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P rojeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memorieun)
APRESENTAQÁO
DA EDIpÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razio da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
'*•,.- visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questoes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
_ vista cristáo a fim de que as dúvidas se
. dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar. este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.
Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
NO Xl'N? 111 MARCO 1
ÍNDICE

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) '"Áa quarcnta mil horas para onde caminha o trabalho


humano'.
Que dizer désse livro f Que sugere ao pensador cristáo ?" .. 89-

n. filosofía e beligiao

2) "Que significa a expressáo tdo usual nos últimos tempes:


'Deiis morrea /' Até mesmo cristdos a empregam..
PropSe-se tamben urna 'Teología da marte de Deus'.
■Que se entende por tais dizer&s ?" 101

m. BIBLIA SAGRADA

S) "Dado que os müagres de Jesús sejam fatos históricos,


pergunta-86-: .por que Jesús fazia portentos t -»
Quai.o significado dos müagres de Jesús ?" 110

IV. DOUTRINA

i) ■ "Que dizer das chamadas 'canfisaóes comunitarias' ?


Aínda será preciso fazer a acusacáo auricular dos pecados?" 1U

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

6) "Seo Cristianismo é a verdadeira Religiáo, pode-se dizer


que a historia do Cristianismo dá testemunho dessa sua auten-
tícidade f
Ae origens do Cristianismo indicam de algum modo a ocio
de Deus entre os homens ?" 12S

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


c PERGUNTE E RESPONDEREMOS »
Ano X — N« 111 — Morso de 1969

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) «'As quarenta mil horas para onde caminha o traba-


lho humano*.
Que dizer désse livro? Que sugere ao pensador cristáo?»

Resumo da resposta: O futuro reserva ao homem surpreenden-


tes condicñes de vida.
De um lado, os progressos da ciencia e-da técnica proporciona-
ráo ao ser humano grande; dominio sobre a natureza: as doen©as
seráo mais fácilmente debeladas, a vida prolongada, a producáo de
bens materiais aumentada... Em suma, os problemas ele Índole bio
lógica e material do homem dissipar-se-áo em grande parte. De out.ro
lado, porém, colocar-se-á diverso tipo de problema: o da íormacáo
cultural, profissional e moral... O homem do futuro nao ocupará o
seu lugar na sociedade simplesmente por motivo de linhagem, ori-
gem nobre ou heranca; nao será promovido inconscientemente por
tais títulos, como outrora acontecía; mas só ocupará um posto na
sociedade em virtude de sua capacidade comprovada ou por eíeito
de seus esforcos pessoais; e, desde que o profissional do futuro deixár
de estar habilitado ou atualizado, será removido pela'sociedade, que
entregará o lugar a outro individuo mais jovem. Tal estado de coisas
poderá ocasionar freqüentómente desequilibrios psíquicos e neuroses.
Vé-se, pois, que, se a vida no futuro promete ser mais cómoda
e fácil, dado o progresso da técnica, ela será muito mais exigente
do que em tempos passados. Proporcionará ao homem a chance de
se engrandecer ou de mobilizar todas as suas virtualidades intelectuais
e moráis.
Requer-se, pois, que o homem, hoje e no porvir, nao procure
apenas «ter mais», mas cuide principalmente de ser mais. — «Seo*
mais» significa procurar mais esmerada formacáo técnica ou profis
sional e bambém mais apurada consciéncia moral (que,- em última
análise, é consciéncia religiosa). Quem apoia sua vida em Deus, do
mina mais fácilmente a materia e suas vicissitudes, nao se deixando
destrocar ou esmagar pelo gigantismo do progresso material.

Resposta: A Editora «Forense», na sua colegio «Pros


pectiva», acaba de lancar a traducá© do livro «As 40.000 horas

— 89 —
2 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11171969, qu. 1

para onde caminha o trabalho humano», de Jean Fourastié.


Tentando apresentar um perfil do futuro, a obra é nao sómente
interessante, mas também altamente sugestiva; esboga quadros
positivos e negativos, que pedem tomada de consciéncia do
homem contemporáneo, principalmente do cristáo. Abaixo pro-
poremos o conteúdo do livro; ao que se seguiráo algumas re-
flexóes.

1. Prospectivas positivas

Nao há dúvida, os progressos da ciencia e da técnica pro-


metem ao homem do ano 2000 um ritmo de vida notávelmente
mais cómodo; o homem se servirá mais e mais dos elementos
da natureza em vista do seu bem-estar. Tenham-se em vista
os seguinte prognósticos:

1) Durando do trabalho

No sáculo passado, a duracáo media do trabalho humano


era de treze horas por día; só se respeitavam os domingos e
aleuns feriados — o que dava um total de aproximadamente
3.900 horas de trabalho por ano.
Atualmente, a media de duracáo do trabalho, na indus
tria, é de 46 ou 48 horas semanais na Franca e na Italia, um
pouco menos na Alemanha. Utilizam-se 48/50 semanas por
ano — donde resulta um total de 2.250 a 2.350 horas anuais
de trabalho. O homem medio trabalha normalmente durante
cérea de cinqüenta anos de vida.
Ora prevé-se que, no inicio do séc. XXI, o homem medio
poderá trabalhar apenas trinta horas por semana, sem detri
mento para a producto e o consumo da sociedade. Seráo qua-
renta as semanas de trabalho, e doze as de ferias; por conse-
guinte, haverá apenas 1.200 horas de trabalho por ano. Bas
tará trabalhar durante 33/35 anos de vida — o que dará um
total de aproximadamente 40.000 horas de trabalho por vida
humana.
A duracáo media da vida humana será de oitenta anos,
ou seja, 700.000 horas aproximadamente. Donde se vé que o
homem consagrará ao trabalho apenas seis dentre cem. horas.
Terá a seu dispor 660.000 horas (700.000 — 40.000). Déste
tempo disponível, será necessário reservar cérea de dez horas
por dia as necessidades biológicas (alimentagáo, sonó...) da
pessoa, ou seja, um total de 292.000 horas em 80 anos. Mesmo

_ 90 —
«AS 40.000 HORAS»

feito éste descontó, ainda restaráo cérea de 370.000 horas, que


o homem poderá aplicar as atividades de sua livre escolha.
Verdade é que dois fatóres reduziráo a disponibilidade
dessas 370.000 horas: os cuidados do homem com a sua casa
e os transportes necessáriamente demorados para vencer a
distancia entre a moradia do trabalhador e o seu lugar de
trabalho.
Com efeito. Os cuidados com a casa.. . Os inquéritos re-
velam que os trabalhos domésticos e <o trato das criangas nao
sómente nao tém diminuido, mas tendem a se avolumar, visto
que a vida moderna impóe novas exigencias de conforto, hi
giene, beleza, elegancia...
Os transportes, ñas gigantescas cidades modernas, nao
poderáo ser táo rápidos quanto desejável: as distancias se au-
mentam, assim como as aglomeragóes de pessoas e veículos.

2) Longevidode

Os perigos que ameagam ou mesmo prematuramente ex-


tinguem a vida do homem sobre a térra, váo sendo mais e
mais debelados pelos recursos da medicina e da técnica.

Levem-se em conta os seguintes dados:


No século XVm, até 1750, ou seja, até o inicio da revo-
lucáo industria], a vida media do homem durava cérea de 25
anos; a convivencia matrimonial se estendia por 17/18 anos
apenas. O número medio de fílhos por casal era de 4 a 4,2.
Menos de urna crianga em duas chegava !á idade de 11
anos; menos de urna em tres chegava a ter um descendente;
menos de urna em quatro chegava aos 45 anos.
A mortalidade ñas classes dotadas de mais recursos era
um pouco mais baixa do que ñas carnadas pobres.
Considere-se também que, além da mortalidade precoce,
a morbidez e a debilidade física ameagavam poderosamente
o género humano. Mesmo as pessoas que nao morriam, eram
afetadas em sua vitalidade pela subalimentagáo, pelas freqüen-
tes epidemias e outros males crónicos, como as infecgSes den
tarias, etc.
A natalidade era elevada, mas a mortalidade precoce im
pedia que metade dos seres humanos chegasse a procriar.
Hoje em día, ao contrario, as nacóes evoluidas apresentam
os seguintes dados:

— 91 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969, qu. 1

— duracáo media da vida humana: 70 anos,


— mortalidade infantil: 27%,
— duragáo media da vida conjugal: 40 ano;,,
— número de filhos por casal: 2,7.

O índice de mortalidade tornou-se notávelmente mais


baixo. Com efeito, entre os jovens que tenham menos de 25
anos de idade, ele caiu de 500 por 1.000 a 40 por 1.000. Con-
seqüenteménte, para manter urna populacáo estável, basta hoje
em dia que cada casal tenha a media de 2,2 filhos, ao passo
que outrora se requeriam 4,5 filhos por casal.

Terminou também, ao menos nos países desenvolvidos, o


flagelo da fome, que outrora dizimava periódicamente as po-
pulagóes.

Mediante as técnicas agrícolas tradicionais, um hectare de


térra na Franca, por exemplo, so podia sustentar por muito
tempo, em media, cérea de meio-homem, com a ragáo mínima
para sobreviver; além do que, a Franga nao era capaz de cul
tivar mais de 40 milhóes de néctares. Em conseqüéncia, sem-
pre que a populacáo francesa comegava a ultrapassar os 20
milhóes de habitantes, verificava-se um período de subalimen-
tacáo, seguido de fome e, muitas vézes, de epidemia. A popu
lacáo francesa baixava entáo rápidamente de 10, 20 % ou mais
(após a peste negra, no fim do sáculo XIV, declinou de 75 %,
segundo alguns historiadores).
Atualmente verifica-se que um hectare de térra pode sus
tentar tres franceses. A Franga aumentou sua populacáo de
20 milhóes em 1700 para 48 milhóes atualmente; poderia sus
tentar mesmo 120 milhóes de habitantes.
O territorio da Alemanha Federal, que hoje alimenta 55
milhóes de habitantes, alimentava apenas a quarta parte dessa
populacáo há 200 anos atrás.
O afastamento de perigos de morte precoce permite ao
homem exercer mais freqüentemente a atividade intelectual,
que é de todas a mais nobre. Com efeito, a vida intelectual
costuma desenvolver-se a partir dos 14 ou 15 anos e so chega
á plena eflorescencia depois dos vinte e cinco anos. Por isto
as esperangas de vida intelectual eram outrora muito mais
reduzidas do que hoje. É possível em nossos tempos que um
estudioso se dedique a seus trabalhos intelectuais por cerca
de 40 anos.

