capitanias. O Porto Santo por ser ilha pequena ficou entregue na
totalidade a Bartolomeu Perestrelo, enquanto a Madeira foi separada em duas por uma
separaçäo em linha diagonal entre a Ponta da Oliveira e a do Tristäo. A vertente meridional,
dominada pelo Funchal ficou quase toda em poder de Joäo Gonçalves Zarco, enquanto a
restante área dominada pela costa norte ficou para Tristäo Vaz.
Se no caso do Porto Santo surgiram problemas, primeiro com os inúmeros coelhos, depois
com, as condiçöes pouco propícias do meio, o mesmo näo sucedeu na Madeira, onde os
primeiros colonos encontraram todos os meios necessários à fixaçäo. De acordo com Gaspar
Frutuoso42 a ilha do Porto Santo era "pequena, mas fresca (...) näo tem boas águas, por ser
seca e de pouco arvoredo" enquanto a Madeira era o inverso, sendo caracterizada pela
"fertilidade e frescura (...) e das muitas ribeiras e fontes de água". Deste modo o povoamento,
iniciado nas áreas do Funchal e Machico, alastrou rapidamente a toda a costa meridional,
levando à criaçäo de outros locais em Santa Cruz, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do
Sol e Calheta.
A orografia da ilha condicionou a forma de povoamento, enquanto a elevada fertilidade do
solo e a pressäo do movimento demográfico implicaram a rapidez do processo. Aos primeiros
obreiros e cabouqueiros seguiram-se diversas levas de alguns homens livres e a necessidade
de procurar escravos na costa africana.
De entre o grupo de povoadores merecem referência os trinta e seis homens da casa do
mesmo infante, na sua maioria escudeiros ou criados, que adquiriram uma posiçäo relevante
na estrutura administrativa e fundiária. Eles pertenciam ao numeroso grupo de filhos-
segundos do reino ou à pequena aristocracia, todos à procura de títulos e bens fundiários. Isto
poderá estar na origem da atitude de Joäo Gonçalves Zarco ao solicitar ao rei quatro varöes de
qualidade para casarem com as suas filhas. O rei acedeu com o envio de Garcia Homem de
Sousa, Diogo Afonso de Aguiar e Martim Mendes de Vasconcelos. Numa listas dos homens-
bons da capitania do Funchal, elaborada em 1471, surgem apenas 10% de cavaleiros e 5%
como fidalgos. Mas a partir de entäo o número aumentou mercê dos títulos, conquistados com
a participaçäo na defesa das praças marroquinas e de reconhecimento da costa africana, e do
enobrecimento pela intervençäo na estrutura administrativa e na economia açucareira.
Tudo isto condicionou o forte impacto do surto imigratório que se repercutiu de forma
evidente no movimento demográfico da ilha: Zurara, cerca de 1453, fala em 150 fogos,
enquanto Cadamosto, em 1455, refere já 800 fogos. Depois disto o ponto da situação só é
possível em finais do século XVI com Gaspar Frutuoso.
O progresso do movimento demográfico foi de encontro ao nível de desenvolvimento
económico da ilha e reflecte-se na estrutura institucional. A criaçäo de novos municípios,
paróquias e a reforma do sistema administrativo e fiscal foram resultado disso. Como
42
. Gaspar FRUTUOSO, livro primeiro. Saudades da Terra, 56, 84.
corolário tivemos ao nível religioso o desmembramento das iniciais paróquias com o
aparecimento de novas: Santo António, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol, Arco
da Calheta e Santa Cruz. Ao nível administrativo a situaçäo repercutiu-se no aparecimento dos
primeiros juizes pedâneos de Câmara de Lobos e Ribeira Brava e depois os municípios da
Ponta do Sol e Calheta, respectivamente em 1501 e 1502.
Na capitania do Funchal é evidente o progresso sócio-económico das áreas limítrofes, além
do povoado, onde se criaram depois os primeiros municípios. Numa listagem dos homens-
bons do município do Funchal feita em 1496 temos um grupo importante de gentes de Câmara
de Lobos, Ponta do Sol e Calheta. Foi certamente a pressäo dos últimos que levou ao
aparecimento de novos municípios.
Entretanto na capitania de Machico o progresso näo foi täo evidente porque o meio näo
oferecia as mesmas condiçöes em termos de contactos e da economia agrícola. Deste modo só
a localidade de Santa Cruz foi uma excepçäo, disputando por vezes a primazia com Machico.
Daí resultou a criação da vila em 1515. Inserido no perímetro desta capitania estava toda a
costa norte, que, pelas dificuldades de acesso, foi alvo de um povoamento tardio e lento. Isto
contrastava com a do Funchal, onde o progresso se dava a um ritmo galopante, o que motivou
em 1508 a elevaçäo a cidade. Esta atitude da coroa é justificada pelo elevado número de
fidalgos e cavaleiros que aí viviam e o importante movimento comercial do porto43.
O progresso no povoamento da ilha é também visível na administraçäo religiosa
reflectindo-se no aparecimento de novas paróquias e nas mudanças ao regime de côngruas.
Aqui mais uma vez é evidente a supremacia da vertente sul da capitania do Funchal. Das
quarenta e duas freguesias criadas na Madeira, nos três primeiros séculos de ocupaçäo, vinte e
cinco pertenciam à capitania do Funchal e as restantes à de Machico. As últimas surgem com
maior incidência no século dezasseis, momento em que há notícia de mais treze novas
paróquias. No Funchal o período que decorre a partir de meados do século dezasseis foi
marcado pelo incremento de novas freguesias, com particular relevo para a área envolvente à
cidade do Funchal.
A dimensäo assumida por estas freguesias poderá ser verificada através do valor das
côngruas e dos consequentes alvarás de acrescentamento. No período de 1572 a 1591 pelos
alvarás em questäo conclui-se que as freguesias com menor número de fogos, inferiores a 100,
estavam localizadas na área da capitania de Machico, enquanto as do Funchal rondariam na
sua maioria com valores superiores. Entretanto o recenseamento de 159844 esclarece isso com
maior exactidäo. As oito freguesias da cidade do Funchal surgem com mais de dois terços do
quantitativo. Em toda a costa norte entre o Porto Moniz e Porto da Cruz este valor näo atinge
em ambos os casos os 10%.
O mesmo se poderá dizer do impacto desta realidade ao nível da estrutura institucional,
cujas alteraçöes foram no sentido de adaptá-la à nova realidade. Aqui merecem referência as
iniciativas da infanta D. Beatriz com a criaçäo de uma alfândega em cada sede de capitania e,
depois de D. Manuel, a partir de 1486. Em ambos os casos as medidas estabelecidas
favoreceram a vila do Funchal, dando um impulso decisivo à sua afirmaçäo como principal
porto da ilha.

43
. Arquivo Regional da Madeira, Câmara Municipal do Funchal, tomo I, fls. 278vº-279.

44
. Arquivo Histórico da Madeira, vol. II, Funchal, 1932.
Se é certo que o povoamento da Madeira se concretizou com uma rapidez inaudita, o
mesmo já näo poderá ser dito das demais ilhas portuguesas do Atlântico. Dificuldades de vária
índole fizeram com que o processo fosse lento e que em alguns casos, como Cabo Verde, só se
concretizasse em pleno século dezanove. Na Madeira todas as condiçöes eram propícias ao
rápido surto do povoamento. Aqui estávamos perante duas ilhas, de clima ameno e dispondo
dos meios indispensáveis para a fixaçäo de colonos. Ao invés nos Açores ou em Cabo Verde a
proliferaçäo de ilhas com características distintas e as dificuldades resultantes do seu eco-
sistema foram um entrave.
Nos Açores o infante D. Henrique ordenou em 1439 a Gonçalo Velho que iniciasse o
povoamento das ilhas de S. Miguel e Santa Maria, fazendo aí lançar gado bravio. Mas esta
iniciativa näo surtiu efeito pelo que dez anos mais tarde repete-se a mesma ordem. As cartas
de doaçäo das capitanias das ilhas esclarecem-nos que o efectivo povoamento só teve lugar
na década de sessenta ou setenta, sendo isso resultado da presença de flamengos no Faial e de
madeirenses em S. Miguel. Todavia as ilhas mais ocidentais - Corvo e Flores - ainda se
encontravam em 1507, segundo Valentim Fernandes, por povoar.
Tais dificuldades resultaram, fundamentalmente, do facto de nas ilhas estarem activos os
alguns vulcões e de as mesmas estarem sujeitas a assíduos terremotos. Para S. Miguel fala-se
em erupçöes nos anos de 1444-45 a que sucederam as de 1563 no Pico Sapateiro e 1630 nas
Furnas. Quanto às demais ilhas temos idênticas situaçöes em S. Roque do Pico (1562), em S.
Jorge (1580) e Faial (1672). Nas duas últimas os efeitos foram devastadores: em S. Jorge
perderam-se quatro mil cabeças de gado e quinhentas pipas de vinho, enquanto no Faial o
fenómeno provocou um primeiro surto emigratório para o Brasil.
A infanta D. Beatriz, ao confirmar em 1474 a compra da capitania da ilha da S. Miguel por
Rui Gonçalves da Câmara refere que a "dita ilha desde o começo da sua povoaçäo até ao
presente foi mui mal aproveitada e povoada". Na verdade foi este filho-segundo do capitäo do
Funchal quem deu o arranque definitivo ao povoamento da ilha. Ele fixou residência em Vila
Franca do Campo, onde esteve até que a mesma foi soterrada por um terramoto em 1522. Para
essa necessária valorização do solo açoriano ele contou com a presença de muitos
madeirenses, já habituados a este tipo de tarefas. Ninguém melhor que ele tinha os
ingredientes necessários para fazer brotar desta terra virgem as culturas mais comuns da
época. A administração da sua fazenda na Lombada da Ponta de Sol, que acabava de arrendar
a João Esmeraldo, servira de escola. À sua morte em 1497 o capitäo deixava abertas várias
frentes de arroteamento - Nordeste, ågua de Pau, Ribeira Grande, Ponta Delgada e Lagoa -
que nos vinte e cinco anos seguintes viriam a adquirir o estatuto de vilas e uma delas cidade
em 1546.
A ascensäo de Ponta Delgada foi rápida e fez-se à custa do abandono de Vila Franca do
Campo como resultado da sua exposiçäo a catástrofes como a de 1522. O primeiro
assentamento de colonos data de 1499, mas oito anos depois esta localidade era já vila e
bastaram mais trinta e nove anos para ser cidade. Gaspar Frutuoso defini-o de forma sintética:
"primeiro foi solitário como saudoso logar e pobre aldeia, e depois pequena vila, a que agora
é grande, rica, forte e täo afamada cidade". E, depois, conclui "a que dantes era sujeita e
sufragânea e outra vila é ao presente quasi feita senhora, a que väo obedecer todas as vilas e
logares de toda esta ilha"45. Tudo isto resultou do facto de "ser grande e nella aver mais gente
que em todas as outras villas e por os carregadores a maior parte do anno estarem nella e hi se
45
. Gaspar FRUTUOSO, Saudades da Terra, livro quarto, vol. II, (1924), 302.
fazer a carregaçam dos pasteis e os guados se criarem nas outras villas mais que nessa por ser
caize toda terra delle aproveitada de pastel e terras de pam..."46.
A ilha de S. Miguel, após um período de dificuldades, acabou por conquistar um lugar
cimeiro na economia do arquipélago açoriano. Aí foram criados seis municípios que serviam
trinta e duas freguesias guarnecidas de noventa clérigos. A ilha surgia em finais do século
dezasseis com 5587 fogos (39%) e 20477 almas de confissäo (36%), sendo de destacar a
cidade de Ponta Delgada, a vila da Ribeira Grande. Vila Franca do Campo, a primeira capital
e mais importante vila até 1522, surge agora em terceiro lugar.
Na Terceira o arranque definitivo do povoamento teve lugar na mesma década com a
divisäo da ilha em duas capitanias (Praia e Angra). Os primórdios da ocupação, a que se
associa-a a figura enigmática de Jácome de Bruges, não está de todo esclarecida. O rápido
incremento populacional está expresso na criaçäo de uma terceira vila em S.Sebastiäo (1503)
e na elevaçäo da de Angra a cidade em 1533. Deste modo esta ilha foi apenas terceira de
nome, pois que em importância económica e social acabou por firmar um lugar cimeiro. Nas
vinte freguesias, servidas por cento e quatro clérigos, contavam-se, em finais do século
dezasseis, 4970 fogos e cerca de 21371 vizinhos. Também aqui a cidade de Angra adquiriu
uma papel dominante no relacionamento interno e externo da ilha.
O processo de ocupaçäo das ilhas menores, näo foi idêntico às duas anteriores, que no
global representavam cerca de três quartos da populaçäo total do arquipélago. Ele foi lento e
só se conseguiu afirmar em pleno a partir da primeira metade do século dezasseis. Aqui
podemos salientar as de Faial e Pico pelo volume populacional que adquiriram.
A outro nível podemos falar de S. Jorge, uma pequena e acidentada ilha, onde a estrutura
administrativa e religiosa foi empolada devido às dificuldades de contacto entre os vários
núcleos de povoamento. Para apenas 2269 vizinhos temos três municípios e sete freguesias,
número excessivo quando comparado com o Faial, S. Miguel e Terceira. Nesta ilha o
povoamento, mercê da configuraçäo do solo, teve lugar a partir de três núcleos do litoral, as
fajäs (primeiro Velas, depois Topo e Calheta), que assumiram a categoria de vilas. Aqui os
colonos dispunham de uma pequena baía de acesso ao mar, água, terra e vegetaçäo adequada
por entre as falésias47.
Nas demais ilhas o povoamento foi lento e as mesmas também näo foram alvo de um
idêntico progresso social e institucional täo evidente. Enquanto a ilha do Faial permaneceu
com uma vila, nas de Graciosa e Pico viram surgir duas novas vilas na década de quarenta do
século dezasseis: S. Roque no Pico(1542) e Praia na Graciosa (1546). A criaçäo regeu-se
única e exclusivamente pela dispersäo geográfica dos núcleos de povoamento, que fazia
aumentar a distância à sede do concelho.
Nas ilhas mais ocidentais, de Flores e Corvo, a presença de colonos é tardia, processando-
se apenas no século dezasseis. E no caso do Corvo só a partir de meados do século com
escravos do capitäo das Flores, Gonçalo de Sousa.
As dificuldades no recrutamento da populaçäo açoriana surgiram apenas no século quinze
pois que no seguinte foi fácil encontrar colonos e rápido o incremento da população, sendo
testemunho disso o texto de Gaspar Frutuoso e os alvarás de acrescentamento das côngruas
nos séculos XVI e XVII. Contra isso se apresentavam as epidemias e as calamidades. A peste

46
. Arquivo dos Açores, IV, 55.

47
Cf. António dos Santos Pereira,A ilha de S.Jorge(séculos XV-XVII).Contribuição para o seu estudo. Ponta Delgada, 1987.
de 1523 a 1531 em Ribeira Grande e Ponta Delgada e por fim o dilúvio sobre a Vila Franca do
Campo(1522) que terá
vitimado mais de 5000 micaelenses. Note-se que a peste foi sentida também no Faial, Pico, S.
Jorge e Terceira em 1599, de que resultaram cerca de mil mortos só na última ilha.
Pior foi o que sucedeu em Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe, onde a fixaçäo de colonos foi
prejudicada pelas condiçöes difíceis do clima. Na realidade o clima apresentou-se como o
principal entrave à fixaçäo de colonos europeus, atrasando o processo de povoamento e
valorizaçäo económica. Säo inúmeros os testemunhos que denunciam as dificuldades aí
sentidas pelos europeus.
De acordo com Valentim Fernandes "estas ylhas (Cabo Verde) erä de primeyro tä sadias
que quantos gaffos alli vinham saravam. Mas agora (em 1506) som tam doentias que a gente
saä adoece. Creo que depois que os negros trouveram a ellas corromperam ho ar como em sua
terra que he doentia"48. Opiniäo diferente era a de Gaspar Frutuoso, em finais do século
dezasseis, que afirma peremptoriamente: "todas as ilhas säo muito sadias e têm muitos ares
frescos nortes e nordestes (...) e pera concluir toda a infâmia que há destes serem doentes e
muito enfermas é falsa, porque os homens regrados de comer e no beber, tendo castidade,
vivem muito nelas e, sendo luxuriosos, morrem a poder de câmaras e de sangue"49. Mas os
que lá viviam testemunhavam as palavras de Valentim Fernandes e, por infinitas vezes, deram
do facto conhecimento ao rei. Säo prova disso os testemunhos de D. Joäo de Castro em 1545 e
os Jesuítas para aí enviados entre 1607-1609. Por outro lado os factos que ilustram esta
realidade reflectem-se na elevada mortalidade dos funcionários régios para lá enviados. Daí
resultou, em certa medida, a anarquia reinante na do arquipélago, com a necessidade de
substituiçäo, quase permanente dos funcionários, por abandono do cargo ou morte. Pêro de
Guimarães, ao ser enviado para Santiago como corregedor socorreu-se da protecção de Santo
António, construindo em sua memória uma ermida para afugentar "os maus ares da dita
terra"50. Mesmo assim ele não ficou imúne, pelo que após as primeiras febres acabou por
solicitar a sua retirada em 1517, pois como afirma ela "não perdoa ninguém"51.
Para cativar a presença de novos povoadores a coroa acenava com um soldo dobrado em
relaçäo ao do reino e as possibilidades de comércio na costa africana. Os privilégios
concedidos em 1466, para o comércio nas costas da Guiné, exceptuando as mercadorias
defesas e o trato de Arguim, foram o principal chamariz para os novos colonos esquecerem as
agruras do clima. Mas estas situação só se manteve até 1472, sucedendo-se a partir de então
restrições a esta situação privilegiada dos moradores de Santiago e obriga-los a apostar nas
culturas locais, as únicas a que estavam autorizados a comerciar com a costa africana. A
inércia inicial ao povoamento da ilha havia sido ultrapassada.
Mais abaixo, em plena regiäo equatorial, estava o arquipélago de S. Tomé e aí as condiçöes
de sobrevivência eram extremamente limitadas. A situaçäo está descrita no testamento de
Alvaro Caminha (1499), numa carta do corregedor da ilha em 1517 e numa consulta da Mesa
da Consciência e Ordens de 1597. Na última atribui-se a dificuldade de manutençäo do clero

48
. Monumenta Missionária Africana, I, 119.

49
. Ob. cit., 182.

50
.ANTT, Corpo Cronologico, I/12/20, 22 de Maio de 1513, publ. in História Geral de Cabo Verde. corpo documental,, I,219

51
.ANTT,Corpo Cronologico,I/36/93, 6 de Maio.
na ilha ao facto "de a terra ser muito enferma e sogeita à praga de mosquitos, que säo muitos e
mui nocivos 52". Mais tarde em 1571 o bispo aludia às condiçöes de insalubridade da terra
como a principal causa da ausência dos predecessores no cargo53.
Foram inúmeros os portugueses que pereceram sob o calor tórrido, sendo de citar o caso
dos dois mil jovens judeus para aí enviados em companhia de ålvaro Caminha em 1493, de
que só existiam seiscentos, passados apenas seis anos. Nas mesmas condiçöes estiveram juntar
os funcionários régios, os padres da Companhia de Jesus e os mercadores que aí morreram no
exercício de funçöes, ficando os bens a saque dos que sobreviveram. Deste modo a partir de
1497 a coroa procurou moralizar essa situaçäo. Primeiro em Santiago criou-se o cargo de
administrador e recebedor dos bens dos defuntos54. Depois em 1519 deu um regimento ao
tesoureiro-geral dos defuntos. Aí se determinava, entre outras coisas, que os capitäes e oficiais
régios näo estavam autorizados a ficar com os bens, que reverteriam para a rendiçäo dos
cativos ou para o hospital de Santiago, criado em 149755. A par disso o rei nomeou um
provedor dos defuntos para as ilhas de Cabo Verde e S. Tomé, que em 1549 já se encontrava
em funçöes.
Por aqui ficaram demonstradas as dificuldades sentidas pelos portugueses no povoamento
destas ilhas. Em relaçäo a Cabo Verde apenas se avançou com o povoamento das ilhas de
Santiago e Fogo, ficando as restantes por algum tempo como zona de pastagens. Em Santiago
o processo teve início em 1462 tendo-se para o efeito dividido a ilha em duas capitanias: uma
para D. Branca de Aguiar, com sede na Ribeira Grande e a outra para Diogo Afonso, com a
capital em Alcatrazes.
O progresso das ilhas é testemunhado em 1498 por Cristóväo Colombo que por aí passou
com destino ao Novo Mundo. O navegador começa por contestar o nome atribuído à ilha, pois
como refere "son tan secas que no vi cosa verde en ellas y toda la gente enferma (...)"56.
Depois o mesmo refere a sua estância em Boavista e Santiago. Na primeira ilha dá conta do
elevado número de tartarugas de que os portugueses se serviam para a cura dos leprosos. Aqui
encontrou apenas seis ou sete moradores que tinham a funçäo de matar as cabras, salgar a
carne e couros e enviá-los para o reino. De entre estes refere Rodrigo Afonso, escriväo da
fazenda real que lhe propiciou o necessário abastecimento de carne e sal. Após isso esteve em
Santiago, com o intuito de recolher gado vacum para Hispaniola, mas o calor tórrido molestou
a sua tripulaçäo, vendo-se forçado a seguir viagem antes do previsto.
Valentim Fernandes, nove anos mais tarde, refere-nos o estado de ocupaçäo da ilha de
Santiago ao enunciar que "é povoada de muita gente", e para o Fogo diz apenas "de gente" e
às demais resume-se a afirmar que estavam "povoadas de cabras e näo de gente". Mesmo
assim o número de vizinhos de ambas deveria ser reduzido, pois em 1513 Pêro de Guimarães
apresenta um retrato pouco animador da vila da Ribeira Grande: " os vizinhos homens
honrados brancos são cinquenta e oito; e os vizinhos negros são dezasseis; e os que ora são
estantes estrangeiros, naturais dos vossos reinos são cinquenta e seis; e quatro mulheres
52
. Monumenta Missionária Africana, III, 557-558.

53
. Ibidem, III, 7-35.

54
. Ibidem, I, 377-392.

55
. Ibidem, III, 125-126.

56
. Consuelo VARELA, Cristóbal Colón. textos y documentos completos, Madrid, 1984, 243.
brancas solteiras; e negras umas dez e assim está outra gente forasteira que logo nos navios
que aqui estão se partirão; e clérigos, co o vigário da dita ilha, são doze, entre os quais dois
são pregadores."57. Tão pouca gente para mais de meio século de ocupação !
Em 1533 a vila passa à categoria de cidade e sede do bispado de Cabo Verde. Isto deverá
ter contribuido para o progresso sócio-económico da ilha, pelo memos durante cerca de
sessenta anos. A partir daqui abundam os testemunhos sobre a riqueza da terra, o que deverá
ter actuado como um chamariz aos novos colonos europeus. Mais tarde, em 1548, esta e a da
Praia apresentavam 1200 moradores. Ambas com os demais núcleos de povoamento de
Santiago e do Fogo surgem em 1582 com 13408 almas58. Nas duas ilhas, se acompanharmos a
criaçäo das paróquias, bem como os alvarás de acrescentamento das côngruas dos vigários,
constataremos o progresso da populaçäo no século dezasseis, com especial destaque para o
último quartel em que foram criadas onze freguesias, sendo apenas duas no Fogo, com mais
de 1200 almas de confissäo.
A ilha do Fogo foi a segunda a ser povoada, para isso contribuiu o facto de dispõr de
algodão e de estar próxima da anterior. note-se que desde 1472 as gentes do arquipélago, mais
propriamente da ilha de Santiago, deveria comerciar apenas com os produtos da terra e esta
ilha dispunha de um produto importante nesssas transacções: o algodão. O primeiro capitão da
ilha, Fernão Gomes, surge em 1493, podendo situar-se por essa década o início do seu
povoamento. Entretanto em 1515 fala-se já no município de S. Filipe. Em 1572 são referidas
duas freguesias - S. Filipe e S. Lourenço do Pico - com 240 fogos, quando as oito freguesias
de Santiago apresentavam 1040 fogos. Passados dez anos a mesma ilha surge num relatório de
Francisco de Andrade ilha apresentava-se com 300 moradores livres e 2000 escravos59.
Depois foi o povoamento das ilhas de Brava(1545), de Santo Antäo (1548) e S. Nicolau.
Das restantes apenas se sabe da alguns dados soltos da populaçäo em datas diversas:
S.Nicolau é referenciada em 1595 com sessenta almas de confissäo, Boavista recebia em 1677
o primeiro pároco, Maio apresentava-se em 1699 com duzentos e trinta habitantes, enquanto o
Sal só deverá ter sido ocupada em data incerta nesse final do século. Até ao aparecimento de
um pároco nas ilhas, o que se concretiza em 1677 em Maio, Boavista e S. Nicolau, o serviço
religioso era prestado uma vez no ano por um padre visitador.
Em Santiago a Ribeira Grande, pelo facto de aí desaguar uma ribeira de abundante água e
uma enseada que favorecia o contacto permanente com o mar, servindo de escala às rotas da
India, firmou-se como a capital do arquipélago e sede do bispado em 1534. Mas a
"insalubridade do clima" levou a coroa a determinar em 1652 a transferência da capital para a
Praia, onde deveriam residir o bispo e o governador. Algo semelhante sucedeu na outra
capitania onde a vila de Alcatrazes foi substituída em 1516 pela de Santa Maria da Praia,
enquanto a da Lapa em S. Nicolau foi transferida em 1693 para a Ribeira Brava.
Em S. Tomé a primeira leva de colonos é 1486, quando Joäo de Paiva se ofereceu para a ir
ocupar, usufruindo dos privilégios lavrados no foral de 16 de Dezembro de 1485. Depois foi a
vez de Joäo Pereira em 1490, mas pensa-se que o povoamento só começou, de facto, em 1496
com ålvaro Caminha com o auxílio dos referidos judeus e africanos. Quanto à ilha do Príncipe

57
.ANTT, Corpo Cronológico, I/12/120, de 22 de Maio, publ História Geral de Cabo Verde. corpo documental, I, 220.

58
. António CARREIRA, "A capitania das ilhas de Cabo Verde", in Revista de História Económico Social, nº 19, 1987, 295-303.

59
.Arquivo General de Simancas, Guerra Antigua, legajo 122 doc. 180, publ. Monumenta missonária africana, 2ª série, II,104.
este processo só se iniciou em 1500, com a doação a António Carneiro, que delegou em Vasco
Carneiro a tarefa de povoamento.
Nas ilhas de Ano Bom e Fernando Pó o processo foi mais tardio, tendo a dificultá-lo na
última a presença de africanos. É de estranhar o facto de ela ter sido alvo de uma ocupaçäo
tardia, uma vez que era a maior do grupo e estava servida de uma densa floresta. A presença
de populaçäo e a situaçäo marginal em termos das rotas mais frequentadas na zona
contribuiram para o arrastar deste processo.

OS INCENTIVOS DO POVOAMENTO

Em todas as ilhas as dificuldades sentidas no momento da ocupação foram inúmeras,


variando o grau à medida que se avançava para Ocidente ou Sul. Deste modo a coroa e o
senhorio sentiram-se na necessidade de atribuir incentivos à fixaçäo de colonos: a entrega de
terras de sesmaria, privilégios e isençöes fiscais variadas, a saída forçada com o degredo dos
sentenciados. Tudo isto começou na Madeira, alargando-se depois às restantes ilhas.
A concessäo de terras foi, a par dos inúmeros privilégios fiscais, um dos principais
incentivos à fixaçäo de colonos, mesmo em áreas inóspitas como Cabo Verde e S. Tomé. A
avidez de terras e títulos por parte dos filhos-segundos e da pequena aristocracia do reino
contribuíram para alimentar a diáspora.
Sabe-se, de acordo com um capítulo de uma carta de D. Joäo I inserido noutra de 1493, que
foi o rei quem regulamentou a forma de entrega das terras na Madeira. Ela deveria ser feita de
acordo com o estatuto social do colono. Assim os vizinhos de mais elevada condiçäo e
possuidores de proventos, recebem-nas sem qualquer encargo. Os pobres e humildes que
viviam do seu trabalho só a elas tinham direito mediante requesitos especiais, e apenas as
terras que pudessem arrotear e tornar aráveis num prazo de dez anos. Com estas cláusulas
restritivas favorecia-se a concentraçäo da propriedade num reduzido número de povoadores.
A partir de 1433 com o senhorio das ilhas em poder do infante D. Henrique, tal
prerrogativa passou para a sua alçada, com a salvaguarda as anteriores medidas. Isto
comprova, mais uma vez, que a primeira iniciativa e regulamento de distribuiçäo de terras
coube ao monarca. O infante, fazendo uso de tais prerrogativas, delegou os seus poderes nos
capitäes. De acordo com o foral henriquino, cujo texto se desconhece e o pouco que se sabe
resulta de referências indirectas,as terras as terras eram entregues aos colonos por um prazo de
cinco anos, findo o qual se as mesmas näo estivessem aproveitadas, caducava o direito de
posse e a possibilidade de nova concessäo.
Esta mudança no regime de distribuição das terras deverá ser resultado da pressão do
movimento demográfico e da rarefação das terras baldias, disponíveis para serem arroteadas.
Note-se que em 1466 os moradores do Funchal reclamavam junto do senhorio contra a
continuidade da distribuição de terras, que lhes fazia perigar a cultura açucareira, por falta de
lenhas e madeiras. Mas somente em 1483, em face da atitude do capitão de Machico de
distribuir terras nos montes poróximos do Funchal,o senhor da ilha D. Manuel repreende o
dito capitão, para depois em 1485 proibir totalmente a distribuição de terras nos montes e
arvoredos do norte da ilha. E, finalmente em 1501 e 1508 ficou proibida qualquer concessão
de terras em regime de sesmarias.
Estas medidas limitativas da distribuição de terras poderão ser entendidas como uma
forma de defesa dos interesses da aristocracia fundiária empenhada com a cultura da cana de
açúcar. A situação deverá estar na origem de vários conflitos que implicaram a intervenção do
senhorio, por meio de normas punitivas e o envio de uma laçada a cargo do seu ouvidor. A par
disso as dificuldades na preparação das terras para cultivo, resultantes da falta de mão-de-obra
e da orografia da ilha, levaram os madeirenses a reclamar a suspensão dos prazos estipulados
no foral henriquino, com o argumento de que as terras eram "bravas e fragosas e de muytos
arvoredos"
Entretanto um regimento, näo datado, estipulava a forma de expressäo nos Açores,
estabelecendo normas conducentes a sanar os pleitos que a referida distribuiçäo de terras
havia gerado60. A principal novidade estava a obrigatoriedade de assistência ao acto do
almoxarife e seu escriväo. Mas para Gaspar Frutuoso a entrega de terras na ilha de S. Miguel
seguira já no início esta norma. De acordo com os regimentos de 1470 e 1483 as concessöes
que näo tinham sido feitas de acordo com estas regras eram consideradas nulas. Além disso o
citado regimento estabelecia a obrigatoriedade do registo, com a referência das confrontaçöes,
os produtos e área disponível.
Quando as ilhas passaram a depender directamente da coroa a entrega de terras passou a
realizar-se de forma diversa. De acordo com o regimento de 1530 o acto era superintendido
pelo corregedor.
Em síntese poder-se-á afirmar que no período de 1433 a 1495 a concessão de terras de
sesmaria era feita pelo capitão, em nome do donatário. A carta de entrega era lavrada pelo
escrivão do almoxarifado na presença do capitão e almoxarife. No enunciado deste documento
deveriam constar as condições gerais que estabeleciam este tipo de concessão, as
confrontações, a extensão e qualidade do terreno, a capacidade de produção e o tipo de cultura
adequada, bem como o prazo para o seu aproveitamento. O colono só tomava posse plena da
terra ao fim de cinco anos, desde que a torna-se arroteada, podendo então vender, doar,
"escambar ou fazer dela e em ela como sua propria coisa".
O rápido progresso do povoamento da Madeira levou a coroa a estabelecer entraves a
novas sesmarias como forma de preservar a floresta, necessária à safra do açúcar. Desde 1483
as limitaçöes sucedem-se com frequência, culminando com a total proibiçäo por regimentos
de 1508 e 1513. Também nos Açores se apresentaram idênticas medidas em 1518 e 1532.
A partir desta época toda a aquisiçäo de terras só poderia ser feita mediante a compra,
aforamento, arrendamento, herança ou dote. A política de compra e venda surge como um
mecanismo de concentraçäo da propriedade nas mäos da aristocracia e burguesia madeirenses
ou dos estrangeiros recém-chegados, enquanto a herança e dote actuam no sentido inverso,
conduzindo à desintegraçäo da grande propriedade .

O REGIME DE PROPRIEDADE

Foi a partir das doações sesmariais que se estabeleceu os primórdios da situação fundiária
das ilhas. É nele, aliás, que se estabeleceu o princípio da acessibilidade à posse da terra.
60
. Arquivo dos Açores, II, 302 e 386.
O regime fundiário madeirense ganhou nova forma a partir de meados do século XVI, com
a generalizaçäo do sistema de contracto de arrendamento, aforamento ou doaçäo de meias.
Este processo conduziu ao paulatino afastamento do proprietário da terra e propiciou o
emparcelamento da propriedade e ao aparecimento do contrato de colonia, a partir da segunda
metade do século XVII61. Daqui resultou uma nova dinâmica para estrutura fundiária e forma
de uso da força de trabalho, tornando-se desnecessário, ou melhor, obsoleto, o uso da mäo-de-
obra escrava. Esta conjuntura propiciou processo de alforria dos escravos que, de um modo
geral, passaram a colonos do antigo senhor.
Registe-se que as ilhas de Santa Maria, S. Miguel, Terceira e S. Jorge também foram
marcadas pelo absentismo dos seus proprietários, que preferiram a vida fácil da corte em
Lisboa. Mas aqui, ao contrário da Madeira, a situação não foi motivo de um sistema peculiar
de exploração fundiária, pois mantiveram-se as tradicionais formas de aproveitamento das
terras.
O referido sistema de relaçöes, que legitimava a posse da terra é específico e emerge na
Madeira como resultado do absentismo rural do grupo possidente. A especificidade está no
facto de existirem duas formas de propriedade: útil (a terra) e as bemfeitorias.
Este sistema, legitimado apenas pelo direito consuetudinário, definiu uma forma diferente
de interdependência, de carácter perdulário, entre ambas as partes, o senhorio e o colono. A
sua afirmaçäo, a partir de meados do século dezasseis, tem uma dupla origem: social e
económica. Primeiro foi a conjuntura demográfica que em consonância com a escassa área
agrícola, associada às dificuldades no recrutamento de escravo, despoletaram ao seu
aparecimento. Depois o baixo rendimento agrícola e a necessidade de investimentos na
viticultura tornaram inevitável a mudança no domínio fundiário.
A partir da segunda metade do século dezoito o sistema, que se havia afirmado como uma
soluçäo para a agricultura madeirense, passou a ser responsável pelo abandono das terras e por
uma forte sangria populacional através da emigraçäo. Para o combater as autoridades
estabeleceram medidas no sentido de repor a exploraçäo directa da terra, sendo de referir as
medidas exaradas para o Porto Santo já em 1770. A quase totalidade das terras da ilha eram
foreiras dos Conventos da Encarnaçäo e Santa Clara, das misericórdias e confrarias do
Santíssimo Sacramento do Funchal e Santa Cruz e de proprietários singulares, todos eles
residentes fora da ilha. Deste modo o seu aproveitamento só seria possível mediante
contrapartidas mais favoráveis para o agricultor. As mesmas nunca chegaram à Madeira e só
em 1976, por legislaçäo regional, o regime foi abolido.
Por outro lado a Madeira foi também a terra onde os morgadios e capelas se afirmaram em
pleno. De acordo com testemunho do século dezanove, mais de dois terços das terras
cultivadas estavam vinculadas. Próximas dela estavam as ilhas Terceira, S. Miguel, Santiago e
Fogo. Na ilha de S. Miguel a presença dos senhorios era considerável nos finais do século
XVI, consistindo a sua riqueza nas rendas acumuladas em moios de trigo, tal como se poderá
verificar pelo texto de Gaspar Frutuoso. A casa de Jacome Dias Correia, que no entender deste
autor parecia uma corte, recebia anualmente 300 moios de trigo. Deste modo as medidas para
a extinçäo dos morgadios, levadas a cabo a partir do Marquês de Pombal que culminaram em
1863 com a total aboliçäo, tiveram reflexos evidentes na estrutura fundiária.

61
. J. José de SOUSA, "O Convento de Santa Clara do Funchal. Contratos agrícolas (séc.XV a XIX)", in Atlântico, nº 16, 1988, 295- 303. Jorge de
Freitas BRANCO, Camponeses da Madeira, Lisboa, 1987, 154-186.
Durante o período em análise dois produtos materializaram a safra agrícola madeirense: o
açúcar e o vinho. Cada um por si define uma diversa forma de aproveitamento do solo e de
investimentos: os canaviais requerem áreas especiais abastecidas de água e a principal
benfeitoria se resume praticamente ao engenho, que näo é apanágio de todos os lavradores de
canaviais; os vinhedos exigem constantes cuidados, ainda que menos onerosos, com
levantamento de latadas e a construçäo do lagar.
Construir e pör a funcionar um engenho näo era tarefa fácil, pois implicava um elevado
investimento, que näo estava ao nível de todos os proprietários de canaviais. No estimo de
1494 para 221 proprietários produzindo 80.451 arrobas temos apenas 14 engenhos, o que dará
uma média de 5.746 arrobas por safra, em cada um dos engenhos. Todavia em 1493 refere-se
a existência de 80 mestres de açúcar para uma produçäo de cerca de 80.000 arrobas o que
poderá indicar maior número de infraestruturas na ilha.
Em S. Tomé o engenho e os canaviais assumiram outra dimensäo, sendo também diferente
a estrutura produtiva. Para uma produçäo avaliada entre as 150.000 e 450.000 arrobas de
açúcar o número de engenhos ia de 60 a 450, o que equivaleria a uma média mais baixa por
unidade. Mas o número de fazendas é muito mais reduzido (em 1615 fala-se em apenas 62
fazendas), denotando-se uma tendência para a concentraçäo da propriedade fundiária.
Por aqui se conclui que a estrutura fundiária madeirense que corporizou a safra açucareira
estava muito aquém das congéneres säotomense e brasileira. Aliás os canaviais madeirenses
nunca atingiram a dimensäo dos do Brasil, sendo evidente uma tendência para o parcelamento
com o recurso ao sistema de arrendamento. As condições da orografia e o sitema de
distribuição das terras assim o haviam determinado. Se compararmos os canaviais
referenciados no estimo de 1494 e os valores da arrecadaçäo dos quartos e quintos entre 1500
e 1537, conclui-se que a cultura se processou na ilha em regime de pequena e média
propriedade. A grande propriedade, logicamente à dimensäo da ilha, surge com maior
evidência nas comarcas da Ribeira Brava e Calheta. No século XVI apenas vinte e dois
proprietários, que produzem mais de 2.000 arrobas, somam 37% do total de açúcar produzido
na ilha. Este valor é duas vezes superior ao dos seus congéneres de 1494.
Perante esta evidência parece-nos ponto assente que a primeira metade do século XVI foi
pautada pela afirmaçäo da grande propriedade, que se consolidou em pleno nas "Partes do
Fundo", isto é, nas comarcas da Calheta, Ponta de Sol e Ribeira Brava. Na do Funchal e na
capitania de Machico afirmou-se, respectivamente, a média e pequena propriedade. O número
de proprietários com menos de 100 arrobas é reduzido na capitania do Funchal (5%) e,
nomeadamente, nas comarcas das Partes do Fundo (com valores entre 1% e 5%), enquanto na
capitania de Machico atinge mais de metade, ou seja 53%. Deste modo podemos também
concluir que, desde finais do século XV, é dominante a tendência concentracionista dos
canaviais.
A crise no cultivo dos canaviais, a partir da década de trinta, contribui também para isso,
expressando-se na reduçäo do número de canaviais e número de arrobas arrecadadas por cada
proprietário. O endividamento e a consequente penhora conduziram à transferência de muitos
canaviais para o grande proprietário: o aristocrata, funcionário ou mercador. Tal conjuntura
conduziu, as comarcas da Ribeira Brava e Calheta, ao reforço da grande propriedade,
enquanto no Funchal e na Ponta do Sol teve um efeito contrário.

AS DADAS DE TERRAS DE CABO VERDE E S. TOMÉ


A forma de distribuiçäo das terras utilizada na Madeira manteve-se nos Açores, Cabo
Verde, S. Tomé e Brasil, adequando-se às condiçöes de cada espaço. A diferença mais
significativa surgiu em Cabo Verde, onde algumas ilhas foram concedidas em regime de
contrato para usufruto das pastagens, pelo que näo estava atribuída a faculdade de as
subdividir. Por outro lado o regime de distribuiçäo de terras, tendo em conta a pouca
aderência de novos colonos, era mais amplo e permissivo, dando aos interlocutores uma maior
liberdade de acçäo. Também aqui, a exemplo da Madeira e dos Açores os capitães dispunham
da prerrogativa de distribuir terras aos moradores, com a obrigação de estes as aproveitarem
num prazo de cinco anos. Todavia há que distinguir no arquipélago de Cabo Verde as ilhas de
Santiago e Fogo das demais. Nas primeiras sucede-se tudo igual, enquanto nas outras a sua
doação é feita em sistema de uso exclusivo ao seu capitão, que deverá providenciar a
ocupação com homens da sua confiança.
Em S. Tomé, de acordo com o piloto anónimo de meados do século dezasseis, mais de
duas partes da ilha encontravam-se ainda por esmontar o que facilitava o acesso a qualquer
forasteiro à posse de terras: "(...) logo porém que algum negociante de Espanha e Portugal
donde qualquer outra naçäo vem aqui habitar é-lhe assinado pelo feitor de el-rei, por via de
compra ou por preço comodo tanto terreno quanto lhe parece que tem modo de fazer
cultivar"62.
As diferenças mais evidentes entre a propriedade madeirense e das outras ilhas resultam
das condiçöes mesológicas do solo arável e dos produtos definidores da agricultura. Enquanto
na Madeira a orografia condicionou o excessivo parcelamento do solo, que veio a desembocar
no célebre contrato de colonia, nos Açores, Cabo Verde ou em S. Tomé perduraram as
grandes propriedades expressas em áreas extensas. Deste modo o sistema fundiário que serviu
de suporte à safra do açúcar de S. Tomé poderá ser considerado como o prelúdio dos grandes
e extensos canaviais brasileiros, enquanto a Madeira, será, ainda, e por razöes óbvias a
expressäo da pequena propriedade.

O DEGREDO COMO POLïTICA DE POVOAMENTO

A política moderna de degredo como forma de incentivo ao povoamento dos lugares ermos
näo era novidade, pois vinha sendo utilizada para o povoamento do litoral algarvio e zonas
fronteiriças de Castela. A coroa, de acordo com o seu interesse, ordenava aos corregedores o
destino a atribuir aos degredados. Depois do Algarve, vieram Ceuta e as ilhas atlânticas. O
primeiro sentenciado de degredo para a Madeira, de que ficou notícia, foi Joäo Anes. Ele
entretanto fugira para Ceuta e em 1441, passados onze anos, veio a solicitar o perdäo régio.
Para os Açores o encaminhamento dos degredados passou a ser feito por pedido expresso do
infante D. Henrique no período da regência de D. Pedro. Mas as ilhas pouco cativavam a sua
atençäo, como se depreende do requerimento feito por Joäo Vaz para que lhe fosse comutada
62
.Ob.cit.,59
a pena para Ceuta, pois no seu entender "as dictas ilhas nom eram taes pera em ellas homens
poderem viver".
A partir da década de setenta do século XV o principal destino dos degredados foi o
arquipélago de Cabo Verde, que na centúria seguinte foi substituído por S. Tomé. Segundo o
corregedor de S. Tomé em 151763 o número de degredados na ilha representava um quarto da
populaçäo, o que era motivo para sérias preocupaçöes, mercê do comportamento insubmisso.
Aqui ou em Cabo Verde muitos deles fugiam e faziam-se homizíados, o que veio a determinar
inúmeros problemas, pelo que a coroa estabeleceu alguma ponderaçäo na política de degredo
com destino às ilhas. Assim em 157564 o rei ordenou à Casa da Suplicaçäo que no degredo
para S. Tomé e Mina se tivesse em conta aqueles que näo fossem acusados de crimes ruins,
uma vez que eram maus exemplos para os escravos. Em 1622 Manuel Severim de Faria
apontava-os como a principal causa das dificuldades sentidas no ensino da doutrina os
escravos caboverdeanos65. Mas nem todos eram motivo de queixa, pois em 149966 em carta de
Pero de Caminha á referida a vida exemplar de Joäo Mendes, "böo homem e que está o milhor
afazendado da ilha".

AS ISENÇÖES FISCAIS

O estabelecimento de inúmeras isençöes fiscais e privilégios foi o meio mais eficaz para
promover a fixaçäo de colonos nas ilhas. O sistema iniciou-se em 1439 na Madeira e alastrou
depois às restantes ilhas. Os colonos madeirenses usufruíram, por cinco anos, da isençäo do
pagamento da dízima e portagem nas mercadorias enviadas aos portos do reino. Em 1444 este
privilegio foi renovado, sendo às ilhas açorianas, onde se manteve até 1482. Em 1479 os
funchalenses manifestaram o seu apreço por esta salutar medida, atribuindo-lhe o progresso
do povoamento da ilha: "a principal causa porque esta terra povorou do seu princípio e povora
hoje em dia hé principalmente porque sejamos libertados de nö pagarmos peyta nem
semelhantes trebutos..."67.
Quer em Cabo Verde, quer em S. Tomé e Príncipe as dificuldades de fixaçäo foram
redobradas e por isso mesmo houve necessidade de reforçar os incentivos. Foi no comércio na
vizinha costa africana que a coroa encontrou a melhor forma de promover o povoamento das
ilhas. E os poucos colonos que para lá seguiram foram guiados por este promissor comércio.
Para Cabo Verde ficou estabelecido em 1466 o privilégio exclusivo nas trocas comerciais com
os Rios da Guiné. Os vizinhos de Santiago estavam autorizados a comerciar na área, excepto
em Arguim. Além disso usufruíam de isenções fiscais na exportaçäo de produtos para o reino
e ilhas. Algumas destas prerrogativas foram cerceadas: primeiro foi a restriçäo do espaço de
comércio na costa africana (1472), depois o estabelecimento de mercadorias defesas (1480,
63
. António CARREIRA, Cabo Verde, Lisboa, 1983, 300-301.

64
. Monumenta Missionária Africana, I, 770.

65
. Ibidem, IV, 625.

66
. Ibidem.

67
. Arquivo Histórico da Madeira, XV, 97-100.
1497, 1514, 1517), isto é, armas, ferramentas, navios e apetrechos, e, finalmente, a limitaçäo
do trato de escravos às necessidades dos moradores de Santiago sendo a troca com os
produtos locais, ou seja o algodäo e panos(1472 e 1517). Mas o mais rude golpe a tais
prerrogativas surgiu com a carta de 1472. Ela surge como corolário da nova situação surgida
com o contrato estabelecido em 1469 com Fernão Gomes. Havia que estabelecer as áreas de
trato e de acabar com certos atropelos, por isso ficou determinado que a ilha de Santiago era o
local de partida e destino das embarcações e que só os vizinhos dela poderia intervir em tais
negócios, servindo-se exclusivamente dos produtos da terra. Pior foi contudo a determinação
de que os escravos trazidos deveriam ser apenas para uso dos vizinhos de Santiago e não para
qualquer negócio fora da ilha. Esta foi uma das prerrogativas. Passados dois anos é a
obrigatoriedade de licença para qualquer armação na costa africana.
As razöes apresentadas pela coroa para fundamentar tais restriçöes eram as seguintes: os
danos causados à Fazenda Real e a necessidade de motivar os residentes para uma maior
valorizaçäo económica do solo das ilhas. Mas o município da Ribeira Grande ao contestar em
1512 a medida régia devolveu a responsabilidade para os cristäos-novos, que eram aí os
rendeiros da coroa. Sena Barcelos refere que a estagnaçäo do movimento demográfico do
arquipélago no século dezasseis foi resultado das leis " sobre os resgates näo ter dado mais
ampla liberdade aos mercadores"68. Na verdade, como o referiram em 1510 os vizinhos da
Ribeira Grande (ao solicitar ao rei uma cópia dos privilégios por os anteriores terem sido
roubados) "a dita ilha he tam alongada destes regnos e tam maa de doenças que
necessita que lhes de V. A. o dito privilegio e ainda outros somente por abitarem na dita ilha e
se nom despoborar..."69 (23).
Idêntica foi a soluçäo encontrada para as ilhas do Golfo da Guiné, onde a coroa estabeleceu
também as referidas isençöes fiscais no comércio com o reino (1485) e o privilégio de
resgatarem na costa até ao Congo (1493 e 1500).

ETNOGENIA INSULAR

O povoamento dos arquipélagos atlânticos resultou das condiçöes oferecidas pelo meio que
iam no sentido de satisfazer as necessidades cerealíferas e da disponibilidade política e social
do enclave peninsular. No caso português a inexistência de populaçäo nas ilhas entretanto
ocupadas levou à necessidade de canalizar para aí os excedentes populacionais ou os
disponíveis no reino.
O fenómeno de transmigraçäo da época quatrocentista apresenta, ao nível da mobilidade
social, um aspecto particular das sociedades insulares. Elas foram primeiro pólos de atracçäo e
depois viveiros disseminadores de gentes para a faina atlântica. No começo a novidade aliada
aos inúmeros incentivos de fixaçäo definiram o primeiro destino, mas depois as escassas e
limitadas possibilidades económicas das ilhas e o fascínio pelas riquezas das Indias
conduziram a novos rumos. No primeiro caso a Madeira, porque foi rápida a valorizaçäo

68
. Monumenta Missionária Africana, I, 71.

69
. História Geral de Cabo Verde. Corpo Documental, I, 187-188.
económica, galvanizou as atençöes portuguesas e mediterrânicas. Só depois surgiram novos
destinos insulares, como as Canárias, Açores, Cabo Verde e S. Tomé, onde, note-se, os
madeirenses foram importantes. Desta forma a Madeira do século XV poderá ser definida
como um pólo de convergência e redistribuiçäo do movimento emigratório no mundo insular.
No século XVI desvanece-se todo o interesse pelas ilhas, estando todo o empenho no
Ocidente, descoberto por Cristóväo Colombo ou Pedro Alvares Cabral, e o Oriente a que
Vasco da Gama chegará por via marítima.
Os fermentos da geografia humana das ilhas foram peninsulares, de origens diversas, cuja
incidência as fontes históricas nos impedem de afirmar. Insiste-se para a Madeira, Açores e
Cabo Verde que as primeiras levas de povoadores foram de proveniência algarvia, mas näo há
dados suficientemente claros sobre a sua dominância. Esta deduçäo resulta do facto de o
infante D. Henrique ter fixado morada no litoral algarvio e de lá terem partido as primeiras
caravelas de reconhecimento e ocupaçäo das ilhas. Mas como "exportar" gente numa área que
carecia dela ? Os que partiam do Algarve eram mesmo daí oriundos ou gentes que aí afluíam
atraídas pela azáfama marítima que lá se vivia ?70
Orlando Ribeiro afirma, a este propósito, que nas ilhas da Madeira, Porto Santo, Santa
Maria e S. Miguel, ao primeiro impacto de gente do sul seguiu-se o nortenho. Mas a
documentaçäo avulsa que compulsamos nega tal proveniência para a Madeira e S. Miguel.
Numa listagem sumária dos primeiros povoadores da Madeira a presença nortenha é
maioritária, e além disso os registos paroquiais da freguesia da Sé para o período de 1539 a
1600 corroboram a ideia, dando-nos um número maioritário de nubentes das regiöes de Braga,
Porto e Viana. Também na listagem do grupo de mercadores, nos primeiros anos é dominante
a presença de gentes de Entre-Douro-e-Minho, nomeadamente dos portos costeiros de Ponte
Lima, Vila Real e Vila do Conde.
Em S. Miguel a listagem dos primeiros povoadores fornecida por Gaspar Frutuoso leva-nos
a concluir por uma idêntica afirmaçäo das gentes do Norte de Portugal: em 137 famílias aí
referenciadas 59% eram do reino e 24% da Madeira. Das primeiras a maior percentagem
situa-se na regiäo de Entre-Douro-e-Minho. A mesma ideia poderá ser expressa para as
demais ilhas do arquipélago, näo obstante algumas especificidades evidenciadas pela
Historiografia.
Os dados fornecidos pela Genealogia, Antroponímia, Linguística e Etnologia referem uma
origem variada para os primeiros colonos que actuaram como o fermento da nova sociedade
açoriana: minhotos, alentejanos, algarvios, madeirenses e flamengos corporizam o começo da
sociedade. É compreensível que, a exemplo do que sucedeu na Madeira, no grupo de
povoadores das ilhas de Santa Maria e S. Miguel surgisse um grupo de gentes algarvias ou aí
residentes, que corporizaram a oligarquia local. Mas depois a principal força-motriz da
sociedade e economia açorianas deveria ser, necessariamente, do norte de Portugal. E se no
início os contactos eram, preferencialmente, com o Algarve diversificaram-se depois a
exemplo da Madeira manteve-se uma forte vinculaçäo às terras nortenhas.

70
Vejam-se as aportações de Alberto IRIA(O Algarve e a ilha da Madeira no século XV(documentos inéditos), Lisboa, 1974) e a crítica de
Fernando Jasmins PEREIRA ("O Algarve e a ilha da Madeira. Críticas e aditamentos a Alberto Iria", in Estudos sobre História da Madeira,
Funchal, 1991, pp. 283-296). O tema foi retomado por Artur Teodoro de MATOS("Do contributo algarvio no povoamento da Madeira e dos
Açores", in Actas das I Jornadas de História medieval do Algarve e Andaluzia, Loulé, 1987), que releva a importância das gentes algarvias no
povoamento da Madeira e Açores.
Partindo do princípio de que o povoamento das ilhas foi um processo faseado, que atraiu a
totalidade das regiöes peninsulares e até mesmo mediterrânicas, é de prever a confluência de
gentes de várias proveniências, em especial nos espaços ribeirinhos de maior concentraçäo
dos aglomerados populacionais. Se é certo que o litoral algarvio exerceu uma posiçäo de
relevo nas primeiras expediçöes henriquinas no Atlântico, também näo é menos certo que esta
era uma área de recente ocupaçäo e carenciada de gentes. Assim
o grosso dos cabouqueiros do mundo insular português deveria ser de origem nortenha, sendo
em muitos casos os portos do litoral algarvio o local de partida.
Do Algarve vieram, sem dúvida, os criados ou servidores da Casa do Infante, cuja origem
geográfica está ainda por esclarecer. Eles tiveram uma funçäo de relevo no lançamento das
bases institucionais do senhorio das ilhas.
Também em Cabo Verde é referenciado para as ilhas de Santiago e Fogo, uma incidência
inicial de algarvios na criaçäo da nova sociedade, a que depois se juntaram os negros, como
livres ou escravos. Mas será de manter esta filiaçäo dos primeiros povoadores com o litoral
algarvio, quando o processo teve lugar após a morte do infante D. Henrique?
De S.Tomé sabe-se apenas da presença de uma forte comunidade judaica, resultado da
segunda leva de povoadores ordenada por Álvaro Caminha, desconhecendo-se a origem dos
primeiros aí conduzidos por Joäo de Paiva.
Cedo se reconheceram os efeitos nefastos da presença dos judeus nestas paragens,
responsabilizados pela quebra do comércio e das receitas do erário régio. Deste modo em
1516 D. Manuel ordenou que eles só poderiam residir em Cabo Verde mediante ordem régia,
o mesmo sucedendo em 1569 para S. Tomé.
O processo de formaçäo das sociedades insulares da Guiné foi diferente do da Madeira e
Açores. Aqui, a distância do reino e as dificuldades de recrutamento de colonos europeus
devido à insalubridade do clima condicionaram, de modo evidente, a forma da sua expressäo
étnica. A par de um reduzido número de europeus, restrito em alguns casos aos familiares dos
capitäes e funcionários régios, vieram juntar-se os africanos, que corporizaram o grupo activo
da sociedade. Mas a presença de negros, sob a condiçäo de escravos, incentivada no início, foi
depois alvo de restriçöes. O seu espírito insubmisso, de que resultaram algumas e sérias
revoltas em S. Tomé, foi a principal razäo destas medidas.

OS ESTRANGEIROS

Confrontadas as Canárias com as ilhas portuguesas conclui-se que o processo de ocupaçäo


e agentes que o corporizaram foram diversos, sendo também diferente a conjuntura em que tal
se desenrolou. Nas Canárias a iniciativa da conquista partiu de um estrangeiro e o processo de
povoamento foi marcado pela presença genovesa, enquanto nas ilhas portuguesas todo ele foi
um fenómeno nacional sob a orientaçäo da coroa.
A presença estrangeira nas ilhas portuguesas é evidente desde o início do povoamento.
Primeiro a curiosidade de novas terras, depois a possibilidade de uma troca comercial
vantajosa: eis os principais móbeis para a sua fixaçäo nas ilhas. A sua permanência está já
documentada na Madeira a partir de meados do século XV, integrados nas segundas levas de
povoadores. E mais näo entraram porque estavam, até 1493, condicionados à concessäo de
carta de vizinhança. Aliás a Madeira foi a primeira ilha a despertar a atenção dos mercadores
estrangeiros, que encontraram nela um bom mercado para as suas operações comerciais. Note-
se que o rincão madeirense foi a primeira de todas as ilhas atlânticas a merecer uma ocupação
efectiva imediata e de apresentar um conjunto variado de produtos com valor mercantil, o que
despertou a cobiça dos mercadores nacionais e estrangeiros. Nos demais arquipélagos este
processo foi moroso e tardou em aparecer produtos capazes de gerarem as trocas externas. No
caso das Canárias e dos Açores isso só foi possível a partir de princípios do século XVI, com
a oferta de novos produtos, como o açúcar, o pastel e cereais. Depois no último arquipélago a
sua afirmação como importante entreposto do comércio oceano fez convergir para aí os
interesses de algumas casas comerciais empenhadas no contrabando dos produtos de
passagem.
Na Madeira, ultrapassadas a partir de 1489 todas as barreiras à presença de estrangeiros, a
comunidade forasteira amplia-se e ganha uma nova dimensão na sociedade e economia. A
presença de agentes habilitados para a dimensão assumida pelas transações comerciais e a
injenção de capital no sector produtivo e comercial favoreceram a evolução do sisterma de
trocas. Neste contexto destaca-se a comunidade italiana, que veio em busca do açúcar. A
importância assumida pela cultura na ilha e comércio do seu produto no mercado europeu foi
resultado da intervenção desta comunidade. Florentinos e genoveses foram os principais
obreiros disso. Os primeiros evidenciaram-se nas transacções comerciais e financeiras do
açúcar madeirense no mercado europeu. A partir de Lisboa controlam à distância, por meio de
uma rede de feitores, o comércio do açúcar madeirense. Para isso conseguiram da fazenda real
o quase exclusivo do comercio do açúcar resultante dos direitos cobrados pela coroa na ilha,
bem como o monopólio dos contingentes de exportação estabelecidos pela coroa em 1498.
Nomes como Benedito Morelli, Marchioni, João Francisco Affaitati, Jerónimo Sernigi, têm
interesses na ilha onde actuam por iniciativa própria ou por intermédio dos seus agentes,
madeirenses e compatrícios seus.
A penetração deste grupo de mercadores na sociedade madeirense é por demais evidente.
O usufruto de privilégios reais e o relacionamento matriomnial favoreceram a sua integração
na aristocracia madeirense. Eles, na sua maioria apresentam-se como proprietários e
mercadores de açúcar. São exemplo disso Rafael Cattano, Luís Doria, João e Jorge Lomelino,
Lucas Salvago, Giovanni Spinola, Simão Acciaiolli e Benoco Amatori. Convem referenciar
que os estrangeiros tiveram aqui uma presença forte na agricultura, pois o conjunto destes
produtores de açúcar alcançou os 20% da produção.
Também os flamengos e franceses surgiram na ilha, desde finais do século XV atraídos
pelo comércio do açúcar. Todavia destes são poucos os que criam raízes na sociedade
madeirense - João Esmeraldo é uma excepção -, o seu único e exclusivo interesse é o
comércio do açúcar.
Nos Açores a situaçäo foi diferente pois os flamengos surgem desde o início como
importantes povoadores. Eles foram imprescindíveis para o povoamento das ilhas do Faial,
Terceira, Pico e Flores. O primeiro a desembarcar nos Açores terá sido Jácome de Bruges,
apresentado em documento de 1450 como capitäo da ilha Terceira. Da sua acçäo pouco se
sabe e há quem duvide da autenticidade do titulo de posse da capitania da ilha. Mais
importante foi, sem dúvida, a vinda de Josse Huerter em 1468 como capitäo das ilhas do Pico
e Faial. Acompanharam-no inúmeros flamengos que contribuíram parta o arranque do
povoamento das ilhas do grupo central e ocidental. Martim Behaim71 refere para 1466 a
71
. Archivo dos Açores, I, 442-443.
presença de dois mil flamengos no Faial, enquanto Jerónimo Munzer72, vinte e oito anos
depois, refere serem apenas mil e quinhentos os que residiam aqui e no Pico.
Na ilha de Säo Miguel fala-se da existência de uma comunidade bretä no lugar da
Bretanha. Segundo alguns ela deriva do inicial fluxo de povoadores mas para outros deverá
ser tardia, situada entre 1515 e 1527, pois só na última data o local surge com tal nome.
Todavia é de estranhar que Gaspar Frutuoso näo faça qualquer comentário sobre ela e os
registos paroquiais sejam omissos. Mas isto näo invalida a presença desta comunidade, talvez
em data posterior, comprovada aliás em alguns apelidos, topónimos, características físicas da
populaçäo, das casas e dos moinhos de vento.
A esta leva inicial de estrangeiros como povoadores sucederam-se outras com objectivos
distintos. O progresso económico do arquipélago despertara a atenção da burguesia europeia,
que surge aí à procura dos seus produtos. O pastel atraíu, primeiro os flamengos e, depois os
ingleses. Daqui resultou a importante colónia destes últimos na cidade de Ponta Delagada.
Para os arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé a comunidade estrangeira assume menos
importância, sendo, em certa medida, delimitada pela política exclusivista da coroa
portuguesa, que criou sérios entraves à sua presença. Todavia o facto de S. Tomé ter merecido
uma exploraçäo diversa com a cultura da cana sacarina levou a que aí afluíssem técnicos e
mercadores, ligados ao produto. Por outro lado, no entender de um piloto anónimo no século
dezasseis, havia a preocupaçäo de cativar colonos de diversas origens para o povoamento da
ilha: "Habitam ali muitos comerciantes portugueses, castelhanos, franceses e genoveses e de
qualquer outra naçäo que aqui queiram viver se aceitam todos de mui boa vontade..."73.
Numa listagem possível deste grupo é evidente o seu reduzido número e o facto de eles na
sua maioria terem adquirido a nacionalidade portuguesa e aportuguesado os seus nomes. Num
e noutro arquipélago encontrámos alguns italianos e flamengos. Aliás à descoberta do
arquipélago de Cabo Verde estäo associados dois italianos - Cadamosto e António da Noli -,
que se encontravam ao serviço do infante D. Henrique. A eles poderemos juntar, para Cabo
Verde, Joham Pessanha, Pero Sacco, Antonio Espíndola, Bastiam de Lila, Rodrigo Vilharam,
Fernam Fied de Lugo, para S. Tomé: Cristóväo Doria de Sousa, Andre Lopes Biscainho,
Jácome Leite, Pedro e Luís de Roma, Francisco Corvynel, Antonio Rey, Jorge Abote. Note-
se que Cristóväo Dória de Sousa era em 1561 o capitäo e governador da ilha de S. Tomé.
A existência da comunidade estrangeira, maioritariamente composta por mercadores, está
em consonância com a conjuntura peninsular e europeia, por um lado, e os atractivos de
índole económica que elas ofereciam, por outro. Desta forma o lançamento de culturas com
elevado valor comercial, como o pastel e o açúcar, está associado a isso. Eles surgem nas ilhas
como os principais financiadores da referida actividade agrícola e animadores do comércio.
Na Madeira e nos Açores a introduçäo e incentivos às culturas do pastel e cana-de-açúcar,
encontram-se-lhes também ligadas. Assim o pastel é apontado pela historiografia açoriana
como um legado da colónia flamenga do Faial, enquanto o açúcar madeirense é considerado
resultado da presença genovesa.
Em síntese poder-se-á afirmar que as comunidades italiana e flamenga deram um
contributo relevante ao povoamento e valorizaçäo económica das ilhas. Na Madeira e nas
Canárias evidenciaram-se os genoveses como principais arautos da economia açucareira,

72
. O Itinerário do Dr. Jerónimo Munzer, Coimbra, 1926, 65-66.

