Sei sulla pagina 1di 50

Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
'.■" visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.


Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaca
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
»

> x)n? 112 ABRIL 19Í


ÍNDICE
Pág.

L PENSAMENTO MODERNO E BELIGIAO

1) "'Procura-se Deus vivo ou morto'.


Que dizer désse artigo de revista ?
'O homem antigo era dado aos mitos irracionais. Ao contrario,
o homem moderno se libertou dos mitos e se orienta pela rasáo!
Como jvXgar ernas afirmativas ?" 197

H. BIBLIA SAGRADA

2) "Como se conciliam as narrativas dos Evangelistas e de


Sao Paulo a reapeito da resaurreicdo de Cristo ?
Parecem contraditórias entre si. Supñem fotos hütóricoa ou
trabolho de fantaaia ?" H*

IU. DOUTRINA

3) "¡Os males (sofrimentos, miserias e morte) que. o homem


hoje em dia padece, sao meramente naturais ? Ou tém outro
significado e outra nota característica ?
Aínda se pode falar de 'ordem natural' « 'ordem sobre-
natural' ?" 1*0

IV. MORAL

i) "Cada um de nos será julgado por Deus de acordó com


a sua consciéncia.
O criterio para formar a nossa consciéncia é a Mensagem
Evangélica de Libertacáo Total do Homem em Cristo, pela qual
exprimimos o imagem de Deus.
Para exprimirmos a imagem de Deus em nos, todas as coisas,
mesmo a Lei Natural e a Autoridade do Papa, seivem de ins
trumentos t
Que dizer a respeito ?"

OOM APROVACAO ECLESIÁSTICA


« PERGUNTE E RESPONDEREMOS »
Ano X — N* 112 — Abril de 1969

I. PENSAMENTO MODERNO E RELIGIÁO

1) «Trocura-se Deus vivo ou morto'.


Que dizer desse artigo de revista?
'O homem antigo era dado aos mitos irracionais. Ao con
trario, lo bomem moderno se libertou dos mitos © se orienta
pela razáo*. Como julgar essas afirmativas?»

Resumo da resposta: O artigo ácima mencionado apareceu na


«Enciclopedia Bloch» n» 17 (setembro de 1968), pág. 56-69. Após apre-
sentar a Religiáo primitiva como mitología e supersticáo, procura
mostrar o valor da Religiáo «secularizada», ou seja, empenhada prin
cipalmente na solucáo dos problemas políticos que afetam o homem.
Para tanto, a autora do artigo cita o testemunho dos chamados «teó
logos da morte de Deus» (protestantes).
A respeito de secularizacáo e teología da morte de Deus já apa-
receram artigos em «P.R.» 99/1968, pág. 101-110; 103/1968, páginas
282-291; 109/1969, pág. 1-9; 111/1969, pág. 101-110.
A resposta abaixo insiste em mostrar que o mito nao é mera
fábula ou lenda mas é a expressáo de estruturas inatas do pensa-
mento: o homem antigo aspirava a viver urna época melhor, que
poderia ser a restauracáo da «idade de ouro» inicial; ... aspirava a
íugir do seu tempo, tempo monótono e acabrunhador, que o envol
vía... Mediante o mito, o homem primitivo quería dizer que os
grandes fenómenos da vida humana estao Intimamente relacionados
com um mundo invisivel, sobrenatural e sagrado — mundo invistvel
cuja realidade se exprime mediante símbolos.
Ora verifica-se que as mesmas estruturas de pensamento caracte-
rizam também o homem moderno: éste, professando ou celebrando os
seus mitos, manifesta as mesmas aspiracóes religiosas e a consciéncia
de que há valores sobrenaturais. Os mitos modernos, porém, sao des-
sacralizados, seculares. Nao mencionam Deus, mas supaem atitudes
religiosas e místicas por parte do cidadáo contemporáneo.
Tenha-se em vista, por exemplo, o marxismo, que supóe as aspl-
racOes do homem a urna era nova, redimida, paradisíaca; procura
satisfazer-lhe, propondo o messlanismo do proletariado, o qual levará
a historia a um bem-estar definitivo.
Tenham-se em vista também os romances do mundo moderno,
principalmente os policíais; as novelas dos meios de comunicacao de
massa (radio, televisao...), as tendencias da arte moderna, etc.

— 137 —
2 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 1

Vé-se, pols, que o homem contemporáneo nao pode rejeitar o


senso religioso e mítico dos antigos; sem o saber, o cidadáo arreli-
gioso continua sendo religioso. É preciso, porém, que os cristáos lhe
apresentem urna Reiigiáo adulta, profundamente inspirada pela Biblia,
para que nao confunda fé religiosa e íé em lendas.

Bespbsta: A «Enciclopedia Bloch», em seu número 17


(setembro de 1968), pág. 56-69, publicou um artigo intitulado
(alias, assaz ambiguamente) «Procura-se Deus vivo ou morto».
Já que tem provocado certa perplexidade no público, parece
importante fazer-lhe breve comentario, que as páginas seguin-
tes proporáo, examinando: 1) o conteúdo do artigo; 2) a
nogáo de mito; 3) as relacóes do homem moderno com o mito.

1. O conteúdo do artigo

1. O artigo «Procura-se Deus vivo ou morto» apresenta


afirmagóes, por vézes, superficiais e infundadas.
Supóe que a forma inicial da reiigiáo no mundo tenha sido
a forma politeísta e mitológica: os homens, ignorantes como
eram, atribuíam valor sagrado ou sobrenatural aos fenómenos
da natureza; adoravam os astros e as fórgas do cosmos, pro
curando justificar ésse culto mediante a narrativa de mitos
ou fábulas (historias maravilhosas em que intervinham seres
sobrenaturais)i
Com ps progressos da ciencia e da técnica, o homem terá
descoberto a verdadeira explicagáo dos fenómenos que ele
outrora tentava elucidar mediante mitos. Em conseqüéncia,
o cidadáo contemporáneo se liberta dos mitos; verifica-se um
processo inverso ao dos séculos anteriores: «Nao há mais sa-
cralizagáo do profano e, sim, profanizagüo do sagrado. A éste
fenómeno dá-se atualmente o nome de secularizacáo» (artigo
cit., pág. 65). Permanece aínda em nossos dias a Reiigiáo,
mas ela deve ser mais e mais secularizada — o que quer dizer:
deve colocar-se a servico do homem, contribuindo para a me-
lhora de condicóes da vida humana neste século XX:

«... O mundo possui um valor próprio, urna autonomia, ... a


Ig,reja é a sua serva... A reiigiáo secularizada dá á humanidade um
sentido de vida sem o qual nao vale a pena ser vivida» (art. cit.,
pág. 65).

A autora do artigo, para comprovar a tese de que «a nova


reiigiáo tem que se dedicar ao mundo», cita urna serie de

— 138 —
«PROCURA-SE DEUS VIVO OU MORTO» 3

estudiosos protestantes, arautos diretos ou indiretos da cha


mada «teología da morte de Deus»: Paúl van Burén, Hamilton,
Altizer, Harvey Cox, Dietrich Bonhoeffer, Bultmann...
Ésses pensadores apregoam a dessacralizagáo do Cristia
nismo nos seguintes termos: é inútil, ou mesmo impossível,
falar de Deus. ao homem moderno; por conseguinte, importa
que o Cristianismo se cale a respeito dos vaióres sobrenaturais
e se empenhe, com as demais instituigóes déste mundo, pela
construgáo de urna sociedade mais humana e feliz.

«Já se falou muito em Deus em termos de mito e de metafísica.


Agora é tempo de íazé-lo em termos políticos. A missáo do cristáo é,
portanto, inteiramente revolucionaria: libertar o homem de seu cati-
veiro político, social e económico, eliminar as tensóes raciais, o do
minio dos desenvolvidos s5bre os subdesenvolvidos» (art. cit., pág. 67).
«A tendencia atual de todas as religióes é o caminho para as lutas
de libertacao do .homem. É o caminho que estáo encontrando para dar
um sentido de vida ao mundo tecnológico e permitir-lhe a sobreviven
cia» (art. cit., pág. 68).

A autora termina seu artigo, observando que a Religiáo,


transformada como tem sido, desperta grande interésse em
nossos dias; embora se fale da morte de Deus, os homens
procuram a Deus... vivo ou morto!

Eis, em grandes linhas, o conteúdo do artigo citado.


2. Que dizer?

a) Inegávelmente as páginas citadas sao ambiguas.


Antes do mais, observe-se que, segundo abalizados etnó
logos contemporáneos, a forma primitiva da Religiáo nao é
o politeísmo com suas formas de culto mágicas e orgiásticas,
mas r o monoteísmo: quanto mais simples é a civilizagáo de
unía tribo, tanto mais puras sao as suas crengas religiosas;
reconhece um só Deus, Criador, Pai providente, Remunera-
dor... — Á medida, porém, que o homem progride na civi
lizagáo e percebe sua dependencia em relagáo ao Sol, á Térra,
á vegetagáo, etc., tende a endeusar ésses elementos, caindo
no politeísmo e na magia. Por conseguinte, pode-se dizer que
o monoteísmo contemporáneo nao é forma tardía de Religiáo,
mas corresponde as mais antigás expressóes religiosas da
humanidade.

Tenha-se em vista Wilhelm Schmidt, «Ursprung der Gottesidee.


Eine historisch-kritische und positive Studie». Münster bei Wien 6
vol., 1912-1954.

— 139 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 1

Silenciar tal tese em artigo de Enciclopedia denota espi


rito pouco científico ou mesmo irresponsável.
b) A autora do artigo «Procura-se Deus vivo ou morto»,
por quanto diz através de suas páginas, nao se opóe á Reli
giáo; ao contrario, pretende valorizá-la. Valoriza-a, porém, na
medida em que a Religiáo se torna secular, dessacralizada,
mera servidora dos interésses horizontais da humanidade. Ora
as influencias horizontais ou sócio-económicas nao oonstituem
o que há de mais característico e valioso na Religiáo. Esta,
auténticamente compreendida, é, antes do mais, relaciona-
mento com Deus; déste relacionamento, intensamente vivido
pelos cristáos, é que deve decorrer a ac.áo temporal dos mes-
mos. Nunca se deveráo confundir Religiáo e Política.
«O mundo possui autonomía e a Igreja é sua serva». Tais
palavras da articulista sao ambiguas. A autonomia do mundo
é multo relativa; consiste em que as ciencias e as técnicas se
desenvolvem a partir de principios próprios (científicos), nao
a partir de livros sagrados e de atos de culto; nao existe urna
matemática religiosa, urna física crista, urna química sagra
da... Isto, porém, nao quer dizer que o mundo tenha seu
sentido ou sua finalidade em si mesmo ou que baste para tor
nar o homem feliz. O mundo e o homem sao destinados essen-
cialmente a se encaminhar para Deus; em última análise, só
se explicam e justificam á luz de Deus. A Igreja foi instituida
pelo Senhor para apontar aos homens o caminho que os leva
ao seu Supremo Fim e para dar-lhes os meios de o conseguir;
Ela nao é serva do mundo como se estivesse subordinada aos
interésses materiais do mundo e dos homens; Ela tem urna
missáo que transcende tais interésses; só pode ser entendida
como serva na medida em que o Senhor Jesús quis ser ser
vidor, ou na medida em que urna MSe e Mestra é servidora.
Quanto á dessacralizagáo, o Cristianismo a admite na
medida em que significa despojar-se de falsa sacralizagáo ou
de crendices e superstigóes. Nao pode aceitar, porém, o despo-
jamento de sua dimensáo própriamente religiosa ou sobre
natural. A propósito já foram publicados artigos em «P.R.»
99/1968, pág. 101-110; 109/1969, pág. 1-9; 111/1969, página
101-110.
Ñas páginas que se seguem, comentaremos o artigo «Pro
cura-se Deus vivo ou morto», abordando as relagoes entre
mito (sabedoria primitiva, pensamento arcaico) e razáo, (pen-
samento do homem moderno). Quem propugna ser necessário
que a mensagem crista silencie Deus e os valores sobrenatu-
rais, para falar apenas de política e sociología, está prestando

— 140 —
«PROCURA-SE DEUS VIVO OU MORTO»

mau servigo ao homem moderno; com efeito, nao está levando


em conta recentes estudos sobre o mito e o homem contem
poráneo. É o resultado désses estudos, efetuados principal
mente pelo historiador rumeno Mircea Eliade, que abaixo
proporemos.

As principáis obras de Mircea Eliade (traduzidas, alias, para varias


linguas) sao
«Aspects du mythe». Gallimard (1963)
«Das Heilige und das Profane. Vom Wesen des Religiosen». Ham-
burg (1957)
«Traite d'Histoire des Religions» (1957)
«Techniche della Yoga» (1948)
«Lo sciamanismo» (1951)

2. Que é um mito ?
1. Durante muito tempo o mito foi tido pelos estudiosos
como fábula ou lenda que só podia merecer o menosprézo
do homem culto. Todavía nos últimos sessenta anos os histo
riadores tém verificado que o mito tem significado profundo
no plano filosófico e psicológico: é, sim, urna historia imagi
nada que, por meio de símbolos, pretende exprimir urna meh-
sagem; é um modo de ver e explicar os fenómenos que inter-
pelam todo homem neste mundo.

2. Mediante o mito, o homem antigo relacionava a vida


presente e suas ocorréncias ora mais, ora menos misteriosas
(nascimento, alimentacáo, trabalho, casamento, morte...)
com um mundo sobrenatural; professava que as realidades
terrestres nao se explicam por si, mas estáo na dependencia
de valores maiores^ sem os quais a vida presente nao teria
sentido.
«Em suma, os mitos revelam que o mundo, o homem e a vida tém
origem e historia sobrenatural e que essa historia é significativa,
preciosa e exemplar» (Mircea Eliade, «Aspects du mythe», pág. 31).

3. Assim, por exemplo, nos mitos se exprimem (em


linguagem simbólica, como se compreende)
— o desejo que o homem tinha (e tem) de se libertar
das angustias e insuficiencias da vida presente,... das limi-
tagóes acarretadas pela doenga e pela morte;
— a aspiragáo a urna vida melhor, vida melhor que pode
ser o retorno a um estado inicial de bonanga ou a urna idade
de ouro;

— 141 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 1

— a expectativa de um Salvador, que destrua a presente


ordem de coisas e proporcione melhores dias;
— a esperanga de fugir do tempo presente, que é aca-
brunhador, para penetrar em urna era mais feliz.. .
Vejamos agora a sorte que toca aos mitos na sociedade
contemporánea.

3. Mito anfigo e mentalldade moderna

1. O homem moderno consegue explicar por teorías ci


entíficas muitos dos fenómenos que os antigos julgavam dever
elucidar por recurso direto ao sobrenatural. Compreende-se
entáo que o estudioso de nossos dias seja levado a rejeitar a
mentalidade mítica dos antigos. Verifica-se, porém, que tal
rejeigáo global vem a ser um erro: é certo que nao se podem
aceitar, como tais, as explicagóes fantasistas fornecidas pelos
mitos no tocante á origem do mundo, do homem, da veste,
da morte, do casamento, etc. Todavía nao é menos certo que
os mitos exprimem estruturas do pensamento humano, estru-
turas indeléveis, que caracterizam tanto o homem antigo como
o racionalista de nosso século.