— 92 —
«AS 40.000 HORAS»

3) Os recursos da nova civilizacao

A vida do homem vai sendo facilitada ou suavizada por


novas e novas descobertas dos dentistas.
O setor da biología humana é particularmente interessante
sob éste aspecto. Já se fabricam artificialmente (e julga-se
que mais ainda se fabricaráo no futuro) produtos que outrora
sómente a vida produzia. O homem interfere ñas fungóes do
seu organismo, procurando dirigi-las segundo os seus planos
(moralmente sadios ou nao): tenham-se em vista os hormó-
nios, as enzimas, os diversos aceleradores do crescimento...
Os sabios prevéem a fabricagáo de novas substancias bioquí
micas, que teráo prodigiosas influencias sobre o corpo hu
mano; os debéis e anciáos poderáo assim ser protegidos. O
homem normal terá suas faculdades de produgáo aumentadas,
sua fadiga muito diminuida... Considerem-se também os mo
dernos transplantes de órgáos, a implantagáo de rins e cora-
góes artificiáis...
Nos setores da biología animal e vegetal, tém-se obtido
animáis de estatura agigantada, péssegos de 500 gramas,
magas de um quilo... Conseguem-se plantas novas, cereais
resistentes ao frió da Sibéria... Tais resultados sao apenas
os primeiros de urna serie de outros, que estáo sendo pre
vistos.
A biofísica está estudando a integragáo de tecidos vivos
em mecanismos físicos, de modo a produzir máquinas consti
tuidas de metáis e substancias vivas.
Mediante os rmirsos técnicos que a humanidade atual-
mente conhece, a térra, que mal alimenta seus 3.300.000.000
de habitantes, poderia nutrir 50 a 80 bilhóes de homens.
Nao será necessário multiplicar aqui as prospectivas de
bem-estar que a técnica moderna oferece e promete ao género
humano. A literatura, erudita e popular, está cheia de tais
descrigóes.
Importa agora levar em conta os problemas e as inter-
rogagóes que o progresso crescente nao poderá deixar de sus
citar para o homem do futuro, pois, via de regra, todo movi-
mento positivo tem sua contra-parte negativa.

2. Quadros sombríos

Varios sao os pontos obscuros que chamam a atengáo do


futurologista *. Parecem, porém, reduzir-se a dois principáis.

— 93 —
6 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969, qu. 1

1) Aumento material e bem-estar humano

O aumento da populagáo do globo parece incoercível nos


próximos decenios. Mesmo que se empreguem recursos arti
ficiáis para limitar a natalidade, prevé-se, na mais moderada
das hipóteses, que o orbe contará 6.000.000.000 de habitantes
no ano 2000, e 10 bilhóes por volta de 2050. A Europa Oci-
dental terá em cem anos o dóbro da populado atual.
O problema da alimentaoáo de tantas bocas poderá ser
resolvido, caso os homens se empenhem por explorar científi
camente e distribuir altruisticamente os bens que a térra pode
produzir. Há outros problemas, porém, acarretados pela ex-
plosáo demográfica: será preciso, sim, distribuir a térra, o
espago vital, a natureza «natural» (bosques, rios, mares...),
de modo a permitir a sobrevivencia de todos os homens Será
necessário também defender as populacóes contra os ruidos,
os odores, as poeiras, as radiagóes, os elementos tóxicos espa-
Ihados pelas fábricas, e todos os subprodutos intempestivos,
incómodos ou perigosos que se derivam, em proporgóes cres-
centes, das crescentes atividades económicas, técnicas e indus
triáis.

Alias, essa defesa do homem contra os agentes físicos nao


é sená'o um aspecto particular da batalha, cada vez mais ne-
cessária e absorvente, que o homem deve travar para preser
var a sua pessoa, física e intelectual, das conseqüéncias desu-
manas das técnicas avangadas. É certo que essas técnicas,
organizando e simplificando o trabalho, utilizando sistemáti
camente homens, máquinas e energías, tém por objeto au
mentar a produgáo material e elevar u nivel de vida, towoetre
do ser humano, contutio nao se pode deixar de reconhecer
que essas mesmas técnicas tém sobre o homem — trabalhador
e consumidor — numerosos efeitos indesejáveis, alguns de
ordem física, outros de ordem intelectual e afetiva. Em outros
termos, afirma Fourastié, «as leis da produtividade estáo bem
longe de coincidir com as necessidades e aspiragóes da vida.
Dessa incoincidénda, dessa contradigáo, resulta grande carga
de conflitos» (ob. cit, pág. 41).
Baste consignar aqui estas observagóes para sugerir ao
leitor que a nova era da civilizagáo, por muito grandiosa que
parega á primeira vista, nao deixará de ter seus problemas
serios.

1 O «futurologista» é o homem que estuda o futuro.

— 94 —
«AS 40.000 HORAS»

Esta verificagSo se confirmará pela consideragáo do se-


guinte tópico:

2) Desequilibrio psíquico

1. A civilizacio progride no sentido de poupar cada vez


mais ao homem o esfórgo físico: o trabalho bracal é substi
tuido pelo da máquina; a locomogáo se faz por meio de vei-
culos, que dispensam de longas marchas... O esporte, livre-
mente praticado, ficará sendo a grande ocasiáo de trabalho
muscular para o homem do futuro. Em oompensagáo, as ati-
vidades psíquicas e cerebrais se tornam e tornaráo cada vez
mais freqüentes e exigentes. O ambiente em que vive o cida-
dáo contemporáneo, é sempre mais racional e cerebralizado,
pois vem a ser cheio de máquinas e aparelhos, que emitem
sinais, advertencias e informac5es; estes dados exigem cons
tante atencáo do homem e impóem decisóes rápidas. Diz
Fourastié: «Urna dona de casa, na sua cozinha, responde hoje
a mais estímulos que Lavoisier em seu laboratorio» (ob. cit.,
pág. 165).
Ora julgam os estudiosos que difícilmente pode um homem
suportar durante toda a sua vida a fadiga cerebral que os
sinais, os estímulos e as respostas rápidas assiduamente lhe
impóem. Daí preverem-se, numa civilizagio altamente técnica,
numerosos casos de desequilibrio nervoso ou de exaustáo.

2. Note-se também: o trabalho com máquinas e apa


relhos eletrónicos exigirá individuos adaptados a tais tarefas.
A sociedade do futuro dispensará cada vez mais os operarios
riáo qualificados; deixará de oferecer os misteres e as ocupa-
Cóes simples com que ganhavam seu pao as pessoas menos
prendadas. Para poder trabalhar, exigir-se-á habilitacáo e pre
paro. Ora tal preparo se tornará cada vez mais difícil para
individuos que nao tenham determinado nivel de dotes natu-
rais e de educagáo. Um homem só exercerá determinada fun-
cáo se estiver capacitado para ela, e enquanto estiver capa
citado. Desde que se evidencie inepto, o ritmo do progresso
o marginalizará, em proveito de outro ser humano. Ao con
trario, a humanidade tradicional era muito menos exigente,
muito mais tolerante.
Conseqüentemente, prevé-se que haverá nao pequeño nú
mero de desadaptados na civilizagáo altamente técnica do fu
turo. Essas pessoas desadaptadas poderáo fácilmente ser víti-
mas de traumatismos mentáis e psicoses, pois a emogáo pro-

— 95 —
8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969, qu. 1

vocada pelo sentimento da própria inadaptacjio ás exigencias


da sociedade é poderoso fator de desequilibrio nervoso.

Eis o que observa Fourastié:

«O homem medio conduz e utiliza máquinas mais e mais pode


rosas, mais e mais perigosas, mais e mais dispendiosas; a incompe
tencia gera dramas. A vida cotidiana, a rúa, os transportes, exigem
do homem medio um nivel de conhecimentos, urna capacidade de acáo
e de atencáo incessantemente crescentes...

Resultam disso conseqüéncias serias do ponto de vista médico e


cirúrgico, mormente no relativo á prevencao, á previsao... quanto ás
molestias de evolucáo lenta; conseqüéncias serias também quanto aos
privilegios, sem dúvida maiores do que no passado, de que gozaráo
os individuos intelectualmente prendados» (ob. cit., pág. 40).

3. Eis outro tópico a se considerar: a eficiencia da


técnica resulta do agrupamento de atividades em seqüéndas
extremamente densas, geralmente separadas urnas das outras
por intervalos ora mais, ora menos longos. Em conseqüéncia,
o homem moderno está sempre esperando: ... esperando o
ónibus, o trem, o aviáo, o sinal verde, a hora marcada com
um técnico, um chefe, um médico, ... esperando o visto do
passaporte, a vistoria da alfándega, a comunicacjio telefó
nica ..., a ponto de já se ter cognominado a civilizacáo mo
derna de «civilizacáo da espera».

Ora tais esperas, em que o sujeito se vé de todo impo


tente para promover seus interésses imediatos, contrastam
com o dinamismo que geralmente impele o cidadáo de nossos
dias, e causam irritacáo, inquietude.

4. A riqueza ou também o «bombardeio» de informa-


cóes, sensacionalistas ou, muitas vézes, trágicas e escabrosas,
a que a imprensa, o radio e a televisáo submetem (e subme-
teráo) o homem moderno, sao outra fonte de instabilidade
e inquietagáo, á qual nao é impossível, mas multo difícil,
escapar.

Leve-se em conta também que os habitantes das cidades


teráo, cada vez mais, de morar em habitacóes coletivas — o
que certamente é menos pacato do que a habitagáo em domi
cilio familiar.

A guisa de exemplo dessa necessidade, cita-se o caso de Paris no


ano 2000: alojar os 16 milhdes de habitantes que essa cidade entao
provávelmente terá, em moradas individuáis ou familiares de um
hectare acarretaria para a cidade (com rúas, monumentos, industrias,
servigos públicos...), urna superficie de 400 por 200 quilómetros!

— 96 —
«AS 40.000 HORAS»

5. Seria ilusorio crer que, á medida que o homem fór


conquistando seus objetivos, imediatos, ele se tranquilizará,
deixando de ter ulteriores aspiragóes e ulteriores problemas.
Na verdade, a elevagáo do padráo de vida e do conforto irá
suscitando no ser humano novas necessidades e incertezas
(naturalmente, de géneros diferentes das anteriores).

É o que os sabios ilustram mediante urna figura. Ima-


gine-se urna serie de esferas de raio crescente. A medida que
cresce o raio, aumentam-se o volume da esfera respectiva e
a superficie da mesma; é impossível que o raio e o volume
da esfera aumentem sem que se aumente a superficie da
mesma. Ora o raio e o volume de cada esfera significam as
aspiragóes e necessidades do homem satisfeitas pelo progresso
material; a superficie significa as necessidades e aspiragóes
que surgem concomitantemente e pedem a respectiva satisfa-
gáo. Vé-se, pois, através da imagem da esfera, quáo desarra-
zoado seria esperar do progresso material a extingáo de todas
as lacunas e aspiragóes do homem; ao contrario, verifica-se
— e verificar-se-á sempre melbor — que, quanto mais o
homem tem, mais faminto e sequioso é dos bens que ele nao
tem e que ele vai entrevendo, bens que, em última análise,
sao os bens transcendentais e eternos.

«A elevacao do nivel de vida faz crescer as necessidades do ho-


mem, pois o homem vai desenvolvendo cancomltantemente as suas
aptidSes, a sua personaJidade, a sua curiosidade... Em suma, a capa-
cidade de troca e de contato com o meio exterior aumenta exatamente
como urna esfera; quanto maior a esfera, maior é a sua superficie
de contato com o exterior» (Fourastié, ob. cit., pág. 176).