73
. Viagem de Lisboa a S. Tomé, Lisboa, s.d., 51.
enquanto nos Açores os segundos afirmaram-se como povoadores de algumas ilhas e
principais promotores da cultura do pastel. A presença flamenga na Madeira e Canárias é
tardia, o que näo prejudicou a sua vinculaçäo à cultura e comércio do açúcar. Entre eles
merece especial referência os Weselers com importantes interesses na Madeira e em La
Palma.
Se tivermos em conta que a presença do grupo de forasteiros resulta fundamentalmente de
interesses mercantis, compreenderemos a maior incidência nas ilhas ou cidades onde a
actividade foi mais relevante. Deste modo as ilhas da Madeira, Gran Canaria e Tenerife
galvanizaram muito cedo o seu empenho e conduziram a que eles estabelecessem uma
importante rede de negócios a partir de Lisboa ou Sevilha. Só assim se pode explicar a
posiçäo dominante aí assumida.
Nos Açores a presença da comunidade estrangeira divide-se entre os interesses fundiário e
comercial, mas foi sem dúvida este último, derivado da importância que aí assumiu a cultura
do pastel, que fez chamar a atençäo dos mercadores flamengos, franceses e ingleses para os
portos de Angra e Ponta Delgada. Mais tarde a importância definida por esta área nas rotas
comerciais do atlântico atraíu a cobiça dos estrangeiros como corsários ou mercadores
empenhados no contrabando.
Em idêntica situaçäo surgiram muitos dos forasteiros nas ilhas de Cabo Verde e do Golfo
da Guiné, atraídos pelo rendoso comércio de escravos, mas as limitaçöes impostas pela coroa
à sua permanência näo foram de molde a que estabelecessem um vínculo seguro.
Registe-se, por fim, a presença dos ingleses, que adquiriram um lugar relevante nos
arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias a partir do século XVII. O seu principal interesse
era o vinho de que se salientaram como os mais importantes consumidores na terra de origem
ou nas colónias orientais e ocidentais. Eles permaneceram até a actualidade, deixando rastos
evidentes no quotidiano das ilhas.

ESTRATIFICAÇÄO SOCIAL

Foi a partir da mescla dos primeiros povoadores europeus, oriundos de várias regiöes e
estratos sociais, que se definiu a estrutura social das ilhas. Todavia, é necessário ter em conta
que foi diferente a sua expressäo. Assim a Madeira e os Açores apresentam uma estrutura
distinta da dos arquipélagos da costa e do Golfo da Guiné. Nos dois primeiros estamos perante
uma populaçäo maioritariamente europeia, onde se incluíam livres e degredados. Nas últimas
ilhas o principal fermento populacional é definido maioritariamente por africanos da costa
vizinha.
O clima foi a principal causa a condicionar a prensença dos europeus em Cabo Verde e S.
Tomé, sendo o recurso à populaçäo negra a ele habituada o único meio possível. Mas aqui os
portugueses assumem-se como os detentores de regalias, bens fundiários e cargos
administrativos, enquanto os negros foram a principal mäo-de-obra de que eles se serviam
"para cultivar as terras, para fazer as plantaçöes e extrair os açúcares"74. Deste modo o rei

74
. Monumenta Missionária Africana, IV, 625.
havia determinado em 1472 que os vizinhos de Santiago pudessem "haver escravos, escravas,
machos e fêmeas para seus serviços e sua melhor vivenda e povoaçäo".
Sucede que, sendo a maioria dos europeus solteiros ou tendo deixado as mulheres no reino,
foi fácil o relacionamento com as negras, o que levou a uma necessária miscigenaçäo
populacional. As escravas, conhecidas como mulheres "lavadeiras", estavam ao serviço dos
europeus como amas. Em meados do século dezasseis um piloto anónimo descreve-nos o que
sucedia em S. Tomé: "os portugueses, castelhanos, franceses e genoveses e de qualquer outra
naçäo (...) morrendo-lhes as mulheres brancas as tomam negras no que näo fazem muita
dificuldade, sendo os habitantes negros de grande inteligência e ricos, e criando as suas filhas
ao nosso modo, tanto nos costumes, como no traje, e os que nascem destas tais negras säo de
cor parda e lhes chamam mulatos"75.
Isto näo agradava ao bispo e coroa que, por isso mesmo, procuraram estabelecer
dificuldades ao avanço da mancebia. Em 154976 o rei determinou que as penas aplicadas às
mulheres solteiras devassas e prostitutas fossem até ao degredo para o reino. Entretanto em
Cabo Verde uma ordem de 1620 estabeleceu-se o envio para aí das mulheres que até entäo
eram degredadas para o Brasil, como forma de se combaterem as relaçöes sexuais entre
brancos e negras, e de se acabar com os mulatos.
A presença do africano, sob a condiçäo de escravo, liberto ou livre, é uma constante na
sociedade criada pelos portugueses nas ilhas tropicais. A sua intervençäo era, no entanto,
extremamente limitada, pois poucos foram aqueles que adquiriram um lugar de relevo. E
destes os que se evidenciaram foram precisamente aqueles que na vizinha åfrica pertenciam às
élites étnicas. O piloto anónimo refere-nos para S. Tomé, o caso de Joäo Menino.
Diferente foi a posiçäo assumida pelos africanos nas ilhas da Madeira e dos Açores onde,
sob a condiçäo de escravos ou libertos, se encontravam incluídos entre os estratos baixos da
sociedade. A partir disso o edifício social assumiu outra complexidade, näo se limitando
apenas à diferença entre livres e escravos, pois no primeiro grupo surgem-nos diversos
estratos. Ao lado das pessoas "honradas e de grande fazendas", temos os artesäos, os
assalariados e, finalmente, os escravos. Do primeiro grupo saíu a oligarquia da terra cumulada
de títulos, bens fundiários e cargos administrativos. A presença dos outros estratos sociais na
"governança" só foi facilitada ao grupo oficinal por ordem régia de 1484, através dos
procuradores dos mesteres.

OS ESCRAVOS

Sem dúvida, o aspecto mais peculiar e relevante desta estrutura social foi a posiçäo
assumida pela escravatura. Para certa historiografia torna-se paradigmático o caso madeirense,
que se assume como revelador da forma de passagem da sociedade mediterrânica para a
atlântica, através da vinculaçäo ao açúcar.
De facto as ilhas do Atlântico Oriental foram o filäo do açúcar que catapultou a mäo-de-
obra escrava para a uma afirmaçäo nas referidas sociedades e economias. Daí resultou que nos
Açores, onde a safra açucareira foi diminuta, este grupo social näo adquiriu a mesma

75
. Ibidem, IV, 625.

76
. Ibidem, II, 443-445.
dimensäo da Madeira e Canárias. Mas é difícil, em qualquer dos arquipélagos, estabelecer
uma contabilizaçäo exacta. No caso da Madeira refere-se, com base em Gaspar Frutuoso, que
os escravos representariam em 1552 cerca de 14% do total dos habitantes do Funchal e 29 %
de toda a ilha, mas os dados por nós compulsados para toda a ilha e relacionados com o
recenseamento de 1598 ficam-se por 5%, enquanto nas Canárias orientais tal percentagem
rondaria os 15%. A percentagem do grupo nos registos aproquiais é reduzida, não
ultrapassando na totalidade os 3%. Os valores mais elevados surgem nos baptismos e
casamentos em 1590 com, respectivamente, 12% e nos óbitos de 1569 com 19%77.
A presença desta mäo-de-obra resultou só das dificuldades sentidas no recrutamento de
colonos derivadas das inúmeras exigências da safra do açúcar e da facilidade do resgate nas
Canárias ou costa africana. Note-se que, mais tarde, uma maior procura por outros mercados
carentes causou aqui dificuldades à sua manutençäo sendo mais fácil e barato e recurso à mäo-
de-obra livre.
Os escravos tiveram nestas ilhas uma função marcante no processo socio-económico nos
séculos XV e XVI. Para isso terão contribuido, por um lado, as facilidades no acesso ao seu
mercado africano e, por outro, a incessante procura desta força braçal derivada das
dificuldades no recrutamento de colonos no reino, conjugada com a sua permanente
solicitação em face das más condições do solo a desbravar e da inusual necessidade pela safra
e fabrico do açúcar.
Na Madeira o processo de abertura de frentes de arroteamento foi moroso e necessitava de
uma munerosa e barata mão-de-obra. A preparação do solo para as sementeiras foi demorada:
as queimadas, a construção de paredes para retenção das terras e a abertura de levadas para a
utilização da água no regadio e fruição da sua força motriz nos engenhos. Depois foram as
culturas agrícolas.
Esta situação aliada à forte presença madeirense nas campanhas de defesa das praças
africanas, de conquista das Canárias e de reconhecimento da costa africana implicam a
solução da escravatura de canários ou africanos, muitos deles presas dessas façanhas. Deste
modo estava aberta a via para a afirmação da escravatura na ilha, dispondo para isso de
múltiplas frente de recrutamento: primeiro as Canárias, depois a costa africana, desde
Marrocos até Angola. Mas o principal surgidouro de escravos foi a área da Costa e Rios de
Guiné. Aí chegaram os madeirenses e estabeleceram, em Santiago e depois em S. Tomé, um
importante entreposto para este comércio com destino à sua ilha. Mais tarde eles alargaram os
seus interesses até ao tráfico transatlântico. Esta situação contribuiu para que a Madeira fosse
um importante entreposto de comércio de escravos para o reino ou Canárias.
A escravatura na Madeira adquiriu uma dimensão diferente das ilhas de Cabo Verde e
S.Tomé ou das Antilhas. Esta diferença não se radica apenas no número deles, pois também se
alarga à mundividência estabelecida pela estrutura social madeirense. Na Madeira o escravo é
parte integrante da sociedade. O mundo do escravo entrecruzava-se com o do livre. Vários
factores condicionaram estas especificidades: a dimensão adquirida pela propriedade no solo
madeirense associada à estrutura social e económica favoreceram esta simbiose.
Os regimentos régios, as posturas municipais, insistiam na necesidade de controlo do
acanhado espaço de comvívio do escravo, procursando evitar qualquer situação propiciadora
da revolta. Perante isto o escravo estava amarrado ao quotidiano do senhor e só poderia

77
Para a situação da Madeira nos séculos XV a XVII veja-se o nosso estudo Os escravos no arquipélago da Madeira.séculos XV a XVII, Funchal,
1991.
desprender-se dele em condições especiais e mediante o seu consentimento. Deste modo o
escravo só existia perante a sopciedade associado ao seu senhor. A par disso a mulher escrava
mantinha um estreita ligação com o proprietário, seja ele do sexo feminino ou masculino,
servindo-o em tudo o que era necessário. As disposições testamentárias favorecem-as
precisamente por esta situação.
É comum associar-se o escravo à cultura e fabrico do açúcar: o binómio escravo/açúcar é
considerado para muitos uma realidade insofismável. É-o sim em S.Tomé Antilhas e Brasil,
mas na Madeira e Canárias a situação é diversa. Na verdade esta cultura foi a mola
propulsora da afirmação dos escravos nas ilhas, mas as condições específicas do sistema de
propriedade permitiram uma diversidade de relações sociais em torno da produção.
Na Madeira, ao contrário do que sucedeu nas áreas supracitadas, a cultura dos canaviais
adquiriu expressão fundiária diversa. Neste caso deparamo-nos com um excessivo
parcelamento dos canaviais e a afirmação de uma nova forma de posse e usufruto da terra -- o
arrendamento -- que colocava em segundo plano a função do escravo no processo produtivo.
Depois a crise açucareira provocou a afirmação de outra cultura -- a vinha -- que relegou para
um plano secundário a presença do escravo no sector produtivo. Acresce ainda que o binómio
engenho/canaviais era pouco frequente, sendo usual o recurso ao engenho de outrém para a
moenda das canas e fabrico do açúcar. Esta divisão de tarefas e a pequenez dos canaviais não
facilitaram a permanência de uma mão-de-obra fixa, antes possibilitando uma afirmação da
força de trabalho eventual. Perante isto só nos resta dizer que no caso da Madeira e mesmo
das Canárias as tarefas da cultura e fabrico do açúcar foram executadas por uma mão-de-obra
mista: escravos e livres trabalham a terra e animam a vida do engenho, mas os últimos
dominam, ao contrário do que sucedeu nas Antilhas ou em S.Tomé.
Também nos Açores o escravo misturou-se com o criado e trabalhador na prestação de
serviços domésticos, agro-pecuários e artesanais. Mas aqui a escravatura não adquiriu a
dimensão que assumiu na sociedade madeirense. Para isso terão contribuído a forma de
organização da estrutura fundiária e o relativo afastamento dos mercados abastecedores de
escravos.
Em Cabo Verde e S. Tomé, porque próximos do mercado de resgate e funcionando como
feitorias para este tráfico, a situaçäo era diversa. No primeiro arquipélago, por exemplo, foi
apenas a sua disponibilidade nos Rios da Guiné. A coroa havia determinado em 1472 que os
moradores de Santiago pudessem "haver escravos, escravas, machos e fêmeas para seus
serviços e sua melhor vivenda e povoaçäo". Até mesmo o clero näo dispensava os seus
serviços, como se depreende de uma carta de 1607 do padre Barreira, missionário na Serra
Leoa. Dizia ele: "a experiência nos tem demonstrado que nem a ilha (Santiago) nem cá
podemos viver sem escravos".
Nas ilhas do Golfo da Guiné o processo foi diferente uma vez que a isso se deverá juntar o
facto de o açúcar ter aí vingado em larga escala, necessitado de enormes excedentes de mäo-
de-obra africana, mais justificados pela reduzida dimensäo dos europeus. Aqui laboravam
mais de trezentos engenhos, no século dezasseis, todos eles alimentados pela força do trabalho
escravo. De acordo com uma relaçäo de 1554 cada engenho teria ao seu dispor entre cento e
cinquenta a trezentos escravos. ålvaro de Caminha declara no testamento, feito em finais do
século XV, ter ao seu serviço "nas obras, roças e sementeiras" mais de quinhentos escravos. A
estrutura fundiária e social, geradas pelo açúcar, ganham uma dimensäo idêntica à que
assumirá mais tarde no Brasil e Antilhas. Esta situaçäo é o prelúdio do que iria suceder,
depois, aos africanos escravizados e obrigados a fazer a travessia do oceano.
Quer em Cabo Verde, quer em S. Tomé o trabalho dos escravos era a força motriz da
economia agrícola. O seu dia à dia era estabelecido pela tradiçäo africana de uma forma
peculiar. Seis dias era o tempo reservado para os escravos tornarem produtivas as terras do
amo e apenas um dia lhes era facultado para encontrarem os meios de subsistência diária. Ao
contrário do que sucedia na Madeira ou nos Açores "o senhor näo dá coisa alguma àqueles
negros (...) nem mesmo faz despesa em dar-lhes vestidos, nem de comer, nem em mandar-lhes
construir choupanas porque eles por si mesmo fazem todas as coisas"78. Contra isto reclamava
o Padre Manuel de Barros em 1605, dizendo que os escravos aos domingos e dias santificados
näo cumpriam o preceito religioso, porque "tais dias dá Deus ao cativo para trabalhar para as
suas necessidade (...) e nada para o senhor". Note-se que isto näo era novidade para os negros,
que sendo escravos no continente já estavam submetidos a tal regime de trabalho e foi de lá
que os portugueses o copiaram.
Os escravos assumiam aqui uma posiçäo muito mais importante na composiçäo da
sociedade, do que nas ilhas aquém do Bojador. Neste grupo devemos diferenciar, quer em
Santiago, quer em S. Tomé, os escravos residentes e os de resgate. Os últimos, depois de
alguns dias de permanência nos armazéns da feitoria, seguiam rumo ao seu destino, para a
América, a Europa ou as ilhas atlânticas. Eram numerosos mas de permanência limitada.
Valentim Fernandes dá-nos conta disso em princípios do século XVI, referenciando para S.
Tomé, entre os mil moradores livres, o dobro de escravos residentes e entre cinco a seis mil de
resgate. Com o decorrer dos tempos a relaçäo entre os livres e os escravos residentes
aumentou, de modo que em 1546 existiam seiscentos brancos para igual número de mulatos e
dois mil escravos. Na ilha do Príncipe em 1607 nos cinco engenhos em funcionamento
contavam-se dez homens brancos casados, dezoito crioulos e quinhentos escravos79.
Em Cabo Verde os dados disponíveis sobre a presença dos escravos cobrem apenas as ilhas
povoadas desde o início (Santiago e Fogo) no período de 1513 e 1582. Na primeira data
referencia-se na Ribeira Grande a residência de cento e sessenta e dois vizinhos, sendo destes
trinta e dois escravos. Para o segundo surgem já 13.700 escravos (87%) e 1.008 vizinhos
(13%), nas duas ilhas. Aqui é evidente a maior concentraçäo na Ribeira Grande, onde
representam mais de 92% da populaçäo80. Perante isto torna-se evidente a diferença entre o
fenómeno da escravatura dos dois arquipélagos com os atrás citados.
Em todas as ilhas a presença do escravo negro näo era pacífica, sendo considerada em
muitos momentos como um factor de forte instabilidade social. Os fugitivos, num e noutro
lado, geravam a habitual apreensäo das autoridades, que tudo faziam para sanar os aspectos
nocivos que a sua presença poderia causar. Mas enquanto na Madeira e nos Açores a
conflituosidade era sazonal, näo assumindo proporçöes graves,o mesmo näo se podendo dizer
das ilhas da Guiné.
Em S. Tomé, os fugitivos reuniam-se nas montanhas em quadrilhas e assaltavam
esporadicamente as vilas. Daí resultaram também algumas sublevaçöes importantes (em 1547
e 1595) que puseram em causa a permanência dos europeus e a continuidade da cultura da
cana de açúcar açucareira. Ficou célebre a revolta de 1595, comandada por Amador, escravo

78
. Viagem de Lisboa à ilha de S. Tomé, Lisboa, s.d., 54-60.

79
. Monumenta Missionária Africana, I, nº 137, 383.

80
. António CARREIRA, Cabo Verde, Lisboa, 1983, 373-374.
fugitivo de Bernardo Vieira81. O afrontamento dos escravos fugitivos começou a ser evidente
a partir de 1531, ano em que os moradores de S. Tomé manifestaram a sua apreensäo ao rei
pela presença de tais grupos de cativos fugidos, considerados uma ameaça permanente para a
ilha. Daí resultava a necessidade de medidas por parte da coroa, caso contrário "se perderá esa
ylha e cedo será toda dos negros".
Também nos Açores, mais propriamente em Vila Franca do Campo, ficou registada uma
revolta de escravos em 1522, tendo por chefe um Badail, escravo de Rui Gonçalves da
Câmara, mas sem qualquer efeito para a sociedade. Na Madeira onde o grupo era mais
numeroso näo se conhece qualquer tipo de revolta, para além dos casos isoladas de violência
dos escravos fugitivos nos caminhos que circundavam as serranias da ilha.

A EMIGRAÇÄO INSULAR

A elevada mobilidade social é uma característica da sociedade insular. O fenómeno da


ocupaçäo atlântica lançou as bases da sociedade e a emigraçäo ramificou-a e projectou-a além
Atlântico. As ilhas foram assim, num primeiro momento, pólos de atracçäo, passando depois a
actuar como áreas centrífugas. A novidade aliada à forma como se processou o povoamento,
activaram o primeiro movimento. A desilusäo, as escassas e limitadas possibilidades
económicas e a cobiça por novas e promissoras terras, o segundo surto.
Primeiro foi a Madeira, depois as ilhas próximas dos Açores e das Canárias e, finalmente,
os novos continentes ou ilhas. Desiludido com a ilha o madeirense procurou melhor fortuna
nos Açores ou nas Canárias, e depositou, depois, na costa africana as promissoras esperanças
comerciais. Neste grupo incluem-se principalmente os filhos-segundos desapossados da terra
pelo sistema sucessório. É disso exemplo Rui Gonçalves da Câmara, filho do capitäo do
donatário no Funchal, que preferiu ser capitäo da ilha distante de S. Miguel a manter-se como
mais um mero proprietário na Ponta do Sol. Com ele surgiram outros que deram o arranque
decisivo ao povoamento desta ilha. Deste modo a Madeira evidencia-se também no século
quinze como um centro de divergência de gentes no novo mundo.
A elevada mobilidade do ilhéu levou os monarcas a definirem uma política de restriçöes no
movimento emigratório em favor da fixaçäo do colono à terra, como forma de se evitar o
despovoamento das áreas já ocupadas. Mas o apelo das riquezas fáceis, do resgate africano ou
da agricultura americana eram mais convincentes, tendo a seu favor a disponibilidade dos
veleiros que escalavam com assiduidade os portos insulares. A emigraçäo era inevitável.
A Madeira desfrutava no século XV, a exemplo das Canárias, de uma posiçäo privilegiada
perante a costa e ilhas africanas. Deste modo ela afirmou-se por muito tempo como um
importante centro emigratório para os arquipélagos vizinhos ou longínquos continentes. Para
isso contribuiu o facto de estar associada ao madeirense uma cultura que foi a principal aposta
das arroteias do Atlântico, isto é, a cana sacarina.
Os madeirenses aparecem nas Canárias, Açores, S. Tomé e Brasil a dar o seu contributo
para que no solo virgem brotem os canaviais, apareçam os canais de rega ou de serviço aos
engenhos, a que também foram seus obreiros nos avanços tecnológicos. A crise da produçäo
açucareira madeirense, gerada pela concorrência do açúcar das áreas que os seus habitantes
contribuíram para criar, empurrou-nos para destinos distantes.

81
. Rui RAMOS, "Rebelião e Sociedade colonial: alvoroço e levantamento em S. Tomé (1545-1555)", in Revista Internacional de Estudos
Africanos, nº 4/5, 1986, 17-74.
Nesta diáspora atlântica, iniciada na Madeira, é de referenciar o caso da emigraçäo inter-
insular dos arquipélagos do Mediterrâneo Atlântico. As ilhas, pela proximidade e forma
similar de vida, aliadas às necessidades crescentes de contactos comerciais, exerceram
também uma forte atracçäo entre si. Madeirenses, açorianos e canários näo ignoravam a
condiçäo de insulares e, por isso mesmo, sentiram necessidade do estreitamento destes
contactos.
A Madeira, mais uma vez, pela posiçäo charneira entre os Açores e as Canárias e da
anterioridade no povoamento, foi, desde meados do século XV, um importante viveiro
fornecedor de colonos para estes arquipélagos e elo de ligaçäo entre eles. A ilha funcionou
mais como pólo de emigraçäo para as ilhas do que como área receptora de imigrantes. Se
exceptuarmos o caso dos escravos guanches e a inicial vinda de alguns dos conquistadores de
Lanzarote, podemos afirmar que o fenómeno é quase nulo, näo obstante no século dezasseis
os açorianos surgirem com alguma evidência no Funchal. Note-se, ainda, a presença de uma
comunidade de açorianos nas ilhas Canárias, principalmente nas ilhas de Gran Canaria,
Tenerife e Lanzarote, dedicados à cultura dos cereais, vinha, cana sacarina e pastel. Mas
açorianos e canarianos, bem posicionados no traçado das rotas oceânicas, voltaram a sua
atençäo para o promissor novo mundo.

A MADEIRA E AS CANARIAS
Um dos aspectos reveladores das conexöes madeirenses e açorianas foi o relacionamento
com as Canárias. Para Perez Vidal82 a presença portuguesa no arquipélago resultou da sua
intervençäo em dois momentos decisivos: um primeiro, demarcado pelas acçöes da coroa e do
infante D. Henrique, nos séculos XIV e XV que terá o seu epílogo em 1497 com o tratado de
Alcáçovas; o segundo, de iniciativa particular, abrangendo os séculos XVI e XVIII, em que os
impulsos individuais se sobrepöem à iniciativa oficial. Este último foi o momento de
expressäo plena da presença lusíada e do seu paulatino definhar em face da Restauraçäo da
monarquia portuguesa e da guerra de fronteiras mantida até 1665.
A questão ou disputa pela posse das ilhas Canárias foi o prelúdio de novos confrontos com
o objectivo de monopólio das navegações atlânticas. O inicial afrontamento foi entre Portugal
e Castela, tendo como palco as ilhas Canárias. Esta disputa começou em meados do século
catorze mas só na centúria seguinte por iniciativa do infante D. Henrique teve a sua maior
expressão.
A expedição de Jean de Betencourt em 1402 marca o início da conquista das Canárias
enquanto a sua subordinação à soberania da coroa castelhana e o reconhecimento em 1421
pelo papado desta nova situação fez reacender a polémica do século XIV. Ao infante
português restavam apenas duas possibilidades: a solução diplomática, fazendo valer os seusa
direitos junto do papado e o recurso a uma intervenção bélica, legitimada pelo espírito de
cruzada que a ela se pretendia associar. Desta última situação resultaram as expedições de D.
Fernando de Castro (1424 e 1440) e de António Gonçalves da Camara (1427). Mas em todas
as frentes as conquistas foram efémeras e de pouco valeu, por exemplo, a compra em 1446 da
ilha de Lanzarote a Maciot de Bettencourt, por 20.000 reais brancos ao ano e regalias na ilha
da MAdeira. Disso apenas resultou a ramificação desta importante família à Madeira e,depois,

82
. "Aportación portuguesa a la población de canarias. Datos", in Anuario de Estudios Atlânticos, nº 14, 1968. Este e outros estudos foram
reunidos em Los portugueses en Canarias. portuguesismos, Las Palmas, 1991.
aos Açores. O litígio encerra-se em 1480 com a assinatura de um tratado em Toledo. Desde
então a coroa portuguêsa abandona a sua reivindicação pela posse dessas ilhas com garantias
de que a burguesia andaluza não se intrometerá no trato da Guiné.
A conjuntura destas ilhas e do relacionamento das coroas peninsulares acompanhou desde
o início as conexöes canário-madeirenses. No no século XV a vinculaçäo da Madeira a
Lanzarote filia-se na célebre na disputa das coroas peninsulares pela posse das Canárias. Em
finais do século seguinte a sua reafirmaçäo e alargamento a todo o arquipélago canário foram
resultado da ocupaçäo da ilha em 1582 por D. Agustin Herrera, acto que materializou na
Madeira a uniäo das duas coroas peninsulares. Entretanto nos Açores tivemos desde 1582 a
presença de importantes contingentes militares espanhóis, mas sendo reduzida a presença de
canários. Todavia o efeito social dos dois fenómenos em ambos os arquipélagos foi diverso. O
primeiro permitiu a afirmaçäo madeirense em Lanzarote, enquanto o segundo, para além do
natural reforço da realidade condicionou a presença canária no Funchal, que nunca foi muito
significativa. Talvez o momento de maior intervençäo seja o do século XV com a presença
dos aborígenes canários,como escravos, ao serviço da pastorícia e safra do açúcar.
Se à componente política se deverá conceder o mérito de abertura e incentivo das conexöes
humanas, ao económico ficou a missäo de reforçar e sedimentar este relacionamento. Desta
forma os contactos comerciais surgem em simultâneo como consequência e causa das
migraçöes humanas. Todavia tal intercâmbio só adquiriu a plenitude no século XVI, incidindo
preferencialmente no comércio de cereais dos mercados de Tenerife, Fuerteventura e
Lanzarote.
A proximidade da Madeira ao arquipélago canário e o rápido surto do povoamento e
valorizaçäo sócio-económica do solo orientaram as atençöes do madeirense para esta
promissora terra. Assim, decorridos apenas vinte e seis anos após a ocupaçäo do solo
madeirense, embrenharam-se na controversa disputa pela posse das Canárias ao serviço do
infante, em 1446 e 1451.
A presença madeirense na empresa canária conduziu a uma maior aproximaçäo dos dois
arquipélagos ao mesmo tempo que influenciou o traçado de vias de contacto e comércio entre
os dois arquipélagos. Pela Madeira tivemos, primeiro, o saque fácil de mäo-de-obra escrava
para a safra do açúcar e, depois, o recurso ao cereal e à carne, necessários à dieta alimentar do
madeirense. Pelas Canárias foi o recurso à Madeira com o porto de abrigo das gentes
molestadas com a conturbada situaçäo que aí se viveu no século XV. Em 1476 com a
conquista levada a cabo por Diogo de Herrera, muitos dos descontentes com a nova ordem
emigraram para a Madeira ou Castela. De entre eles podemos referenciar Pedro e Juam Aday,
Juan de Barros, Francisco Garcia, Bartolomé Heveto e Juan Bernal.
Esta corrente migratória resultante do descontentamento gerado em face da conquista e
ocupaçäo do arquipélago canário iniciara-se já por volta de meados do século XV, sendo seu
arauto Maciot de Bettencourt. O sobrinho do primeiro conquistador das Canárias, amargurado
com o evoluir do processo e em litígio com os interesses da burguesia de Sevilha, cedeu o
direito do senhorio de Lanzarote ao infante D. Henrique mediante avultada soma de dinheiro,
de fazendas e regalias na Madeira. Iniciava-se assim uma nova vida para esta família de
origem normanda que das Canárias passa à Madeira e aos Açores, relacionando-se aí com a
principal nobreza da terra, o que lhe valeu uma lugar de relevo nas sociedades madeirense e
micaelense do século XV.
Acompanharam o desterro de Maciot de Bettencourt a sua filha Maria e os sobrinhos e
netos Henrique e Gaspar. Todos eles conseguiram uma posiçäo de prestígio e avultadas
fazendas mercê do relacionamento matrimonial com as principais famílias da Madeira. D.
Maria Bettencourt, por exemplo, casou com Rui Gonçalves da Câmara, filho-segundo do
capitäo do donatário do Funchal e futuro capitäo do donatário da ilha de S. Miguel.
A compra em 1474 por Rui Gonçalves da Câmara da capitania da ilha de S. Miguel
implicou a ramificaçäo da família aos Açores. Com D. Maria Bettencourt seguiu para Vila
Franca o seu sobrinho Gaspar, que mais tarde viria a encabeçar o morgadio da tia em S.
Miguel, avaliado em 2.000 cruzados. Os filhos, Henrique e Joäo evidenciaram-se na época
pelos serviços prestados à coroa, tendo recebido em troca muitos benefícios. Henrique de
Bettencourt preferiu o sossego das terras da Band'Além, na Ribeira Brava, onde viveu em
riquíssimos aposentos. Aí instituiu um morgado e participou activamente na vida municipal e
nas campanhas africanas. Os descendentes destacaram-se na vida local e nas diversas
campanhas militares em África, India e Brasil.
Se esta primeira vaga migratória traçou o rumo e destino madeirense, a expediçäo
pacificadora de D. Agustin Herrera, conde de Lanzarote, em 1582, sedimentou e estreitou os
contactos entre a Madeira e Lanzarote. O próprio conde de Lanzarote, na curta estadia na ilha,
foi um dos arautos deste relacionamento, pois ligou-se aos Acciaiolis, importante casa de
mercadores e terratenentes florentinos, fixada na ilha desde 1515. As suas hostes seguiram-lhe
o exemplo, tendo muitos dos trezentos homens do presídio criado família na ilha. No período
de 1580 a 1600 os espanhóis surgem em primeiro lugar na imigraçäo madeirense83.
O descerco em 1640 trouxe consigo consequências funestas para tal relacionamento. Assim
os madeirenses residentes em Lanzarote foram alvo de represálias, sendo de referir o confisco
dos bens do filho varäo de Simäo Acciaioli que casara com a filha do Conde de Lanzarote.
O impacto lusíada nas Canárias surgiu muito cedo tendo a Madeira como um dos principais
eixos do movimento. A presença alargou-se às ilhas de La Palma, Lanzarote, Tenerife e Gran
Canaria. Os portugueses assumiram um lugar de relevo, situando-se entre os principais
obreiros da valorizaçäo económica das ilhas. Eles foram exímios agricultores, pescadores,
pedreiros, sapateiros, mareantes, deixando marcas indeléveis da portugalidade na sociedade
canária84.
A tradiçäo bélica e aventureira de alguns madeirenses levou-os a participar activamente
nas campanhas de conquista de Tenerife, recebendo por isso, como recompensa, inúmeras
dadas de terra. Daí resultou a forte presença lusíada nesta ilha, onde em algumas localidades,
como Icode e Daute, surgem como o grupo maioritário. Aliás Granadilla foi fundada por
Gonzalo Gonzalez Zarco filho de Joäo Gonçalves Zarco, capitäo do donatário do Funchal. A
prova mais evidente da importância da comunidade lusíada na ilha está documentada nos
"acuerdos del cabildo de Tenerife" onde foram sempre referenciados em segundo lugar. O
mesmo se poderá dizer para a ilha de La Palma onde os portugueses marcaram bem forte a sua
presença, tendo a testemunhá-lo a existência de alguns registos paroquiais feitos em
português. Entretanto em Lanzarote o forte impacto madeirense está comprovado pelas
inúmeras referências da documentaçâo e pelo testemunho de Vieira y Clavijo de que a
Madeira era familiar para os lanzarotenhos que era aí conhecida como a ilha.
A acentuada presença lusíada no arquipélago foi resultado das possibilidades económicas
que o mesmo oferecia e as necessidades em mäo-de-obra e da possibilidade de penetraçäo no

83
. Luis Francisco de Sousa Melo, "Imigração na Madeira. Paróquia da Sé 1539-1600, in História e Sociedades, nº 3, 1979, 52-53.

84
Cf J. Perez Vidal
comércio com a costa africana e depois com o novo continente americano. Assim num
primeiro momento fomos confrontados com um numeroso grupo de aventureiros dos quais se
recrutaram os oficiais mecânicos e agricultores e só depois surgiram os agentes de comércio e
transporte, todos eles com uma acçäo decisiva na economia do arquipélago nos séculos XV e
XVII.
É fácil testemunhar a assiduidade dos contactos mas difícil se torna avaliar a dimensäo
assumida pela presença portuguesa neste arquipélago, quanto à sua origem geográfica. Nos
diversos actos notariais, que compulsámos, ignora-se, muitas vezes, a origem geográfica dos
intervenientes portugueses. O facto de muitos surgirem em diversos actos relacionados com
outros da Madeira ou outorgando poderes para a cobrança de dívidas e administraçäo das
heranças leva-nos a suspeitar a sua origem madeirense.
Uma vez que os contactos entre a Madeira e as Canárias foram mais frequentes é natural a
presença de uma importante comunidade madeirense nesse arquipélago, com principal relevo
para as ilhas de Lanzarote, Tenerife e Gran Canária. Aí foram agentes destacados co comércio
e transporte entre os dois arquipélagos ou artífices, nomeadamente sapateiros. Os açorianos,
maioritariamente das ilhas Terceira e S. Miguel, surgem em menor número e preferentemente
ligados à faina agrícola.
A classe mercantil de origem madeirense nas Canárias segue um rumo peculiar. Eles ao
contrário dos flamengos e italianos näo se avizinham de imediato, mantendo o estatuto de
estantes. A necessidade de fixaçäo é quase sempre o corolário do progresso das suas
operaçöes comerciais e dos investimentos fundiários.
As mudanças operadas na conjuntura política a partir dos acontecimentos do ano de 1640
condicionaram a presença do madeirense. Ele que até entäo usufruía de um estatuto
preferencial na sociedade e economia lanzarotenha, por exemplo, desaparece paulatinamente
do palco de acçäo. E, facto insólito, os poucos que conseguimos rastrear na documentaçäo
procuram ignorar ou apagar a sua origem, surgindo apenas como vizinhos sem outra
referência.
Esta situaçäo coincide com o fim do relacionamento comercial incidindo sobre os cereais
de Canárias pois a partir de 1641 deixou de aparecer no Funchal, sendo substituído pelo
açoriano ou por novos mercados como a Berberia e América do Norte. Será ela resultado da
crise da cultura cerealífera canária ou fruto da ambiência de mútua represália peninsular ?
Note-se, ainda que a partir de então surgiram novos e mais promissores destinos para a
emigração, como o Brasil, que terão motivado esta mudança.
Da presença da comunidade portuguesa em canárias resultaram inúmeras influências, hoje
ainda visíveis nas aportações linguísticas e etnográficas. Neste caso é evidente os
portuguesismos na nomenclatura dos ofícios, utensílios e produtos a que estiveram ligados:
açúcar, vinho, pesca, construção civil e fabrico de calçado. No inverso também temos alguns
testemunhos da presença dos aborígenes de Canárias na Madeira e Açores. A sua presença
como escravos ou os assíduos contactos entre as ilhas favoreceram estas aportações. Na ilha
de S. Miguel, não obstante estar testemunhada apenas a presença de dois guanches -- um
pastor e outro mestre de engenho-- a sua presença deixou rastro na toponímia com o pico e
logoa do canário. Na Madeira para além dessa referência toponímica persistem vestígios da
sua presença na construção de furnas para habitação (Ribeira Brava) e culto religioso (S.
Roque do Faial) e no Porto Santo o uso generalizado do gofio.
MADEIRA E AÇORES

O movimento emigratório entre a Madeira e os Açores é muito mais tardio, tendo como
seu iniciador Rui Gonçalves da Camara, que em 1474 se tornou capitão da ilha de S. Miguel.
Não obstante estar referenciada em época anterior a estância de Diogo de Teive, que em 1452
teria descoberto as ilhas das Flores e Corvo, o certo é que só a partir da década de setenta se
generaliza esse movimento, que conduziu às ilhas de S. Miguel, Terceira Santa Maria e Pico
muitos filhos segundos da aristocracia madeirense. Na Madeira havia-se esgotado a
possibilidade de fácil aquisição de terras, coisa que nos Açores era facilitado. Note-se ainda
que o incentivo de culturas, como a cana sacarina e a vinha, estão também ligados os
madeirenses.
O movimento inverso foi pouco frequente e só teve lugar a partir de princípios do século
XVI. Para isso deverá ter contribuído a assíduidade dos contactos entre os dois arquipélagos
provacada pelo comércio de cereais e, ainda, o temor das críses sísmicas que assolaram as
ilhas açorianas, com especial relevo para as de 1522 e 1563.

AS ILHAS E A GUINÉ

As ligaçöes dos arquipélagos da Madeira e Açores com os dois da costa e golfo da Guiné
näo foram frequentes, sendo a primeira motivaçäo a busca de escravos negros. Neste contexto
a abordagem feita pelas gentes insulares é quase sempre sazonal, o tempo suficiente para as
operaçöes comerciais. Todavia encontramos em S. Tomé e Santiago referências à presença de
madeirenses e açorianos avizinhados. Esta presença é resultado da ida de técnicos ligados à
cultura do açúcar e, depois, de comerciantes interessados no comércio de escravos para a
Madeira ou para as Antilhas, como sucedeu no século XVII. Um caso exemplificativo disso é
Francisco Dias85. Ele fixou-se na Ribeira Grande, donde coordenava uma rede de negócios
que ligava os Rios da Guiné aos Açores, Madeira e Antilhas de Castela.
Em Cabo Verde e S. Tomé os movimentos migratórios foram definidos por outros
impulsos, estando-se perante uma imposiçäo das contingências da economia atlântica. A
necessidade de mäo-de-obra escrava, do outro lado do Atlântico, conduziu à saída forçada dos
africanos, tendo em Cabo Verde e S. Tomé dois eixos importantes do movimento a partir do
século dezasseis. Tal conjuntura levou à vinculaçäo extrema das ilhas ao litoral africano com
o reforço das conexöes económicas e humanas.
No grupo, que divergia a partir de Santiago, evidenciam-se os lançados ou tangomaos, que
foram um dos suportes mais importantes do comércio ilegal de escravos. Eles eram na sua
maioria africanos "ladinizados" que aí se aventuravam ao serviço dos mercadores
caboverdeanos.
Os fenómenos emigratórios açoriano e madeirense ultrapassaram as barreiras do mundo
insular e projectaram-se além fronteiras no Brasil e no Oriente. Num e noutro espaço os
insulares foram importantes como povoadores, guerreiros e descobridores. Para muitos filhos-
segundos esta foi a única alternativa que a sociedade lhes possibilitava no acesso a comendas,

85
.Arquivo Regional da Madeira, Misericórdia do Funchal, nº.684, fls.785-790vº.
títulos e cargos: primeiro a defesa das praças africanas a atrair a atençäo dos bravos
cavaleiros, depois as promissoras terras orientais e, finalmente, o Brasil.
No caso madeirense existiu uma relaçäo permanente, desde o século quinze, com as praças
marroquinas, sendo eles que acudiam com o cereal e mais mantimentos para as guarniçöes das
praças, os homens para as defender, o dinheiro e materiais de construçäo para as fortalezas.
Muitos aí morreram na defesa das possessöes e outros que adquiriram títulos e honras. As
praças eram um local de "diversäo" para a cavalaria madeirense. Por outro lado alguns
madeirenses usufruíram de cargos governativos, sendo exemplo disso o caso de António de
Freitas, provido em 1508 no de comendador de Safim, Fernäo Gomes de Castro, em 1610
nomeado capitäo de Tanger. Talvez, por isso mesmo, foi com desagrado que os madeirense
encararam a política de abandono de muitas das praças por D.Joäo III e aderiram em força à
campanha africana de D.Sebastiäo.
Madeirenses e açorianos tiveram um papel importante na conquista e defesa das feitorias
do oceano Indico. Pelo lado madeirense evidenciaram-se Joäo Rodrigues de Noronha como
comandante de Ormuz (1521), Jordäo de Freitas, capitäo de Maluco (1533) e António de
Abreu, capitäo de Malaca (1522).

A EMIGRAÇÄO DO SÉCULO DEZANOVE: UMA NOVA REALIDADE DOS


MOVIMEN TOS MIGRATÓRIOS INSULARES

A emigraçäo do século dezanove apresenta características completamente diferentes desta


primeira vaga. Até agora estávamos perante uma saída feita de acordo com as solicitaçöes
externas, onde se aliava o desejo de aventura aos interesses económicos. A partir de entäo
foram os impulsos internos que conduziram à saída forçada dos insulares. A terra que os
recebera há quatrocentos anos apresentava-se agora madrasta, incapaz de satisfazer as
necessidades vitais e, por isso mesmo, impelia-os para a aventura americana. Tudo isto surge
como resultado das mutaçöes da conjuntura interna e internacional.
A centúria oitocentista foi um momento de particular significado para a História das ilhas
Atlânticas. Várias foram as alteraçöes a que as mesmas serviram de palco. A mais relevante
foi a desarticulaçäo entre o movimento demográfico e a situaçäo depressionária da economia.
A partir do século dezanove as fomes sucederam-se com alguma frequência em Cabo
Verde e o mesmo se poderá dizer para a Madeira e os Açores. Entretanto do outro lado do
Atlântico estávamos perante um momento de euforia económica, com a mineraçäo ou safra
agro-industrial, que näo se compadecia com as medidas de aboliçäo da escravatura. Perante
isto o ilhéu, desapossado da terra pelo regime sucessório e de mando económico, abandona o
seu próprio meio e sai rumo a tais destinos, aliciado pelas propostas dos engajadores, a
substituir o escravo. Daí resultou que muitos comentadores políticos consideravam esta
emigraçäo como uma forma de "escravatura branca".
Em síntese a emigraçäo oitocentista materializavou a simbiose do sonho e ambiçäo
individual com os impulsos e exigências da conjuntura emergente da política abolicionista.
Neste surto emigratório demarca-se no caso da Madeira uma incidência nas ilhas (Antilhas e
Hawaii), enquanto os açorianos e caboverdeanos preferem os espaços continentais (Brasil e
E.U.A.). No último caso as rotas da baleaçäo ligavam-se com os dois arquipélagos, facilitando
o movimento. Aí os insulares foram como a mäo-de-obra necessária à substitutiva dos
escravos nos canaviais, mineraçäo e pecuária.
O caso das ilhas de Säo Tomé e Príncipe apresenta-se diferente pois aqui a ingente falta de
mäo-de-obra para a safra do cacau e do café incentivaram o movimento imigratório. Primeiro
de escravos e depois com a aboliçäo da escravatura (1854) de trabalhadores ou serviçais. A
forma de recrutamento de mäo-de-obra foi acerrimamente criticada pelos ingleses. No período
de 1876 a 1920 entraram nas ilhas mais de cento e quarenta mil trabalhadores para o trabalho
das roças, provenientes de Moçambique, Angola e Cabo Verde.
No arquipélago açoriano a emigraçäo iniciou a sua marcha já na segunda metade do século
XVIII orientada pela coroa para o povoamento da parte sul do Brasil. Todavia é no século
seguinte que o fenómeno se afirma em pleno, continuando a ser o seu destino preferencial o
Brasil, logo seguido das ilhas Sandwich, a que se veio juntar nas duas últimas décadas os
Estados Unidos da América, como resultado da presença açoriana na pesca da baleia.
A emigraçäo madeirense atingiu o auge na década de quarenta do século dezanove, para
isso em muito contribuíram a perseguiçäo aos protestantes (1844-46) e a crise do comércio do
seu vinho, principal sustento das sua gentes, a partir de 1830 e a fome que alastrou
a toda a ilha em 1847. No período de 1834 a 1872 saíram mais de trinta mil madeirenses com
destino ao Brasil e Antilhas. Apenas a ilha de Demerara recebeu entre 1841 e 1889 cerca de
quarenta mil, enquanto o Hawaii, entre 1878 e 1913, atraiu mais de vinte mil.
Nas ilhas da Guiné a conjuntura foi idêntica, evidenciando-se em Cabo Verde motivada
pelas fomes, que foram uma constante da História das ilhas nos séculos dezoito e dezanove.
Todavia o período de maior incidência teve lugar no período de 1863-64. A América, o Brasil
e o continente português foram os principais destinos, aproveitando-se as rotas de comércio
que entäo persistiam.
SEGUNDA PARTE

O MUNDO ATLÅNTICO
I.A POLíTICA ATLÅNTICA

O século quinze marca o início da afirmaçäo do Atlântico, novo espaço oceânico revelado
pelas gentes peninsulares. O mar, que até meados do século quatorze se mantivera alheio à
vida do mundo europeu, atraiu as suas atençöes e em pouco tempo veio substituir o mercado e
via mediterrânicos. A abertura, como vimos, foi titubeante, mas geradora, no início, de
inúmeros conflitos: primeiro foi a disputa pela posse das Canárias, que se alargou, depois, ao
próprio domínio do mar oceânico. Portugueses e castelhanos entraram em aceso confronto,
servindo o papado de árbitro nesta partilha. Os franceses, ingleses e holandeses que, num
primeiro momento, foram apenas espectadores atentos, entraram também na disputa a
reivindicar um mare liberum e o usufruto das novas rotas e mercados. Nestas circunstâncias o
Atlântico näo foi apenas o mercado e via comercial, por excelência, da Europa, mas também
um dos principais palcos em que se desenrolaram os conflitos que definem as opçöes políticas
das coroas europeias, expressas por meio da guerra de corso.
É esta contenda político-económica, que o oceano gerou, o tema que prenderá agora a
nossa atençäo. Aqui faremos um breve sumário das questöes, pondo em evidência as que nos
parecem imprescindíveis para a compreensäo do protagonismo dos espaços insulares. Na
realidade, como teremos oportunidade de ver, as ilhas foram os principais pilares da estratégia
de domínio do oceano, e por isso mesmo todas as iniciativas neste ambito repercutiram-se de
modo evidente nelas.

A LUTA PELA POSSE DO OCEANO

Quando os portugueses se lançaram, no século XV, à exploraçäo do oceano encontraram, à


partida, um primeiro obstáculo. As Canárias, que täo necessárias se apresentavam para o
controlo exclusivo do oceano, estavam já a ser conquistadas por Jean Betencourt, um estranho
navegador, financiado pelos mercadores de Sevilha. Esta foi a primeira dificuldade, que
causou inúmeros problemas à plena afirmaçäo do mare clausum lusitano. Em face disso, só
havia uma possibilidade: tomar posse de uma das ilhas por conquistar (La Gomera, por
exemplo) e avançar com o povoamento da Madeira, que poderia funcionar como área
suplementar no apoio ao avanço das viagens para o Sul.
A esta seguiram-se outras dificuldades de igual importância que entravaram o progresso das
viagens para Sul. A procura de uma rota de regresso da costa africana além do Bojador,
preocupou os marinheiros e entravou a progresso das viagens para Sul. A volta pelo largo com
a passagem pelos Açores foi a soluçäo mais indicada, mas tardou em ser descoberta. Em
1434, ultrapassado o Bojador, o principal problema näo estava no avanço das viagens, mas
sim na forma de assegurar a exclusividade a partir daí, já que na área aquém deste limite isso
näo fora conseguido. Primeiro foi a concessäo em 1443 ao infante D. Henrique do controlo
exclusivo das navegaçöes e o direito de fazer guerra a sul do mesmo cabo. Depois a procura
do beneplácito papal, na qualidade de autoridade suprema estabelecida pela "res publica
christiana" para tais situaçöes. As bulas de Eugénio IV (1445), Nicolau V (1450 e 1452)
preludiaram o que veio a ser definido pela célebre bula "Romanus Pontifex" de 8 de Janeiro
de 1454 e "inter coetera" de 13 de Março de 1456. Nela se legitimava a posse exclusiva aos
portugueses dos mares além do Bojador pelo que a sua ultrapassagem para nacionais e
estrangeiros só seria possível com a anuência do infante D.Henrique.
A presença de estrangeiros, a partir deste momento, foi considerada um serviço ao referido
infante, como sucedeu com Cadamosto, António da Noli, Usodimare, Valarte e Martim
Behaim, ou uma forma de usurpar o domínio e afronta ao papado. Na última situaçäo surgem
os castelhanos a partir da década de setenta, procurando intervir nas costa da Guiné como
forma de represália às pretensöes portuguesas pela posse das Canárias. Näo obstante as
medidas repressivas definidas em 1474 contra os intrusos no comércio da Guiné a presença
castelhana continuará a ser um problema de difícil soluçäo, apenas alcançado com cedências
mútuas através do tratado exarado em 1479 em Alcáçovas e depois confirmado a 6 de Março
do ano seguinte em Toledo. A cedência portuguesa estabeleceu a primeira partilha política do
oceano, sancionada pelo papa Sixto IV por bula "Aeterni patris" de 21 de Junho de 1481.
A partir de entäo ficava legitimada a posse exclusiva para Portugal do mar além do
Bojador. A esta partilha do oceano, de acordo com os paralelos, sucedeu mais tarde outra no
sentido dos meridianos, provocada pela viagem de Colombo. O encontro do navegador em
Lisboa com D.Joäo II, no regresso da primeira viagem, despoletou, de imediato, o litígio
diplomático, uma vez que o monarca português entendia estarem as terras descobertas na sua
área de domínio. Mas, apressadamente, os reis católicos tiraram partido da presença de um
castelhano à frente do papado -- Alexandre VI -- e procuraram legitimar a posse das terras
descobertas como pertencendo à sua fatia do Atlântico, por bula de 4 de Maio de 1493,
alterada, depois, por outra de 26 de Setembro.
O conflito só encontrou soluçäo com novo tratado, assinado em 7 de Julho de 1494 em
Tordesilhas e ratificado pelo papa Júlio II em 24 de Janeiro de 1505. A partir de entäo ficou
estabelecida uma nova linha divisória do oceano, a trezentos e setenta léguas de Cabo Verde.
Para os demais povos europeus, habituados desde muito cedo às lides do mar, só lhes
restava uma reduzida franja do Atlântico, a norte, e o Mediterrâneo. Mas tudo isto seria
verdade se fosse atribuída força de lei internacional às bulas papais, o que na realidade näo
sucedia. O cisma do Ocidente, por um lado, e a desvinculaçäo de algumas comunidades da
alçada papal, por outro, retiraram aos actos jurídicos a medieval plenitude "potestatis". Deste
modo em oposiçäo a tal doutrina definidora do mare clausum antepöe-se a do mare liberum,
que teve em Grócio o principal teorizador. A última visão da realidade oceânica norteou a
intervençäo de franceses, holandeses e ingleses neste espaço86.
86
Confronte-se Frei Serafim de Freitas, Do Justo Império Asiático dos Portugueses,vol.I, Lisboa, 1960.
A guerra de corso teve uma incidência preferencial nos mares circunvizinhos do Estreito
de Gibraltar e ilhas, e levou ao domínio de múltiplos espaços de ambas as margens do
Atlântico. Em especial, podemos definir dois espaços de permanente intervenção destes: os
Açores e a Costa da Guiné e da Malagueta.
Os ingleses iniciaram em 1497 as sucessivas incursöes no oceano, ficando célebres as
viagens de W.Hawkins (1530), John Hawkins (1562-1568) e Francis Drake (1578, 1581-
1588). Entretanto os franceses fixaram-se na América, primeiro no Brasil (1530, 1555-1558),
depois em San Lorenzo (1541) e Florida (1562-1565). Os huguenotes de La Rochelle
afirmaram-se como o terror dos mares, tendo assaltado em 1566 a cidade do Funchal.
A última forma de combate ao exclusivismo do atlântico peninsular foi a que ganhou maior
adesäo dos estados europeus no século XVI. A partir de princípios da centúria o principal
perigo para as caravelas näo resultou das condiçöes geo-climáticas, mas sim da presença de
intrusos, sempre disponíveis para assalta-las. Deste modo a navegaçäo foi dificultada e as
rotas comerciais tiveram de ser adequadas a uma nova realidade: surgiu a necessidade de
artilha-las e uma armada para as comboiar até porto seguro. As insistentes reclamações,
nomeadamente dos vizinhos de Santiago, levaram a coroa a estabelecer um conjunto de
armadas para protecção e defesa das áreas e rotas de comércio: costa ocidental do reino, litoral
algarvio, dos Açores, da costa e golfo da Guiné, do Brail87. Eis algumas das preocupaçöes dos
peninsulares nos séculos XVI e XVII.
Cedo os franceses começaram a infestar os mares circum-vizinhos da Madeira (1550,
1566), Açores (1543, 1552-53, 1572) e Cabo Verde, e depois seguiram-lhe o encalço os
ingleses e holandeses. Os primeiros fizeram incidir preferencialmente a sua acçäo nos
arquipélagos da Madeira e Açores, patente na primeira metade do século XVI, pois em Cabo
Verde apenas se conhecem alguns assaltos em 1537-1538 e 1542. Os navegantes do norte
escolhiam os mares ocidentais ou a área do Golfo e costa da Guiné, tendo os mares circum-
vizinhos das ilhas de Santiago e S.Tomé como o principal centro de operaçöes. A partir da
uniäo peninsular sucederam-se inúmeros assaltos franceses à Madeira, no que tiveram a
pronta resposta de Tristäo Vaz da Veiga.
Nos arquipélagos de Cabo Verde e S.Tomé, ao perigo inicial dos castelhanos e franceses,
vieram juntar-se os ingleses e, fundamentalmente, os holandeses. Na década de sessenta o
corso inglês era aí exercido por John Hawkins e John Lovell. É de salientar que os ingleses
näo macularam a Madeira, pois aí tinham uma importante comunidade residente e empenhada
no seu comércio. a sua acçäo incidiu, preferencialmente, nos Açores (1538, 1561, 1565, 1572)
e Cabo Verde.
A presença de corsários nos mares insulares deve ser articulada, por um lado, de acordo
com a importância que estas ilhas assumiram na navegação atlântica e, por outro, pelas
riquezas que as mesmas geraram, despertadoras da cobiça destes extranhos. Mas se estas
condições definem a incidência dos assaltos, os conflitos politicos entre as coroas europeias
justificam-nos à luz do direito da época. Deste modo na segunda metade do século XVI o
afrontamento entre as coroas peninsulares definiu a presença dos castelhanos na Madeira ou
em Cabo Verde, enquanto os conflitos entre as famílias régias europeias atribuiam a
legitimidade necessária a estas iniciativas, fazendo-as passar de mero roubo a acção de
represália: primeiro foi, desde 1517, o conflito entre Carlos V de Espanha e Francisco I de

87
Confronte-se -vitorino Magalhães Godinho, "As incidências da pirataria e da concorrência na economia marítima portuguesa no século XVI",
in Ensaios II, Lisboa, 1978, pp. 186-200.
França, depois os problemas decorrentes da união ibérica a partir de 1580. Esta última
situação é uma dado mais no afrontamento entre as coroas castelhana e inglesa despoletado a
partir de 1557.
O período que decorre nas duas décadas finais do século XVI é marcado por inúmeros
esforços da diplomacia europeia no sentido de conseguir a solução para as presas do corso.
Para isso Portugal e França haviam acordado em 1548 a criação de dois tribunais de
arbitragem, cuja função era anular as autorizações de represália e cartas de corso. Mas a sua
existência não teve reflexos evidentes na acção dos corsários. Note-se que é precisamente em
1566 que temos notícia do mais importante assalto francês a um espaço português. Em
Outubro de 1566 Bertrand de Montluc ao comando de uma armada composta de três
embarcações perpetrava um dos mais terríveis assaltos à vila Baleira e à cidade do Funchal.
Acontecimento parecido só o dos argelinos em 1616 no Porto Santo e Santa Maria, ou dos
holandeses em S. Tomé.
A mui nobre e rica cidade do Funchal durante quinze dias ficou a mando destes corsários,
que roubaram os produtos agrícolas (vinho e açúcar), profanaram as igrejas(a Sé do Funchal)
e aprisionaram muitos escravos. Parte desta presa foi leiloada no momento da partida com os
residentes, ou então vendida na ilha de La Palma, onde fizeram escala. Deste assalto ficaram
alguns relatos e testemunhos presenciais, mas o mais pungente e pormenorizado foi o de
Gaspar Frutuoso, que no livro das "Saudades da Terra" dedicado à Madeira descreve de modo
sucinto os acontecimentos e condena o descuido das suas gentes. Tal como refere a cidade
estava " mui rica de nuitos açucares e vinhos, e os moradores prósperos, com muitas alfaias e
ricos enxovais, muito pacífica e abastada, sem temor nem receio do mal que não cuidavam"88.
Uma das principais consequências deste assalto foi o maior empenho da coroa e
autoridades locais nos problemas da defesa da ilha e, principalmente, da sua cidade, que por
estar cada vez mais rica e engalanada despertava a cobiça dos corsários. O desleixo na arte de
fortificar e organizar as hostes custou caro aos madeirenses e, por isso, foi geral o desejo de
defender a ilha. Reactivaram-se os planos e recomendações anteriores no sentido de definir
uma eficaz defesa da cidade a qualquer ameaça. O regimento das ordenanças do reino (1549)
teve aplicação na ilha a partir de 1559, enquanto a fortificação teve regimentos(1567 e 1572) e
um novo mestre de obras, Mateus Fernandes.
O corso a partir da década de oitenta tomou outro rumo, sendo as diversas iniciativas uma
forma de represália à uniäo das duas coroas peninsulares. Ele ficou expresso na intervençäo de
diversas armadas: Francis Drake (1581-85), Conde de Cumberland (1589), John Hawkins,
Martin Forbisher, Thomas Howard, Richard Greenville e o Conde Essex (1597). Elas näo se
limitavam apenas ao assalto às
embarcaçöes peninsulares que regressavam à Europa carregadas de ouro, prata, açúcar e
especiarias, pois a sua acção foi também extensiva à terra firme onde intervinham à procura de
um abastecimento de víveres e água ou do volumoso saque, como sucedeu em 1585 em
Santiago e em 1587 na ilha das Flores.
A presença dos holandeses nesta disputa rege-se por condiçöes específicas. Eles porque
detinham importantes interesses na cultura açucareira americana, procuravam assegurar o
domínio de S.Tomé, Santiago e demais feitorias do comércio de escravos. A isso juntava-se o
empenho na manutençäo das rotas do tráfico e o objectivo de destruir os interesses açucareiros

88
. Ob. cit., livro segundo, 328.
da área. Em 1598 foi o ataque a Santiago e no ano imediato a S.Tomé. Na última destruíram
todos os engenhos em actividade.
Mais tarde, com a ocupaçäo da Baía e Pernambuco, os holandeses voltaram-se de novo
para a Guiné com o objectivo de dominarem as rotas do comercio dos escravos. Daqui
resultou a passagem em 1624 e 1625 de duas armadas para a Baía, com o objectivo de aí
tomar posiçäo, retornando depois em 1628 para conquistar Santiago e em 1641 para ocupar
S.Tomé e Angola. Nas duas últimas áreas mantiveram-se até 1648, momento em que foram
expulsos pelos portugueses.
Perante a incessante investida de corsários no mar e em terra firme houve necessidade de
definir uma estratégia de defesa adequada. No mar optou-se pelo necessário artilhamento das
embarcaçöes comerciais e pela criaçäo de uma armada de defesa das naus em trânsito. Esta
ficou conhecida como a armada das ilhas, fixa nos Açores e que daí procedia ao
comboiamento das naus até porto seguro. Em terra foi o delinear de um incipiente linha de
defesa dos principais portos, ancoradouros e baías, capaz de travar o possível desembarque
destes intrusos.

O SISTEMA DE FORTIFICAÇÄO DAS ILHAS

O sistema de defesa costeiro surge neste contexto com a dupla finalidade: desmobilizar ou
barrar o caminho ao invasor e de refúgio para populaçöes e haveres. Por isso a norma foi a
construçäo de fortalezas após uma ameaça e nunca de uma acçäo preventiva, pelo que após
qualquer assalto de grandes proporçöes sucedia, quase sempre, uma campanha para fortificar
os portos e localidades e organizar as milícias e ordenanças.
É disso exemplo o assalto dos huguenotes à cidade do Funchal em 1566, que provocou de
imediato uma reacçäo em cadeia das autoridades locais e da coroa na defesa do burgo. Na
verdade foi só a partir deste assalto que se pensou em organizar de forma adequada o sistema
defensivo da ilha. Primeiro foi a reorganizaçäo das milícias (1549), vigias (1567) e
ordenanças (1570), depois o plano para fortificar da cidade do Funchal (1572) a cargo de
Mateus Fernandes. Isto repetiu-se nas demais ilhas, sem nunca se ter conseguido definir uma
estrutura defensiva eficaz. As ilhas tiveram sempre as portas abertas ao exterior, sujeitando-se,
por isso mesmo, à presença destes intrusos.
A instabilidade provocada pela permanente ameaça dos corsários, a partir do último quartel
do século XV, condicionou o delineamento de um plano de defesa do arquipélago, assente
numa linha de fortificação costeira e de um serviço de vigias e ordenanças. Até ao assalto de
1566 pouca ou nenhuma atenção foi dada a esta questão ficando a ilha a as suas gentes
entregues à sua sorte. Em termos de defesa este assalto teve o mérito de empenhar a coroa e os
locais na definição de um adequado plano de defesa. Desde 1475, com o avolumar das
ameaças do corso, que os madeirenses solicitaram ao senhor da ilha que se empenhasse na
defesa da sua ilha com a construção de uma fortaleza na vila do Funchal. Mas só em 149389 D.
Manuel, Duque de Beja e senhor da ilha, estabeleceu um regimento para que se fizesse uma
"çerca e muros" na vila, a exemplo do que se havia feito em Setúbal. Os madeirenses
89
Arquivo Histórico da Madeira, vol.XVI, 1973, doc.169, pp. 284-288 (21 de Junho).
entenderam esta ordem como uma opressão o que levou ao adiamento da obra e só em 1513
começou a traçar-se esse plano sob orientação de João Cáceres, mestre de obras reais na ilha.
A primeira fase foi concluída em 1542, constando de um baluarte e uma cortina de muralha.
O assalto francês de 1566 veio a confirmar a ineficácia destas fortificações e a reinvindicar
uma maior atenção por parte das autoridades. Assim realmente aconteceu, pois pelo regimento
de 157290 foi estabelecido um plano de defesa a ser executado por Mateus Fernandes,
fortificador e mestre de obras. Daqui resultou o reforço do recinto abaluartado da fortaleza
velha, a construção de outra junto ao pelourinho e um lanço de muralha entre as duas. Esta
situação é testemunhada, em finais do século dezasseis por Gaspar Frutuoso:

Está a cidade amurada, da ribeira de Nossa Senhora do Calhau, junto da qual está
uma fortaleza nova, onde tem o capitão sua morada, donde defende o mais da cidade
que fica fora do muro, da banda de loeste até São Lázaro, e, pela ribeira de Nossa
Senhora do Calhau, vai o muro em compridão perto de meia légua pela terra dentro, a
entestar com rochas mais ásperas, fortes e defensáveis que ele mesmo, o qual
fabricado com cubelos e seteiras, da banda da ribeira tem tres portas, em que estão suas
vigias e guardas, pelas quais se serve a cidade, que fica da banda de loeste deste
muro para dentro e para fora. e no muro da banda do muro tem uma porta de serventia,
junto de Nossa Senhora do Calhau, e outra, mais no meio da cidade, junto dos
açougues,e outra, que é a mais principal, aos Varadouros, defronte da rua dos
Mercadores.
Meio tiro de besta desta porta principal está a casa da
Alfandega, mais próspera e de melhores oficinas que a da cidade de Lisboa,bem
armurada de cantaria e fechada pela terra e pelo mar, que está junto dela e nela bate
muitas vezes, quando há aí maresias.
Adiante logo da Alfândega um tiro de besta está a Fortaleza Velha, que é a
principal, situada sobre uma rocha, e tem pela banda do mar seis grandes e formosos
canos de água, que dela sai e nela nasce, na mesma rocha sobre que é fundada, e de
nenhuma maneira se pode tomar nem tolher, pela banda da terra, de nenhuns imigos; a
qual fortaleza tem, pela parte do mar, dois cubelos, como torres mui fortes, que
guardam o mesmo mar e artilharia, de que estão bem providos, e, pela banda da terra,
outros dois, que guardam toda a cidade por cima, por estarem mais altos que ela,
em a qual parte tem também um muro muito alto e forte, com uma fortíssima porta de
alçapão;...91".