Mais precisamente, essas estruturas sao:


— o senso do misterio, a consciéncia de que há urna rea-
lidade transcendental, sobrenatural, sem a qual a vida humana
nao se explicaría. É a Religiáo que póe o ser humano em con
tato com essa realidade sobrenatural; por isto a Religiáo tem
papel capital na vida do homem;
— o senso do simbolismo ou das expressóes em imagem.
O homem nao consegue desvencilhar-se de símbolos, desde que
ele queira aludir as grandes realidades da vida; as categorías
do pensamento racional sao exiguas demais para exprimir o
transcendental ou o misterio da vida. O símbolo, dizendo algo
e insinuando o restante, constituí a melhor maneira de apontar
o Inefável. Nem no século XX o homem se dispensa de recorrer
a imagens.
A consciéncia, implícita ou explícita, destas verdades é,
como foi dito ácima, inerente á mente humana como tal.

2. Expliquemo-nos ainda melhor: o homem antigo é


considerado «o homem religioso» (homo religiosus). Ca-
racterizava-se por crer que existe urna realidade absoluta,

— 142 —
«PROCURA-SE DEUS VIVO OU MORTO»

o Sagrado, a qual transcende éste mundo e se manifes-ta no


cotidiano da vida humana.

O homem moderno rejeita as expressóes religiosas (sim


ples e rudes) dos antígos e, com elas, rejeita geralmente a
própria Religiáo; pretende ser arreligioso («homo areligiosus»,
sem religiáo). Conseqüentemente, o cidadáo náo-religioso assu-
me, diante da vida, urna posigáo nova: considera-se sujeito e
ator principal da historia, recusando qualquer apelo ao trans
cendental; o homem arreligioso realiza-se, desvinculando-se do
sagrado; tornar-se-á ele mesmo no momento em que conseguir
emancipar-se de todo mito e de toda sacralidade.

Acontece, porém, que essa mentalidade é puramente teó


rica; a realidade prática a desmente. Com efeito, o homem
náo-religioso de nossos dias é herdeiro dos seus antepassados
religiosos — o que quer dizer: é herdeiro do senso do misterio-
e da abertura para o transcendental que caracterizavam os
antígos e que sao elementos constitutivos do ser humano; as
estruturas e atitudes religiosas aparecem no homem náo-
-religioso moderno como no homem antigo, apenas com a dife-
renga de que perderam seu título religioso. Sem o saber, o
homem náo-religioso de nossos tempos é obcecado pelas rea
lidades religiosas que ele nega.

Observa Mircea Eliade:

«Como já dissemos, o homem totalmente arreligioso é fenómeno


raro, mesmo na mais dessacralizada sociedade moderna. A maioria
dos que nao tém religiáo comporta-se ainda religiosamente, embora
disto nao tenha consciéncia» («Das Heilige und das Profane», pá
gina 121).
«A grande maioria dos 'sem religiáo' nao está realmente emanci
pada de comportamentos religiosos, de teologías e de mitologias. As
vézes, carregam urna embaracosa bagagem mágico-religiosa, defor
mada até quase a caricatura e, por isto difícil de ser identificada»
(ib., pág. 122).
«Poder-se-ia escrever um livro inteiro sobre os mitos do jiomem
moderno, sobre as mitologias camufladas nos espetáculos que ele pre-
fere, nos livros que ele lé» (ib., pág. 121).

3. Perguntamo-nos, pois: quais seriam os principáis mi


tos ou as grandes manífestagoes míticas do século XX?

Abaixo seráo propostas algumas dessas manifestagóes; tém


aparéncia dessacralizada, secularizada, mas, em última análise,
revelam a mesma estrutura religiosa que se revelava nos mitos
antígos.

— 143 —
8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 1

a) A literatura moderna, com seus romances (e, de modo


especial, seus romances policiais), é um substitutivo dos mitos
antigos. Gom efeito, nesses romances revivem as figuras mí
ticas do Herói (= o Detective) e do Criminoso (= encarna*-
cao moderna do Demonio ou do Monstro antigo), a luta entre
o Bem e o Mal. Por um processo inconsciente de identificagáo,
o leitor do romance policial participa do drama que lé; tem
a impressáo de ser envolvido numa agáo que vem a ser para
digma,. .. agáo perigosa e heroica.

A leitura de romances (policiais ou n,áo) torna-se fre-


qüentemente, para o homem moderno, urna «fuga do tempo»
semelhante á que almejavam os homens antigos celebrando
os seus mitos* Sim, a leitura tem, muitas vezes, por efeito
permitir ao homem de hoje que saia do seu tempo (tempo
penoso, em que o individuo é obrigado a trabalhar dolorosa-
mente) para viver urna outra «historia», com outros ritmos...

b) Os meios de oomunicacáo de massa ou «mass-


-media»... Recentes pesquisas puseram em evidencia as es-
truturas míticas das imagens ou dos comportamentos que o
radio, o cinema e a televisáo propóem ao respectivo público.
É principalmente nos E.U.A. que isto se verifica: os perso-
nagens dos «comic strips» (fitas cómicas ou desenhos anima
dos) sao, muitas vézes, a versáo moderna dos heróis da
mitología ou do folclore. Correspondem de tal modo ao ideal
do público que eventuais retoques feitos pelos autores ao
comportamento habitual désses heróis provocam verdadeiras
crises entre os ouvintes ou espectadores; estes reagem violen
tamente, enviando milhares de telegramas aos redatores dos
«comic strips» e aos diretores de jomáis.

Nos E.U.A. um personagem fantástico, «Superman», tornou-se


extremamente popular em virtude da sua dupla identidade: caira
sobre a térra em conseqüéncia de urna catástrofe que fizera desapa
recer o seu planeta de origem; era dotado de poderes prodigiosos,
mas aqui na térra vivia sob as aparéncias modestas de um jornalista,
com o nome de Clark Kent; mostrava-se tímido, apagado, dominado
por sua colega, Lois Lañe. Essa camuflagem humilhantc de um heról
que gozava de poderes extraordinarios, nao é senáo urna nova forma
de tema bem conhecido na mitología. Em última análise, o mito do
«Superman» satifaz á nostalgia secreta do homem moderno que, sa-
bendo-se limitado e decaído, sonha com o dia em que se revelará
como «personagem excepcional» ou herói.
Eis outro exemplo interessante:
Lloyd Warner. em seu liv.ro «The Living and the Dead», descreve
como Biggy Muldoon se tornou personagem mítico por efeito dos
meios de comunicacao de massa. Na verdade, o radio e a imprensa
puseram-se a exaltar tal homem público como herói nacional e semi-

— 144 —
«PROCURA-SE DEUS VIVO OU MORTO»

-deus, atribuindo-lhe o papel de defensor do povo contra a aristocracia


de Hill Street. O público, parém, aos poucos deixou de se Interessar
por essa imagem. Entáo os mesmos meios de comunicacáo de massa
mudaram por completo a fisionomía do herói: Biggy foí apresentado
como político corrupto, que explorava a seu bel-prazer a miseria do
povo. — Warner mostra que o verdadeiro Biggy diferia considerável-
mente de urna e outra imagem; o íato, porém, é que o político se
deixou influenciar pelo tipo de propaganda que déle fez a imprensa
escrita e falada.

c) A obscssáo. do suoesso, muito característica da socie-


dade moderna, nao é senáo a expressáo do desejo que todo
homem tem, de transcender os limites da condigáo humana.
Ésse desejo, que outrora se exprimía em mitos declarados,
exprime-se hoje em dia em atitudes e cenas que lembram os
mitos.
Mircea Eliade evoca a propósito o sucesso que alguém
pode obter usando o mais moderno tipo de automóvel; em
conseqüéncia, existe o que se tem chamado «o culto do veículo
sagrado»:

«Basta visitar o saláo anual do automóvel para ai oreconhecer


urna manifestacáo religiosa profundamente ritualizada. As odres, as
luzes, a música, a reverencia dos adoradores, a presenga das sacer-
dotizas do templo (os manequins), a pompa e o luxo, o desperdicio
de dinheiro, a multidáo compacta — isso tudo constituiría, em outro
tipo de cultura, um oficio auténticamente litúrgico.... O culto do carro
sagrado tem os seus fiéis e os seus iniciados. O gnóstico outrora nao
esperava com mais impaciencia a revelado dos oráculos do que o
adorador do automóvel espera os primeiros rumores concernentes aos
novos modelos. É neste momento do ciclo das estacoes do ano que
os pontífices do culto — os vendedores de carros — tomam impor
tancia nova, ao mesmo tempo que urna multidáo ansiosa espera im
pacientemente a vinda de urna nova forma de salvacfio» (Andrew
Greeley «Myths, Symbols and Rituals in the Modern World», em
«The Critic», vol. XX, 1961/1962, n" 3, pág. 24).

Esta passagem tem seu sabor irónico. Todavía ela propóe


observagóes que parecem fiéis á realidade. Poder-se-iam apon-
tar outras solenidades ditas «civis», em que se manifestam
mística profunda e ardente senso religioso.
d) No setor da arte, os comerciantes de quadros e cole-
cionadores de museus verificaran! que o sucesso toca nao
mais as obras clássicas (de Rimbaud ou van Gogh, por exem-
plo), mas aos movimentos ¡novadores do impressionismo, do
subismo e do superrealismo. «Hoje como nunca, o artista pode
estar certo de que, quanto mais audacioso, iconoclasta, ab
surdo e inacessivel fór, mais será reconhecido, louvado, baju-
lado, idolatrado» (Mircea Eliade, «Aspects du mythe», página

— 145 —
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 1

226). Verifica-se assim, na arte, o triunfo da procura de no-


vidade ou da revolueáo permanente.
Tal fenómeno deve ter seu significado. Por que ocorre?
A fascinagáo pela incompreensibilidade das obras de arte
manifesta, em última análise, o desejo, existente no homem,
de descobrir um novo sentido do mundo e da existencia hu
mana, sentido secreto e misterioso; o público aspira a desco
brir um «novo mundo», novo mundo reservado apenas aos
iniciados ou aqueles que possuem uma nova gnose (nova
ciencia). — Ora essas mésmas categorías da alma humana
se manifestavam nos cultos dos mitos antigos.
e) O desejo de voltar as ojrigens ou aos primordios é
também uma das grandes notas que caracterizam a psicología
humana. Toda antiga celebracáo de mito visava precisamente
reviver o passado, tornando-o de novo presente, com alegría
e estímulo para o cultor do mito. — Ora algo de semelhante
se verifica em certos movimentos da sociedade moderna dessa-
cralizada:

A Revolucáo Francesa em 1789 tomou como paradigmas os Ro


manos e os Espartanos; os protagonistas dessa Revolucáo, que íoi o
fim de um ciclo histórico e deu origem a nov.a mentalidade social,
consideravam-se os restauradores das antigás virtudes exaltadas por
Tito Livio e Plutarco.
Os intelectual ruínenos dos séculos XVIII e XIX repetiam com
garbo: «Nossa origem está em Roma!» Aspiravam assim a participar
«místicamente» da grandeza de Roma.
De modo semelhante, no século XIX a «intelligentsLa» húngara
pretendía despertar no público a consciéncia da missáo histórica do
povo húngaro, lembrando com certa complacencia o mito concernente
á origem de Hunor e Magor, assim como a lenda heroica de Arpad.

Enfim, no inicio do século XIX, a miragem da «origem


nobre» incitava, nos povos da Europa central e sul-oriental,
urna auténtica paixáo pela respectiva historia nacional, prin
cipalmente pelas fases mais antigás dessa historia.
A paixáo pela «origem nobre» explica também o mito
racista do arianismo, que periódicamente reaparece no Oci-
dente, principalmente na Alemanha. O ancestral ario vem a
ser, em tal mito, o nobre herói e o modelo exemplar que as
novas geracóes devem imitar para recuperar a pureza racial,
a fórca física, a nobreza, a moral heroica dos «inicios» glo
riosos da raga.
f) O comunismo marxista apresenta também uma estru-
tura mitológica. Com efeito, Marx fez reviver um dos grandes

— 146 —
«PROCURA-SE DEUS VIVO OU MORTO 11

mitos escatológicos do mundo asiático mediterráneo, a saber,


o papel salvador do «Justo» (hoje em dia, o Proletariado),
cujos sofrimentos tém por efeito mudar a ordem de coisas no
mundo. «A sociedade sem classes de Marx e a conseqüente
extingáo das tensóes históricas tém o seu precedente mais
exato no mito da 'Idade de Ouro' que, segundo tradigñes múl
tiplas, caracteriza o comégo e o fím da historia» (Mircea
Eliade, «Mythes, réves et mystéres», pág. 20). Marx enrique-
ceu ésse mito, fundindo-o com um conjunto de proposigóes
judeo-cristás: assim ele atribuí ao proletariado um papel pro-
fético e urna funcáo soteriológica (salvífica); apregoa a luta
final entre o Bem e o Mal, que se assemelha ao conflito apo
calíptico entre o Cristo e o Anticristo; admite, com júdeus e
cristáos, o fim absoluto da Historia, isto é, o desaperecimento
definitivo de todos os desequilibrios sociais e a instauragáo de
um «homem novo» a viver num novo paraíso.

g) Note-se ainda o pulular crescente, neste sáculo XX,


de seitas religiosas, algumas das quais sao exuberantes em
suas manifestagóes; prometem iseagáo ou superagáo de doen-
cas e afligóes, contato com um mundo invisível, mensagens
consoladoras, etc.; o seu modo de exprimir-se, as vézes, tem
grande afinidade com o dos antigos mitos.
Muitos outros remanescéntes da mentalidade mitológica
se encontram na sociedade contemporánea. Alias, já um breve
catálogo désses foi publicado em «P.R.» 99/1968, pág. 98-100.
As consideragóes até aqui propostas evidenciam que nao
se deve estabelecer rígida oposigáo entre a mentalidade do
homem antigo e a do moderno. A Religiáo é um valor perene
correspondente !á íntima constituigáo do ser humano, de modo
que em pleno século de racionalismo, querendo esquecer os
valores religiosos, o homem arreligioso os exprime com o
mesmo vigor que o homem religioso de outrora.
Nao é a fé que deve ser cancelada da cultura do homem
moderno. Mas o que hoje se pede do cristáo, é que exprima
a sua fé de maneira adulta, inspirada pela Biblia Sagrada,
libertando-se assim de nogóes religiosas infantis.

— 147
12 «PERGUNTE É RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 2

II. BÍBLIA SAGRADA

2) «Gomo se conciliam as narrativas dos Evangelistas e


de Sao Paulo a respeita da ressurreicüo de Cristo?
Parecem contraditórias entre si. Supoem fatos históricos
ou trabalho de fantasía?»