6. Em conclusáo, observa Fourastié:

«A satisfago que deveria resultar da elevaeáo do nivel de vida


é reduzida e, muitas vézes, anulada, pela mobilizacáo de fdreas emo
cionáis, pelo arrependimento, pela frustracáo de ter de escolher e,
depois, renunciar, de nSo ter aquilo que outr«s escolheram.

Eis por que éste periodo de elevtac.áo do nivel de vida é um


periodo de queixas ou, pelo menos, um periodo muito menos feliz
do que poderiam imaginar nossos pais ou imaginam nossos contem
poráneos dos países subdesenvolvidos» (pág. 178).

Até aquí foram propostos os aspectos lúcidos e sombríos


do próximo futuro da humanidade. Interessa agora tecer sobre
o assunto

— 97 —
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11V1969, qu. 1

3. Algumas reflexoes

Os prognósticos apresentados por Fourastié (e, pode-se


dizer, outros futurologistas) permitem averiguar que nos pró
ximos decenios os homens, conquistando mais e mais os se-
gredos da natureza, se libertaráo de muitos dos males físicos
que os afligiam outrora; todavía nem por isto se eximiráo de
todo problema. Antes, pode-se dizer que a vida do homem
sobre a térra continuará a ser luta, .'.. luta, porém, um tanto
diversa da anterior; os problemas de nivel biológico estaráo,
tanto quanto possível, resolvidos; restaráo os da cultura hu
mana ou os do homem própriamente dito, que sao os mais
importantes. Isto, em outros termos, quer dizer: ao passo que
nos séculos anteriores a humanidade cuidou principalmente
de suplantar as intemperies da natureza (doengas e outros
obstáculos & vida animal), no futuro o homem terá de lutar
para ser mais homem, ou seja, para atingir um humanismo
integral. Caso nao aceite éste programa, indicado pela nova
civilizacáo, arriscar-se-á a desajustar-se na sociedade. Em urna
palavra: as exigencias da nova era seráo vultosas e pediráo
um homem avallado.
. — E que significa o «humanismo integral» assim vislum
brado?
— Significa que o homem procure" nao sómente «ter
mais», mas também, e principalmente, «ser mais».
— E ésse «ser mais» que elementos implica?
— Implica que o homem se esforcé por se realizar como
homem, desdobrando as virtualidades que a natureza lhe deu.

E, para desdobrá-las, o ser humano deverá cuidar de sua


— formacáo intelectual, técnica ou profissional. Pro
cure habilitar-se para exercer um mister útil dentro do con
junto dos misteres da sociedade. Outrora o homem era, pela
sua origem (estirpe nobre ou nacáo privilegiada) ou por sua
heranga, designado para ocupar tal ou tal lugar na sociedade;
nao eram os seus esforgos pessoais nem as suas qualidades
que o promoviam.
O novo sistema social é, e será, muito mais rigoroso; a
posigáo que o homem granjeia na sociedade, deverá corres
ponder á capacidade e á eficiencia do mesmo; é pelo seu
esfórgo que o homem se deve promover e, depois, manter
no posto adquirido. E, desde que o trabalhador se mostré

— 98 —
«AS 40.000 HORAS» 11

desadaptado, a sociedade o remove, a fim de dar o seu lugar


aos mais jovens, que o almejam com entusiasmo.
Vé-se, pois, que a reflexáo, a previsáo, a decisáo consci
entes teráo de substituir o agir meramente reflexo, espontaneo
e inconsciente, que outrora era suficiente ao homem para atra-
vessar as etapas da vida.

O humanismo integral requer ainda

— formacáo moral, a qual, em última análise, é


religiosa.
A formacáo moral implica que o homem tenha escla
recida consciéncia da finalidade de sua vida e do porqué de
suas diversas acóes; respeite as Ieis que o levam ao Bem Infi
nito, ao qual aspira, consciente ou inconscientemente, todo ser
humano.
O homem que coloca Deus ante os seus olhos, sabe
manter equanimidade entre os altos e baixos da vida pre
sente; nao é táo vulnerável pelos embates e desgastes da
civilizagáo material. Dizia o grande psicólogo e analista Cari
Jung que grande número de seus pacientes eram desequili
brados por carecer de Deus; recuperaram-se quando reconhe-
ceram com sinceridade e amor o lugar que compete a Deus
na vida do homem. As palavras de S. Agostinho sao plena
mente válidas até nossos dias: «Tu nos fizeste para Ti, Senhor,
e inquieto é o nosso coragáo enquanto nao repousa em Ti»
(Confissóes II).

A pág. 228 do seu livro, Fourastié faz a seguinte observacáo:


«Parece-me falaz, cruel e contrario ao espirito científico querer
privar a totalidade de urna populacáo de urna religiáo que mantém
o ardor de viver e oferece a muitos equilibrio moral e consolacCes
que nao encontrariam em outras íontes».
O autor, nesta passagem, tem em vista a religiáo crista. Sem
dúvida, o Cristianismo nao é apenas íator de equilibrio psíquico e
moral (ele significa primeiramente uniáo do homem oom Deus), mas
ele também é valioso foco de paz interior.

A reta formacáo moral incluí, entre outros pontos parti


culares, o respeito do homem á natuneza e as suas Ieis, Saiba
o individuo tratar seu organismo nao como algo de mera
mente material, mas como irmáo e espélho de sua alma
espiritual; sejam os instintos do organismo subordinados aos
ditames da vontade bem formada. Conseqüentemente, o ho
mem nao aceitará meios antinaturais para conter o aumento
demográfico.

— 99 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS!. 11V1969, qu. 1

Além de outras razoes que dissuadem do anticoncepcionismo arti


ficial, pode-se lembrar que ele prejudica seriamente o psiquismo da
mulher. Com eíeito, há estudiosos que afirmam que o desenvolvimento
normal de urna mulher «media» comporta tres ou quatro maternidades
(noticia colhida em Founastié, ob. cit.. pág. 59, n* 9).

A respeito do divorcio, nota Fourastié que ele nao pode


deixar de produzir traumatismos; o ser humano nao aceita
fácilmente o fracasso em assunto de tanta relevancia como é
o casamento. «Se o casal tem filhos, o divorcio é invariável-
mente urna catástrofe» (ob. cit., pág. 208).

Observa ainda o autor:

«Outro fenómeno, éste novo, aumenta a necessidade da estabili-


dade do casal: é a maior duracáo da vida... Hoje todo individuo
tem, no dia do casamento, urna expectativa de vida tao grande que
quase 50% ultrapassam os 80 anos. Ora é obvio que a velhice é multo
mais suave, se os dois esposos a atingem juntos, se o marido e a
mulher se podem ajudar e apoiar mutuamente, em vez de acabar
os dias isolados num asilo ou numa pensao de velhos. Mas o acordó
final só é possivel, se o casal se mantém estável, se sabe superar as
dificuldades da existencia. O casal de hoje e de amainha tem, pois,
duas funcoes: a primeira, tradicional; a segunda, nova: a educacáo
dos filhos e o apoio mutuo da velhice» (ob. cit., pág. 208).

Urna boa formagáo moral também levará o homem a


utilizar sabiamente os seus lazeres na civilizasáo das doro
semanas de ferias por ano... Os lazeres sao, até certo ponto,
necessários ao equilibrio físico e psíquico do individuo; toda
vía, quando excessivos, podem-se tornar ocasiáo de degrada-
cáo ou destruicáo da personalidade. Será preciso, portante,
preparar o trabalhador do futuro para que aproveite do seu
tempo livre, a flm de progredir em sua formacáo profissional
e moral (fazendo cursos ou tirocinios de atualizagáo e com-
plementacáo); saiba também dedicar-se a Deus e ao próximo
exercendo atividades nao remuneradas. Numa economía de
penuria, o homem se vé obligado a aplicar todo o tempo dis-
ponivel ao ganha-páo; para o futuro, as atividades dos homens
teráo condigóes para ser mais e mais altruistas.
Em suma, pode-se observar com Fourastié (ob. cit.,
pág. 194) que a humanidade se encontra hoje na situagáo
de um homem que tivesse de comandar conscientemente o
funcionamento dos seus órgáos, o pulsar do seu coragáo, as
secrecóes do fígado, do estomago, das glándulas, determinar
voluntariamente os seus reflexos elementares e, ao mesmo
tempo, o seu crescimento (funcóes essas todas que o homem
outrora realizava inconscientemente).

— 100 —
«MORTE DE DEUS» 13

Se essas tarefas, de um lado, sao arduas, de outro lado


elas proporcionam ao homem a oportunidade inédita de se
engrandecer. Mas, para que o comum dos mortais futuros
consiga aproveitar tal chance, será necessário que éles tenham
á sua frente grandes modelos e dirigentes. .«A maior perda
que pode afligir a humanidade, é o aborto dos seus tipos
superiores... O destino ,da humanidade... depende, em
grande parte, da meditacáo e do estudo que seus melhores
representantes realizarem. Jamáis o homem medio teve táo
grande necessidade de grandes homens» (Fourastié, ob. cit.,
pág. 191).
As idéias colhidas no livro «As 40.000 horas» de J. Fou
rastié e aqui apresentadas, com comentarios nossos, eviden-
ciam a importancia de que desde já os homens procurem ser
mais: procurem cultivar os valores típicos do homem mesmo,
os valdres da inteligencia e da consciéncia moral, sem os
quais a humanidade será esmagada pelo seu próprio progresso
material.

II. FILOSOFÍA E RELIGIAO

2) «Que significa a expressáo tao usual nos últimos


tempos: 'Deus morreu!'? Até mesmo cristáos a empregam.
Prop5e-se também urna 'Teología da morte de Deus'.
Que se entende por tais dizeres?»

Resumo da resposta: A expressáo 'Deus marreu!' pode tomar


tres acepcdes diversas:
1) Segundo Nietzsche, representante qualificado do ateísmo do
século XIX, a proclamacao de que Deus morreu significa a negacao
absoluta de Deus, negacao necessária para que o homem se possa
afirmar livremeiite.

2) Segundo pensadores protestantes norte-americanos e holan


deses, «Deus morreu» implica um vasto programa de secularizacáo
do Cristianismo. Julgando que Deus e os valores religiosos nao encon-
tram mais eco nos homens de hoje, ésses teólogos, sem negar Deus
e Cristo, pretendem apresentar um Cristianismo voltado únicamente
para o homem e seus problemas contemporáneos. Esboca-se assim a-
chamada «Teología da morte de Deus».