O plano de defesa do Funchal completou-se no período da uniäo das duas coroas


peninsulares com a construçäo da Fortaleza de Santiago (1614-1621) consequente aumento do
troço de muralha costeira, e do Castelo de S. Filipe do Pico (1582-1637).
O espaço insular näo poderá considerar-se uma fortaleza inexpugnável, pois a
disseminaçäo por ilhas, servidas de uma extensa orla costeira impossibilitou uma iniciativa
concertada de defesa. Qualquer das soluçöes que fosse encarada, para além de ser muito
onerosa, näo satisfazia uma necessária política de defesa. Perante isto ela era sempre protelada

90
Rui Carita, O regimento de fortificação de D.Sebastião(1572)..., Funchal, 1984.

91
. Saudades da Terra, livro segundo, 109-110.
até que surgissem ameaças capazes de impelir à sua concretizaçäo. Na Madeira foi o assalto
de 1566. Nos Açores foi temor de idêntico assalto que levou à sua definição nas ilhas Terceira
e Faial.
O plano de defesa das ilhas açorianas começou a ser esboçado em meados do século
dezasseis por Bartolomeu Ferraz, como forma de resposta ao recrudescimento do corso, mas
só teve plena concretizaçäo no último quartel da centúria. Bartolomeu Ferraz apresentou à
coroa o seu rastreio: as ilhas de S.Miguel, Terceira, S. Jorge, Faial e Pico estavam expostas a
qualquer eventualidade de corsários ou hereges; os portos e vilas clamavam por mais
adequadas condiçöes de segurança. Segundo ele os açorianos precisavam de estar preparados
para isso, pois "ome percebido meo combatido"92. Daí terá resultado a reorganizaçäo do
sistema de defesa levado a cabo por D.Joäo III e D.Sebastiäo. Foram eles que reformularam o
sistema de vigilância e defesa através de novos regimentos. A construçäo do castelo de S.
Brás em Ponta Delgada e, passados vinte anos, do castelo de S. Sebastiäo no Porto de Pipas
(em Angra) e de um Baluarte na Horta, eis os resultados mais evidentes desta política.
Mais tarde, com a ocupaçäo castelhana do arquipélago açoriano, foi muito sentida a
necessidade de uma imponente fortaleza em Angra, capaz de guardar as riquezas em
circulaçäo e pô-las fora do alcance da cobiça de qualquer corsário e de suster os ânimos
exaltados dos angrenses. O início da construçäo do mais imponente reduto do espaço atlântico
teve lugar em 1592, a partir de um plano traçado por Joäo de Vilhena, e só ficou concluído em
1643.
A exemplo do castelo de S. Filipe de Angra, os castelhanos também construíram uma
fortaleza com o mesmo nome no Funchal, para além de terem concluído a linha defensiva da
praia funchalense com o forte de Santiago (1614). Neste campo foi incansável a iniciativa de
Tristäo Vaz da Veiga93, provido em 1585 no cargo de "geral e superintendente das coisas da
guerra", lugar idêntico ao assumido na Terceira por Juan Urbina, nomeado em 1583
governador das ilhas e mestre de campo do terço castelhano94.
Pior foi o estado em que permaneceram as ilhas da costa e golfo da Guiné pois as
insistentes acçöes de piratas e corsários näo foram suficientes para demover os insulares e
autoridades a avançar com um adequado sistema defensivo. Säo poucas as referências à defesa
destas ilhas mas o suficiente para atestar a sua precaridade. Ele resumia-se a pequenos
baluartes, muitas vezes sem qualquer utilidade.
Em S. Tomé começou a erguer-se a primeira fortaleza na Povoação com o capitão Álvaro
Caminha, que lhe chamava apenas torre, concluída com o seu sucessor Fernão de Melo. No
tempo de D. Sebastiäo, as constantes investidas de corsários franceses -ficou célebre o de
1567- levaram à construção da fortaleza de São Sebastião, concluída em 1576 e reformulada
em 1596. Todavia tornou-se ineficaz no assalto holandês de 1599 pelo que se ergueu outra de
apoio em Nossa Senhora da Graça.
Em Cabo Verde o empenho na defesa das povoações e portos costeiros tardou uma vez que
o principal alvo dos corsários, nomeadamente franceses, estava no mar. Mais do que construir
fortalezas havia necessidade de limpar os mares e as rotas da presença destes intrusos. Para
isso, e correspondendo aos pedidos incessantes dos moradores, a coroa criou uma armada para
92
. Arquivo dos Açores, Vol. V, 364-367 (1543); confronte-se Ibidem, vol. IV, 121-124 (sem data).

93
. Saudades da Terra, livro segundo, 199-211.

94
. Avelino de Freitas menezes, Os Açores e o domínio filipino (1580-1590), Angra do heróismo, 1987, 171,210.
guarda e defesa do mar e costa. Além disso a petição dos moradores da Ribeira Grande em
1542 apontava a necessidade de apetrechar o porto da cidade com um sistema de defesa
adequado. Os assaltos de Francis Drake a Santiago(1578 e 1585) levaram à construção de uma
fortaleza na Ribeira Grande apoiada por um lanço de muralha, no período filipino.
Esta preocupaçäo defensiva demonstra que o oceano deixou de ser o mare clausum luso-
castelhano passando a mare liberum de todos os europeus, com especial evidência para os
holandeses, ingleses e franceses, que se afirmaram como os principais agentes do novo
empório oceânico. No caso inglês a posiçäo hegemónica foi conquistada, em parte, à custa dos
tratados de amizade, celebrados com Portugal (1654, 1661).
No século dezassete os mecanismos comerciais estavam em mudança, afirmando-se, cada
vez mais, uma tendência para o proteccionismo económico, definida pelas companhias
comerciais e de legislaçäo restritiva: os holandeses criaram em 1629 a companhia das Indias
Ocidentais, os portugueses em 1649 a Companhia Geral do Comércio para o Brasil e os
ingleses em 1660 a Royal Adventuress in to Africa e, depois, em 1672, a Royal Campany of
England. A política monopolista e proteccionismo dos ingleses iniciou-se em 1651 com o
Acto de Navegaçäo e teve continuidade nos actos posteriores de 1661 a 1696. Em França a
política do cardeal Richelieu (1624-1642) havia dado o mote para a nova realidade político
comercial.
O mar que séculos atrás fora apenas um privilégio dos peninsulares era agora património
dos diversos empórios marítimos europeus. A anterior divisäo política deixou de ser uma
realidade e deu lugar à era dos imperativos económicos.

O ATLÂNTICO E AS ILHAS NOS SÉCULOS XVIII E XIX

As mudanças no domínio político e económico operadas ao longo dos séculos dezoito e


dezanove näo retiraram às ilhas a funçäo primordial de escala e espaço de disputa do mar
oceano. A frequência de embarcaçöes manteve-se enquanto o corso ficou marcado por uma
forte escalada, entre finais da primeira centúria e princípios da seguinte. Aos tradicionais
corsários de França, Inglaterra, Holanda vieram juntar-se os americanos do norte e sul.
Nestas circunstâncias as ilhas foram de novo confrontadas com uma conjuntura de
instabilidade, idêntica à de um século antes. Ela foi má para o comércio e segurança das
populaçöes insulares. Entre 1763 a 1831 as ilhas da Madeira e Açores foram confrontadas
com as ameaças e intervençäo do corso europeu (franceses, ingleses e espanhóis) e americano,
salientando-se nos últimos a represália dos insurgentes argentinos. Ambos os arquipélagos
evidenciaram-se como a encruzilhada de intercepçäo do fogo resultante da guerra de
represália americana e europeia. Por isso os interesses económicos insulares foram
molestados, nos períodos de maior incidência.
O corso europeu incidia preferencialmente sobre as embarcaçöes espanholas e francesas e
motivava uma resposta violenta das partes molestadas, como sucederá com a investida
francesa contra os ingleses em 1793, 1797, 1814. Mas os últimos foram de todos aqueles que
actuaram com maior segurança, pois haviam montado um plano de domínio do Atlântico,
servindo-se do Funchal como principal porto de apoio para as suas incursöes.
O mar açoriano era o alvo preferencial dos corsários americanos pelo que a maioria dos
seus assaltos têm aí lugar. As principais vítimas do corso americano foram os portugueses e
espanhóis. A presença dos corsários americanos surge como consequência da Guerra da
Independência dos Estados Unidos da América do Norte (1770-1790) a que se aliaram, a
partir de 1816, os insurgentes das colónias castelhanas. Enquanto na Madeira a actividade do
insurgente é mais evidente na década de oitenta do século XVIII, nos Açores demarca-se no
período de 1814 a 1816, ficando célebre a batalha naval da Horta em 1814.
Os insurgentes actuaram a partir de 1816, sendo as suas investidas " consequência da parte
que Portugal tinha tomado na guerra actualmente existente trazia ordens de cativar todos os
meios que encontrasse pertencentes aquela naçäo e igualmente espanhóis"95. O facto de a
tripulaçäo ser composta por ingleses e espanhóis levou as autoridades portuguesas a
considerá-los como piratas e nunca como corsários. Os mares dos Açores mantiveram-se
como principal palco de acçäo. Para obstar à sua investida, estabeleceu-se a patrulha dos
mares açorianos com duas embarcaçöes96.
Em Cabo Verde passava-se algo diferente, sendo a presença corsária derivada da represália
francesa, de que säo notórias as duas invasöes da cidade da Praia (1712 e 1781) e uma de
Santo Antäo (1712) e Brava (1798).
A permanente ameaça de corsários redobrou o empenho nas obras de defesa, que resultaram
várias campanhas, entre finais do século dezoito e princípios do seguinte. A incidência foi
maior ilhas da Madeira, S. Miguel e Terceira, as mais fustigadas pela presença e acçäo dos
corsários.
Concluídas as obras de restauro das fortificaçöes, apaziguado o ímpeto dos corsários,
viveu-se, a partir da década de trinta, um período de relativa acalmia, seguido nas décadas de
cinquenta e sessenta com novas campanhas de rectificaçäo dos recintos fortificados, conforme
os princípios orientadores da Engenharia Militar. Isto näo tem paralelo nas ilhas de Cabo
Verde, onde as dificuldades económicas com que as populaçöes se deparavam
inviabilizavaram tais medidas, näo obstante o interesse demonstrado por alguns governadores.
Desde o último quartel do século XVIII, a Engenharia Militar havia adquirido um novo
fôlego, procurando adequar os recintos fortificados aos avanços da poliorcética e pirobalística.
Nos diversos estudos e levantamentos realizados reconheceu-se a urgência da sua rectificaçäo.
Em 179897 enunciava-se que as fortificaçöes açorianas eram alheias aos mais elementares
princípios da arte de fortificar, ao mesmo tempo que se tomaram medidas rigorosas quanto ao
restauro ou reconversäo, punindo os que actuavam de modo contrário ao estabelecido. Com o
alvorecer do século XIX, as intervençöes da Engenharia Militar iam no sentido de as adequar
aos princípios da teoria de fortificaçäo e conjuntura insular. Em 181598, numa memória sobre
o porto de Angra, dizia-se que um plano de defesa deveria ter em conta os seguintes aspectos:
conhecimento do terreno, qualidade e disposiçäo do recinto fortificado, forças, artilharia e
muniçöes disponíveis. E, trinta e nove anos depois99, afirmava-se, de modo peremptório, que
95
. Arquivo Histórico Ultramarino, Açores, maço 69.

96
. idem, - ibidem, maço 79.

97
. Idem, Ibidem, maço 19.

98
. Idem, Ibidem, maço 65.

99
. Arquivo Histórico Militar, 3/9/105 E-25.
"näo basta ter grandes baterias e muitas obras de fortificaçäo, é preciso que tudo isto seja
disposto e construído segundo as regras fundamentais da ciência e da arte em harmonia com
os meios de agressäo", daí a necessidade da referida visita e de um plano adequado de defesa.
A partir daqui surgiram as campanhas de reparo e rectificaçäo das fortificçöes da área
costeira. No século XIX o estado daquelas disponíveis para os três arquipélagos era de tal
modo lastimável que muitos tiveram que ser abandonados, pelo estado de ruína em que se
encontravam ou pela inadequaçäo ao fins que estavam vocacionadas. Exemplo disso é a ilha
de S. Jorge onde apenas dois baluartes estavam em estado conveniente100. Todavia é
necessário dizer que as campanhas da engenharia militar neste período quase que se resumiu a
verificar o facto, sendo poucas ou nulas as medidas de valorizaçäo do parque defensivo
costeiro. Na verdade a linha de defesa disponível assumia pouco utilidade numa época em que
toda a acçäo dos corsários se desenrolava no mar.

A NOVA GEOGRAFIA ECONÓMICA

Tal como tivemos oportunidade de afirmar, a definiçäo dos espaços políticos fez-se,
primeiro de acordo com os paralelos e, depois, com o avanço dos descobrimentos para
Ocidente, no sentido dos meridianos. A expressäo real resultava apenas da conjuntura
favorável e do acatamento pelos demais estados europeus. Mas o oceano e terras circundantes
podiam ainda ser subdivididos em novos espaços de acordo com o seu protagonismo
económico. Dum lado as ilhas orientais e ocidentais, do outro o litoral dos continentes
americano e africano.
A partilha näo resultou dum pacto negocial, mas sim da
confluência das reais potencialidades económicas de cada uma das áreas em causa. Neste
contexto assumiram particular importância as condiçöes internas e externas de cada área. As
primeiras foram resultado dos aspectos geo-climáticos, enquanto as últimas derivam dos
vectores definidos pela economia europeia. A partir da maior ou menor intervençäo de ambas
as situaçöes estaremos perante espaços agrícolas, vocacionados para a produçäo de excedentes
capazes de assegurar a subsistência dos que haviam saído e dos que ficaram na Europa, de
produtos adequados a um activo sistema de trocas inter-continentais, que mantinha uma forte
vinculaçäo do velho ao novo mundo. O açúcar e o pastel foram os principais produtos
definidores da última conjuntura.
De acordo com isso podemos definir múltiplos e variados espaços agro-mercantis: áreas
agrícolas orientadas para as trocas com o exterior e assegurar a subsistência dos residentes;
áreas de intensa actividade comercial, vocacionadas para a prestaçäo de serviços de apoio,
como escalas ou mercados de troca. No primeiro caso incluem-se as ilhas orientais e
ocidentais e a franja costeira da América do sul, conhecida como Brasil. No segundo merecem
referência as ilhas que, mercê da posiçäo ribeirinha da costa (Santiago e S.Tomé), ou do
posicionamento estratégico no traçado das rotas oceânicas (como sucede com as Canárias,
Santa Helena e Açores), fizeram depender o processo económico disso.

100
. Ibidem, 3/9/104 D 1-B.
A estratégia de domínio e valorizaçäo económica do Atlântico passava necessariamente
pelos pequenos espaços que polvilham o oceano. Foi nos arquipélagos (Canárias e Madeira)
que se iniciou a expansäo atlântica e foi neles que a Europa assentou toda a estratégia de
desenvolvimento económico em curso nos séculos XV e XVI.
Ninguém melhor que os portugueses entendeu esta realidade que, por isso mesmo,
definiram para o empório lusíada um carácter anfíbio. Ilhas desertas ou ocupadas, bem ou mal
posicionadas para a navegaçäo, foram os verdadeiros pilares do empório português no
Atlântico. Talvez, por isso mesmo, Frédéric Mauro tenha sido levado a afirmar täo
peremptoriamente: " iles sans doute, mais iles aussi importants que des continents"101. Opiniäo
idêntica já haviam manifestado Fernand Braudel, e Pierre Chaunu, sendo secundados por
Charles Verlinden e Vitorino Magalhäes Godinho.
Foi precisamente F.Braudel quem pela primeira vez se apercebeu desta realidade,
atribuindo aos arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias o nome de Mediterrâneo
Atlântico, isto é a finisterra da economia mediterrânica e o princípio da nova economia
atlântica. Entretanto Pierre Chaunu, anotou esta realidade e confrontou-a com aquilo a que
chamou "Mediterrâneo Americano" (Antilhas). Desde entäo ficaram estabelecidas duas áreas
para o rosário de ilhas atlânticas. Em face disto a abordagem e conhecimento das sociedades
insulares é um dos domínios da pesquisa histórica muito solicitado nas últimas décadas, como
o demonstra a vasta produçäo bibliográfica.
Os autores supracitados exerceram um papel decisivo na afirmaçäo historiográfica deste
espaço ao permitirem a inserçäo no âmbito mais vasto da vivência atlântica, valorizando o
inter-relacionamento com o litoral africano, americano e europeu.

101
. Des produits et des hommes, Paris, 1972, 53.
II.AS ESCALAS DO OCEANO: AS ILHAS

O Atlântico surge, a partir do século XV, como o principal espaço de circulaçäo dos
veleiros, pelo que se definiu um intrincado liame de rotas de navegaçäo e comércio que
ligavam o velho continente às costas africana e americana e as ilhas. Esta múltiplicidade de
rotas resultou da complementaridade económica das áreas insulares e continentais e surge
como consequência das formas de aproveitamento económico aí adoptadas. Mas a isso
deveräo juntar-se as condiçöes geofísicas do oceano, derivadas das correntes e ventos que
delinearam o traçado das rotas e os rumos das viagens.
Neste contexto a mais importante e duradoura de todas as rotas foi sem dúvida aquela que
ligava as Indias (ocidentais e orientais) ao velho continente. Ela galvanizou o empenho dos
monarcas, populaçöes ribeirinhas e acima de tudo os piratas e corsários, sendo expressa por
múltiplas escalas apoiadas nas ilhas que polvilhavam as costas ocidentais e orientais do mar:
primeiro as Canárias e a Madeira, depois Cabo Verde, Santa Helena e os Açores.
Nos três arquipélagos, definidos como Mediterrâneo Atlântico, a intervençäo nas grandes
rotas faz-se a partir de algumas ilhas, sendo de referir a Madeira, Gran Canária, La Palma, La
Gomera, Tenerife, Lanzarote e Hierro, Santiago, Flores e Corvo, Terceira e S. Miguel. Para
cada arquipélago firmou-se uma ilha, servida por um bom porto de mar como o principal eixo
de actividade. No mundo insular português, por exemplo, evidenciaram-se, de forma diversa,
as ilhas da Madeira, Santiago e Terceira como os principais eixos.
As rotas portuguesas e castelhanas apresentavam um traçado diferente. Enquanto as
primeiras divergiam de Lisboa, as castelhanas partiam de Sevilha com destino às Antilhas,
tendo como pontos importantes do seu raio de acçäo os arquipélagos das Canárias e Açores.
Ambos os centros de apoio apresentavam-se sob soberania distinta: o primeiro era castelhano
desde o século XV, enquanto o segundo português, o que näo facilitou muito o imprescindível
apoio. Mas por um lapso tempo (1585-1642) o território entrou na esfera de domínio
castelhano, sem que isso tivesse significado maior segurança para as armadas. Mas neste
período intensificaram-se as operaçöes de represália de franceses, ingleses e holandeses. As
expedições (tivemos em 1581 as de D.Pedro Valdés e D. Lope de Figueroa e depois as do
Marquês de Santa Cruz, em 1582 e 1583) organizadas pela coroa espanhola na década de
oitenta com destino à Terceira tinham uma dupla missão: defender e comboiar as armadas das
Índias até porto seguro, em Lisboa ou Sevilha, e ocupar a ilha afim de aí instalar uma base de
apoio e defesa das rotas oceânicas.
A escala açoriana justificava-se mais por necessidade de protecçäo das armadas do que por
necessidade de reabastecimento ou reparo das embarcaçöes. Era à entrada dos mares
açorianos, junto da ilha das Flores, que se reuniam os navios das armadas e se procedia ao
comboiamento até porto seguro na península, furtando-os à cobiça dos corsários, que
infestavam os mares. A necessidade de garantir com eficácia tal apoio e defesa das armadas
levou a coroa portuguesa a criar, em data anterior a 1527, a Provedoria das Armadas, com
sede na cidade de Angra102.
Desde o início que a segurança das frotas foi uma das mais evidentes preocupaçöes para a
navegaçäo atlântica, pelo que ambas as coroas peninsulares delinearam, em separado, o seu
plano de defesa e apoio aos navios. Em Portugal tivemos, primeiro, o regimento para as naus
da India nos Açores, promulgado em 1520, em que foram estabelecidas normas para impedir
que as mercadorias caíssem nas mäos da cobiça do contrabando e corso.
Cedo foi reconhecida a insuficiência destas iniciativas, optando-se por uma estrutura
institucional, com sede em Angra, capaz de coordenar todas as tarefas. A nomeaçäo em 1527
de Pero Anes do Canto para provedor das armadas da India, Brasil e Guiné, marca o início da
viragem. Ao provedor competia a superintendência de toda a defesa, abastecimento e apoio às
embarcaçöes em escala ou de passagem pelos mares açorianos. Além disso estava sob as suas
ordens a armada das ilhas, criada expressamente para comboiar, desde as Flores até Lisboa,
todas aquelas provenientes do Brasil, India e Mina. No período de 1536 a 1556 há notícia do
envio de pelo menos doze armadas com esta missäo.
Depois procurou-se garantir nos portos costeiros do arquipélago um ancoradouro seguro,
construindo-se as fortificaçöes necessáriasa. Em 1543 Bartolomeu Ferraz traçou um plano de
defesa alargado a todo o arquipélago com tal objectivo. Os motivos disso säo claros: "porque
as ilhas Terceiras importaräo muito assy pelo que per sy valem como por serem o velhacoute e
socorro muy principal das naos da India e os franceses serem täo desarrozoados que justo vel
injusto tomäo tudo que podem "103.
Era esta estrutura de apoio que faltava aos castelhanos nesta área considerada crucial para
a navegaçäo atlântica que os levou, muitas vezes, a solicitarem o apoio das autoridades
açorianas. Mas a ineficácia ou a necessidade de uma guarda e defesa mais actuante obrigou-os
a reorganizar a carreira, criando o sistema de frotas. Desde 1521 as frotas passaram a usufruir
de uma nova estrutura organizativa e defensiva. No começo foi o sistema de frotas anuais
artilhadas ou escoltadas por uma armada. Depois a partir de 1555 o estabelecimento de duas
frotas para o tráfico americano: Nueva Espana e Tierra Firme.
O activo protagonismo do arquipélago açoriano e, em especial, da ilha Terceira é
referenciado com certa frequência por roteiristas e marinheiros que nos deram conta das
viagens ou os literatos açorianos que presenciaram a realidade. Todos falam da importância
do porto de Angra que, no dizer de Gaspar Frutuoso, era "a escala do mar poente". Entretanto
Pompeo Arditi havia já reafirmado em 1567 a importância da terra terceirense para a
navegaçäo parecendo-lhe "que Deus pöe milagrosamente a ilha no meio de täo grande oceano
para salvaçäo dos míseros navegantes, que muitas vezes lá chegam sem mastros nem velas, ou
sem mantimentos e aí se fornecem de tudo"104. O Pe Luís Maldonado valoriza a importância
desta função do porto de Angra na vida da população terceirense:

"Estava a ilha Terceira the este tempo a terra mais prospera em riquezas, e
abundancias que encarecer se pode; porque como todos os annos fosse demandada de
flotas das Indias de Castella, e naos do Oriente, e outrosi de todos os navios que
102
. Cobfronte-se o nosso estudo sibre O Comércio inter-insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, 17-24.

103
. Arquivo dos Açores, vol. V, 364-367.

104
. "Viagem...", in Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, VI, Angra do Heroismo, 1968, 179.
vinhão das conquistas do Brazil, e Guiné, na qual se vinhão todos reforcejar, e nella
achavão abundancias de que dentro em vinte,e coatro horas tomavão tudo o de que
necessitavão, nadava verdadeiramente a ilha em rios de prata e ouro. Apenas que
chegava qualquer destas frotas, ou armadas quando imidiatamente concorrião á
Ribeira do porto dAngra as gentes de toda a ilha, hus com as casas, outros com as aves,
outros com as frutas, outros com os gados, outros com panos de linho..."105.

A participaçäo do arquipélago madeirense nas grandes rotas oceânicas foi esporádica,


justificando-se a ausência pelo seu posicionamento marginal no seu traçado ideal. Mas a ilha
näo ficou alheia ao roteiro atlântico, evidenciando-se em alguns momentos como uma escala
importante para as viagens portuguesas com destino ao Brasil, Golfo da Guiné e India.
Inúmeras vezes a escala madeirense foi justificada mais pela necessidade de abastecer as
embarcaçöes de vinho para consumo a bordo do que pela falta de água ou víveres frescos. Não
se esqueça que o vinho era um elemento fundamental da dieta de bordo, sendo referenciado
pelas suas qualidades na luta contra o escorbuto. Acresce ainda que este vinho tinha a garantia
de não se deteriorar com o calor dos trópicos, antes pelo contrário ganhava propriedades
gustativas. Motivo idêntico conduziu à assídua presença dos ingleses, a partir de finais do
século dezasseis.
A proximidade da Madeira em relação aos portos do litoral peninsular associada às
condições dos ventos e correntes marítimas foram os principais obstáculos à valorização da
ilha no contexto das navegações atlânticas. As Canárias, porque melhor posicionadas e
distribuidas por sete ilhas em latitudes diferentes, estavam em condições de oferecer o
adequado serviço de apoio. Todavia a
situação conturbada que aí se viveu, resultado da disputa pela sua posse pelas duas coroas
peninsulares e a demorada pacificação da população indígena, fizeram com que a Madeira
surgisse no século XV como um dos principais eixos do domínio e navegação portuguêsa no
Atlântico.
Tal como nos refere Zurara a ilha foi desde 1445 o principal porto de escala para as
navegações ao longo da costa africana. Mas o maior conhecimento dos mares, os avanços
tecnológicos e náuticos retiraram ao Funchal esta posição charneira nas navegações atlânticas,
sendo substituído pelos portos das Canárias ou Cabo Verde. Assim, a partir de princípios do
século XVI, a Madeira surgirá apenas como um ponto de referência para a navegação
atlântica, uma escala ocasional para reparo e aprovisionamento de vinho. Apenas o surto
económico da ilha conseguirá atrair as atenções das armadas, navegantes e aventureiros.
Deste modo poder-se-á concluir que as ilhas situadas às portas de entrada e saída
protoganizaram um papel importante nas rotas atlânticas. Mas para sulcar longas distância
rumo ao Brasil, à costa africana ou ao Indico, era necessário dispor de mais portos de escala,
pois a viagem era longa e difícil.
As áreas comerciais da costa da Guiné e, depois, com a ultrapassagem do cabo da Boa
Esperança, as índicas tornaram indispensável a existência de escalas intermédias. Primeiro
Arguim, que serviu de feitoria e escala para a zona da Costa da Guiné, depois, com a
revelaçäo de Cabo Verde, foi a ilha de Santiago que se afirmou como a principal escala da
rota de ida para os portugueses e podia muito bem substituir as Canárias ou a Madeira, o que
realmente aconteceu.
105
. Fenix Angrense, vol. I, Angra, 1989, 267.
Outras mais ilhas foram reveladas e tiveram uma lugar proeminente no traçado das rotas. É
o caso de S. Tomé para a área de navegaçäo do golfo da Guiné e de Santa Helena para as
caravelas da rota do Cabo. Também a forte projecçäo dos arquipélagos de S. Tomé e Cabo
Verde sobre os espaços vizinhas da costa africana levou a coroa a criar duas feitorias(Santiago
e S. Tomé) como objectivo de controlar, a partir daí, todas as transacçöes comerciais da costa
africana. Desta forma no Atlântico sul as principais escalas das
rotas do índico assentavam nos portos das ilhas de Santiago, Santa Helena e Ascensäo. Aí as
armadas reabasteciam-se de água, lenha, mantimentos ou procediam a ligeiras reparaçöes. A
par disso releva-se, ainda, a de Santa Helena como escala de reagrupamento das frotas vindas
da India depois de ultrapassado o cabo: missäo idêntica à dos Açores no final da travessia
oceânica.
Para Santiago säo referenciados alguns testemunhos sobre a importância do porto da
Ribeira Grande como escala do oceano, sendo disso testemunho uma carta dos oficiais da
câmara em 1512106:

"É grande escala para as naus e navios de Sua Alteza e assi para os navios de Säo
Tomé e ilha de Príncipe e para os navios que väo do Brasil e da Mina e todas partes
de Guiné, que quando aqui chegam perdidos e sem mantimento e gente aqui säo
remediados de todo o que lhe faz mester".

As escalas de Afonso Albuquerque e Álvaro Barreto, no regresso da India, e no sentido


inverso, a do Padre António Vieira em 1652 de volta ao Brasil, que aí passou o Natal, säo
disso prova.
Entretanto Gaspar Frutuoso havia referido isso, dizendo que por aí "väo as naus de
Espanha para as Indias de Castela e as de Portugal pera Angola, pera Guiné e pera o Congo,
como também à tornada, vêm deferir à ilha Terceira"107. Tenha-se em conta que a rota das
Indias de Castela havia sido traçada em 1498 por Cristoväo Colombo, que fez escala em
Santiago e Boavista com a finalidade de tomar gado vacuum para a colónia de Hispaniola.
Esta função da ilha de Santiago com escala do mar oceano foi efémera. A partir da década
de trinta do século XVI são menos assíduas as escalas. O mar era já conhecido e as
embarcações de maior calado permitiam viagens mais prolongadas. Apenas os naufragos dos
temporais aí aparecem à procura de refugio.
O posicionamento das ilhas no traçado das rotas de comércio e navegaçäo atlântica fez
com que as coroas peninsulares dirigissem para aí todo o empenho nas iniciativas de apoio,
defesa e controlo do trato comercial. As ilhas foram assim os bastiöes avançados, suportes e
símbolos da hegemonia peninsular no Atlântico. A disputa pelas riquezas em circulaçäo tinha
lugar em terra ou no mar circum-vizinho, pois para aí incidiam os piratas e corsários, ávidos
de conseguir ainda que uma magra fatia do tesouro. Deste modo uma das maiores
preocupaçöes das autoridades terá sido a defesa dos navios. Mas no caso das ilhas da Guiné
isso nunca foi conseguido, tardando, ao contrário do que sucedeu na Madeira, Açores e
Canárias, o delineamento de um sistema defensivo em terra e no mar. Isto explica a extrema

106
.ANTT, Corpo Cronológico, I/12/23, 25 de Outubro, in História Geral de Cabo Verde. corpo documental, I, Lisboa, 1988, nº 71, 213-214.

107
. Ob. cit., livro primeiro, 183.
vulnerabilidade destes portos, evidente nas inúmeras investidas inglesas e holandesas na
primeira metade do século XVII.
Para o século dezanove estava reservada uma total mudança no sistema de rotas do
Atlântico. Os progressos no desenvolvimento da máquina a vapor fizeram com que se
elaborasse um novo plano de portos de escala, capazes de servirem de apoio à navegaçäo
como fornecedores dos produtos em troca e do carväo para a laboraçäo das máquinas. Nos
Açores o porto de Angra cedeu o lugar aos da Horta e Ponta Delgada, enquanto em Cabo
Verde a ilha de Santiago foi substituída pela de S. Vicente, lugar que disputava com as
Canárias. Entretanto o Funchal viu reforçada pela dupla oferta como porto carvoeiro e do
vinho da ilha, o que fez atrair inúmeras embarcaçöes inglesas e americanas. A par disso a
posiçäo privilegiada que os ingleses gozavam na ilha levou a que eles se servissem do porto
do Funchal como base para as actividades de corso contra os franceses e castelhanos.
III. A ECONOMIA INSULAR

A definiçäo dos espaços económicos näo resultou apenas dos interesses políticos e
económicos derivados da conjuntura expansionista europeia mas também das condiçöes
internas, oferecidas pelo meio. Elas tornam-se por demais evidentes quando estamos perante
um conjunto de ilhas dispersas no oceano. Tal como nos refere Carlos Alberto Medeiros "säo
fundamentalmente condiçöes físicas que estäo na base do arranjo da paisagem: as climáticas
que permitem compreender as diferenças entre elas, e morfológicas que, dentro da conjuntura
climática de cada um, assumem o papel essenial"108.
No conjunto estávamos perante ilhas com a mesma origem geológica, sem quaisquer
vestígios de ocupaçäo humana, mas com diferenças marcantes ao nível climático. Os Açores
apresentavam-se como uma zona temperada, a Madeira como uma réplica mediterrânica,
enquanto nos dois arquipélagos meridionais eram manifestas as influências da posiçäo
geográfica, que estabelecia um clima tropical seco ou equatorial. Daqui resultou a diversidade
de formas de valorizaçäo económica e social.
Para os primeiros europeus que aí se fixaram a Madeira e os Açores ofereciam melhores
requisitos, pelas semelhanças do clima com o de Portugal, do que Cabo Verde ou S. Tomé.
Nestes dois últimos arquipélagos foram inúmeras as dificuldades de adaptaçäo do homem e
das culturas europeio-mediterrânicas. Aí o europeu cedeu lugar ao africano e as culturas
mediterrânicas de subsistência foram substituídas pelas trocas na vizinha costa africana. A
preocupação pelo aproveitamento dos recursos locais surge num segundo momento.
Por fim é necessário ter em conta as condiçöes morfológicas, que estabelecem as
especificidades de cada ilha e tornam possível a delimitaçäo do espaço e a sua forma de
aproveitamento económico. Aqui o recorte e relevo costeiro foram importantes. A
possibilidade de acesso ao exterior através de bons ancoradouros era um factor importante. É
a partir daqui que se torna compreensível a situaçäo da Madeira definida pela excessiva
importância da vertente sul em detrimento da norte. E nas ilhas do Golfo da Guiné o facto de
Fernando Pó ser preterida em favor de S. Tomé.

108
. "Acerca da ocupação humana das ilhas portuguesas do Atlântico", inFinisterra. Revista Portuguesa de geografia, vol.IV, nº 7, Lisboa, 1969,
144-145. Sobre os aspectos geo-climáticos vejam-se os seguintes estudos: Ilídio do AMARAL, Santiago de Cabo Verde. A Terra e os Homens,
Lisboa, 1964; Raquel Soeiro de BRITO, A Ilha de São Miguel. Estudo geográfico, Lisboa, 1955; J. Medeiros CONSTANCIA, Evolução da
paisagem humanizada da ilha de São Miguel, Coimbra, 1963-64; António Brum FERREIRA, A Ilha da Graciosa, Lisboa, 1968; Carlos Alberto
Medeiros, A Ilha do Corvo, Lisboa, 1967: Orlando RIBEIRO, Líle de Madère, Étude géografique, Lisboa, 1949; Idem, AIlha do Fogo e as suas
erupções, Lisboa, 1954; Francisco TENREIRO, A Ilha de São Tomé. Estudo Geográfico, Lisboa, 1961.
De um modo geral estávamos perante a plena dominância do litoral como área privilegiada
de fixaçäo ainda que, por vezes, o näo fosse em termos económicos. Nas ilhas em que as
condiçöes orográficas propiciavam uma fácil penetrar no interior, como sucedeu em S.
Miguel, Terceira, Graciosa, Porto Santo, Santiago e S. Tomé, a presença humana alastrou até
aí e gerou os espaços arroteados. Para as demais a omnipresença do litoral é evidente e
domina toda a vida dos insulares, sendo aí o mar a via privilegiada. Os exemplos da Madeira e
S. Jorge säo paradigmáticos.
De acordo com as condiçöes geo-climáticas é possível definir a mancha de ocupaçäo
humana e agrícola das ilhas. Isto conduziu a uma variedade de funçöes económicas, por vezes
complementares. Deste modo nos arquipélagos constituídos por maior número de ilhas a
articulaçäo dos vectores da subsistência com os da economia de mercado foi mais harmoniosa
e näo causou grandes dificuldades. Os Açores apresentam-se como a expressäo mais perfeita
da realidade, enquanto a Madeira é o reverso da medalha.
O processo de povoamento das ilhas, já atrás abordado, definiu-lhes uma vocaçäo de áreas
económicas sucedâneas do mercado e espaço mediterrânicos. Assim o que sucedeu nos
séculos XV e XVI foi a lenta afirmaçäo do novo espaço, tendo como ponto de referência as
ilhas.
A mudança de centros de influência foi responsável porque os arquipélagos atlânticos
assumissem uma funçäo importante. A tudo isso poderá juntar-se a constante presença de
gentes ribeirinhas do Mediterrâneo, interessadas em estabelecer os produtos e o necessário
suporte financeiro. A constante premência do Mediterrâneo nos primórdios da expansäo
atlântica poderá ser responsabilizada pela dominante mercantil das novas experiências de
arroteamento aqui lançadas.
Certamente que os povos peninsulares e mediterrânicos, ao comprometerem-se com o
processo atlântica, näo puseram de parte a tradiçäo agrícola e os incentivos comerciais dos
mercados de origem. Por isso na bagagem dos primeiros cabouqueiros insulares foram
imprescindíveis as cepas, as socas de cana, alguns gräos do precioso cereal, de mistura com
artefactos e ferramentas. A afirmaçäo das áreas atlânticas resultou deste transplante material e
humana de que os peninsulares foram os principais obreiros. Este processo foi a primeira
experiência de ajustamento das arroteias às directrizes da nova economia de mercado.
A aposta preferencial foi para uma agricultura capaz de suprir as faltas do velho
continente, quer os cereais, quer o pastel e açúcar, do que o usufruto das novidades
propiciadas pelo meio. Aqui estamos a lembrar-nos de Cabo Verde e Säo Tomé onde a
frustraçäo de uma cultura subsistência europeia näo foi facilmente compensada com a oferta
dos produtos africanos como o milho zaburro e inhames. Em Cabo Verde, cedo se reconheceu
a impossibilidade da rendosa cultura dos canaviais. Mas tardou em valorizar-se o algodäo
como produto substitutivo, tal era a obsessäo pelo açúcar e pelas trocas da costa da Guiné.
A sociedade e economia insulares surgem na confluência dos vectores externos com as
condiçöes internas dos multifacetado mundo insular. A sua concretizaçäo näo foi simultânea
nem obedeceu aos mesmos princípios organizativos pelo facto de a mesma resultar da partilha
pelas coroas peninsulares e senhorios ilhéus. Por outro lado a economia insular é resultado da
prsença de vários factores que intervêm directamente na produçäo e comércio.
Näo basta dispör de um solo fértil ou de um produto de permanente procura, pois a isso
deverá também associar-se os meios propiciadores do escoamento e a existência de técnicas e
meios de troca adequados ao nível mercantil atingido pelos circuitos comer
ciais. Deste modo, para conhecermos os aspectos produtivos e de troca das economias
insulares torna-se necessária uma breve referência aos factores que estäo na sua origem .
Ao nível do sector produtivo deverá ter-se em conta a importância assumida, por um lado,
pelas condiçöes geofísicas e, por outro, pela política distributiva das culturas. É da conjugaçäo
de ambas que se estabelece a necessária hierarquia. Os solos mais ricos eram reservados para
a cultura de maior rentabilidade económica (o trigo, a cana de açúcar, o pastel), enquanto os
medianos ficavam para os produtos hortícolas e frutícolas, ficando os mais pobres como pasto
e área de apoio aos dois primeiros.
A esta hierarquia definida pelas condiçöes do solo e persistência do mercado podemos
adicionar para a Madeira outra de acordo com a geografia da ilha e os microclimas que a
mesma gera. A explicaçäo foi dada por Orlando Ribeiro109 podendo o leitor aperceber-se disso
no século dezasseis, a partir da leitura da obra de Gaspar Frutuoso. A realidade em causa é
específica da Madeira e apenas encontra algo parecido na ilha de S. Tomé110.
Para que tudo isto tivesse lugar de forma ordenada houve necessidade, por parte do
senhorio e da coroa, de definir normas para o aproveitamento dos recursos agrícolas dos
novos espaços. Daí resultaram inúmeras medidas regulamentadoras das actividades
produtivas. Esta política esboça-se já com a entrega de terras, onde se estabelecem, muitas
vezes, os produtos mais adequados para o seu cultivo. Na Madeira em 1492 elas apontavam
para a preservaçäo das searas, mas em 1508 a prioridade estava nos canaviais. O mesmo
sucedia nos Açores, onde em S. Miguel se estabeleceu em 1532 uma divisäo equitativa do
solo em searas e terras de pastel. No caso de Cabo Verde a doação das ilhas pequenas tinha
como finalidade a criação de gado, mais pela riqueza das suas peles do que pelo valor
alimentar.
Näo se esgotava aqui a iniciativa das autoridades no ciclo produtivo uma vez que a fase de
transformaçäo dos produtos era outro domínio a cativar o seu empenho. Tudo isto é
proporcional ao volume e especializaçäo das tarefas. Assim no caso do açúcar, cujo processo
de era moroso, havia um apertado controlo e regulamentos para as tarefas, por meio de
regimentos e posturas específicos.
Maior e mais evidente era a actuaçäo ao nível do sector comer
cial. Neste caso as autoridades intervinham com o duplo objectivo de assegurar, por um lado,
o comércio monopolista da burguesia nacional, por outro, da normalizaçäo dos circuitos. A
par disso deverá referir-se as posturas municipais que defendem, única e exclusivamente,
interesses dos concidadäos. Isto é, garantir o abastecimento do mercado local de produtos
essenciais. As posturas, de que se conhecem as do Funchal, Angra, Ponta Delgada, Ribeira
Grande, Velas, Vila Franca do Campo, säo disso testemunho como teremos oportunidade de o
afirmar111.
As Canárias, pela riqueza dos recursos humanos e naturais, surgiram no século XV como o
primeiro alvo. Mas a conquista e ocupaçäo foram retardadas pela disputa entre as duas coroas
peninsulares e o afrontamento dos guanches. Deste modo a Madeira assumiu uma posiçäo
cimeira no processo, uma vez goradas as iniciativas no Porto Santo.

109
. A Ilha da Madeira até meados do século XX, Lisboa, 1985 (1ª edição em 1949), 37/43 e 56/59.

110
. Francisco TENREIRO, A Ilha de S. Tomé, Lisboa, 1969, 49-54.

111
. Alberto VIEIRA, "As posturas municipais da Madeira e Açores nos séculos XV a XVII" in III Colóquio Internacional Os Açores e o
Atlântico, Angra do Heroismo, 1989.
O arquipélago açoriano e as demais ilhas na área da Guiné surgem numa época tardia,
sendo o processo de valorização económica atrasado mercê de vários factores de ordem
interna a que näo säo alheias as condiçöes mesológicas. O clima e solo áridos, num lado,
sismos e vulcöes, no outro, eram um cartaz pouco aliciante para os primeiros povoadores. Em
ambos os casos o lançamento da cultura da cana sacarina esteve ligado aos madeirenses. Eles
haviam recebido as técnicas dos italianos mas cedo se prontificaram a difundi-las em todo a
espaço atlântico.
A Madeira, que se encontrava a pouco mais de meio século de existência como sociedade
insular, estava em condiçöes de oferecer
os contingentes de colonos habilitados para a abertura de novas arroteias e ao lançamento de
novas culturas nas ilhas e terras vizinhas. Assim terá sucedido com o transplante da cana-de-
açúcar para Santa Maria, S.Miguel, Terceira, Gran Canária, Tenerife, Santiago, S. Tomé e
Brasil.
A tendência uniformizadora da economia agrícola do espaço insular esbarrou com vários
obstáculos que, depois, conduziram a um reajustamento da política económica e à definiçäo
da complementaridade entre os mesmos arquipélagos ou ilhas. Nestas circunstâncias as ilhas
conseguiram criar no seu seio os meios
necessários para solucionar os problemas quotidianos -- assentes quase sempre no assegurar
os componentes da dieta alimentar --, à afirmaçäo nos mercados europeu e atlântico. Assim
sucedeu com os cereais que, produzidos apenas nalgumas ilhas, foram suficientes, em
condiçöes normais, para satisfazer as necessidades da dieta insular, sobrando um grande
excedente para suprir as carências do reino.
Um dos iniciais objectivos que norteou o povoamento da Madeira foi a possibilidade de
acesso a uma nova área produtora de cereais, capaz de suprir as carências do reino e depois as
praças africanas e feitorias da costa da Guiné. A última situaçäo era definida por aquilo a que
ficou conhecida como o "saco de Guiné". Entretanto os interesses em torno da cultura
açucareira recrudesceram e a aposta na cultura era óbvia. Esta mudança só se tornou possível
quando se encontrou um mercado substitutivo. Assim sucedeu com os Açores que, a partir da
segunda metade do século dezasseis, passaram a assumir o lugar da Madeira .
O cereal foi o produto que conduziu a uma ligaçäo harmoniosa dos espaços insulares, o
mesmo näo sucedendo com o açúcar, o pastel e o vinho, que foram responsáveis pelo
afrontamento e uma crítica desarticulaçäo dos mecanismos económicos. A par disso todos os
produtos foram o suporte, mais que evidente, do poderoso domínio europeu na economia
insular. Primeiro o açúcar, depois o pastel e o vinho exerceram uma acçäo devastadora no
equilíbrio latente na economia das ilhas.
A incessante procura e rendoso negócio conduziram à plena afirmaçäo, quase que
exclusiva destes produtos, geradora da dependência ao mercado externo. Este para além de ser
o consumidor exclusivo destas culturas, surge como o principal fornecedor dos produtos ou
artefactos de que os insulares carecem. Perante isto qualquer eventualidade que pusesse em
causa o sector produtivo era o prelúdio da estagnaçäo do comércio e o prenúncio evidente de
dificuldades, que desembocavam quase sempre na fome.
Terá sido com base nisso que Fernand Braudel defendeu para as ilhas da Madeira e Açores
o regime produtivo baseado na monocultura112. Mas aquilo que sucedia nas ilhas era muito
mais complexo. A heterogeneidade de espaços näo era propiciadora disso. Deste modo as
112
. Ob. cit., (edição de 1949), 123.
reacçöes näo tardaram em aparecer por parte de investigadores mais atentos e conhecedores
destas ilhas. Primeiro foi Orlando Ribeiro113 a rebater a ideia, sendo secundado por F. Mauro
e Vitorino Magalhäes Godinho. O último definiu a economia insular por um regime de
produtos dominantes e nunca de monocultura.
Na verdade, foi isso que sucedeu em qualquer um dos arquipélagos do Mediterrâneo
Atlântico, exceptuando-se as ilhas dos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé, onde a
situaçäo foi diversa. Na Madeira e nos Açores esta tendência foi entravada por múltiplos
factores: no sector produtivo a diversidade do solo e clima condicionou um verdadeiro
mosaico de culturas, de que o texto de Gaspar Frutuoso é testemunho. Nos contactos com o
exterior, näo obstante a ausência de registos alfandegários, a situação é também diferente,
sendo corroborada pelos diversos visitantes.
A estrutura do sector produtivo de cada ilha moldou-se de acordo com isto, podendo
definir-se em componentes da dieta alimentar (cereais, vinha, hortas, fruteiras, gado) e de
troca comercial (pastel, açúcar e algodäo). Em consonância com a actividade agrícola
verificou-se a valorizaçäo dos recursos disponibilizados por cada ilha, que integravam a dieta
alimentar (pesca e silvicultura) ou as trocas comerciais (urzela, sumagre, madeiras). É isso
que nos propomos tratar, já de seguida.

OS COMPONENTES DA DIETA ALIMENTAR

A presença nas ilhas de um grupo de colonos, oriundos de uma área em que as


componentes fundamentais da alimentaçäo se baseavam nos cereais, definiu para eles uma
funçäo primordial na abertura das frentes de arroteamento. No começo tudo foi moldado à
imagem e semelhança do rincäo de origem e, onde isso se tornava difícil, era quase impossível
recrutar e fixar gentes. Assim surgiram as searas, os vinhedos, as hortas e as fruteiras
dominadas pela casa de palha e ,mais tarde, pelas luxuosas vivendas senhoriais.
A partir do século dezassete o Atlântico foi devassado por novas culturas dos espaços
recém-conhecidos, que passaram a fazer parte da dieta alimentar das populaçöes: primeiro o
milho, depois, o inhame e a batata. Todavia a sua presença na agricultura insular variou de
arquipélago para arquipélago. O milho chegou cedo aos Açores e a S. Tomé, enquanto na
Madeira o seu aparecimento só teve lugar no século dezanove. A batata começou a ter
aceitaçäo na Madeira e Açores na segunda metade do século dezassete.

OS CEREAIS

Na Madeira, até à década de setenta do século quinze, a paisagem agrícola foi dominada
pelas searas, decoradas de parreiras e canaviais. A cultura cerealífera dominava a economia
madeirense, gerando grandes excedentes com que se abasteciam os portos do reino, as praças
113
. Ob. cit., 48.
africanas e a costa da Guiné. Tudo isso foi resultado da elevada fertilidade do solo provocada
pelas queimadas para abrir caminho às primeiras arroteias.
Em meados do século XV Cadamosto referia a colheita de três mil moios de cereal, que
excediam em mais de 65% as necessidades da populaçäo madeirense. Deste mil moios
estavam destinados a encher o "saco de Guiné ", isto é, a abastecer as feitorias da costa
africana. Mas a partir da década de sessenta a dominância da cultura dos canaviais conduziu a
uma paulatina quebra das searas, de modo que a partir de 1466 a produçäo cerealífera passou
a ser deficitária, näo podendo assim assegurar os compromissos de abastecimento das praças e
feitorias africanas. Desde entäo a ilha necessitava de importar parte significativa do cereal que
consumia. Em 1479 a colheita dava apenas para quatro meses, dependendo o abastecimento
do restante cereal importado dos Açores e das Canárias. A cultura tinha lugar nos municípios
da Calheta e Ponta de Sol e na ilha do Porto Santo.
Esta conjuntura derivou da dominância dos canaviais e do rápido esgotamento do solo
resultante do cultivo intensivo a que foi alvo. Giulio Landi retrata-a de forma explícita em
1530:

"a ilha produziria em maior quantidade se se semeasse. Mas a ambiçäo das riquezas fez
com que os habitantes, descuidando-se de semear trigo, se dediquem apenas ao fabrico do
açúcar, pois deste tiram maiores proventos. O que explica näo se colher na ilha trigo
para mais de seis meses, por isso há uma carestia d de trigo, que em grande abundância é
importado das ilhas vizinhas"114.

A coroa havia estabelecido em 1508 que os Açores eram o celeiro do mundo atlântico,
suprindo as carências da Madeira e substituindo-a no fornecimento às praças africanas e
cidade de Lisboa. Na verdade a crise cerealífera madeirense coincidiu com o incremento da
mesma cultura em solo açoriano, tendo-se determinado, nomeadamente em S. Miguel, um
traväo ao avanço da cultura do pastel.
Apresentando-se o arquipélago açoriano com uma vasta área e um solo variado foi difícil
delinear uma política de aproveitamento. A falta de mäo-de-obra fez com que se fizesse
incidir o povoamento apenas em áreas definidas, muitas vezes, já em vias de arroteamento. Na
ilha de S. Miguel e Santa Maria, o ritmo acelerado das arroteias e as elevadas possibilidades
do solo para a expansäo da cultura cerealífera, conduziram à afirmaçäo como principais
produtores de trigo, relegando segundo plano as restantes.
Santa Maria foi a primeira ilha a ser lavrada, mas o espaço de cultura reduzido conduziu-a
para uma posiçäo secundária, dando lugar à de S. Miguel, com uma área plana apropriada para
o incentivo das arroteias, näo obstante as dificuldades derivadas das erupçöes vulcânicas e da
sismicidade. Deste modo a ilha verde afirmou-se, ao longo dos século XVI e XVII, como a
principal área produtora de trigo do arquipélago.
A Terceira, onde o processo inicial foi conturbado, desfrutou, a partir de 1460, uma
posiçäo privilegiada na cultura de cereais mantendo-se, até meados do século XVI, como uma
forte concorrente de S. Miguel. Mas os factores geográficos orientavam-na para uma acçäo de
apoio e provimento das naus, enquanto as constantes solicitaçöes do sector terciário atraíam
cada vez mais gentes ao burgo angrense, colocando o campo em semi-abandono. Deste modo
a manutençäo de contactos regulares com as ilhas de S. Jorge, Graciosa e S. Miguel eram,
114
. "Descrição da ilha da Madeira", in A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, 84.
cada vez mais, imprescindíveis para poder-se assegurar o serviço de abastecimento das
embarcaçöes que demandavam o porto.
A partir de finais do século XVI foi evidente a afirmaçäo do arquipélago açoriano como
principal produtor de trigo no Atlântico. A economia cerealífera açoriana estava organizada
em torno de dois portos importantes (Angra e Ponta Delgada) que tinham à sua volta um vasto
hinterland, abrangendo as áreas agrícolas da ilha e das vizinhas. Assim a ilha de Santa Maria
estava colocada sob a alçada de S. Miguel e as restantes adjacentes ou dominadas pelo porto
de Angra. Note-se que até mesmo o comércio de cereal das Flores e Corvo se fazia a partir de
Angra, como sucedeu em 1602.
Em síntese: as arroteias do cereal no arquipélago distribuíam-se consoante as
possibilidades do solo e a existência de eixos de escoamento ou, mais propriamente, da
confluência de rotas capazes de escoarem os elevados excedentes das colheitas.
A ilha de S. Miguel, sendo a de maior extensäo do arquipélago e a que oferecia melhores
condiçöes às arroteias, afirma-se, desde o início, como a principal produtora de cereal. Ele
crescia, lado a lado, com o pastel. Todo o espaço em torno da cidade, a área agrícola mais
importante da ilha, estava ocupado com as duas culturas. Frutuoso, em finais do século XVI,
confirma isso. Em 1640, a ilha produzia 13.800 moios de trigo, sendo mais de metade (7.705
moios) das searas situadas entre a Ribeira Grande e Ponta Delgada, situando-se em segundo
lugar o litoral desde a Bretanha às Feiteiras, com 2.360 moios, Vila Franca do Campo com
1.235 e o Nordeste com apenas 1.220 moios. A área dominante da cultura situava-se próximo
do porto de Ponta Delgada, à data o principal porto do comércio micaelense.
A Terceira é referida em todas as fontes narrativas como uma das principais ilhas de
produçäo de cereal do arquipélago. Em 1527 Francisco Alvares atribuiu-lhe o epiteto de mäe
do trigo115. No mesmo sentido se refere António Cordeiro quando afirma que ela em
tempos recuados deu "quasi o mesmo que S. Miguel"116.
As restantes ilhas encontravam-se numa posiçäo secundária, mas, mesmo assim, com um
excedente confortável, capaz de manter activo o comércio local e externo. Assim sucedia com
a ilha Graciosa, onde a colheita de trigo e cevada "excede ao das mais ilhas"117. Para isso
contribuíam as condiçöes favoráveis propiciadas pela orografia. Quanto às restantes ilhas
Valentim Fernandes e Jean Alphonse referem a abundância de cereais. Gaspar Frutuoso alude
às de S. Jorge e Pico como terras de pouco päo, ao Faial à colheita de muito trigo, às Flores
como auto-suficiente, à Graciosa e Corvo como terras de päo118.
A historiografia quinhentista é unânime em afirmar a elevada fertilidade do solo açoriano.
O texto mais modelar é de Frutuoso que nos dá conta, de modo exaustivo, das diversas formas
de actividade económica do arquipélago tendo em conta os factores de produçäo. O Autor
traça-nos, de modo clarividente, a conjuntura da economia açoriana na década de oitenta. O
mesmo na descriçäo das ilhas salienta que o solo açoriano, de um modo geral, se apresentava
apto para a cultura do trigo, quer pelas condiçöes geográficas, quer pela fertilidade, se tornava
desnecessário o uso de arroteias de pousio. Assim conclui que as ilhas dos Açores "säo täo

115
. Verdadeira Informação 2ª parte, cap. IV.

116
. História Insulana, 302.

117
. Ibidem, 435.

118
. Saudades da Terra, livro VI.
abundantes de päo, que logo no princípio do seu descobrimento dava cada moio de terra
semeada de trigo ou cevada quarenta ou cinquenta ou sessenta moios e, ainda muitas vezes,
recolhem os lavradores de um alqueire de semeadura vinte e trinta"119.
Na análise particular de cada ilha destaca a fertilidade das de Santa Maria e S. Miguel,
dizendo, quanto à primeira:

"Semeia-se um moio de terra com trinta e cinco até quarenta alqueires de trigo, e näo
sofre tanta semente como as outras ilhas, porque é de muita criaçäo, e acham-se pés de
trigo de um gräo que dá cento e dez, cento e vinte espigas; e o comum daqueles que
bem criam, säo cinquenta e sessenta, dez, quinze, vinte trinta, quarenta"120.

Quanto à ilha de S. Miguel o mesmo refere a elevada fertilidade do solo, de tal modo que as
terras näo necessitavam de pousio, pois "däo abundantíssimo fruto, maiormente no princípio
do seu
descobrimento, em que tinham todo o seu vigor e força...", anotando mais adiante, que "no
morro da vila da Ribeira Grande, e em outras muitas partes desta ilha, respondia a terra a
sessenta moios por moio de trigo, e o mesmo de cevada; e täo basto, e grado era o päo, que
dois ceiföes segavam trezentos feixes no dia, e cada feixe dava um alqueire de trigo...121". Isto
foi confirmada por Frei A. de Monte Alverne, referindo que nos Fenais, um moio de terra
dava sessenta de trigo, tendo-se encontrado aí "um pé de trigo que tinha 107 espigas"122.
A média de produtividade do trigo oscilava entre 15 a 20 sementes, embora houvesse anos
com referências elevadíssimas e exageradas. Este número é considerado espectacular se
tivermos em conta que na medievalidade ocidental oscilava entre 3 e 4 sementes, nunca
excedendo em anos de boa colheita, as 10 sementes. Caso idêntico sucedeu em Portugal, onde
a média rondava estes valores, apenas se encontrando valor superior nas terras do mosteiro de
Alcobaça (com 8 a 13 sementes) e na regiäo de Barcarena (com 8 sementes).
Se aceitarmos as informaçöes fornecidas por Gaspar Frutuoso como seguras, teremos de
considerar que estávamos perante uma colheita invulgar, que excedia os limites até aí
considerados normais na economia agrária europeia. A admiraçäo com que ele e outros
autores (Zurara, V. Fernandes) referem a elevada produtividade do cereal açoriano é mais um
argumento a corroborar esta realidade. Tudo seria possível numa terra rica e virgem, onde o
trigo crescia facilmente.
O Europeu encontrou nas ilhas, por explorar, o meio adequado
e capaz de suprir as dificuldades geradas com a degradaçäo, cada vez maior, do terra
continental, esgotados os recursos à adubagem do solo, o variado sistema de afolhamento e
rotaçäo de culturas. O solo, agora cultivado, produzia quantidades elevadas de cereal, sem
precisar do pousio, pelo que uma área reduzida era capaz de produzir soma igual a uma vasta
área na Europa.

119
. Ibidem, livro VI, 4.

120
. Ibidem, livro III, 98.

121
. Ibidem, livro IV, tomo II, 17 e 23.

122
. Crónicas da província de S. João Evangelista das ilhas dos Açores, vo.II, Ponta Delgada, 1961, 16.
A cultura do cereal, nestas paragens, fazia-se no solo apropriado e numa faixa reduzida de
terreno, ficando as restantes
cobertas de arvoredo a aguardar um melhor dimensionamento da política das arroteias. Cedo o
solo se esgotava, como resultado de um aproveitamento intensivo, sem a necessária
fertilizaçäo do solo por meio dos estrume, tremoço ou pousio. Assim sucedeu em S. Miguel a
partir de princípios do século XVI, agravando-se em meados do mesmo século. O nível de
produtividade baixou para 6 ou 7:1, tornando-se necessário o recurso ao tremoço e à fava
como fertilizantes. Gaspar Frutuoso, escrevendo na década de oitenta, salienta que o solo
micaelense "agora näo responde com tanta abundância como dantes", enquanto as Flores que
"foram terras muito fertiles e grossas, mas já agora säo mui fracas e lavadas dos ventos, e näo
lhe aparece mais que a pedra"123. Em documento de 1557 a Câmara de Angra referia "que as
terras estavam fracas e produziam pouco"124.
A partir de meados do século XVI a cultura cerealífera sofreu uma forte quebra, motivada
pelo esgotamento do solo a que se associou depois a alforra. Esta conjuntura conduziu a
profundas mudanças na economia agrária açoriana de que se realça o alargamento da área
arroteada e as mudanças na estrutura agrícola. Assim tivemos o recurso ao sistema de
afolhamento bienal, o uso de fertilizantes do solo com o tremoço e fava e, ainda, o sistema de
rotaçäo de culturas, primeiro com a batata e, depois, com o milho e inhames, no século XVII.
Até princípios do século XVI näo encontramos qualquer referência à falta de trigo no
arquipélago, antes se mantém a "avondança de päo". Somente a partir de 1508 o trigo foi
valorizado devido à esterilidade que se manteve por alguns anos, obrigando os moradores a
comerem roläo. A conjuntura agravou-se a partir de 1532 com os reflexos do esgotamento do
solo insular, sentido de modo evidente na Terceira:

"Senhor esta ylha Terceyra estam tam necessytada de trygo como nunca esteve
porque esta em condiçom d'allguma gente
alguns dyas nom comerem pam bem que por isso nom ham de morrer, porque ha
cousas ca na terra com que se manterem este pouco tempo que lhes falecer. Isto Senhor
causou nom aver boa semente porque em terra de um moyo de semeadura se
semeou moyo e meio em que se lançou à terra quinhentos moyos de trigo do que se
costumava lançar, isto causou esta mingoa de trygo que ora ha e também semearam-se
mais terras do que nunca se semearon e segundo ha enformaçam que tenho em todas
estas ilhas dos Açores ha isto sallvo a ilha de Santa Maria que dyzem ter o trygo que lhe
he necessaryo..."125.

Deste modo estava comprometido o fornecimento das armadas até às novas colheitas, isto é,
para o período de Abril e Junho.
Em meados do século XVI o aparecimento da alforra veio agravar a situaçäo. Assim no
inverno de 1552 todo o arquipélago padeceu de fome. As populaçöes de S. Miguel, Faial, S.
Jorge amotinou-se, manifestando-se contra a saída ilimitada de cereal do comércio e das
rendas régias e particulares para o reino. Em princípios do 1552 os vereadores contrariam os
123
. Saudades da Terra, livro quarto, vol. II, 17.