Resumo da resposta: Os Evangelistas nao sao estritamente con


cordes entre si ao descrever as aparicóes de Jesús ressuscitado:
S. Mateus se refere a urna única manifestacáo, ocarrida na Galiléia,
sem cronología; Lucas reúne todas as aparic,oes no dia de Páscoa e
em Jerusalém; Sao Joáo parece conciliar as duas tradicSes (a da
Galiléia e a de Jerusalém ou da Judéia). Sao Paulo e Sao Marcos,
por sua vez, relatam. do seu modo, a serie dos acontecimentos con-
cernentes a ressur.reicáo do Senhor. Dai a dúvida sobre a veracidade
dos relatos e da própria ressurreicao de Cristo.

Para dirimir a questáo, observe-se:


1) Os antigos cristáos professavam firmemente a fé na ressur-
reigáo de Jesús. Para éles, esta constituía um tema essencial da pre-
gacáo evangélica desde o seu primeiro dia. É o que se depreende de
numerosos testemunhos do Novo Testamento citados no corpo déste
artigo.
. '2) Os Apostólos, que apregoavam ¡a ressurreicao, nao era im
postores, como reconhecem os críticos.
3) Também nao eram alucinados ou sonhadores. pois nao se
achavam, após a morte de Jesús, em condicóes psicológicas necessá-
rias á alucinacao. Abatidos, estavam prestes a admitir o fim da obra
de Jesús, e nao a sobrevivencia do Senhor.
4) Disto se segué que os Apostólos passaram a anunciar a res-
surreigáo de Jesús porque esta foi um fato real, que se lhes impós
com toda a evidencia.
5) A disparidade das narrativas do Nldvo Testamento referentes
á ressurreújáo do Senhor explica-se pelo fato de que os Evangelistas
nao tiveram a intencáo de íazer crónica no sentido moderno; esco-
Iheram simplesmente alguns dos relatos que se achavam na tradicáo
oral dos prlmeiros cristáos. e os consignaran! nos seus Evangelhos.
Ésses relatos que supunham fatos Veáis, for.am adaptados ao estilo
e ao escopo catequético próprios de cada Evangelista; foram esque
matizados Daí a dissonáncia acidental dos autores sagrados. Se estes
tivessem inventado as narrativas, td-las-iam inventado com harmonía,
a fim de evitar qualquer suspeita da parte dos leitores ou dos críti
cos. Mais urna vez, pode-se dteer: nao é assim que se inventa!...

X —

Resposta: Os diversos relatos do Novo Testamento con-


cementes á ressurreicáo e as aparicóes do Senhor, por pare-
cerem desconexos entre si, sempre foram objeto de grande
interésse da parte dos cristáos e dos críticos, os quais tém
proposto as mais variadas sentengas a respeito.

— 148 —
A RESSURREICAO DE JESÚS NOS EVANGELHOS 13

As páginas seguintes apresentaráo: 1) o problema; 2) o


fato da ressurreigáo; 3) a explicagáo da disparidade.

1. O problema

Eis as linhas gerais das narrativas dos quatro Evangelhos


referentes a Jesús Ressuscitado:

Me 10 Mt 28 Le 24 Jo 20

1-7: mulheres Jun 1-8: mulheres e 1-8: mulheres: Jun 1: Madalena


to ao túmulo guardas Jun to ao túmulo Junto ao tú-
vazio to ao túmulo vazlo mulo vazlo

8: calam-se 9-11: proclamam a 2: proclama a


Grande Noti noticia,
cia

12: Pedro verifica 3-10: Pedro e Jo&o


veriíieam

9-11: Madalena vé 9-10: véem Jesús 11-18: Madalena


Jesús vé Jesús

11-15: os guardas e
os Judeus se
ontendem

12-13: os dois dis 13-35: os dols dis


cípulos de cípulos de
Emaús véem Emaiis véem
Jesús

14: os onze véem 36-43: os discípulos 19-23: os discípulos


Jesús véem Jesús véem Jesús

24-21: Tomé, olto


días depols,
vé Jes,us

30: Conclus&o de
Jo&o

Jo 21

1-23: Jesús apare


ce Junto ao
mar

24-25: ConclusSodos
discípulos de
Jo&o

— 149 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 2

Mo 16 Mt 28 1,0 24 Jo 21

16-17: Jesús aparece


ruma mon
tanha da Ga-
Jlléla

15-18: grande mis- 18-20: grande mis-


sao confiada sao confiada
aos discípulos aos discípulos

44-49: Instrucdes e
mlssao

19: ascons&o de 50-51: ascensáo de


Jesús Jesús

20: partida e 52-53: alegría e ora-


pregac&o dos cao dos dls-
dlscipulos clpulos

Como se vé, os Evangelistas referem aparigóes de Jesús


tanto em Jerusalém (ou na Judéia) como na Galiléia. Algumas
dessas aparigóes sao acompanhadas de indicacáo precisa de
data, outras nao. Com efeito,

— S. Mateus só refere urna manifestacáo de Jesús


aos Apostólos, situando-a sobre urna montanha da Galiléia,
sem cronología (cf. Mt 28,7.10.16).

— Em Me 16,7, é anunciada urna aparigáo de Jesús


aos discípulos na Galiléia. Todavía essa aparigáo é descrita
nos w. 14-18 sem indicacáo de lugar nem de data. Segundo
Mt 28,16, os discípulos estavam sobre urna montanha, ao passo
que, segundo Me 16,14, estavam sentados á mesa. Além disto,
Me relata mamfestagóes de Jesús a María Madalena e aos
discípulos de Emaús (w. 9-13), ocorridas provávelmente na
Judéia.

— S. Lucas reúne todas as aparicóes no dia de Pás-


coa e em Jerusalém (cf. Le 24, 1-53).

— S. Joáo, no capitulo 20, distribuí as manifestagóes


do Senhor no decorer.de, urna semana, tend'o como cenário a
cidade de Jerusalém. ' '••'.; , ,,-.-,. . ' x
No capitulo 21, Joád refere.'.ojjú'aaparicáo, ocorrida na
Galiléia, sem indicagáo cronológica. Destarte o quarto Evan-
gelho reúne as duas tradigóes: a da Judéia e a da Galiléia.
O capítulo 21 de Jo é tido como apéndice do quarto Evan-
gelho e por alguns estudiosos atribuido a discípulos de Sao

— 150 —
A RESSURREICAO DE JESÚS NOS EVANGELHOS 15

Joáo (o que nao quer dizer, nao seja parte canónica e fide
digna do livro de S. Joáo).
No livro dos Atos tíos Apostólos, S. Lucas faz mencáo
de repetidas manifestagóes de Jesús durante quarenta días
(cf. At 1,3). O seu quadro geográfico parece ter sido Jeru-
salém.
Além déstes textos existe, sobre o assunto, importante
passagem de Sao Paulo, cuja redagáo é mais antiga do que .a
dos Evangelhos:

«Fago-vos conhecer, irmáos, o Evangelho que vos preguei, o mes-


mo que vos recebestes e no qual permanecéis firmes. Por ele também
seréis salvos, se o conservardes tal como vo-lo preguei... a menos
que nao tenha fundamento a vossa íé.
Transmiti-vos, antes de tudo, aquilo que eu mesmo recebi, a saber,
que Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras, e que
íoi sepultado e que ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escritu
ras, e que apareceu a Cefas, depois aos doze. Posteriormente apareceu
de urna vez a mais de quinhentos irmáos, dos quais a maior parte
vive até hoje, alguns, porém, já morrenam. Depois apareceu a Tiago
e, em seguida, a. todos os Apostólos. Por fim, depois de todos, apare
ceu também a mim como a um abortivo» (1 Cor 15, 1-8).

Que dizer désses relatos pouco convergentes entre si? Que


mensagem podem transmitir?

2. O fafo da ressurrei;oo

Procuremos dispor o nosso raciocinio por etapas.


1) Antes do mais, deve-se observar que a leitura atenta
dos livros do Novo Testamento atesta o seguinte:
Os antigos cristáos, embora relatassem de diversos modos
as ocorréncias, professavam firmemente a fé na ressurreigáo
do Senhor Jesús. Com efeito, esta nao pode ser considerada
como elemento tardío, que se tenha introduzido paulatina
mente na consdéncia ou na mensagem dos cristáos, mas cons
tituí um tema essencial da pregagáo evangélica desde o seu
primeiro dia... Em suma, o fato da ressurreigáo de Jesús
parece nao ter padecido a mínima dúvida na mente da pri-
meira geragá© crista.
É o que se depreende com sobriedade e seguranga de al
guns textos do Novo Testamento que referem o teor da pre
gagáo crista nos seus tres primeiros decenios.
a) No texto de 1 Cor 15 (atrás proposto), escrito por
volta de 56/57, o Apostólo declara ter recebido ele mesmo a

— 151 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 2

mensagem da ressurreigáo; e exprime-a sob a forma de urna


profissáo de fé que parece já ter sido tradicional e estereoti
pada em 56 d. C. Pouco depois de se ter convertido em 36,
Sao Paulo terá recebido essa fórmula de fé (já entáo lavrada)
da parte dos outros Apostólos ou das testemunhas oculares
do Senhor ressuscitado e de suas aparigóes.

Assim o texto de Sao Paulo, em 1 Cor 15, póe o leitor


em contato vivo com a fé dos. cristáos dos anos de 36/40; é o
eco do primeiro decenio da pregagáo crista. E note-se: Sao
Paulo apoia a afirmagáo da Ressurreigáo sobre o testemunho
dos Apostólos e dos fliscípulos da Palestina; indica, pois, teste
munhas humanas contemporáneas aos corintios, que poderiam
ser consultadas pelos interessados.
Nao nos detemos ulteriormente sobre esta passagm, por
que já foi minuciosamente estudada em «P.R.» 93/1967, pá
gina 381s.
b) Outro texto importante é o de 1 Tes 4,14, que data
do ano de 51. Sao Paulo ai (ou seja, desde a primeira carta
que escreveu) apresenta a fé na ressurreigáo de Cristo como
fonte de salvagáo e primicias da ressurreigáo de todos os ho-
mens: «Pois que, como eremos, Jesús morreu e ressuscitou,
assim temos certeza de que Deus levará com Jesús aqueles
que morreram unidos a Ele».
c) Tenha-se em vista também a passagem de Rom 10,9»
que data do ano de 58: «Se teus labios confessam que Jesús é
Senhor e se teu coragáo eré que Deus O ressuscitou dos mor-
tos, serás salvo».
d) O livro dos Atos dos Apostólos refere resumos da
pregagáo primitiva dos Apostólos, em que constantemente
volta a afirmacáo de que Jesús ressuscitou. Os Apostólos nao
anunciavam o Evangelho sem referir insistentemente a vitória
do Senhor sobre a morte. Alias, conforme At 2,21s, «ser Apos
tólo» nao é sénáo «ser testemunha da ressurreigáo de Cristo».
É esta a primeira e principal verdade do Evangelho segundo
a tradigáo inicial da Igreja:

«É preciso que, dentre estes homens que nos acompanharam du


rante todo o tempo em que o Senhor Jesús conviveu conosco, ... um
seja incluido em nosso número, como testemunha da sua ressurreicao».

Tenham-se em vista aínda os seguintes textos:


Pedro em At 2,23s: «(Jesús) vos foi entregue, e vos o
matastes, crucificando-0 pelas máos dos impíos. Mas Deus O
ressuscitou, desatando os lagos da morte.. .».

— 152 —
A RESSURREIC&O DE JESÚS NOS EVANGELHOS 17

Pedro em At 3,15: «Matastes o Príncipe da vida, mas


Deus O ressuscitou dos mortos» Disto nos somos testemunhas».
Pedro em At 4,10: «... Jesús de Nazaré, que vos cruci-
ficastes e a quem Deus ressuscitou dos mortos».

At 4,33: «Com grande vigor os Apostólos davam teste-


munho da ressurreigáo do Senhor Jesús, e grande era a estima
de que gozavam todos éles».
Pedro em At 5, 30: «Foi o Deus de nossos país que res
suscitou a Jesús, a quem vos matastes, suspendendo-0 em um
madeiro».
Pedro em At 10,40: «Deus O ressuscitou ao terceiro dia
e permitiu-Lhe aparecer de modo visível, nao a todo o povo,
mas as testemunhas antes escolhidas por Deus».
Sao Paulo em At 13,29s: «Depois de cumprirem tudo que
a respeito déle fóra escrito, desceram-no do madeiro e O colo-
caram no sepulcro. Mas Deus O ressuscitou dos mortos».
Paulo, em At 17,3: «... explicava e comprovava que o
Cristo devia sofrer e ressuscitar dos mortos».
Paulo em At 17,31: «Éste homem (Jesús), Deus O tornou
digno do crédito de .todos, ressuscitando-0 dentre os mortos».
Paulo em At 26,22: «Nada ensino fora daquilo que os
profetas e Moisés declararam que havia de acontecer, isto é,
que o Cristo devia sofrer, que seria o primeiro a ressuscitar
dentre os mortos e anunciaría a luz ao povo de Israel e aos
gentíos».
Os críticos aceitam a fidelidade de tais resumos da an-
tiga pregagáo dos Apostólos; S. Lucas, na base de fontes e
testemunhos diligentemente consultados, terá redigido autén
ticamente tais compendios dos dizeres dos Apostólos.

e) Em Ef 1,18-20, por volta de 62, S. Paulo escrevia:

«Ilumine (Deus) os olhos do vosso coracáo, para compreenderdes


qual é a esperarla a que fóstes chamados, que tesouros de gloria
encerra a heranca por Ele destinada aos santos e qual é, para nos que
eremos, a incomparável grandeza de seu poder, atestado pela eficacia
de sua fdrea vitoriosa. Esta fórca. Ele a manifestou em Cristo, quando
O ressuscitou dentre os mortos e O iez assentar á sua direita no céu».

2) Em segundo lugar, observe-se: pode-se afastar a hi-


pótese de que os Apostólos tenham conscientemente cometido
alguma impostura. Para os historiadores honestos, a fé e a
boa fé da primeira geracáo crista sao algo de incontestável

— 153 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 2

3) Pergunta-se, porém: Essa fé da primeira geracáo


crista na ressúrreigáo de Jesús terá tido fundamento real?
Em resposta, diga-se: como notamos atrás, a fé na res-
surreigao de Cristo nao se aprésente como fruto de longa
evolucáo espiritual das comunidades cristas; é, antes, a peca
fundamental entre as mais antigás tradigóes evangélicas. Nao
se pode dizer que paulatinamente os fiéis, recordando-se de
Jesús e meditando as suas palavras, tenham transformado
suas recordagóes em culto e em adoragáo ao Senhor ressus-
títado. Ao contrario, a fé na ressúrreigáo de Cristo é ponto
de partida da pregagáo; foi em fungáo déla que os primeiros
cristáos compreenderam as verdadeiras dimensoes da Paixáo
e dos anteriores ensinamentos do Senhor Jesús.
Entáo, se a fé na ressúrreigáo de Cristo é primitiva (ori
ginaria), como nasceu ela?
— Tem-se dito clássicamente: ... nasceu do fato mesmo
de que Cristo ressuscitou. Afastemos, porém, esta explicagáo
e aventemos outra, a saber:
A fé na ressúrreigáo de Cristo tem origem numa ilusáo
ou alucinagáo dos Apostólos. Desejosos como estavam de ver
Jesús ressuscitado, imaginaram, e puseram-se a apregoar, que
Ele de fato havia ressurgido dos mortos.
Tal hipótese nao resiste a exame serio. Os Apostólos nao
se achavam ñas disposigóes psicológicas necessárias a tal alu
cinagáo. Profundamente abalados pela condenagáo do Mestre,
fugiram todos, exceto Joáo. Quando Jesús lhes apareceu após
a morte, duvidaram e hesitaram longamente diante do que
viam: 4 ^1
«Perturbados e apavarados, julgavam estar vendo um espirito»
(Le 24,37).
«Como ainda assim nao acreditassem, mas se enchessem de
admiracao, disse-lhes Jesús: 'Tendes aqui alguma coisa de comer?'»
(Le 24,41).