— 101 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969, qu. 2

3) Na acepcao de certos católicos, a expressáo «Deus morreu»


quer dizer que falsos ou inadequados conceitos de Deus nada mais
slgnificam para o homem de hoje; por conseguirte, devem ser
enérgicamente profligados pelos próprios católicos; tais seriam as no-
cSes de um Deus «bonachao», um Deus «tapa-buraco» (Deus palia
tivo para o qual o homem só se volta ñas horas aflitivas), um Deus
«ex machina» (Deus concebido «sob medida» para corresponder as
expectativas mais variadas do homem).
Ñas dual primeiras acepc6es, é claro que a expressáo «Deus
morreu» é de todo inaceitável a um católico. Deus, o Deus verdadeiro,
vive, e deve ser afirmado por todo e qualquer homem, mesmo, ou
principalmente, no século XX.
No terceiro sentido ácima enunciado, a expressáo «Deus morreu»
impSe um programa obrigatório a todos os amigos e fiéis do Deus
vivo e verdadeiro. É necessário, sim, que se profliguem as apresen-
tacoes de Deus infantis ou grotescas. A fé auténtica eré que Deus
vive e está presente aos fiéis nao sempre como taumaturgo, mas,
sim, geralmente como o Divino Crucificado, que dispensa alegrías e
provac6es aos seus filhos, de acordó com os designios de sua infinita
sabedoria. A fé deve tornar-se adulta, varonil, e marcar todas as ati-
vidades dos católicos, nao somonte suas horas de piedade ou de sofri-
mento. Essa atitude de fé será apta a atrair os incrédulos a Deus,
fazendo-lhes ver que Deus nao morreu no primeiro e no segundo
sentidos ácima expostos.

Resposta: Em nossos tempos registra-se estranho fenó


meno: o surto e a expansáo da assim dita «Teología da morte
de Deus».
Tal expressáo é aparentemente contraditória, pois «Teo
logía» significa, segundo a etimología grega, «discurso sobre
Deus». Ora, se a Teología apregoa a morte de Deus, ela parece
renegar seu próprio objeto e destruir a si mesma. Ademáis,
o conceito de «Deus», por definigáo, excluí a morte; Deus é o
Ser Perfeito, que nao conhece deficiencia.
Nao obstante, fala-se de «morte de Deus», nao sómente
entre os ateus, mas também entre os cristáos. Para compre-
ender o fenómeno, distinguiremos abaixo tres acepgóes da
apregoada morte de Deus. Do exposto se depreenderá o que
há de erróneo e o que possa haver de sadio na controvertida
expressáo.

1. «Morte de Deus» na acep?6o atéia

Pode-se entender a «morte de Deus» no sentido que


Feuerbach (t 1872) e, mais agressivamente aínda, Nietzsche

— 102 —
«MORTE DE DEUS» 15

(f 1900) atribuiam a essa expressáo. «Deus» significaría «ali-


enacáo do homem» e «morte de Deus» equivaleria á liber-
tacáo do homem alienado.

É bem conhecida a página de Nietzsche no livro «O alegre saber>


(«Frohliche Wissenschaft»), onde, cedendo a exuberante fantasía, o
escritor propoe a figura de um louco... Em pleno dia, acendeu urna
lanterna e pós-se a procurar Deus na praca pública com grandes cla
mores. Ja que muitos concidadSos incrédulos o ouviram chamar por
Deus, responderam-lhe oom hilaridade: «Deus se terá extraviado
como urna criancinha? Ou se escondeu? Ou tem médo de nos? Ou se
embarcou? Ou emigrou?» Furioso, entáo, o louco lhes explicou: «Eu
vos direi para onde foi Deus! Nos o matamos, vos e eu! Nos todos
somos seus assassinos!»... Ésse louco, ainda no mesmo dia, entrou
em diversas igrejas, onde entoou o seu «Réquiem aeternam Deo» (Re-
pouso eterno para Deus).

Esta passagem de Nietzsche é a expressáo máxima do


ateísmo do século XK; proclama a morte de Deus para que
possa finalmente nascer o Super-Homem. Tal ateísmo é, em
última análise, um humanismo materialista.
Todavía deve-se dizer que setenta anos após Nietzsche,
quando em nossos días certos pensadores de novo falam da
morte de Deus, tém em vista algo de bem diverso do que
intencionava o filósofo ateu. Na verdade, foram cristáos pro
testantes que nos últimos anos voltaram a usar a ambigua
expressáo.

Vejamos, pois, o que intencionavam assim dizer.

2. «Morte de Deus» na acepgSo de teólogos protestantes

O movimento dito «da morte de Deus» tem suas origens


nos Estados Unidos da América. Por volta de 1950, a reli-
giáo conheceu certa prosperidade nesse país: desde o fim da
guerra, os candidatos afluiam aos seminarios, construiam-se
igrejas; o' povo norte-americano, em suma, tornou-se mais
religioso. Todavía essa religiosidade ficou sendo elemento me
ramente cultural; ser bom americano passou a significar, por
conveniencia social, ser religiosto. Com efeito, a religiáo dos
norte-americanos da época nao teve a desejada repercussáo
na vida prática dos mesmos; nao os moveu a conseqüéncias
concretas no tocante, por exemplo, ao problema racial, as
questSes de paz mundial, ao auxilio aos povos subdesenvolvi-
dos; o surto religioso era algo de desencarnado, destituido de
engajamento na solugáo dos problemas da realidade cotidiana.
A certos observadores parecía, antes, um «alibi» ou um pre-

— 103 —
16 . «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969, qu. 2

texto para que os cidadáos se alienassem em relagáo aos seus


deveres sociais e públicos.

Tal tipo de atitude religiosa, deficiente como era, pro-


vocou criticas por parte de cristáos protestantes. Estes come-
caram a opor entre si ReligüLo e Fé. Religiáo, no seu modo
de entender, seriam as cerimónias do culto e as manifesta-
góes religiosas destituidas de influencia na vida moral e
social dos individuos. Fé seria urna atitude interior de adesáo
a Deus manifestada nao em atos de culto (atos ditos «reli
giosos»), mas em compromissos ou engajamentos serios no
setor social. Tais críticos cristáos comecaram a apregoar um
«Cristianismo sem Religiáo» (sendo Religiáo entendida no
sentido ácima), ... em outros termos: um Cristianismo sem
manifestagóes própriamente religiosas, litúrgicas, mas preo
cupado únicamente, em suas manifestagóes públicas, com os
problemas humanos e sociais de nossa época.

Como se vé, ésse «Cristianismo sem Religiáo» poderia


ser dito também «Cristianismo secularizado», ou seja, interes-
sado táo sómente ñas tarefas concretas da sociedade contem
poránea, empenhado em fomentar a paz, a justiga, a frater-
nidade entre os homens. Dentro désse Cristianismo sem Re
ligiáo ou secularizado, féz-se ouvir de novo o brado: «Deus
morreu!» Éste nao significava própriamente rejeigáo da fé
em Deus, mas, sim, recusa de nogóes insuficientes ou simplis
tas de Deus (Deus «Papai Bonacháo», Deus que assegura a
vida eterna a quem observe formalidades meramente extrín
secas, Deus cujo culto concorre para alienar os seus fiéis dos
deveres para com o próximo).

Foi assim que surgiu entre os protestantes norte-ameri


canos o «movimento» ou também a «Teología da morte de
Deus». Como se vé, estas expressóes ambiguas, em sua ori-
gem, estáo longe de equivaler a ateísmo; sao, antes, a
manifestagáo de atitudes que inicialmente tém em vista salva
guardar o genuino sentido do conceito de Deus, contra desfi-
guragóes do mesmo.

Acontece, porém, que varios dos arautos dessa «Teologia»


foram longe demais em suas posigóes. Querendo impugnar
urna religiosidade desencarnada, puseram-se a impugnar o
aspecto transcendental e sobrenatural do Cristianismo; redu-
ziram o Cristianismo a um sistema de agáo social, secular,
voltada apenas para o homem e éste mundo, sistema no qual
Deus é cultuado em foro privado e secreto apenas, segundo
as inspiragóes subjetivas de cada cristáo.

— 104 —
«MORTE DE DEUS» 17

Tais protestantes, rejeitando as estruturas visiveis e as


formulaeóes dogmáticas da Igreja, a<os poucos chegaram a
perder o sentido da realidade objetiva de Deus e a fé na
Divindade de Cristo. Véem no Jesús do Evangelho o homem
que lhes descobre o homem mesmo, nao, porém, Deus feito
homem para salvar os homens. Assim se esvaneceram a
transcendencia de Deus e o misterio da Encarnacáo, ficando
apenas o homem na perspectiva de tais cristáos. Tal seria o
Cristianismo «meramente horizontal» de Hamilton, Altizer,
Van Burén, Gabriel Vahanian...
Estes diversos pensadores apelam geralmente para Die-
trich Bonhoeffer, teólogo protestante alemáo, que certamente
nao aceitaría todas as idéias de seus admiradores norte-
-americanos, ingleses e holandeses.
Dadas a originalidade e a tempera pujante do pensa-
mento de Bonhoeffer, parece oportuno consagrar aqui algu-
mas consideragóes a éste escritor.

3. O pensamenfo efe Bonhoeffer

Dietrich Bonhoeffer nasceu em Breslau (Alemanha) no


ano de 1906. Era descendente de uma familia de teólogos pro
testantes que, em nome da fé, se empenhavam na construcáo
das realidades. terrestres. Seu bisavó, por exemplo, Karl yon
Hase, historiador famoso na Alemanha do séc XE, fóra
encarcerado em 1825. Seu avó, capeláo do Imperador da
Alemanha, tivera que se demitír do seu posto por motivo de
divergencias políticas com o monarca.
Em 1927 Dietrich Bonhoeffer licenciou-se em Teologia
na Universidade de Berlim. A seguir, exerceu o pastorado
(ministerio religioso protestante) e o magisterio. Desde junho
de 1933 tornou-se notorio adversario do nacional-socialismo,
cujas idéias anticristás lhe repugnavam. Bonhoeffer era
adepto de um Cristianismo «engajado», isto é, Cristianismo
influente ñas estruturas da sociedade e da vida pública.
Em 1939 achava-se nos Estados Unidos da América.
Dada a iminéncia da segunda guerra mundial, seus amigos
o incitaram a se deter na América, onde teria sorte mais
amena do que na Alemanha. Bonhoeffer, porém, recusou-se
enérgicamente a isso, preferindo envolver-se coerentemente na
resistencia ao nacional-socialismo; era na Alemanha, em meio
a seus compatriotas e correligionarios, que ele julgava dever
assumir as suas responsabilidades.