124
. F.F.DRUMOND, Anais da ilha Terceira, vol I, 122.

125
. Arquivo dos Açores, vol. I, 118-119.
planos de Afonso Capiquo, que vinha buscar o dinheiro das rendas, pois como referem "nestas
ilhas este anno aja muita necessidade de triguo e seja mais caro do que muitos annos..."126.
Entretanto os moradores de S. Miguel queixavam-se ao monarca da actividade especulativa
dos senhorios que, procurando tirar maior lucro, o exportavam, ficando a ilha "em muita
necessidade e no inverno vem a valer muito e por lhe näo ir de fora falta às vezes". Deste
modo propuseram a Sua Majestade a obrigatoriedade de cada proprietário deixar na ilha 1/3
da colheita. Mas o alvará régio apenas determinou que fosse apenas 1/4.
Caso semelhante se passava na Praia (Terceira), onde a vereaçäo dominada pelos grandes
produtores de trigo permitia a saída de 4000 moios e aumentava o seu preço, colocando os
moradores na miséria. Perante isto o corregedor ordenara o encerramento do porto e proibira a
saída de qualquer trigo, mas o município actuou junto do monarca tendo conseguido
legitimidade para a sua posiçäo.
A primeira metade do século XVI foi marcada por crises sazonais de produçäo, que se
sucederam com um intervalo aproximado de 20 anos (1508, 1532, 1552), em que se notam os
reflexos do esgotamento do solo. Isto torna-se evidente em S. Miguel nas décadas de setenta e
oitenta e na Terceira em finais do século XVI.
A conjuntura que se esboçou no período de 1570 a 1670 foi pautada por 25 anos de penúria
e teve reflexos mais evidentes na Terceira e S.Jorge. Na primeira o agravamento teve lugar a
partir da década de oitenta, mercê do assalto filipino. Deste modo até 1600 nunca foi atingida
a necessária estabilidade, pois que as épocas de penúria, sendo demoradas, sucediam-se com
um intervalo de 2 a 3 anos. Em S. Miguel apenas se registaram duas crises espaçadas de 11
anos (1562, 1573).
Que factores conduziram a esta diferente evoluçäo da conjuntura cerealífera em ambas as
ilhas?
A divergência surge-nos como resultado de uma política de desenvolvimento, diversificada
e orientada por rumos, igualmente diversos, embora, complementares. A Terceira passou, a
partir da primeira metade do século XVI, a apresentar-se como o principal entreposto do
Atlântico.
A cidade e porto de Angra atraíram todo o esforço terceirense. A populaçäo abandonou a
dura labuta da terra para se dedicar ao comércio retalhista. Aliás poucas soluçöes se
deparavam a uma ilha como a Terceira, onde as arroteias näo eram abundantes (Angra, S.
Sebastiäo, Praia). Säo Miguel, ao contrário, oferecia uma vasta área de terreno fértil e por
desbravar.
No início do povoamento, o colono fixou-se nas zonas ricas (Ribeira Grande, Vila Franca
do Campo, Ponta Delgada), onde as colheitas eram abundantes, näo necessitando de alargá-
las. Mais tarde, com o esgotamento de algumas das arroteias e com o aumento da mäo-de-obra
campesina a área cultivada expandiu-se, sendo incessante a procura de solo fértil. Assim
teremos, desde os inícios do século XVI, o alargamento das searas, de modo que em finais do
século se havia atingido o máximo de aproveitamento do solo, com 1/3 do total da área da
ilha. Ela estava condenada a ser o celeiro açoriano enquanto a Terceira seria o grande centro
de comércio e tráfico internacional atlântico. De um lado uma ilha extensa com vastas áreas
propícias à cultura do cereal, do outro uma área com fracas possibilidades agrícolas, mas
desfrutando de uma posiçäo estratégica.

126
. Maria Olímpia da Rocha GIL, O Arquipélago dos Açores no século XVII. Aspectos sócio-económicos (1575-1675), Castelo Branco, 1979,
284.
A economia açoriana estruturou-se a partir da primeira metade do século XVI, sob o signo
desta ambiência, dando origem a duas áreas de actividade económica dominantes, em torno
das quais se posicionam as demais como regiöes periféricas.
É comum definir-se esta viragem na cultura cerealífera açoriana como resultado de uma
actuaçäo do movimento demográfico insular. No entanto, se tivermos em conta os dados
demográficos para os anos de 1567 e 1578, podemos concluir que näo houve mudança
significativa no natural movimento ascendente. Apenas há a salientar um reajustamento da
geografia populacional quinhentista, com a dominância das áreas em franco desenvolvimento.
Assim sucedeu em S. Miguel com o espaço agrícola em torno do eixo de Ponta
Delgada/Ribeira Grande e na Terceira com a cidade de Angra.
A deficiência cerealífera de algumas áreas do arquipélago açoriano devem-se
fundamentalmente a uma mudança na estrutura económica, a que näo foi alheio o seu
posicionamento na dinâmica económica do mundo colonial atlântico. As alteraçöes mais
significativas ocorreram na Terceira com o sector de actividade dominante: o primário deu
lugar ao terciário. Em S. Miguel ele manteve a supremacia, relegando para segundo plano os
demais.
A partir de meados do século XVI, de acordo com o rumo definido por estas áreas, a
conjuntura cerealífera será assimétrica, demonstrativa desta viragem. Desde entäo a Terceira
manter-se-á como uma ilha carente, que busca o provimento na Graciosa, em S. Jorge e,
mesmo, em S. Miguel, enquanto o solo micaelense se afirmará como área agrícola, por
excelência, onde se cultivava o pastel e o cereal. A última estava preparada para ser o
potencial celeiro do Atlântico europeu, tendo apenas a impedi-lo a cultura rendosa do pastel.
Deste modo a conjuntura cerealífera definida por Frédéric Mauro, entre 1570 e 1669 näo pöe
em causa a teoria divulgada, de que os Açores foram o celeiro de Portugal e das praças de
åfrica, antes confirma e reforça a nossa ideia de que ele se situava em S. Miguel.
Esta ilha era a principal produtora de cereal do arquipélago e, igualmente, a que oferecia
melhores condiçöes em termos de extensäo e solo. A análise da conjuntura cerealífera, pelo
menos, o especifica. Na verdade, em S. Miguel as crises cerealíferas säo raras e espaçadas,
sendo na maioria curtas e resultantes de factores ocasionais, como as tempestades. Assim
sucedeu em 1573, em que um forte temporal destruiu todas as sementeiras. Ainda no século
XVI tivemos outra conjuntura de crise em 1591-1592 que obrigou à importaçäo de cereais.
Ela foi descrita como resultado da concorrência do pastel, que tendia a substituir o trigo. O
que foi resolvido em favor do cereal uma vez que ele, embora considerado uma cultura de
inferior rentabilidade, era necessário, sendo um dos imperativos da coroa a sua persistência.
De 1591 até 1640 manteve-se um hiato prolongado em que näo é referenciada qualquer
crise. A falta no último ano foi resultado da incompatibilidade entre os interesses da
aristocracia citadina, proprietária e ligada ao comércio de exportaçäo de cereais e o necessário
provimento do micaelense, de modo especial da cidade dee Ponta Delgada.
As medidas proteccionistas, com o estabelecimento de um contingente de reserva ou
proibiçäo de saída de trigo, e o exame aos granéis, foram relegados para segundo plano, ou
esquecidos, de modo a facilitar-se o comércio. Somente em 1677 a falta de cereal resultou de
uma quebra das colheitas, que näo teriam ultrapassado a metade do ano anterior. O trigo "hera
tam pouco que corria o risco de sustentar-se esta ilha"127.

127
. Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, Câmara Municipal de Ponta Delgada, nº 53, fls. 188vº-189vº
A conjuntura de extrema miséria e fome agravou-se a partir dos anos quarenta do século
XVII, conduzindo à amotinaçäo do povo faminto. Assim sucedeu em 1643, 1647 e 1695. Na
primeira data o povo amotinado procurou evitar a pratica especulativa dos vereadores
comprometidos com o comércio do cereal, impedindo o embarque de uma caravela com trigo,
quando "o näo achaväo na cidade à venda para comer e semear"128.
Em 1590 os pobres de S. Miguel, oriundos das áreas rurais revoltam-se contra a
aristocracia e burguesia de Ponta Delgada, Ribeira Grande, Vila Franca do Campo, forçando-
as a pôr cobro ao comércio e preço especulativo do päo.
A falta de cereal em S. Miguel, a partir de meados do século XVII, surge como
consequência dos maus anos agrícolas e da acçäo especulativa da aristocracia e classe
mercantil micaelenses, empenhadas no comércio do cereal e com forte influência nas
vereaçöes das três edilidades, e nunca resultado de uma quebra nas colheitas. Os poucos dados
disponíveis comprovam esta tendência.

Diferente foi o que sucedeu aos colonos portugueses quando chegaram a Santiago e
S.Tomé. Aí näo medravam as culturas que definiam a dieta alimentar europeia e foi com
redobrado desgosto que se defrontaram com as primeiras espigas mirradas. Valentim
Fernandes(1506-1508) refere que Santiago "não dá trigo nem cevada", enquanto o Pe.
Baltasar Barreira em 1606 tem opinião contrária. Deste modo houve necessidade de estruturar
de forma diversa o povoamento das ilhas e as culturas a implantar. O recurso aos africanos,
como escravos ou näo, foi a soluçäo mais acertada para transpor o primeiro obstáculo. Eles
tinham uma alimentaçäo diferente dos europeus, baseada no milho zaburro, no arroz e inhame,
culturas que aí, nas ilhas ou vizinha costa africana, medravam com facilidade. Perante isto os
poucos europeus que aí se fixaram estiveram sempre dependentes do trigo, biscoito ou
farinha, enviados das ilhas ou do reino, ou tiveram que se adptar à dieta africana.
O padre Baltazar Barreira retrata em 1606, de forma clara, a situaçäo nas ilhas de Cabo
Verde:

"a principal sementeira que fazem é de milho zaburro deste comem ordinariamente
os crioulos e pretos, e fazem muita quantidade de tuém e cuscuz (...) vem muita farinha
de fora de que se amassa cada dia todo o päo que comem os portugueses"129.

O milho e o arroz eram cultivados na ilha de Santiago, conforme o testemunham Gaspar


Frutuoso130 e o piloto anónimo131.
Além disso o arquipélago era rico de pastagens de gado miúdo e vacuum que dava a carne,
que com o peixe, existente em abundância nos mares circundantes, completavam e definiam a
sua alimentaçäo. Mas também existia um circuito de abastecimento de milho e arroz da costa
africana e de trigo do reino e ilhas, sob a forma de gão, farinha e biscoito do reino. Acresce

128
. Helder Lima, Os Açores na Economia Atlântica (subsídios) séculos XV, XVI e XVII, Angra do Heroismo, 1978, 353-354.

129
. Monumenta Missionária Africana, IV, 45.

130
. Livro primeiro das Saudades da Terra, cap. XXI, 175-185.

131
.Viagem de Lisboa à ilha de S. Tomé, 25
ainda os ricos pomares e hortas, uma referência constante nos viajantes dos séculos dezasseis
e dezassete.

A VINHA E O VINHO

Junto ao cereal plantou-se também os bacelos donde se extraia o saboroso vinho de


consumo corrente ou usado nos actos litúrgicos. O ritual cristäo fez valorizar ambos os
produtos que, por isso mesmo, acompanharam o avanço da Cristandade. Em ambos os casos
foi fácil a adaptaçäo às ilhas aquém do Bojador o mesmo näo sucedendo com as da Guiné.
Todavia a videira conseguiu ainda penetrar neste último espaço, se bem que tenha adquirido
uma importância diminuta.
Martin Behaim refere em finais do século quinze o plantio de videiras em S. Tomé,
enquanto um piloto anónimo testemunha em 1607 a existência de vinhas na ilha do Fogo. E
noutros documentos encontramos a referência ao seu cultivo também em S. Nicolau e Maio. O
vinho produzido na ilha do Fogo era considerado por alguns viajantes, que por aí passaram e
tiveram oportunidade de o provar, semelhante ao da Madeira. Deste modo a viticultura ficou
reservada às ilhas do Mediterrâneo Atlântico, onde o vinho adquiriu um lugar importante nas
exportaçöes.
Na Madeira a cultura da vinha surge já com grande evidência no começo do povoamento,
sendo uma importante moeda de troca com o exterior. Cadamosto em meados do século XV
fica admirado com a qualidade e valores de produçäo das cepas madeirenses. Na verdade a
cultura da vinha havia imediatamente adquirido uma extensa parcela do terreno arroteado na
frente sul, alastrando depois a toda a área agrícola da ilha, a partir de finais do século XV.
Mas o seu desenvolvimento foi entravado pela dominância dos canaviais e por isso mesmo a
afirmaçäo plena só terá lugar a partir do momento em que surgiram as primeiras dificuldades
no comércio do açúcar.
A evoluçäo da safra viti-vinícola madeirense dos séculos quinze e dezasseis só pode ser
conhecida através do testemunho de visitantes estrangeiros, uma vez que é escassa a
informação nas fontes diplomáticas. Hans Standen definia em 1547 a economia madeirense
pelo binómio vinho/açúcar, passados vinte e três anos só se falará do vinho como principal
factor do sistema de trocas com o exterior. Os trigais e canaviais deram lugar às latadas e
balseiras. A vinha tornou-se a cultura quase que exclusiva do colono madeirense. Deste modo
vinho adquiriu o primeiro lugar na economia madeirense, mantendo-se assim por cerca de três
séculos.
A rápida e plena afirmaçäo do vinho da Madeira no mercado atlântico derivou do elevado
teor alcoólico que lhe favoreceu a expansäo em todo o mundo. Ele conseguia chegar em
condiçöes desejáveis aos destinos mais inóspitos e impróprios para a sua conservaçäo. Em
Cabo Verde, S. Tomé ou Brasil o vinho madeirense era preferido aos demais por ser o único
que resistia ao calor tórrido a que estava sujeito.
Os mestres e tripulantes das embarcaçöes, que demandavam a regiäo equatorial, näo
escondiam também a sua preferência, pelo que escalavam com assiduidade o Funchal para se
abastecerem de vinho. Este era dos poucos, talvez o único vinho que näo avinagrava à
passagem nos trópicos, antes pelo contrário, adquiria propriedades gustativas, o que muito os
alegrava.
Nos Açores a cultura da vinha esteve longe de adquirir, no início, a mesma pujança que
teve na Madeira ou nas Canárias, dificuldades do meio impediram que em algumas das ilhas
se produzisse vinho de qualidade com as cepas para aí levadas pelos madeirenses no século
XV.
Säo inúmeras as queixas dos estrangeiros que visitaram o arquipélago no século dezasseis
sobre a fraca qualidade do vinho que aí encontraram. Linschoten refere, a propósito, da
Terceira a "grande abundância de vinho, mas muito fraco e que näo pode guardar-se nem ser
transportado para fora. É, contudo, utilizado pela gente pobre, pois que os mais ricos usam
ordinariamente dos vinhos da Madeira e Canárias"132. Mesmo assim a cultura continuou,
adquirindo um lugar relevante na agricultura das ilhas de S. Miguel, Pico e S. Jorge. Na
primeira ilha a colheita de finais do século XVI poderia atingir as cinco mil pipas, sendo
maioritariamente da área de Ponta Delgada e Lagoa. Em S. Jorge chegava a atingir as três mil
pipas, enquanto no Pico rondava as mil e novecentas pipas.
No século dezassete alargou-se o mercado consumidor do vinho açoriano, nomeadamente
no Brasil, gerando um importante hinterland em torno do porto da Horta, um dos eixos do
comércio açoriano. A partir daí a principal ilha produtora foi a do Pico, que produziu cerca de
trinta mil pipas em 1649, passando para sessenta mil em 1658. O vinho ou vinagre de S.
Jorge, Pico e Graciosa tinham escoamento fácil a partir do porto. Depois nos séculos seguintes
elas mantiveram a hegemonia no mercado viti-vinícola açoriano.
A alimentaçäo dos insulares näo se resumia apenas a estes dois produtos basilares da
economia, pois que a eles se poderiam juntar as leguminosas e as frutas, que participaram na
luta a favor da subsistência.
A fruticultura e horticultura definem-se como componentes importantes na economia de
subsistência, sendo referenciadas com grande insistência por Gaspar Frutuoso em finais do
século XVI. As leguminosas e frutas, para além do uso no consumo diário, eram também
valorizados pelo provimento das naus que aportavam com assiduidade aos portos insulares.
Esta última situaçäo surge na Madeira e Açores mas também em Cabo Verde (Santo Antäo
e Santiago) e S. Tomé. Alguns viajantes testemunham-no, podendo-se citar para Santiago o
caso de André Álvares de Ornelas que em 1583 ficou admirado com a presença de fruteiras e
de a terra ser abastada133. A mesma ideia é expressa pelo piloto anónimo (1607) para S. Tomé,
que refere a existência de "muitas quintas e jardins com diversidade de fructas"134.
A alimentaçäo dos insulares completava-se com o aproveitamento dos recursos disponíveis
no meio e que adquiriam valor alimentar, isto é a caça e pesca e os derivados da actividade
pecuária, como a carne, o queijo e o leite. A pesca terá sido uma importante actividade das
populaçöes ribeirinhas, que usufruíam de uma grande variedade de mariscos e peixe. Em
Cabo Verde relça-se ainda a exploração de sal e do âmbar: o primeiro recolhe-se na ilha com
o mesmo nome, Maio e Boavista, sendo usado para a importante industria de salga do
arquipélago e exportação à costa africana, enquanto o segundo surge nas ilhas S. Nicolau,
Brava e Sal. O sal, tal como o anotam os cronistas, é espontâneo, sendo famosa a grande
132
. "História de Navegação", in Boletim do Instituto Histórico da ILha Terceira, I, 151.

133
. A.T.MOTA, Dois escritores quinhentistas de cabo verde, Lisboa, 1971, 27.

134
. Estabelecimentos e Resgates Portugueses (...), Lisboa, 1881, 16.
salina marinha da ilha do Sal, que lhe deu o nome. Mas foi a de Maio que se afirmou como o
principal centro de apanha e comércio do sal.
O gado adquiriu nas ilhas, principalmente nos Açores e em Cabo Verde, uma importância
fundamental na economia. Isto resultou da dupla funçäo. Ele para além do uso como força de
tracçäo nos transportes e na lavoura foi valorizado pela disponibilidade de derivados para a
alimentaçäo (carne e queijo) e nas industrias artesanais (peles e sebo). Tendo em conta esta
múltipla utilidade os municípios intervieram no sentido de valorizar a componente pecuária na
economia local. Em Vila Franca do Campo, Angra, Ponta Delgada e Funchal, as posturas
surgem com alguma assiduidade a atestar a importância do sector na vida local.
Em Cabo Verde, excepto nas ilhas de Santiago e Fogo, ao contrário do que sucedia na
Madeira e Açores, näo existiu qualquer ligaçäo entre a pecuária e a agricultura, sendo
diferente a forma de aproveitamento. Aqui há uma evidente especialização das demais ilhas
numa pecuária extensiva, assente em gado bovino e caprino. As ilhas eram arrendadas a
particulares, que por sua inciativa se encarregava de explorar estes proventos. No fundamental
pretendia-se apenas explorar aquilo que dava maior rentabilidade, isto é os couros e sebo. Por
isso nas doações aludia-se quase sempre à tributação destes e muito raramente da carne.
Todavia dela se servia, sob a forma de chacina para fornecer as armadas e conduzir ao reino e
à ilha da Madeira. Este foi um produto mais a activar as trocas externas da ilha, a partir de
meados do século XVI.
A carne salgada,sob a forma de chacina, foi por muito tempo uma importante fonte de
riqueza destas ilhas, servindo para abastecer as naus e a saída com destino ao Brasil, a
Madeira e reino. Mais importante do que isso eram as peles e o sebo foram também uma
importante fonte de rendimento, activadoras das trocas com os portos europeus, a partir de
Santiago. Numa relaçäo dos jesuítas (1603-1604) é testemunhada a riqueza do arquipélago
caboverdeano, dizendo-se que "há grande cópia de criaçäo de gado" e que as ilhas estavam
"todas habitadas de caçadores que daqui com muita courama se levam para diversas partes"135.
Um facto de particular significado foi a criação, nomeadamente na ilha de Santiago, de
gado equídeo para exportação à costa africana. Cadamosto, Valentim Fernandes e Duarte
Pacheco Pereira atestam a importância do cavalo no quotidiano das populações africanas, por
questão de honra e ostentação, o que foi motivo para os caboverdeanos conseguirem uma
nova contrapartida para as suas relações comerciais com esta região. Com um cavalo podia-se
adquirir em troca até 14 escravos. Todavia nos princípios do século dezasseis a paulatina
desvalorização do escravo nesta troca por escravos levou à diminuição da sua importância na
economia caboverdeana.

OS PRODUTOS DE EXPORTAÇÄO

Os produtos anteriormente citados surgem como uma necessidade emergente da dieta


alimentar dos colonos europeus ou das disponibilidades das áreas de fixaçäo. Outros há que
aparecem por motivos diferente e que acabam por adquirir uma importância desusada na
135
. Pe. Fernão GUERREIRO, Relação anual das coisas que fizeram os padres da companhia de Jesus..., T.I., livro IV, Coimbra, 1930, 401.
economia insular. Estes säo os produtos que designamos de coloniais, porque impostos pela
Europa com a finalidade de suprir as carências do mercado europeu.
Foi a Europa que os valorizou e moldou de acordo com as necessidades comerciais,
distribuindo-os pelas áreas adequadas e assegurando os meios necessários ao seu cultivo,
escoamento e comércio. Nestas circunstâncias surgem a cana de açúcar e o pastel.
Os incentivos da coroa e município, aliados à elevada valorizaçäo pelos agentes europeus,
actuaram como mecanismos propiciadores do desenvolvimento das culturas.

A CANA-DE-AÇÚCAR

A cana-de-açúcar, pelo alto valor económico no mercado europeu-mediterrânico, foi um


dos primeiros e principais produtos que a Europa legou e definiu para as novas áreas de
ocupaçäo no Atlântico.
O percurso iniciou-se na Madeira, alargando-se depois às restantes ilhas e continente
americano. Nesta primeira experiência além-Europa a cana sacarina evidenciou as
possibilidades de desenvolvimento fora do habitat mediterrânico. Tal evidência catalisou os
interesses do capital nacional e estrangeiro, que apostou no crescimento da cultura e comércio.
Se nos primeiros anos de vida no solo insular a cana sacarina se apresentava como subsidiária,
a partir de meados do século XV já aparecia como o produto dominante, situaçäo que
perdurou na primeira metade do século seguinte.
No começo a cultura foi alvo de mil cuidados. Era a coqueluche das plantas que
acompanharam os primeiros colonos na diáspora atlântica. Esta realidade está evidenciada na
permanente intervenção da coroa, do senhorio e munícipio nas fases de cultivo, transformação
e comércio. Nunca uma cultura e produto final foram alvo de tão apertada regualmentação e
vigilância. Esta luta materializa-se na defesa e manutenção da qualidade da colheita, no que
foi acompanhada pelo s demais, como o vinho e pastel. A todos definiam-se, por regimentos
específicos, as tarefas de cultivo, cuidado e laboração final do produto.
nos séculos XV a XVII a intervenção das autoridades resultava apenas da necessidade de
garantir ao açúcar da ilha uma posição dominante no mercado interno e a situação
concorrencial nos mercados nórdicos e mediterrânico. A partir do século XVI a concorrência
do açúcar brasileiro foi, por algum tempo,o motivo de discórdia entre os vários interesses em
jogo. Por isso o incremento da cultura, a partir da década de quarenta do século XVII,provoca
uma politica protecionista, com limitações à entrada do açúcar brasileiro, incentivos ao
restabelecimento dos engenhos e a redução, a partir de 1688, dos direitos de um quinto para
um oitavo.
A cana sacarina, usufruindo do apoio do senhorio e coroa, conquistou o espaço arroteado
das searas e expandiu-se a todo o solo arável da vertente meridional. A capitania do Funchal,
ocupando a quase totalidade da área, agregava, por isso mesmo, no seu perímetro as melhores
terras para a cultura do açúcar. Entretanto à de Machico restava apenas uma ínfima parcela e
todo um vasto espaço arborizado, necessário à construçäo e actividade dos engenhos. Em
1494 do açúcar produzido na ilha apenas 20% era proveniente de Machico sendo todo o
demais do Funchal: a relaçäo entre estes valores para o período de 1494 e 1537 oscilava entre
os 5:1 (1494) e os 3:1 (1521-1524).
Na capitania do Funchal existiam áreas distintas para o cultivo de canaviais. O estimo de
1494 refere aí duas áreas de canaviais: o Funchal e arredores e o restante espaço a partir de
Campanário, conhecido como partes do Fundo. A última área era a de maior colheita,
surgindo com 74% das arrobas dos estimos de 1494. Passados vinte e seis anos, a situaçäo
evolui de modo favorável para o Funchal que apresentava 33%.
O período de plena afirmação desta cultura situa-se entre 1450 e 1521. Durante esses anos
os canviais dominaram o panorama agrícola madeirense e o açúcar foi o principal produto de
troca com o mercado externo.O ritmo de crescimento desta cultura é quebrado apenas nos
anos de 1497-1499, com uma críse momentânea na comercialização. A partir de 1516 os
efeitos da concorrência fizeram-se sentir na ilha e conduziram a um paulatino abandono dos
canaviais.
A cultura persistiu nos séculos XVII e XVIII, ainda que com reduzida dimensão.Neste
momento a capitania do Funchal continua a ser a principal área produtora, fundamentalmente
Camara de Lobos, Calheta, Estreito da Calheta e Canhas. Em 1687 Hans Sloane136 é
peremptório: "Esta ilha é muito fértil tendo antigamente produzido grandes quantidades de
açúcar aqui cultivado e de excelente qualidade. O que agora possuem é bom, mas muito
escasso, devido à existência de muitas plantações açucareiras nas Índias Ocidentais(...).Assim,
embora consiga um produto de maior cotação, acham que lhes é muito proveitoso dedicarem-
se aos vinhos, pelo que apenas produzem o açucar indispensável aos gastos caseiros e ao
fabrico de doces, indo ainda compra-lo ao Brasil, às suas próprias plantações." Data da
segunda metade do século XVIII o abandono desta cultura pelo seu pouco interesse comercial,
resultante da falta de capacidade de competir com o brasileiro e antilhano.

A ESTRUTURA FUNDIÁRIA
A presença desta cultura no solo madeirense conduziu a uma reestruturaçäo do regime
fundiário de acordo com as suas especificidades. Para a plena afirmaçäo dos canaviais foram
necessárias algumas condiçöes, para além das oferecidas pelo solo: a água para o regadio e
accionar os engenhos; a madeira para construir os engenhos e a lenha para manter em
funcionamento as caldeiras.
Foi de acordo com a presença destes factores que a cana se expandiu na ilha. Mesmo assim
convém esclarecer que os canaviais madeirenses nunca atingiram a dimensäo dos brasileiros e
dos de Säo Tomé. Aqui, ao contrário do que sucedeu do outro lado do Atlântico, a cultura só
podia ser feita de modo intensivo em poios talhados de forma engenhosa pelo madeirense.
De acordo com o estimo de 1494 poderá dizer-se que o sistema fundiário em torno do
açúcar evidenciou-se pela dominância da pequena propriedade: os proprietários com mais de
1000 arrobas representam apenas 22 enquanto para o período de 1509 a 1536 surgem 44,
sendo 15 com valores superiores a 2000 arrobas. Para o ano de 1494 é possível saber qual a
importância assumida pelos canaviais, uma vez que o estimo era feito individualmente por
cada: para um total de 209 proprietários temos 431 canaviais.
É comum dizer-se que os canaviais beneficiavam directamente amplas camadas da
populaçäo madeirense, o que parece näo corresponder à verdade, pois a tendência para o
excessivo parcelamento da propriedade näo diminuiu a capacidade de afirmaçäo dos grandes
proprietários, que se serviam de arrendatários ou colonos: em 1494 dos 209 proprietários de
canaviais surgem apenas 21%. Se tivermos em conta este número de proprietários e o
daqueles que surge no período de 1509 a 1536 (263 proprietários) seremos forçados admitir
136
. A. Aragão,ob.cit., 158.
que a cultura beneficiava apenas um reduzido número de madeirenses. Os demais usufruíam
de benefícios indirectos, mercê do comprometimento com as diversas tarefas ligadas à cultura,
transporte, transformaçäo e comércio. No primeiro grupo, de beneficiários directos, incluíam-
se mercadores nacionais e estrangeiros e a aristocracia local comprometida com a
administraçäo régia e senhorial: ambos controlavam, no século XVI, 51% da colheita,
situando-se no grupo de proprietários com mais de 1000 arrobas.

Para os séculos seguintes a grande propriedade cede lugar à pequena parcela de canaviais.
No ano de 1600 a maioria dos proprietários(isto é 89%) produz entre 5 e 50 arrobas e para o
período de 1689 a 1705 a medida padrão para estabelecer a receita do oitavo é a libra.
Este tipo de análise só nos foi possível para a Madeira, onde dispomos de alguns livros de
registo dos direitos lançados sobre o açúcar arrecadado, faltando idêntica informaçäo para os
Açores e Säo Tomé.

A cana-de-açúcar foi, de todas as culturas transplantadas para o espaço atlântico, aquela


que maior cuidados requeria num período limitado de tempo. O ciclo vegetativo definia um
acompanhamento constante ao longo do ano: plantar, mondar, esfolhar, combate às pragas e
efeitos nefastos dos animais, cortar e, depois, conduzir ao engenho onde se moía e extraia o
suco para o fabrico do açúcar.Enquanto as tarefas relacionadas com a cultura se realizavam de
forma lenta ao longo do ano, a parte relacionada com a safra do engenho era uma actividade
intensiva que deveria ser executada num curto período. O engenho laborava dia e noite,
desmultiplicando-se as tarefas entre a casa da moenda, fornalhas e purga. Tudo isto deveria
ser seguido e realizar-se num prazo de 72 horas, pois caso contrário a cana e o suco entravam
em fermentaçäo. Perante tal facto tornava-se justificável a presença de numerosa mäo-de-obra
que só poderia ser recrutada entre os escravos. O fenómeno foi descrito, cerca de 1530, por
Giulio Landi da seguinte forma:

Fabrica-se o açúcar desta maneira: apanham primeiramente as


canas e estendem-nas por ordem nos sulcos. Depois, cobertas de terra, väo-nas
regando amiudadas vezes, de modo que a terra sobre os sulcos näo se torne seca, mas
se mantenha sempre humida. Daí que, pela força do sol, cada nó produz a sua cana
que cresce a pouco e pouco cerca de quatro braças e sucedia assim porque o terreno
aplicado entäo ao cultivo, tinha mais força de produçäo (...). Assim amadurecem ao fim
de dois anos e, quando maduras, cortam-nas na Primavera, rente ao pé. Os pés,
germinando de novo, produzem outras canas para o ano seguinte, as quais näo crescem
täo altas, mas com cerca de menos uma braça e, ao fim de um ano,ficam maduras.
Cortadas estas segundas, arrancam totalmente as plantas para depois, no devido tempo,
reporem outras canas como se disse. Quando maduras, chegam muitas vezes a ser
danificadas pelos ratos. Por isso os escravos empregam muita diligência em apanhar e
matar estes ratos (...). Os lugares onde com enorme actividade e habilidade se fabrica o
açúcar estäo em grandes herdades, e o processo é o seguinte: primeiramente,
depois que as canas cortadas foram levadas para os lugares acima referidos, pöem-nas
debaixo de uma mó movida a água, a qual, triturando e esmagando as
canas,extrai-lhe todo o suco. Aqui há cinco vasos postos por ordem, para cada um dos
quais o suco saido das canas passa um certo tempo em ebuliçäo, depois, passando para
os outros vasos, com fogo brando, däo-lhe com habilidade a cozedura, de modo que
chegue a espessura tal que, posto depois em formas de barro, possa endurecer. A
espuma que se forma ao cozer o açúcar, deita-se em barricas,excepto a que sai da
primeira cozedura, porque esta se deita fora; mas a outra, que se conserva, é muito
137
semelhante ao mel" .

Na moenda da cana utilizaram-se vários meios (alçapremas, lagares e trapiches de besta),


de que teria resultado na Madeira o aparecimento do primeiro engenho de água, patenteado
em 1452 por Diogo de Teive. Todavia a processo näo se resumiu apenas a este tipo de
maquinismo, uma vez que nas áreas onde näo era possível dispor da força motriz da água se
fez uso da força animal ou humana. Estes eram conhecidos como trapiches ou almanjaras.
Para S. Tomé o Piloto Anónimo refere o uso de "os braços dos negros e ainda mesmo
cavalos". Deste sistema sabe-se apenas do uso nos primórdios da exploraçäo da cana-de-
açúcar na Madeira, sendo pouco provável a continuidade após a experiência do engenho de
água de Diogo de Teive, tendo em conta a disponibilidade de cursos de água e do possível
aproveitamento por meio das levadas.
Na Madeira os factores geo-hidrográficos foram propícias à generalizaçäo dos engenhos de
água, em que os madeirenses se mostraram exímios criadores. Também em S. Tomé estavam
criadas as condiçöes para a afirmaçäo da cultura. Enquanto a primeira desfrutava de inúmeros
cursos de água e de uma vasta área de floresta, disponibilizando lenha para as fornalhas e
madeira de pau-branco para os eixos do engenho, em S. Tomé contava-se, para além do
parque florestal, com o fácil acesso aos mercados fornecedores da mäo-de-obra escrava.
Toda a actividade sócio-económica gerada pelo açúcar foi dominada pelo engenho, mas
isto näo significava que a existência de canaviais resultasse a presença próxima de um
engenho. Na Madeira, a exemplo do Brasil, foram inúmeros os proprietários incapazes de
dispor de meios financeiros para montar semelhante estrutura industrial. No estimo da
produçäo da capitania do Funchal para o ano de 1494 säo referenciados apenas 14 engenhos
para um total de 209 usufrutuários e 431 canaviais138. Todavia em documento de 1493 são
referenciados 80 mestres de açúcar. Acresce, ainda, que Gaspar Frutuoso, em finais do século
XVI, dá conta de 34 engenhos. No século imediato o número de engenhos em laboração é
cada vez mais reduzido pelo que a aposta na cultura tornou necessário o reparo dos que
estavam desactivados por meio de empréstimose a isenção de pagamento do quinto por cinco
anos.. Os poucos engenhos em funcionamento estavam sediados em Camara de Lobos e
Funchal, o que implicava redobradas dificuldades para a maioria dos lavradores da Calheta,
Ponta de Sol e Ribeira Brava. Mesmo assim são escassos os engenhos e, por vezes,
insuficientes para os canaviais cultivados. Note-se que a partir de meados do século XVIII só
persistiu apenas um engenho em laboração na Ribeira dos Socorridos.
O preço de montagem de semelhante estrutura industrial näo estava ao nível da bolsa de
todos os proprietários. De acordo com o estimo feito para o engenho de António Teixeira no
Porto da Cruz em 1535 esta benfeitoria estava avaliada em duzentos mil reais139. Noutro
documento de 1547 refere-se que os canaviais, engenho e sua água de servidäo orçavam os

137
. "Descrição da ilha da Madeira", in A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, 84-85.

138
. V. Rau e Jorge Macedo, O Açúcar da Madeira nos fins do século XV. Problemas e produção e comércio, Funchal, 1962.

139
. Alberto Artur, "Apontamentos Históricos de Machico", in Das Artes e Da História da Madeira, vol. I, 8-9.
461.000 reais140. Mas em 1600 Joäo Berte de Almeida vendeu a Pedro Gonçalves da Câmara,
no Funchal, um engenho pelo valor de 700.000 reais141.

Criadas as condiçöes ao nível interno, por meio do incentivo ao investimento de capitais


estrangeiros na cultura da cana e comércio dos derivados, do apoio do senhorio, coroa e
administraçäo, a cana estava apta para prosperar e se afirmar, ainda que só por algum tempo,
como o produto dominante da economia madeirense.
O incentivo externo provocado pelos mercados nórdico e mediterrânico condicionou o
processo expansionista nesta e nas demais áreas atlânticas. A esta aposta, acompanhada do
incessante pedido do mercado externo, sucedeu um período de crise resultante näo só da
concorrência de novos mercados produtores, mas acima de tudo de factores internos, como a
carência de adubagem dos terrenos, a desafeiçäo do solo à cultura, as mudanças climáticas,
que entretanto se sucederam, e, por fim, o aparecimento do bicho da cana.
A primeira metade do século dezasseis é definida como o momento de apogeu da cultura
açucareira insular e pelo avolumar das dificuldades que entravaram a promoçäo em algumas
áreas como a Madeira onde o cultivo era oneroso e os níveis de produtividade desciam em
flecha. Nesta época as ilhas de Gran Canária, La Palma, Tenerife e S. Tomé estavam melhor
posicionadas para produzir açúcar a preços mais competitivos. Isto sucedeu na década de
vinte do século dezasseis e avançou à medida que os novos mercados produtores de açúcar
atingiam o máximo de produçäo.
Mais tarde, com o controlo holandês do nordeste brasileiro, a cultura foi reabilitada como
forma de responder à sua procura na Europa e pela necessidade resultante das indústrias de
conserva e
casquinha. Até 1640 o movimento descendente havia-se agravado com a presença, cada vez
mais assídua de açúcar brasileiro no porto do Funchal.
Em 1616, para garantir o escoamento da produçäo madeirense, fora determinado que
primeiro se vendesse o açúcar local e que à saída se fizesse uma distribuiçäo equitativa de
ambos os açucares. Mas a partir desta data, com o domínio holandês das terras brasileiras a
cultura renasceu na ilha. Em 1648 o número de engenhos existentes era insuficiente para dar
vazäo ao açúcar produzido. No entanto, tratou-se de uma recuperaçäo passageira uma vez que
na década seguinte o reaparecimento do brasileiro no porto do Funchal trouxe de volta a
anterior conjuntura.
O açúcar madeirense estava, mais uma vez, irremediavelmente perdido, mercê da
concorrência. Em 1658 ainda se procurou apoiar o seu cultivo ao serem reduzidos os direitos
sobre a cultura para um oitavo, mas a crise era inevitável.
O principio fundamental que regeu o movimento de circulação do açúcar foi a necessidade
de suprir as carências de alguns mercados europeus. A conjuntura era favorável ao
aparecimento de novas áreas. O consumo ia em constante crescimento e as rotas de
canalização do produto oriental eram cada vez mais difíceis.. Foi esta conjuntura que impôs a
nova cultura no espaço atlântico e ditou as regras do seu mercado. Deste modo o consumo
interno de açúcar é uma exigência tardia, gerada por nvos hábitos alimentares ou das
contigências do mercado do produto. Neste último caso assume importância o dispendio de

140
. Arquivo regional da Madeira, Capelas, Cxa. 8, nº 9, Inventário de bens de João de ornelas e Vasconcelos de 19 de Janeiro de 1547.

141
. Arquivo Regional da Madeira, Misericórdia do Funchal, nº 40 fls. 49-58, 11 de Setembro de 1600.
açúcar na industria de conservas e casca. Parte significativa do açúcar madeirense e, mais
tarde, do Brasil era usado nisso.
O fabrico do açúcar começava em Março mas só em Agosto havia dele disponível para
distribuir às conserveiras.A partir daqui eram mais trinta e poucos dias de árdua tarefa até que
o produto estivesse disponível para exportação.
Um dos principais factores de promoção da indústria das conservas foi a importância do
Funchal como porto de escala e abastecimento para a navegação atlântica. Muitas
embarcações aportavam aí com o intuito de se fornecerem de conservas de citrinos. Mas , sem
dúvida, o consumidor preferencial das conservas e doçaria madeirense foi, o início, a casa real
e, depois, as cidades do Norte da Europa: Rochela, S.Malo Bordeus, Amesterdão. Hamburgo.
No fabrico das conservas e doces merecem a nossa atenção as freiras do convento de Santa
Clara, da Encarnação e Mercês. aliás, em 1687 Hans Sloane referia-se de forma elogiosa aos
doces e compotas que comeu em Santa Clara, rematando que "nunca vi coisas tão boas"
Os confeitos, alfenim e casquinha da Madeira tiveram fama em toda a Europa, pois por
muito tempo foram a delícia das cortes europeias e o principal presente: Vasco da Gama
presenteou o xeque de Moçambique com conservas da ilha, enquanto Simão Gonçalves da
Camara fez o mesmo ao papa Leão X. É de referir que o comércio da casquinha foi um dos
animadores do comércio da ilha na segunda metade do século XVII.
A conjuntura económica de finais do século dezanove trouxe a cultura de regresso à
Madeira, como meio para reabilitar a economia que se encontrava profundamente debilitada
com a crise do comércio e produçäo do vinho. Esta situação, que se manteve até à actualidade,
näo veio atribuir ao produto a mesma pujança económica de outrora.

A EXPANSÄO DA CANA DE AÇÚCAR

Como já se disse, as socas de cana madeirense foram levadas para os Açores pelos
primitivos cabouqueiros, promovendo-se o cultivo em Santa Maria, S. Miguel, Terceira e
Faial. Aqui a cultura foi tentada várias vezes, mas sem surtir os efeitos desejados. As
condiçöes geofísicas aliadas à inexistência ou reduzida dimensäo dos capitais estrangeiros
travaram o seu desenvolvimento.
Foram inúmeras as regalias e privilégios para a o seu lançamento nas ilhas açorianas, que
mesmo assim näo conseguiram suplantar as dificuldades do meio. No primeiro quartel do
século dezasseis a cultura adquiriu alguma importância em S. Miguel, Santa Maria e Faial.
Neste momento a produçäo representava um terço da que se colhia nos canaviais madeirenses.
Fala-se, mais tarde, de uma nova fase de retorno da cultura a partir da década de quarenta, mas
faltam-nos dados seguros para avaliar a dimensäo que terá assumido. Certamente a tendência
foi, mais uma vez, coarctada pela aposta definitiva na cultura do pastel e de cereais, pois o
açúcar começava a surgir de forma mais vantajosa no Brasil .
Aos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé os canaviais chegaram muito mais tarde e
como noutras áreas a experiência madeirense foi importante. No primeiro só nas ilhas de
Santiago e S. Nicolau, mas sem nunca ter sido uma cultura rentável e concorrencial do açúcar
madeirense. As condiçöes morfológicas e orográficas foram-lhe adversas. A introduçäo
deverá ter sido feita, no início do povoamento na década de sessenta, näo obstante a primeira
referência datar de 1490. Por outro lado o açúcar produzido no arquipélago, a exemplo do que
sucederá em S. Tomé, näo apresentava a qualidade do madeirense, pois como nos refere
Gaspar Frutuoso "nada deste chega ao da ilha da Madeira"142. Apenas é conhecido o engenho
do morgadio de Fernão Fiel de Lugo, o qual nas suas fazendas de Trindade e Santa Cruz
cultivava canaviais, tendo ao seu serviço um escravo Sebastião, como mestre de engenho.
Também o morgadio, fundado em 1531 por André Rodrigues, com o nome de "o engenho",
deverá ser indicativo da presença doutro engenho de açúcar.
Mais tarde, no século dezanove, a cultura estava de volta ao arquipélago, sendo utilizada,
principalmente, para o fabrico de aguardente que se consumia no arquipélago e exportava para
os Rios de Guiné.
Diferente foi o que sucedeu em S. Tomé onde a abundância de águas e lenhas associada às
condiçöes do solo foram de molde a
propiciar os meios indispensáveis ao cultivo da cana. O açúcar aí
produzido, tornou-se, por isso mesmo, concorrencial do madeirense, embora sem nunca
atingir a sua qualidade. Em Lisboa os confeiteiros reclamavam com frequência contra a má
qualidade do açúcar de S. Tomé, havendo mesmo quem o refinasse segunda vez, o que foi
proibido pelo município devido à despesa elevada de lenhas.
Em S. Tomé os canaviais estendiam-se pelo norte e nordeste da ilha, fazendo lembrar,
segundo um testemunho de 1580, os campos alentejanos143. Um dos factos que contribuiu
para que ele se tornasse concorrencial do madeirense foi a elevada produtividade. Segundo
Jerónimo Munzer144 ela seria três vezes superior à madeirense. No começo só se produzia
melaço, que depois era levado a Lisboa para ser refinado, mas a partir de 1506 a ilha passou
também a fazer açúcar branco, tendo-se para o efeito construído o primeiro engenho145.
O Piloto Anónimo dá-nos conta também do modo como se processava a cultura na ilha de
S. Tomé. Aqui as canas levavam apenas cinco meses para amadurecerem, pelo que, sendo
"plantadas no mês de Janeiro, cortam-nas em princípios de Junho". Ao contrário da Madeira,
que a cultura era sazonal, em S.Tomé podia-se plantar e cortar cana todos os meses, do que
resultava uma maior distribuiçäo das tarefas ao longo do ano. A actividade dos engenhos é
também referida pelo autor:

"Existem ali cerca de 60 engenhos, já construídos, onde corre água, com a qual
moem a cana e a pisam. Deitam o suco em caldeiras enormes, e depois de fervido
lançam-no em formas, nas quais fazem päes de açúcar de 15 ou 20 libras,
purificando-o com cinza, do mesmo modo que nós fazemos com a argila peneirada. Em
muitos lugares da ilha onde näo há água, empregam neste trabalho os braços dos negros, e
também escravos"146.

142
. Ob. cit., livro primeiro, 180.

143
. Isabel Castro HENRIQUES, "O ciclo do açúcar em S. Tomé nos séculos XV e XVI", in Portugal no Mundo, I, Lisboa, 1989, 271.

144
. Monumenta Missionária Africana, IV, 1954, nº 6, 16-20.

145
. O Manuscrito de Valentim Fernandes, Lisboa, 1940, 128.

146
. Navegação de Lisboa à ilha de São Tomé escrita por um piloto anónimo, Lisboa, 1989, 25-29.
Maior era a dificuldade no enxugar os päes de açúcar, devido à elevada humidade do ar.
Por isso houve a necessidade de definir um método capaz de o conseguir em pouco tempo
pouco:

" Fazem um coberto alto de tábuas (...) todo fechado por cima e dos lados, sem
janela algua, somente com a abertura da porta;levantam dentro dele um estrado da altura
de 6 pés, com traves distantes uma da outra 4 pés, e sobre elas väo estendendo
tábuas, nas quais colocam os päes de açúcar; debaixo do dito estrado estäo alguns
madeiros secos, de árvores grossas, os quais, lançando-lhes fogo, näo fazem chama
nem fumo, mas väo-se consumindo do mesmo modo que o carväo. E deste modo enxugam
os açúcares, como numa estufa, conservando- os depois em lugares todos fechados com
tábuas, de modo que o ar näo entre".

A mais antiga referência aos engenhos de água na ilha data de 1517, altura em que a
produçäo da ilha rondaria as cem mil arrobas. Estes valores provam que em pouco tempo S.
Tomé suplantou a Madeira, que produzia noventa e três mil arrobas e nunca haveria de
ultrapassar a barreira das cento e quarenta e quatro mil, conseguidas em 1510. Em S. Tomé os
canaviais produziam muito mais que os madeirenses de modo que em 1528 a safra
ultrapassava as cento e vinte mil para alcançar nas décadas de quarenta a sessenta as cento e
cinquenta mil. Neste período o número de engenhos terá chegado aos quatrocentos.
Precisamente em 1529, ano em que coroa estipulou os necessários incentivos à construçäo
de engenhos, surgem as primeiras queixas dos madeirenses contra a concorrência do açúcar
säotomense. Para isso terá contribuído o facto dele ser vendido em Lisboa como sendo da
Madeira, para o fabrico de conservas.
A partir da década de sessenta começaram a surgir as primeiras dificuldades na safra
açucareira de S. Tomé. Primeiro o assalto dos corsários franceses em 1567 e depois a revolta
dos angolares em 1574 atingiram particularmente os engenhos. Passados alguns anos
redobraram as dificuldades com os assaltos dos holandeses (1595-1596 e 1641) e a revolta dos
Mocambos (1595-1596). A isto se poderá juntar a presença do bicho da cana (1621) e, a partir
de 1635, a falta de escravos para a safra devido à presença dos corsários holandeses nos
principais mercados negreiros. Note-se que só em 1641, quando da ocupaçäo holandesa,
foram abandonados mais de sessenta engenhos, sendo os restantes queimados por estes ou
pelos angolares. Desta forma os invasores impediam a sua concorrência com o pernambucano,
que pretendiam controlar. A conjuntura teve reflexos evidentes na safra da segunda metade do
século, conduzindo a cultura para um estado de crise de que nunca se reabilitou.
Se nos preocuparmos em comparar o ciclo evolutivo da cultura da cana nos diversos
espaços do Atlântico onde foi cultivada concluiremos pela existência de afinidades entre a sua
afirmaçäo numa área e a decadência noutras. Assim sucedeu na Madeira com S.Tomé e desta
para com o Brasil. O cultivo dos canaviais surge em S. Tomé em finais do século XV, isto é
no momento de apogeu da produçäo madeirense, que atinge em 1510 o valor mais elevado,
entrando depois num movimento descendente. Esta fase depressionária, que se acentua a partir
de 1525, coincide com o momento de afirmaçäo do açúcar säotomense. É precisamente nas
décadas decorrentes até meados do século que se atingem os valores mais elevados.
A partir do último quartel do século dezasseis foi a concorrência desenfreada do açúcar
brasileiro que definiu uma acentuada quebra no período de 1595 a 1600. A esta conjuntura
deverá juntar-se a revolta dos escravos (1595), agravada pela destruiçäo dos engenhos
provocada pelo saque holandês. Na verdade este momento coincide com a plena afirmaçäo do
açúcar brasileiro, cuja colheita continuava a subir em flecha, nas décadas posteriores.
O domínio holandês de Recife, ao contrário do que habitualmente se pensa, näo provocou
uma quebra deste ritmo mas apenas quebras pontuais, que se reflectiram nos valores dos anos
de 1618 e 1645. Este período, de menor oferta do açúcar brasileiro nos portos peninsulares,
näo deverá ser entendido como uma quebra da produçäo mas apenas um desvio dos circuitos
comerciais. Esta conjuntura coincide com o retorno da cultura na Madeira e em S. Tomé,
atingindo-se na última, entre 1641-1645 as cem mil arrobas. Tal ritmo de reabilitaçäo da
economia açucareira insular teve que enfrentar as dificuldades levantadas pelos holandeses,
interessados em manter o exclusivo do açúcar pernambucano.
A partir daí o arquipélago de Säo Tomé ficou a depender apenas do comércio de escravos e
da pouca colheita de mandioca e milho. Mas a crise do comércio de escravos a partir de
princípios do século dezanove fez com que se operasse uma mudança radical na economia.
Surgiram, então, novas culturas (cacau, café, gengibre e azeite de palma) que proporcionaram
uma nova aposta agrícola.

O PASTEL

O pastel aparece na economia insular em condiçöes idênticas ao açúcar. Foi uma cultura
introduzida pelos europeus para satisfazer as carências do mercado de têxteis. Até ao século
XVII com a introdução do anil na Europa ele foi a principal planta da tinturaria europeia,
donde se extraia as cores preta e azul. A par disso a disponibilidade de outras plantas
tintureiras, como a urzela (donde se tirava um tom castanho-avermelhado) e o sangue de
drago, levaram ao aparecimento de italianos e flamengos, interessados no comércio, que por
sua vez nos legaram a nova planta tintureira: o pastel.
O pastel foi primeiro cultivado na Madeira, e depois nos Açores e nas Canárias. Mas só no
arquipélago açoriano, nas ilhas de S. Miguel, Terceira, S. Jorge e Faial, atingiu maior
dimensäo económica. A toponímia regista-se a sua presença e define os espaços do seu
cultivo.
Na Madeira refere-se a cultura e comércio no século XV. Os italianos teriam sido os
principais interessados no comércio o que os levou a considerarem a Madeira como a ilha do
pastel. No século XVI está documentada a sua saída para Flandres. Mas os dados documentais
säo escassas as referências denunciadoras da sua presença, o que poderá resultar da
secundarizaçäo na economia madeirense em favor de outros produtos, como o vinho e o
açúcar, dominantes e granjeadores de elevados proventos.
Foi no arquipélago açoriano que o pastel alcançou um lugar de grande relevo. A sua
importância poderá ser comparável à que assumiu o açúcar na Madeira, Canárias e S. Tomé.
Foi a cultura do pastel que activou as trocas com o exterior e despertou o interesse dos
mercadores italianos, flamengos e ingleses. A sua promoçäo nas ilhas resultou da presença
dos flamengos, mas foram os ingleses nos séculos dezasseis e dezassete que tiveram dele
consumo preferencial. Eles participaram no povoamento da Terceira e do Faial. Todavia foi
na ilha de S. Miguel que se produziu a maior parte do pastel exportado dos Açores, sendo ele
responsável pelo aparecimento de várias fortunas, como sucedeu com Jorge Botelho e
Francisco Arruda da Costa.
A exemplo do sucedido com o açúcar na Madeira, a coroa concedeu vários incentivos para
a promoçäo da cultura, que com a incessante procura por parte dos mercados nórdicos,
fizeram avançar rapidamente o seu cultivo. Em 1589 Linschoten referia que "o negócio mais
frequente destas ilhas é o pastel" de que os camponeses faziam o " principal mister", sendo o
comércio "o principal proveito dos insulares147", enquanto em 1592 o governador de S.
Miguel atribuía a falta de päo à domínio quase exclusivo do solo pelo cultivo do pastel148.
Os açorianos também procediam à preparaçäo do pastel para exportaçäo. As folhas eram
apanhadas e depois moídas num engenho para se retirar todo o sumo. Depois faziam-se bolos
redondos que eram vendidos aos mercadores. Eram estes que procediam à granagem das
referidas bolas em tanques de água. A operaçäo era morosa e requeria a presença diaria dos
granadores, cujas funçöes eram fiscalizadas pelos lealdadores. Os regimentos régios e
municipais davam maior atençäo a esta fase. Gaspar Frutuoso legou-nos um testemunho
precioso sobre o cultivo e laboração do produto:

"É o pastel um quarto género, de usam os tintureiros para dar cor azul, sobre a qual
se dá melhor a cor preta;... o qual apanhado em folha, se moe nos engenhos que disse, e
está em um tabuleiro a massa dele até o outro dia, escorrendo algum sumo, e então
são obrigados os lavradores a o embolarem, fazendo uns bolos redondos, cada um
quanto podem compreender ambas as mãos no meio, e, depois de embolado, se põe a
enxugar em uns caniços ao sol e ao vento, e seco se guarda em casa até o mês de
Janeiro, Fevereiro e Março, em os quais o pesam e recebem os mercadores e recolhem em
suas tulhas ladilhadas e rebocadas, onde quebrando aqueles bolos, a cada dez
quintais, pouco mais ou menos, botam uma pipa de água, com que o trazem trinta dias
ganhando grande quentura e virando-o cada dia. Passados os trinta dias por algum espaço
de tempo, o viram cada dois dias, e depois o vem a virar o grandor, que o grana dois dias
na semana até se enxugar, e depois o vendem os da terra aos de fora ou aos da mesma
terra...149".

A morosidade das tarefas de fabrico,de que dependia a qualidade do pastel, levou a coroa
estabelecera em 1536 pelo "regimento sobre o beneficiar do pastel e enleicäo dos lealdadores"
as normas adequadas à sua cultura e fabrico do produto final de exportaçäo.
A urzela foi também um importante recurso das ilhas que teve idêntico aproveitamento na
indústria tintureira. Esta é uma planta indígena das ilhas dos Açores, Canárias, Cabo Verde e
Madeira. Todavia a sua importância na economia insular só será relevante a partir do século
dezoito. Esta planta surgia na rocha íngreme do litoral, tornando a operaçäo de apanha um
trabalho arriscado.

O ALGODÃO, O LINHO E OS PANOS

147
. Ob. cit., 152-154.

148
. Arquivo dos Açores, II, 130.

149
. M.O.R. GIL, O Porto de Ponta Delgada..., 90-100.
Nos arquipélagos além do Bojador ignora-se a presença do pastel, näo obstante a
importância que aí assumiu a cultura do algodäo e o consequente fabrico de panos. O clima, o
desconhecimento das técnicas de tinturaria, demonstrada na entrega da exploraçäo da urzela
aos castelhanos João e Pêro de Lugo, favoreceram esta conjuntura. Mas aqui a cultura do
algodäo foi imposta pelos mercados costeiros africanos,carentes de fio para a industria têxtil.
De acordo com Valentim Fernandes a cultura do algodäo incidia sobre as ilhas Santiago,
Maio e Fogo150. Todavia foi nesta última ilha que ele ganhou maior importância.Assim a
coroa em 1513 oitocentos e noventa quintais de dízimo, o que significa que estávamos perante
uma importante produçäo, existindo, por isso mesmo, um feitor do algodäo. Até 1517 ele era
exportado em bruto, depois de reunido e limpo em Santiago, mas a partir daí os insulares
passaram a fabricar panos que depois enviavam para a costa da Guiné.
No decurso dos séculos XVI e XVII o algodäo apresentou-se como primordial para a
economia caboverdeana, sendo o principal incentivo, ao lado do sal, para as trocas comerciais
com a costa africana, nomeadamente Casamansa e o rio de S. Domingos.
Na ilha do Fogo apostou-se forte na produção algodoeira mas era Santiago que o
comerciava, tal como o estipula o regimento do feitor do algodão de 1520151. Mas ele foi
também um dos mais importantes alvos da cobiça dos corsários. Ao nível da economia
caboverdeano ele funcionou muitas vezes como moeda nas trocas directas no arquipélago e
costa africana. Com ele compravam-se os escravos mas também os panos e marfim.
Nos arquipélagos da Madeira e Açores sabe-se apenas que foi cultivado o linho, da qual se
fabricavam os panos mais comuns usados pela gente modesta, uma vez que os tecidos de luxo
eram importados do reino ou do estrangeiro. Mas foi em S. Miguel, nomeadamente nos
municípios da Ribeira Grande e Lagoa, que a cultura teve maior incentivo, produzindo-se
panos (de estopa, de guardanapos, toalhas de mesa) para uso da terra e exportaçäo para as
ilhas vizinhas, enquanto as pedras de linho podiam ser enviadas para o estrangeiro,
nomeadamente Inglaterra.

APROVEITAMENTO DOS RECURSOS

A economia das ilhas näo se resumiu apenas aos produtos trazidos pelos colonos europeus,
pois elas também dispunham de recursos marinhos e terrestres. Quanto ao primeiro aspecto é
necessário ter em conta que os insulares, pela forma de assentamento ribeirinha, assumiram-se
como exímios marinheiros e pescadores, tendo, por isso mesmo, extraído do mar um grande
número de recursos com valor alimentar. A actividade piscatória nos principais portos e
ancoradouros cativou a atençäo, pela abundância de peixe e mariscos.
A área marítima definida pela costa ocidental africana, entre o Cabo Aguer e a entrada do
Golfo da Guiné, era muito rica em peixe, sendo frequentada pelos vizinhos da Madeira e das
Canárias, bem como pelos pescadores algarvios e andaluzes152. Todavia o balanço das
150
. Valentim FERNANDES, ob. cit., 118-121.

151
.ANTT, Leis e Regimentos de D. Manuel, fls. 121vº-126, 13 de Janeiro, publ. in História Geral de Cabo Verde. corpo documental, I, 297.

152
. António RUMEU DE ARMAS, "Pesquerias espanolas en Africa (siglos XV e XVI", in Anuário de Estudos Atlânticos, nº 23, 371.
capturas dos madeirenses e açorianos näo foi suficiente para colmatar a carência dos
mercados, uma vez que havia necessidade de importar peixe salgado ou fumado da Europa do
norte. Em Cabo Verde para além da pesca existiu a industria do sal da ilha com o mesmo
nome, Maio e Boavista, consumido, preferencialmente, no mercado da costa da Guiné.

No solo das ilhas abundavam recursos com valor mercantil imediato que mereceram
também o interesse dos insulares. A urzela surgia com abundância nas ilhas da Madeira, Porto
Santo, Desertas, Selvagens, S. Jorge, Corvo, Flores, Santa Maria, La Gomera e nas de Cabo
Verde. Nas últimas a exploraçäo foi concedida em 1468 a Joäo e Pedro de Lugo, passando em
1527 para Vasco de Foios. Em 1513 ela foi arrendada em S. Nicolau e Santa Luzia por 55.500
reais153. Na primeira metade do século dezanove teve grande incremento o comércio da
urzela, que esteve entregue a rendeiros estrangeiros, passando em 1844 para o exclusivo do
estado e passados cinco anos passou a ser livre. Ela exportava-se para Inglaterra, Holanda e
França. O mesmo sucederá na Madeira e Açores.
É de salientar igualmente a importância que assumiu a extracçäo do sangue de drago na
ilha de Porto Santo: foi também um importante ingrediente da tinturaria. Valentim Fernandes
e Gaspar Frutuoso referem-nos a abundância de dragoeiros na ilha, que por muito tempo
foram o principal suporte económico.
No âmbito da silvicultura sobressaem, ainda, o aproveitamento das madeiras, necessárias à
construçäo de barcos, casas, engenhos e meios de transporte e das lenhas, usadas como
combustível caseiro e industrial (nos engenhos e forjas), do pez para a calafetagem de navios.
A insistente solicitaçäo de madeiras e lenhas, nomeadamente, nas ilhas onde a cultura dos
canaviais adquiriu alguma importância, foi desastrosa para o equilíbrio ecológico, näo
poupando mesmo a Madeira, que mereceu tal nome pela abundância e esplendor do arvoredo.
Isto levou os municípios a tomarem medidas de controlo no desbaste florestal, que surgiram
com maior evidência na Madeira, onde o parque florestal foi desgastado pela safra açucareira.
Em Cabo Verde e S. Tomé é de referir, por último, a importância que assumiu o comércio de
madeiras da Guiné com destino ao reino.
Valentim Fernandes, em princípios do século dezasseis, e mais
tarde Gaspar Frutuoso, celebram a riqueza do arquipélago madeirense neste recurso. As
madeiras de pau-branco, barbuzano, teixo, cedro, til e aderno serviam as necessidades da
industria local e exportavam-se para o reino e praças mediterrânicas. Dizia-se até, no século
XV, que as madeiras da ilha revolucionaram a construção civil de Lisboa, permitindo o
aparecimento de construções com mais de um piso.
No sentido de defender este rico património estabeleceram-se regimentos em que se
regulamentava o corte de madeiras e lenhas, sendo os mais importantes de 151 e 1562. A ilha
que no início da ocupaçäo havia atemorizado os povoadores pelo denso arvoredo era agora na
vertente sul uma escarpa em vias de desertificaçäo. Näo foi o incial incêndio, que a tradiçäo
diz ter durado quinze anos,o motivo desta situaçäo, mas sim a incessante procura de lenhas
para o fabrico de açúcar.