Sao Tomé recusou-se veementemente a aceitar a noticia


de que Jesús ressuscitara (cf. Jo 20,35).
María Madalena, ao encontrar o sepulcro vazio, estava
longe de imaginar a ressúrreigáo de Cristo; julgou, antes, que
o corpo fóra arrebatado: «Senhor (disse ela a um presumido
jardineiro), se tu o tiraste, dize-me onde o colocaste. Irei
buscá-lo» (Jo 20,15).
O desánimo se explica pelo fato de que os discípulos de
Jesús nutriam conceito assaz político do Reino messianico; a

— 154 —
A RESSURREICÁO DE JESÚS NOS EVANGELHOS 19

morte de Jesús na cruz havia sido terrível desmentido para


as suas esperanzas. Daí, sem dúvida, a incredulidade diante
das primeiras manifestagóes do Ressuscitado. Assim, por exem-
plo, oonfessaram os discípulos de Emaús:

«Jesús de Nazaré... foi profeta poderoso, em obras e em pala-


vras, diante de Deus e diante de todo o povo. Os Sumos Sacerdotes
e os nossos magistrados O entregaram para ser condenado á morte e
O crucificaram. Nos esperábamos que Ele fósse o Libertador de Israel.
Agora, porém, além de tudo já faz tres dias que se passanam estas
coisas» (Le 24, 19-21).

Pode-se, pois, concluir: se em tais condigóes de ánimo os


Apostólos e discípulos passaram a acreditar na ressurreicáo
de Jesús, a sua adesáo só se pode explicar porque realmente
se lhes impós a evidencia de tal acontecimento.
Ademáis note-se: nunca na historia se observaram aluci-
nagóes coletivas tais que individuos diversos tenham tido ao
mesmo tempo o mesmo «sonho». Também nunca se verificou
na historia que homens delirantes tenham efetuado a obra
maravilhosa que os Apostólos realizaram; com efeito, estes
desencadearam a maior revolugáo moral e espiritual que a
historia tenha registrado, sem fanatismo nem exageros, mas
com equilibrio, constancia e extraordinaria firmeza de ánimo.
Tais consideragóes dáo a ver que a teoría da alucinagáo
dos Apostólos se defronta com dificuldades insuperáveis.
A título de complemento elucidativo, observe-se:
Faz-se mister distinguir entre «alucinagáo» e «ilusáo». A
alucinagáo é urna percepgáo puramente subjetiva, á qual nao
corresponde objeto algum fora do sujeito. A ilusáo, ao con
trario, supóe um objeto colocado fora do sujeito, objeto, porém,
mal captado ou apreendido pelo sujeito.
Conhecem-se ilusoes coletivas. Sirva de exemplo o caso
seguinte: certa vez, um grupo de marinheiros de um navio
inglés viu flutuar sobre as aguas do mar um destrocó de
madeira; os marujos julgaram que se tratava do cadáver de
um seu companheiro falecido poucos dias antes e atirado ao
mar. Descreveram com vivacidade o que viram a outros com-
panheiros, os quais, acorrendo ao lugar, julgaram igualmente
estar vendo um cadáver. Aproximaram-se entáo todos do ob
jeto, e verificaram que se haviam engañado, pois se tratava
apenas de um pedago de madeira.
Nao se conhecem, porém, alucinagóes coletivas, ou seja,
casos em que muitas pessoas simultáneamente tenham o mesmo
«sonho» (... mero «sonho»!).

— 155 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 2

Existem, sim, epidemias alucinatórias: urna pessoa «sonha»


e conta seu sonho a outras, psicológicamente dispostas a «so-
nhar»... Tais outras entáo podem ter o mesmo sonho, por
influencia dó «sonho» ou da alucinagáo da primeira! Tal, po-
rém, nao foi o caso dos Apostólos, que, conforme o Evangelho,
viram, reunidos em grupo, o Senhor Jesús.
4) Em quarto lugar, impóe-se ainda a seguinte conside-
racáo: o fato mesmo de que as narrativas concernentes as
aparigóes de Jesús sao desconexas entre si (quanto aos luga
res e as datas das manifestagóes do Ressuscitado) é sinal de
que tais relatos nao foram compostos tardíamente ou de ma-
neira artificial. Quem tivesse intencionado criar urna lenda,
haveria produzido relatos bem concatenados entre si, evitando
as discrepancias que se encontram no Evangelho e que pare-
cem depor contra a veracidade dos episodios. — Verifica-se
assim que as aparentes contradigóes entre os relatos da Res-
surreieáo, longe de ser argumentos contra a autenticidade dos
mesmos, confirmam a genuinidade désses relatos. Artistas
mentirosos teriam procurado fazer obra que nao despertasse
hesitagáo nos leitores.
Urna vez estabelecidas tais conclusóes, impóe-se de nova
forma a pergunta:

3. Como se explica entáo a dispartdade ?

1. Para elucidar a questáo, é preciso levar em conta


urna verdade solene na exegese dos Evangelhos: os Evange
listas nao quiseram fazer reportagens ou crónicas no sentido
moderno da palavra; nao intencionaran! transmitir meras re-
cordacóes a respeito de Jesús, mas, sim, a lembranga de acon-
tecimentos portadores de mensagem religiosa.

2. Antes que os Evangelhos fóssem redigidos, relatavam-


-se entre os cristáos numerosas aparigóes de Jesús, ocorridas
tanto na Judéia como na Galiléia. Dentre ésse acervo de epi
sodios, os Evangelistas selecionaram apenas alguns (indepen-
dentes uns dos outros); a ésses episodios seletos deram a re-
dacáo e o estilo que melhor correpondiam á tendencia geral do
respectivo Evangelho. Simplificaram-nos, esquematizaram-nos,
a fim de que tais relatos melhor servissem á intengáo catequé-
tica de cada Evangelista. É o que se deduz de urna análise dos
respectivos textos:

— 156 —
A RESSURREICAO DE JESÚS NOS EVANGELHOS 21

Sao Mateus é o mais sistemático de todos os Evangelistas.


Generaliza suas afirmagóes ou redu-las a esquemas mnemo-
técnicos a fim de ser, tanto quanto possível, didático. Compre-
ende-se entáo que só tenha relatado urna aparigáo de Jesús
aos discípulos, ocorrida na Galiléia.

Sao Lucas faz da Cidade Santa de Jerusalém ó ponto de


referencia de todo o seu Evangelho. Com efeito, é em Jeru
salém que se abrem e encerram os capítulos da infancia de
Jesús (Zacarías no Templo, cf. Le 1,5; apresentagSo do Senhor
no Templo, cf. Le 2,22-40; encontró do Menino Jesús no
Templo, cf. Le 2,41-52). A partir de Le 9, 51, Jesús aparece
em marcha para Jerusalém; essa viagem é duas vézes enfati
zada pelo Evangelista (cf. Le 13,22; 17,11). Finalmente Jesús
morre na Cidade Santa, pois «nao convém que um profeta
perega fora de Jerusalém» (cf. Le 13,33). — Compreende-se
entáo que Lucas nao aprésente nenhuma das aparigóes de
Jesús verificadas na Galiléia; Jesús ressuscitado manda aos
discípulos aguardem o Espirito na Cidade Santa, pois é de
Jerusalém que, conforme o Evangelista, deve proceder a evan*
gelizagáo do mundo (cf. Le 24,49). De resto, o Evangelista
se completa no üvro dos Atos, onde diz que Jesús ressuscitado
apareceu aos discípulos durante quarenta dias (At 1,3), e nao
apenas no dia de Páscoa, como insinúa Le 24.
O Evangelho de Sao Joáo agrupa certos episodios em se
manas: assim as narrativas da Paixáo do Senhor (cf. Jo 12, 1)
e do inicio da vida pública de Jesús (cf. Jo 1,19-2,11). Con-
seqüentemente, entende-se que tenha também agrupado as
aparigóes do Senhor Ressuscitado em urna semana (cf. Jo
20,1-29). S. Joáo no c. 20 preferiu, como cenário, a Cidade
Santa; o próprio Evangelista ou seus discípulos (possiveis re-
datores do c. 21) completaran! ésses dados, referindo urna
aparigáo na Galiléia.
O c. 16 do Evangelho de Sao Marcos é provávelmente
obra de dois redatores. O relato de Marcos deve ter terminado
no v. 8; os w. 9-16, como se admite geralmente, sao de outro
discípulo, o qual acrescentou a mengáo de algumas aparigóes
cujo cenário geográfico e cuja data nao sao indicados (iulga-
-se que se refiram á Judéia; todavía o autor de Me 16,9-18
guardou silencio, talvez por respeito á mengá'o de Galiléia em
Me 16,7).

3. O exame atento dos textos dos quatro Evangelistas


leva os estudiosos a admitir entre éles urna concordia essen-
cial, ou seja, ñas grandes linhas da historia da ressurreigáo

— 157 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969. qu. 2

e das aparigóes de Jesús. Eis como abalizados comentadores,


sem pretender dizer a última palavra, tentam reconstituir a
serie dos acontecimentos:
Após a morte do Mestre, os Apostólos foram profunda
mente abalados em sua fé e se dispersaram.
Varios déles teráo voltado para a Galiléia (donde eram
originarios), fósse para retomar suas ocupagóes de pescadores
(tenha-se em vista Jo 21), fósse para rever os lugares em que
Jesús exercera seu ministerio público.
Aos poucos, porém, foram reavivando a sua fé. Para
tanto, ooncorreu o testemunho das mulheres missionárias
(«María Madalena, Joana, María, máe de Tiago e as outras
que estavam com elas», conforme Le 24, 10) e dos parentes
de Jesús (discípulos de Emaús), a quem Jesús apareceu no
próprio domingo de Páscoa.
Os Apostólos, compreendendo melhor os ensinamentos de
Jesús, se reuniram de novo na Galiléia, e foram finalmente
beneficiados pelas primeiras aparigóes que Cristo se dignou
de fazer-lhes.
Em presenga do Senhor ressuscitado, os Apostólos a prin
cipio hesitaram; após o que, se renderam por completo á rea-
lidade de Cristo glorioso (note-se como os quatro Evangelistas
insistem na incredulidade inicial dos Apostólos).
Tendo permanecido cérea de quarenta días na Galiléia,
os discípulos voltaram para Jerusalém, por ordem do Senhor
Jesús. Éste lhes apareceu de novo na Cidade Santa, onde final
mente se despediu déles, mandando-lhes aguardassem a vinda
do Espirito Santo.
Em Jerusalém comegou própriamente a missáo dos Apos
tólos no dia de Pentecostés, e de lá se propagou pelo mundo
inteiro.
Por razóes minuciosas, mas assaz válidas, os exegetas
modernos preferem o esquema de aparigóes «Galiléia — Jeru
salém» ao esquema mais antigo «Jerusalém — Galiléia — Je
rusalém». O «rendez-vous» ou o encontró marcado na Galiléia
é um trago muito inculcado por Mt (cf. 26,32; 28,7) e Me
(cf. 14,28; 16,7). Jesús, reaparecendo aos Apostólos na mesma
regiáo em que havia realizado o seu ministerio público, dava-
-lhes a entender que era o mesmo Divino Mestre e que sua
missáo após a ressurreigáo era realmente a continuagáo de
sua pregagáo anterior.

— 158 —
A RESSURREIQAO DE JESÚS NOS EVANGELHOS 23

4. Após as consideracóes ácima, verifica-se que a «dis


cordia concorde» dos Evangelistas a respeito da ressurreicáo
de Cristo é precisamente o penhor de que os discípulos de
Jesús nos referiram fatos reais. Os Evangelistas colheram suas
noticias nao da imaginacáo, mas da realidade vivida; renun-
ciaram, porém, a harmonizar entre si os relatos recebidos,
porque sabiam que em favor désses relatos havia a evidencia
mesma dos acontecimentos. Os primeiros cristáos nao duvi-
davam de que Jesús ressuscitara; bastava que os escritores
sagrados lhes dissessem esta verdade de maneira esquemática,
pondo, porém, em realce o sentido religioso da ressurreigáo
de Cristo.
A liberdade literaria com que os autores bíblicos apre--
sentaram os episodios do S. Evangelho, costuma causar estra-
nheza ao leitor moderno. Esta perplexidade, porém, se dissipa
desde que o leitor compreenda a intengáo dos Evangelistas:
apresentar a historia de modo que fósse veiculo de doutrina.
Em conseqüéncia, disseram-nos que Jesús venceu a morte ao
terceiro dia; apareceu sucessivas vézes a seus discípulos e
familiares na Galiléia e na Judéia, superou a incredulidade
dos mesmos, impondo-se-lhes pela evidencia de sua presenga
física. Por fim, enviou seus Apostólos a pregar no mundo
inteiro.
A crítica racionalista parece já ter aventado todas as
hipóteses possíveis para contradizer á noticia da Ressurreicáo
de Cristo. Em váo, porém. Dir-se-ia que muitos dos que nao
créem, só nao créem por nunca ter tomado conhecimento
exato da mensagem.

Bibliografía:

Ponthot Hitz, Watté..., «La Résurrection du Christ». Bruxelles


1967.

W. Trilling, «Jésus devant l'histoire». París 1968.


L. Cerfaux, «Jésus aux origines de la Tradition». Desclée 1968.
X. Léan-Duíour, «Les Évangiles et l'histoire de Jésus». Parte 1965.
P. Benoít, «Passion et Résurrection du Seigneur». Paris 1966.
F.X. Durrwell «La résurrection de Jésus, mystére de salut». Le
Puy 1963".

A. Descamps. «La structure des récits évangéliques de la


surrection», em «Bíblica», t. 40, 1959, págs. 726-741.

— 159 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 3

III. DOUTRINA

3) «Os males (sufrimientos, miserias, e morte) que o


homem hoje em día padece, s2o meramente naturais? Ou tém
outr» significado e outra nota característica?
Añida se pode falar de 'ordem natural' e 'ofdem sobre
natural'?»