— 105 —
18 «PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969, qu. 2

O pastor jamáis deu sinal de se arrepender de tal de-


cisáo, apesar de ter sido encarcerado pela Gestapo aos 5 de
abril de 1943. Após dois anos de campo de concentrado,
Bonhoeffer foi enforcado pelos nazistas no domingo 9 de abril
de 1945; havia previamente celebrado o culto com seus com-
panheiros de prisáo.
O que Bonhoeffer tinha de comum com os teólogos
americanos da «morte de Deus», era o desejo de um Cristia
nismo vivido até as últimas conseqüéncias, Cristianismo nao
apenas de culto e ritos, mas também de acáo prática, se-
quioso de influir na luta contra a opressáo, o racismo, a
guerra injusta... Bonhoeffer, porém, conservou sempre as
linhas ortodoxas da teología luterana, admitindo a transcen
dencia de Deus, o misterio da EncarnagSo, a estrutura visível
da Igreja, etc.
O pensamento de Bonhoeffer amadureceu principalmente
nos dois últimos anos de vida, que o autor passou em campo
de concentracáo. Bonhoeffer percebeu entáo que Deus está
presente aos homens nao necessariamente como um tauma
turgo ou como um Pai Bonacháo, que salva maravilhosamente
das tribulagóes. Tal nocáo de Providencia Divina parecia-lhe
(e de fato é) infantil; caracteriza a religiosidade primitiva.
Na verdade, segundo a Biblia, Deus está presente aos
homens, mesmo aos mais fiéis, com» estéve presente ao seu
Filho na cruz: no silencio, na ausencia de todo milagre...,
a tal ponto que Jesús, identificado com seus irmáos os ho
mens, exclamou: «Meu Deus, meu Deus, por que me aban
donaste?» (cf. Me 15, 34). Bonhoeffer assim reagiu contra
o conceito de um Deus «ex machina», isto é, Deus fabricado
pela fantasía do homem. É pela cruz, pela aparente impo
tencia, e nao por manifestacóes de gloria e poder, que Deus
está junto aos seus fiéis. Bonhoeffer insurgiu-se também con
tra a nogáo de um Deus «tapa-buraco», isto é, Deus de que
os homens se lembram exclusivamente quando Ihes faltam
outros bens na térra, Deus que só entra em cena como su
plente ou ñas horas «margináis» da vida.
No seu campo de concentracáo, aos 16/VII/44, em am
biente hostil á fé, Bonhoeffer escrevia:

«O Deus que está conosco, é Aquéle que nos abandona (Me 15,34).
O Deus que nos deixa viver no mundo incrédulo, é Aquéle diante de
Quem nos mantemos incessantemente... Deus permite que O aíastem
do mundo e O preguem á cruz. Deus se torna impotente e fraco no
mundo, e somente assim está conosco e nos auxilia. O texto de Mt 8,17
CÉle tomou as nossas eníermidades e carregou as nossas dores') indica

— 106 —
«MORTE DE DEUS» 19

claramente que Cristo nao nos auxilia por sua onipoténcia, mas por
sua íraqueza e seüs soírímentos.
Eis a diferencta decisiva do Cristianismo em relacáo a todas as
outras religi5es. A religiosidade natural do homem, prostrado na mi
seria, lev.a-o a apelar para o poder de Deus no mundo; Deus é o
Deus ex machina. Ao contrario, a Biblia leva o homem sofredor a
recorrer ao soírimento e & íraqueza de Deus; sómente o Deus sofredor
pode ajudar. Por conseguinte, pode-se dizer que o caminho da huma-
nidade para a idade adulta... destrói falsas itnagens de Deus e liberta
o olhar do homem para que veja o Deus da Biblia, o Deus que adquire
o seu poder e o seu lugar no mundo mediante a sua impoténcia>
(«Widerstand und Ergebung». München 1952, pág. 241s).

As palavras de Bonhoeffer poderiam prestar-se a mal-


-entendidos, caso nao se levasse em conta o estilo próprio
do autor. Nao pretendem negar a onipoténcia de Deus, mas
apenas lembrar que Deus quis salvar o mundo mediante o
misterio da aniquilacáo de Jesús Cristo; a maior demonstra-
cáp do amor providente de Deus féz-se precisamente através
da humilhacáo e da crucificacáo de Cristo (ás quais se se-
guiu a ressurreicáo). Em conseqüéncia, dizia Bonhoeffer, é
preciso que os homens se libertem de concepcóes infantis de
Deus, deixando de imaginar um Deus que responda sem mais
a qualquer expectativa da criatura; reconhecam, antes, a
imagem desconcertante, mas extremamente valiosa, de um
Deus que pelo sofrimento e a morte salvou a humanidade no
Calvario e ainda hoje salva cada homem em particular; é
pela configuracáo a Cristo (a quem o Pai no Calvario estéve
presente no silencio, sem fazer milagres) que os cristáos
obtém a salvagáo.

Após estas reflexóes sobre o pensamento de Bonhoeffer,


segue-se a consideragáo da terceira acepcáo que se tem dado
á expressáo «Morte de Deus».

4. «Morte de Deus» na acepqáo de cerros católicos

Há católicos que, por vézes, usam a ambigua expressáo


«Morte de Deus», fazendo assim eco ao vocabulario de pen
sadores antigos e contemporáneos. Depuram, porém, tais
palavras de quaJquer conotagáo ímpia, racionalista, protes
tante. Querem apenas significar a necessidade de se abando-
narem (ou de fazer morrer) nogóes religiosas simplórias; tais
seriam os conceitos de um Deus «bonacháo», «tapa-buraco»,

— 107 — '
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11171969, qu. 2

Deus ex machina l. Tais imagens já morreram, há muito, na


mentalidade de náo-católicos, que, em virtude de sua forma-
gáo, nao podem aceitar a idéia de um Deus que nao abale
ou converta o homem, mas, antes, o confirme no infantilismo
religioso.
Se os cristáos, apregoando a sua mensagem, querem en
contrar eco no mundo de hoje, devem apresentar-lhe a genuina
nogáo bíblica de Deus; devem também saber viver dessa nogáo
em todas as horas do dia, dando um testemunho de Cristia
nismo nao somente ñas igrejas e nos santuarios, ou ñas horas
em que <o luto e a afligáo os aoometam, mas também no
trabalho profano e no empenho de cristianizar as estruturas
déste mundo.
Por conseguinte, o que no Catolicismo se pode entender
por «morte de Deus» é apenas a substituigáo de conceitos
infantas e primitivos por nogóes maduras e bíblicas concer-
nentes a Deus. Em outros termos: é um movimento de cres-
cimento e maturagáo da fé.
O P. Laurentin, em seu livro «Dieu est-il mort?», cita a
seguinte mensagem que um grupo de estudantes católicos lhe
enviou por ocasiáo de recente festa de Natal:
«Para nos, a grande aventura de Natal é a morte de Deus...,
do Deus inventado pelos homens para dar conta dos misterios da na-
tureza da 'ordem estabelecida' e do mal. É bem notorio que, á medida
que a ciencia do homem se aumenta, o dominio de Deus se restringe...
Ao invés nos estamos a descobrir o sentido das palavras de. Cristo e
de S Paulo o sentido da Biblia, e mesmo o sentido de bom número

1 A expressáo «Deus ex machina» (= Deus proveniente da má


quina) tem origem no teatro. Significava urna figura «sobrenatural» ou
«divina» que intervinha no decurso de urna pega, descendo á cena por
meio de um dispositivo ou de urna máquina.
A mesma expressáo designa também, no teatro, o desenlace, mais
feliz e alegre do que verossímil, de urna situacSo trágica. Ñas tragedias
antigás acontecía murtas* vézes que a catástrofe se resolvía repentina
mente, a pleno contento dos espectadores, mediante a intervencao de
um «deus» que urna máquina fazia descer subitáneamente do alto
sobre o palco. — Ñas pecas de teatro moderno, o «deus ex machina>
é substituido pelo tabeliáo que traz urna heranca motável ou pelo tío
que chega dos Estados Unidos da América no momento preciso para
tirar do embaraco o sobrinho ou a sobrinha...
Transferida para a linguagem religiosa, a expressáo «deus ex
machina» significa as nocóes de Deus que certas pessoas forjam ou
fabricam segundo as suas expectativas subjetivas ou seaitimentais ;
sao noc6es que muitas vézes se destinam a favorecer a religiosidade
errónea, ignorante ou infantil dos devotos.

— 108 —
«MORTE DE DEUS» 21

de conceitos religiosos elaborados pelos teólogos» («Dieu est-il mort?»


Paris 1968, pág. 13s).

Éste texto, a principio, pode surpreender o leitor, pois usa


de expressoes aparentemente impías. Vé-se, porém, que ex
prime urna das mais genuinas exigencias da fé católica: é
preciso que os cristáos se desembaracem de nogóes inadequa-
das de Deus, nogóes que tomam a Religiáo inaceitável a quem
raciocine um pouco; tais seriam as imagens de um Deus
«inventado» para explicar o que a ignorancia nao explica...,
a., imagem do Deus da magia, da supersticáo... Abandonando
tais conceitos, professem e vivam cada vez mais a nogáo de
um Deus cujo amor é inseparável da virilidade, do heroísmo,
do sofrimento e da morte. O mundo racionalista de hoje vem
a ser, em última análise, um estímulo para que os cristáos
amaduregam na fé.

O mesmo Padre Laurentin cita um exemplo do que deva


ser a fé adulta ou genuína que a vida de nossos días pede dos
cristáos:

Em 1944, em seu campo de pristoneiros, Laurentin conhe-


ceu um oficial, que outrora fóra católico, mas se afastara de
Deus em virtude das comodidades da vida.

Ésse oficial, detido pelos alemáes, conseguiu evadir-se da


prisáo; mas foi recuperado pela Gestapo. «Em conseqüéncia,
viu-se, de um día para outro, encerrado em cubículo secreto.
Nao recebia visita, nao tinha companheiro, nem se lhe dava
ocasiáo de conversar ou de responder a algum interrogatorio.
O seu único contato humano ocorria, quando urna vez por
dia lhe levavam urna sopa sem troca de palavras, ou entáo
quando, vez por outra, o guarda db cárcere lhe langava
um olhar inquisidor. O guarda controlava a observancia do
regulamento da prisáo; na verdade, era proibido ao prisio-
neiro estender-se sobre a esteira antes da hora do cobre-fogo
sob pena de graves sangóes. Nem livro, nem lápis, nem papel,
nem trabalho, nem distragáo alguma suavizavam o isolamento
do oficial. Nessa solidáo, o prisioneiro julgou que se tornaría
louco através dos dias e das noites intermináveis. Aos poucos,
porém, descobriu no fundo de si mesmo urna Presenga... No
jejum do corpo e do espirito, encontrou de novo as oragóes
de sua infancia, fez subir a tona de sua memoria passagens
do Evangelho, palavras do Missal, que ele julgava já ter es-
quecido... Cada dia encontrava outras mais e as ruminava
lentamente. Fazia durar ésses momentos de graga. Já nao se
sentía só, e foi assim que pode agüentar, .. . e que também

— 109 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969, qu. 3

se aprofundou. Quando saiu do cárcere, cérea de um ano mais


tarde, era outro homem, mais homem, ao mesmo tempo que
um cristáo» (ob. cit., pág. 112s).
Eis realmente o que é ter fé e viver da fé. Esta nao
constituí garantía contra os males temporais, nem assegura
milagres da parte de Deus, mas leva o homem a descobrir
tesouros que a afluencia de bens temporais nao raro encobre;
entre ésses tesouros, está a Presenca de Deus, que, apesar do
silencio e do aparente abandono, sempre assiste intimamente
á criatura atribulada.
A todo cristáo incumbe o dever de tender a essa fé
adulta e varonil.
Fazendo a distincáo entre as tres recenseadas acepgóes
de «morte de Deus», o leitor saberá orientar-se quando tiver
de enfrentar escritos ou dissertacóes que tratem de táo am
biguo tema.

III. BIBLIA SAGRADA

3) «Dado' que os milagres de Jesús sejam fatos histó


ricos, pergnnta-se: por que Jesús fazía portentos?
Qual o significado 4os milagres de Jesús?»