O COMÉRCIO

153
. História Geral de Cabo Verde - corpo documental, nº 88, 241-243.
O sistema de trocas, no amplo e multifacetado mundo insular, dependeu de um múltiplo
conjunto de factores, activadores ou näo do intercâmbio. Neste contexto valorizamos os
produtos, mas é necessário ter em conta que eles näo foram por si só suficientes para a manter
o sistema de trocas. Para que isto tivesse lugar foi necessária a existência de condiçöes que as
favorecessem, como os meios e as vias de contacto, a presença de agentes capazes de
corresponder aos diversos desafios e os instrumentos de pagamento adequados ao volume e
duraçäo das trocas.
O comércio é, em simultâneo, a causa e o corolário da conjugaçäo harmoniosa deste
conjunto de factores que conduziram ao progresso da sociedade e economia insulares. O
processo histórico evidencia de forma clara esta realidade. Terá sido o surto do comércio
açucareiro que condicionou o desenvolvimento de infra-estruturas portuárias e que implicou o
nível de progresso dos centros urbanos na Madeira, Canárias e S. Tomé. O mesmo sucedeu
em S. Miguel com o surto do pastel.
Esta actividade, que mereceu o pleno apoio dos insulares e aí encontrou os mecanismos
adequados para isso, näo estava alheia às venalidades da economia atlântica, bem como aos
obstáculos humanos e naturais. Foi o europeu quem definiu os circuitos comerciais e procurou
mantê-los sob controlo. As ilhas foram, portanto, encaradas como espaços periféricas que
dependiam umbilicalmente do centro europeu. Por outro lado as coroas peninsulares,
empenhadas em definir um comércio monopolista, intervêm, com assiduidade,
regulamentando de forma exaustiva as actividades económicas e delimitando o espaço de
manobra dos seus agentes.
A excessiva intervençäo da coroa, aliada às intempéries sazonais, tempestades marítimas,
peste, pirataria e corso, foram principais responsáveis em determinados momentos pelo
bloqueio dos circuitos comerciais. A tudo isto se poderá juntar o permanente empenho no
controlo e regulamentaçäo do sistema de trocas, que derivou, em primeiro lugar, da ingente
necessidade de preservar para a coroa o monopólio do comércio de determinados produtos em
áreas definidas e, em segundo, da necessária acçäo com o objectivo fundamental assegurar o
abastecimento local e, ao mesmo tempo, definir os produtos adequados a uma troca no
mercado atlântico-mediterrâneo.
As instituiçöes da fazenda real (o almoxarifado e, depois, a Provedoria da Fazenda) com
os municípios ditavam as ordens necessárias para tal política económica e controlavam a sua
execuçäo. Esta atitude é constante e abrange todos os sectores de actividade.
As autoridades intervêm na produçäo, processo transformador das matérias-primas,na
distribuiçäo e comércio dos produtos, locais ou de fora. Enquanto o município legisla sob a
forma de postura, a coroa actua por meio de alvarás e regimentos. Deste modo os produtos e
as actividades que definiam a economia insular regiam-se pelos princípios básicos da
comunidade insular que ia no sentido de assegurar o abastecimento, qualidade, preço, peso e
medida adequados. Por outro lado as repartiçöes régias afirmavam-se, muitas vezes, como
mecanismos coercivos, tendo como finalidade básica a defesa do património da coroa. Aqui a
luta incidia, preferencialmente, no combate às situaçöes fraudulentas e lesivas do património.
O contrabando surge neste circuito, ao mesmo tempo, como causa e consequência da
apertada estrutura de controlo dos produtos no mercado insular, pois a excessiva
regulamentaçäo dos mecanismos de troca, para além de a entorpecer e retardar, criava ou
tornava necessário o recurso a circuitos paralelos.
Ao mercador insular e europeu näo satisfaziam as medidas intervencionistas da coroa e
município, pois limitavam-lhe o restrito campo de manobra e oneravam a sua acçäo. Daí a
atitude deles no sentido de intervirem activamente na formulaçäo de tais normas, caso
contrário restava-lhe o recurso a múltiplos subterfúgios para contrariar aqueles que lhes eram
lesivos.
O comércio é assim o corolário de todos os circunstancialismos incentivadores ou näo do
sistema de trocas. E deste modo as trocas nesta vasta área só podem ser entendidas mediante
um correcto equacionar do mercado de cada ilha, arquipélago ou do espaço atlântico. No
último espaço existiu um intricado liame de rotas comerciais que ligavam o mercado europeu
ao Novo Mundo.
O desenvolvimento sócio-económico espaço insular articula-se de modo directo com as
solicitaçöes da economia atlântico-europeia. As ilhas como regiäo periférica do centro de
negócios europeus ajustaram o desenvolvimento económico às necessidades do mercado e às
carências alimentares europeias. Depois actuaram como mercado consumidor de
manufacturas, cuja troca era muito favorável ao europeu. E, finalmente, intervêm como
intermediário nas ligaçöes entre o Novo e o Velho Mundo. É nesta tripla funçäo que se deverá
entender a economia insular e buscar o fundamento para a sua frágil estrutura.
Nas ilhas da costa e golfo da Guiné a dependência dos espaços continentais é muita mais
acentuada. O facto de estarem defronte de uma área importante no tráfico negreiro fez com
que se mantivessem, necessariamente, como meras feitorias. A valorizaçäo dos recursos
açucareiros de S. Tomé ou pecuários e algodoeiros do arquipélago caboverdeano näo foram
suficientes para competir com as rotas do tráfico negreiro, a partir do século dezasseis.
De acordo com isto é comum definir-se a economia das ilhas pelo carácter periférico, mas
necessária para a afirmaçäo dos interesses hegemónicos além-Atlântico. Deste modo o
mercado insular definiu-se pela carência de identidade e de estruturas ou meios que lhe
possibilitassem suplantar tal posiçäo.
Uma análise mais aprofundada dos mecanismos sócio-económicos insulares revela-nos que
nas sociedades insulares se desenvolveram actividades económicas fora da alçada dos
vectores dominantes. Em certa medida as relaçöes inter-insulares, derivadas da
complementaridade, säo o exemplo mais evidente disso.
Com base nisto emerge a estrutura comercial dos arquipélagos, definida pela
heterogeneidade, expressa numa variedade de áreas, produtos, circuitos e agentes comerciais,
que deram origem a três
formas do sistema de trocas:

1.o comércio de cabotagem interna e inter-insular, englobando as comunicaçöes e


contactos comerciais no mercado interno, ao nível local, regional e inter-regional,
definindo o último os contactos entre as ilhas do mesmo arquipélago;

2.o comércio inter-insular, estabelecendo as conexöes ao nível dos arquipélagos


atlânticos;

3.o comércio atlântico, circunscrito aos contactos de longa ou curta distância com os
mercados europeu, africano e americano.
À permanente e sempre actuante comunidade peninsular associaram-se desde o início os
elementos mais proeminentes do tráfico internacional nórdico e mediterrânico, que
conduziram à excessiva vinculaçäo das ilhas aos grandes espaços continentais. Assim, na
Madeira e Canárias, assumem particular importância as colónias italiana e flamenga. Eles
esqueceram por algum tempo os conflitos religiosos e uniram-se em prol de uma causa
comum: o comércio. O interesse fundamental foi o açúcar. Mas nos Açores a presença dos
flamengos e depois dos ingleses é motivada pela oferta do pastel, enquanto os castelhanos,
holandeses e ingleses surgem em Cabo Verde ou S. Tomé impelidos pelo trato negreiro.
A rota de ligaçäo do mundo insular às origens europeias foi, sem dúvida, a mais
importante do comércio externo nos séculos XV e XVI. Mais tarde a ela sobrepöem-se as de
contacto ao mercado americano, que tiveram uma importância especial para as ilhas da costa e
golfo da Guiné. A permanência e fortalecimento destes contactos foi resultado da existência
de produtos e mercados adequados à troca com estes destinos.
Ao europeu as ilhas foram, acima de tudo, um mercado capaz de suprir as necessidades
alimentares, de produtos industrias e mäo-de-obra escrava. A isso acresce a possibilidade de
os mesmos serem os consumidores dos excedentes das manufacturas europeias. A
disponibilidade desta última fazia aumentar os lucros das transacçöes comerciais e definia
uma extrema dependência dos mercados insulares, agravada pela troca desigual.
Diferente foi o relacionamento das ilhas com o mercado americano. O protagonismo de
cada arquipélago dependeu da oferta de produtos e serviços e o mútuo empenho de insulares e
americanos no reforço destes contactos. No Mediterrâneo Atlântico ele expressou-se por duas
fases distintas: primeiro de apoio ao lançamento das novas sociedades com a troca de
experiências de aproveitamento económico e o serviço de apoio às rotas de ligaçäo a este
novo mercado; depois foi o relacionamento directo das ilhas com a oferta do vinho. Nas ilhas
de Cabo Verde e S.Tomé releva-se a funçäo de mercados redistribuidores do trafico negreiro,
necessário para a economia americana.
A desmesurada importância do impacto continental, europeu, africano ou americano,
relegou para segundo plano as, näo menos relevantes, formas de contacto e comércio no
mercado insular. Foram poucos os estudiosos que se aperceberam da importância da última
realidade e lhe atribuíram o verdadeiro significado. Para nós é ponto assente que tais conexöes
marcaram de forma evidente as sociedade e economia insulares, principalmente no
Mediterrâneo Atlântico.
A vizinhança, as facilidades nas comunicaçöes aliadas à complementaridade e similar nível
atingido pelo processo sócio-económico sedimentaram a rede de inter-relaçöes. Neste
particular, a Madeira, mercê da posiçäo charneira entre os arquipélagos das Canárias e dos
Açores, foi importante para a manutençäo deste intercâmbio.
Os contactos inter-continentais foram diferentes, expressando-se de acordo com o seu
destino. Nas trocas com o mundo europeu dominaram em exclusivo, para além dos escravos,
os produtos conhecidos como coloniais -- o açúcar e o pastel--, enquanto com o litoral
africano para além da procura de mäo-de-obra barata, subsiste a obrigaçäo de abastecer as
feitorias e praças de cereal. A demanda das plagas ocidentais só será possível pelo recurso,
primeiro, ao contrabando e, depois, à facilidade no abastecimento do novo mercado de vinho.
Entretanto nas ilhas os contactos internos afirmaram-se como resultado da complementaridade
latente a partir dos componentes da dieta alimentar: o vinho e os cereais.
O COMÉRCIO DE CABOTAGEM

A disposiçäo das áreas ocupadas de acordo com as condiçöes orográficas foram factores
preponderantes no estabelecimento da rede de contactos entre os vários núcleos de
povoamento. O facto de estarmos perante ilhas em que o mar era acima de tudo a via
privilegiada e a dificuldade crescente dos meios e possíveis vias de comunicaçäo terrestres,
levou a que os circuitos de cabotagem fossem importantes. A primazia das vias marítimas era
atenuada naquelas ilhas em que a orografia permitia uma fácil circulaçäo interna. Nas ilhas da
Madeira, S.Miguel e Terceira elas expressam-se de modo diverso. Enquanto na primeira o
acidentado das vertentes quase que impossibilitava um contacto terrestre, nas restantes as
terras chäs e a suavidade dos declives facilitaram esta forma de contacto.
Na Madeira as vias de comunicaçäo terrestre só foram uma realidade a partir do século
dezanove. Deste modo a economia agrícola da ilha teve que obedecer às possibilidades da via
marítima, sendo definido pela orla litoral. O mar dominou os contactos e o quotidiano. O
rumo traçado pelos primeiros povoadores, quando do reconhecimento da ilha no século
quinze, perdurou por muito tempo. Esta situaçäo condicionou a forma de progresso do
povoamento e economia, que se fez a partir das enseadas e ancoradouros. Perante isto
surgiram os locais de povoamento -- Funchal, Machico, Santa Cruz, Ponta de Sol, Calheta --
que adquiriram uma importância no processo económico e social da ilha. Foi em torno destas
localidades, com um estatuto institucional definido, que girou todo o movimento de
mercadorias e pessoas.
A rede de escoamento do açúcar é exemplar e a expressäo mais perfeita da realidade. Näo
obstante existir uma alfândega em cada capitania, o porto do Funchal manteve-se como a
porta de entrada e saída da Madeira. A de Santa Cruz foi de vida efémera e a coroa sempre se
preocupou em manter o sistema de trocas de cada ilha centrado numa localidade portuária
importante. Assim sucedeu com o Funchal, Ponta Delgada, Angra e Ribeira Grande (mais
tarde Praia), respectivamente, na Madeira, S. Miguel, Terceira e Santiago.
Em todos os lugares as várias tentativas descentralizadoras foram prejudiciais em termos
de controlo da Fazenda Real. Em face disto, no caso da Madeira, a saída do açúcar, principal
produto em troca para os séculos quinze e dezasseis, fazia-se a partir do porto do Funchal,
devendo toda a produçäo das comarcas de Ponta de Sol, Ribeira Brava, Calheta e mesmo de
Machico, ser para ali conduzida e depois despachada na alfândega para os múltiplos destinos.
Por isso mesmo era ao Funchal que se acolhiam os mercadores interessados no comércio do
produto e era também aqui que se recebiam o cereal e as manufacturas, que depois eram
canalizadas, no sentido inverso, para as localidades da ilha. No caso da Ribeira Brava, Gaspar
Frutuoso refere-nos que é "uma fresca quintä donde os moradores da cidade acham e lhe vai o
melhor trigo, frutas, caças, carnes e em maior abundância que em toda a ilha; e pode-se com
razäo chamar celeiro do Funchal, como a ilha de Sicília se chama de Itália"154. Para manter
este circuito era necessário um grupo numeroso de barqueiros. O Funchal e demais
localidades estavam em condiçöes de satisfazer tal procura.
Situaçäo mais evidente tinha lugar nos Açores, onde a estrutura comercial do arquipélago
se esboçou de modo complicado, definindo-se pela heterogeneidade dos espaços económicos.
De facto näo existe unidade, mas sim uma variância em produtos, circuitos comerciais,
mercadores nacionais e estrangeiros. Ao centro estava um grupo de ilhas (Terceira, Faial,
154
. Gaspar FRUTUOSO, ob. cit., livro segundo, 88
Graciosa, S. Jorge, Pico) colocadas numa posiçäo geo-estratégica importante, de acordo com o
traçado das rotas atlânticas. Por isso tivemos duas áreas como entrepostos comerciais:
Terceira (Angra) e Faial. No extremo ocidental e oriental estavam dois grupos de ilhas
deslocadas do principal eixo comercial atlântico e, por isso mesmo secundarizadas. A sua
valorizaçäo só foi possível graças às suas potencialidades endógenas.
As ilhas de Flores e Corvo, mercê do reduzido espaço e parcos recursos naturais, foram
votadas ao esquecimento e apenas se notaram pelo apoio às duas carreiras das Indias. As de S.
Miguel e Santa Maria mantiveram uma posiçäo privilegiada no mercado açoriano, mercê das
possibilidades de aproveitamento agrícola, com o trigo e pastel. Deste modo podemos definir
duas áreas económicas no arquipélago, onde dominam um e outro sector de actividade: uma
central dominada pela Terceira, Flores e Corvo que se afirmará como o eixo de apoio e
provimento da navegaçäo atlântica e comércio; outra periférica, na ilha de S. Miguel e nas
restantes, onde a agricultura foi dominante.
Esta ambiência valorizadora da via marítima condicionou também a construçäo naval que
mereceu em ambos os arquipélagos um grande incremento, como resultado da disponibilidade
de boas madeiras. Todavia o seu desenvolvimento teve lugar de forma controlada, estando
sujeito a inúmeras restriçöes por parte da coroa. Apenas nas ilhas de S. Miguel e Terceira
existiram estaleiros navais para serviço das ilhas e da navegaçäo atlântica.
Anteriormente estabelecemos para este arquipélago dois espaços dominantes, abarcando
igual número de mercados para o comércio de trigo: a Terceira e S. Miguel. Era a partir destas
ilhas que se fazia todo o escoamento do cereal, pois eram as únicas que desfrutavam de
óptimas condiçöes para o trato internacional. Deste modo ao nível da definiçäo do mercado
cerealífero açoriano teremos de distinguir duas formas de troca paralelas e similares: o
comércio e transporte inter-ilhas e com o exterior.
O comércio de cabotagem apresentava-se revitalizado com o provimento das áreas carentes
ou o envio dos excedentes para os mercados exportadores -- Angra e Ponta Delgada. Assim
sucedeu na Terceira em relaçäo às ilhas do grupo central e ocidental, e em S. Miguel em com
Santa Maria.
O mercado terceirense, ao longo do século XVI, definia-se por três importantes centros
exportadores: Angra, S. Sebastiäo, Praia. A partir daí mantinha-se o comércio. Deles
evidencia-se o de S.Sebastiäo que se manteve até finais do século com um activo movimento.
Este município abarcava a melhor área de cultivo de cereais.
O micaelense apresentava igualmente dois portos de saída de cereal (Ponta Delgada, Vila
Franca do Campo) com uma zona de produçäo envolvente. No entanto o de Ponta Delgada
apresentou-se, a partir de 1518, como o principal centro de comércio, relegando os outros para
segundo plano ou, mais propriamente, dependente. Isto tornou-se mais evidente no século
XVII, considerando-se em 1684 que ele era "o caminho por onde se expedem as carregasons
do trigo de toda ella", embora estivesse autorizada, de 1679, a saída de cereal por qualquer um
dos portos155.
Foi o micaelense que, após a quebra de meados do século XVI, alimentou todo o trato
comercial do trigo, ao nível interno e externo. Este celeiro acudiu a Terceira em momentos de
afliçäo como em 1591, enviando o trigo necessário para os militares do presídio e, em 1675,
com o quantitativo solicitado para colmatar a falta aí existente. Aliás, em 1595, Linschoten

155
. Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, Câmara Municipal de Ponta Delgada, nº 54, fl. 12.
referia que "ela produz igualmente trigo do qual provê muitas vezes as outras ilhas em caso de
necessidade"156.
O mercado cerealífero de S.Miguel afirmou-se-á, a partir de meados do século XVI, como
o principal celeiro açoriano, enquanto o terceirense é colocado em segundo plano, perdendo
toda a importância que tinha no trato, näo obstante a actividade do porto de S. Sebastiäo. A
conjuntura perdurou até inícios do século XVII, altura em que se pressentiu uma ligeira
recuperaçäo na Terceira, mas que durou pouco tempo, uma vez que em 1640 se retornou ao
estado anterior. Mas nesta década de quarenta a conjuntura de crise generalizou-se a todo o
mercado de trigo açoriano. O movimento insere-se na crise da economia atlântica, atingindo o
ponto culminante, no arquipélago nas décadas de 60-70.
Na Terceira e S.Miguel a via terrestre foi um meio privilegiado para os contactos. Por isso
estabeleceram-se circuitos de distribuiçäo interna entre os principais portos de saída. No caso
de S.Miguel foi redobrado o interesse dos municípios pelo reparo dos caminhos e o
regulamento do ofício de carreiro.
Também em Cabo Verde a afirmaçäo dominante de Santiago, através dos portos de Ribeira
Grande e Praia, gerou idêntica trama de circuitos entre as ilhas do arquipélago, criando-se
uma dependência especial entre a ilha do Fogo e a de Santiago, algo idêntica à sucedida nos
Açores com as de Graciosa e S. Jorge em relação à Terceira, isto é os moradores de Santiago
tinham interesses fundiários na ilha do Fogo e todo o comércio de algodão desta ilha para a
costa africana fazia-se através do entreposto da Ribeira Grande.Aí a coroa havia estabelecido
uma feitoria para contolo do comércio africano. A este movimento interno de cada ilha temos
de juntar, necessariamente, em Cabo Verde, S. Tomé e Açores, aquele que se fazia entre as
ilhas de um mesmo arquipélago. No caso açoriano esta via foi importante, devido às
condiçöes específicas de cada uma das ilhas. A isto deverá juntar-se a política de
desenvolvimento traçada pela coroa portuguesa, que conduziu a uma compartimentaçäo, ainda
que imperfeita, dos espaços agrícolas e de serviços.
O afluxo de embarcaçöes das rotas oceânicas a Angra fez da cidade o principal centro de
serviços de apoio à navegaçäo atlântica e por isso mesmo criou-se à sua volta uma
diversificada rede de cabotagem de apoio, que abrangia toda a ilha e as vizinhas (S. Jorge,
Graciosa). Mais uma vez Gaspar Frutuoso, perfeito conhecedor das ilhas, expressa isso,de
forma clara, ao afirmar que "todas as outras ilhas säo suas escravas, pois quanto nela se cria
vem pera ela", concluindo que eram "quintas" da Terceira. Era o porto de Angra que fornecia
as ilhas do grupo central e ocidental de manufacturas europeias, vinho, açúcar e derivados da
ilha da Madeira, a troco dos cereais, gado, legumes, madeiras, lenha, fruta e barro. Depois o
processo económico a que as ilhas estiveram sujeitas conduziu-as para uma situaçäo de cada
vez maior interdependência.
Nos Açores a Terceira passou a manter o domínio sobre a Graciosa e parte da costa a ela
virada da de S. Jorge. O Faial ligar-se-ia ao Pico e S. Jorge, as Flores ao Corvo e S. Miguel a
Santa Maria.
A partir daqui estabeleceu-se uma especializaçäo nos serviços prestados por cada área ou
porto. Angra foi a cidade do apoio à navegaçäo inter-continental, Horta o centro de comércio
de vinho e Ponta Delgada o porto de comércio do cereal e pastel. O facto de na primeira ter
existido porto importante nos contactos intercontinentais levou ao estabelecimento de serviços
consulares para apoio das actividades legais e ilegais. Primeiro foram os franceses (1609)
156
. J.H. LINSCHOOT, art.cit.,154.
depois os holandeses (1655) e, finalmente, os alemäes, suecos, dinamarqueses, noruegueses,
castelhanos, todos na década de oitenta do século dezassete.
Pelos mesmos motivos os castelhanos, quando da uniäo dinástica, preocuparam-se com a
ocupaçäo do arquipélago. Para eles isso seria a principal garantia para a segurança das suas
frotas que por aí passavam. Mas só o conseguiram, a muito custo depois de terem emfrentado
a resistência terceirense apoiada pelos ingleses e franceses, ambos interessados em manter um
porto de apoio para as incursöes no Atlântico.
Mais a sul as feitorias de Santiago, Principe e S.Tomé, para além de centralizarem o tráfico
comercial em cada arquipélago, firmaram-se, por algum tempo, como os principais
entrepostos de comércio com o litoral africano. Santiago manteve, até meados do século
dezasseis, o controlo sobre o trato da costa da Guiné e das ilhas do arquipélago com o
exterior. E foi também o centro de redistribuiçäo dos artefactos e mantimentos europeus e de
escoamento do sal, chacinas, courama, panos e algodäo. Enquanto a primeira situaçäo, com o
evoluir da conjuntura económica, foi perdendo importância, a segunda manteve-se por muito
tempo, definindo uma trama complicada de rotas entre as ilhas do arquipélago.

O COMÉRCIO INTER-INSULAR

O comércio entre as ilhas dos três arquipélagos atlânticos resultava näo só da


complementaridade económica, definida pelas assimetrias propiciadas pela orografia e clima,
mas também da proximidade e assiduidade dos contactos. O intercâmbio de homens, produto
e técnicas, dominou o sistema de contactos entre os arquipélagos.
A Madeira, mercê da posiçäo privilegiada entre os Açores e as Canárias e do parcial
alheamento das rotas índica e americana, apresentava melhores possibilidades para o
estabelecimento e manutençäo deste tipo de intercâmbio. Os contactos com os Açores
resultaram da forte presença madeirense na ocupaçäo e da necessidade de abastecimento em
cereais, que o arquipélago dos Açores era um dos principais produtores. Com as Canária as
imediatas ligaçöes foram resultado da presença de madeirenses, ao serviço do infante
D.Henrique, na disputa pela posse do arquipélago e da atracçäo que elas exerceram sobre os
madeirenses. Tudo isto contrastava com as hostilidades açorianas à rota de abastecimento de
cereais à Madeira. Acresce, ainda, que o Funchal foi por muito tempo um porto de apoio aos
contactos entre as Canárias e o velho continente.
Os contactos assíduos entre os arquipélagos, evidenciados pela permanente corrente
emigratória, definem-se como uma constante do processo histórico dos arquipélagos, até ao
momento que o afrontamento político ou económico os veio separar. A última situaçäo
emerge na segunda metade do século dezassete como resultado da concorrência do vinho
produzido, em simultâneo, nos três arquipélagos.
O trigo foi, sem dúvida, o principal móbil das conexöes inter-insulares. Segundo os
testemunhos de Giulio Landi (1530) e Pompeo Arditi (1567) os cereais foram os principais
activadores e suportes do sistema de trocas entre a Madeira e os arquipélagos vizinhos, que,
por isso mesmo, foram considerados o celeiro madeirense. A rota de abastecimento de cereais
teve a sua máxima expressäo em princípios do século dezasseis. A referência mais antiga ao
envio de trigo de Canárias para a Madeira data de 1504 para La Palma e 1506 para Tenerife,
enquanto a presença do açoriano só está documentada a partir de 1508, ano em que a coroa
definiu a obrigatoriedade do fornecimento à Madeira.
O comércio do cereal a partir das Canárias firmou-se através da regularidade dos contactos
com a Madeira, sendo apenas prejudicado pelos embargos temporários, enquanto dos Açores
foi imposto pela coroa, uma vez que a burguesia e aristocracia açorianas, nomeadamente de S.
Miguel, näo se mostravam interessadas em manter esta via. Todo o empenho dos açorianos
estava canalizado para o comércio especulativo com o reino ou dos contratos de fornecimento
das praças africanas. Desde 1521 o o preço e a forma de transporte do cereal açoriano na
Madeira estavam sob o controlo do município. Deste modo era difícil a especulaçäo por parte
dos rendeiros e mercadores micaelenses.
A garantia do abastecimento interno de cereais, que havia sido uma palavra de ordem no
início do povoamento da Madeira, näo
resistiu ao assalto das culturas europeias para exportaçäo, que em pouco tempo invadiram
quase todo o território arável. O arquipélago composto apenas por duas ilhas, sendo uma delas
de fracos recursos, tinha que assegurar, necessariamente, o abastecimento fora, socorrendo-se
para isso das ilhas vizinhas. Em 1546 dos doze mil moios consumidos apenas 1/3 foi
produzido localmente, sendo o restante importado das ilhas próximas ou da Europa.
Nos séculos dezasseis e dezassete a oferta de cereal insular, das Canárias e dos Açores,
representou cerca de metade das entradas. Para o caso açoriano ele era quase todo proveniente
de S. Miguel e do Faial, enquanto nas Canárias se evidenciaram as ilhas de Lanzarote,
Fuerteventura e Tenerife.
A permanência desta rota de abastecimento de cereais implicou o alargamento das trocas
comerciais entre os três arquipélagos, uma vez que ao comércio do cereal se associaram
outros produtos, como contrapartida favorável às trocas. Aos Açores os madeirenses tinham
para oferecer o vinho, o açúcar, conservas, madeiras, eixos e aduelas de pipa, reexportaçäo de
artefactos e outros produtos de menor importância. Para as Canárias a oferta alargava-se à
fruta verde, liaças de vime, sumagre e panos de estopa, burel ou liteiro.
As ilhas açorianas foram no começo um consumidor preferencial do vinho madeirense e
canário. Tudo isto pela necessidade de encontrar uma contrapartida rentável ao comércio de
cereais e pelo facto de o vinho que produziam ser de fraca qualidade. Pois o afamado vinho do
Pico afirmou-se apenas a partir da segunda metade do século dezassete. Para o ano de 1574 o
vinho da Madeira desembarcado no porto de Ponta Delgada representava 42% das
importaçöes vinícolas, sendo o mais cotado no mercado micaelense. O mesmo sucedia em
Angra na segunda metade do século. No século dezassete o maior incremento da viticultura
das ilhas do grupo central e a crescente melhoria de qualidade contribuíram para a
subalternizaçäo do produto no sistema de trocas com a Madeira e as Canárias. Em finais da
centúria o produto continuava ainda a ser referenciado nas entradas da alfandega de Ponta
Delgada.
O comércio entre a Madeira e as Canárias era muito anterior ao estabelecimento dos
primeiros contactos com os Açores. O relacionamento iniciara-se em meados do século
quinze, activado pela disponibilidade no arquipélago de escravos, carne, queijo e sebo. Mas a
insistência dos madeirenses nos contactos com as Canárias näo terá sido do agrado ao infante
D. Fernando, senhor da ilha, interessado em promover os contactos com os Açores. Apesar
disso eles continuaram e a rota adquiriu um lugar relevante nas relaçöes externas da ilha,
valendo-lhe para isso a disponibilidade de cereal e carne, que eram trocados por artefactos,
sumagre e escravos negros. Esta última e peculiar situaçäo surge na primeira metade do século
dezassete, com certa evidência nos contactos entre a Madeira, Lanzarote e Fuerteventura.
Algo diferente sucedeu nos contactos comerciais entre os Açores e as Canárias, que nunca
assumiram a mesma importância das madeirenses. A pouca facilidade nas comunicaçöes, a
distância entre os dois arquipélagos e a dificuldade em encontrar os produtos justificativos de
intercâmbio fizeram com que estas trocas fossem sazonais. Só as crises cerealíferas do
arquipélago de Canárias fizeram com que o trigo açoriano aí chegasse em 1563 e 1582. Por
vezes a permuta fazia-se a partir da Madeira, como sucedeu em 1521 e 1573. A contrapartida
de Canárias para este comércio baseava-se no vinho, tecidos europeus e o breu. Para o século
dezassete, os registos da alfândega de Ponta Delgada, entre 1620 e 1694, atestam um
incentivo dos contactos comerciais com este destino, pois o número de entradas e saídas
encontrava-se em segundo lugar, seguido pela Madeira.
A outro nível estavam as relaçöes inter-insulares com os arquipélagos além do Bojador.
Primeiro as dificuldades na ocupaçäo só conduziram ao imediato e pleno povoamento de uma
ilha em cada área -- Santiago e S.Tomé --, que passou a actuar como principal eixo do trato
interno e externo. Depois o aproveitamento económico näo foi uniforme e de acordo com as
solicitaçöes do mercado insular aquém do Bojador, assumindo, por vezes, como sucede com
S. Tomé uma posiçäo concorrencial. Por fim registe-se que estes espaços existiam mais para
satisfazer as necessidades do vizinho litoral africano do que pela sua importância económica
interna.
Do relacionamento dos dois arquipélagos com os do Mediterrâneo Atlântico é evidente o
empenho dos últimos no tráfico negreiro, com maior evidência para os madeirenses e
canarios. Os madeirenses que aí aparecem foram favorecidos pelo comprometimento com as
viagens de exploraçäo e comércio ao longo da costa africana e da presença, ainda que
temporária, do porto do Funchal no traçado das rotas. Ao invés, os Açores mantiveram-se por
muito tempo como portos receptores das caravelas que faziam a rota de retorno ao velho
continente.
A posiçäo privilegiada da Madeira e Canárias, a insistente procura de mäo-de-obra para o
arroteamento das diversas clareiras entretanto abertas, geraram um desvio da rota do comércio
dos escravos, surgindo o Funchal e Las Palmas como dois importantes eixos do tráfico E
assim se mantiveram até à plena afirmaçäo das rotas americanas. Por outro lado o
relacionamento das ilhas africanas com o Mediterrâneo Atlântico foi facilitado pelos
benefícios fiscais atribuídos pela coroa em 1507. E sabemos, por pedido dos moradores de
Santiago, que a contrapartida comercial se baseava no fornecimento de cereal: primeiro da
Madeira, depois dos Açores. Entretanto no que se refere à Madeira a coroa concedeu em 1562
e 1567 facilidades aos madeirenses para o comércio de escravos de Cabo Verde e Rios de
Guiné, como forma de suprir a crise açucareira, o que deverá ter contribuído para um aumento
dos contactos.
A comunidade madeirense residente em Santiago deveria ser numerosa a atestar pelos
testamentos que chegaram à nossa mäo. Destes merece referência especial Francisco Dias,
morador na Ribeira Grande que, pelo testamento de 1599157, é apresentando como um dos
mais importante mercadores de escravos, empenhados no tráfico com a Madeira e Antilhas. O
mesmo se poderá dizer quanto aos açorianos, embora referenciados em menor escala. A
permuta baseava-se pelo lado africano em escravos, a que se vieram juntar os produtos da
terra, como o algodäo, milho, cuscus, chacinas, courama e sal, recebidos a troco de vinho,
cereais e artefactos.
157
. Arquivo Regional da Madeira, Misericórdia do Funchal, nº 684, folios 785-790vº.
As Canárias mantiveram, também, um relacionamento preferencial com Cabo Verde.
Primeiro foi o comércio da urzela, depois os contactos assíduos para trocar o vinho por
escravos, que conduziam às Antilhas ou de regresso às ilhas.Esta situação perdurou nos
séculos XVI e XVII, tendo-se iniciado, segundo M. Lobo Cabrera a partir de 1524158
Num e noutro caso os contactos com as ilhas do golfo da Guiné eram exíguos, uma vez que
elas estiveram por muito tempo aquém dos interesses das gentes do Mediterrâneo Atlântico.
Na realidade, se retiramos a eventual presença de madeirenses para transmitir os segredos da
cultura açucareira, este aparecimento é tardio e rege-se pela necessidade de capturar escravos
nas costas vizinhas, situação comum também com as Canárias. A malagueta, pimenta e
marfim não eram produtos capazes de despertarem o interesse das gentes insulares e, além
disso, tinha como destino obrigatório a Casa da Mina em Lisboa. Deste modo a referência ao
carregamento de um navio com algodäo e açúcar em 1542 com destino aos Açores é
esporádica159.

O COMÉRCIO ATLÅNTICO

Tal como o referimos, mas nunca é demais repeti-lo, o posicionamento periférico do


mundo insular condicionou a subjugaçäo do seu comércio aos interesses hegemónicos do
velho continente. Os europeus foram os cabouqueiros, responsáveis pela transmigraçäo
agrícola, mas também os primeiros a usufruir da qualidade dos produtos lançados à terra e a
desfrutar dos elevados réditos que o comércio propiciou. Daí resultou a total dependência dos
espaços insulares ao velho continente, sendo a vivência económica moldada de acordo com as
necessidades, que, por vezes, se apresentavam estranhas. Por isso é evidente a preferencia do
velho continente nos contactos com o exterior dos arquipélagos. Isto é a tal relaçäo umbilical
com a velha Europa de que falámos. Só depois surgiram as ilhas vizinhas e os continentes
africano e americano.
Do velho rincäo de origem vieram os produtos e instrumentos necessários para a abertura
das arroteias, mas também as directrizes institucionais e comerciais que os materializaram. O
usufruto das possibilidades de um relacionamento com outras áreas continentais, no caso do
Mediterrâneo Atlântico, foi consequência de um aproveitamento vantajoso da posiçäo
geográfica e em alguns casos uma tentativa de fuga à omnipresente rota europeia. Neste
contexto tornou-se mais evidente a presença dos arquipélagos das Canárias, Açores, Cabo
Verde e S. Tomé, ainda que por motivos diferentes, da Madeira.
O arquipélago canário, mercê da posiçäo e condiçöes específicas criadas após a conquista,
foi dos três o que tirou maior partido do comércio com o Novo Mundo. A proximidade ao
continente africano, bem como o posicionamento correcto nas rotas atlânticas, permitiram-lhe
a intervir no trafico inter-continental.

158
.Manuel Lobo Cabrera," Relaciones entre Gran Canaria Africa y América a través de la trata de negros", in II Colóquio de Historia Canario
Americana, Las Palmas, 1977, 77-91; idem, La esclavitud en las Canarias orientales en el siglo XVI. negros, moros y moriscos, Las Palmas, 1979,
104-110; Elisa TORRES SANTANA, "El comércio de Gran Canaria con Cabo Verde a principios del siglo XVII", in II Coloquio Internacional de
História da Madeira, Funchal, 1990, 761-778.

159
. V. RAU, Estudos sobre a história do sal português, Lisboa, 1989, 217.
Para os Açores, o facto de as ilhas estarem situados na recta final das grandes rotas
oceânicas possibilitou-lhes algum proveito com a prestaçäo de inúmeros serviços de apoio e
do eventual contrabando. Fora disso encontrava-se a Madeira, a partir de finais do século XV.
Por muito tempo este comércio foi apenas uma miragem. E só se tornou uma realidade quando
o vinho começou a ser o preferido das gentes que embarcaram na aventura índica ou
americana. Perante isto o vinho madeirense afirmar-se-á em pleno a partir da segunda metade
do século dezassete.
Rumos diferentes tiveram os arquipélagos de S.Tomé e Principe e Cabo Verde: a
proximidade da costa africana e a permanente actividade comercial definiram a inegável
vinculaçäo ao continente africano. Por muito tempo os dois arquipélagos pouco mais foram do
que portos de ligaçäo entre a América ou a Europa e as feitorias da costa africana. Num e
noutro caso o avanço do povoamento ficou dependente das facilidades concedidas ao
comércio: em 1466 para Cabo Verde se dizia que estes só iam viver "com mui grandes
liberdades e franquezas e despesa sua"160; no foral dado em 1485 a S. Tomé o privilégio do
comércio com a área costeira surgia como recompensa "do trabalho a que se despoem, em
haverem de hyr viver em a dita ylha"161; em 1500 na doação da alcaidaria da ilha de Príncipe a
António Carneiro é referido o resgate na Guiné a sul do rio Real.Note-se que noutra carta de
privilégios do mesmo ano o mesmo António Carneiro, secretário do rei, recebe a mercê do
resgate da malagueta, pimenta e outras especiarias "dos nossos rios e tratos de Guiné" por dez
anos162.
As facilidades concedidas ao comércio com a costa africana degeneraram em problemas
para a Fazenda Real, pelo que a coroa se viu forçada a tomar medidas restritivas ao comércio
dos naturais, com reflexos evidentes na evoluçäo económica das ilhas que dele
dependiam. As primeiras dificuldades começaram com o contrato de Fernäo Gomes de 1469,
que retirava aos caboverdeanos o usufruto de uma importante fatia da costa. Três anos depois
surgiram as primeiras dificuldades a esta actividade comercial, que tiveram continuidade no
século seguinte. A resposta näo se fez esperar. Os caboverdeanos primeiro questionaram as
limitaçöes impostas, referindo que era a partir do comércio de escravos que se abasteciam de
bens alimentares e artefactos de outras ilhas ou da Europa. Depois acusaram os rendeiros da
coroa de serem os principais responsáveis da situaçäo a que se havia chegado163 (50). A coroa,
no entanto, insistiu com as mesmas ordens e só em 1521 acedeu, consignando no regimento
do feitor do trato de Santiago os privilégios de 1472164.
A conturbada conjuntura política, que se seguiu nos finais da centúria quinhentista e
princípios da seguinte, teve o condäo de conduzir a uma mudança deste cenário. A crise
dinástica e a consequente uniäo das coroas peninsulares levaram ao seu desagravamento da
permitindo uma abertura total da área ao comércio dos insulares, seus vizinhos e aos demais
europeus, nomeadamente, os holandeses. Perante isto Santiago deixou de ser o principal
entreposto dos Rios de Guiné, pelo que foram evidentes os reflexos na economia da ilha. Em
160
. História Geral de cabo Verde - corpo documental, nº 4, 19/22, 12 de Junho de 1466.

161
. Monumenta Missionaria Africana, XIV, 3/7.

162
.ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, lº.21, fl.18vº, 22 de Março.

163
. Ibidem, nº 76, 209-211, 24 de Outubro de 1512; nº 77, 213-214, 25 de Outubro de 1522.

164
. Ibidem, nº 6, 25/28, 8 de Fevereiro de 1472.
1622 exclamava já D. Francisco de Moura que "está aquela ilha em tanta pobreza e
necessidade que em poucos anos se acabará..."165.
Com a Restauraçäo o comércio foi sujeito a várias mudanças: em 1642 foi franqueado a
todos os vizinhos de Santiago e vassalos do reino, acompanhado por facilidades de acesso dos
estrangeiros às ilhas, depois optou-se pelo regime de companhias, tendo-se criado as da Costa
da Guiné (1664), depois de Cacheu, Rios e Comércio de Guiné (1676), do Estanco do
Maranhäo e Pará e, finalmente, do Cacheu e Cabo Verde (1690).

A EUROPA E AS ILHAS

O comércio insular com a Europa definia-se por uma multiplicidade de produtos, agentes,
rotas e mercados. Neste aspecto a península ibérica apresentar-se-á como o principal mercado
consumidor ou redistribuidor para as principais praças europeias. Näo obstante persistir uma
tendência centralizadora nos portos de Lisboa e Sevilha, o certo é que a sua expressäo real,
nomeadamente, no caso português foi muito mais ampla, abrangendo os principais portos de
comércio a sul (Lagos e Silves) e a norte do país (Caminha, Viana, Porto e Vila do Conde).
Nos primeiros decénios a presença de mercadores estrangeiros, empenhados no comércio
dos produtos insulares portugueses, estava limitada à cidade de Lisboa, mercê das
dificuldades impostas no início do século XV à intervençäo directa nos mercados produtores.
Mas isto näo poderia manter-se por muito mais tempo e cedo
apareceram os primeiros estrangeiros avizinhados ou com licença para fazer comércio e fixar
residência. Depois abriram-se-lhes as portas, como forma de promover o comercio
excedentário do açúcar. Mesmo assim a troca esteve, por muito tempo, sujeita a inúmeros
impedimentos que impediam a livre circulaçäo dos agentes e da mercadoria.
No início do povoamento dos Açores a colheita de cereais dava para satisfazer as
necessidades do arquipélago e sobravam alguns excedentes que eram conduzidos a Lisboa. A
saída de cereal para este destino foi reivindicada em 1473 e 1490 pelos moradores da cidade.
Tal reclamaçäo evidencia a competitividade que assumia o cereal açoriano nas últimas
décadas do século XV, mercê do aparecimento de novos destinos como a Madeira e praças do
norte de åfrica. Estava, deste modo, encontrado o celeiro substitutivo da Madeira, capaz de a
abastecer a Madeira e de substitui-la nesta funçäo com Lisboa e praças africanas. Os
excedentes assim o permitiam, pelo que o cereal se afirmou como o primeiro e mais
importante produto deste relacionamento comercial.
O comércio do cereal açoriano alicerçou-se, primeiro no provimento do reino , depois no
obrigatório abastecimento da Madeira e praças africanas. A rota para o reino foi estabelecida
como uma necessidade decorrente da promoçäo da cultura em solo insular, enquanto o
segundo rumo foi traçado pela política económica traçada para o espaço insular. O último
destino foi imposto pela coroa.
O mercado do reino foi o primeiro consumidor de trigo açoriano mas näo o único nem o
principal destino do trigo ilhéu, pois que em lugar cimeiro e reservado estavam as praças
portuguesas do Norte de åfrica. O movimento de trigo açoriano para elas fazia-se sob o
controlo régio por meio de assentistas que em Lisboa recebiam o contrato de fornecimento e
daí enviavam os respectivos navios a carregar o trigo arrecadado.
165
. C. J. Senna BARCELOS, História de Cabo Verde e Guiné, parte I, Lisboa, 1899, 223.
Este comércio beneficiava de privilégios estabelecidos por ordens régias, sendo
considerado como prioritário nas transacçöes cerealíferas açorianas: todo o trato de trigo no
arquipélago, nomeadamente, em S. Miguel e Terceira, deveria fazer-se "sem prejuízo dos
lugares de åfrica". Deste modo no início da colheita procedia-se à arrecadaçäo do referido
trigo, avaliado entre 2.000 e 3.000 moios. Além disso o contratador ou o procurador tinha a
prioridade na compra do cereal, pelo que a livre saída de trigo só teria lugar após o
acautelamento do "saco para África". Mas esta ordem causava prejuízo aos agricultores, caso
tardasse o envio da remessa. A camara de Ponta Delgada recomendava em 1644 aos
contratadores do dito trigo que fizessem a compra até Agosto, caso contrário ela näo se
responsabilizava por quaisquer dificuldades no cumprimento do contrato. Estas medidas eram
o corolário de um sucedâneo de situaçöes que impossibilitavam o arquipélago de atender aos
seus compromissos e de assegurar o abastecimento interno.
A violência com que a coroa impunha a rota, coibindo o merca dor de executar as trocas
comerciais correntes ou retardando-as; o tom descricionário dos regimentos e
recomendaçöes, tendo a desfaçatez de afrontar a requisiçäo dos navios e carros necessários ao
transporte e carregamento do referido trigo. E, por fim, a constante presença do administrador
para o provimento das praças, criaram dificuldades nas relaçöes de troca no mercado
cerealífero açoriano.
O arquipélago estava condenado a manter o cereal sob rigoroso controlo, que abrangia a
produçäo e comércio. O senhorio (rei, capitäo, donatário, terratenente), o contratador desde
Lisboa controlava todos os circuitos do mercado insular, ditando as normas que regiam as
trocas. Se tivermos em conta as necessidades do consumo local, o "saco de trigo" para as
praças de åfrica e a Madeira, pouco trigo sobejava para o comércio.
O grande mercador de cereal criou fortuna no provimento das praças norte-africanas, como
contratador, intermediário dos senhorios (como sucede com o Conde de Vila Franca) ou o
recurso ao contrabando e especulaçäo possíveis. Os mais importantes mercadores locais
surgem como representantes dos assentistas. tenha-se em conta o caso de Manuel Alvares
Senra, que foi procurador de Álvaro Fernandes de Elvas, contratador do fornecimento de
Tânger (1636), enquanto Guilherme Chamberlin representou Pedro Alves Cabral e Manuel da
Costa Braga.
De um modo geral os assentistas eram originários do reino e aí recebiam o regimento régio
para concretizar o referido contrato, fretando as caravelas necessárias ao carregamento do
cereal em Ponta Delgada ou em Angra. No século XVI näo há qualquer referência a
procuradores ou administradores do dito provimento. Eles só aparecem a partir de meados do
século XVII. Em alguns momentos o abastecimento fez-se de modo diverso, quer sob a
responsabilidade do feitor régio nos Açores, o provedor e contador da fazenda, quer por
iniciativa de particulares, fora deste sistema.

O COMÉRCIO COM O REINO

Os contactos entre a Madeira e o reino eram constantes e faziam-se com maior frequência a
partir dos portos de Lisboa, Viana e Caminha. Os portos do norte mantiveram uma acçäo
muito importante no período de apogeu da safra açucareira, uma vez que os marinheiros e
mercadores daí oriundos controlavam uma parte importante do tráfico comercial, sendo eles
que abasteciam a ilha de carne e panos, levando em troca o açúcar para os mercados nórdicos.
A Madeira tinha para oferecer ao mercador do reino um grupo restrito de produtos, mas
capaz de cativar o seu interesse. No começo foram as madeiras, o sangue de drago e os
excedentes da produçäo cerealífera, depois o açúcar que fez redobrar a oferta e, finalmente, o
vinho, exportado para Lisboa, muitas vezes, com a finalidade de abastecer as naus das rotas
do Brasil ou outros destinos.
A ilha recebia em troca da limitada mas rica oferta um conjunto variado de produtos, de
que se destacam as manufacturas imprescindíveis ao uso e consumo quotidianos: louça, telha
de Setúbal, Lisboa e Porto, panos, azeite e carne do norte. Além disso o porto do Funchal
actuava, muitas vezes, como intermediário entre os portos do reino e as feitorias africanas,
sendo de referir o comércio de peles, escravos e algodäo de Cabo Verde.
No início do povoamento da Madeira o produto que de imediato cativou a atençäo dos
portugueses foi aquele que deu nome à ilha, isto é as madeiras. Estas eram de alta qualidade
tendo usos múltiplos na ilha e fora dela. Muitas foram exportadas para o reino e também para
as praças africanas (Mogador e Safim) e portos europeus (Ruäo). Tal como nos elucidam os
cronistas estas madeiras revolucionaram o sistema de construçäo civil e naval no reino .
O comércio açoriano com os portos do reino regia-se pelos mesmos princípios e
solicitaçöes do madeirense, apenas se alteravam os produtos oferecidos como contrapartida.
Enquanto a Madeira tinha para oferecer um produto por época, sendo a partir de determinado
momento, o açúcar, os Açores apresentavam uma oferta variada e mais vantajosa: cereais,
pastel e gado. Também aqui os portos do norte do país, nomeadamente, da regiäo de Entre-
Douro-e-Minho, estavam em primeiro lugar. Eram eles que abasteciam os Açores de azeite,
sal, louças, panos e mais artefactos, recebendo em troca trigo, carne, couros e pastel.
A trama de relaçöes com o velho continente näo se resumia
apenas aos portos reinóis, uma vez que as culturas locais cativaram o interesse dos mercados
mediterrânicos e nórdicos: primeiro a urzela e outras plantas tintureiras como o sangue de
drago e o pastel, depois o açúcar e o vinho, foram produtos que estiveram na mira dos
mercadores estrangeiros. A par disso o reino näo dispunha de todos os artefactos solicitados
pelas gentes insulares, cada vez mais exigentes na sua qualidade. As riquezas acumuladas com
este comércio apelavam para um luxo ostensório no ornamento da casa, que só poderia ser
conseguido nas praças de Ypres, Ruäo e Londres.
A opulência da aristocracia madeirense e açoriana estava bem patente no recurso
desnecessário a artefactos de luxo, testemunhado por Gaspar Frutuoso em finais do século
dezasseis. A origem disso era clara: no Funchal os proventos do açúcar, em Ponta Delgada do
pastel. Esta circunstância condicionou inevitavelmente a presença de mercadores oriundos das
praças europeias. Oferecia-se o açúcar, o pastel e urzela, o algodäo e escravos, recebendo-se
em troca panos, por vezes, cereais, peixe seco e salgado.
O comércio açoriano estava orientado quase que exclusivamente para os centros têxteis do
norte, destacando-se aí as ilhas britânicas e os agentes comerciais, que no século dezassete
assumem uma posiçäo hegemónica no porto de Ponta Delgada. Nos registos avulsos de saída
e entrada do porto, para o período de 1620 a 1694, mais de metade das embarcaçöes eram
inglesas, sendo na maioria de e para Inglaterra. A principal mercadoria em trânsito no porto de
Ponta Delgada era o pastel, que teve o seu momento fulgurante nas décadas de vinte e trinta.
Neste contexto é evidente a hegemonia do mercado e mercadores ingleses, pois a quase
totalidade do pastel(98%) exportado, no período de 1621 a 1676, é para aí conduzido. A parte
sobrante distribui-se pela Holanda, França, Flandres e Sevilha. Note-se que o inglês ignorou
as proibiçöes impostas à sua presença pela coroa em finais do século XVI. A sua forte
presença na ilha e o recurso ao pavilhäo de nacionalidades autorizadas possibilitaram que esta
via comercial se mantivesse aberta.
O madeirense, ao inverso do açoriano, nestes séculos XV e XVI estava orientado para o
tradicional mercado Mediterrâneo, tendo como principal aposta o açúcar. Neste caso surgem
três áreas: as praças espanholas de Sevilha, Valência e Barcelona, as cidades italianas
(Génova, Veneza e Livorno) e os portos do Mediterrâneo Oriental (Chios e Constantinopla).
As primeiras foram imprescindíveis para este comércio, funcionando como praças de
redistribuiçäo para o mercado levantino.
O comércio do açúcar surge no mercado madeirense como o principal animador das
trocas, no decurso dos séculos XV e XVI, com o mercado europeu. Durante mais de um
século a riqueza das gentes e a contrapartida para o suuprimento de bens alimentares e
artefactos. O seu regime de comércio é definido por Vitorino Magalhães Godinho166 "entre a
liberdade fortemente restringida pela intervemção quer da coroa quer dos poderosos
capitalistas, de um lado, e o monopólio". Deste modo o comércio do açucar só se manteve em
regime livre até 1469, altura em que a quebra do preço condicionou a acção do senhorio, que
estipula o exclusivo aos mercadores de Lisboa. Esta política de controle e monopólio do
comercio não contou com o apoio dos madeirenses que sempre manifestaram a sua opinião
contraria. Todavia ela havia de persistir até 1508, altura em que foi revogada toda a legislação
comercial, restritiva da livre intervenção de madeirenses e estrangeiros. Em 1498 no sentido
de controlar esse comércio estabeleceu-se como limite de exportação 120.000 arrobas,
divididas pelas principais mercados do Mediterrâneo e norte da Europa.Pensámos que este
estabelecimento das escápulas em 1498 deveria definir com precisão o mercado consumidor
do açúcar madeirense, que se circunscrevia a três áreas distintas: o reino, a Europa nórdica e
mediterrânica. As praças do norte dominavam esse movimento, recebendo mais de metade do
açúcar. Aí evidenciam-se as praças circunscritas à Flandres, enquanto no Mediterrâneo a
posição simeira è atribuída a Veneza conjuntamente com as praças levantinas de Chios e
Constantinopla.
Se compararmos os valores desta escápula com os dados referentes ao açúcar saído da ilha
entre 1490 e 1550 nota-se uma similitude nos mercados. A diferença mais significativa surge
com as cidades italianas, que surge com uma posição dominante neste comércio. Todavia ela
poderá resultar de os italianos domianaram mais de 2/3 do comércio de todo esse açúcar,
actuando os portos e cidades italianos como centros de redistribuição. À parte isso é bastante
evidente a posição hegemónica dos mercadores oriundos das diferentes cidades italianas,
neste comércio com 78% do açúcar movimentado. A partir dos dados compilados na
documentação podemos concluir pela constância dos mercados italiano e flamengo. A isto
acresce os portos do reino, nomeadamente de Lisboa e Viana do Castelo,, que surge em
terceiro lugar, com 10%.
A partir da segunda metade do século a concorrência do açúcar americano retirou à
Madeira esta situação preferencial no mercado europeu. Todavia o açúcar, ou seus derivados,
como as conservas e casca, continuaram a activar um activo movimento com estes mercados.
Para isso usava-se o pouco açúcar produzido na ilha ou então o importado do Brasil. Neste
momento é pouco o açúcar exportado, mas abundante os produtos dele derivados. Estámos na
época do comércio de casca e de conservas.

166
.Ob.cit., vol.IV, 87
Ao açúcar juntaram-se depois as madeiras (nomeadamente de vinhático e cedro), a urzela,
o pastel, o couro e os escravos, que se trocavam por panos, trigo e objectos de luxo.
O comércio das ilhas com o litoral africano, exceptuando o caso de Cabo Verde e S. Tomé,
fazia-se com maior assiduidade a partir das Canárias do que da Madeira ou dos Açores.
Mesmo assim a Madeira, mercê da posiçäo charneira no traçado das rotas quatrocentistas, teve
aí um papel relevante. Os madeirenses participaram activamente nas viagens de exploraçäo
geográfica e comércio no litoral africano, surgindo o Funchal, nas últimas décadas do século
XV, como um importante entreposto para o comércio de dentes de elefante. Além disso a
iniciativa madeirense bifurcou-se. Dum lado as praças marroquinas a quem a ilha passará a
fornecer os homens para a defesa, os materiais para o construçäo das fortalezas e os cereais
para sustento dos homens aí aquartelados. Do outro a área dos Rios e Golfo da Guiné, onde se
abastecia de escravos, täo necessários que eram para assegurar a força de trabalho na safra do
açúcar.
O açoriano ficou afastado destas áreas pelas dificuldades de acesso e também forma de
exploraçäo económica a que foram sujeitas, que o faziam prescindir dos produtos oferecidos
pelo trato da zona. A maior assiduidade dos contacto com o continente africano fez-se por
necessidade de abastecer as praças do Norte de åfrica e mesmo a área da costa da Guiné de
cereal, substituindo a Madeira a partir de finais do século XV. Mesmo aqui o abastecimento
fazia-se, muitas vezes, a partir da Madeira.
Os contactos de Cabo Verde ou S. Tomé com o reino e portos europeus eram também
assíduos nas primeiras centúrias da ocupaçäo, dependendo a frequência do traçado das rotas
oceânicas e da disponibilidade de produtos. Assim, no caso de S. Tomé a presença da cultura
açucareira no século dezasseis activou as relaçöes com o reino e os principais mercados do
norte da Europa. Mas a oferta näo se resumia apenas a este produto, pois que os navios
transportavam também algodäo (de Ano Bom), especiarias (gengibre, malagueta, pimenta e
canela), marfim, pau da Guiné e Brasil167 . Em Cabo Verde o mesmo conjunto de produtos, a
que se poderá juntar o ouro, ambar e urzela, activou, no início, os contactos com o reino.
Todavia, o aparecimento de um novo e promissor mercado para o comércio de escravos a
Ocidente veio mais tarde a monopolizar todos os interesses.
Os contactos das ilhas de Cabo Verde e S. Tomé com a Europa näo foram täo evidentes
como os que mantiveram com a costa africana ou americana. Todavia, a disponibilidade de
alguns produtos (açúcar, escravos, algodäo, carne, couros, urzela), solicitados pelo mercado
europeu, levou à existência de rotas permanentes com as principais praças europeias. Para a
Flandres, directamente ou por via dos portos do reino, exportava-se o açúcar de S.Tomé, as
madeiras, marfim e especiarias africanas(pimenta e malagueta), o algodäo de Santiago. Nos
contactos com os portos reinóis fazia-se chegar estes e outros produtos, como sal,
chacina,couros, gado e escravos. Este relacionamento privilegiado com os portos do reino
sucedeu no princípio, fazendo-se por meio de licenças e sob o controlo da Casa da Guiné e da
Mina. As ilhas de Santiago, S. Tomé e Principe serviam de intermediárias entre os portos
europeus de destino e o litoral da costa africana. No caso de S. Tomé e Principe foi um

167
. V. RAU, ob.cit., 210-221; Fernando Castelo BRANCO, "O comércio externo de São Tomé no século XVII", in Studia, nº 24, Lisboa, 1960,
83-98.
privilégio perdulário dos seus moradores, o que não sucedeu em Cabo Verde168. Note-se ainda
que a partir da segunda metade do século XVI com o aparecimento de um novo mercado de
destino para os escravos -o continente americano- estas ilhas serão um ponto de escala no
circuito de triangulação que liga a Europa ao Novo Mundo. Aqui o circuito de ligação é feito
pelas ilhas de Santiago e S. Tomé, receptoras de produtos alimentares e manufacturas
europeias.
De acordo com o livro de registo deavarias de navios portugueses na Feitoria de Antuérpia
entre 1535 e 1551169 é possível estabelecer a posição das ilhas de Cabo Verde, Madeira e
S.Tomé no comércio internacional. A S. Tomé surge com maior número de navios, isto é
126(88 de açúcar e 38 de carga mixta), seguindo-se a Madeira com 56 embarcações(28 de
açúcar e 28 de carga mista) e Cabo Verde(1 de açúcar e 7 de carga mixta). O facto mais
saliente é a posição assumida pela ilha de S. Tomé com o comércio de açúcar, distanciando-se
da Madeira, que neste momento se encontra numa fase de decadência. No conjunto da
mercadoria mixta saída de Cabo Verde destaque para o algodão e marfim, enquanto em S.
Tomé surge o marfim, o algodão, as madeiras e as especiarias. Note-se ainda que era comum
as embarcações conduziram em simultâneo açúcar ou outras mercadorias dos três
arquipélagos, o que demonstra existir uma rota de ligação entre eles, na ida e no regresso. Por
outro lado assinala-se que muita da mercadoria dos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé
chegava ao porto de Antuérpia a partir de Lisboa, o que demonstra a tendência para este porto
centralizar os negócios com as possessões atlânticas.No caso do açúcar de S. Tomé temos 21
navios com partida de Lisboa.
Ao invés do que sucedia com as Canárias, Cabo Verde e S. Tomé, as ilhas dos
arquipélagos da Madeira e Açores estiveram até ao século dezassete afastadas do comércio
com o continente americano. Restava-lhes aguardar pela chegada das embarcaçöes daí
oriundas e aspirar pelo contrabando ou trocas ocasionais. Note-se que ao porto do Funchal
chegaram também algumas destas. O desvio era considerado pela coroa como intencional,
para aí se fazer o contrabando, pelo que foram determinadas medidas proibitivas, de pouca
aplicaçäo prática.
Os contactos entre a Madeira e o litoral americano desenvolveram-se, após a quebra da
cultura da cana de açúcar, com o incremento do comércio do vinho madeirense. Ambos os
produtos estavam, de facto, ligados. A pouca oferta de açúcar na Madeira e a incessante
procura levaram os madeirenses a especular com o açúcar brasileiro, fazendo-o passar como
da Madeira. Conhecida a fraude o monarca exarou a sua proibiçäo em 1591, alheando-se das
reclamaçöes dos munícipes. Mais tarde, com o abandono definitivo da cultura da cana de
açúcar, näo havia motivo para impedir este comércio. Somente o sistema de comboios
marítimos condicionou, por algum tempo, a presença madeirense.
A criaçäo em 1649 da Companhia Geral do Estado do Brasil,
detentora do exclusivo comércio para esta área, motivou protestos dos funchalenses e
angrenses, os principais prejudicados com isso, o que levou a coroa a atribuir em 1650 ordem
especial para o envio de duas embarcaçöes do Funchal e três dos Açores com capacidade para

168
.Confronte-se Fernando CASTELO BRANCO,Fontes para a história do antigo ultramar português-II: São Tomé e Príncipe, Lisboa, 1982;Isabel
Bettencourt de SÁ-NOGUEIRA e Bernardo de SÁ-NOGUEIRA, " ilha do Príncipe no 1º quartel do século XVI: administração e comércio", in
Congresso Internacional Bartolomeu Dias e sua época. actas, vol.III, Porto, 1989,81-115.

169
.Virgínia Rau,Estudos sobre a História do sal português, Lisboa,1984,210-221.
300 pipas de produtos da terra que seriam depois trocados por tabaco, açúcar e madeiras. Mais
tarde ficou estabelecido que os mesmos não podiam suplantar as 500 caixas de açúcar. O
movimento das duas embarcações madeirenses fazia-se com toda a descrição, conforme
recomendava o Conselho da Fazenda, mediante as licenças e a sua entrega deveria ser feita no
sentido de favorecer todos os mercadores da ilha. Para estes navios havia uma escrituração à
parte na alfandega.Mas o açúcar brasileiro tinha destino diverso. Na Madeira ele era utilizado
na indústria de conservas e casquinha, enquanto nos Açores era reexportado depois pelos
mercadores estrangeiros, nomeadamente franceses, para os portos europeus.
Neste comércio assumiu uma posição privilegiada Diogo Fernandes Branco. Ele foi em
1676 administrador dos direitos de comboio dos navios que iam ao Brasil, mas também,
activo participante nesse negócio. O mesmo havia estabelecido um verdadeiro circuito de
triangulação para os seus negócios: da Madeira levava vinho para Angola que trocava por
escravos negros, que, por sua vez servia de moda de troca para adquirir o açúcar. Com o
açúcar fabricava-se as conservas que o mesmo exportava para os portos da Europa do Norte.
Ninguém como ele se comprometeu de corpo inteiro com este liame de circuitos comerciais
do Atlântico do século XVII.
Esta situação das actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco não é de modo algum
episódica, no contexto da estrutura comercial madeirense da segunda metade do século
dezassete, pois ela comprova uma das dominantes deste processo: a ilha como intermediária
entre os interesses da burguesia comercial do Novo e Velho Mundo. Um dos componentes
base deste puzzle é consttituído pelo porto do Funchal.
Entretanto novos mercados foram surgindo no espaço americano, nomeadamente as
colónias inglesas das Antilhas e da costa do norte, que se afirmaram como potenciais espaços
consumidores do vinho madeirense e açoriano. O vinho, que até entäo tinha como destino
exclusivo o Brasil, passou também a ser conduzido para os novos mercados, que assumiram
um lugar dominante a partir de finais da centúria. Aos portos de Pernambuco, Rio de Janeiro,
Baía vieram juntar-se os de New England, New York, Pensylvania, Virginia, Maryland,
Bermuda, Barbados, Jamaica, Antigua e Curaçau. No período de 1686 a 1688 das seiscentos e
oitenta e oito pipas entradas em Boston temos duzentos e sessenta e seis da Madeira e
quatrocentos e vinte e uma do Pico.
Esta situaçäo espelha uma realidade que marcará o comércio nas centúrias seguintes: os
açorianos abasteciam, preferencialmente, os portos da América do norte, levados pelo rumo
dos baleeiros, enquanto os madeirenses faziam incidir os seus contactos nas Antilhas inglesas
e francesas.
Para a Madeira a correspondência comercial de William Boltom para o período de 1696 a
1714 permite reconstituir parte desse circuito comercial que dominou no século XVIII.Aqui é
evidente a definição de um circuito comercial dominante, delimitado pelos portos ingleses e
das colónias da América Central e do Norte. _
As ilhas de Santiago e S. Tomé, mercê da proximidade da costa africana, afirmaram-se
como importantes entrepostos do trato negreiro africano nos séculos XV a XVII, tendo como
principal destino, a partir do século dezasseis, o novo continente americano. A primeira
feitoria dominava a vasta área, conhecida como os Rios de Guiné, enquanto a segunda
estendia-se desde S. Jorge da Mina até Angola, passando por Axem e Benim. Tal como o
referimos o povoamento só foi possível à custa de facilidades concedidas aos moradores para
o comércio nesta costa.
A evoluçäo do trato näo foi linear e esteve por muito tempo sujeita às mudanças conjuntura
atlântica. Assim S. Tomé assumiu um lugar relevante no comércio do Golfo da Guiné até o
último quartel do século dezasseis, sendo a crise, a partir de 1578, resultado do desvio das
rotas para o litoral africano. No período que decorre até 1650 entraram em S. Tomé 94900
escravos, sendo maior a incidência nos anos de 1501 a 1575. Entretanto na época da uniäo das
duas coroas peninsulares o número de escravos conduzidos a partir de S. Tomé para as Indias
de Castela (Cartagena, Vera Cruz e Margarita) atingiu os 4.828, isto é 20% do total. Os
problemas com a economia açucareira haviam colocado a ilha na dependência do comércio
deste produto, referenciando o escriväo da feitoria em 1551170 que ele era o principal
rendimento da coroa, pelo que o desvio das rotas contrariava a política de fixaçäo de colonos.
Em Santiago, principal ilha do arquipélago de Cabo Verde e feitoria do comércio dos
escravos dos Rios de Guiné, o comércio foi definido por outro rumo. No começo ele resultou
da oferta das produçöes locais mas depois, com a abertura de novos mercados os escravos,
foram solicitaçöes externas que o motivaram. Eles passaram a ser conduzidos, primeiro à
Europa e ilhas atlânticas e depois ao Brasil e Antilhas171. Para este último destino o comércio
fazia-se sob a forma de contratos entre a coroa e os mercadores. No período de 1551 a 1640
esta feitoria conduziu às ïndias de Castela mais de 5.729 (=23%) de escravos em 146 barcos
(=10%), sendo 4.439 apenas nos anos de 1609 e 1610.
Durante muito tempo o trato, entregue a arrendatários, foi o principal motivo das trocas
comerciais na ilha. Era com ele, trocado por algodäo e panos, que se adquiriam as
manufacturas europeias. Todavia os inúmeros entraves postos à circulaçäo dos produtos deste
tráfico, os desvios de mercadores estrangeiros, nacionais e, em especial dos lançados, vieram
a prejudicá-lo em Santiago172.
A importância destes mercados no comércio de escravos para o continente americano ficou
demonstrada em finais do século dezasseis, altura em que os povos estrangeiros se lançaram
ao ataque dos principais entrepostos do tráfico negreiro, com particular relevo para os
castelhanos. No caso dos holandeses, que em 1630 ocuparam Pernambuco. Esta atitude era
inevitável, pois só assim poderiam conseguir os escravos necessários para a manutençäo da
economia açucareira. Daí resultou a ocupaçäo de S. Jorge da Mina (1622), Angola (1641), os
constantes assaltos a S. Tomé, que levaram à sua invasäo de 1641, tendo aí permanecido até
1648.