Resumo da resposta: A clássica doutrina do sobrenatural tem


sido posta em dúvida nos nossos dias. O otimismo em relacao á na-
tureza torna difícil admitir que esta precise de dons gratuitos e sobre-
naturais para se realizar plenamente.
Nao obstante, a doutrina do sobrenatural foi reafirmada pelo
Papa Paulo VI no «Credo do Povo de Deus»; pertence, pois, ao patri
monio da fé. Ela se explana do seguinte modo:
Ha quatro estados pelos quais vem passando sucesivamente a
natureza humana no decorrer dos sáculos:
estado de natureza pura: consldera-se entSo o homem do ponto
de vista filosófico ou simpiesmente como animal racional;
estado de natureza elevada: o animal racional recebeu, no ini
cio da sua historia, dons sobrenatural, que o tornaram filho de Deus,
capaz de ver a Deus face a face;
— estado de natureza elevada e decaída: é o que se segué ao
primeiro pecado e se estende até Cristo. Os males naturais que o
homem passou a padecer, eram (e ainda sao) conseqüéncias da perda
dos dons originarios;
estada de natureza decaída e restaurada: é a condlQáo do gé
nero humano após Cristo. O homem recuperou a possibilidade de ver
a Deus face a face após esta vida. É preciso, porém, que sofra com
Cristo a sancáo devida ao primeiro pecado; a cruz, patíbulo de igno
minia, tornou-se, para o cristáo, árvore da vida.
O género humano hoje aguarda a consumacáo da Redencáo ou-
torgada por Cristo, consumacáo que se dará no fim dos séculos
mediante a ressurreicáo dos corpos ou a plena Vitoria sobre a morte.

Besposta: Na verdade, o homem é animal racional: ser


vivo, composto de corpo material e alma espiritual. Como tal,
está sujeito as vicissitudes que atingem todo composto.
Causas externas e internas podem influir sobre ele, pro
vocando desgaste, deterioracáo e a própria morte.
A dot, assim como o prazer, é conseqüéncia natural da
sensibilidade do homem; o ser que pode experimentar o prazer
sensível, pode também passar pela dor sensível. A dor, ao

— 160 —
ORDEM NATURAL E ORDEM SOBRENATURAL 25

mesmo tempo que faz sofrer o homem, educa-o, estimula-o


ao progresso material e moral, excitando a sua generosidade.
Até mesmo a concupiscencia é algo decorrente da natu-
reza do compostb humano. Éste, sendo carnal e espiritual,
deve ter tendencias correspondentes á carne (ou aos bens
sensíveis) e ao espirito (ou aos bens invisiveis, espirituais).
Pode haver oposicáo entre tais tendencias, como há oposigáo
entre o prazer e o dever. Nao há, porém, mal ou pecado nessa
dualidade espontánea. O mal só comega quando a vontade
deliberadamente diz «Sim» as tendencias inferiores, contrari
ando as da razáo.
Vé-se, pois, que, tudo que aflige o homem hoje em dia,
é condizente com a própria natureza humana. Nao obstante,
ensina a fé crista que tais miserias tém um cunho ou um
significado nao meramente natural, mas sao reflexos de urna
ordem de coisas sobrenatural, á qual o homem foi inicialmente
elevado e na qual nao perseverou.
Para melhor explicar está proposisáo, os teólogos distin-
guem quatro estados pelos quais vem passando sucessivamente
a natureza humana no deoorrer dos sáculos: 1) o estado de
natureza pura, 2) o de natureza elevada, 3) o de natureza
elevada e decaída, 4) o de natureza decaída e restaurada.
Estes estados seráo explanados ñas páginas que se seguem.
Antes, porém, de se abordar o assunto, parece impor-se
importante observagáo:
As idéias expostas neste artigo pertencem á mais genuína
e clássica teología católica. Nos últimos tempos, porém, vém
sendo postas em dúvida, ora mais, ora menos explícitamente:
a nao poucos cristáos custa admitir a ordem sobrenatural.
A natureza humana é considerada com tanto otimismo que
nao lhes parece necessário falar de dons gratuitos a ela acres-
centados para que o homem chegue á plena uniáo com Deus.
Também nao é fácil ao pensador contemporáneo admitir que
o curso atual das coisas tenha de ser avaliado 'á luz de urna
ordem inicial mais perfeita (a justiga original), ordem inicial
perdida em conseqüéncia do pecado dos primeiros pais. Estas
nogóes parecem carecer de fundamento racional ou científico.
Sem dúvida, é preciso reconhecer que a doutrina do sobre
natural se baseia, antes do mais, na Revelacáo Divina ou ñas
proposicóes da fé. Doutro lado, faz-se mister reconhecer tam
bém que muitos povos primitivos, em suas tradigóes religiosas,
manifestam a consciéncia de que o desenrolar da historia e
a sorte do homem sobre a térra, marcados pelo sofrimento e

— 161 —
28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, gu. 3

— a imunidade de concupiscencia (dominio do espi


rito sobre a carne);

— o dominio sobre as criaturas inferiores (o homem


era o rei da criagáo visível, rei a quem as criaturas irracionais
serviam harmoniosamente).

Estes cinco dons sao ditos preternaturais, porque nao ele-


vavam a natureza sobre si mesma, mas a prolongavam na
sua própria linha além de seus limites habituáis (praeter =
além de, em latim). Assim o dom da imortalidade consistía
em que o homem se conservasse como, homem indefinida
mente; o dominio do espirito sobre a carne tornaría o homem
mais perfeitamente homem, mas nao faria déle um anjo...

A graga santificante e os dons preternaturais constituem


o que se chama «o estado de justica original» ou «o estado
paradisiaco» (nao se deve procurar localizar geográficamente
o paraíso terrestre; éste, na Biblia, significa apenas a harmo
nía de que gozavam o homem e a natureza irracional, por
gratuito favor divino).

Os dons da justiga original estavam latentes na alma do


primeiro homem; seu desabrochar e sua plena atuagáo esta
vam sujeitos ¡a fidelidade do homem a Deus. Donde se vé que
nao é necessário admitir que o primeiro homem tenha sido
belo, diferente dos tipos humanos que a paleontología descobre
nos estrados da térra; o estado de justiga original nao deixou
vestigios nos escombros da pré-historia. Caso o primeiro casal
perseverasse na uniáo com Deus até o fim de sua peregri-
nagáo terrestre, os seus descendentes herdariam as mesmas
prerrogativas; o primeiro homem teria sido pai (= comuni-
cador da vida natural) e sacerdote (= transmissor da vida
sobrenatural).

Deus quis que o primeiro casal confirmasse livremente a


sua posicáo singular ou sua elevacáo á ordem sobrenatural.
Em vista disto, propós-lhe um preceito x, ou urna norma di
vina de comportamento, cujo teor nao se pode especificar (nao
se insista sobre o fruto proibido!) Caso Adáo obedecesse, daría
sua adesáo deliberada aos designios do Criador, e seria con
firmado na graga. — Na verdade, porém, Adáo, nao obedeceu,
fechando-se soberbamente em si. Conseqüentemente, perdeu
(para si e para todos os seus descendentes) os dons de que
gozava, e decaiu da ordem sobrenatural. Adáo e sua linhagem
passaram para o

— 164 —
ORDEM NATURAL E ORDEM SOBRENATURAL 29

3. Estado de natureza elevada e decaída


(inicialmenfe elevada e posteriormente decaída)

O pecado de Adáo despojou o homem dos dons gratuitos


sobrenaturais e vulnerou a própria natureza humana. O que
quer dizer: o homem, após Adáo, nao pode por si aspirar a
ver a Deus face a face (fim sobrenatural). Nem mesmo pode,
sem especial auxilio de Deus, observar todos os preceitos da
lei natural; a natureza humana está debilitada em sua resis
tencia ao mal.

A natureza nao está deteriorada ou corrompida do ponto


de vista físico, mas atingida ou chagada em seu vigor moral.
Antes do pecado, a natureza humana, sob o influxo dos dons
gratuitos, se voltava para Deus como a agulha imantada para
o seu polo. Depois do pecado, ela perdeu a sua orientacáo
sobrenatural; nem mesmo no plano natural é ela inclinada
para o Senhor, do qual se afastou no plano sobrenatural.
Sao Paulo assim descreve a triste situagáo em que o
género humano se atirou pelo primeiro pecado:
«Embora conhecessem a Deus, os homens nao o glorificaram
como Deus, nem lhe renderam gracas. Pelo contrario, perderam-se
em vas cogitagSes e obscureceu-se-lhes o coracáo insensato.
Declarando-se sabios, tornaram-se tolos e substituirán! a gloria
do Deus imortal pelas imagens que representam o homem mortal,
pássaros, quadrúpedes e reptéis.
Por isto, Deus os entregou á impureza, de acordó com os desejos
de seus coracSes, a ponto de desonrarem, entre si, seus próprios cor-
pos aqueles que trocaram pela mentira a verdade divina e que ado-
raram e serviram á criatura, desprezando o Criador, que é bendito
para sempre. Amém!
Por éste motivo Deus os entregou a paix5es infamantes. Suas
mulheres trocaram as relacSes náturais por aquelas relacSes que sao
contra a natureza. Do mesmo modo, também os homens, abandonando
o uso natural da mulher, abrasaram-se em desejos, uns para com os
outros: homens praticando torpezas com homens. E assim receberam
em si mesmos a retribuicáo devida a suas aberracdes.
Como nao se preocuparam de ter conhedmento exato de Deus,
Deus os entregou a suas mentes pervertidas, de modo a praticarem
o que máo convém, estando repletos de toda injustica, maldade. ava-
reza e malicia; chelos de inveja, homicidio, discordia, dolo e perfidia»;
maldizentes. caluniadores, detestados por Deus, insolentes, orgulhosos.
presuncosos, maquinadores de perversidades, rebeldes para com os
pais; sem discernimento, sem lealdade, sem afeig&o, sem misericordia»
(Rom 1, 21-31).

Com a harmonia interior, o homem perdeu também a


harmonía exterior, isto é, o dominio que ele possuia s8bre as
criaturas inferiores. O trabalho, inicialmente suave, tornou-se

— 165 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 112/1969, gu. 3

a morte, pelo odio e a desordem dentro dos individuos e das


sociedades, nao sao naturais, ou nao corresponden! á ordem
inicial das coisas estabelecida pelo Criador; os povos antigos
falam de urna grave queda moral nos primordios da historia,
queda que acarretou para as geragóes subseqüentes as mise
rias e dores que os homens atualmente padecem. Os testemu-
nhos respectivos da historia das Religióes podem ser lidos em
«P.R.» 32/1960, pág. 329-333. Tais testemunhos corroboram
bem a doutrina da fé crista.
Como quer que seja, o S. Padre Paulo VI, visando evitar
hesitagóes doutrinárias entre os fiéis católicos (hesitagóes que
poderiam ter graves conseqüéncias), houve por bem reafirmar
no «Credo do Povo de Deus» a existencia da ordem sobre
natural. Eis as palavras de S. Santidade:
«Cremos que em Adáo todos pecaram. Isto significa que a. falta
original, cometida por ele, fez com que a natureza humana, comum
a todos os homens, caisse num estado em que arrasta as conseqüén
cias desta falta e que nao é aquéle em que ela se encontrava antes,
nos nossos primeiros pais, constituidos em santidade e justica, e em
que o homem nao conhecia o mal nem a morte. É a natureza humana
assim decaída, despojada da graca que a revestía, ferida ñas suas
próprfas forcas naturais e submetida ao dominio da morte, que é
transmitida a todos os homens, e é neste sentido que cada homem
nasce em pecado».
Após esta declaragáo do Supremo Pastor, a quem Cristo
confiou a missáo de confirmar seus irmáos na fé (cf. Le 22,32),
nao pode haver dúvida, para um católico, de que a doutrina
da chamada «justica original» (elevagáo do homem á ordem
sobrenatural) pertence ao patrimonio da fé. Deve-se mesmo
dizer que ela possui capital importancia na visáo crista da
historia e da escatologia ou consumacáo dos séculos.
Eis como se delineiam os quatro estados da natureza
humana:

1. Estado de natureza pura

É o que descrevemos na introdugáo déste artigo, consi


derando o ser humano do ponto de vista meramente filosófico
ou abstrato, como animal racional (= ser vivo dotado de
razáo). Cf. pág. 24(160)s.
No estado de natureza pura, o homem possuiria tudo o
que sua natureza exige, nem mais nem menos. Assim tena
o desejo de ver a Deus, Bem Infinito, Autor e Consumador
das criaturas; mas só O poderia contemplar atraves do espé-
Iho que as criaturas sensíveis Ihe oferecem. Deus lhe daria
os meios necessários para chegar a tal fim ou a tal felicidade.

— 162 —
ORDEM NATURAL E ORDEM SOBRENATURAL 27

O homem seria capaz de pecar; sua liberdade poderia


optar pelo bem ou pelo mal, mas seria dotada de auxilio di
vino para nao pecar (Deus jamáis abandona a criatura).
O homem seria passível e mortal, sofrendo o desgaste e
a decomposicáo a que está sujeito todo ser composto.
Os teólogos perguntam se ésse estado se realizou alguma
vez na historia. Alguns admitem que o primeiro homem tenha
sido constituido originariamente em estado de natureza pura
e, pouco depois, elevado á ordem sobrenatural (de que fala-
remos adiante). É bem plausível esta sentenga. Contudo
mesmo os que a afirmam, reconhecem que o estado de natureza
pura pouco ou nada significa na historia do género humano.

2. Estado de natureza elevada ou estado sobrenatural

Na yerdade, o Criador, desde o inicio da historia, desti-


nou o primeiro homem a ser imagem ou figura do Cristo Jesús
(cf. Rom 5,14; Ef 1,3-14), ou seja, a participar da filiagáo
divina.
Por isto, logo após (ou pouco após) infundir a alma do
primeiro homem em seu respectivo corpo, o Senhor a elevou
ao estado sobrenatural. O homem passou a gozar gratuita
mente de dons que ultrapassavam as exigencias da sua natu
reza. Tais dons eram:

a) a grapa santificante, que habilitava o homem a ver


a Deus face a face, quando terminasse a sua missáo terrestre.
Éste dom é dito própriamente sobrenatural, porque éle-
vava realmente a natureza humana ácima de si mesma, possi-
bilitando-lhe conhecer e amar como Deus conhece e ama.
Note-se que o sobrenatural nao significa necessariamente «por
tentoso» ou «milagros»)»; é algo que pode muito bem nao
derrogar as leis da natureza

b) as gracas pneternaturais, a saber:

— a impassibilidade (ausencia de sofrimento),

— a imortalidade (o homem passaria desta vida para


a visáo beatífica, sem provar a morte),

— a ciencia infusa. Nao se tratava de conhecimentos


profanos ou técnicos, mas apenas das nogóes moráis neces-
sárias para que os primeiros pais fóssem responsáveis, ou pu-
dessem responder por seus atos diante de Deus;

— 163 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 3

penoso ganha-páo; a térra ingrata e as foreas rebeldes da


natureza nao colaboram com o homem. A mulher exerce seu
papel de esposa e máe em meio a sofrimentos e dores.
O pecado de Adáo, portante, fez que o homem voltasse
á sua condigáo natural. Urna nota própria, porém, diferencia
da natureza pura a natureza elevada e decaída. Esta aparece,
aos olhos de Deus, como algo de disforme, destoante do seu
Exemplar, "nao sendo o que deveria ser.
Urna serie de imagens pode ajudar a reconhecer a dife-
renca entre «natureza elevada e decaída» e «natureza pura»:

Um rei decaído da realeza por se ter tornado indigno do


trono nao é simplesmente um cidadáo particular;
Um traidor expulso da corte e exilado para país distante
nao está ñas mesmas condigóes que a populacao nativa désse
país;
Um filho que tenha cometido injurias contra a casa pa
terna e haja sido obrigado a viver como servente em urna
oficina, está em piores condieóes que os demais serventes;

Um cavaleiro a quem foi arrebatada a montadura, nao é


um pedestre como os demais.