Resumo da resposta: Jesús reallzou milagres, que a critica retém


como históricos. Realizou-os como sinais de sua dignidade de Filho
de Deus e Messias. É o que atestam numerosas passagens do S. Evan-
gelho citadas no corpo déste artigo.
Todavía Cristo tuina consciéncia de que seus sinais nada signifi-
cariam para quem se Lhe chegasse com leviandade; tal íoi o caso
de Herodes que fez de Jesús mero objeto de curiosidade. Ao contrario,
sempre que o Senhor enoontrava um espirito sincero e aberto para
a realidade objetiva, um espirito que, embora vacilante, estivesse pronto
a abracar a fé, o Senhor lhe ia ao encontró, dando-lhe um sinal de
sua Divmdade. Algo de semelhante ocorre com quem, em nossos
dias, se chegue aos textos do S. Evangelho. Para quem tenha atitudes
negativas preconcebidas, a Palavra de Deus nada significa Toma-se,
porém, multo eloqüente para quem esteja sinceramente disposto a
ouvl-la e ruminá-la.

Eespostat Já em «P.R.» 110/1969, pág. 54-67 foi abor


dada a questáo da historicidade dos milagres de Jesús. As

— 110 —
■ ■ ii i i i ■ ■■ ■
O SIGNIFICADO DOS MILAGRES DE CRISTO
■■ ■ ■ ■ ■'■■-' — - — ..—... _ - — -
23
—4

narrativas de portentos nos Evangelhos sao marcadas por


um cunho de sobriedade e dignidade; parecem inseparável-
mente associadas á figura de Jesús histórico. Ao contrario,
os prodigios referidos ñas literaturas paga e judaica trazem
a marca de ostentagáo de poder e de satisfagáo da fantasía
— o que Ihes dá aspecto de lendas, tirando-lhes a verossi-
milhanga.
Eis, porém, que nao basta reoonhecer a historicidade dos
milagres de Jesús. Os fenómenos maravilhosos como tais sao
ambiguos. Quem os produz, deve ter a intengáo de os pro-
duzir em vista de determinado objetivo, ou seja, para signi
ficar algo ou transmitir urna mensagem. Por isto é que se
impóe a pergunta: qual o sentido que Jesús mesmo atribuía
a seus portentos?
Abaixo examinaremos o testemunho do próprio Jesús a
respeito de seus milagres; o Senhor mesmo Ihes deu a inter-
pretagáo auténtica. A seguir, deter-nos-emos um pouco sobre
a atitude que Jesús exigía dos homens para que estes pu-
dessem compreender o significado dos milagres de Cristo.

1. O testemunho tfo próprio Jesús

1. Observando os dizeres do S. Evangelho, veriflca-


-se que Jesús considerava sempre os seus portentos como
sinais, ... sinais de sua autoridade e dignidade de Filho de
Deus. Mais precisamente: os milagres de Jesús deviam, antes
do mais, testemunhar que, na pessoa de Cristo, chegara o
Reino de Deus anunciado pelos Profetas do Antigo Testamento.
Eis algumas das palavras mais significativas do Senhor:
«As obras que realizo em inome do meu Pai, dfio testemunho a
meu respeito» (Jo 10,25).
«Tenho um testemunho maior do que o de Joáo. As obras que meu
Fai me deu o poder de realizar, essas mesmas obras que eu pratico,
dao a meu respeito testemunho de que foi o Pai que me enviou»
(Jo 5,36).
«Se nao íaco as obras de meu Pai, nao acreditéis em mim. Mas,
se eu as fago, embora nao acreditéis em mim, acreditai em minhas
obras, para que saibais e reconhecais que o Pai está em mim e eu
no Pai» (Jo 10,37).
Em Mt 9,6, Jesús cura um paralitico para mostrar que tem o
poder de perdoar os pecados em seu próprio nome, poder que os
escribas de Israel atribuíam a Deus só.
Em Jo 11,42 Jesús ressuscita Lázaro «para que éles (a multidao
que O cercava) cressem que o Pai O enviara».

— 111 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» Iliyi969, qu. 3

Segundo Jo 9,3, Jesús abriu os olhos do cegó de nascenca «para


que se manifestassem neste as obras de Deus».

Em dada ocasiáo, Jesús apresentou seus milagres como


cumplimento das profecías do Antigo Testamento referentes
ao Messias, ou seja, como testemunhos de sua dignidade mes-
siánica. É o que se lé em Mt 11,2-5:

«Joto, que se encontrava no cárcere, ao ter noticia das obras de


Cristo, mandou perguntar-lhe por intermedio de seus discípulos: 'És
aquéle que há de vir ou devemos esperar outro?'
Jesús respondeu-l,hes: 'Ide e contai a Joáo o que ouvis e vedes:
os cegos véem, os coxos andam os leprosos sao curados, os surdos
ouvem, os mortos ressuscitam, os pobres sao evangelizados».

Neste tredio Jesús aponta como sinais de sua autoridade


messiánica os portentos que Ele fazia e que os profetas atri-
buíam ao Messias: tais portentos equivalem todos á. restau-
ragáo da ordem violada neste mundo pelo pecado (extingáo
das doencas e da morte, anuncio da Boa-Nova aos que tém
um coragáo de pobre). Destarte o Senhor quería dizer que,
na pessoa de Cristo, chegara o Reino de Deus e se cumpriam
todas as promessas de salvagáo feitas por Deus a Israel e a
toda a humanidade.
Note-se, por último, a seguinte passagem, que mesmo os
críticos mais severos aceitam como genuino testemunho dado
por Jesús a respeito de seus milagres:

«Ai de ti, Corozaim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se Tiro e Sidónia


tivessem presenciado os milagres que se efetuaram em vosso meio,
já tedam, há multo, íeito penitencia cobrindo-se de cilicio e sentando-
-se sobre cinza. Por isto no dia do juizo haverá menor .rigor para
Tiro e Siá&nia do que para vos. E tu, Cafarnaum, serás porventura
exaltada até o céu? Até os infernos serás precipitada!» (Le 10,13-15).

Jesús menciona milagres realizados em Corozaim e Bet


saida, milagres que os textos evangélicos nao descrevem.
O Senhor exclama sobre Corozaim, Betsaida e Cafarnaum o
habitual dito dos Profetas: «Ai de...!» ou «Desgrasa a...!»
Tiro e Sidónia, cidades pagas, se teriam convertido se tives
sem presenciado os milagres realizados ñas referidas cidades
judaicas. Vé-se, pois, que os portentos, de Jesús nao sómente
atestavam a autoridade do Divino Mestre, mas eram também
apelos á conversáo; significavam a iniciativa benévola de Deus,
que preparava os homens para o juizo final.
Pode-se, pois, concluir: Jesús, mediante os seus milagres,
intencionava provar que era o Filho, o Salvador prometido
O SIGNIFICADO DOS MILAGRES DE CRISTO A 25 .„„,

a Israel e á humanidade. Oom efeito, o dominio absoTu$£qu«£(! \


Ele exercia sobre as fórgas da natureza só Lhe podia prfivir
de Deus. Ora Deus nao comunica seu poder a um impostor
ou a um paranoico. Se Ele o comunicou a um homem cha
mado Jesús, que dizia ser o Filho de Deus, em tudo igual ao
Pai, isso aconteceu porque realmente tal homem era o que
Ele dizia ser.

Resta agora considerar

2. As disposi;oes para compreender. . .

Embora intencionasse comprovar sua missáo mediante os


milagres realizados, Jesús tinha consciéncia de que tais sinais
nao coagiriam os homens a crer ou nao se imporiam como
silogismos da matemática. O Senhor sabia, sim, que só Lhe
poderia dar adesáo quem tivesse um coracáo destituido de
preconceitos, pois os milagres de Jesús significavam um con- |
vite de Deus a conversáo ou urna oferta de salvagáo; ora
sómente pessoas bem intencionadas, livres de orgulho ou de
afetos desregrados poderiam render-se á linguagem dos mi
lagres.
Por isto Jesús correspondía as disposigóes sinceras, em
bora iracas e vacilantes dos homens, dando-lhes um sinal que
lhes oorroborasse a fé. Foi o que ocorreu, por exemplo, com
o pai de um jovem possesso epilético, que pedia a cura de seu
filho, dizendo tímidamente: «Se podes alguma coisa, tem com-
paixáo de nos, e socorre-nos».
Ao que Jesús respondeu: «Se podes!... Tudo é possível \
a quem eré!»
Imediatamente, entáo, o pai do menino exclamou: «Eu
creio; ajuda a minha incredulidades
A essa fé simples e candida, embora sujeita a titubear,
Jesús nao hesitou corresponder com um sinal de sua onipo-\
téncia. Cf. Me 9,22-27.
'Ao contrario, quando encontrava homens que de ante
mano se fechavam iá realidade objetiva, voluntariamente des
tituidos de disposigóes para crer, o Senhor se recusava a fazer
algum sinal. Tal foi o caso de Herodes, de quem refere o
Evangelho:

«Chegou aos ouvidos de Herodes a fama de Jesús, pois seu nome


se tornara célebre. Dizia entáo o rei: 'É Joao Batista que ressuscitou

— 113 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969, qu. 4

dos mortos; por isto se manifestam néle poderes extraordinários'>


(Me 6,14).

Adiante, por ocasiáo da Paixáo do Senhor, lé-se no


S. Evangelho:

«Pilatos remeteu Jesús a Herodes... Herodes encheu-se de grande


alegría ao ver Jesús. De.°de muito tempo estava desejoso de conhecé-
-lo, pois tinha ouvido muitas coisas a seu respeito e esperava vé-lo
realizar algum milagre. P6s-se a dirigir-lhe numerosas perguntas.
Jesús, porém. nada Ihe resDomdeu... Herodes, com os de sua guarda,
depprezou-o, e escarneceu-o, mandando-o revestir de urna túnica bri-
lhante» (Le 23,7-12).

Herodes diante de Jesús era movido por mera curiosidade,


e nao por interésse religioso. Por isto em Cristo nada pode
ver que Ihe satisfizesse; nao compreendeu Quem Ihe estava
á frente.

Algo de semelhante se dá ainda hoje com os que se


chegam a Jesús através do S. Evangelho: as narrativas refe
rentes ao Senhor supóem um coragá© sincero e aberto á
realidade objetiva; a quem assim se aprésente, elas falam
eloqüentemente, dando auténtico testemunho da aparigao de
Deus entre os homens. Nada, porém, significaráo para quem
de antemáo já tenha menosprezado o texto sagrado e seu
oonteúdo.

IV. DOUTRINA

4) «Que dizer das chamadas 'confissoes comunitarias'?


Ainda será preciso fazer a acnsacáo auricular dos pe
cados?»

Resumo da resposta: A administracáo comunitaria do sacramento


da Penitencia cometa por um conjunto de leituras, preces e cantos,
que visam excitar a contricao nos fiéis presentes. Segue-se o exame
de consciéncia, que pode ser sugerido por um comentador; após o que,
cada penitente faz a acusacao pessoal de seus pecados a um sacerdote,
e é absolvido em particular. A satisfacao sacramental e a acao de
gragas comunitarias encerram o rito.