170
. Monumenta Missionaria Africana, II, 269.

171
. E. VILA VILAR, Hispano-America y el comercio de esclavos. Los asientos portugueses, Sevilha, 1977; T. B. DUNCAN, Ob.cit., 198/238.

172
. António CARREIRA, Cabo Verde, Lisboa, 1983, 148-149.
IV. AS INSTITUIÇÕES INSULARES

A estrutura institucional é um dos domínios mais característicos no estudo das ilhas


portuguesas do Atlântico. Ela adquiriu forma na Madeira e depois expandiu-se e desenvolveu-
se nos demais arquipélagos de acordo com as particularidades de cada. Deste modo iremos
acompanhar o seu percurso a partir do modelo madeirense.
A Historiografia debate-se entre a defesa originalidade do processo e a sua vinculaçäo das
estruturas institucionais peninsulares. Quanto a nós parece haver um pouco de tudo. Na
realidade as instituiçöes insulares foram resultado do transplante das estruturas institucionais
peninsulares (ignorámos se houve qualquer ligaçäo, intencional ou näo, com as formas de
colonizaçäo do Mediterrâneo) e das inovaçöes geradas pelo novo meio. Foi a partir da
primeira e incipiente forma de estrutura social lançada na Madeira que ela se ergueu e
fundamentou. Ao contrário do que se possa imaginar nada disto foi predeterminado, tudo
emergiu de acordo com as necessidades do momento.
O caso da Madeira é paradigmático. No princípio todas as
funçöes de mando ficaram centralizadas nos três homens que comandaram o processo de
povoamento das duas ilhas -- Joäo Gonçalves Zarco, Tristäo Vaz e Bartolomeu Perestrelo.
Eles dinamizaram o povoamento da área que lhes foi distribuída. Sobre eles pendia a soluçäo
das primeiras querelas institucionais, que a nova sociedade gerou. Depois o progresso sócio-
económico criou novas necessidades, entre elas uma ajustada estrutura institucional.
A concessäo em 1433 por carta régia do governo das ilhas ao infante D. Henrique foi o
início de uma nova era. O infante permanecia como o senhorio, enquanto os escudeiros, que
haviam dado início ao povoamento do arquipélago, passaram a ser capitäes, que estavam
subordinados à sua alçada. Eles ficaram conhecidos como capitäes do donatário,
permanecendo como tal até finais do século quinze. As cartas de doaçäo das áreas, conhecidas
como capitanias, confirmaram-no juridicamente. Nelas ficaram estabelecidas a alçada e
privilégios.
Aos capitäes juntaram-se depois os funcionários do próprio donatário -- o ouvidor e o
almoxarife -- e uma incipiente estrutura de poder local, o município. E com o decorrer do
tempo o progresso social e económico e a dispersäo territorial condicionaram novas mudanças
que desembocaram, em finais do século XV, princípios da centúria seguinte, com uma nova
dinâmica institucional, que perdurará por muitos anos.
Daqui resulta que as instituiçöes insulares näo estavam elaboradas mas foram-se definindo
de acordo com as circunstancias. Também os tradicionais suportes de mando vigentes no reino
poucas vezes se mostraram adequados ao governo dos novos espaços. Por fim resta sublinhar
que os portugueses näo tinham uma ideia definida sobre a forma de o concretizar. Pois só a
partir de princípios do século dezasseis surgiu por parte da coroa uma visäo clara sobre a
realidade institucional para o espaço atlântico. Ora isto sucedeu numa altura em que eram
passados quase cem anos sobre o início do povoamento da Madeira.
Os resultados profícuos da experiência madeirense serviram de encorajamento para outros
espaços de ocupaçäo portuguesa. Deste modo a Madeira funcionou como modelo para as
novas sociedades e nunca como campo de ensaio.
Algo diferente sucedeu nas Canárias, onde a presença de uma populaçäo autóctone
condicionou de modo diferente a fixaçäo dos castelhanos. Por outro lado o processo de
conquista das ilhas foi iniciado por particulares. Só muito mais tarde a coroa castelhana
interveio activamente no processo. Sendo assim a experiência madeirense, acompanhada de
perto pelos castelhanos, näo se ajustava à realidade do arquipélago vizinho, que foi buscar a
sua origem na estrutura estabelecida na península nas terras conquistadas aos mouros. Daí terá
resultado o facto de o senhorio canário usufruir de uma jurisdiçäo mais ampla, em certos
domínios.
Também as diversas formas de intervençäo no processo de conquista propiciou a presença
de dois modos de governo, de acordo com os vários agentes: as ilhas realengas e as ilhas de
senhorio. Mereceram o primeiro nome aquelas que foram conquistadas por iniciativa da coroa,
enquanto as segundas pertenceram a iniciativa particular. Por outro lado esta estrutura
institucional parece ter sido lançada com carácter perdulário, tendo permanecido até às cortes
de Cádiz (1811). O senhorio português, ao contrário, foi circunstancial e näo resistiu mais do
que sessenta e quatro anos (1498). Nas Canárias a centralizaçäo de poderes levada a cabo
pela coroa näo conduziu ao apagamento da estrutura senhorial, mas apenas ao cercear de
algumas prerrogativas.
Partindo do princípio que os arquipélagos da Madeira e as Canárias materializaram a
primeira experiência das coroas peninsulares no espaço atlântico, adivinha-se a importância
que assumiram em posteriores iniciativas de povoamento e valorizaçäo económica de
continentes ou ilhas. Daqui se conclui que a Madeira funcionou como o modelo institucional
para o atlântico português, enquanto as Canárias exerceram idêntica funçäo para o mundo
colonial castelhano: as capitanias madeirenses expandiram-se nas ilhas portuguesas (Açores,
Cabo Verde, S. Tomé) e Brasil, enquanto o sistema de adelantado foi transplantado para a
América e Antilhas espanholas.

O SENHORIO DAS ILHAS

O senhorio português das ilhas iniciou-se em 1433 com a entrega por D. Duarte ao infante
D. Henrique, na qualidade de administrador da Ordem de Cristo, do governo temporal e
religioso das ilhas da Madeira, Porto Santo e Desertas. De acordo com a carta de doaçäo o
infante recebia o poder de administrar e distribuir as terras, de forma a torná-las rentáveis.
Num segundo momento o infante, na qualidade de donatário, procedeu à subdelegaçäo de
poderes nos três primeiros povoadores -- Joäo Gonçalves Zarco, Tristäo Vaz e Bartolomeu
Perestrelo -- procedendo à partilha do arquipélago em três capitanias: Machico (1440), Porto
Santo (1446) e Funchal (1450). As datas da näo coincidem, havendo quem especule sobre
isso. Estamos de novo perante mais um problema académico que pouco interessa ao debate do
tema.
Os primeiros povoadores a quem foi concedida a posse das capitanias, passaram a chamar-
se capitäes do donatário. Eles, de acordo com as cartas de doação, eram os representantes do
infante na alçada que lhes foi acometida, exercendo em seu nome a justiça e administraçäo do
património. Como recompensa tinham direito à posse de terras de sesmarias, privilégios
exclusivos -- como a venda do sal e fabrico de sabäo, moinhos, fornos, serras de água -- e ao
usufruto da redízima sobre as rendas estabelecidas no foral henriquino.
A alçada dos capitäes estava limitada apenas ao nível da justiça, pois eles näo poderiam
suplantar as competências exaradas na carta do senhorio, que lhe retiravam o direito de apelo
e sentença no caso de morte ou "talhamento" de membro. Todavia o infante ao conceder em
1440 a capitania da parte de Machico a Tristäo Vaz declarava que este lhe pertencia, o que
levou D.Afonso V a rectificar na carta de confirmaçäo da capitania do Funchal a Joäo
Gonçalves Zargo, em 25 de Novembro de 1451. Aí o monarca é peremptório: "honde diz na
carta do dicto meu tyo que a apelaçom de morte e talhamento de menbro venha perante elle,
queremos que venham perante nos segundo he conteudo na carta [1433] del Rei meu senhor e
padre susso escrito".
Para as ilhas de Cabo Verde e S. Tomé e Principe os capitães usufruiram de amplas
prerrogativas nas doações. As condições específicas do povoamento, a distância do reino
assim o exigiam no sentido de uma maior operacionalidade. Note-se que estas surge em
momentos posteriores, o que prova ser uma exigência da nova realidade, desfasada do modelo
madeirense. São elas ao nível da justiça e prende-se certamente com a rebeldia de alguns dos
vizinhos e, nomeadamente dos escravos.Esta alargamento dos poderes nos feitos cíveis e
crimes deu-se por cartas de 1511 e 1520. Os atropelos do capitão eram punidos.Neste último
caso todas as suas funções eram delegadas no corregedor, que era em simultâneo como
capitão e corregedor.Assim sucedeu em 1550 a Jorge Pimentel com a presença de um
corregedor e da suspensão do cargo.
A intervençäo dos capitäes do donatário é, muitas vezes, plenipotenciária, esquecendo-se
que os seus poderes estavam limitados ao estabelecido nas cartas e às inúmeras restriçöes que
se sucederam noutros diplomas régios. O facto de no início eles terem sido os principais
representantes da soberania nestes espaços criou hábitos plenipotenciários, que teimaram em
deter mesmo quando passaram a estar confrontados com a presença de novas instituiçöes e
funcionários. No caso madeirense sabe-se que até à morte do infante D. Henrique a figura e
presença do capitäo era dominante nos vários aspectos administrativos. Deste modo os
funchalenses, à morte do infante D.Henrique, em 1461 apresentaram ao novo senhor um rol de
reclamaçöes em que clamavam por medidas capazes de frenar o livre-arbítrio do capitäo do
Funchal.
A afirmaçäo da estrutura de poder municipal foi uma das respostas mais adequadas à
omnipresença do capitäo. Mas, esta comunhäo de interesses nem sempre vingou junto do
senhorio e, depois, da coroa.
Säo inúmeras as ocasiöes em que o monarca, correspondendo ao apelo dos capitäes ou com
o fim de agraciar os seus serviços, estabelece prerrogativas de reforço da sua alçada. No caso
do Funchal vimos a jurisdiçäo ser ampliada em finais do século XV e princípios do seguinte,
momento em que a tendência ia no sentido inverso: em 1487 o poder de julgar os feitos cíveis
foi alargado para os 15.000 reáis e no caso dos escravos foi-lhes atribuída a faculdade de
justiciar no corte de orelha (1509). A primeira medida tornou-se extensiva a todas as
capitanias por ordem régia de 1520. Entretanto em 1509 o capitäo do Funchal acumulava o
cargo de vedor da fazenda. E foi precisamente neste período que a coroa interveio no sentido
de reforçar o seu poder, retirando aos capitäes algumas faculdades governativas, que passaram
a ser exercidas por novos funcionários: o almoxarife e o corregedor.
Em simultâneo com isto assistiu-se à plena afirmaçäo do município. Ele que estivera, por
muito tempo, subjugado aos interesses do capitäo passou a usufruir de ampla autonomia: ele
perdeu a faculdade de presidir às eleiçöes e de confirmar os funcionários eleitos, revertendo
para a coroa e funcionários régios. Durante muito tempo foi evidente o conflito entre os seus
interesses e do município, tendo como pano de fundo a perda de prerrogativas
governamentais. Na ilha de Säo Miguel os conflitos foram mais evidentes e perpetuaram-se
por mais de dois séculos, sendo exemplo disso os municípios de Vila Franca do Campo e
Ponta Delgada.
A ilha de S. Tomé apresenta uma situaçäo singular. Primeiro os povoadores näo estiveram
sujeitos à forma de soberania intermédia, sendo os fruidores das doações,em simultâneo
donatários e capitäes. Por outro lado com a presença de um corregedor, a partir de 1514, o
capitäo-donatário (designa-se assim por estar acometido das funçöes do donatário e do
capitäo) viu a jurisdiçäo suspensa, sendo as suas funçöes depois exercidas por um capitäo,
nomeado pela coroa. Isto sucedeu a partir de 1541. Neste último centralizaram-se todos os
poderes judiciais e militares, sendo apoiado por um ouvidor e um letrado.
O período de uniäo das coroas peninsulares teve reflexos evidentes na figura institucional
dos capitäes, sendo exemplo disso as posiçöes assumidas por Rui Gonçalves da Câmara e
Tristäo Vaz da Veiga, respectivamente capitäes de S. Miguel e Machico, que foram cometidos
de amplos poderes ao serem nomeados governadores de S. Miguel e Madeira. Esta foi a
última expressäo plenipotenciária dos capitäes: a sua alçada foi, paulatinamente, reduzida até
se manter no usufruto das rendas e títulos. Perante isto poder-se-á afirmar que a iniciativa do
Marquês de Pombal foi apenas para confirmar uma situaçäo de facto. Desde 1766 as
capitanias deram lugar às alcaidarias-mores, extintas por decreto-lei de 13 de Agosto de 1832.
Esta mudança é justificada no alvará em causa como resultado absentismo de todos os
capitäes.
A carta de doaçäo da capitania, para além de regulamentar as regalias e alçadas, estabelecia
o tipo de relaçöes entre senhorio e a capitania. O primeiro era vitalício, mas devendo ser
confirmado pela coroa todas vezes que mudasse de mäos, enquanto as capitanias eram
hereditárias, regendo-se a sucessäo pela Lei Mental. O texto das cartas é taxativo ao enunciar
que ela deveria ter lugar "de descendente em descendente por linha direita masculina".
Todavia esta entrega era precária uma vez que havia necessidade da confirmaçäo régia todas
vezes que a coroa e a capitania mudassem de posse. A 1 de Novembro de 1450 Joäo
Gonçalves Zarco recebeu do infante o domínio da capitania, mas só em 25 de Novembro de
1451 a coroa confirmou o acto.
As capitanias poderiam ser vendidas, sujeitando-se o comprador a uma confirmaçäo do
senhorio e da coroa: Pedro Correia da Cunha, capitäo da ilha Graciosa, casado com Iseu
Perestrelo, filha de Bartolomeu Perestrelo, comprou à sogra o direito de posse da capitania do
Porto Santo, tendo obtido a anuência do infante em 17 de Maio de 1458; no entanto esta foi
depois considerada nula pela coroa a pedido do herdeiro, Bartolomeu Perestrelo. A compra da
capitania da ilha de S. Miguel por Rui Gonçalves da Câmara foi confirmada pela infanta D.
Beatriz em 10 de Março de 1474, sendo a anuência régia dada em 20 de Maio e 13 de Julho
do mesmo ano.
Tal como o referimos a norma estabelecida para a sucessäo determinava a maior idade e a
linha masculina do herdeiro. A pratica admitiu algumas excepçöes, surgindo mulheres à frente
das capitanias. É o caso de D. Branca de Aguiar, filha de Antonio da Noli, que veio a receber
em 8 de Abril de 1497 a posse da capitania da Ribeira Grande (Santiago), sucedendo ao seu
pai, que fora capitäo de toda a ilha. Algo semelhante teve lugar em S. Tomé onde o rei
concedeu em 14 de Março de 1486 parte da ilha a Mécia de Paiva. Mas o monarca näo violava
as normas em vigor, pois estabelecia que o cargo de capitäo deveria ser exercido por aquele
que casasse com ela. A carta régia de confirmaçäo é clara ao afirmar que ele deveria ser de
"escolha e vontade régia". Diferente foi o que sucedeu no Funchal em 1660 em que a morte do
oitavo capitäo deixou a capitania sem herdeiro, ficando em poder da sua irmä, D. Mariana
Alencastre. Daqui resultou uma demanda entre vários pretendentes do sexo masculino, que
durou até 1676.
Casos houve em que a doaçäo era limitada: vitalícia ou por uma e mais vidas. Por duas
vidas poder-se-á testemunhar em 1477 com a entrega do ilhéu do Bugio ao capitäo do
Funchal. Por três é conhecido o caso ilha de Maio doada em 1672 a D. Maria de Menezes,
enquanto que a vitalícia aconteceu em 3 de Janeiro de 1505 com a concessäo do gado bravo
da ilha de Boavista a Pedro Correia. As duas últimas, expressas num momento em que havia
sido extinto o senhorio e por isso mesmo os capitäes dependiam directamente da coroa,
testemunham uma nova fase, definida por uma maior versatilidade dos usufrutuários.
A evoluçäo do senhorio e capitanias nos Açores, Cabo Verde e S. Tomé atesta o
comportamento seguido pela coroa, que procurou articula-los de acordo com as
especificidades de cada capitania. Deste modo nos Açores estamos perante outra forma da sua
expressäo, sendo o preludio de uma nova etapa. Aqui ao contrário do que sucedeu no
arquipélago madeirense nem todos as ilhas ficaram sob a alçada do mesmo donatário. A
omnipresença do infante D. Henrique näo era täo dominante como por vezes se pretende
afirmar.
A ilha de S. Miguel esteve até 1449 entregue ao infante D. Pedro, permanecendo as outras,
à excepçäo de Flores e Corvo, em poder do infante D. Henrique. As duas ilhas mais
ocidentais, descobertas por Diogo de Teive e Fernäo Teles em 1452, foram doadas em 1453 a
D. Afonso, duque de Barcelos.
O senhorio do infante D.Henrique foi alargado depois a cinco ilhas de Cabo Verde, que
teriam sido descobertas em 1460 por António da Noli, como o postula a doaçäo régia de 3 de
Dezembro. Foi este vasto património que o infante concedeu em 22 de Agosto de 1460 a D.
Fernando, confirmado por alvará régio de 2 de Setembro e 3 de Dezembro de 1460. As demais
ilhas, posteriormente encontradas, mas ainda em vida do infante D. Henrique, foram
integradas no senhorio por carta régia de 19 de Setembro de 1462.
O descobrimento e ocupaçäo das ilhas do arquipélago de S.Tomé e Príncipe foi tardio e
surgiu numa época em que o senhorio estava já decadente. Deste modo as ilhas näo ficaram
associadas ao património da Ordem de Cristo, sendo doadas por iniciativa régia a particulares.
A 24 de Setembro de 1485 a ilha de S. Tomé foi
concedida a Joäo da Paiva, sendo esta limitada a 11 de Janeiro do ano imediato apenas a
metade, ficando a outra em posse da coroa.
Joäo da Paiva, como detentor de S. Tomé, encontra-se numa posiçäo semelhante à de um
donatário um vez que näo foi residir nela, mandando em seu lugar Joäo Pereira, que surge
como virtual capitäo da ilha. Mas a efectiva ocupaçäo só teve lugar em 1493 por iniciativa de
ålvaro Caminha, nomeado alcaide-mór, com amplos poderes nas alçadas do cível e crime. As
particularidades do processo de ocupaçäo da ilha levaram a que a coroa concedesse, por cartas
de 8 de Dezembro de 1493 e 15 de Dezembro de 1499, os poderes de sentenciar a pena de
morte e mutilaçäo de membro aos escravos. Estas prerrogativas caducaram por carta de 4 de
Janeiro de 1500. Note-se que a posse da capitania, das terras que Vasco Anes Corte Real ia
descobrir, foi concedida em 17 de Setembro em idênticas condiçöes.
Está ainda por definir a política seguida pelo senhorio e coroa na distribuiçäo das
capitanias criadas nos quatro arquipélagos. Insiste-se no facto de que elas foram concedidas
aos usufrutuários como recompensa pelos serviços prestados ao senhorio ou rei. Todavia isto
näo esclarece o porquê de uns receberem uma, duas ilhas ou apenas parte delas.
Se na Madeira isto ficou plenamente esclarecido com a divisäo do território das duas ilhas
pelos três iniciais povoadores, o mesmo näo se poderá dizer, por exemplo, dos Açores onde é
difícil encontrar explicaçäo para a forma como foram estabelecidas as capitanias. Primeiro foi
Gonçalo Velho a surgir como capitäo das ilhas ou de apenas duas (S. Miguel e Santa Maria),
sendo uma delas com a superfície superior à da Madeira. Depois foi o seu parcelamento,
iniciado com a Terceira em 1474 dividida em duas capitanias, entre ålvaro Martins Homem e
Joäo Vaz Corte Real. O último foi também capitäo de S. Jorge (1483). Esta derradeira
situação consideramo-la estranha, uma vez que tem lugar no momento em que S. Miguel, a
maior ilha de todo o arquipélago, é confirmada apenas a um capitäo, enquanto esta, que no
início abrangia apenas uma capitania, teve que ser dividida em duas partes, quando ainda
existiam ilhas para entrega, como o Pico, Graciosa, S. Jorge.
Caso idêntico sucedeu em Cabo Verde onde em Santiago foram estabelecidas duas
capitanias, permanecendo as demais por ocupar e sem capitäo. Aqui, a exemplo da Terceira,
surgem capitäes em idênticas circunstâncias de Joäo Vaz Corte Real: Rodrigo Afonso foi
detentor da capitania de Alcatrazes (1490) e da ilha de Maio, enquanto Pedro Correia teve a
parte de Santiago (1522) e toda a de Boavista (1505).
Como explicar esta diferente atitude na distribuiçäo das capitanias insulares?
Dos quatro arquipélagos em análise sobressai a Madeira, näo só pelo facto de ter sido o
primeiro ocupado mas também por esta ter sido efectiva e ordenada: as três capitanias foram a
soluçäo que perdurou. Ao invés nos demais, embora no princípio a tendência fosse para fazer
corresponder a cada ilha um capitäo, num segundo momento a conjuntura foi diversa.
O impacto deste processo nos reinóis favoreceu uma maior presença de criados da casa do
infante D. Henrique ou da coroa. Além disso era cada vez mais numerosa a multidäo de
cavaleiros e marinheiros da gesta africana que clamava por uma recompensa. Perante isto
houve necessidade de redefinir a política de entrega das terras descobertas, de modo a que se
pudesse contemplar todos os interessados. Esta conjuntura ganhou forma a partir da década de
sessenta com o governo do infante D. Fernando. Na Terceira de uma única capitania de
Jácome de Bruges fez-se duas, o que também sucedeu em Santiago e Säo Tomé.
Mesmo assim subsiste uma dúvida: haveria algum motivo para que a maior ilha do
arquipélago açoriano (S.Miguel), com uma superfície superior à Madeira, continuasse na
posse de apenas um capitäo?
A única explicaçäo possível deverá estar, segundo o nosso entender, no facto de ela no
princípio ter sido desfavorável à fixaçäo de colonos. Os sismos e os permanentes fenómenos
vulcânicos afugentaram os primeiros colonos, como nos testemunha Gaspar Frutuoso, pelo
que foram poucos os que disputaram a sua posse. Apenas Rui Gonçalves da Câmara, filho
segundo do capitäo do Funchal anteviu aí o seu futuro como capitäo. Deste modo poder-se-á
concluir que a forma de entrega das capitanias estava de acordo com as possibilidades que
elas ofereciam, capazes de despertarem a cobiça do numeroso grupo de interessados. Só assim
se poderá compreender a diversidade de opçöes na distribuiçäo das capitanias: em vinte e
quatro ilhas apenas quatro (Madeira, Terceira, Santiago e S.Tomé) foram subdivididas,
ficando as outras a definir isoladamente (Porto Santo, Santa Maria, S.Miguel, Flores, Corvo.
Graciosa, Fogo, Santo Antäo, Príncipe e Ano Bom), em grupo (Santa Maria/S.Miguel,
Flores/Corvo, Faial/Pico, S.Nicolau, S.Vicente, Brava, Sal e Santa Luzia) ou em parte
(Angra/S.Jorge,Alcatrazes /Maio e Boavista).
Em síntese poderemos afirmar que a estrutura institucional que deu forma à sociedade
implantada pelos portugueses nas ilhas, definida como senhorio, abrangendo a quase
totalidade das pertencentes aos arquipélagos da Madeira, Açores, Cabo Verde, manteve-se até
o governo de D. Manuel. Ele foi, em simultâneo, senhorio e rei o que contribuiu para acabar
com a última situaçäo em 1498. A partir desta data desapareceu o senhorio, forma intermédia
de governo, mas mantiveram-se os capitäes, que passaram a responder junto da coroa.
Também ficou demonstrado, quanto ao aspecto formal das capitanias, que näo há
uniformidade, havendo ilhas na posse de um capitäo que dependiam directamente da coroa e
outras subordinadas a um senhorio. Por outro lado os capitäes poderiam ser detentores de uma
ou mais ilhas ou apenas duma parcela delas, como sucedeu na Madeira, Terceira, Graciosa,
Santiago e S.Tomé.
Tal como tivemos oportunidade de afirmar o título de posse da capitania estava sujeito a
inúmeros impedimentos. Em primeiro lugar, era precário devendo ser confirmado sempre que
mudasse o rei. Além disso a sucessäo fazia-se obrigatoriamente pela linha varonil, pelo que a
inexistência de tais condiçöes implicava a sua perda, revertendo a sua posse para a coroa. Foi
pela última situaçäo que muitas capitanias foram extintas ou mudaram de mäos. Deste modo
torna-se difícil, senäo impossível, traçar o quadro dos capitäes dos donatários das ilhas, a data
das doaçöes e confirmaçöes bem como o período de governo. Apenas as capitanias do
Funchal e da ilha de S.Miguel se mantiveram na posse da mesma família até à sua extinçäo
com o Marquês de Pombal.
A família dos Câmaras em ambos os casos foi persistente na preservaçäo deste direito, näo
obstante os inúmeros contratempos que se sucederam. Em 1656 a do Funchal esteve em vias
de ser extinta pelo facto de Joäo Gonçalves da Câmara morrer sem deixar filho varäo, ficando,
excepcionalmente, na posse de D. Mariana de Lencastre Vasconcelos e Câmara.

O MUNICÍPIO

Nos primórdios do povoamento dos arquipélagos a incipiente estrutura institucional


favoreceu a concentraçäo de poderes na figura do capitäo ou senhorio, mas o rápido processo
evolutivo a que as ilhas estiveram submetidas, associado as incessantes e reclamados abusos
levaram à inevitável quebra de poderes. Todavia não tanto como seria desejável pela maioria.
Note-se que no caso do Funchal a família do capitão continuará a deter uma posição
privilegiada até ao século XVII. A par disso o escasso corpus legislativo disponível propiciou
isto pelo que a forma mais adequada de o combater foi o recurso a medidas regulamentadoras
dos vários aspectos da sociedade.
O governo local na Madeira até 1461 regeu-se pelo foral henriquino, concedido à ilha em
data incerta. Mas nele näo se consignavam todas as determinaçöes possíveis, pelo que muito
ficava ao arbítrio do capitäo. Foi contra o poder magestático do capitäo e servidores que os
vizinhos do Funchal reclamaram ao novo senhor da ilha, em 1461, a plena afirmaçäo da
estrutura municipal. Os regimentos e regulamentos que se seguiram e uma maior actividade
do ouvidor do senhorio motivaram a nova estratégia de governo do infante D. Fernando para
as áreas do senhorio.
A criaçäo, ou melhor, a plena afirmaçäo do município poderá ser considerado o prelúdio,
ainda que frustrado, de uma nova era para a História das recém-criadas sociedades insulares.
O município afirmou-se, em qualquer dos arquipélagos, num momento avançado do
povoamento, quando os povoadores tomaram consciência da sua capacidade de intervir na
vida política e sentiram os efeitos da política despótica dos capitäes ou seus ouvidores. Mas a
omnipresença destes foi substituída pela das oligarquias locais. Facto comum a todos os
arquipélagos. No Funchal ou em Ponta Delgada, é patente o empenho do capitäo em
subordinar esta estrutura de poder aos seus interesses, entregando os cargos a parentes e
servidores, ou actuando à margem dela. Durante os séculos dezasseis e dezassete parte
significativa dos conflitos municipais são gerados por estes.
Entende A. M. Hespanha173 que a questão é o detonador que faz gerar a dissolução da
estrutura institucional medieval e afirmar a moderna. Todavia esta é uma questão, que para as
ilhas, ainda está em aberto e a merecer a atenção de um dedicado investigador.
Em todos as ilhas a política de criaçäo de novos municípios obedeceu a determinados
princípios: primeiro estabeleceu-se para cada capitania um município que depois se
subdividiu, de acordo com o progresso das localidades que aí emergem, do isolamento e da
capacidade reivindicativa dos munícipes. Excepção acontece nas ilhas de Cabo Verde onde
tardou o povoamento.
O poder municipal adquiriu a plena pujança apenas na primeira metade do século dezasseis.
Só entäo lhe foi concedida maior legitimidade governativa. Data também daí a subdivisäo das
capitanias em mais que um município. No Funchal, surgiram os de Ponta de Sol (1501) e
Calheta (1502), enquanto em Machico apenas foi permitido o de Santa Cruz (1515).
Entretanto na ilha de S. Miguel, um pouco maior que a Madeira, o primitivo município de
Vila Franca do Campo deu lugar a outros cinco: Ribeira Grande (1507), Nordeste (1514),
Agua de Pau (1515), Lagoa (1522) e Ponta Delgada (1546).
Na pequena ilha de S. Jorge as dificuldades provocadas pela orografia condicionaram a
existência de três municípios para pouco mais de três mil habitantes: Velas (> 1503), Topo
(1510) e Calheta (1534). Enquanto na Terceira para além dos dois municípios existentes, um
em cada capitania, surgiu outro em 1503 no lugar da Ribeira de Frei Joäo, que se chamou de
S. Sebastiäo.
Isto contribui para evidenciar, por um lado, a falta de um critério na política régia de
criaçäo dos municípios, e, por outro, a maior capacidade reivindicativa dos açorianos,
contrária à presença de uma oligarquia forte nas sedes das capitanias. Só assim foi possível o
alargamento da estrutura municipal.
Desconhecemos os primórdios da estrutura municipal nos arquipélagos do golfo e costa da
Guiné, mas sabemos terem existido nas ilhas inicialmente ocupadas, isto é, Santiago, Fogo, S.
Tomé e Príncipe. Na primeira ilha a existência de duas capitanias justificou a subdivisäo em
dois municípios: um com sede na Ribeira Grande e o outro em Alcatrazes. Mas aqui a
estrutura de poder terá permanecido por muito tempo incipiente, dominada por uma reduzida
173
Poder e instituições na Europa do antigo regime, Lisboa, 1979,33.
mas forte oligarquia local: o número limitado de vizinhos habilitados para o exercício desse
poder -- os homens-bons -- levou a câmara da Ribeira Grande a solicitar em 1562 à coroa que
os almotacéis servissem por três meses uma vez que näo era possível reunir um grupo de vinte
quatro homens habilitados para o exercício deste cargo.
O grupo de funcionários que corporizavam a estrutura municipal nestas ilhas era muito
mais reduzido do que o dos arquipélagos da Madeira e Açores, adequando-se aos níveis de
povoamento das ilhas. Em Cabo Verde nos dois municípios de Santiago estávamos perante
dois juizes e vereadores, um procurador do concelho, escriväo, meirinho e físico, enquanto no
do Fogo o grupo resumia-se apenas a um juiz, dois vereadores e um escriväo. No primeiro
caso a alçada dos juízes estava perfeitamente definida: um dedicava-se às causas dos
marineheiros e do mar enquanto o outro atinha-se à justiça dos que tinhamassento em terra
firme. Estávamos perante um munícipio original com alçada no espaço terresrtre mais também
marítimo. Tudo isto porque Santiago era uma ilha de vocação marítima por excelência. Em S.
Tomé, onde existiu apenas um município com sede na Povoaçäo. Aí a estrutura do senado da
câmara era em tudo semelhante à de Santiago. Diferente foi o caso da ilha de Príncipe onde
esta estrutura foi substituída pela presença de um capitão, almoxarife e juíz ordinário.

OS FUNCIONÁRIOS

Em qualquer dos casos em análise a estrutura institucional do município era definida por um
conjunto variado de funcionários com competências específicas, que podem ser escalonados
da seguinte forma:

1. oficiais de nomeaçäo régia;


2. oficiais eleitos por sufrágio indirecto, pelos
vizinhos;
3. funcionários administrativos, de provimento régio.

Esta disposiçäo formal é gradativa e define as competências de cada. Os primeiros,


nomeadamente o corregedor e alcaide, detinham maior capacidade governativa do que os
outros. Os segundos -- vereadores, procurador do concelho, almotacéis, guardas mores de
saúde, procuradores dos mesteres -- eram eleitos de entre um grupo restrito que a ele tinha
acesso. O senhorio e a coroa intervinham activamente, pois eram eles que estabeleciam as
listas de homens-bons, donde se retiravam os eleitos. A par disso os cargos de nomeaçäo
foram, num primeiro momento, de iniciativa do senhorio e só depois, a partir de 1497,
passaram a ser da responsabilidade da coroa.
De acordo com os alvarás régios de confirmaçäo das listas e da assiduidade às reuniöes do
municipio é possível saber qual a importância e a capacidade interventiva dos vários estratos
sócio-profissionais na vida municipal. Neste caso alguns dos estudos feitos para a Madeira e
Açores confirmam a existência de uma oligarquia local.
A eleiçäo dos oficiais concelhios era feita de modo indirecto a partir de uma pauta onde
estavam tombados todos os homens-bons do concelho, isto é, todos aqueles que aí residiam e
que se encontravam aptos para o exercício das funçöes.
Trienalmente procedia-se, a partir da pauta, à elaboraçäo de três róis para os cargos de juiz,
vereador e procurador com os nomes daqueles que haviam de exercer os cargos nos três
próximos mandatos. Depois eles eram colocados individualmente em pequenas bolas de cera
(= pelouros) e distribuídos por três sacos, de acordo com os cargos, e guardados numa arca às
ordens do porteiro da câmara e um dos juizes eleitos. No final de cada mandato procedia-se à
abertura solene da arca e dos pelouros.
Os homens-bons, mesmo näo fazendo parte da vereaçäo, poderiam participar nas reuniöes
concelhias e emitir parecer ou voto. Nas vereaçöes quatrocentistas do Funchal isto surge com
assiduidade, quase sempre motivada pela necessidade de estabelecer posturas sobre a cultura e
comércio do açúcar. Das partes mais recônditas da Calheta à Ribeira Brava, vinham os
homens-bons, proprietários de canaviais, a defender os seus interesses.
A presença dos demais vizinhos, em geral, estava simbolicamente estabelecida na figura do
procurador do concelho e depois, a partir de 1482, nos representantes dos mesteres. No
Funchal a lista era aprovada pela coroa, sendo o rei quem indicava os vizinhos que aí
deveriam constar. Das diversas listagens disponíveis a partir de 1470 sabe-se da presença
maioritariamente do grupo possidente da capitania, que se afirmara com a cultura açucareira.
Deste modo os seus interesses eram coincidentes com os do município funchalense. Idêntico
foi o caso de Ponta Delgada, onde os produtores de cereal fizeram mais do que uma vez
aprovar medidas que lhes eram favoráveis.
A representatividade dos diversos estratos sociais nos municípios de Cabo Verde e S.
Tomé apresentava-se distinta, pois aí a diferente estrutura social, demarcada pela forte
presença de escravos e libertos gerou inúmeras dificuldades. No caso de S. Tomé elas
desembocaram num confronto racial: dum lado os brancos e do outro os mestiços. Tudo isto
surgiu a partir de 1520, quando o rei autorizou os últimos, vizinhos da ilha e na condiçäo de
casados, a poderem entrar para os cargos da câmara.
Em 1545 a situação estava expressa no senado onde os dois juizes representavam,
separadamente, os interesses de ambos os grupos. Foi em torno deles que se gerou um
alvoroço. Entretanto em 1554 os mestiços, descontentes com a fraca representatividade no
município manifestaram-se contra o sistema de eleiçäo por pelouros, reivindicando que fosse
feita a "vozes". Mas como näo foram aprovados pelas autoridades, provocaram um motim que
só foi sanado com a prisäo dos cabecilhas. Este episódio define uma das únicas contestaçöes
conhecidas contra a forma de eleiçäo dos oficiais concelhios e à sua representatividade.
A intervençäo do município nos arquipélagos de S. Tomé e Cabo Verde näo pode ser
rastreada uma vez que nos faltam os documentos capazes de nos elucidar sobre isso.
Perderam-se as actas camarárias e com elas o testemunho dos anseios e preocupaçöes destas
gentes. Elas surgem só para a vila de Santo António de Príncipe a partir de 1672174, enquanto
no Funchal elas datam de 1472 e nos demais municípios da Madeira e Açores aparecem com
certa abundância nos séculos dezasseis e dezassete. Apenas em S. Tomé estäo disponíveis
alguns documentos que espelham a situaçäo vivida na segunda metade do século dezasseis
com os alvoroços que tiveram lugar.
O funcionamento do município e o número de funcionários dependiam da importância de
cada um e do avolumar dos problemas em debate. As ordenaçöes e os regimentos régios
estabeleciam a obrigatoriedade de duas sessöes semanais para o senado da câmara, mas esta
ordem só foi cumprida nos municípios de maior dimensäo, como Funchal, Ponta Delgada e
Angra. Nos restantes municípios apenas uma reuniäo semanal ao sábado era o suficiente para

174
. Fernando Castelo BRANCO, Actas da Câmara de Santo Antonio da ilha de princípe. 1672.1677,Lisboa, 1970.
atender aos problemas que a vivência municipal colocava. Estäo neste caso os municípios de
Velas (S.Jorge), Ponta de Sol e Calheta.
Na Madeira e Açores este ritmo de actividade era apenas quebrado com o redobrar da faina
dos campos em tempo das colheitas -- cana, cereais, pastel e uvas --, passando as reuniöes a
realizarem-se quinzenalmente ou fazia-se uma pausa, por um período determinado, nos meses
de Veräo. Por outro lado a leitura das actas revela que os três primeiros meses do ano eram
aqueles de mais intensa actividade.

A ALÇADA

Uma das principais preocupaçöes do município estava no assegurar aos munícipes os


meios básicos de subsistência, procurando a evitar qualquer rotura nos abastecimentos. As
posturas definiam as regras que os oficiais procuravam cumprir com o máximo dos
escrúpulos. Todavia a näo correspondência entre o ano civil, porque se regia o governo
municipal, e o ano agrícola, era gerador de dificuldades. Daí surgiu a necessidade de se ajustar
o ano administrativo ao calendário agrícola. A medida parece ter sido seguida na Madeira até
à década de setenta do século quinze, enquanto nos Açores teve expressäo prática em Vila
Franca desde 1577 e Ponta Delgada a partir de 1605. A partir daqui o mandato passou a ter
inicio no dia de S. Joäo.
As prerrogativas que definiam a alçada do município estavam
exaradas no foral, concedido, pelo senhorio ou coroa, às localidades nesta situaçäo. Na
Madeira o primeiro foi dado pelo infante D. Henrique, cujo texto se perdeu, seguindo-se
outros em 1472, 1499 e 1515175. O penúltimo ficou conhecido como foral novo.
O do século dezasseis foi uma tentativa uniformizadora da capacidade de intervençäo dos
municípios, pois foi extensivo a todos os da ilha. Depois foram utilizados nos Açores, com
ficou testemunhado no caso de Ponta Delgada e Angra. Para S. Tomé säo conhecidos dois
forais (1485 e 1524) concedidos em idênticos moldes dos madeirenses176.
Os regimentos régios, ou as respostas pontuais às dúvidas colocadas pelos munícipes
complementavam a sua alçada e a capacidade de intervençäo dos funcionários. Algumas
destas ordens foram depois compiladas no articulado das ordenaçöes do reino. É o caso dos
regimentos do feitor do trato de S.Tomé de 1532177 e de Santiago de 1520178.
A alçada do município era estabelecida, de forma simbólica, pelo selo, bandeira e o
pelourinho. A eles juntava-se o foral onde era atribuído o estatuto de vila e as regalias que
tinha direito. Mas as vilas criadas pelo infante D. Henrique na Madeira näo usufruíam de tais
prerrogativas, pois as duas primeiras foram concedidas em 1461 pelo infante D. Fernando, a
pedido dos vizinhos do Funchal e o último, símbolo do braço implacável da justiça, só foi
dado em 1486 por D. Manuel.

175
. Referenciado no foral manuelino de 1515, Monumenta Henricina, XV, 1974, 150-151.

176
. Monumenta Missionaria AfricanaXIV, 3-7 e 65-73, cartas de 16 de Dezembro e 19 de Maio.

177
. Ibidem, II, nº 7, 14-15, regimentos de 2 de Agosto.

178
. História Geral de Cabo Verde - corpo documental, nº 101, 281-283, 16 de Dezembro de 1517; nº 107, 295-301, 13 Janeiro de 1520.
A ideia básica de criaçäo do município resultou da necessidade de regulamentar os
aspectos do quotidiano e a urgência no estabelecimento de uma estrutura institucional que
fosse porta-voz dos anseios das populaçöes. Deste modo é legitimo de concluir que os
interesses locais estavam à frente dos outros e que a sua acçäo incidiu, principalmente, neste
âmbito. A isto deverá juntar-se a limitada capacidade judicial.
De um modo geral podemos considerar que o município nos séculos XVI e XVII
desfrutava de ampla autonomia e de elevada participaçäo das gentes na governança. Todavia a
prática municipal veio a revelar alguns atropelos que levaram a coroa a limitar a alçada por
meio de funcionários régios, como o corregedor. Tendo em conta a situaçäo criada pelos
monarcas filipinos, quando da uniäo das coroas peninsulares (1580-1640), procuraram cercear
os poderes dos municípios portugueses procedendo a algumas mudanças na estrutura na
orgânica.
A intervençäo e a alçada dos cargos municipais, porque já definidas nas ordenaçöes e
regimentos régios, näo aparecem no código de posturas. Aqui apenas se estabeleceram normas
para serviço dos funcionários municipais, como sucede com os rendeiros do verde e os
almotacéis.
Pelos acórdäos e posturas, insistentemente divulgados em praça pública, sabe-se do
empenho dos vereadores sobre os aspectos do quotidiano das gentes: defesa dos usos e
costumes, da salubridade pública e a manutençäo do equilíbrio entre as actividades
económicas. Eis alguns dos domínios preferenciais.
Dos aspectos da justiça, cuja actuaçäo está expressa no número variado de funcionários --
juiz de fora, juizes pedâneos, alcaide, carcereiro, quadrilheiro, meirinho da serra e cidade,
guardas mores --, é necessário referir a limitada alçada, resumindo-se apenas aos feitos cíveis,
referidos nas posturas.

AS POSTURAS MUNICIPAIS

Definida que foi a estrutura de poder municipal importa agora saber como intervinham na
sociedade em que se inserem. Mas isto só se torna possível quando se encontrem disponíveis
os livros dos acordäos . No caso das ilhas persistem inúmeras lacunas que impossibilitam um
estudo exaustivo. As mais antigas de vereaçöes que se conhece, ainda que incompleta, é a da
Câmara do Funchal, que se inicia em 1472. Por isso, e tendo em conta que a maioria das
deliberaçöes säo conjunturais e de que só as posturas, porque perdulárias, poderiam expressar
melhor a situaçäo, optamos por analisar as últimas disponíveis apenas para o Funchal, Angra,
Ponta Delgada, Ribeira Grande e Vila Franca do Campo179.
As posturas, que surgiram como normas reguladoras dos múltiplos aspectos do quotidiano
do burgo, säo o testemunho mais evidente da mundividência do município. De acordo com as
ordens e regimentos concedidos ao burgo, o município estava incumbido de atribuiçöes
legislativas particulares, resultantes, nomeadamente, da necessidade de adaptar as ordens
gerais do reino às particularidades do espaço a que seriam aplicadas: por um lado existiam as
ordens gerais, estabelecidas pela coroa, e por outro as normas de conduta institucionalizadas
no direito consuetudinário, que definia as peculiaridades da vivência local.

179
. Alberto VIEIRA, "As posturas municipais da Madeira e Açores nos séculos XV a XVII", in III Colóquio Internacional sobre os Açores e
Atlântico, Angra do Heroismo, 1989.
As características ou vectores das sociedades e economias insulares reflectem-se no
articulado das posturas. Deste modo poder-se-á entender que a maior ou menor valorizaçäo
resulta da premência do quotidiano na política municipal.
Contabilizadas as posturas dos cinco municípios constata-se, ao nível dos sectores de
actividade económica, a dominância do sector terciário com 53% delas, seguido do secundário
com 39% e do primário com apenas 8%. Esta tendência para a terciarizaçäo da realidade
sócio-económica resulta, por um lado, do facto de o meio urbano contribuir com maior
número de situaçöes que carecem de normas e, por outro, reflexo da sua dominância na vida
económica. Todavia é necessário ter em conta que isto näo é igual nos diversos municípios.
No Funchal os sectores secundário e terciário encontram-se quase ao mesmo nível, ao
contrário do que sucede com Angra onde o último tem uma posiçäo dominante.
A afirmaçäo dos sectores secundário e terciário poderá ter diversas origens. Em primeiro
lugar convém referenciar que as posturas incidem preferencialmente sobre a urbe, espaço
privilegiado do sistema de trocas e oferta de serviços. Acresce ainda que esta funçäo sai
reforçada pelo carácter atlântico e europeu das cidades em causa. Isto torna-se mais evidente
no Funchal, Angra e Ponta Delgada, importantes pólos de atracçäo do movimento comercial
insular e inter-continental. Além disso a actividade oficinal e comercial do burgo implicava
também uma maior atençäo mercê do maior número de situaçöes anómalas.
Ao contrário a mundividência rural perpetuava técnicas e relaçöes sociais ancestrais, sendo
o processo regulado pela rotina e ritmo das colheitas. Aí pouco ou nada mudava com o
decorrer dos anos. Deste modo o legislador municipal orientava a atençäo para o quotidiano
do burgo, marcado pelo sucedâneo de mudanças. Mas nas sociedades em que a faina rural se
tornava importante e definidora dos vectores sócio-económicos e onde as culturas
necessitavam de excessivos cuidados, este domínio näo poderia ser menosprezado. Daí resulta
a presença desta temática em 13% das posturas, na sua maioria dos municípios de Vila Franca
do Campo e Ponta Delgada, ambos na ilha de S. Miguel.
Tal como tivemos oportunidade de o afirmar o povoamento e exploraçäo do mundo insular
fez-se de acordo com os componentes da dieta alimentar do íncola - trigo/vinho - e dos
produtos impostos pelo mercado europeu para a satisfazer as necessidades das praças
europeias (açúcar e pastel). O primeiro grupo de produtos agrícolas, pela importância que
assumem para a vivência quotidiana das gentes insulares, solicitavam maior empenho do
município. Daí resulta a sua repercussäo em pelo menos 50% das posturas. Note-se que o
último grupo mereceu apenas referência em 15% delas .
A presença dos referidos produtos nos dois arquipélagos näo obedecia apenas às
especificidades definidas pela orografia e clima, pois também resultava das orientaçöes da
política agrícola definida pela da coroa e necessidades emergentes da subsistência das
populações. Tais condicionantes implicaram uma ambiência típica no mundo insular atlântico,
reflectindo-se na vivência de cada burgo.
A abundância ou carência das culturas e produtos de subsistência conduziam diversas
atitudes por parte do legislador. No primeiro caso ela abrangia todos os aspectos da vida
económica do produto, enquanto no segundo incidem preferencialmente sobre o
abastecimento do mercado interno, com normas adequadas ao normal
funcionamento dos circuitos de distribuiçäo e troca. Assim, se
justifica a similar importância atribuída às posturas cerealíferas em S. Miguel (Ponta Delgada
e Ribeira Grande) e Terceira (Angra). Enquanto a primeira se pode considerar como um
importante celeiro do mundo insular a última surge, desde meados do século XVI, como uma
área carente que assegurava o seu abastecimento nas ilhas vizinhas. O mesmo ocorre
semelhante ocorre no Funchal, Ponta Delgada e Angra. Apenas com os produtos típicos da
economia colonial - açúcar e pastel - a situaçäo é idêntica na Madeira e Säo Miguel.
A pecuária assume em todo o espaço agrícola insular um papel fundamental mercê da
tripla valorizaçäo económica na faina agrícola, dieta alimentar e indústria do couro. Este
sector foi relevante nos municípios de Ponta Delgada, Angra e Funchal. O seu incentivo
conduziu a um maior empenho da alçada municipal na venda de carne nos açougues
municipais bem como das industrias de curtumes e calçado.
No caso da carne do legislador local intervêm de modo diverso: a carência implicava uma
regulamentaçäo mais cuidada e assídua do senado do que a abundância. Isto é evidente em
Angra e Ponta Delgada, municípios que faziam depender o abastecimento pecuário das
localidades ou ilhas vizinhas. Ponta Delgada assegurava em Santa Maria, Ribeira Grande e
Vila Franca do Campo a raçäo de carne e derivados, enquanto Angra fazia depender o
abastecimento das ilhas de S. Jorge e Graciosa.
O desenvolvimento da indústria de couro tinha implicaçöes na salubridade do burgo o que
levava o senado a regulamentar rigorosamente a actividade, definindo os locais para curtir e
lavar os couros, bem como o modo de laboraçäo dos mesteres ligados a indústria A par disso
procurou-se assegurar a disponibilidade da matéria-prima para a indústria do calçado,
proibindo-se a saída. A conjuntura é comum a Angra, Funchal e Ponta Delgada. Esta medida
aliada a outras, tendentes à defesa da salubridade do burgo, revelam que a pecuária era
importante. Era daí que se extraíam a carne para a alimentaçäo, os couros, para a indústria de
curtumes e o estrume para fertilizar as terras, além do usufruto da força motriz no transporte
ou lavra das terras. Este sector foi uma grande fonte de riqueza e, portanto, merecedor de
redobrado empenho pelos municípios do Funchal e Ponta Delgada.
A presença da pecuária e actividades dela derivadas geravam inúmeros problemas. É o
caso dos danos causados pelo gado solto, näo apastorado, nas culturas, nomeadamente vinhas,
searas e canaviais. Daí resultou a necessidade de delimitar as áreas de pasto e a
obrigatoriedade de cercar as terras cultivadas. Depois um conjunto variado de pragas
infestava, com assiduidade, as culturas o que obrigava a uma participaçäo conjunta de todos
os vizinhos. Uma das principais resultava dos efeitos nefastos da presença dos pássaros,
nomeadamente os canários e corvos: os primeiros incidiam com frequência sobre o município
de Vila Franca do Campo. Para os combater os municípios estipulavam a obrigatoriedade de
todos os vizinhos apresentarem com periodicidade um número variado de cabeças dos
referidos pássaros, que depois seriam registadas em livro próprio. O número era variável de
acordo com o espaço agrícola e com a urgência do combate.
No domínio agrícola o empenho do município variava, de acordo com a dominância das
culturas existentes na extensa orla agrícola que cercava a vila. No Funchal, que abarcava uma
das mais importantes áreas de cultivo de cana de açúcar, quase todo o empenho estava nos
canaviais e engenhos, definindo a cada um o complexo processo de cultivo e laboraçäo do
açúcar. Nos Açores, conhecidos desde o século XV como o principal celeiro português, maior
atençäo foi atribuída ao problema cerealífero.
Estranhamente a cultura do pastel, que tinha uma importância relevante na economia
micaelense, näo mereceu grande empenho no código das posturas. Em Ponta Delgada temos
apenas duas e em Vila Franca do Campo sete, enquanto em Angra só se referencia uma única
sobre a urzela. As poucas referências às plantas tintureiras deveräo resultar certamente da
existências de regimentos régios que regulamentavam, até ao pormenor, o cultivo,
transformaçäo e comércio do produto. Todavia no caso da Madeira com o açúcar existiram,
em simultâneo, os regimentos régios e as respectivas posturas.
O abastado celeiro açoriano, de finais do século XV e
princípios do XVI, apresentou-se, a partir de meados do século XVI, como um apertado
granel, incapaz de suprir as necessidades de päo dos insulares, cada vez mais numerosa, e do
mercado lisboeta, norte africano e madeirense, carentes dos parcos excedentes da produçäo
açoriana. As sete espigas viçosas haviam perecido dando lugar a outras raquíticas e
improdutivas. O solo estéril e cansado negava-se a produzir o precioso cereal na proporçäo
que o havia fazendo. O ilhéu habituado ao consumo de päo viu-se obrigado a procurar outras
formas de alimento senäo quisesse passar fome.
Esta conjuntura da cultura cerealífera conduziu ao depauperamento dos rendeiros,
enquanto os senhorios, mercê da acçäo especulativa e o contrabando, continuavam a aumentar
os seus proventos. Perante isto tornava-se urgente o estabelecimento de uma política
cerealífera capaz de os debelar e de evitar o desequilíbrio entre as colheitas e o consumo. Mas
isso só seria possível mediante o controlo total dos circuitos de distribuiçäo. Daí resultou a
necessidade de manter as reservas necessárias para o consumo local e provimento das naus da
carreira das Indias, que aportavam aos portos açorianos.
Esta política cerealífera do arquipélago açoriano näo é original no contexto europeu, pois
que em toda a Europa e áreas oceânicas carentes se universalizaram tais medidas. É certo que
a cada área correspondia um caso variado e multifacetado, onde esta orientaçäo padronizada
carecia dos necessários reajustamentos e adaptaçöes. Sendo o arquipélago açoriano definido,
desde o início, como uma área de comércio de cereais onde a conjuntura foi desfavorável,
houve necessidade de adequar a política de abastecimentos a esta realidade.
Todo o empenho das autoridades locais e régias estava na satisfaçäo das necessidades do
arquipélago, do provimento das naus do reino e do trato obrigatório das áreas carentes
(Madeira, Norte de åfrica). Deste modo o comércio rendoso tornava-se, quase impossível. A
vigilância constante sobre os preços lesava a classe mercantil impelindo-a para a especulaçäo
e contrabando possíveis.
A política cerealífera açoriana baseava-se, essencialmente, em duas formas de actuaçäo
diferenciadas, mas complementares:

1. controlo/regulamentaçäo/proibiçäo do comércio e transporte de cereais no mercado


interno e externo;

2. controlo das colheitas e dos circuitos de reabastecimento e guarda do cereal, com o


estabelecimento de uma reserva, o trigo do exame.

A actuaçäo do município era variável e adaptava-se às circunstacias emergentes do ciclo


vegetativo do cereal. De Julho a Agosto, com a colheita do cereal, era feita a primeira vistoria
aos granéis para avaliar os stocks da colheita e arrecadar a percentagem de trigo dos exames,
que ficaria de reserva. De Setembro a Novembro carregava-se o trigo necessário para o
mercado africano, madeirense e a exportaçäo possível.
Concluídas estas iniciativas começavam a surgir as primeiras dificuldades no provimento
da populaçäo, sendo necessário pôr cobro à actividade de contrabando por meio de um
apertado sistema de vigilância e controlo das saídas, ou a proibiçäo. Esta medidas
estabeleciam-se de acordo com o volume da reserva de cereal.
A partir de Janeiro a falta de cereal tornava-se uma realidade permanente, ameaçando o
abastecimento do povo e dando azo à especulaçäo geradora, muitas vezes, de motins
populares. Mas somente entre Março/Abril/Maio se procedia à abertura do trigo dos exames
nas diversas localidades, que tinha preço estabelecido pelos vereadores. A sementeira haviam
esgotado os últimos alqueires do stocks de cereal dos rendeiros.
A exequibilidade das medidas tomadas ou estipuladas para cada momento dependia, em
primeiro lugar, da iniciativa do procurador do concelho e, depois, do espírito reivindicativo
das gentes, expresso quase sempre em motins. A actuaçäo dos vereadores era ambígua e
expressava-se de acordo com a sua origem social. Note-se que aí tinham assento
representantes do povo e dos grandes proprietários senhorios e burguesia, comprometidos
com o comércio de cereais.
Os componentes da dieta alimentar insular adquiriram um lugar de relevo na intervençäo
dos municípios que a isso dedicaram 47% dos capítulos dos referidos códigos de posturas.
Tudo isto, a par da constante interpelaçäo dos vereadores, demonstra as assíduas dificuldades
em assegurar as necessidades vitais dos municípios. Tal empenho era, no entanto, muito
variável, adequando-se à realidade agrícola e conjuntura produtiva de cada urbe.
Tudo isto resultou, certamente, do facto de a dieta alimentar manter a ancestral origem
mediterrânica, sendo pouco variada, o que colocava inúmeras dificuldades ao abastecimento
do meio urbano. O pouco uso dos legumes e peixe derivava do abuso de päo e vinho.
Sendo os mares insulares ricos em peixe e marisco, e toda a vivência das populaçöes
dominada pelo mar e extensa costa, näo se compreende o menosprezo pelas riquezas
alimentares marinhas em favor da carne. Note-se que as posturas referentes à carne duplicam
em relaçäo às que referenciam o peixe. O peixe aparece apenas nas posturas em Angra e no
Funchal: aí regulamenta-se, näo só a venda, mas também a pesca, dando-se especial relevo em
Angra à forma de distribuiçäo no mercado local.
A importância relevante do päo e da carne nos hábitos alimentares das populaçöes das ilhas
implicou um redobrado empenho do município sobre a sua circulaçäo e venda. Na verdade o
código de posturas acompanhava todo o processo de criaçäo, transformaçäo, transporte e
venda. Igual foi a incidência sobre o quotidiano que envolve a actividade dos meios de
produçäo a eles ligados(azenhas, atafonas, fornos e açougue municipal).
O moleiro deveria ser habilitado e diligente no ofício, tornando-se obrigatório o exame e o
juramento anual no senado da câmara. Além disso os vereadores fiscalizavam, diariamente, o
medir do cereal, da farinha e o acto de maquiar. Na Madeira tal tarefa estava a cargo de um
rendeiro dos moinhos. Este domínio mereceu apenas uma cuidada atençäo nas posturas de
Angra, Ribeira Grande e Funchal, o mesmo näo sucedendo em Ponta Delgada, que fazia moer
o seu trigo nos moinhos existentes na Vila da Ribeira Grande.
Uma vez que os moinhos disponíveis eram movidos a água estavam, obrigatoriamente,
situados nos locais onde ela existia em abundância e podia ser canalizada para tal fim. Na
Terceira só Angra apresentava em 1694 doze moinhos, estando outros treze repartidos pela
ilha. Para o Funchal esta presença era evidente também na cidade, onde existiu mais de
oitenta, sendo o eixo de maior concentraçäo a margem direita da ribeira de Santa Luzia.
A necessidade de precaver o moinho contra qualquer dano na farinha e farelo levou o
município a estabelecer a proibiçäo de existência nas proximidades de pocilga e capoeira.
Além disso a animaçäo desusada do espaço circundante ao moinho tornava necessária a
estabelecer normas de conduta social no sentido de moralizar e disciplinar o comportamento
dos habituais frequentadores. Na Madeira as mulheres casadas ou mancebas näo podiam
frequentar nem prestar qualquer serviço na moenda.
Ao moinho sucedia o forno, colectivo ou privado, que assegurava a cozedura do päo
consumido no burgo. Mas a afirmaçäo pública deste espaço resultava da existência de factores
propiciadores disso em cada ilha ou vila. Na Madeira e Açores, após uma fase inicial em que
eles foram privilégio do senhorio, assistiu-se a uma excessiva proliferaçäo de fornos no burgo
e arredores. Todavia a maior parte do päo aí consumido era resultado dos fornos públicos.
O município procurava exercer um controlo rigoroso sobre o peso e preço do päo. Ambos
eram fixados pala câmara de acordo com a situaçäo das reservas de cereal existente nos
celeiros locais. Além disso, em momentos de penúria, eram os vereadores que distribuíam o
cereal às padeiras. Esta preocupaçäo surge apenas no Funchal, estando a cargo dos almotaceis
que procuram manter o controlo sobre o fornecimento do cereal ou farinha e o fabrico do päo,
com a conferência do peso e preço de venda ao público. Tenha-se em conta que a vila, e
depois cidade, esteve desde finais do século XV, sob o espectro da carência de cereais. Isto
gerou, como é óbvio, especiais cuidados por parte da vereaçäo.
O único reflexo de uma similar atitude municipal nas ilhas açorianas situa-se apenas na
feitura e venda do biscoito, elemento indispensável para a dieta de bordo das inúmeras
embarcaçöes que
demandavam o arquipélago. Sendo os portos de Angra, Funchal e Ponta Delgada importantes
entrepostos do comércio atlântico é natural a redobrada atençäo atribuída ao fabrico de
biscoito.
O açúcar, pelo contrário, afirmou-se na economia insulana como o principal incentivo para
a manutençäo e desenvolvimento do sistema de trocas. Tal facto, associado ao carácter
especializado da cultura e fabrico do açúcar, tornou necessária a regulamentaçäo pelo código
de posturas na Madeira.
A intervençäo municipal näo se resumia apenas aos canaviais e ao processo de fabrico do
açúcar, alargando-se também a outros domínios que contribuíram de modo indirecto para o
desenvolvimento da cultura. Assim se justificava a extremada atençäo concedida às águas e
madeiras, dois elementos imprescindíveis para a cultura e indústria açucareira. Neste domínio
a acçäo municipal adequava-se às condiçäes geofísicas de cada área produtora, variando as
iniciativas de acordo com a maior ou menor disponibilidade de ambos os factores de
produçäo.
A Madeira, desfrutando de um vasto parque florestal e de abundantes caudais de água, näo
necessitava de intervir exageradamente neste domínio, reservando maior atençäo às
actividades em torno do engenho. As posturas definiam os cuidados a ter com a cultura dos
canaviais, transporte da cana e lenha pelos almocreves, bem como a actividade dos diversos
mesteres no engenho.
A este numeroso grupo de agentes de produçäo que asseguravam a o funcionamento do
engenho era exigido o máximo de esforço para que o açúcar branco extraído apresentasse as
qualidades solicitadas pelo mercado consumidor europeu. Neste caso valorizou-se a formaçäo
dos operários especializados do fabrico de açúcar (refinadores, purgadores...) ao mesmo
tempo que era solicitado ao proprietário uma escolha criteriosa dos agentes, que deveriam
prestar juramento perante o senado da câmara todos os anos. Esta política foi reforçada com
ao aparecimento do lealdador, oficial concelhio que tinha por missäo fiscalizar a qualidade do
açúcar laborado.
O uso abusivo, pelos agentes, do produto em laboraçäo, levou o município a estipular
pesadas coimas para aqueles que roubavam cana, socas, mel e bagaço. Além disso
estabeleceu-se um traväo à existência de condiçöes que apelassem para o furto, proibindo-se
a posse de porcos a qualquer agente que trabalhasse no engenho e do pagamento dos serviços
em espécie. Todavia, a última näo foi tida em conta pelos proprietários de engenho, que
continuaram a pagar alguns dos serviços em açúcar. Só assim se compreendem as quantias de
açúcar disponível nas mäos de muitos dos trabalhadores, na primeira metade do século
dezasseis.
O processo de fabrico de artefactos surge também como um momento importante de
animaçäo no burgo, ocupando um numeroso grupo de mesteres com assento em áreas ou
arruamentos estabelecidos pelo município. A necessidade de um apertado sistema de controlo
sobre a classe oficinal no sentido de uma maior exigência de qualidade dos artefactos
produzidos, de um tabelamento dos produtos e tarefas, condicionaram este interesse do
legislador insular, o que levou ao aparecimento desta em 21% das posturas em análise.
Esta política municipal para os ofícios näo era uniforme nos dois arquipélagos, uma vez que
a postura vai de encontro a uma multiplicidade de factores, condicionantes do
desenvolvimento da estrutura oficinal. Por isso a incidência foi maior nas posturas do
Funchal, Angra e Vila Franca do Campo do que nos restantes municípios. Por outro lado nos
municípios açorianos este sector de actividade näo adquiriu a importância relevante que teve
na Madeira, o que poderá ser indício do fraco nível de desenvolvimento dos serviços e do
sistema de trocas.
Tal expressäo da vida oficinal do burgo näo é igual em todas as posturas dos municípios
estudados. Apenas no Funchal é patente a maior incidência e variedade dos ofícios
abrangidos, ao contrário do que sucede nos municípios açorianos. Por exemplo: em Vila
Franca do Campo o empenho dos vereadores incide quase exclusivamente sobre dois ofícios
ligados aos transportes - barqueiro e carreiro. É de salientar, ainda, a importância atribuída aos
oleiros, actividade com grandes tradiçöes neste município. Em Angra e no Funchal eram os
moleiros que mais problemas causavam ao burgo, e por isso mesmo mereceram maior
vigilância dos almotaceis.
A maioria dos ofícios referenciados nas posturas pertence ao sector secundário e terciário,
tendo o primário fraca representatividade. Por aqui se confirma a importância que os dois
primeiros sectores de actividade assumiram para os municípios.
Os ofícios säo o esqueleto em que assentava a vivência do burgo. Eram eles que animavam
o quotidiano dos arruamentos e praças. Daí resultou o grande empenhamento demonstrado
pelo código de posturas. Maior atençäo foi dada à actividade transformadora e ao sector
alimentar, com particular relevo, no primeiro caso, para a indústria do calçado e, no segundo,
da moenda do cereal e venda de carne.
De um modo geral os ofícios referenciados nas posturas pertencem aos sectores secundário
(56%) e terciário (36%), com especial incidência para a actividade transformadora e
alimentar. Só no Funchal o conjunto de ofícios do sector secundário está muito próximo,
mercê do elevado desenvolvimento da estrutura oficinal. Note-se, ainda, que era no Funchal
que se encontrava uma maior variedade de ofícios, situaçäo contrastante com a exígua
referência e sobriedade dos municípios açorianos.
Na Madeira regulamentou-se de forma exaustiva os ofícios ligados à produçäo (canavieiro,
esburgador), transporte (almocreve, barqueiro e mestre de navio), transformaçäo (alfaiate,
caldeireiro, ferreiro, ferrador, forneiro, mestre de engenho, moleiro, oleiro, ourives, tacheiro,
tanoeiro, sapateiro) e comércio (carniceiro, fanqueira, mercador, pescadeira, taverneiro e
vendeira) dos produtos e artefactos. Nos Açores, num ou noutro sector de actividade, as
referências säo avulsas. Esta diversidade de actuaçöes resulta da conjuntura sócio-económica
de cada burgo. Assim Vila Franca do Campo, dominada por grandes áreas agrícolas viu
desenvolver-se o sector de transportes, necessário ao escoamento dos excedentes. O mesmo
sucedeu na cidade de Angra em que a missäo de porto oceânico conduziu ao forte
desenvolvimento dos ofícios ligados ao sector alimentar.
A intervençäo do legislador municipal na faina oficinal orientava-se no sentido da
regularizar a actividade. Aí se
estabelecia de modo rigoroso o processo de fabrico e a tabela de preços para as tarefas e
artefactos. A qualidade do serviço e produto näo resultavam apenas da concorrência na praça
mas fundamentalmente da vigilância das corporaçöes e da exigência do exame ao aprendiz. O
juramento anual e a necessidade de prestar fiança completavam a alçada municipal. Na
Madeira os ourives e tanoeiros deveriam apresentar aos vereadores a marca para que constasse
dos livros da Câmara.
A oficina dava lugar ao mercado ou praça, espaço privilegiado para a distribuiçäo e
escoamento dos artefactos. O município redobrava aqui a vigilância, estabelecendo regras
definidoras do sistema de trocas. Esta foi uma das preocupaçöes dominantes nas posturas,
expressa pela presença de 28% dela. Aqui a actuaçäo repartia-se entre o abastecimento de
bens alimentares e artefactos.
A praça dominava o espaço urbanizado, estabelecendo uma peculiar compartimentaçäo de
acordo com as exigências dos vectores internos e externos da vida económica. Aos edifícios
da fiscalidade sucedem-se os armazéns e lojas de venda. A sua importância no quotidiano está
justificada por uma dupla acçäo: primeiro submetendo os diversos ofícios ao juramento e
fiança anuais, depois por meio da vigilância dos almotacéis.
As normas regulamentadoras do mercado insular estruturavam-se da seguinte forma:

1. COMÉRCIO INTERNO, uma intervençäo baseada num apertado sistema de


vigilância incidindo sobre o preço de venda, dos bens alimentares e artefactos, fixados
pelos vereadores;

2. COMÉRCIO EXTERNO, actuaçäo no sentido de delimitar as trocas com o


exterior aos excedentes ou produtos a isso destinados.