Deve-se, pois, dizer que os males físicos (sofrimentos,


dores e morte) que hoje acometem o homem, nao sao mera
mente naturais; nao sao simplesmente o efeito do desgaste
dos elementos que compóem o homem. Mas trazem urna nota
religiosa. Éles afligem o homem em conseqüéncia de um pe
cado inicial, original; decorrem da violagáo de um estado
primitivo e feliz em que Deus colocou o homem e que o ho
mem deveria ter conservado caso se houvesse mostrado fiel
ao Criador.
A doutrina que ensina a elevagáo do homem á ordem
sobrenatural e a queda subseqüente, nao é incompatível com
os dados da ciencia moderna; esta, por suas escavacóes e des-
cobertas, jamáis poderá provar ou contradizer a tal proposigáo
do Credo.

A doutrina crista referente ao pecado original é ensinada, su-


pondo-se o monogenismo: um só casal, Adáo e Eva, na origem do
género humano. Ela se salva, porém, perfeitamente dentro de urna
Hipótese poligenista (muitos casáis na origem da humanidade). Como
quer que seja, o magisterio da Igreja continua a propor o monoge
nismo, pois nao há motivo científico que obrigue a abandoná-lo (a
ciencia nao o afirma nem refuta). A respeito vejam-se explicacoes
mais minuciosas em «P.R.» 96/1967, pág. 501-514.

— 166 —
ORDEM NATURAL E ORDEM SOBRENATURAL 31

O Senhor nao quis permitir que o estado de natureza


elevada e decaída fósse o último na historia do género hu
mano: houve por bem salvar o homem, constituindo-o em

4. Estado de natureza decaída e restaurada

É esta a condigáo em que o género humano se acha atu-


almente.
Por Cristo foi restituida ao homem a graga santificante
ou o poder de se tornar filho de Deus e aspirar á visáo beati
fica, la semelhanca do que possuiam os primeiros pais no estado
original. Ao homem remido, porém, nao foram devolvidos os
dons preternaturais, que corroboravam a natureza em seu
funcionamento harmonioso; o cristáo fica sujeito ao desgaste,
ao sofrimento e á morte, pois estes constituem a justa sancáo
devida ao pecado; o cristáo assim tem ocasiáo de lutar, afir
mando sua fidelidade a Deus e seu repudio ao pecado.
O atual estado do género humano, portante, tem algo da
natureza decaída e algo da natureza elevada; possui algo de
grandioso e, ao mesmo tempo, algo de misero. Contudo as
miserias que permaneceram ñas condicóes atuais, como conse-
qüéncias naturais do pecado, já nao sao mera punicáo; depois
que Crista as tocou e tomou sobre si, foram transfiguradas,
tornando-se instrumentos de purificagáo e santificagáo, á se-
malhanga da própria cruz de Cristo.
O estado de natureza decaída e restaurada se consumará
no fim dos tempos, quando a Redengáo outorgada por Cristo
produzir a plenitude de seus frutos e se cancelarem as últimas
conseqüéncias do pecado no homem e no mundo; entáo já
nao haverá morte (cf. 1 Cor 15,26) nem pranto nem lágrima
(cf. Apc 7,16s; 21,4), e Deus será tudo em todos (cf. 1 Cor
15, 24.28).
Considerando as diversas fases por que passou a natureza
humana no decorrer dos sáculos, exdamava Bossuet (t 1704):

«O sinéte de Deus permanece no homem, táo iorte que ele nao


o pode perder, e, ao mesmo tempo, tio fnaco que ele nao o pode
seguir» (Sermao para a proflssáo da Sra. de la Valllére, 1675).

Em resumo, o homem segundo a orclem meramente na


tural é algo de abstrato. O homem tal como é encontrado na
realidade histórica — ou elevado, ou decaído ou reerguido —
gravita, ora mais, ora menos acertadamente em torno do
Cristo, que o atrai em todos os tempos. «Ser filho de Deus

— 167 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 4

mediante urna eleva?áo sobrenatural», eis o padráo segundo


o qual o Senhor Deus quis tratar o homem desde os primor
dios do género humano; por isto nao pode o homem ser devi-
damente compreendido sem o Filho de Deus ou sem Jesús
Cristo.

IV. MORAL

4) «'Cada um de nos será julgado por Deus de acordó


com a sua oonsciéncia.
O criterio' para formar a nossa consciéncia é a, Mensagem
Evangélica de Libertacáo Total do Homem em Cristo, pela
qual exprimimos a imagem de Deus.
Para exprimirmos a imagem de Deus em nos, todas as
coisas, mesmo a Leí Natural e a Autoridade do Papa, servem
de instrumentos'.
Que dizer a resneito?»