— 114 —
CONFISSOES COMUNITARIAS 27

Tal procedimento litúrgico é recomendável, porque

1) aviva a conscléncia de que o pecado e a remissáo dos pecados


sao atos que interessam toda a comunidade eclesial ou todo o povo
de Deus. O cristao se reconcilia com Deus mediante a Igreja;

2) a celebracáo comunitaria dispóe mais eficazmente o penitente


a conceber sincero arrependimento dos pecados e ardente amor a
Deus. Assim como a Eucaristía sempre foi e é precedida pela Ante-
-Missa (leituras, aracóes e cánticos preparatorios), é para desejar
que a confissáo sacramental seja precedida por um preparo oficial
(leituras e oracñes ); na antiga Igreja o penitente se preparava para
a absolvicSo sacramental através de semanas de oracao e mortificacáo.
Todavía é necessário que os sacerdotes nao constranjam os fiéis
ao rito da coníissáo comunitaria. Há pessoas que precisam de atendi-
mento mais demorado no confessianário; seriam prejudicadas ou afas
tadas do sacramento, se os pastores de almas nao lhes proporcionas-
sem senáo as celebraeoes comunitarias.
As crianzas é oportuno ensinar a prática do exame de consciéncia
e da confissáo em forma estritamente pessoal, além da prática da
confissáo comunitaria.

Resposta: O sacramento da Penitencia póe em realce um


dos mais belos aspectos do amor de Deus: a Misericordia, que
a parábola do fllho pródigo ilustra eloqüentemente. Tal sacra
mento, portante, é apto a interpelar vivamente cada cristáo
e a suscitar respostas marcantes (emendas de vida, conver-
sóes...).
Os sacramentos, porém, falam por seu simbolismo ou por
seus gestos rituais (sao esencialmente sinais da graga).
A Penitencia era outrora administrada com grande ara-
plidáo de gestos e ritos, os quais se estendiam ao menos por
semanas a fio (tenha-se em vista a Quaresma na Igreja antiga).
O penitente, o clero e os demais ñéis, por suas assembléias e
suas preces, tomavam parte muito ativa na celebragáo do
sacramento. Ésse longo desenrolar de cerimonias, jejuns e
mortificagóes era apto a exprimir os grandes valores que se
prendem ao sacramento da Penitencia: a Bondade de Deus,
a emenda de vida do homem, a agáo medianeira da S. Igreja.
Com o passar dos sáculos, porém, foi preciso abreviar o
ritual da Penitencia, a fim de se possibilitar aos penitentes
mais fácil acesso ao mesmo. O rito vigente nos últimos anos
é o resultado dessa evolucáo. Todavía verifica-se que, para
militas e muitas pessoas, nao é suficientemente expressivo e
penetrante; geralmente em poucos minutos está terminada
urna celebragao que deveria marcar profundamente a vida

— 115 —
28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11171969, qu. 4

do penitente. Acontece freqüentemente que o ministro nao


possa dispor do tempo de que precisaría para dar ao sacra
mente um colorido mais vivo e pessoal. Em conseqüéncia, há
mal-estar da parte tanto dos sacerdotes como dos fiéis.
Consciente disto, o Concilio do Vaticano II determinou
que «o rito e as fórmulas da Penitencia sejam revistos de
modo a exprimir mais claramente a natureza e o efeito do
sacramento» (Constituigáo «Sacrosanctum Ooncilium» n« 72).
Estes fatos tém levado muitos pastores de almas a empre-
ender celebracóes comunitarias do sacramento da Penitencia.
Já que tais celebraeóes suscitam questóes, seráo objeto de
consideracáo ñas páginas seguintes.

1. Em favor das celebrares comunitarias. ..

Em se tratando de celebracóes comunitarias da Peniten


cia, é preciso imediatamente distinguir duas especies de ritos:
1) há celebraeóes que constam de leituras, cánticos,
preces e, por fim, urna absolvicáo geral dada aos fiéis pre
sentes, sem que previamente facam confissáo individual ou
auricular. Tais celebragóes tém o nome de «paraliturgias
penitenciáis» J; nao sao o sacramento da Penitencia (sacra
mento instituido por Cristo para apagar todos os pecados,
graves e leves), pois nelas falta a confissáo individual das
culpas — elemento éste que, como abaixo se verá, é parte
integrante do sacramento da Penitencia.
Essas celebraeóes, embora nao sejam um sacramento, constituem
um sacramental; o que quer dizer: apagam os pecados veníais «ex
opere operantis», ou seja. por efeito da contricao e do amor que as
leituras e as preces do rito despertam nos fiéis participantes. Asse-
melham-se, em ponto maior, á celebracáo penitencial que se faz ao
pé do altar no inicio de cada S. Missa. Sao, portanto, celebraeóes de
grande valor, pois ajudam o cristáo a conceber o arrependimento de
seus pecados, arrependimento que normalmente obtém o perdáo das
faltas leves (as faltas graves sómente por excecáo, como adiante se
verá, poderiam ser perdoadas em tais celebragóes; para apagá-las,
requer-se, via de regra, o sacramento da Confissáo).

2) Outro tipo de celebragóes penitenciáis é aquéle em


que se administra o sacramento da Penitencia: incluí a con
fissáo pessoal e a absolvigáo individual dos pecados.

1 A palavra «para» significa, em grego, «ao liado de». Trata-se,


pois, de «liturgias ao lado da liturgia oficial».

— 116 —
CONFISS6ES COMUNITARIAS 29

Eis o esquema respectivo:

O rito se abre por urna serie de leituras, cantos e preces que, á


guisa de preparacSo, vlsam excitar os coracñes á contricSo. A seguir,
£az-se o exame de confidencia coletivo; pode ser dirigido ou sugerido
por um comentador, como também pode decorrer todo em silencio.
Seguem-se a confissao dos pecados e a respectiva absolvicao, que sio
estritamente pessoais. O rito se encerra com um ato de satisfacSo
sacramental realizado coletivamente e um canto ou urna prece de acce
de gracas.

A cerimónia pode durar trinta ou quarenta minutos.

Encontram-se esquemas de celebracSes comunitarias da Peniten


cia nos livros «E nao pequéis mais...» de Frei Guido Vlasman. e
«O sacramento da volta» de Frei Luciano Parisse, edicSes do Secre
tariado Nacional de Liturgia (Vozes de Petrópoüs, 1966).

A celebracáo comunitaria do sacramento da Penitencia


tem surtido efeitos positivos. É recomendável por dois princi
páis motivos teológicos:
a) Os ritos penitenciáis coletivos oontribuem para avi
var nos fiéis a consciéncia de que o pecado e a remissao dos
pecados sao questóes que nao interessam apenas o individuo
e o Senhor. Lembram que a reconciliacáo do penitente com
Deus nao é um ato meramente administrativo de que se-
desempenham o sacerdote (exercendo as funcóes de juiz) e
o pecador arrependido. Na verdade, pecado e remissao do
pecado afetam a Igreja inteira ou todo o povo de Deus. Com
efeito, como ensina o Concilio do Vaticano II, «aqueles que
se aproximam do sacramento da Penitencia obtém da mise
ricordia divina o perdáo da ofensa feita a Deus e, ao mesmo
tempo, sao reconciliados oojn a Igreja, que feriram pecando,
e a qual colabora para a sua conversáo com caridade, exem-
plo e oracóes» (Const. «Lumen Gentium» n« 11).
Verdade é que cada individuo é diretamente responsável
por seus atos bons e maus. Acontece, porém, que nenhum
crista© vive para si apenas (cf. Rom 14, 7-9); tudo que ele
faca, de bom ou de mau, redunda em edificacáo ou detri
mento da Igreja (o cristáo está em intima comunháo de
méritos e deméritos com todos os seus irmáos). Por isto
também a remissao dos pecados se faz, no Cristianismo, com
a participacáo da Igreja, mediante a intercessáo valiosa e os
exemplos de penitencia da comunidade dos irmáos. Ademáis
foi á Igreja que Cristo confiou o poder das chaves (cf. Mt
16,19; 18,18).
Nos primeiros sáculos, os penitentes, após haver confes-
sado seus pecados e antes de receber a absolvicáo, passa-

— 117 —
30 «PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969, qu. 4

vam semanas ou meses na classe dos penitentes públicos


(cf. «P.R.» 8/1957, pág. 12). Eram entáo ajudados por seus
irmáos na fé, que oravam e se sacrificavam por éles, pro
curando destarte exercer um certo sacerdocio em favor dos
que disto necessitassem. De modo especial, os «confessores da
fé», ou seja, os cristáos que haviam padecido em testemunho
da fé, exerciam importante papel junto aos Bispos e presbí
teros no processo de reconciliacáo dos penitentes.
Embora ésses quadros da vida da Igreja antiga nao se
possam reproduzir em nossos dias, é, nao obstante, para
desejar que a renovacáo do Sacramento da Penitencia im
plique um ritual comunitario ou envolva a participasáo de
urna assembléia fraterna. Éste aspecto comunitario do rito
contribuirá para avivar nos fiéis a consciénda das dimensóes
muito ampias que tém o pecado e a remissáo dos pecados.
De resto, se o sacramento da Penitencia está, por sua
própria natureza, relacionado com a vida da cpmunidade
eclesial, compreende-se que se lhe apliquem as diretrizes
promulgadas pelo Vaticano II nos seguintes termos:

«Todas as vézes que os ritos, de acordó com a própria natureza


de cada um, comportem urna celebracáo comunitaria, com assisténcia
e participacáo a Uva dos fiéis, se.1a inculcado que na medida do pos
sivel. ela deve ser preferida a celebracáo individual e quase privada»
(Const. «Sacrosanctum Concilium» n* 27).