Para o comércio externo o município intervinha de acordo com o nível de desenvolvimento


sócio-económico de cada cidade ou vila. Nas de grande animaçäo comercial com o exterior,
como Angra, Funchal e Ponta Delgada, a atençäo era redobrada, principalmente ao nível do
movimento de entrada e saída. A defesa das culturas locais implicava algumas limitaçöes no
movimento de entrada. Ao invés a carência, nomeadamente de bens alimentares, conduzia ao
estabelecimento de medidas incentivadoras da entrada e ao controlo rigoroso do transporte e
armazenamento. As últimas completavam-se com a proibiçäo imposta quanto à sua saída.
Estavam neste grupo o cereal, o vinho, o azeite, o pescado, o gado, a carne, o biscoito, o linho
e o couro.
A fragilidade do sistema económico insular associada à extrema dependência do mercado
europeu e atlântico condicionaram o nível de desenvolvimento do sistema de trocas, marcado
por múltiplas dificuldades no abastecimento. Deste modo as autoridades municipais faziam
incidir a sua acçäo sobre o sistema de trocas de modo a assegurar a subsistência das
populaçöes. Daí resultou o especial empenho para com questöes de abastecimento, onde o
cereal era escasso ou anormal. A última situaçäo explicita o elevado número de posturas
frumentárias em S. Miguel, considerada o principal celeiro do mundo insular português.
Saliente-se que elas surgem, com especial acuidade, nas décadas de trinta e quarenta, período
crítico para o abastecimento e comércio cerealífero micaelense.
A vinha e o vinho integram também o grupo de culturas e produtos protegidos, mercê da
importância que assumem na dieta e sistema de trocas insulares. As posturas estipulavam
medidas para evitar os danos causados pelo gado nas vinhas, furtos de uvas, bem como as
normas para a venda do vinho atavernado. No primeiro caso proibia-se, em Ponta Delgada,
Funchal e Angra, a venda de uvas sem licença do dono. No segundo, coibia-se os seus
interlocutores de processos fraudulentos na venda, com a fuga ao pagamento dos direitos e à
baldeaçäo de vinhos de diferentes qualidades. Para isso cada taberna só poderia dispor de duas
pipas de vinho (branco e tinto), e ambas varejadas e abertas por um oficial concelhio, o
rendeiro do vinho. Neste contexto merece especial referência a preocupaçäo do município
angrense em proibir a mistura dos vinhos. As indicaçöes ao uso de açúcar, mel de abelhas e
canas däo a entender que a prática do "vinho a martelo" é antiga e já tinha lugar em Angra.
A carne e o peixe, produtos que exigiam especiais cuidados no manuseio e venda, tiveram
também uma referência relevante nas posturas. Estabeleciam-se normas reguladoras
definidoras do processo de circulaçäo e venda. A venda do peixe deveria ter lugar na praça e
por agentes habilitados pelo senado da câmara. Deste modo aos proprietários de barcos, arrais
ou pescadores estava vedado o comércio a retalho. Ambos os produtos só depois de
fiscalizados pelo almotacel eram postos à venda. No caso da carne o corte e venda eram feitos
na presença de um oficial concelhio.
A venda por peso ou medida facilitava o dolo dos vendedores pouco honestos que
falsificavam os meios usados na mediçäo. Deste modo o município era obrigado a redobrar a
vigilância sobre o retalhista, sendo o alvo principal as vendedeiras. Daí ter-se estipulado o uso
obrigatório de pesos e medidas, aferidos pelo padräo municipal, sendo anual a respectiva
conferência a cargo do almotacel.
A sociabilidade no acanhado espaço insular näo mereceu idêntica atençäo por parte dos
municípios. Para isso contribuiu o facto de os marginais näo terem sido motivo de grande
instabilidade, mercê da coacçäo social exercida pelo meio, que impossibilitava uma fácil fuga
e de certo modo dificultava os desvios.
A urbe, espaço compartimentado da mundividência insular era animada pela presença dos
diversos agentes económicos nos domínios da produçäo, transformaçäo, transportes e
comércio. A múltipla sociabilidade, derivada das relaçöes que se estabeleciam entre os vários
estratos sócio-profissionais, forasteiros, vizinhos e marginais, levou ao estabelecimento de
normas de convivência social. Um dos maiores problemas foi a presença de um grupo de
marginais, constituído por meretrizes, trabalhadores e escravos fugitivos.
Os escravos constituíram a principal preocupaçäo dos municípios no domínio social. Deste
modo no articulado das posturas estabeleceram-se, minuciosamente, as padröes de
comportamento, estipulando-se os limites de convívio social. Assim ao escravo era vedado o
acesso a casa própria e mesmo a possibilidade de coabitar na urbe. Ele deveria residir nos
anexos da fazenda ou quinta do senhor, näo podendo ausentar-se sem prévia anuência do amo.
Fora do seu apertado circuito de convívio o escravo deveria ser identificável pelo sinal e
estava proibido de usar arma ou permanecer fora de portas após o toque de recolher. O seu
quotidiano estava definido em termos espaciais e temporais: serviço na casa e terras do amo
até o toque de recolher. Além disso ninguém, nem mesmo os libertos, poderiam acolher, dar
de comer ou esconder qualquer escravo foragido.
A defesa da moral pública, devidamente regulamentada nas ordenações do reino, mereceu
as necessárias adaptaçöes nas posturas das sociedades atlânticas, definindo o espaço e formas
de convívio social no burgo. Com a finalidade de defesa da reputaçäo da mulher casada,
delimitava-se a área de convívio para mancebia, ao mesmo tempo que se coagia o sexo oposto
a manter um comportamento regrado com as mulheres na fonte, ribeira e via pública. Na ilha
Terceira foi intençäo do legislador estabelecer formas de convívio nos espaços de maior
afluência de vizinhos e forasteiros, como tavernas, de modo a evitar os delitos e descortesias.
A defesa das necessárias condiçöes de vida do burgo completa-se com a procura de um
nível adequado de salubridade do espaço de convívio e labor social. A premência das doenças,
nomeadamente a peste, colocavam ao município a obrigaçäo de intervir com medidas
sanitárias, que se adequavam ao nível de salubridade e dominância de vivência rural no
município. Os principais problemas concernentes com a salubridade resultam da permanente
circulaçäo de animais no burgo, do uso abusivo da água das fontes, poços, levadas e ribeiras
para lavar, beber e uso industrial. A tudo isto se juntava as preocupaçöes com asseio das ruas
e praças públicas.
A soluçäo de alguns destes problemas levou o município a delimitar a área de transito e, no
caso da Madeira, a construçäo de abrigos para os animais, conhecidos como os palheiros.
A água, elemento vital do quotidiano e faina agrícola insular, mereceu o empenho do
município. Aí interveio-se no sentido regularizar o uso, evitando o furto e dano pelas
actividades artesanais - linho e couro. A fonte, espaço privilegiado do quotidiano da urbe,
mereceu especial atençäo: restringiu-se o uso e consumo de água, coibindo-se o serviço de
bebedouro para animais ou estendal de roupa. Esta preocupaçäo é dominante nas ilhas
Terceira e Säo Miguel.
O Funchal foi, sem dúvida, de todos os municípios o que desfrutou de melhores condiçöes
de salubridade. A cidade posicionada numa encosta talhada por três ribeiras propiciou isso. As
actas das vereaçöes e o código de posturas atribuem-lhe pouca atençäo.

Idênticas, ou senäo parecidas em alguns domínios, deveriam ser as normas lavradas nas
posturas dos municípios das ilhas de S. Tomé e Cabo Verde, cujo conteúdo nos escapa pela
ausência. Nas posturas aprovadas em 1732 pela câmara municipal de Santo Antäo é variado o
leque de intervençöes, coincidindo algumas com as anteriormente referenciadas para a
Madeira e Açores. Elas abrangiam a salubridade, pesos e medidas, danos causados pelo gado,
pássaros e consequentes medidas de protecçäo.

AS INSTITUIÇÕES RÉGIAS

Ao nível das diversas estruturas de mando nunca se alcançou uma harmonia perfeita, uma
vez que surgiram inúmeros conflitos, dentro da própria instituiçäo ou, o que era mais habitual,
fora dela. Para isso terá contribuído, por um lado, a insistente subdelegaçäo de poderes e , por
outro,as dificuldades na pronta fiscalizaçäo por parte da coroa. Uma reclamaçäo da Madeira
demorava meses a obter a concordância do senhorio ou da coroa, e piorava no caso de S.
Tomé ou de Cabo Verde.
O distanciamento da coroa e a falta do "olho justiceiro" dos funcionários provocaram
inúmeros atropelos de que foi vitima a vida municipal madeirense no século quinze e toda a
administraçäo de Cabo Verde e S. Tomé para os séculos XVI e XVII.
Num e noutro lado as situaçöes säo quase idênticas, sendo os
capitäes, cientes da real importância nas capitanias, o principal motivo de discórdia. Em 1511
o capitäo de Säo Miguel entrou em conflito aberto com o ouvidor eclesiástico e o contador.
Passados cinco anos foi o do Funchal a incompatibilizar-se com o corregedor negando-se a
aceitá-lo como tal, o que levou a coroa a suspendê-lo e o seu ouvidor. Caso parecido sucedeu
seis anos depois em S. Tomé, sendo expulso o capitäo Joäo de Melo e para o seu lugar
nomeado um governador, repetindo-se com o da Ribeira Grande em Santiago, em que ele foi
substituído pelo desembargador da Casa da Suplicaçäo.
No libelo acusatório contra o capitäo micaelense surgem inúmeros testemunhos de poder
despótico. Mas estas acusaçöes, consideradas por Gaspar Frutuoso sem fundamento, levaram
a que ele fosse suspenso, sendo substituído pelo tio Pedro da Câmara, sendo a capitania
restituída em 1515.
Fica assim provado que a coroa manteve uma atitude implacável junto dos capitäes, mas os
vícios, acumulados em anos de livre governança, longe da presença do rei ou seus
representantes,fora o principal obstáculo a essa política.
A usurpaçäo e os confrontos assíduos de alçada das instituiçöes e funcionários
condicionaram uma reacçäo em cadeia por parte da coroa. Das desinteligências surgidas
destacam-se as que tiveram lugar na ilha de S. Miguel entre os capitäes e os municípios da
Ribeira Grande, Ponta Delgada e Vila Franca do Campo. Era necessário demonstrar que a
conjuntura mudara e os hábitos despóticos deveriam ser combatidos com uma estrutura
institucional nova, adequada às exigências da imprescindível centralizaçäo régia. O senhorio
desaparecera, naturalmente, sem sobressaltos, mas deixou desamparados os capitäes,
incapazes de encararem os desafios das mudanças.
Da nova estrutura institucional contava uma maior revitalizaçäo do poder municipal, o
aparecimento de novos municípios e de outras estruturas de mando,para estabelecer-se uma
barreira firme aos hábitos entranhados na vivência quotidiana dos capitäes. Deste modo houve
necessidade de estabelecer uma estrutura forte capaz de enfrentar a nova realidade. Os
atropelos à autoridade legítima do rei aumentavam de acordo com a distância das capitanias
aos centros decisäo no reino.
A necessidade e celeridade na nomeaçäo dos funcionários régios para tais ilhas estava bem
patente num requerimento do município da Ribeira Grande (Santiago) em 1624: "É que a
gente dela é revoltosa; e que há homicídios e outros crimes; o que se näo houver governador
haverá muitos mais; e que os naturais por serem muitos vexaräo e consumiräo as pessoas que
lá estäo deste reino, que säo muito poucas, por ficarem livres e senhores do governo".
Foi por aí que a coroa começou, estabelecendo uma autoridade suprema: primeiro em S.
Tomé o cargo de capitäo (1541), depois em Cabo Verde o de capitäo geral das ilhas (1578).
Este último veio a dar origem em 1600 ao capitäo governador, sendo substituído, a partir de
1640, pelo capitäo e governador general.
Além disso houve necessidade de definir uma forma específica de governo para as ilhas.
Os governadores e ouvidores passaram a ser nomeados apenas por um período de três anos,
findos os quais o seu governo deveria ser sujeito a uma sindicância. Depois a coroa passou a
enviar, com frequência, ouvidores ou desembargadores a sindicar a acçäo dos governadores,
ouvidores e capitäes-mores.
Na Madeira e Açores os problemas resolviam-se pontualmente com a presença do
corregedor -- um no primeiro e dois no segundo -- e só a partir da uniäo das coroas
peninsulares o novo monarca viu a necessidade de adequar a forma de governo das ilhas à
vigente nas Canárias: na Terceira foi o cargo de governador(1581), depois na Madeira em
1585, o de "geral e superintendente das cousas da guerra"180. Ambas as situaçöes
perpetuaram-se após a restauraçäo da independência em 1640, ficando nos Açores como
governador do Castelo de S. Filipe e das ilhas dos Açores181.
Também em Cabo Verde e S. Tomé a presença da autoridade régia teve inicio com a
intervençäo do corregedor: em 1514 no segundo e 1517 no primeiro. Em S. Tomé ele surgiu
desde o início como o funcionário supremo, retirando alçada aos donatários. Em Cabo Verde a
mudança foi paulatina: no começo adquiriu a funçäo de funcionário
supremo, sendo conhecido em 1558 como o ouvidor letrado. Em 1569 no arquipélago de Cabo
Verde a tendência era para a concentraçäo de poderes num só funcionário, surgindo aí o
desembargador António Velho Tinoco acumulando as funçöes de provedor da fazenda, dos
defuntos e resíduos, corregedor e capitäo da cidade da Ribeira Grande182. Finalmente em 1587
surge o cargo de capitäo-general, governador e provedor da fazenda Real, a quem competia a
superintência de toda a actividade governativa das ilhas e Rios de Guiné.
A presença de uma figura com alçada absoluta foi uma necessidade sentida desde o
primeiro momento do povoamento das ilhas. No caso de S. Tomé a mesma tornou-se mais
evidente mercê do reduzido número de europeus e dos permanentes conflitos que subsistiram
entre as autoridades locais.
A actividade dos donatários, corregedores e capitäes foi pautada por inúmeros atropelos. A
falta de um poder central e forte terá condicionado alguns dos alvoroços que tiveram lugar em
Cabo Verde entre 1545 e 1555.

AS FINANÇAS DAS ILHAS

Um dos domínios de maior empenho da coroa foi, sem dúvida, o estabelecimento da


estrutura fiscal e a subsequente forma de intervençäo. Enquanto o senhorio perdurou ela ficou
sob alçada do senhorio que intervinha por meio do almoxarife, que fazia cumprir o estatuído
no foral henriquino e diversos regimentos. Próximo dele estava o capitäo, que mais se
afirmava como usufrutuário dos réditos e fruidor da décima parte das rendas senhoriais.
Com o governo do infante D. Fernando esta estrutura fiscal mostrou-se inadequada para o
nível de progresso atingido pela Madeira. Daqui resultou a necessidade de criar uma nova
estrutura capaz de superintender a fazenda na ilha, surgindo a contadoria.
Mais tarde, em 1477, o surto das trocas com o exterior, motivado pelo progresso da cultura
açucareira, conduziu a novo reajustamento, que levou ao aparecimento das alfândegas, uma

180
. Damião PERES, O Problema dos governadores gerais da ilha da Madeira, Porto, 1925.

181
. Urbano de Mendonça DIAS, A vida de nossos avós, vol. III.

182
. A.T. MOTA, " A primeira visita de um governador de Cabo Verde à Guiné (António Velho Tinoco c. 1575)", in Ultramar, VII, nº 4, 1969.
para cada capitania. Depois a estrutura foi ampliada em 1483, com a criaçäo de dois postos na
costa além de Câmara de Lobos.
Foi, no entanto, com a coroa, a partir de 1499, que se lançou um adequado sistema fiscal,
assente em duas instituiçöes: os
almoxarifados da alfândega e dos quartos. O primeiro intervinha no movimento de entradas e
saídas e a cobrança dos respectivos direitos, o segundo foi vocacionado para arrecadar os
direitos lançados sobre a colheita de açúcar, o quarto, que depois passou a um quinto. E
finalmente em 1508 deu-se uma nova forma ao sistema fiscal na Madeira com o
estabelecimento da Provedoria da Fazenda.
Dos direitos arrecadados, de início pelo senhorio, depois pela coroa, temos o dízimo sobre
os rendimentos fixos ou qualquer valia, sendo uns de usufruto do donatário e outros da Ordem
de Cristo. A esta primeira fiscalidade sobrepöe-se outra assente nas principais produçöes com
valor comercial. Dos cereais era o dízimo das colheitas, enquanto do vinho era uma
determinada quantidade daquele que fosse posto à venda nas tabernas, que ficou conhecido
como a imposição do vinho(1485), cujo valor ia na totalidade para as obras de enobrecimento
da vila do Funchal.
Os direitos sobre a produção do açúcar, a fatia mais avultada da fiscalidade, sofreram
várias alterações. No início, uma vez que só o infante D. Henrique tinha direito a fabrica-lo
todos os produtores deixavam no seu engenho metade do açúcar. depois com a autorização
para o uso de engenhos particulares este direito passou para um terço e depois em 1467 para
um quarto sobre a colheita.
A arrecadação deste direito fazia-se a partir da avaliação antecipada da colheita. Esta
estava a cargo do almoxarife e dois estimadores escolhidos pela vereação. Mas este sistema
gerou inúmeras críticas dos produtores pelo que em 1507 se procedeu a um estudo sobre a
melhor forma de lançar e arrecadar o referido direito. Como corolário disso tivemos uma nova
estrutura fiscal, com a criação da Provedoria da Fazenda(1508) e um novo imposto a
vigorarem a partir de 1516. O imposto passou para um quinto da produção e a sua recolha a
ser feita por uma nova estrutura institucional, o almoxarifado do açúcar, subdividido em
diversas comarcas. Assim tivemos dois almoxarifados (Funchal e Machico) e quatro comarcas
(Funchal, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta). Esta situação perdurou até 1522 altura em
que este almoxarifado se juntou ao da alfandega formando uma estrutura única.
Nos séculos XV e XVI os direitos lançados sobre o açúcar foram a principal fonte de
rendimento da coroa na ilha, utilizados para o custear das despesas com a manutenção das
praças africanas e da casa real. Este elevado quantitativo de açúcar era comercializado pela
coroa por meio de contratos específicos com os mercadores, na sua maioria genoveses.
Nos Açores sucedeu algo semelhante à Madeira, tendo-se por isso copiado os alvarás e
regimentos régios que corporizavam a estrutura institucional. Os forais do almoxarifado do
Funchal de 1499 e 1515, foram aplicados sem reservas nas ilhas de S. Miguel, Terceira e
certamente nas demais. O traslado em Ponta Delgada foi lavrado, respectivamente em 1526 e
1557. Deste modo o sistema tributário implantado pelo senhorio e coroa nos Açores foi
idêntico ao madeirense, variando apenas a incidência sobre os produtos disponíveis.
Aqui foi maior a atençäo atribuída ao cereal, gado e pastel, os componentes mais
destacados da economia do arquipélago. Por informação de Gaspar Frutuoso, sabe-se que na
ilha de S.Miguel na década de oitenta do século XVI a coroa arrecadava 76500 cruzados,
sendo 52% dos direitos do pastel e 26% do dízimo do trigo.
Em Cabo Verde o apuramento da estrutura institucional esboçou-se já em finais do século
XV, ficando a vila da Ribeira Grande em Santiago como principal centro administrativo onde
ficou instalado, desde 1471, o almoxarifado das ilhas. Depois o progresso sócio-económico do
arquipélago levou à criaçäo de um almoxarifado para cada capitania, sendo o da ilha do Fogo
de 1507. Por outro lado a importância que o arquipélago assumia em face do comércio de
escravos da vizinha costa dos Rios da Guiné conduziu a coroa a estabelecer uma feitoria, com
sede em Santiago, com o objectivo de superintender este trato. Aqui, ao contrário do que
havia sucedido com as ilhas da Madeira e Açores, optou-se pela necessária centralizaçäo das
estruturas institucionais,instaladas na capital da ilha de Santiago.
Tudo isto resultou da experiência descentralizadora madeirense e açoriana, que ficou como
a soluçäo mais adequada aos objectivos da coroa. É de salientar que também na Madeira e
Açores a tendência para a macrocefalia foi um facto.
Enquanto na Madeira o principal centro administrativo se localizou no Funchal, nos
Açores hesitou-se várias vezes entre Ponta Delgada e Angra. A concretizaçäo desta medida
em Cabo Verde foi fácil, pois estávamos perante uma ilha dominante em termos sócio-
económicos, uma vez que as demais ficaram pelo aproveitamento do gado. O mesmo näo se
poderá dizer da Madeira e, mais propriamente, dos Açores.
Idêntica foi a política levada a cabo em terras caboverdeanas quanto à justiça, fazendo-se
assentar morada para o contador dos feitos e inquiridor e corregedor na mesma ilha. O
regimento que regulava a alçada do corregedor, datado de 1520183, era igual para todo o
espaço insular e a única diferença surgiu nos Açores onde se criaram dois lugares, um em
Angra e outro em Ponta Delgada.
Para Sul em S. Tomé e Príncipe, deparamo-nos com uma estrutura fiscal e judicial de
acordo com a que foi implantada em Cabo Verde. No primeiro domínio é de salientar a
existência em S. Tomé de uma feitoria, idêntica à de Santiago, com a superintendência do
trato da costa africana vizinha. Para regulamentar as iniciativas e privilégios dos moradores
foram concedidas duas cartas de foral, uma em 1485 e outra em 1524.

AS RECEITAS

As receitas arrecadas pela Fazenda Real nas ilhas testemunham, em simultâneo, a eficácia
das instituiçöes e a dimensäo assumida pela economia, uma vez que tais valores recaem sobre
alguns aspectos do ciclo produtivo e comercial. As elevadas despesas com a manutenção do
império foram custeadas com o superavit das finanças das ilhas. A Madeira, entre finais do
século XV e o primeiro quartel do seguinte, foi um dos financiadores, nomeadamente das
praças marroquinas.
Em 1506 as finanças públicas arrecadaram cinquenta mil e quinhentos reais, sendo mais de
metade proveniente dos réditos arrecadados com o comércio do açúcar madeirense, ficando os
Açores e Cabo Verde por uma ínfima percentagem. Mas a tendência alterou-se. Com a crise
do comércio e produção de açúcar diminuiu o tributo madeirense: em 1518 as receitas
madeirenses decrescem em 64% enquanto as açorianas e das ilhas da Guiné sobem em flecha.
O movimento ascendente do arquipélago açoriano continuará nos anos imediatos. A
aproximação da Madeira dos valores dos réditos açorianos só terá lugar na década de oitenta
183
. História Geral de Cabo Verde - corpo documental, nº 109, 305, 306.
do século XVI e, depois, a partir de 1619. No caso de S. Tomé e Cabo Verde, sómente em
1526 suplantaram a Madeira e os Açores e só C.Verde volta a recuperar em 1620.

DATA

MADEIRA

AÇORES

S.TOMÉ

CABO VERDE

TOTAL

1506

27.000$OOO

5,4

2.500$000

1,

3.000$000
500.500$000

1518-19

50.000$000

17.500$000

772.500$000

1526

12.000$000

7.500$000

18.130$000

15.000$000

1.666.347$000

1534

8.OOO$OO

10.500$000

1557

10.000$000

13.000$000

295.321$000

1567

50.000(1)

30.000(1)

1580-88
24.240$000

30.000$000

16.400$000

1.101.430$000

1607

21.400$000

40.000$000

9.500$000

16.400$000

1.439.076$000

1619

24.221$000

30.000$000

14.000$000

1.556.506$000

1620

26.621$000

30.100$000

27.000$000

1625

14.750$00

1681

65.530$000
73.505$000

5.285.098$000

1)em ducados, sendo os demais valores em réis

JURISDIÇÃO

RENDIMENTOS

MADEIRA

24.000$000

13

AÇORES

40.000$000

22

CABO VERDE

22.000$000

12

S.TOMÉ

9.500$000

TOTAL

183.300$000
Como complemento disto temos para o século dezassete a avaliaçäo global dos
rendimentos portuários. Os quatro arquipélagos juntos representavam 67% desta receita sendo
os valores divididos do seguinte modo: Estes dados
permitem-nos afirmar o mesmo que o escritor seiscentista, Luis Mendes de Vasconcelos:

"As ilhas povoaram-se de uma vez, e não estão, como a Índia, consumindo
homens continuadamente, e delas nos provemos de trigo, por onde antes benefício
que dano nos faz a sua povoação, acrescentando-nos terras fertilíssimas e
lavradores que as cultivam;dão-nos pastel tinta boa para tingir panos, açúcar e outras
cousas necessárias para a vida, ainda que de todas nos aproveitamos mal184".

184
. "Diálogo do sítio de Lisboa" in Antologia dos Economistas Portugueses, ed. António Sérgio, 1924, 87-88.
A IGREJA NAS ILHAS

Tal como o refere Jaime Cortesäo os franciscanos encontram-se inegavelmente ligados ao


processo de reconhecimento, ocupaçäo ou conquista do novo mundo atlântico. Eles
acompanharam as gentes peninsulares na tarefa desbravadora do oceano, foram os primeiros a
levar a palavra de Deus a estas terras recônditas e aí rezaram a primeira missa. Daqui deverá
resultar a grande importância assumida pela ordem seráfica nas ilhas, nomeadamente, nos
arquipélagos da Madeira e Açores.
A mais antiga presença da igreja nas ilhas data de 1344, altura em que o papa, Clemente
VI, concedeu a D. Luís de la Cerda o principado da Fortuna. Este facto foi o prelúdio de acesa
polémica entre as coroas peninsulares. Nesta data ter-se-ia criado também um bispado, uma
vez que 1355 Frei Bernardo, residente em Avinhäo, é citado como bispo das ilhas da Fortuna.
Entretanto em 1369 o papa Urbano V concedeu aos bispos de Tortosa e Barcelona o encargo
de as evangelizar, enviando em 1386 de um capeläo para La Gomera. Mas eles nunca
visitaram as ilhas e foi só em 1404, após a primeira viagem de Jean de Betencourt, que se
avançou, de facto, com a estrutura religiosa do arquipélago criando-se o bispado de Rubicäo
(Lanzarote), transferido depois, em 1438, para Las Palmas de Gran Canaria.
Nas ilhas portuguesas passou-se algo diferente. Aqui o rei concedeu o direito de patroado à
Ordem de Cristo. Primeiro em 1433 o arquipélago da Madeira alargado, depois, em 1454, a
todos os territórios descobertos, situação confirmada por bula papal de 17 de Março de 1456.
O governo espiritual ficou entregue ao vigário de Tomar, sede da Ordem de Cristo e na
condição de nullius dicocese, enquanto ao administrador da ordem competia a construção dos
templos, a nomear os ministros e pagar o seu vencimento. Á parte isso, todas as ilhas,
estabeleceram-se ouvidorias com o objectivo de organizar e exercer o governo eclesiástico. A
situação mudou em 1514 com a criação do bispado do Funchal e, depois em 30 de Dezembro
de 1551 com o regresso à coroa do padroado.
Esta situaçäo, posterior ao início do povoamento da Madeira, desagradou aos franciscanos,
que haviam acompanhado os primeiros povoadores. Alguns desentendimentos com o vigário
de Tomar levou-os em 1459 a abandonar a Madeira, fixando-se em Xabregas. A saída poderá
ser considerada como uma forma de represália por parte do infante D. Henrique em face da
sua subordinaçäo ao vigário-geral ilhas Canárias, como postulava uma letra do papa Nicolau
V de 1450. Para colmatar a sua ausência o papa Pio II concedeu em 1462 licença aos frades
da regra de S. Jerónimo para fundar um mosteiro na Madeira, o que näo surtiu efeito.
Entretanto os franciscanos regressaram em 1474 ao seu cenóbio de S. Joäo da Ribeira e
acabaram por adquirir uma posição relevante na ilha.
Mais tarde, em 1485, retirou-se para a ilha Frei Pedro da Guarda, criando o pequeno
eremitério de São Bernardino em Camara de Lobos. Este franciscano, conhecido como o santo
servo de Deus, ficou célebre na ilha pelas suas virtudes e milagres, o que motivou um culto
arreigado às populações de Camara de Lobos, que se manteve até 1835, ano em que foi
proibido.
A ordem seráfica firmou-se na vida religiosa madeirense criando conventos no Funchal,
Cämara de Lobos, Santa Cruz, Ribeira Brava, Calheta e Machico. Neste contexto relevam-se
os conventos de S.Francisco do Funchal e o de Santa Clara. O primeiro para albergar os frades
foi construido a partir de 1474, enquanto o segundo, de freiras, foi erguido por iniciativa de
João Gonçalves Camara, segundo capitão do Funchal, no espaço onde o seu pai havia
edificado a sua capela da Conceição de Cima( em oposição à da Conceição de Baixo,
construida junto ao mar), que teve o padroado do mesmo por bula (1476) de Sixto IV e por
breve (1496) de Alexande VI ficou estabelecida a sua regular observância e o início da
clausura, sendo abadessa D.Isabel de Noronha, filha do capitão, que se encontrava no
Convento da Conceição de Beja. Por fim registe-se o Convento de Nossa Senhora da Piedade,
fundado por legado estabelecido no testamento(1518) de Urbano Lomelino numa sua granja,
situada no local onde hoje se ergue o aeroporto do Funchal. Idêntico ideal moveu o cónego
Henrique Calaça de Viveiros, que em 1650 ergueu um convento de Nossa Senhora da
Encarnação em honra da reustaração da independência. Este foi mais um convento feminino
da regra franciscana de Santa Clara.

O povoamento da Madeira, em termos de organizaçäo eclesiástica, parece ter sido


concretizado de acordo com um plano definido. Jerónimo Dias Leite refere que o objectivo
dos primeiros madeirenses era " pör em obra a edificaçäo das igrejas e das vilas e lugares e
lavrança de terras". Tais princípios nortearam näo só o caso da Madeira, mas também os dos
outros arquipélagos atlânticos onde os portugueses chegaram.
No período de 1433 a 1499 as administraçöes civil e religiosa estavam a cargo do mestre
da Ordem de Cristo, que no caso da alçada religiosa determinara a superintendência pelo
vigário da vila de Tomar. De acordo com a bula de 1456 as novas áreas atlânticas eram
consideradas "nullius diocesis", estando dependente daquele vigário. Era ele quem
determinava a construçäo das primeiras igrejas e nomeava os prelados para o serviço
religioso.
As sedes das capitanias, em data que deconhecemos, tiveram o primeiro vigário que,
depois, o progresso e a consequente pressäo do movimento demográfico conduziram ao
aparecimento de novas igrejas e paróquias.
Esta forma de organização da estrutura religiosa foi igual para os Açores, Cabo Verde e S.
Tomé, onde também tivemos as primeiras paróquias e oratórios das ordens menores. Nos
Açores, a exemplo da Madeira, o primeiro serviço religioso foi obra dos franciscanos que
construiram em 1446 o primeiro oratório em Santa Maria e depois outros em Angra (1452) e
vila da Praia (1481). A ordem seráfica alargou-se depois às outras ilhas onde fundou casas na
Terceira, Faial e S. Miguel. Está também testemunhada a presença dos jesuítas (1570) e
agostinhos (1579) na ilha Terceira.
Em Cabo Verde e S. Tomé a estrutura da igreja evoluiu de acordo com o impacto do
povoamento. Todavia aqui as condiçöes inóspitas geradas pelo clima causaram inúmeras
dificuldades à acção dos europeus e em especial do clero. Inúmeros missionários e prelados
das dioceses de ambos os arquipélagos não resistiram ao calor tórrido destas ilhas.Daí derivou
a recusa de alguns bispos em tomar posse do lugar e daqueles que vieram às ilhas resistiram
pouco tempo. Também os missionários da Companhia de Jesus foram vitimas das condições
inóspitas do clima, o que levou a ordem a ponderar o envio de novas missões185.
O primeiro vigário enviado pela Ordem de Cristo para Santiago foi o dominicano Frei
Joäo, nomeado em 1473, enquanto em S. Tomé sabe-se apenas que à morte de ålvaro
Caminha a ilha estava servida por um vigário e um clérigo. Em ambos os arquipélagos estas
dificuldades foram constantes e condicionaram de forma evidente a presença do clero e depois
do bispo e demais dignidades.
A falta de instalaçöes condignas, os conflitos assíduos com as autoridades civis e a quase
permanente ausência do prelado da diocese säo os marcos mais evidentes da vida religiosa das
ilhas. Além disso a construçäo das Sés de Santiago e S. Tomé foram obras difíceis de
concretizar: a primeira só se iniciou em 1585 mas passados doze anos ainda estava por
concluir, enquanto a segunda arrastou-se até 1693. Algo de parecido teve lugar en Angra,
onde as obras do novo templo foram proteladas até 1570, perdurando até 1618, ano em que foi
sagrada. Diferente era o caso do bispado do Funchal, onde a construçäo do templo que lhe
serviu de sede foi mais rápida: o duque ordenou em 1485 mas as obras iniciaram-se só em
1493, que ainda continuavam em 1515, sendo sagrado no ano imediato. As riquezas geradas
com o comércio do açúcar propiciaram à coroa e vizinhos os necessários dinheiros para erguer
tão sumptuoso templo e rechea-lo de preciosas pinturas flamengas e alfaias religiosas em ouro
e prata.
A presença da ordem seráfica nas ilhas da costa e golfo da Guiné é referenciada pelo
testamento de ålvaro Caminha, de 1506. Aí está documentada a existência de uma igreja de S.
Francisco, com mosteiro. Entretanto em 1565 Frei Rodrigo das Frias havia solicitado à rainha
o necessário apoio para a fundaçäo de um mosteiro, o que poderá significar que o anterior
estava já desmantelado, por força dos assaltos dos corsários ou por dificuldades de outra
índole.

OS BISPADOS

Extinto o senhorio, a Ordem de Cristo através do vigário de Tomar continuou a


superintender o governo eclesiástico das ilhas até que em 12 de Junho de 1514, pela bula "Pro
excellenti", foi criado o bispado do Funchal com jurisdiçäo sobre toda a área ocupada pelos
portugueses no Atlântico e Indico. Até este momento todo o serviço episcopal era feito por
bispos titulares aí enviados pelo vigário de Tomar, sendo de referir as visitas a Angra em 1487
e aos arquipélagos da Madeira e Açores (entenda-se Funchal, Angra e Ponta Delgada) em
1507 e 1508. Mas o progresso económico e social deste vasto espaço levou à criaçäo em 1534
de novas dioceses, cujas áreas foram desanexadas do Funchal: as de Goa, Angra, Santiago e S.
Tomé.
A diocese de Angra abrangia apenas as ilhas do arquipélago açoriano, enquanto as de
Santiago e S. Tomé compreendiam, para além das ilhas dos arquipélagos que faziam parte, a
costa africana vizinha. Da de S. Tomé foi desmembrada a última área, que deu origem em
1596 ao novo bispado de S. Salvador do Congo.

185
. Pe. Fernão GUERREIRO, Relação anual das coisas que fizeram os padres da companhia de Jesus (...), 3 volumes, Coimbra/Lisboa, 1930-
1942.
Entretanto em 31 de Janeiro de 1533 a diocese do Funchal foi elevada à categoria de
metropolitana e primaz, englobando "a Madeira e Porto Santo, as ilhas Desertas e Selvagens,
aquela parte continental de åfrica, que entesta com a diocese de Safi[m] e bem assim as terras
do Brasil, tanto as já descobertas, como as que se vierem a descobrir". Mas esta foi uma
situaçäo passageira. Além disso a bula papal não foi expedida do Vaticano, por a coroa a não
ter pago, o que coloca a dúvida da existência real do arcebispado do Funchal. Em 1551 o papa
Júlio III revoga esta situação passando o Funchal para simples bispado sufragâneo de
Lisboa,que passará a assumir a função de primaz das terras atlânticas, enquanto a de Goa
preencherá idênticas funções para as terras orientais. A justificação apresentada pelo papa é
expressiva da mudança operada na geografia económica do espaço atlântico:

"Nós, porém, considerando que a navegação da província arquiepiscopal para a


cidade do Funchal é muito dificil e incerta e que se torna não menos perigosa que
dispendiosa aos bispos provinciais ao clero e ao povo, e que muitas vezes
acontece que para tal navegação faltam os navios necessários e bem apetrechados, e
mesmo que os haja,nem todos ousam lançar-se ao mar numa viagem tão longinqua e
perigosa, pelo que os mesmos provinciais, que apelam para o arcebispo do Funchal, não
podem apresentar-se ao seu tribunal e à dita cidade, para fazerem valer as suas
apelações e conseguirem a justiça desejada e além disso, sofrem outros icómodos e
danos...186".

Aos quatro arquipélagos em estudo correspondem, a partir de 1533, igual número de


bispados, todos eles com problemas semelhantes. Primeiro foram os iniciais prelados que
preferiram a residência no reino à administração directa dos seus bispados. Depois foram os
conflitos de jurisdição com as autoridades civis e, mesmo, com o cabido. Neste último caso
merecem referência as contendas havidas entre os bispos de S. Tomé ou Cabo Verde com os
governadores.
Acresce, ainda, no primeiro arquipélago o alastramento das contendas ao cabido. A
solução deste conflito, em ambos os casos, só foi possível com a intervenção dos bispos
aprovados pelo papa, após o diferendo entre Portugal e a Santa Sé, provocado pela guerra da
restauração da independência de 1640.
O relacionamento dos prelados madeirenses e açorianos com as autoridades civis foi
muito mais pacífico, não obstante alguns conflitos pontuais. Destes relevam-se, para os
Açores, as desavenças surgidas em Angra no governo de D. Pedro de Castilho (1578-1583) e
D. Jerónimo Teixeira Cabral (1600-1611). Para a Madeira só ficou memória da contenda entre
D.Frei Gabriel de Almeida (1672-1674) e o governador e capitão-geral João de Saldanha e
Albuquerque.
Em todos os bispados, à excepção do de Angra, tivemos bispos que exerceram, em
simultâneo, o governo civil e eclesiástico. Esta situação é específica do período da
subordinação portuguesa à coroa de Castela. Primeiro tivemos em S. Tomé nessas funções o
bispo D.Frei Francisco de Vilanova(1590-1602), secundado por D. Frei Jerónimo de
Quintanilha (1611-1614) e D.Frei Pedro da Cunha Lobos (1614-1621). Depois foi na Madeira
D. Frei Lourenço de Távora, que exerceu o cargo de governador genral no período de 8 de

186
. Pe. Manuel Juvenal Pita FERREIRA, A Sé do Funchal, Funchal, 1963, 84.
Abril de 1614 a 17 de Dezembro do ano seguinte. E, finalmente, D.Frei Lourenço da
Gama(1627-1646) em Cabo Verde.

MISSIONAÇÃO

A actividade do clero nos arquipélagos da Guiné näo se resumia apenas à assistência


religiosa dos europeus, pois também estavam incumbidos de cristianizar os negros,
conduzidos para as ilhas como escravos e os que viviam na vizinha costa africana.
Acresce, ainda, a parca presença de moradores em algumas ilhas o que condicionava o
ministério por parte do reduzido clero, limitando-o a visitas periódicas. O mesmo sucedia na
Costa da Guiné, dependente da jurisdiçäo eclesiástica de Cabo Verde e a do Congo sob égide
de S. Tomé.
Na bula de criaçäo do bispado de Santiago ficou estabelecido que a faixa costeira da
Guiné, de cerca de trezentas léguas, entre o Rio Gâmbia e o Cabo das Palmas e o Rio de Santo
André pertencia aquela área, sendo a demais até ao cabo da Boa Esperança do bispado de S.
Tomé. Deste modo era o clero dos arquipélagos, agora elevados a bispados, que deveria
assumir a difícil missäo de cristianizar os negros aí residentes ou daí retirados como escravos
para a Europa e América.
Ao clero caboverdiano e säotomense, para além da prestação da assistência religiosa aos
europeus aí residentes, estavam cometidas as tarefas de baptizar os escravos que aportavam às
respectivas feitorias. Esta última função tornou-se por demais evidente a partir de 1515, ano
em que a coroa tornou indispensável o baptismo massivo de todos os escravos antes da partida
para as plantações americanas. Para que isso acontecesse sem atropelos estabeleceu-se em S.
Tomé a obrigatoriedade do feitor entregar ao vigário o traslado dos assentos dos escravos
despachados pela feitoria para serem baptizados187.
Foram inúmeras as dificuldades surgidas no ensino da doutrina aos africanos: primeiro a
oposiçäo do próprio clero e prelados a tais baptismos massivos dos escravos, sem qualquer
formaçäo doutrinária e muitas vezes convertidos ao Islão ou atinentes às práticas religiosas
locais; depois, as dificuldades como o ensino do catecismo, resultantes das barreiras
linguísticas e, finalmente, a atitude contrária dos contratadores que o consideravam um
entrave aos negócios188. Para combater as dificuldades linguísticas socorreram-se ao uso de
intérpretes da catequese, com quem o almoxarifado de S.Tomé gastava em 1556 vinte mil
réis189.
Neste contexto foi importante a acçäo dos jesuítas, a partir de meados do século dezasseis.
A companhia de Jesus enviou para esta área várias missöes.Delas ficou notícia de duas com
onze religiosos para Cabo Verde e Guiné e outra com seis para S.Tomé190. Mas a eles também
advieram as dificuldades de adaptação ao clima, já sentidas pelos europeus aí residentes. No

187
. Monumneta M. Africana, II, nº 123, 383, 22 de Março de 1556.

188
. António CARREIRA, Cabo Verde, Lisboa, 1983, 273-192.

189
. Monumenta Missionária Africana, ii, Nº 124, 384, 22 de Março de 1556.

190
. Ibidem, nº 159, 459-461, 20 de fevereiro de 1560; nº 39, 94-95, 6 de Abril de 1604; Fernão Guerreiro, ob. cit., III, 415.
caso de Cabo Verde morreram todos os missionários, e foi com alguma apreensäo que a
Companhia de Jesus foi confrontada com a necessidade de envio de outras missões. Para
colmatar esta dificuldade o bispo de S.Tomé havia sugerido em 1585 a criaçäo em Coimbra de
um colégio para educar os negros que depois seriam os missionários. Mais uma vez surgiram
dificuldades pois os nativos näo quiseram mandar os filhos pelo que o colégio foi de novo
transferido para S.Tomé em 1597191.

A REFORMA E A CONTRA-REFORMA

O século XVI é definido em termos de estrutura religiosa da


Cristandade ocidental como um momento de activo protagonismo. Para isso contribuíram a
tentativa de reforma levada a cabo por Lutero e Calvino e a pronta resposta do papado por
meio do Concílio de Trento. A Companhia de Jesus emerge neste contexto como o bastiäo da
resposta papal, cujo movimento ficou conhecido como "contra reforma".
A igreja e os seus membros haviam entrado na vida fácil, deixando-se corromper pelas
solicitaçöes materiais. O estado em que se encontrava a Igreja era deveras gritante. A vida
conventual estava em degradaçäo, dominando aí a indisciplina e alguma
imoralidade. O clero secular alheara-se do serviço nas paróquias apegando-se aos vícios da
sociedade. No caso das ilhas de S. Tomé e Cabo Verde tudo isto ficou patenteado nos agravos
contra o bispo Bartolomeu Leitäo.
O absentismo atingia também a alta hierarquia da igreja católica. Os bispos eleitos
recusavam-se a assumir o governo do episcopado, preferindo a vida mundana da corte. Os
primeiros bispos nomeados para as dioceses insulares nunca pisaram o solo das suas dioceses
e daqueles que aí se fixaram foram poucos os que procederam à indispensável visita às
paróquias. Este absentismo aumentou, de acordo com as dificuldades de fixaçäo e a distância
em relaçäo ao reino. Deste modo as ilhas de Cabo Verde e S. Tomé foram as mais atingidas.
Na Madeira o primeiro bispo a pisar o solo da diocese foi D.
Ambrósio, em nome do arcebispo D. Martinho de Portugal, que aí esteve em 1538
acompanhado de dois visitadores (Jordäo Jorge e ålvaro Dias). Foi a partir daí que se
reorganizaram as paróquias, estabelecendo-se normas rigorosas para a sua preservaçäo nas
igrejas, através dos livros de registo. Depois da sua morte, em 1544, a Sé permaneceu vaga até
1551.
Neste período esteve no Funchal o bispo D. Sarello, das
Canárias, que deu "ordens a muitas pessoas e correu a ilha toda crismando comumente a todos
os que disso tinham necessidade". E, em 1552, foi provido D. Frei Gaspar do Casal, que näo
residiu na ilha, sendo o facto mais saliente ter participado no Concílio de Trento. O sucessor,
D. Jorge de Lemos, nomeado em 1556 foi quem na verdade deu forma à aplicaçäo das ordens
do concílio, sendo seguido depois por D. Jerónimo Barreto (1574-85) e D. Luís de Figueiredo
de Lemos (1586-1608) considerados os verdadeiros obreiros desta reforma na Madeira.
Nos Açores, para o período que decorre até à criaçäo do bispado em 1534, o poder
eclesiástico era exercido de fora: primeiro pelo vigário de Tomar (1442-1514) e depois pelo

191
. Monumenta Missionária Aficana, III, nº 142, 492-495, 11 de Novembro de 1595; nº 163, 548-556, 16 de Julho de 1597; vol. V, nº 208, 557,
30 de Setembro de 1609.
Bispo do Funchal. Durante este período o governo eclesiástico era feito por um bispo visitador
a quem era atribuída uma missäo específica e temporária.
O primeiro que aportou às ilhas açorianas foi D. Joäo Aranha, bispo de Safim, que esteve
em S. Miguel e Terceira. Depois em 1505 Vasco Afonso, vigário de Machico, foi nomeado
visitador geral e em 1506 Bartolomeu Fernandes foi provido no cargo de ouvidor eclesiástico
do arquipélago.
Com a criaçäo do bispado do Funchal em 1514 os Açores passaram para a sua alçada. Em
1523 foi o vigário de Angra nomeado para o cargo de visitador e ouvidor eclesiástico dos
Açores. Estávamos no começo da centralizaçäo do governo eclesiástico nesta cidade.
Ao mesmo tempo que foi criado o bispado de Angra também
surgiram os de S. Tomé e Santiago. Todavia nos dois últimos a presença de um bispo gerou
inúmeros problemas. Os primeiros prelados primaram pela ausência, a exemplo do que
sucedeu na Madeira e Açores, enquanto os que se seguiram marcaram o governo por um
permanente conflito com as restantes autoridades.
No Funchal e em Santiago alguns bispos acumularam em simultâneo as funçöes de prelado
e governador, o que comprova uma mais ampla intervençäo na vida das dioceses. No caso da
Madeira tivemos três bispos: D.Frei. Lourenço de Távora (1610-1614), D. Frei Jerónimo
Fernando (1624-30) e D. Gaspar Afonso da Costa Brandäo (1758 e 1777). Em Santiago foram
dois os bispos com cargos políticos: D. Frei Cristóväo Cabral (1630) e D. Frei Francisco de S.
Simäo (1781).
No Funchal a reorganizaçäo das instituiçöes religiosas e do ritual religioso iniciados por
D. Jerónimo Barreto em 1578 tiveram continuidade com D. Luís Figueiredo de Lemos (1597,
1602), Frei
Lourenço de Távora (1615), D. Fernando Jerónimo (1622, 1629, 1634), D. Frei António da
Silva Teles e D. Frei José de Santa Maria (1610). Todos os prelados realizaram um sínodo
onde aprovaram diversas constituiçöes. De todas elas só se publicaram as de dois (1578 e
1597) e conhecem-se as de outro manuscritas, tendo-se perdido as restantes.

AS CONSTITUIÇÕES SINODAIS

O Concílio de Trento (1545-1563) definiu uma nova realidade para a teologia e prática
institucional da hierarquia religiosa. Por meio de um novo modelo de catecismo pretendia-se
uniformizar do ritual religioso e combater o absentismo do clero e leigos. Um dos meios mais
adequados para a aplicaçäo destas ordens foi o dos concílios diocesanos. De acordo com as
normas estabelecidas nas diversas sessöes do Concílio foram elaboradas as normas capazes de
atender aos novos desejos da prática religiosa.
A obrigatoriedade de reuniäo assídua dos sínodos episcopais e o consequente
estabelecimento de constituiçöes resultam da reforma tridentina. Até entäo estas normas
estavam já estabelecidas, mas nunca se cumpriam. Nos novos bispados de Angra e Funchal
apenas se reconheceram as sinodais de 1559 estabelecidas por D. Frei Jorge de Santiago, näo
obstante se referir uma das mais antigas do Funchal. Em S. Tomé sabe-se da realizaçäo de
dois sínodos --um por D. Frei Martinho de Ilhoa e outro por D. Francisco Soveral (1617)--
mas ignora-se o paradeiro delas.
No Funchal as primeiras constituiçöes publicadas säo posteriores ao concílio de Trento.
Note-se ainda que esta foi das poucas dioceses onde se cumpriram as ordens sobre a
periodicidade
dos sínodos, tendo-se realizado, até finais do século XVII, nove
reuniöes, de que resultaram igual número de textos. Entretanto para Angra näo se conhece
nenhuma, o mesmo sucedendo em S.Tomé e Cabo Verde.
Perante isto é legítimo concluir que a igreja se deparou com a natural inércia da estrutura
eclesiástica e dos prelados, tornando-se difícil combater o absentismo, como o determinavam
as orientaçöes tridentinas: a ausência dos prelados, a dispersäo geográfica das paróquias foram
os motivos disso.
Em Trento insistiu-se numa maior presença do clero na vida das paróquias, combatendo-se
o absentismo e os desvios morais, e procurou-se dignificar a sua actividade, por meio de uma
melhor
formaçäo religiosa e meios materiais. Disto resultou, na prática, o aparecimento dos
seminários, a assiduidade das visitas paroquiais e a melhoria substancial dos meios de
sobrevivência do clero com o aumento das côngruas.
A formaçäo do clero através dos seminários era também indispensável para esta mudança.
A medida, já reclamada nos concílios de Nicea e Toledo, só agora tem plena concretizaçäo.
Na Madeira o Seminário surgiu em 1566 por iniciativa de D. Jerónimo Barreto, enquanto para
S. Tomé criou-se um, primeiro em Coimbra (1585), depois transferido para a ilha em 1597.
A presença do Colégio dos Jesuítas foi importante, uma vez que a ordem, considerada o
principal bastiäo da Contra-Reforma, terá contribuído para esta mudança. Primeiro na
Madeira e nos Açores (1570 em Angra, 1591 em Ponta Delgada e 1652 na Horta). Também
em S. Tomé e Cabo Verde eles tiveram um papel imprescindível no da doutrina e baptismo
dos africanos. Aí näo há notícia da criaçäo de um colégio, limitando-se a enviar missöes.
Uma das recomendaçöes mais relevantes recomendações saídas do concílio tridentino foi a
necessidade das visitas pastorais, de dois em dois anos. Mas elas nem sempre se
concretizavam com o necessário rigor. Das actas disponíveis é possível avaliar o nível de
religiosidade popular e o maior ou menor impacto das ordens do papa e dos sínodos
diocesanos. Apenas nos arquipélagos da Madeira e dos Açores foram já divulgados alguns
livros das visitas que nos däo conta de uma comum religiosidade popular 192.
As consequências do concílio de Trento säo evidentes na estrutura religiosa das ilhas.
Quanto ao património do clero criaram-se as condiçöes necessárias ao seu magistério com o
acrescentamento das côngruas e ordinárias. Para os Açores elas ficaram estabelecidas pelos
alvarás de 1563, 1569 e 1591, enquanto na Madeira tivemos os de 1572 e 1598193.
Tendo em conta a importância das constituiçöes sinodais para a definiçäo da religiosidade
apresentaremos uma breve análise das existentes, apenas para as dioceses de Angra (1559) e
Funchal (1578, 1602).
Numa análise de conteúdo verificam-se inúmeras semelhanças, o que prova haver uma
origem comum. Na realidade os textos baseavam-se num formulário comum: as de Lisboa,

192
. Maria Fernanda ENES, As visitas pastorais da matriz de São Sebastião de Ponta Delgada (1614-1739), Angra do heroísmo, 1983; Eugénio dos
SANTOS, "A sociedade madeirense na época moderna. Alguns "indicadores", in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, vol.
II, Funchal, 1989, 1212-1225.

193
. Arquivo dos Açores, vol. IV, 184-192; Álvaro Rodrigues de Azevedo, "Anotações", in Saudades da Terra, Funchal, 1873, 536-566.
aprovadas no sínodo de 25 de Agosto de 1536. Facto peculiar sucede com o vicariato de
Tomar, que após a criaçäo da diocese do Funchal se manteve como "nullius diocesis", mas
regendo-se por um texto próprio aprovado no sínodo de 18 a 22 de Junho de 1554. No
preâmbulo é referido, a exemplo das constituiçöes de Angra de 1559, a origem num texto
anterior do Funchal. Deste modo poder-se-á afirmar que as de D. Jerónimo Barreto (1578) näo
foram as primeiras estabelecidas para o bispado, havendo umas anteriores que se perderam.
Fernando Augusto da Silva194 refere-nos, a propósito, que o arcebispo D. Martinho de
Portugal fez umas que serviram de regra ao governo do bispado do Funchal. Para António de
Vasconcellos195 elas foram estabelecidas por D. Diogo Pinheiro, que serviu simultaneamente
de bispo do Funchal e vigário de Tomar.
Confrontadas as sinodais de Angra (1559) com as do Funchal (1578) verifica-se que a
intervençäo das normativas tridentinas foi pouco significativa, incidindo apenas nos aspectos
doutrinários, mas com pouco valor para o seu articulado. Facto evidente de que nas ilhas a
prática cultual do clero e leigo, ainda que a nível teórico, näo estava fora do bom caminho.
A doutrina expressa nas constituiçöes pode ser dividida em
cinco domínios: os sacramentos, o ritual religioso, o clero, a administraçäo do património e da
justiça, pecados e desvios. Enquanto os dois primeiros se manteve quase sem mudança, de
acordo com as contingências da conjuntura e das novas dúvidas que ela gera, os demais
adaptaram-se a novas conjunturas. E a fundamental mudança teve lugar após o Concílio de
Trento, como forma de o adequar às referidas normativas.
O concílio intervinha no sentido de manter uma certa
uniformidade no ritual religioso, quer ao nível da Santa Missa, quer da administraçäo dos
sacramentos. Antes reinava a indisciplina o que gerava por vezes escandalos, particularmente
no caso do casamento: eram inúmeros os casamentos clandestinos e consanguíneos. Os
aspectos doutrinários incidem, preferencialmente, sobre o baptismo, a confissäo, a comunhäo
e o matrimónio.
As normativas tridentinas estabeleciam a necessidade de uniformizar do ritual dos
sacramentos e por isso encontramos as mesmas ordens nas constituiçöes, ainda que expressas
de forma diferente. Mas aqui e acolá subsistem algumas peculiaridades. Por exemplo: nos
Açores insiste-se no ensino da doutrina e no baptismo e casamento dos infiéis vindos da
Guiné, Indias e Brasil, enquanto na Madeira, D. Luís Figueiredo de Lemos estabelecia um
capítulo especial sobre os escravos. Isto demonstra o empenho da Igreja na evangelizaçäo dos
infiéis e a importância assumida pela populaçäo escrava em ambos os arquipélagos.
Depois de estabelecidas estas normas para a administraçäo dos sacramentos o empenho
passou para o clero, procurando definir-se condutas de vida "honesta" e exemplar.
Confrontadas as constituiçöes post-tridentinas com as anteriores nota-se uma maior incidência
nas primeiras quanto ao sacramento da ordem. Aqui recomendava-se a maior formaçäo do
clero, que derivou na necessidade de criar os seminários.
A par disso as constituiçöes e o próprio concílio insistem na vida regrada do clero, de
modo a evitarem-se escândalos. Para isso recomendavam-se certos preceitos no modo de
vestir e normas de

194
. Subsídios para a História da diocese do Funchal, Funchal, 1946, 98.