Resumo da resposta: A consciéncia moral é a íaculdade que


regula, de imediato, os atos humamos, tachando-os de lícitos ou ilí
citos. Por isto, sem dúvida, cada homem será julgado segundo a
consciéncia. ¡ *!
Acontece, porém, que a consciéncia nao é autónoma, mas, sim,
teónoma. Compete-lhe considerar a Lei de Deus e aplicá-la á conduto
do respectivo sujeito. Ora a Lei de Deus se manifcsta por sinais
objetivos e sensíveis, como sao a lei natural e o magisterio da Igreja.
Dai a obrigacao que a todo cristáo compete, de se orientar par aquela
e por éste.

~~~~A~lei natural é o reflexo da lei eterna de Deus impregnado na


natureza humana. É imutável como a natureza humana é imutável.
Apenas se pode dizer que nom sempre a humanidadc estove em con-
dicóes de perceber tudo que a lei natural implica em seu preceito
íundamental: «Fazo o bem, evita o mal».
O magisterio da Igreja é infalivd quando se traía de deíinicócs
de um Concilio Ecuménico ou do Sumo Pontífice (ao talar «ex
cathedra») ou ainda quando so trata do onsinamento unánime de
todos os Blspos unidos ao Sumo Pontífice. Os pronunciamentos papáis
que nao sao «ex cathedra», mas se fazem por meio de encíclicas e
bulas, merecem respeito e reverencia; o seu grau de obrigatoriedade
se depreende das palavras mesmas do respectivo documento; ás vézes
o Papa intenciona dirimir urna questao controvertida; outras vézes,
nao quer senao indicar um roteiro para ulteriores estudos.

— 168 —
CONSCIfiNCIA E LEÍ 33

Dizia Jean-Jacques Rousseau no século XVIII: «Consciéncia!


Consciéncia! Instinto divino! Juiz infalível do bem e do mal...» Ao
que outro filósofo racionalista, Diderot, replicava que bem se sabia
que, o que quer que Rousseau fizesse, teria sempre a sua consciéncia
em seu favor!

Resposta: As idéias da questáo ácima voltam freqüeiv-


temente ia baila, principalmente quando se trata de aceitar
alguma decisáo do magisterio da Igreja. Vamos analisá-las
com serenidade, considerando sucessivamente: 1) o que é a
consciéncia moral, 2) quais os criterios segundo os quais ela
se deve formar, 3) a atitude dos cristáos frente ao magisterio
da Igreja.

1. Que é a consciéncia moral ?

A consciéncia moral é o julgamento íntimo pelo qual defi


nimos a moralidade de nossos atos.
Ora a moralidade é a relagáo dos atos humanos com o
seu Fim Supremo, que é Deus. Nao há Moral auténtica sem
relacionamento com Deus, pois o homem é naturalmente orde
nado para Deus.
Por conseguinte, a consciéncia moral vem a ser o julga
mento intimo pelo qual reconhecemos que tal ou tal ato é
conforme á Lei de Deus ou é moralmente lícito; ou reconhe
cemos que é incompatível com a Lei de Deus ou moralmente
ilícito. Todo homem,. por mais primitivo que seja, possui cons
ciéncia moral.

A afirmacao de que nao há Moral sem Deus, é corroborada pelo


próprio Jean-Pau) Sartre, representante máximo do existencialismo
ateu. Élste autor faz questáo de mostrar que é inconsistente a «Moral
leiga» (ou sem Deus):
«O oxistencialista é muito oposto a um certo tipo de moral leiga
que deseja suprimir Deus com o mínimo de inconvenientes possivel.
Quando em 1880 alguns profcssóres franceses tentaram constituir
urna moral leiga, disseram mais ou menos o seguinte:
"Dcus ó urna hipótese inútil o pesada; suprimamo-la; mas é
necessário, para que haja urna Moral, urna socicdade, um mundo
policiado. ... é mecessárlo que certos valores sejam levados a serio
e considerados como existentes de maneira absoluta; faz-se mistar
seja obrigatório em absoluto que sejamos honestos, nao mintamos,
nao espanquemos nossas esposas, tenhamos filhos, etc.. etc. ... Por
conseguinte, vamos fazer um trabalhinho que permitirá mostrar que
ésses valores existem apesar de tudo, inscritos num céu inteligível,
embora Deus nao exista'.

— 169 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 4

Com outras palavras — e esta é. creio, a tendencia de tudo que


em Franca se chama radicalismo — nada será mudado, se Deus nao
existir; encontraremos as mesmas normas de honestidade, de pro-
gresso, de humanismo, e teremos íeito de Deus urna hipótese ultra-
passada, que morxerá tranquilamente e por si. Ao contrario, o exis-
tencialismo julga que é muito incómodo que Deus nao exista, pois
com Ele desaparece toda possibilidade de encontrar valores num
céu inteligfvel. Nao pode haver nenhum bem absoluto, já que nao há
consciéncia Infinita e perfeita para o conceber; em parte alguma
está escrito que o bem existe, que é preciso ser honesto, que é ne-
cessárlo nao mentir, pois entáo precisamente nos colocamos num
plano em que há sómente homens. Dostoievsky escreveu: 'Se Deus
nao existisse, tudo seria permitido'. É éste o ponto de partida do
existencialismo» («L'existencialisme est-il un humanisme?», 1946,
pág. 34-36).

A capacidade de julgar os atos humanos está impregnada


na natureza anteriormente a qualquer deliberacáo da pessoa
ou a qualquer convencáo da sociedade. Por isto se diz que é
urna voz nao humana, mas superior ao homem; é a voz do
Criador gravada na natureza, voz que indica constantemente
ao homem o caminho de volta ao seu Principio ou a via pela
qual ele se deve dirigir para o seu Bem Supremo.
Pode-se dizer também que a consciéncia é o encontró de
Deus e do homem. O Concilio do Vaticano II lembra que «a
consciéncia é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem,
onde ele está sozinho com Deus e onde ressoa a voz de Deus»
(Const. «Gaudium et Sipes» n» 16). Toda a vida moral pode
ser concebida como um diálogo entre o Criador e a criatura:
Deus chama o homem á conversáo, e o homem lhe responde,
positiva ou negativamente, mediante atitudes derivadas de sua
consciéncia.

Todos os povos tiveram a conviccüo de que o homem


ouve a voz do Bem no seu coracáo. Essa voz nao pode ser a
da vontade humana, pois há por vézes confuto entre a vontade
humana e ésse testemunho interior, que se chama consciéncia.

Ovidio (t 17 d. C-) dizia ser essa voz «Deus in nobis» (Deus em


nos). Epicteto (t 138 d. C.) a tinha como «guia supremo» ñas decisdes
moráis. Séneca (t 65 d. C.) íalava de «Deus perto de ti, contigo, em
ti», e acrescentava: «Em nos habita um espirito santo, que observa
o bem e o mal».

O Cristianismo embora tenha o conceito de Deus trans


cendente (nao identificado com o homem), admite também
que é Deus quem fala a cada pessoa através da voz da cons
ciéncia.

— 170 —
CONSCIfiNCIA E LEÍ 35

Destas consideraeóes se seguem duas oonclusóes impor


tantes:
a.

1) O homem será realmente julgado segundo a sua cons-


ciéncia, pois esta é o reflexo ¡mediato da Lei de Deus; é em
sua consciéncia que o homem reconhece o bem e o mal, o que
deve fazer... Desobedecer á consciéncia, quando esta manda
ou proibe alguma ooisa sem hesitacáo ou com seguranca, é
desobedecer ao próprio Deus.

2) «Sem hesitacao ou com seguranca,...» Isto significa


que a consciéncia está obrigada a procurar informar-se ou ter
certeza a respeito da vontade de Deus. Ora Deus se manifesta
por sinais objetivos, extrínsecos ao bomem. Tais sinais sao:

a lei' natural, para todos os homens;

a Eevelacao crista, para os cristáos.

Vé-se, pois, que nao compete ao homem conceber as leis


da Moral segundo criterios meramente pessoais; nao sao as
conveniencias nem o bom senso puramente subjetivo do indi
viduo que fazem as categorías do bem e do mal. Todo homem
é teónomo (regido por Deus); ninguém é autónomo (regido
por si próprio). Cada ser humano é destinado a tornar-se urna
nota harmoniosa numa maravilhosa sinfonia cujo autor e re
gente é o próprio Deus. Ninguém se explica por si mesmo;
ninguém tem sua razáo de ser em si, mas, ao contrario, todo
homem encontra no plano de Deus e no «integrar-se nesse
plano» a sua justificativa e a sua grandeza. Por conseguinte,
á consciéncia de cada individuo toca <o deyer de obedecer á
vontade de Deus expressa de maneira objetiva.

Numa palavra: a consciéncia humana nao está ácima da


lei natural e da Revelacáo Divina, mas, ao contrario, é sujeita
a ambas, devendo-lhes obediencia.

A respeito da «libertacáo total» trazida por Cristo aos


homens, note-se que é tema que Sao Paulo explana com
grande empenho (cf. Gal 5,1). Conseqüentemente, deve ser
entendida no sentido que o Apostólo mesmo lhe atribuí. Ora
a libertacáo, segundo Sao Paulo, consiste em que o homem
se emancipe do pecado e das paixóes (cf. Rom 6,20-22; 7,17.25;
8,2); consiste também na ab-rogagáo da Lei de Moisés, que
oolocava os judeus sob o regime do temor mais do que do
amor (cf. Gal 4,1-7; Rom 8,15-17). O cristáo, porém, assim
libertado, nao deixa de ser um servo de Cristo (cf. 1 Cor
7,22s; 9,21), servo de Cristo que toma conhecimento da von-

— 171 —
36 «PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, gu. 4

tade do Senhor através da Igreja visível e do magisterio dessa


Santa Igreja:

«Irmáos, permanecci firmes e oonservai as tradig&es que de nos


recebestes, tanto por palavra como por carta» (2 Tos 2,15).
«Felicito-vos, Lrmaos, porque em tudo vos lembrais de mim e
guardáis as ins truenes como eu vó-las transmití» (1 Cor 11,2).
«Se, apesar disto, alguém pretender discutir, nos nao temos tal
costume, mem o tém as igrejas de Deus» (1 Cor 11,16).
«Se alguém tem fome, coma em casa, a finí de vos nao reunir-
des para vossa condenacáo. O resto, quando al fot, eu o resolvereis
(1 Car 11, 34).

É conformando-se a Deus, manifestado auténticamente


pelo misterio da Encarnacáo e da Igreja (pelo misterio dó
Corpa de Cristo), que o cristáo se liberta do pecado e do
velho homem, e se torna em plenitude imagem de Deus.

Diga-se agora urna palavra mais minuciosa sobre as re-


lagóes da consciéncia com a lei natural e com o magisterio da
Igreja (órgáo que exprime a Revelacáo Divina).

2. Consciéncia e lei natural

A lei natural é a expressáo da vontade de Deus, expressáo


que x> próprio Deus incutiu a natureza humana. Com efeito,
todo homem possui em seu intimo a consciéncia de que deve.
fazer o bem e ©vitar o mal. Déste principio ele deduz as con-
seqüéncias: nao matar, nao roubar, nao violar a castidade,
respeitar as leis do organismo, colocar o dever ácima do pra-
zer, etc.
A lei natural é sempre a mesma, imutável, pois a natu
reza humana permanece idéntica a si mesma através dos
tempos, com sua inteligencia, sua vontade, suas facilidades
sensíveis e suas aspiracóes... Ela dita, portanto, ao homem
sempre os mesmos principios.

Embora a lei natural nao mude, verificam-se diversos


graus de cojnpreensáo da mesma através da historia: os ho-
mens anteriores a Cristo tinham consciéncia, de certo modo,
infantil; percebiam menos do que o homem moderno todas
as finuras do preceito fundamental: «Faze o bem, evita o
mal»; por isto, praticavam atos que hoje diríamos moralmente
maus, mas que outrora nao eram sempre percebidos como
tais.

— 172 —
CONSCIfiNCIA E LEÍ 37

Como exemplo, pode-se citar a observancia da lei do taliáo:


«Dente par dente, 61ho por ólho...» Para os homens primitivos, tal
fórmula JA ora muito exigente; e isto, a dois titulos:
— impedia que a pessoa dañineada se compensasse, iníligindo
ao adversario daño maior do que o que recebera;
— valia para todos os componentes da tribo ou populacáo, tanto
pequeninos e humildes como chefes e maiorais; estes nao ficavam
isentos de sancao pana as suas culpas.

Pode acontecer também (é o que se dá freqüentemente


em nossos dias) que os homens violem certos preceitos da lei
natural (máxime os que concernem ao sexo) com «tranqüi-
lidade de alma», como se nao os conhecessem. Nao seria isto
urna prova de que realmente nao há mandamentos ditados
pela natureza a todos os homens? — Nao; tal «tranqüilidade»
se deve geralmente a um embotamento da consciéncia; esta,
sendo freqüentemente contraditada e sufocada pelo próprio
sujeito ou pelo ambiente em que vive, deixa de se fazer ouvir;
tal silencio vem a ser produto de violencia, nao podendo ser
levado em conta para se avaliar o que é realmente a natureza
humana. Na verdade, todo homem que nao sofra influencia
deletéria, «uve em seu íntimo as mesmas normas espontáneas
da lei natural.
Por conseguinte, a lei natural fica sendo norma objetiva
da moralidade, norma capaz de regrar a conduta do homem
em toda e qualquer situagáo.
Resta agora considerar outro aspecto — ainda mais deli
cado — da questáo:

3. Consciéncia moral e magisterio cfa Igreja

1. A Igreja nao é urna sociedade meramente humana,


mas é o Corpo Místico de Jesús Cristo. Nela Cristo está pre
sente e vivo, nao sómente porque seus fiéis O conhecem e
amam, mas de maneira própria, dita «sacramental»; o Senhor
prolonga o misterio da Encarnacáo, difundindo a sua vida nos
homens através dos sinais. visíveis de sua Igreja. É impossível
separar Cristo e a Igreja que déle se deriva ininterruptamente
através dos Apostólos e da sucessáo apostólica até nossos dias.
Por isto o cristáo procura «sentir com a Igreja», vibrar
e pulsar com Ela.

2. Cristo confiou á sua Igreja o poder e a missáo de


ensinar, como se depreende de varias passagens bíblicas:

— 173 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 4

«Foi-me dado todo poder no céu e na terna. Ide, pois, e ensinal


a todas as nacSes..., ensinando-as a observar todas as coisas que eu
vos ordenei. E eis que eu estou convosco todos os días até o fim do
mundo» (Mt 28,18-20).
«Como o Pal Me enviou, assim Eu vos envió» (Jo 20,21).
«Recebareis a fórca do Espirito Santo, e seréis minhas testemu-
nhas em Jerusalém, em toda a Judéia, na Samarla e até os ooníins
da térra» (At 1, 8).

Ao magisterio da Igreja Cristo quis garantir a sua assis-


téncia infalível, a fim de que nao ensine erro algum em ma
teria de fé e costumes. É o que decorre das palavras do Senhor
atrás citadas, principalmente da promessa: «Estou convostío
todos os dias até o fim do mundo». A expressáo «Estou con
vosco», na Biblia Sagrada, é freqüentemente atribuida a Deus
quando o Senhor confia urna tarefa importante e difícil aos
homens; significa que Deus garante o sucesso da obra empre-
endida. Tenham-se em vista passagens como

Éx 3,10-12: «Disse o Senhor a Moisés: 'Vai, envio-te a Faraó para


que tires do Egito o meu povo, os filhos de Israel'. Moisés disse a
Deus: 'Quem sou eu para ir ter com Faraó e tirar os íilhos de Israel
do Egito?' Deus respondeu: 'Eu estarel contigo...'»
Jz 6. 14-161: «O Senhor... disse a Gedeao: 'Vai, e, com essa fórca
que tens, liberta Israel das maos de Madiá. Porventura. nao sou eu
que te envió?' Gedeao respondeu: 'ó Senhor, com que libertarei Is
rael? Minha familia é a última de Manassés e eu sou o menor da
casa de meu pai\ O anjo do Senhor disse-lhe: 'Eu estarei contigo e tu
derrotarás os de Madiá como se fóssem um só homem'».
Jer 1, 8.19: «Disse o Senhor a Jeremías: 'Nao os temas, porque
estarei contigo para te livrar — oráculo do Senhor... files comba-
teráo contra ti, mas nao vencerao, porque Eu estarei contigo para te
proteger — oráculo do Senhor1».
Cf. também Gen 21, 22; 26, 3; 31, 35: Jo 3, 2; At 10, 38.

Note-se também a promessa, feita a Pedro, de que as


fórgas do inferno ou do mal nao prevaleceráo contra a Igreja
(cf. Mt 16.18). A Tgreja é assim «a coluna e a base da ver-
dade» (1 Tim 3,15).

Em conseqüéncia, Jesús nao receia identificar-se com os


discípulos quando exercem o seu ministerio:

«Quem vos ouve, a Mim ouve; e quem vos despreza, a Mim des-
preza. Ora quem Me despreza, despreza Aquéle que Me enviou»
(Le 10,16).
«Quem vos recebe, a Mim recebe. E quem Me recebe, recebe
Aquéle que Me enviou» (Mt 10, 40).

Foder-se-iam multiplicar os textos bíblicos que asseguram


a infalibilidade do magisterio da Igreja.

— 174 —
CONSCIÉNCIA E LEÍ 39

3. O magisterio' infalível da Igreja se exerce de duas


formas:

a) de maneira ordinaria: é o que ocorre quando os


Bispos, em uniáo com o Romano Pontífice, ensinam urna dou-
trina de fé ou de moral, intencionando propó-la como verdade
ou norma obrigatcria para todos os fiéis.

Quanto ao magisterio ordinario do Romano Pontífice,-


note-se o seguinte: seus. ensinamentos, ainda que nao sejam
proferidos «ex cathedra» ou de maneira extraordinaria, me-
recem acatamento exterior e interior. Jesús rogou especial
mente por Pedro, e mandou-lhe confirmasse seus irmáos na
fé (cf. Le 22, 32). — O Papa pode manifestar-se por meio
de encíclicas (sao os documentos mais solenes do magisterio
papal), bulas, «Motu proprio» ou outros pronunciamentos. O
grau de acatamento que cada um désses documentos merece,
deve-se depreender da intencáo mesma do Sumo Pontífice
revelada pelas palavras utilizadas no respectivo documento:
as vézes, Sua Santidade tem a intengáo de dirimir de maneira
definitiva certas dúvidas; outras vézes, intenciona apenas pro-
por á reflexáo e ao estudo determinadas doutrinas.

A propósito vém as palavras do Concilio do Vaticano II:

«Os Bispos, quando ensinam em comunhao com o Romano Pon


tífice, devem ser respeitados por todos como testemunhas da verdade
divina e católica. Devem os fiéis acatar urna sentenca sobre a fé e a
moral proferida por seu Bispo em nome de Cristo, e devem ater-se
a ela com religioso obsequio do espirito. Esta religiosa submissáo da
vontade e da inteligencia deve de modo particular ser prestada com
relacáo ao auténtico Magisterio do Romano Pontífice, mesmo quando
nao fala 'ex cathedra'.' E isso, de tal forma que seu magisterio su
premo seja reverentemente .reeonhecido, suas sentencas sinceramente
acolhidas, sempre de acardo com sua mente e vontade. Esta mente e
vontade constam principalmente ou da índole dos documentos ou da
freqüente proposicáo de urna mesma doutrina ou de sua maneira de
falar» (Const. «Lumen Gentium» n' 25).

b) de maneira extraordinaria: é o que se dá por oca-


si&o das definicóes solenes emanadas de um Concilio Ecuménico
ou de um pronunciamento «ex cathedra» do Bispo de Roma.