195
. "Nota Cronolígoco-bibliographica das constituições diocesanas portuguesas até hoje impressas", in O instituto, Coimbra, Vol. 58, 1911, 494.
sociabilidade, coibindo-os de actividades indecorosas e do convívio e coabitaçäo com
concubinas. O último foi também motivo de alguns capítulos das ordenaçöes régias. Mesmo
assim a vida desregrada de algum clero continuou a ser manifesta, pelo que em 1608 o papa
Paulo IV ordenou uma maior intervençäo do Santo Ofício junto dos prevaricadores. Uma
consequência disto foi a prisäo em 1618 do padre Bento de Lira, vigário de S. Vicente
(Madeira).
Nas visitas feitas por inquisidores do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa à Madeira e
Açores surgem outros membros da igreja, condenados por solicitaçäo, blasfémias,
desobediência, sodomia e crítica dos dogmas do catolicismo.
O combate ao absentismo do clero foi outra preocupaçäo: o
pároco e cura passaram a residir obrigatoriamente na sede da paróquia e a cumprir as
obrigaçöes. Estas surgem apenas nas sinodais post-tridentinas : Funchal (1585, 1597). Mas
para que isso acontecesse era necessário garantir ao clero meios de subsistência adequados e
capazes de o manter afastado das tarefas mundanas e residente nas paróquias.
As múltiplas recomendaçöes quanto ao ritual religioso revelavam-se idênticas nos diversos
bispados a partir do Concílio de Trento. Desde entäo ficou determinada a existência de um
único missal, breviário e catecismo. A par disso definiram-se regras sobre aspectos formais
das missas, ofícios, horas e procissöes. Quanto às últimas estabelecia-se, no caso da Madeira,
a obrigatoriedade do Corpus Christi, Visitaçäo de Nossa Senhora, Ladainhas, Sexta-Feira
Santa e Santiago Menor, padroeiro da cidade; nos Açores mantinham-se as duas primeiras e
adicionava-se a do Anjo Custódio.
Ao nível da estrutura institucional sobressaem os oficiais de justiça eclesiástica (promotor,
notário, ouvidor e chanceler) com
as respectivas competências. O encargo fora cometido ao ouvidor, exigindo nos Açores um
para cada ilha, exceptuando-se a Terceira com dois, uma para cada capitania, enquanto na
Madeira era de quatro, sendo um para Arguim, outro para o Porto Santo e os restantes para a
Madeira, um em cada capitania.
A sobrevivência do clero dependia dos dízimos arrecadados, dos benefícios e da
administraçäo dos bens que pertenciam à igreja e
que, de um modo geral, lhe haviam sido dados por disposiçöes testamentárias. Em todas as
constituiçöes existem normas sobre isso.
A arrecadaçäo dos dízimos eclesiásticos estava tutelada pelas instituiçöes régias. De
acordo com as sinodais de Angra este direito da igreja deveria ser entendido como uma forma
de retribuir a Deus por lhes ter facultado estes produtos, pelo que a sonegaçäo era "pecado
muito grave e perigoso". Na década de oitenta do século dezasseis o valor das rendas
arrecadadas nos Açores era de 76500 cruzados, sendo metade apenas da ilha de S. Miguel.
Pela mesma sabe-se também que o dízimo dava para pagar todas as despesas das ordinárias do
clero e fábricas das diversas paróquias.
A justiça eclesiástica era um domínio importante na vida da diocese. Ela tem lugar de
relevo na vida do bispado e paróquias dele dependentes. Para isso a igreja criou uma estrutura
judiciária, definindo a alçada do ouvidor eclesiástico, do bispo e do papa. O clero, o visitador
em serviço faziam parte da estrutura, estando todos obrigados a declarar os pecados públicos e
a clamar por justiça.
A igreja dispunha de estrutura judiciária própria em cada bispado . Näo obstante tal alçada
abranger alguns domínios da sociedade era junto do clero que se definia com maior rigor a sua
intervençäo, uma vez que a imunidade eclesiástica näo permitia a presença nos tribunais
seculares.
Näo foi fácil delimitar a área jurisdicional da justiça ao nível secular e religioso, pois
inúmeras normas estatuídas pela igreja repetem-se no articulado das leis e ordenaçöes régias,
confrontando-se uma alçada comum. O "código das Siete Partidas", um dos principais
fundamentos das leis peninsulares, define logo na primeira partida isto ao dedica-la por inteiro
ao estado "eclesiástico". Aí ficaram lavradas inúmeras regras que depois passaram para as
ordenaçöes régias portuguesas e constituiçöes sinodais. Na compilaçäo das leis, feita no
reinado D. Afonso V, um capítulo do livro segundo é sobre o "trautar das leix, que fallam
acerca das igrejas, e mosteiros e clerigos sagraes, e religiosos"196, foram nele incorporadas
todas as determinaçöes acordadas entre a Santa Sé e os monarcas antecedentes.
Todos os que incorriam em "pecados" graves, a pena mais severa, que lhes podia ser
aplicada, era a excomunhäo. A respectiva carta era passada pelo bispo, havendo no entanto
penas que só poderiam ser atribuídas pelo papa, conforme o estabelecido no final. A
excomunhäo foi a arma mais poderosa da justiça eclesiástica, sendo definida nas constituiçöes
como "a mayor que ha na igreja de Deos", privando os réus "da participaçäo dos sacramentos,
dos sufrágios della, e da comunicaçäo dos fiéis christäos"197. Deste modo a Igreja apostou nas
consequências disso para fazer cumprir as normas de conduta estabelecidas e reprimir os
refractários.
A excomunhäo em si representava apenas a exclusäo do réu do convívio dos cristäos na
igreja e do acesso aos actos litúrgicos. Mas na realidade as suas consequências sociais eram
muito mais funestas, pois conduziam a uma coacçäo social violenta e era nisso que a igreja
apostava, divulgando publicamente todos os excomungados por meio de editais à porta da
igreja. As penas mais brandas eram estabelecidas em dinheiro ou em penitências.
A aplicaçäo dos códigos civil e religioso e a puniçäo dos infractores fazia-se de forma
diferente. Enquanto a jurisdiçäo secular estava expressa na actividade dos funcionários régios
(corregedor, alcaide, juiz de fora e ordinário) e das instituiçöes entretanto criadas, no domínio
eclesiástico desmultiplica-se pelos funcionários (ouvidor e visitador) e tribunal do Santo
Ofício. Ele foi criado com um objectivo específico, mas depois teve a alçada alargada a outros
domínios.

OS JUDEUS E A INQUISIÇÄO

Os aferidores mais importantes da religiosidade dos leigos e clero säo sem dúvida os
testemunhos exarados, primeiro nos diversos livros das visitaçöes e depois nos processos
perante o Santo Ofício. Ele exercia a sua actividade através do tribunal de Lisboa, a quem
pertencia todo o espaço atlântico.
A acçäo do tribunal nestas paragens näo era permanente e fazia-se através de visitadores aí
enviados. Na Madeira e nos Açores realizaram-se três visitas: em 1575 por Marcos Teixeira,
em 1591-93 por Jerónimo Teixeira Cabral e em 1618-19 por Francisco Cardoso Tornéo. Para

196
. Ordenações Filipinas, Lº III, tits. VIII-LX.

197
. Constituições Sinodaes do Bispado do Funchal, Lisboa, 1585, 153.
Cabo Verde e S. Tomé estabeleceu-se idêntica missäo em 1591, 1618 e 1626 mas os
visitadores nunca pisaram as ilhas, detendo-se apenas no Brasil ou em Angola198.
Nas ilhas é manifesta uma certa conivência das autoridades com a presença da comunidade
judaica, o que poderá resultar das facilidades iniciais à sua fixaçäo. Lembremo-nos que o
povoamento de S. Tomé se fez com crianças de origem hebraica. Deste modo o tribunal
interveio apenas nas primeiras ilhas levando a tribunal alguns judeus, mas poucos, a avaliar
pela comunidade aí existentes e pela sua permanência. No primeiro quartel do século
dezassete do rol de judeus fintados temos 58 na Madeira e 61 nos Açores.
Entretanto no intervalo de tempo entre as visitas o tribunal fazia-se representar pelo bispo,
clero, reitores do Colégio dos Jesuítas, "familiares" e comissários do Santo Ofício.
Nos quatro arquipélagos a presença da comunidade judaica era evidente. Os judeus,
maioritariamente comerciantes, estavam ligados, desde o início, ao sistema de trocas nas ilhas,
sendo eles os principais animadores do relacionamento e comércio a longa distância: na
Madeira e Açores foi a via da Europa do Norte, enquanto em Cabo Verde e S.Tomé a
América.
A criaçäo do tribunal do Santo Ofício em Lisboa conduziu a que avançassem no Atlântico:
primeiro nas ilhas e depois no Brasil. Tal diáspora fez-se de acordo com os vectores da
economia atlântica pelo que deixavam atrás um rasto evidente na sua rede de negócios. O
açúcar foi sem dúvida um dos principais móbeis da sua actividade, quer nas ilhas, quer no
Brasil.
A par disso o relacionamento destes espaços com os portos nórdicos conduziu a uma maior
permeabilidade às ideias protestantes, o que gerou inúmeras cuidados por parte do clero e do
Santo Ofício. A incidência do comércio dos Açores e da Madeira no açúcar, pastel e vinho
conduziu ao estabelecimento de contactos assíduos com os portos da Flandres e Inglaterra,
que näo era bem visto pelo tribunal. Isto deverá ter favorecido a presença de uma importante
comunidade nos dois arquipélagos, o que veio a avolumar as preocupaçöes dos inquisidores.
Todavia a intervençäo do tribunal foi reduzida, pois só se conhece a prisäo de alguns
anglicanos nos Açores nas visitas de 1575 e 1618.
Na Madeira a presença da comunidade britânica era evidente mas manteve-se ilesa. O
bispo funchalense, D. Frei Lourenço de Távora, no sínodo realizado em 15 de Junho de 1615
chamou a atençäo para a presença de estrangeiros "de partes infeccionadas na fé", apelando
para a necessidade de se cumprir o estabelecido em 1608 pelo prelado anterior que
determinara "que os tais estrangeiros cismáticos e hereges näo podem tratar nem disputar com
a gente da terra sobre a fé, nem fazer cousa, que dece escandalo". Isto derivava certamente da
assídua frequência de mercadores ingleses à cidade do Funchal, que assumiam uma posiçäo
dominante nas trocas externas. Todavia é reduzido o número de anglicanos denunciados.
Apenas 4 em 1618.
Analisadas as denúncias e confissöes de madeirenses e açorianos perante os inquisidores
conclui-se por uma incapaz intervençäo do clero no ensino da doutrina aos leigos. A maioria
dos réus é resultado da ignorância dos cânones católicos. A mesma ideia é-nos transmitida
através das visitas paroquiais da Madeira e Açores, disponíveis e já divulgadas. Deste modo
poder-se-á afirmar que as orientaçöes tridentinas tardaram em chegar às ilhas e que a inércia e
o fraco nível cultural do clero insular teräo sido os principais responsáveis disso.

198
. José António SALVADOR, Os Cristãos-Novos e o comércio no atlântico meridional, S. Paulo, 1978; idem, Os magnatas do tráfico negreiro,
S. Paulo, 1981.
Em 1648199 D. Joäo IV admoestava o clero açoriano, apontando o escândalo que
provocavam os seus pecados públicos: "nessas ilhas, segundo por vezes fui informado, se väo
com tanto excesso, e pouco temor de Deus cometendo os pecados públicos, que se poderia
nelas recear viesse sobre seus moradores e grande castigo do céu; e o que mais é para
estranhar o mau exemplo como os eclesiásticos vivem, porque devendo dá-lo bom aos
seculares, há neles mais vícios que repreender".
Em 1689 é a vez de um protestante britânico, John Ovington, de visita à Madeira apontar
o estado de formaçäo e comportamento social do clero e leigos. åcerca do primeiro refere que
os jesuítas "apenas um em três com quem conversei compreendia o latim", enquanto os
cónegos da Sé "säo habeis na sua capacidade de inventar razöes para defenderem a sua
indolência" e "todos fingem um grande ardor na sua fé". Dos leigos católicos refere a sua
propensäo para o crime de homicídio tendo como resguardo o recurso à comunidade
eclesiástica, concluindo da seguinte forma: "Estes cristäos säo täo desregrados na prática deste
crime como indulgentes nos castigos merecidos por tais acçöes"200.
Eis um breve e incisivo retrato do catolicismo dos madeirenses que, näo obstante ser
traçado por um protestante, molestado com o tratamento feito para com os seus compatrícios,
näo estava longe da pratica e quotidiano religioso da Madeira e demais ilhas.

O ENSINO

Até às reformas pombalinas o ensino manteve-se soba alçada da igreja, exercendo aqui a
Companhia de Jesus uma acção relevante. Deste modo onde estavam os jesuítas poderíamos
contar com a presença de escolas organizadas e por um elevado grau de alfabetização de
certos grupos. Também isso contribuiu na Madeira e Açores para a criação de um adequado
ambiente cultural, propiciador do aparecimento de importantes vultos das letras.
Os colégios dos jesuitas permitiram a continuidade dos estudos aqueles que haviam dado
os prtimeiros passos nas escolas de paróquia e também lhes abriram a possibilidade de
cursarem nas universidades do reino e estrangeiras. Daqui resultou a existência de um
numeroso grupo de literatos, na sua maioria jesuitas, que firmou uma posição relevante no
panorama nacional. Nos Açores tivemos Gaspar Frutuoso, Frei Diogo das Chagas, Frei
Agostinho de Monte Alverne e o Padre António Cordeiro, que marcaram um geração de
literatos e historiadores. Na Madeira foram o Padre Manuel Álvares (1526-1583), Leão
Henriques, Frei Remigio de Assunpção, Sebastião de Moraes, Jerónimo Dias Leite e Martim e
Luis Gonçalves da Camara. Mas aqui, ao contrário dos Açores,a sua formação e estudo
bifurca-se em vários ramos e actividades. O Padre Manuel Álvares, natural da Ribeira Brava,
ficou célebre pela Gramatica Latina, que teve inúmeras edições e serviu por mais de duzentos
anos de manual para o ensino do Latim.
A par disso a Madeira dos séculos XV e XVI viveu uma
verdadeira animação cultural gerada nos ambientes palacianos, copiados da corte pelos
capitães de Machico e Funchal. O testemunho disso está no Cancioneiro de Garcia de

199
. Francisco Pereira DRUMOND, Apontamnetos Topográficos, Políticos Civis e eclesiásticos para a História das nove ilhas dos Açores, Angra
do heroísmo, 1990, 196-197.

200
. John OVINGTON, "A voyage to Surrat in the year 1689", in Madeira vista por estrangeiros 1455-1700, Funchal, 1981, 203-206.
Resende, compilado em 1516. Note-se que dois desses foram capitâes: joão Gonçalves da
Camara, o Porrinha, segundo capitão do Funchal e Tristão Teixeira, mais conhecido como o
Tristão das Damas, segundo capitão de Machico.
A esta pleiade de poetas acresce a figura de Baltasar Dias, conhecido como o "poeta cego
da Madeira", célebre pelos seus autos teatrais de cariz vicentino. Facto singular é o de uma
das suas peças, A Tragédia do Marquês de Mantua, ter sido representada em S. Tomé e aí
perdurado até ao presente, sob o título de Tchiloli. Esta é considerada uma das manifestações
culturais que acompanhou a expansão da cana de açúcar.

ASSISTÊNCIA

Outra das vertentes que pautou a intervenção da Igreja nas ilhas foi a prestação de serviços
de assistência aos cristãos e cativos. Para isso existia um conjunto variado de instituições, que
foram criadas de acordo com as necessidades dos diversos núcleos populacionais. As cidades
portuárias ficaram servidas de hospitais, que davam o necessário apoio aos marinheiros e
demais gentes de passagem. A par disso os problemas resultantes da fome, mendicidade e a
peste levaram à criação de inúmeras instituições de beneficiência, por iniciativa de
particulares, que depois passaram à alçada da igreja.
Na Madeira refer-se o empenho de Zargo em fazer construir em 1454 um hospital junto à
capela de S. Paulo, mas não sabemos se o seu desejo foi por diante. A isto juntam-se
referências a outros dois hospitais de iniciativa de particulares, sendo um na Rua de Boa
Viagem. Entretanto tivemos também as mercearias, sendo a do Funchal fundada por
Constança Rodrigues, mulher de João Gonçalves Zarco, em 1484. A partir de 1485 com a
bula de Inocêncio VIII in iunctum nobis a estrutura assistencial ganha uma nova forma. De
acordo com esse espírito a coroa criou em 1498 o hospital de Lisboa maior que veio a
congregar todos os menores aí existentes. O mesmo espírito foi seguido para todas as vilas do
reino, por autorização papal de 23 de Outubro de 1501, expreso na carta régia de 4 de Maio de
1507. De acordo com as ordenações régias cabia aos bispos a su superintência.
É neste contexto que surgem idênticas instituições nas ilhas. Na Madeira tivemos,
primeiro, no Funchal (1507) e, depois, em Machico, Calheta, Santa Cruz e Porto Santo o
hospital da Misericórdia (28). Nos Açores o hospital criou-se nas principais cidades (Ponta
Delgada e Angra) e vilas. Facto singular sucede na Terceira e em S. Miguel onde tivemos a
referida confraria nas localidades de Vila Nova e Maia, respectivamente. Ainda a cidade de
Angra pela importância do seu porto nas relações transatlânticas viu reforçada a importância
do seu hospital e da rede de assitência social aos marinheiros e náufragos, com especial relevo
para a acção dos jesuítas. Aqui, a exemplo do sucedido em Santa Cruz na Madeira, a presença
de importantes famílias e avultados legados permitiram a sua criação. Função idêntica ao
angrense era atribuída ao hospital da Ribeira Grande em Santiago
Das ilhas, dos seus habitantes e forasteiros deixámos aqui alguns indícios do quotidiano
exaurido através do rastro deixado na documentaçäo disponível. Deste passado, feito de duras
canseiras, sabe-se da existência de uma identidade própria, näo obstante a excessiva
vinculaçäo à Europa ou ao litoral africano.
Esta mundividência insular ganhou a primeira expressäo na Madeira e, depois, avançou
com processo expansionista ao longo do oceano onde os portugueses encontraram novas ilhas.
Por isso a Madeira foi o ponto de partida e em certas ocasiöes o único testemunho de täo
fulgurante processo histórico, mercê das inúmeras lacunas documentais que persistem nos
demais arquipélagos. Também a compreensäo deste fenómeno näo seria possível sem a
inevitável referência e aprofundamento da situaçäo madeirense. Foi isso que fizemos nas
páginas anteriores.
O confronto do devir histórico nos arquipélagos em questäo levou-nos a concluir por uma
unidade arquipelágica, constituída na diversidade dos espaços. As soluçöes para os problemas
surgem em cadeia e têm como referência os casos anteriores. Deste modo o conhecimento do
passado histórico das ilhas deve suplantar o espaço dela ou do arquipélago a que pertence e
enquadrar-se no Mundo Insular, em particular, e Atlântico, em geral.
Nas páginas anteriores procuramos levar o leitor por essa via, definindo um périplo insular
onde fosse possível reencontrar os aventureiros e marinheiros que revelaram ao Ocidente estas
paragens paradisíacas ou infernais, e testemunhar os primeiros passos da sociedade, economia
e instituiçöes insulares. Desta última caracterizaçäo emergem os aspectos comuns e
divergentes que definem a funçäo de cada arquipélago ou ilha.
Näo houve unicidade neste caso, mas um fio condutor que definiu para os três arquipélagos
uma aproximaçäo do devir histórico. Em todos foi evidente a dependëncia dos espaços
continentais europeu, africano e americano. Por outro lado a maior ou menor proximidade
deles definiu a dimensäo de dependência, sendo prova disso as ilhas dos arquipélagos de Cabo
Verde e S.Tomé em relaçäo ao continente africano.
Acresce ainda que as similitudes e conexöes säo definidas pelo posicionamento geográfico
dos arquipélagos. Deste modo elas säo mais evidentes entre a Madeira e os Açores e entre
Cabo Verde e S. Tomé, do que entre os dois grupos. Perante isto, que espelha por vezes um
evoluir divergente do processo histórico, as aproximaçöes poderäo ser falaciosas e causadoras
de erros. Foi contra isso que lutámos, estabelecendo uma análise cautelar em termos de forma
e conteúdo. E esperámos que o leitor tenha sido conduzido por esta via de conhecimento desta
unidade construída na diversidade.
BIBLIOGRAFIA

O estudo das ilhas atlânticas tem merecido neste século uma atençäo preferencial no
âmbito da História do Atlântico. Primeiro foram os investigadores europeus ou
americanos como Fernand Braudel (1949), Pierre Chaunu (1955-1960), Frédéric Mauro
(1960) e Charles Verlinden (1960) e T. B. Duncan (1970) a referenciar a importância do
espaço insular no contexto da expansäo europeia. Depois surgiu a Historiografia nacional
a reforçar este interesse e a equacioná-lo nas dinâmicas da expansäo peninsular. Säo de
maior importância os textos de Francisco Morales Padron (1955) e Vitorino Magalhâes
Godinho (1963).
Tudo isto condicionou os rumos da historiografia insular nas últimas décadas,
concorrendo para a necessária abertura às novas teorias e orientaçöes do conhecimento
histórico. Neste contexto, as décadas de setenta e oitenta, demarcam-se como momentos
importantes no progresso da investigaçäo e saber históricos. Para isso terá contribuindo o
aparecimento de estruturas institucionais e de iniciativas afins, activadoras de um
verdadeiro salto qualitativo.
O movimento editorial da Historiografia insular é desigual, dependendo da existência
de historiadores e de instituiçöes capazes de incentivar a produçäo e divulgaçäo dos
estudos. A similitude do processo vivêncial das ilhas atlânticas, aliada à sua
permeabilidade às perspectivas históricas peninsulares definiram uma certa unidade na
forma e conteúdo da Historiografia insular. Gaspar Frutuoso, em finais do século XVI,
com as Saudades da Terra expressa, de forma modelar, a visäo de conjunto do mundo
insular, aproximando os arquipélagos da Madeira, Açores, Canárias e Cabo Verde. Esta
situaçäo, ímpar na historiografia, só será retomada a partir da década de quarenta da
presente centúria pelos historiadores europeus e só agora pelos insulares. A consciência
histórica da unidade desta múltipla realidade arquipelágica foi definida de modo preciso
pela expressäo braudeliana de Mediterrâneo Atlântico, que abrange os três arquipélagos
postados à entrada do oceano.
No culminar deste processo, as exigências académicas com a expansäo das
universidades e do saber histórico, condicionaram um avanço qualitativo da
historiografia, a partir da década de quarenta do presente século. Todavia ela é desigual,
o que provoca também uma diversidade de níveis de conhecimento da realidade para
cada um dos arquipélagos. Deste modo foi mais assídua e volumosa a produçäo histórica
nos arquipélagos dos Açores e Canárias do que na Madeira, S. Tomé e Cabo Verde.Isso a
deve-se, fundamentalmente, à falta de instituiçöes culturais e universitárias para tal
vocacionadas. Por outro lado importa salientar o valor assumido pelas publicaçöes
periódicas e a possibilidade de encontro dos investigadores, através de colóquios, que a
década de oitenta foi fértil.
A historiografia insulana, permeável às origens europeias, surge na alvorada da
revoluçäo do conhecimento geográfico como a expressäo pioneira desta novidade e, ao
mesmo tempo, como uma necessidade institucional de justificativa de um processo de
afirmaçäo da soberania peninsular. Deste modo o período que medeia entre os séculos
iniciais do reconhecimento do oceano é marcado por uma escrita mais europeia do que
insular, próxima da crónica e da literatura de viagens, onde as ideias se espraiam.
Os factos históricos e as impressöes de viagem, säo perpetuados na escrita com um
uso posterior, de acordo com as exigências de cada geraçäo e época. Esta prosa histórica
está impregnada de um ideal romântico e serve-se de perspectivas e formas positivistas
para justificar e fundamentar certos objectivos políticos emanentes da conjuntura política
em que emergiram.
As publicaçöes periódicas assumem particular importância na pesquisa histórica uma
vez que é a partir delas que o público interessado toma conhecimento dos progressos que
se väo conseguindo. Para a Madeira todo o mérito vai para duas: o Arquivo Histórico da
Madeira (19 volumes editados de 1931-1990), iniciada por Cabral do Nascimento e que
José Pereira da Costa transformou em boletim do entäo Arquivo Distrital do Funchal;
Das Artes e Da História da Madeira (1948-1977), órgäo da Sociedade de Concertos da
Madeira, revista publicada por iniciativa de Luis Peter Clode. Na actualidade merecem
referência as revistas Atlântico (1985-1989) e Islenha (desde 1987).
Nos Açores, ontem como hoje, proliferam as publicaçöes periódicas, muitas delas de
índole geral mas com forte incidência na temática histórica. Säo elas a Insulana (1944),
do Instituto Cultural de Ponta Delgada; Boletim do Núcleo Cultural da Horta (1950) e o
Boletim da Comissäo Reguladora do Comércio de Cereais dos Açores (1945-1960). Uma
referência especial para as publicaçöes que apostam no conhecimento histórico: Boletim
do Instituto Histórico da Ilha Terceira (1944) e Arquipélago -ciências humanas, revista
da Universidade dos Açores (1977), que desde 1985 publica números em separado sobre
a História.
Para as ilhas de Cabo Verde e S. Tomé o panorama näo é idêntico, resumindo-se
muitas vezes a sua valorizaçäo às publicaçöes periódicas nacionais com incidência
colonial, como sejam: Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (desde 1875),
Studia (1958) e Ultramar (1961); com carácter específico merece ser referenciado o
Boletim Cultural da Guiné Portuguêsa e para Cabo Verde as Revistas Claridade (S.
Vicente-1957), Cabo Verde (1950) e, mais recentemente, Raízes (Praia-1978). Uma
referência especial para os estudos publicados por António Carreira e A. Teixeira da
Mota que muito contribuíram para revelar a parte recôndita da História destas ilhas.
Também os colóquios foram importantes na valorizaçäo e incentivo ao conhecimento
histórico. Esta é uma nova dimensäo que emergiu no final da centúria. Primeiro foram os
colóquios realizados em Las Palmas desde 1977, que ficaram conhecidos como Colóquio
de História Canário-Americana, que terá em 1992 a sua décima realizaçäo, depois
idêntica iniciativa nos Açores (1983, 1987 e 1990) e Madeira (1986, 1989). Das três
realizaçöes açorianas e das duas madeirenses ficaram algumas centenas de comunicaçöes
reunidas em vários volumes e a certeza de que a investigaçäo histórica iniciou uma nova
era.

No sentido de facilitar ao leitor um maior aprofundamento da


temática explicitada ao longo destas paginas vamos apresentar uma resenha sumárias das
obras que reputámos mais importantes.

1.(Os)Açores e o Atlântico (séculos XIV-XVII), Angra do Heroísmo, 1984. Este volume


reúne as actas do colóquio realizado em 1983. A este seguiram-se mais dois em 1987 e
1990, tendo-se publicado as actas do segundo em volume no Boletim do Instituto
Histórico da Ilha Terceira (vol. XLV, 1987), entidade promotor de todos estes eventos.

2. ALBUQUERQUE, Luís de (direcçäo de), Portugal no Mundo, 6 volumes, Lisboa,


1989. Nos dois primeiros volumes publicam-se estudos monográficos sobre a Madeira
(Alberto Vieira), Açores (Artur Teodoro de Matos, Maria Olímpia da Rocha Gil), Cabo
Verde (Marília Lopes, Maria Manuel Torräo) e S. Tomé (Luís de Albuquerque e Isabel
Castro Henriques).

3. Arquivo dos Açores, 15 volumes, Ponta Delgada, 1878-1959 (reeditado pela


Universidade dos Açores, 1980-1984). A sua publicaçäo iniciou-se em Maio de 1878,
por iniciativa de Ernesto do Canto, que subvencionou os dez primeiros volumes, sendo os
restantes da responsabilidade de Afonso Chaves, J. B. Oliveira Rodrigues. Neles se
reúnem, ainda que de forma avulsa, os documentos mais importantes sobre os Açores,
recolhidos nos arquivos açorianos, Torre do Tombo e outros arquivos.

4. Arquivo Histórico da Madeira, 19 volumes, Funchal, 1931-1990. Iniciativa de Cabral


do Nascimento, que depois passou a Boletim do Arquivo Distrital do Funchal (hoje
Arquivo Regional da Madeira), em que se publicaram importantes estudos e
apontamentos sobre a história da ilha. Nos últimos cinco volumes (1977-1990), reuniu-se
a documentaçäo do tomo primeiro do registo geral da Câmara do Funchal, com
documentos de 1425 a 1623.

5. AZEVEDO, ålvaro Rodrigues de, "Notas", in Saudades da Terra,


Funchal, 1873. Em trinta e três notas (pp.313-855) apensas à ediçäo da obra de Gaspar
Frutuoso referente à Madeira o autor reúne tudo o que conseguiu recolher, até 1873,
sobre a História do arquipélago, capaz de esclarecer algumas questöes deixadas em
aberto no texto editado.

6. BARCELLOS, Christianno José Senna, Subsídios para a História de Cabo Verde e


Guiné, 5 partes, Lisboa, 1899-1911. Nestes anais de Cabo Verde e Guiné o autor reuniu
importante documentaçäo que trata de forma cronológica, até 1842, faltando uma
adequada estrutura formal, que deverá ser reunida na obra em preparaçäo, dirigida por
Luís de Albuquerque e M. E. Madeira Santos, com o título de História Geral de Cabo
Verde.

7. BRåSIO, António (publicaçäo e notas), Monumenta Missionária Africana. åfrica


Ocidental, 1ª série, 7 volumes, Lisboa, 1952-1956, 2ª série 15 volumes, Lisboa, 1952-
1985. Nesta colecçäo de documentos o investigador encontra o que de mais significativo
existe sobre os arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé e neles se juntam textos narrativos
e a documentaçäo diplomática.

8. CARREIRA, António, Cabo Verde. Formaçäo e extinçäo de uma sociedade


escravocrata(1460-1878), Lisboa, 1983 (2ª ediçäo). Pertence ao autor o maior número de
trabalhos históricos sobre o arquipélago de Cabo Verde, de que este estudo é exemplo.

9. Colóquio Internacional de História da Madeira (actas do I e II), 3 volumes, Funchal,


1989-1990. Nos três volumes estäo reunidas as actas do primeiro (1986) e segundo
(1989) colóquios realizados no Funchal pela Secretaria do Turismo Cultura e Emigraçäo
do Governo Regional da Madeira.

10. DIAS, Urbano de Mendonça, A vida de nossos avós, 8 volumes, Vila Franca do
Campo, 1944-1948. Tentativa de recriaçäo da vida dos antepassados com o recurso a
documentos que o autor também publica. Esta obra e outras publicadas do mesmo autor
säo indispensáveis para a compreensäo e estudo da história micaelense.

11. DUNCAN, T.B., Atlantic islands. Madeira, the Azores, and the Cape Verdes in
seventeenth - century. Commerce and navigation, Chicago, 1972. O primeiro estudo,
feito de forma compartimentada, sobre os arquipélagos portugueses (Madeira, Açores e
Cabo Verde) no século dezassete.

12. DRUMMOND, Francisco Ferreira, Anais da ilha Terceira, 4 volumes,


Angra do Heroísmo, 1850-1864 (reediçäo em 1981). Nestes quatro volumes apresenta-se
de forma cronológica a história da ilha Terceira até 1832. Como complemento deverá
indicar-se a ediçäo recente dos seus Apontamentos Topográficos, Políticos, Civis e
Eclesiásticos para a História das nove ilhas dos Açores servindo de suplemento aos Anais
da ilha Terceira, Angra do Heroísmo, 1990, ediçäo de J. G. Reis Leite.

13. FRUTUOSO, Gaspar, Saudades da Terra (livros 1 a sexto), 7 volumes, Ponta


Delgada, 1977-1987. Nesta obra escrita na década de noventa do século dezasseis o autor
reuniu tudo o que conseguiu recolher sobre os arquipélagos da Madeira, Açores, Canárias
e Cabo Verde. Texto indispensável, é certo, mas a ser usado com todo o cuidado e
confronto com a documentaçäo disponível.

14. GIL, Maria Olímpia da Rocha, O arquipélago dos Açores no século XVII. Aspectos
sócio económicos (1575-1675), Castelo Branco, 1979. Uma das primeiras tentativas de
sistematizaçäo da sociedade e economia açorianas num período crucial da história deste
arquipélago. Peca apenas pelo facto de privilegiar os núcleos documentais terceirenses
em detrimento das outras ilhas.

15. GODINHO, Vitorino Magalhäes, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, 4


volumes, Lisboa, 1981/1982. A primeira obra de síntese sobre os aspectos económicos
dos descobrimentos em que às ilhas atlânticas é atribuído um papel relevante.
16. IDEM, Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de Navegar. Séculos XIII-XVIII, Lisboa,
1990. Para além da visäo de conjunto que a obra pretende apresentar nos dezassete
capítulos; parece-nos particularmente relevante aquele em que o autor nos presenteia com
uma primorosa síntese sobre "As ilhas atlânticas: dos mitos geográficos à construçäo do
novo mundo".

17. MACEDO, António L. da Silveira, História das quatro ilhas que formam distrito da
Horta, Horta, 3 volumes, 1871 (reediçäo em 1981). Estudo monográfico sobre as ilhas do
Faial e Pico.

18. MAURO,Frédéric, Portugal, o Brasil e o Atlântico. 1570-1670, 2 volumes, Lisboa,


1988-1989 (1ª ediçäo em 1960). Obra geral sobre o espaço atlântico, aqui encarado numa
perspectiva inovadora, com especial incidência na valorizaçäo que se dá aos arquipélagos
da Madeira e Cabo Verde.

19. PEREIRA, Fernando Jasmins, Estudos sobre História da Madeira, Funchal, 1991.
Compilaçäo de estudos inéditos e publicados pelo autor sobre a História da Madeira nos
séculos XV e XVI. Este é um dos marcos referenciais da actual Historiografia
madeirense.

20. SANTOS, Joäo Marinho, Os Açores nos séculos XV e XVI, 2 volumes, Ponta
Delgada, 1989. A primeira tentativa de análise global do processo histórico açoriano,
peca porque a sua abordagem se restringir apenas à documentaçäo publicada e às fontes
narrativas.

21. SILVA, Fernando Augusto da, Elucidário Madeirense, 4 volumes, Funchal, 1984 (4ª
ediçäo). Dicionário histórico-enciclopédico sobre o arquipélago da Madeira: a sua leitura
deverá ser feita com algumas reservas, pois enferma de certos erros na cronologia.

22. VIEIRA, Alberto, O comércio inter-insular nos séculos XV e XVI (Madeira, Açores,
Canárias), Funchal, 1987. Neste trabalho foi nossa intençäo relevar as conexöes sociais e
económicas entre os três ar
quipélagos em causa.
CRONOLOGIA

610 A.C.- Primeira viagem de circum-navegaçäo do continente africano,


a partir do Oriente, por ordem do faraó egipcío Neco.
485 A.C.- Périplo de Hanäo ao longo da costa ocidental africana.
1310 - Viagem às Canárias de Lanzarote Malocello, ao serviço do rei de
Portugal.
1317/Fevereiro/1 - Contrato entre Manuel Pessanha e o rei de Portugal,
para a organizaçäo da armada portuguesa.
1341/Junho/ - Viagem de Agostinho del Tegghia de Corbizzi e Nicoloso
de Recco às Canárias, ao serviço de D.Afonso IV.
1344 - Concessäo papal do senhorio das ilhas Afortunadas (Canárias) a
D. Luis de la Cerda
1402 - Primeira viagem de Maciot de Betencourt à ilha de Lanzarote.
1404 - Criaçäo bispado de Rubicäo (Lanzarote), transferido em 1438
para Las Palmas.
1419 - Reconhecimento das ilhas da Madeira e Porto Santo, seguido de
ocupaçäo no ano imediato.
1424 - Expediçäo de D. Fernando de Castro às Canárias, seguiram-se
outras até 1440.
1427 - Descobrimento das ilhas dos Açores, excepto Flores e Corvo, por
Diogo de Silves, de acordo com a carta Valsequa (1439).
1433 - Doaçäo régia do direito de padroado das ilhas da Madeira à
ordem de Cristo.
- Carta de D.Afonso V, isentando de dizima as ilhas dos Açores,
confirmada em 1447.
1433/Setembro/26 - Doaçäo das ilhas da Madeira e Porto Santo ao
infante D. Henrique.
1439 - Concessäo dos benefícios fiscais aos povoadores da Madeira nos
contactos com o reino, como forma de promover o seu povoamento.
1439/Julho/2 - Licença ao infante D. Henrique para povoar as sete
ilhas dos Açores; repetida em 10 de Março de 1439.
1440/Maio/8 - Doaçäo da capitania de Machico a Tristäo Vaz.
1443/Abril /5 - Carta de isençäo da dízima,por cinco anos, no comércio
com o reino a partir dos Açores.
1443-44 - Descobrimento das ilhas de Arguim por Nuno Tristäo, Gonçalo
de Sintra e Cadamosto.
1446/Novembro/1 - Doaçäo da capitania da ilha de Porto Santo a
Bartolomeu Perestrelo
1447/Abril/20 - Carta de isençäo da dízima aos moradores da ilha de
S.Miguel.
1450/Março/2 - Doaçäo da capitania da ilha Terceira a Jácome de
Bruges.
1453/Janeiro/20 - Doaçäo da ilha do Corvo a D.Afonso, Duque de Bra gança.
1454/Janeiro/7 - Carta de D.Afonso V doando à ordem de Cristo a
administraçäo espiritual e jurisdiçäo das terras
conquistadas e por conquistar.
1454/Janeiro/8 - Bula Romanus Pontifex, legitimando a posse exclusiva
a Portugal das terras além do Bojador.
1458/Maio/17 - Confirmaçäo régia da compra da capitania de Porto Santo
por Pedro Correia da Cunha.
1460/Agosto/22 (2 e 18 de Setembro e 3 de Dezembro) - Doaçäo das
ilhas dos arquipélagos da Madeira, Açores e Cabo Verde ao
infante D. Fernando.
1462/Setembro/19 - Carta régia em que se declara Antonio da Noli como
descobridor das ilhas de Santiago, Boavista, Maio,
Sal e Fogo, que teria ocorrido em data anterior a
18 de Novembro de 1460.
1462/Outubro/28 - Carta referenciando Diogo Afonso como descobridor
das ilhas de Brava, S.Vicente, S. Nicolau .
1462 - Início do povoamento de Santiago.
1466/Julho/12 - Carta de concessäo de privilégio aos vizinhos de Cabo
Verde de comércio nos Rios da Guiné.
1468/Fevereiro/21 - Carta das capitanias da ilha do Faial e do Pico a
José Dutra.

1469/Setembro/30 - Contrato de exploraçäo da urzela de Cabo Verde,


celebrado com Joäo e Mendo de Lugo.
1470/1472- Descoberta das ilhas do golfo da Guiné: S. Tomé, Santo António de
Príncipe, Ano Bom e Fernando Pó
1473/Junho/21 - Doaçäo a Rui Gonçalves da Câmara das ilhas que desco brir.
1474/Março/10 - Doaçäo e confirmaçöes da capitania da ilha de S.
Miguel a Rui Gonçalves da Câmara e da sua compra a
Joäo Soares de Albergaria e Sousa, confirmada pela
coroa em 1483.
1474/Abril/2 - Doaçäo da capitania de Angra a Joäo Vaz Corte Real.
1474/ -Doaçäo da capitania de Santa Maria a Joäo Soares de Sousa.
1477/Março/15 - Criaçäo das alfândegas nas capitanias do Funchal,
Machico e Porto Santo.
1479/Setembro/4 - Assinatura de tratado entre Portugal e Castela, em
que se estabelece a forma de partilha do mar
costeiro do continente africano, confirmado em 6 de
Março de 1480 em Toledo e pelo papa Sisto IV em 21
de Junho de 1481.
1481 - Criaçäo do primeiro oratório dos franciscanos na Praia
(Terceira).
1483/Maio/4 - Carta de doaçäo da ilha de S. Jorge a Joäo Vaz Corte
Real.
1485/Setembro/24 - Doaçäo da capitania da ilha de S. Tomé a Joäo da
Paiva, limitada em 1 de Janeiro do ano seguinte
apenas a metade.
1485/Dezembro/16 - Carta de foral da ilha de S. Tomé.
1486/Julho/24 - Confirmaçäo do contracto entre Fernäo Dulmo e Joäo
Afonso do Estreito sobre o descobrimento da ilha das
Sete Cidades.
1489/Junho/1 - Carta de doaçäo das ilhas Terceira e Graciosa ao Duque
de Beja.
1493 - Início das obras da Sé do Funchal, concluídas em 1508.
1493/Dezembro/11 - Licença aos vizinhos de S. Tomé para resgatar
escravos no Congo.
1494/Julho/7 - Assinatura do tratado de Tordesilhas.
1495/Maio/12 - Doaçäo da alcaidaria de Angra e S. Jorge a Joäo Vaz
Corte Real.
1496 - Início do povoamento de S. Tomé por Alvaro Caminha.
1497 - Criaçäo para Santiago do cargo de administrador e recebedor dos bens dos
defuntos.
- Criaçäo do hospital de Santiago.
1497/Abril/8 - Doaçäo da capitania da Ribeira Grande (Santiago) a
D. Branca Aguiar.
1499- Criaçäo do almoxarifado da alfândega e dos quartos na Madeira.
1499/Julho/30 - Confirmaçäo régia da posse da capitania de S. Tomé por
Alvaro Caminha.
1499/Dezembro/15 - Carta régia concedendo a Fernäo de Melo a jurisdi çäo
civil e criminal até pena de morte sobre os
escravos de S. Tomé.
1500 - Início do povoamento da ilha de Príncipe.
1500/Maio /12 - Doaçäo a Gaspar Corte Real de qualquer ilha ou terra
firme que descobrir ou achar.
1501 - Descobrimento da ilha de Trindade por Joäo da Nova.
- Criaçäo da vila da Ponta de Sol (Madeira).
1501/Agosto/20 - Assalto holandês à ilha de S. Tomé.
1502 - Descobrimento da ilha de Santa Helena por Joäo da Nova
- Criaçäo das vilas de S. Sebastiäo (Terceira).
1502/Julho/1 Criaçäo da vila da Calheta (Madeira).
1503/Março/23 - Criaçäo da vila das Velas (S.Jorge).
1504/Maio/3 - Fundaçäo do hospital de S. Tomé.
1505/Janeiro/24 - O papa Júlio II rectifica o tratado de Tordesilhas.
1506 - Descobrimento da ilha de Tristäo da Cunha pelo navegador que
lhe deu o nome.
- Confirmaçäo do senhorio da Terra Nova a Vasco Anes Corte Real 1507 - Criaçäo da
vila da Ribeira Grande (S.Miguel).
1507/Setembro/28 - Doaçäo da capitania da ilha Graciosa a D. Fernando
Coutinho.
1508/Agosto/21 - Elevaçäo do Funchal à categoria de cidade.
1510 - Criaçäo da vila do Topo (S.Jorge).
1514/Junho/12 - Bula de criaçäo do bispado do Funchal.
/Julho/14 - Criaçäo da vila do Nordeste (S.Miguel).
1515/Junho/26 - Criaçäo da vila de Santa Cruz.
- Foral do almoxarifado do Funchal.
1515/Julho/28 - Criaçäo da vila de Agua de Pau (S. Miguel).
1520- Regimento para as naus da India nos Açores.
1520/Março/13 - Carta régia, estabelecendo a jurisdiçäo dos capitäes da
Madeira e Cabo Verde
1522 - Terremoto em S. Miguel, que soterrou Vila Franca do Campo.
- Nomeaçäo de governador para S. Tomé.
- Criaçäo da vila de Lagoa (S. Miguel).
1522/Outubro/22 - Sublevaçäo dos escravos em Vila Franca do Campo.
1524/Maio/19 - Foral para a ilha de S. Tomé.
1525/Abril/22 - Criaçäo da cidade de S. Tomé.
1527 - Primeira referência ao cargo de provedor das armadas na ilha
Terceira, exercido por Pero Anes do Canto.
1533/Janeiro/31 - Elevaçäo da diocese do Funchal a metropolitana e
primaz, situaçäo que se manteve até 1551, altura em
que passou a sufragânea da de Lisboa.
1533/Junho/3 - Criaçäo da vila da Calheta (S. Jorge).
1533/Setembro/15 - Nomeaçäo do primeiro corregedor para Cabo Verde-
Bach. Esteväo de Lagos.
1534/Agosto/21 - Criaçäo da cidade de Angra (Terceira).
1545 - Início do povoamento da ilha Brava.
1546/Abril/1 - Criaçäo da Vila da Praia (Graciosa).
1546/Abril/2 - Elevaçäo de Ponta Delgada (S. Miguel) à categoria de
cidade.
1547/Janeiro/20 - Sublevaçäo dos escravos negros da ilha de S. Tomé.
1548 - Início do povoamento de Santo Antäo.
1562 - Licença aos moradores da Madeira para resgatarem escravos nos
Rios da Guiné.
1567 - Assalto de corsários franceses à ilha de S. Tomé.
1574 - Revolta dos angolares em S. Tomé.
1578 - Primeiro capitäo general das ilhas de Cabo Verde.
1581 - Nomeaçäo do primeiro governador da ilha Terceira, Juan de
Urbina.
1585 - Nomeaçäo do Geral e superintendente das coisas da guerra da
Madeira.
1585/Novembro/16 - Assalto à ilha de Santiago por Francis Drake.
1595/Julho/9 - Sublevaçäo dos negros de S. Tomé, chefiados por Amador.
1595-1596 - Assalto holandês à ilha de S. Tomé.
1596/Maio/20 - Criaçäo da diocese de S. Salvador do Congo.
1598 - Ataque holandês à ilha de Santiago.
1599 - Ataque holandês à ilha de S. Tomé.
1600 - Nova estrutura governativa das ilhas com o aparecimento do
cargo de capitäo e governador.
1609 - Criaçäo do consulado francês em Angra (Terceira).
1616 - Saque dos corsários argelinos às ilhas de Santa Maria e Porto
Santo.
1621 - Praga do bicho da cana nos canaviais säotomenses.
1641 - Assalto holandês à ilha de S. Tomé.
1641 - Nomeaçäo do Conde de Salvaterra para governador do Castelo de
Angra.
1643 - Ocupaçäo holandesa da ilha de S. Tomé, expulsos em 1658.
1649 - Criaçäo da Companhia Geral do Comércio para o Brasil.
1652/Novembro/19 - Concessäo de direito aos madeirenses e açorianos
para enviarem ao Brasil todos os anos, respecti vamente, um e
três barcos; situaçäo que se manteve
até a sua liberalizaçäo em 1670.
1664/Setembro/1 - Criaçäo da Companhia da Costa da Guiné
1676/Maio/9- Criaçäo da Companhia do Cacheu, Rios e Comércio de Guiné.
1682/Fevereiro/12 - Companhia do Estanco do Maranhäo e Pará.
1690/Janeiro/3 - Companhia do Cacheu e Cabo Verde.
MICROBIOGRAFIAS

1. CAMARA, RUI GONÇALVES DA (--/1497) . Filho de Joäo Gonçalves Zarco e


Constança Rodrigues, sendo o primeiro nascido na ilha e o segundo na sucessäo da casa,
o que lhe retirou a possibilidade de alcançar a posse da capitania do Funchal, surgindo
apenas como usufrutuário das terras de sesmarias que o pai lhe distribuiu na Lombada da
Ponta de Sol. Casou na Madeira com D. Maria Betencourt, filha de Maciot de
Betencourt, sobrinho do conquistador das ilhas de Lanzarote e Fuerteventura.
Depois de evidenciar a sua valentia de cavaleiro nas campanhas de Arzila e Tânger,
empenhou-se na busca de uma terra onde pudesse ser também ele capitäo. Solicitou da
coroa uma carta de antecipaçäo de posse para as terras que pensava vir a descobrir a
Ocidente dos Açores, concedida por D. Afonso V em 21 de Junho de 1473. Depois foi ao
encontro de outra forma mais fácil de o conseguir, por meio da compra a Joäo Soares de
Albergaria e Sousa do direito de posse da capitania da ilha de S. Miguel. Esta compra, no
valor de dois mil réis e quatro mil arrobas de açúcar foi confirmada pelo senhorio e pela
coroa, respectivamente, em 10 de Março e 20 de Maio de 1474. Para cobriu essa despesa
Rui Gonçalves da Camara aforou em 1473 as suas terras da Lombada da Ponta de Sol a
Joäo Esmeraldo.
Terá sido no Veräo de 1474 que o mesmo tomou posse efectiva da sua capitania ao
fixar morada no local de Vila Franca do Campo; acompanharam-no a mulher, os filhos
naturais e "muitos honrados homens", no dizer de Gaspar Frutuoso, que o ajudaram a
corresponder o desafio lançado pela infanta de a "fazer povoar... e a reger com justiça". É
precisamente nesse momento que a ilha adquiriu o incremento económico
necessário, mercê da intervençäo de meios, técnicas, produtos e mäo-de-obra
madeirenses; à sua morte em finais de Novembro de 1497 a ilha firmava já alguma
importância económica e a sua missäo era dada por cumprida.

2. CAMINHA, ålvaro (--/1499). Cavaleiro da Casa Real, natural de Faro, recebeu em 29


de Julho de 1493 a posse da capitania da ilha de S. Tomé, como recompensa pelos seus
serviços "nas coisas do mar e de terra, em Guiné e nas partes de åfrica, entre os infiéis".
Todavia a esta doaçäo estava ligado um compromisso assumido perante a coroa de aí
viver com continuidade, de modo a que se pudesse dar início à ocupaçäo efectiva desta
ilha. Além disso estabeleceram-se algumas regalias ao capitäo e acompanhantes,
conducentes a isso. Ele recebeu a alcaidaria-mor da ilha (20 de Novembro de 1493), o
usufruto hereditário da capitania e uma alçada alargada no campo do cívil e crime,
enquanto aos povoadores foram as inúmeras regalias no comércio das ilhas e áreas
costeiras vizinhas.
ålvaro de Caminha foi quem deu início à ocupaçäo efectiva do solo säotomense,
servindo-se para isso de dois mil crianças judias, recém-baptizadas, que o acompanharam
em 1493. O comércio do açúcar e dos escravos africanos fizeram da ilha um importante
entreposto de comércio do golfo da Guiné, e do seu capitäo um importante e rico senhor.
O testamento lavrado em 1499 é testemunho disso, através dos inúmeros e valiosos
legados que estabelecia. Aí se refere também o seu activo comércio com o reino, onde
mantinha, em Lisboa, ålvaro Pires como feitor.

3. CANTO, Pero Anes do (1473/1556). Filho de Joäo Anes do Canto e de Dona


Francisca da Silva, nasceu no ano de 1473 em Guimaräes. Em finais dessa centúria fixou
morada na ilha Terceira onde se tornou num dos mais importantes proprietários; as terras
adquiriu-as por dote de casamento, título de compra ou de sesmaria, enquanto os títulos
nobiliárquicos (28 de Janeiro de 1539, cavaleiro da Ordem de Cristo) derivaram da sua
destreza como cavaleiro nas campanhas de Arzila (1509) e Azamor (1515). Além disso
em 1531 foi nomeado para o cargo de prove
dor das armadas na ilha, tendo como funçäo apoiar, defender e reabastecer as naus da
carreira da India que sulcavam os mares açorianos.
A sua morte em 18 de Agosto de 1556 deixava aos seus descendentes um vasto
património, repartido por três morgadios e um cargo de provedor das armadas, tudo para
o seu filho varäo.

4. DUTRA, Jos (-/1495). Flamengo que veio para Portugal no tempo de D. Joäo II tendo
sido moço da Casa Real, casou com Beatriz de Macedo, dama do Paço, filha de Fernäo
de Macedo de Évora. Em 1466 recebeu o encargo de povoar a ilha do Faial, confirmada
por carta de 5 de Março de 1491 a capitania desta e da do Pico. Na viagem de ocupaçäo
fez-se acompanhar de compatrícios seus, residentes em Lisboa, ou que, no entender de
Gaspar Frutuoso, foi buscar à Flandres. Foi da iniciativa desse primeiro grupo de
povoadores que se procedeu ao arranque definitivo do povoamento e valorizaçäo
económica das ilhas do grupo central, sendo a cultura do pastel o principal incentivo.

5. FRUTUOSO, Gaspar (1522/1591). Pouco se sabe sobre a vida deste ilustre literato
açoriano, o primeiro e principal obreiro da História das ilhas atlânticas, até à sua saída em
1548 para Salamanca. Diz-se ser filho de Frutuoso Dias, importante mercador de Ponta
Delgada, e que teria nascido em 1522. Depois dos estudos em Salamanca (1548-58),
Coimbra e, talvez, Évora, fixou morada em S. Miguel onde foi desde 1565 pároco (20 de
Maio) e pregador (19 de Junho) da matriz da Ribeira Grande. Aí viveu os últimos anos de
vida dedicados à investigaçäo e escrita das Saudades da Terra.
Foi precisamente entre 1583 e 1590 que escreveu os seis livros da sua monumental
obra, em que aborda todos os aspectos das ilhas atlânticas (Açores, Cabo Verde, Canárias
e Madeira). A documentaçäo da sua paróquia testemunha inúmeras vezes a sua ausência
neste período, certamente provocada pela necessidade de conhecer os locais que descreve
na obra.
Numa breve análise a esta monumental História das ilhas Atlânticas até ao século XV
conclui-se que o tratamento näo é idêntico, pois que resulta da possibilidade de acesso a
essas informaçöes pelo autor. Se no caso da Madeira esta lacuna foi colmatada com o
pedido expresso ao cónego Jerónimo Dias Leite da necessária compilaçäo dos factos,
quanto às demais ilhas o autor deverá ter-se baseado em testemunhos orais ou escritos
que nos escapam. Além disso é de referenciar o seu tratamento desproporcional desta
realidade. Assim a ilha de S. Miguel merece uma análise exaustiva, enquanto as demais
ilhas säo referenciadas muito sumariamente. No caso das Canárias a incidência
preferencial na ilha de La Palma, a única que o autor descreve a sua geografia costeira e
interna, deverá resultar de uma visita ou de um testemunho cuidado de algum mercador
açoriano que aí esteve.

6. MACHIM, Robert. Aventureiro inglês que teria fugido em 1344 do Porto de Bristol
com a sua amada, Ana d'Arfet que naufragando na pequena enseada da Madeira, que lhe
deu o nome, Machico. É desta forma que Francisco Alcoforado, Valentim Fernandes,
Damiäo de Góis e Gaspar Frutuoso iniciam o relato da descoberta do arquipélago
madeirense. Mas
a tradiçäo historiográfica mais recente, a partir do texto de ålvaro Rodrigues de Azevedo
(1873), passou a contestar a veracidade do relato, fundamentando-se quase que
exclusivamente na versäo romanceada de D. Francisco Manuel de Melo (1660). Mas
documentos recentes testemunham existência deste apelido em Gloucester, desde o
século XIV, enquanto um documento de 1406 refere a expulsäo de Inglaterra de um
Machim e um Matchico; esta situaçäo apresenta afinidades com o texto apresentado por
Valentim Fernandes. Lenda ou verdade, o certo é que este enigmático aventureiro ficará
nos anais da História madeirense a atestar o conhecimento da ilha em data anterior à
presença portuguesa no século XV.

7. MONIZ, D. Filipa de (-/1485). Filha de Bartolomeu Perestrelo, capitäo do donatário da


ilha do Porto Santo e de Isabel Moniz. Casou em 1479 (?) em Lisboa com Cristóväo
Colombo e depois veio viver para o Porto Santo e Madeira. Näo existe consenso quanto
ao local de nascimento de Diogo, primeiro e único filho deste enlace: uns dizem ter
nascido em Lisboa, outros, no Porto Santo. Apenas se sabe que após o
casamento vieram viver para a Madeira, estando em 1485 de regresso a Lisboa, onde ela
faleceu. A vinculaçäo colombina ao arquipélago madeirense foi importante para a
concretizaçäo do projecto da viagem de 1492, pois teria sido do contacto com os
madeirenses em demanda do Ocidente que o mesmo definiu o plano de viagem.

8. NOLI, Antonio da (-/1496). Navegador italiano, natural de Noli (Ligúria), sendo


considerado o descobridor de cinco ilhas do arquipélago de Cabo Verde (Santiago, Fogo,
Sal, Boavista e Maio). Em 1462 recebeu das mäos do infante D. Fernando a posse da
capitania da ilha de Santiago, ano que começou a sua ocupaçäo, acompanhado do seu
irmäo Bartolomeu e o sobrinho Raffaele. Em 1472, por razöes que desconhecemos o
senhorio retirou-lhe o usufruto de metade da ilha, o que o levou em 1476 a tomar partido
dos castelhanos que invadiram a ilha. Todavia retornou ao reconhecimento da soberania
portuguesa sem que a alçada total lhe fosse reconhecida; ao morrer, sem filho varäo, esta
parcela que lhe restava foi doada, extraordinariamente, à sua filha D. Branca de Aguiar.
9. PAIVA, Joäo da. Fidalgo da Casa Real, vizinho de ƒbidos, recebeu em 24 de Setembro
de 1485 a posse da capitania da ilha de S. Tomé. Todavia nunca se deslocou à ilha,
deixando o encargo de a povoar a Joäo Pereira que aí chegou em 1486. Por carta régia de
11 de Janeiro de 1486 a capitania ficou reduzida apenas a metade da ilha, sendo a 11 de
Março confirmada a sua posse pela sua filha D. Mécia de Paiva. Mas esta acabou, por
inteiro em 1490 nas mäos de Joäo Pereira, na qualidade de primeiro povoador.

10. PERESTRELO, Bartolomeu (1400?-1457/1458). Este fidalgo, cavaleiro da casa do


infante do Henrique e o primeiro povoador do Porto Santo era de ascendência italiana.
Foi companheiro de Joäo Gonçalves Zarco e Tristäo Vaz na viagem de reconhecimento e
ocupaçäo das ilhas do ar
quipélago da Madeira, tendo ficado com o encargo de povoar a de Porto Santo, de que
recebeu a posse da capitania a 1 de Novembro de 1446. Esta situaçäo é justificada pelo
infante "por elle ser o primeiro que per meu mandado, a dicta Ylha pobrou e por outros
muitos serviços que me fez".
Casou por três vezes, sendo apenas do último enlace com Isabel de Moniz que nasceu
o filho varäo, que o havia de suceder na posse da capitania. Além deste nasceu também
Filipa de Moniz, que se celebrizou pelo casamento com Cristóväo Colombo. Do segundo
enlace uma das filhas, Iseu Perestrelo, casou com Pedro Correia, capitäo da ilha Graciosa
e que também comprou a Isabel de Moniz o direito de posse da capitania de Porto Santo,
sendo confirmado pelo infante em 17 de Maio de 1458, mas em face da maior idade do
herdeiro esta venda foi considerada nula pela coroa.

11. TEIVE, Diogo de. As genealogias madeirenses falam-nos de dois: tio e sobrinho. O
primeiro esteve entre os iniciais povoadores da Madeira, sendo escudeiro da casa do
infante. Foi ele quem em 5 de Dezembro de 1452 recebeu das mäos do infante um alvará
em que lhe era concedida autorizaçäo para construir um engenho de água para o fabrico
de açúcar, em vez dos trapiches. Em Maio de 1454 encontrava-se já no Funchal na
companhia de sua mulher, Marina Gonçalves, sendo referenciado como proprietário de
casas e de uma serra de água. Além disso participou activamente na vida local, como
homem-bom do concelho, tendo sido eleito para diversos mandatos.
Bartolomé de Las Casas refere-o como o empreendedor, conjuntamente com Pedro
Velasco, de uma viagem para Ocidente, que se teria realizado em 1452. Foi no regresso
da viagem que o mesmo descobriu as ilhas foreiras (Flores e Corvo), tal como o confirma
a carta de doaçäo em 1453 da ilha do Corvo ao Duque de Bragança. Todavia outra carta
de 1474 refere o seu encontro por Diogo de Teive e seu filho Joäo de Teive em momento
muito próximo desta data. Além disso a documentaçäo terceirense atesta a sua presença
nos inícios da década de cinquenta como companheiro de Jácome de Bruges. Foi
certamente nesta altura que realizou a viagem para Ocidente.
12. VAN DER HAGHEN, Guilherme (-/1500). Foi um dos que acompanharam Jos Dutra
em 1470 no povoamento do Faial. O mesmo é natural de Bruges e encontrava-se em
Lisboa com sua esposa, D. Margarida de Azambuja, aquando da viagem de povoamento
do Faial. Da Flandres trouxe consigo todos os criados e familiares, fixando-se primeiro
no Faial, depois em S. Jorge e Terceira e, finalmente, nas Flores. A ele se deve a
promoçäo da cultura do pastel nas ilhas, tendo trazida da Flandres as plantas e os agentes
técnicos habilitados para o seu fabrico.

13. VAZ, Tristäo. Primeiro escudeiro, depois cavaleiro da casa do infante. Foram as suas
façanhas no Norte de åfrica que lhe valeram esse último título e o simples nome de
Tristäo ou Tristäo da ilha. Por sua iniciativa armou uma caravela para o reconhecimento
e povoamento da Madeira, tendo depois recebido em recompensa a posse da capitania de
metade da ilha, conhecida como de Machico, por carta de 4 de Maio de 1440.
Casou no reino com D. Branca Teixeira, de que resultaram quatro filhos e oito filhas:
o varäo, Tristäo Teixeira ficou conhecido pela sua arte de galantear as damas, o que lhe
valeu o epiteto de Tristäo das Damas.
Pai e filho atribuíram pouca importância à administraçäo da capitania, empenhando-se
mais nas façanhas bélicas e nas diversöes de carácter militar. Um e outro ficaram
conhecidos pela prepotência do seu governo, sendo célebre o caso do castigo infligido a
Tristäo Barradas, que o levou à perda da capitania e ao degredo, perdoado por carta de 17
de Fevereiro de 1452. Depois disto abandonou a capitania e passou a viver no Algarve,
onde viria a morrer em Silves, com mais de oitenta anos.

14. VELHO, Gonçalo. Cavaleiro, navegador da casa do infante D. Henrique, freire


professo da Ordem de Cristo e comendador de Almourol. De acordo com os cronistas foi
ele quem descobriu as ilhas açorianas a partir de 1431, e quem iniciou a sua ocupaçäo a
partir de Santa Maria. Näo se lhe conhece qualquer carta de doaçäo feita pelo infante,
apenas se sabe por alguns documentos que foi capitäo das ilhas açorianas (em carta do
infante de 1460). Por outro lado numa carta de 1443 é referenciado que estas ilhas
haviam sido cedidas de prestamo ao mesmo, para numa carta de perdäo de 1455 referir-se
as "ilhas de q[ue] Gonçalo Velho tem a cargo". Perante isto será legitimo de concluir que
a inicial tarefa de ocupar as ilhas, com o lançamento de gado em Santa Maria e S.
Miguel, desde 1439, foi feita por sua iniciativa, que nunca terá pisado o solo açoriano. A
sua morte a posse das capitanias de Santa Maria e S. Miguel ficou em poder do sobrinho,
Joäo Soares de Albergaria e Sousa.

15. ZARCO, Joäo Gonçalves (1395?-1467?). Escudeiro da casa do infante, armado


cavaleiro em Tânger, evidenciou-se como o principal obreiro do reconhecimento e
ocupaçäo do arquipélago. Antes disto demarcou-se como um importante corsário nas
águas ribeirinhas da costa algarvia e terá sido o primeiro a utilizar a bordo uma peça de
artilharia, o trabuco.
Da sua genealogia pouco se sabe com certeza, havendo, no entanto quem afirme ter
nascido em 1395 em Tomar, filho de Gonçalo Esteves e de D. Brites (filha de Joäo
Afonso, vedor da fazenda régia que teve o encargo inicial de orientar o povoamento da
Madeira), casou com Constança Rodrigues.
Ao receber, a 1 de Novembro de 1450, das mäos do infante a posse da capitania e dez
anos depois a carta de armas (4 de Julho de 1460), via coroadas as suas façanhas no mar,
nas praças de åfrica e na ocupaçäo da ilha, onde se revelara como o mais empreendedor.
Morreu com idade avançada, talvez em 1467, deixando aos descendentes um vasto
património. Os restos mortais repousam hoje no Convento de Santa Clara, sendo para aí
trasladados da primitiva capela de Nossa Senhora do Calhau de Cima, pelo filho varäo. A
partir da carta de armas deixou de usar a alcunha (Zarco), passando a chamar-se Joäo
Gonçalves da Câmara de Lobos, em honra dos lobos marinhos e do sítio que hoje ostenta
este nome, que era propriedade sua.
SUMARIO

INTRODUÇÄO

Primeira Parte

A REVELAÇÄO DO ESPAÇO E OCEANO ATLÅNTICO

I. Da revelaçäo do Oceano

Os mitos e as lendas
O descobrimento do século XV
A cavalaria insular em Marrocos
As viagens para Ocidente
Colombo e as ilhas
As ilhas do Sul

II. A ocupaçäo das ilhas

Os incentivos do povoamento
O regime de propriedade
O degredo como política de povoamento
As isençöes fiscais

Etnogenia Insular
Os estrangeiros

Estratificaçäo Social
Os escravos

A emigraçäo insular
A Madeira e Canárias
As ilhas e a Guiné
A Emigraçäo no século dezanove

Segunda Parte

O MUNDO ATLANTICO
I. A Política Atlântica

A luta pela posse do oceano


O sistema de fortificaçäo das ilhas
O Atlântico e as ilhas nos séculos XVIII e XIX
A nova geografia económica

II.As Escalas do Oceano

IV.A Economia Insular

Os Componentes da Dieta Alimentar


Os cereais
A Vinha e o Vinho

Os Produtos de Exportaçäo
A cana-de-açúcar
A expansäo da cana-de-açúcar
O pastel

Aproveitamento dos Recursos

O Comércio
O comércio de cabotagem
O comércio inter-insular
O comércio Atlântico
A Europa e as ilhas

IV. AS Instituiçöes Insulares

O senhorio das ilhas

O município
Os funcionários
A alçada
As posturas municipais

As instituiçöes régias

A igreja nas ilhas


As constituiçöes sinodais
Os judeus e a Inquisiçäo

CONCLUSÄO
NOTAS

CRONOLOGIA

MICROBIOGRAFIAS

BIBLIOGRAFIA

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