Deve-se frisar que o magisterio infalível da Igreja nao
se limita aos casos de definicóes extraordinarias, pois estes
sao raros na historia da Igreja. Se sómente em tais ocasióes
o magisterio fósse infalível, falha teria sido a obra de Cristo.
O magisterio ordinario, constante e universal dos Bispos
e, em particular, do Bispo de Roma, é o órgáo auténtico pelo

— 175 —
40 «PERGÚNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 4

qual Cristo continua a ensinar aos homens através dos séculos.


É claro, porém, que os Bispos, ao se pronunciar, nao tém
sempre em mira ensinar teses definitivas e irreformáveis. A
autoridade de suas proposigóes deve-se depreender do texto
das fórmulas que utilizam; a cada qual, porém, se deve prestar
o acatamento respectivo.

4. Ademáis o cristáo nao se deve preocupar com casu


ística e minimalismo em materia de adesáo á Igreja. Importa-
-lhe ser membro do Corpo Místico de Cristo nao apenas pelo
cumplimento de suas estritas obrigagóes, mas também pelo
seu modo íntimo de sentir e pulsar com a Igreja; é a vida
da Igreja — a qual é a vida do próprio Cristo — que o cristáo
procura prolongar e fecundar em seu íntimo. Em urna pala-
vra: o cristáo adere á Igreja nao sómente por vínculos jurí
dicos, mas também por urna comunháo de amor e vida; em-
penha-se por assimilar a mente da Igreja, e nao apenas a
letra de seus pronunciamentos.
Para se ilustrar quanto sao mesquinhos a casuística e o
minimalismo em relagáo ao magisterio da Igreja, pode-se citar
a historia do jansenismo.
Em 31 de maio de 1653. o Papa Inocencio XI condenou cinco pro-
posicóes da obra «Augustinus» de Jansénio, a saber:
1) Há mandamentos de Deus que, por falta da graca necessária,
nao podem ser observados ncm mesmo pelos justos;
2) O homem, na condicáo atual, nao pode resistir á graca in
terior. t
3) Mérito e demérito pressupoem sómente liberdade de coacto
física, nao liberdade de necessidade interna.
4) Os semipelagianos erraram, ensinando que a vontadc humana
pode ou resistir á graca ou adarlr a ela.
5) É um erro semipelagiano afirmar que Cristo morreu por
todos os homens.
Os jansenistas responderam a esta condenacüo, dizendo que o
Papa tinha toda .razáo de condenar tais sentengas, pois eram eviden
temente heréticas. Acrcsccntavam, porém, que éles nao as entendiam
no sentido em que o Papa as entenderá e condenara. Por isto, conti-
nuaram a ensinar as falsas doutrinas .ácima.
Em sua sutileza de espirito, quiseram também distinguir entre a
«quaestio iuris» e a «quaestio facti» (questáo de direito e questao
de fato). Diziam, pois, que a Igreja é infalivel quando decide se tal
ou tal doutrina em si é herética ou nao; mas nao é infalivel quando
julga se tal ou tal teólogo professa essa doutrina; :neste último
caso, írisavam, a Igreja nao pode exigir um consentimento interno,
mas apenas um silencio obsequioso.
Assim, recorrendo a cavilares, os jansenistas solapavam o ma
gisterio da Igreja, embora mantivessem um respeito formal (ou vazio)
ao mesmo.

— 176 —
CONSCIfiNCIA E LEÍ 41

O jansenismo tem sido bastante repudiado .até os nossos


tempos; causou grandes males á Igreja. É para desejar que
a casuística e o minimalismo dos jansenistas em relacjio ao
magisterio da Igreja nao revivam ém nossos dias.

5. Mais: o discípulo de Cristo sabe que Deus falou e


fala aos homens por meio dos homens e de sinais objetivos
compreensíveis a todos. O misterio da Encarnagáo (ou de
Deus que se faz homem para se revelar sensivelmente) domina
toda a historia da salvacáo, marcando-a profundamente tanto
antes como depois de Cristo. Deus nao quis que a sua palavra
ficasse entregue á arbitrariedade de cada um dos respectivos
ouvintes ou leitores, pois destarte se esfacelaria o depósito da
Revelacáo.
A historia ensina que a Reforma luterana, apregoando o
livre exame, ou seja, a livre interpretacáo das Escrituras e
da Palavra de Deus, se fundamentou no mais inconsistente
dos, principios: se Lutero atribuiu a si mesmo o direito de
interpretar a Palavra de Deus segundo o seu bom senso sub
jetivo, os discípulos de Lutero, segundo a escola mesma do
mestre, arrogaram a si análogo direito: desvincularam-se de
Lutero fundando novas e novas denominacóes religiosas; dei-
xaram a Reforma de Lutero para fazer reformas da reforma.
O principio do livre exame abre, pois, a porta para todo sub
jetivismo, além de contradizer ás afirmagóes bíblicas que ga-
rantem ao magisterio da Igreja a infalivel assisténcia do Es
pirito Santo. ; ''■.'■ i*
Requer-se, pois, que o cristáo dé adesáo aos pronuncia-
mentos do magisterio da Igreja inspirando-se, antes do mais,
em sua fé. É a fé que introduz o homem na Igreja e sómente
a fé o sustenta. «O justo vive da fé», diz tres vézes Sao Paulo
(Rom 1,70; Gal 3,11; Hebr 10,38). Nao se pode pretender
viver a vida crista recorrendo apenas a criterios de razáo e
sabedoria humanas.

6. Eis algumas consideragóes que a propósito da auto


nomía da consciéncia se podem tecer nesta hora, em que tanto
se valoriza o julgamento pessoal de cada individuo em materia
religiosa.
Para terminar, sejam aqui citadas as palavras valiosas
do Cardeal Charles Journet, um dos grandes teólogos de
nossos dias, que escreveu sobre o debatido assunto:

— 177 —
42 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969, qu. 4

«É um contra-senso, para um filho da Igreja, opor á autoridade


da encíclica a infalibilidade de sua consciéncia individual. Nenhuma
consciéncia é infalivel. A consciéncia exige ser formada; oada um de
nos é responsável diante de Deus pela formacáo mesma de sua pró-
pria consciéncia. 'Se a luz que está em ti, é trevas, quáo espessas
seráo as próprias trovas?' (Mt 6,23). Sao Paulo, táo seguro do Evan-
gelho que anunciava ao mundo, recusava-se a julgar -a si próprio:
'É verdade que de nada me acusa a consciéncia; contudo nem por isto
sou justificado; meu Juiz é o Senhor' (1 Cor 4,4)».

Journet, a seguir, cita e comenta a frase do filósofo Jean-


-Jacques Rousseau (¡1778):

«Consciéncia! Consciéncia! Instinto divino! Juiz infalivel do bem


e do mal...»

Diante destas exclamares, Diderot, outro filósofo racio


nalista, contemporáneo de Rousseau, observava que bem ss
sabia que, o que quer que Rousseau fizesse, teria sempre a sua
consciéncia em seu favor!

(Vejia-se «SEDOC» n" 8, fevereiro de 1909, col. 1150).

Estes tópicos chamam a atencáo para a necessidade que


incumbe a todo cristáo sincero, de procurar formar a sua
eansciéncia segundo as normas objetivas pelas quais Deus se
comunica aos homens; em caso contrario, pode ser vítima de
ilusóes. A tarefa de ouvir a Deus mediante os homens é, por
vézes, molesta e ardua. É preciso lembrar, porém, que ninguém
se torna grande sem superar a si mesmo, sem aceitar coisas
duras, a fim de ser coerente com a doacáo generosa a urna
Grande Causa!

O tema «consciéncia» tem sido longamente estudado -nos últimos


anos em vista das novas teorias disseminadas pela Ética da situacáo.
Da ampia bibliografía, podem-se recomendar:
Jean-Marie Aubert, «Loi de Dieu, Lois des hommes», em «Le
Mystére Chrétien» n' 7. Desclée 1964.
Philippe Delhaye, «La Conscience Morale du Chrétien», em «Le
Mystére Chrétien» n' 4. Desclée 1964.
Bernhard Háring «A Leí de Cristo». Sao Paulo 1960, t. I, pág. 198-
-255 e t. II, pág. 78-82.
«Pergunte e Responderemos» 40/1961, pág. 160-179.
O assunto foi reavivado pelos debates em torno da encíclica «Hu-
manae Vitae». O documentário referente a tais debates se enoontra
oolecionado em «SEDOC» n' 8, íevereiro de 1969.

— 178 —
CONSCIBNCIA E LEÍ , 43

APÉNDICE

Na.audiencia geral de 12/Ü/69, o S. Padre Paulo VI pro-


feriu importante alocugáo sobre «consciéncia», alocugáo da
qual váo aqui transcritos os seguintes tópicos:

«É preciso fagamos urna observado sobre a supremacía e exclu-


sividade que hoje se quer atribuir á consciéncia na orientagáo do
comportamento humano. Ouve-sé freqüenterriente repetir, como afo
rismo indiscutível,* que toda a moralidade do homem deve consistir
em seguir a própria consciéncia. Afirma-se isto para emancipar o
homem tanto das exigencias de urna norma extrínseca quanto da
obediencia a urna autoridade que queira ditar a lei á atividade livre
e espontánea do homem; éste (dizem) deve ser a sua própria lei,
deve ser independente de qualquer intervencáo em seu agir. Nada de
n&vo diremos aqueles que véem nesse principio a norma de sua vida
moral, se lhes afirmamos que ter por guia sua própria consciéncia
nao sómente é coisa boa, mas é também um dever. Quem age contra
a consciéncia, está fora do reto caminho (cf. Rom 14, 23).
Mas é preciso, antes do mais, realzar que a consciéncia, em si
mesma, nao é arbitra do valor moral dos atos que ela sugere. A
consciéncia é a intérprete de urna norma interior e superior; ela nao
cria por si essa norma. Ela é iluminada pela intuicao de certos prin
cipios normativos, inatos na razáo humana (cf. S. Tomás, Suma Teo
lógica I 7912 e 13; I/II 94, 1). A consciéncia nao é a fonte do bem
e do mal; ela é a audicao, a ausculta de urna voz que se chama multo
adequadamente 'a voz da consciéncia'; ela lemhra a conformidadé
que urna acao deve ter com urna exigencia extrínseca ao homem, a
fim de que o homem seja verdadeiro e perfeito. Isto quer dizer que
a consciéncia é a intimacáo subjetiva e (mediata de urna lei, que nos
devemos chamar natural aínda que muitos hoje já nao queiram ouvir
falar de lei natural. Nao é a relagáo com essa lei, compreendida em
seu significado auténtico, que faz nascer no homem o senso de xes-
ponaabilidade? E. com o senso de responsabilidade, ... o senso da
boa consciéncia e do mérito, ou do remorso e da culpa? Consciéncia
e responsabilidade sao dois termos ligados um ao outro.
Em segundo lugar, devemos observar que a consciéncia, para ser
válida norma da atividade humana deve ser reta, isto é, segura de si
mesma e verídica, nao incerta, nao culpávelmente errónea. Infeliz
mente esta última hipótese ocor.re fácilmente, dada a fraqueza da
razáo humana quando é deixada a si mesma, quando nao é educada.
A consciéncia precisa de ser educada. A pedagogía da consciéncia
é neeessária... A consciéncia nao é a única voz que possa orientar
a atividade humana; a sua voz se esclarece e corrobora quando a voz
da lei e, portanto, a da autoridade legitima se iinem á sua voz. A voz
da consciéncia, por conseguinte, nao é sempre infalível, nem objeti
vamente suprema. E isto é muito particularmente verdade no dominio
da atividade sobrenatural em que a razáo nao basta para interpretar
a voz do bem mas deve recorrer á fé para ditar ao homem a norma
da justica desejada por Deus mediante a revelacáo: «O homem justo,
diz Sao Paulo, vive da fé» (Gal 3,11). Para caminharmos em linha
■reta, quando andamos de noite, isto é. quando progredimos no mis
terio da vida crista, os olhos nao bastam; é neeessária a lámpada, é
neeessária a luz. E essa luz de Cristo nao deforma, nao mortifica,

— 179 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 112/1969

nao cantradiz a luz da nossa consciéncia, mas ela ilumina a nossa


consciéncia, tornando-a apta a seguir o Cristo no caminho reto de
nossa peregrinacao em demanda da visáo eterna.
Procuremos, pols, agir sempre com urna consciéncia reta e forte,
iluminada pela sabedoria de Cristo».

RESENHA DE I1VROS

O mundo precisa de filosofía, por Eduardo Prado de Mendonca.


— Editora Agir, Rio de Janeiro 1968, 120 x 180 iran, 197 pp.
Poucos iivros de Filosofía se léem com tanto atrativo e também
com tanto proveito como a obra ácima proposta. O Prof. Prado de
Mendonca intenciona fornecer urna Introducto a. Filosofia que tenha
aplicacao tanto nos cursos de nivel secundario como nos superiores;
nao se trata de um manual própriamente dito, mas de um conjunto
de dez capítulos que abordam grandes temas da filosofia em lingua-
gem sólida, mas informal, viva e ilustrada por numerosos exemplos
concretos. Désses temas destiacam-se: o valor das idéias claras, a
dependencia do nosso conhecimento em relagáo aos sentidos e ao
espaco, o racionalismo, a mentalidade técnica, utilitarista de nossos
dias e o valor da «inutilidades, o sentido da vida, educacáo e dis
ciplina...
Quem se/ tenha aplicado á leitura atenta do livro. nao pode deixar
de concluir que realmente necessitamos de ter idéias, ... e idéias
claras e simples a respeito do que somos, dos termos donde vimos
e para onde vamos; sem essas idéias, o nosso comportamento coti
diano se torna indeciso. Conceitos claros nao podem ser substituidos
pela preocupacáo com a utilidade, com o poder da máquina e da
tecnología. Mais ainda: a vida .nao é fuga da luta e das dificulddes,
mas esfórco tenazmente sustentado; por isto. a educacáo que se
esquiva a disciplinar e corrigir, incapacita o jovem para a vida. No
fim de seus raciocinios todos, o autor deixa entrever a idéia de Deus,
«destino espiritual, misterio que nao nos é dado discernir por com
pleto» (pág. 197).
Apenas perguntamos ao autor por que escolheu tal titulo para
táo belo e precioso livro. É verdade, sim, que o mundo precisa de
íilosofia, mas quem o afirma em frontispicio de livro, pode correr
seus riscos... Nao será, porém, éste o caso do Prof. Prado de Men
d!

Exercicios Espirituais de Santo Ináclo de Lolola. Traducáo do


autógrafo espanhol pelo P. Francisco Leme Lopes S.J. — Editora
Agir, Rio de Janeiro 1968, 120x160 mm, 204 pp.
Nao obstante sua «sobriedade esquelética», o pequeno-grande li
vro dos Exercicios suscitou através de quatro séculos mais de oito-
centos comentarios e exposic5es. Há realmente urna biblioteca dos
Exercicios Espirituais. O tradutor P. Leme Lopes teve o cuidado de
aduzir as passagens do Concilio do Vaticano II referentes as materias
tratadas por S. Inácio, esforcando-se assim por atualizar um livro-
que, entre as obras humanas, é das que melhor falam das coisas di
vinas. S. Santidade o Papa Paulo VI ná"o hesitou em escrever: «Sa
bemos que a pregacao mais eficaz é exatamente a dos Exercicios

— 180 —
Espirituais... A reflexáo sobre temas religiosos deve tomar-se um
hábito do povo cristáo, multo, multo mals difundido e multo mais
fomentado do que tem sido».
A obra recenseada termina com um Apéndice que recolhe as
passagens do Concilio do Vaticano n referentes ás grandes verdades
compendiadas por S. Inádo no «Principio e Fundamento> dos Exer-
ciclos, e com um Índice sumario dos principáis termos do livro dos
Exercicios. — Merece aplausos e gratidao o trabalho do P. Leme
Lopes!
Urna Igreja «m discussao, par Urbano Zllles. — Editora Vozes
de Petrópolis 19Q8. 135x200 mm, 112 pp.
Éste livro apresenta urna serle de 23 palestras radiofónicas pro
feridas em 1967 na Alemanha Ocidental e transmitidas para o Brasil.
O autor é um jovem sacerdote riograndense que estudou teología na
Alemanha.
Cada capitulo aborda sintéticamente um tema de atualidade re
ferente á renovacáo da Igreja ou ao pensamento moderno confron
tado com a fé crista: assim sacerdocio, laicato, matrimonio, natali-
dade, ecumenismo, ateísmo, desmitlzacao, Natal, Páscoa... O autor
sabe enfocar os seus temas com perspicacia; procura tomar posicoes
equilibradas entre conservativismo e progressismo, oanseguindo geral-
mente éste objetivo. Haja vista o que diz sdbre os limites e o vazio
da critica na Igreja, sobre secularizacao (que nao é sanao a rejeicáo
de falsa religiosidade. nao da auténtica ReligiSo). sdbre a historicidade
dos Evangelhos... No tocante á regulado da natalidade, o autor
defende a consciéncia moral como criterio do comportamento dos
cdnjuges, sem xealcar suficientemente a necessidade de se informar
e formar a consciéncia por normas objetivas... — Em suma, as
llnhas gerais do livro sSo positivas; todavía poder-se-ia desejar que
o autor usasse expressdes menos ambiguas e criticas. Com efelto, que
querem dizer «Igreja convertida ao Evangelho», «Igreja diferente:»,
«Igreja em dlscussáo?» O público, por vézes, mostra-se cansado de
revisionismo e problemática, que pouco nutrem a vida interior.

CORRESPONDENCIA MIODA

Estudioso da Sta. Cela (Sabara): A Biblia em Ex 12,15 proibe


que os Judeus conservem algo de fermentado em seus lares, por oca-
sláo da Páscoa. Por que entao a Igreja usa vinho fermentado na
celebrac&o da ceia pastal ou Eucaristía?
O fermento par si nao condena nem salva o homem. A pres-
crigao do Antígo Testamento era devida a circunstancias contingentes
da vida do povo de Deus, que hoje nao mais se verificam; tal proi-
bicSo, por lsto perdeu sua razao de ser. O que importa na Eucaristía,
é o pao como tal e o vinho como tal; fermentados ou nao, estes ele
mentos sao os alimentos mais obvios e, por isto, mais aptos para
simbolizar a refeicSo espiritual, que é a S. Eucaristía.
D. Estévao Betteneourt O.S.B.
NO PRÓXIMO NÚMERO :

Ainda a secularizacáo e $eus sentidos diversos


O «Pai Nosso» á luz das fontes rabínicas
O «Novo Catecismo Holandés» : sim ou nao ?
■ A figura de Tomás Merton
•. O encontró de monges católicos e budistas na Tailandia

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

r porte comum NCr$ 17,00


Asslnatura anual \
I porte aéreo NCr$ 22'00
Número avulso de qualquer mes e ano NCrS 1,50
Número especial de abril de 1968 NCr$ 3,00
Volumes encadernados: 1957 a 1963 (prego unitario) .. NCr$ 10,00
Volumes encadernados: 1964 e 1967 (preco Unitario) .. NCr$ 15,00
Índice Geral de 1957 a 1964 NCr$ 7-°°
índice de 1967 NCr* **
EncIcUca «Populorum Progressio> NCr$ °'50
Endelioa «Humanae Vita» (Regulacáo da NataUdade) NCr§ 0,70

Avisamos aos nossos leitoTes qu« já se cnoontra h dispo-


o índice de «P.R.» 1968. Pre<jo: NCr$ 1,00.

EDITORA BETTENCOUET LTDA.


BEDAgAO ADMDÍISTRACAO
Caixii postal 2.6fi6 Av. Bto Branco, 9, sala 111A
¿c 00 Tel.: 26-1822
Blo de Janeiro (GB) Rio de Janeiro <GB) - ZC-05

Potrebbero piacerti anche