Outro título de apréco das celebragóes comunitarias é o


seguinte:
b) Outrora, como já foi dito, decorria longo espago
de tempo (semanas ou meses) entre a confissáo e a absol-
vigáo dos pecados. Entrementes, os penitentes mais e mais
se excitavam a contricáo e prestavam a satisfacáo tida pelo
respectivo Bispo como justa e congrua. Destarte a absolvicáo
era dada a pessoas intensamente preparadas, pessoas cons
cientes do horror do pecado e da necessidade de se conver-
terem ao Senhor Deus. Em suma, o quadro exterior estimu-
lava as disposicóes psicológicas dos penitentes (disposigóes
que, sem dúvida, tem importancia notável no caso).
Compreende-se que, através dos tempos, nao tenha sido
possivel sustentar os prolongados ritos de penitencia da Igreja
antiga. Todavía verifica-se que, na forma simplificada (até
os últimos tempos, sempre em uso) de administragáo do
sacramento, a preparacáo do penitente fica exclusivamente a
criterio déste; enquanto alguns fiéis, por iniciativa própria,
se esforcam durante dez ou quinze minutos para se dispor

— 118 —
CONFISSOES COMUNITARIAS 31

a contricáo e ao propósito, outros (por falta de tempo,


por ignorancia ou por negligencia) se apresentam pouco pre
parados para o sacramento; compreende-se entáo que éste
venha a ter exigua influencia na vida de tais fiéis; a confis-
sáo arrisca-se a tornar-se superficial ou rotineira.
Ora as celebragóes comunitarias oferecem, entre o inicio
do rito e a absolvigáo final, certo espago de tempo marcado
pela leitura da Palavra de Deus, preces e cantos; proporcio-
nam a ocasiáo de um exame de consciéncia cuidadosamente
preparado ou mesmo sugerido. — Essas diversas etapas,
percorridas comunitariamente, vém a corresponder, de ma-
neira abreviada, mas eficaz, ao tempo de preparagáo que os
antigos penitentes observavam quando prestavam penitencia
pública. Essa preparagáo sempre foi útil para promover a
mudanca de afetos e propósitos dos coragóes; ela pode con
tinuar a ser oportuna e benéfica, tal como é proporcionada
pelas celebragóes comunitarias.
Note-se, alias, que também a Eucaristía, outrora cele
brada ou concelebrada de forma solene, no decorrer dos
tempos foi sendo adaptada a cerimonial mais simples, qual
é o hodierno. Nunca, porém, se reduziu ésse cerimonial ao
estritamente necessário, que seriam apenas as palavras da
consagragáo e a Comunháo; sempre o rito da Missa incluiu
a chamada Ante-Missa, ou seja, urna serie de leituras, preces
e cantos preparatorios; é através déstes que o celebrante e
os fiéis se dispóem para o ato culminante da celebragáo,
tomando consciéncia da grandeza do misterio de que parti-
cipam. Donde se vé quáo pouco desejável é que o rito do
sacramento da Confissáo seja, como nos últimos tempos tem
sido, destituido de um preámbulo oficial ou da previa cele
bragáo da Palavra de Deus. Em conseqüéncia desta lacuna,
acontece, por exemplo, que nao poucos fiéis, ao se preparar
privadamente, atribuem toda a importancia ao exame de
consciéncia e nao se recordam de que devem excitar sincera
contrigáo e firme propósito. Tal inconveniente pode ser evitado
ñas celebragóes comunitarias do sacramento.

Nao há dúvida de que muitos penitentes, ao se confessar, recebem


eficaz estimulo através das palavras de exortacáo que o sacerdote lhes
dirige entre a acusado dos pecados e a respectiva absolvicáo; sao
assim levados a conceber profunda contricáo. Deve-se, porém, observar
que, segundo testemunhos colhidos em inquérltos, numerosos sao aque
les que se queixam de se sentir pouco atingidos pelo ritual vigente
e, em especial, pela alocucáo do sacerdote (esta lhes parece anodina
ou lmpessoal demais). A pressa com que por vézes deve proceder o
ministro em vista da fila que o aguarda e a necessidade de comegar

— 119 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969. qu. 4

a Missa na hora prevista, o anonimato ou o misterio das grades do


confessionário... fazem que o sacramento se torne pouco significativo
para muitos fiéis.

A exposigáo dos dois títulos de aprego da confissáo co


munitaria deve ser completada por importante advertencia:

2. Nao sámente celebrares comunitarias

É inegável que as celebragóes penitenciáis coletivas po-


dem beneficiar a muitos fiéis, induzindo-os a urna recepgáo
mais consciente e frutuosa do sacramento; contribuiráo para
a renovagáo da piedade em nao poucas almas. Todavía pa
rece oportuno que os pastores de almas nao as imponham a
todos os penitentes. Estejam sempre prontos a corresponder
a quem os procure particularmente para se confessar. Na
verdade, há pessoas que podem necessitar de um atendi-
mento, no confessionário, mais prolongado, por motivos va
riados e muito compreensíveis. Outras pessoas talvez se sin-
tam constrangidas pelo desenrolar do cerimonial comunita
rio... Em vista disto, o sacerdote procurará deixar liberdade
aos fiéis para que realmente aproveitem do sacramento da
Penitencia segundo a capacidade própria de cada um.
Deve-se igualmente notar o seguinte: a fim de dar
significado sempre mais vivo e eficaz ao sacramento da
Penitencia, certos teólogos e mestres de espiritualidade pre-
conizam que, á guisa de satisfacáo sacramental, nao se indi-
quem preces («Pai Nosso» e «Ave María», salmos, Lada-
ínhas...), como geralmente acontece por motivos muito jus
tificados, mas se imponham atos que tenham sentido medi
cinal e valor verdaderamente expiatorio para o penitente.
Em outros termos: deseja-se que a satisfagáo sacramental
ajude realmente o penitente a se purificar; ora a recitagáo
de preces pouco influí na vida moral do penitente: quem é
preguigoso ou guloso ou mentiroso, nao perde seu mau há
bito por rezar breves oracóes. Por isto preconiza-se que, por
exemplo, a quem tem propensáo para a preguiga, o sacerdote
imponha um ato de diligencia (levantar-se a hora fixa ou
um pouco mais cedo); a quem tem inclinagáo para a gula,
o ministro imponha algum ato de abstinencia; a quem fácil
mente cai em mentira, a reserva no falar em certas ocasióes.
Tais sugestóes sao de grande valor e merecem ser
postas em prática desde que o ministro do sacramento tenha
a certeza de que o penitente aceitará devidamente os novos

— 120 —
• CONFISSOES COMUNITARIAS 33

tipos de satisfagáo. Acontece, porém, que ñas celebragóes


comunitarias a satisfagáo sacramental, sendo realizada em
comum, continua a ser assaz impessoal; consta de oragóes
ou cantos que talvez simbolizem mais do que constituem
purificagáo e expiagáo. — Assim as confissóes comunitarias,
por sua estrutura comunitaria, entravam a plena renovagáo
e restauragáo déste aspecto do sacramento que é a expiagáo
sacramental.
Compreende-se entáo que se possam fazer válidas reser
vas á celebragáo constante do sacramento sob a forma
comunitaria. Compreende-se também que se deseje nao sejá
supressa a administragáo estritamente privada da Confissáo
sacramental. Esta, em muitos casos, permitirá que o sacra
mento tenha penetragáo mais profunda e frutuosa na vida
do penitente, mormente se fórem aplicadas as sugestóes atrás
mencionadas.

Ñas próprias celebragóes comunitarias, cuidaráo os sa


cerdotes e dirigentes de que cada penitente fazer possa o
exame de sua própria consciéncia. Com outras palavras: tenha
a ocasiáo de sondar os movimentos e afetos característicos
de sua alma, ... investigar a maneira como tem correspon
dido as inspiragóes do Espirito Santo, ... apurar as omissóes
que tem cometido no decorrer de sua vida pessoal cotidiana.
É preciso, ehfim, que a personalidade de cada penitente seja
devidamente respeitada; possa cada qual ter a oportunidade
de se burilar (purificar) e de se expandir auténticamente,
com suas notas próprias, dentro das celebragóes comunitarias.
Em particular, quanto as criangas, é oportuno que apren-
dam a seguir nao sómente o rito da penitencia comunitaria,
mas também o do sacramento administrado individualmente.
Procurem aprender a «entrar dentro de si mesmaa», e saibam
examinar devidamente a sua consciéncia. Estes exercícios
sao indispensáveis a urna vida crista bem construida; tem de
ser praticados todos os dias por quem aspire realmente á
santificagá'o (alias, sem esta aspiragáo a vida crista se torna
caricatura).

Resta agora abordar a importante questáo:

3. Celebrado comunitaria dispensa confissao auricular?

1. Nos últimos tempos, urna questáo nova vem mere-


cendo atengáo crescente dos teólogos e dos pastores de almas.

— 121 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969. qu. 4

Eis como ela se póe:

Os cantos e as preces das celebracóes penitenciáis in-


cluem -o reconhecimento de que o homem é pecador; faz-se
assim urna confissáo geral do pecado; toda a assembléia, em
voz alta, se professa culpada diante de Deus. Pergunta-se
entao: será necessário ainda exigir que cada um dos.fiéis
presentes faga a sua acusagáo individual a um sacerdote?
Duas observagóes parecem corroborar esta dúvida:
a) Alegam alguns autores que os antigos cristáos pro-
vávelmente nao se acusavam de pecados que hoje sao consi
derados graves e váo submetidos ao poder das chaves.
A confissáo auricular, portante, nao lhes devia parecer
meio indispensável para obter a reconciliagáo com Deus.

b) Hoje em dia se, após urna celebragáo penitencial,


com leituras, cánticos e preces, ainda se procedesse á con
fissáo auricular, o rito se tornaría demasiado longo e, por
isto, impraticável para muitos fiéis.

2. Que dizer?

a) O Concilio de Trento, no século XVI, estudou com


especial atengáo o tema da confissáo auricular, tendo em vista
a controversia suscitada pelo Protestantismo. Os conciliares
intencionaram recolher o auténtico ensinamento da Escritura
e da Tradigáo sobre o assunto e formulá-lo em termos defi
nitivos. — É, portante, ao Concilio de Trento que se deve
recorrer na presente dúvida levantada pelas celebragóes co
munitarias da Penitencia.
Ora, segundo o Concilio de Trento, a Igreja sempre en-
tendeu que o Senhor, ao instituir o sacramento da Penitencia,
instituiu também a necessidade absoluta de se confessarem
todos os pecados moríais; essa necessidade incumbe, por di-
reito divino, a todos aqueles que tenham pecado após o Batismo
(Denzinger-Schonmetzer, «Enquirídio» n» 1679).
Mais ainda, declara o Concilio: a Confissáo é necessária
a quem tenha a desgraca de pecar, como necessário é o Ba
tismo a quem nao o tenha ainda recebido (D-S n« 1672).
O Concilio determinou também, se confessem as circuns
tancias que mudem a especie do pecado (D-S n» 1681. 1707).
Afirmou outrossim que a exigencia de fiel confissáo dos
pecados decorre da índole judiciária do sacramento da Peni-

— 122 —
CONFISSOES COMUNITARIAS 35

téncia; sem conhecimento exato dos atos do penitente, nao é


possível ao ministro do sacramento exercer a fungáo de juiz
que Cristo lhe quis atribuir (cf. D-S 1679. 1709).
Alias, ao falar de ato judiciário, o Tridentino nao quis
dizer que o sacerdote deva apenas formular um juízo sobre
as disposic.óes do penitente ou sobre a sua aptidáo para rece-
ber a S. Eucaristía; o Concilio quis reconhecer ao sacerdote
um auténtico poder de jurisdigáo e de reconciliaQáo com Deus
sobre o penitente (cf. D-S n' 1670. 1686. 1703. 1709). — Está
claro que táo importante poder nao tem sua origem na auto-
ridade do Concilio de Trente mesmó ou da Igreja, mas na
vontade do próprio Cristo, que quis instituir a remissáo dos
pecados na Igreja dentro dos moldes do amor, sim, mas
também segundo as normas objetivas do Direito.
Desde os inicios de seus estudos sobre a Penitencia
sacramental, os padres, conciliares de Trente manifestaram
mais de urna vez que consideravam como henesia -a sentenga
dos Reformadores, que admitiam a utilidade, nao, porém, ■ a
absoluta necessidade da confissáo auricular. Cf. «Concilium
Tridentinum» (ed. Gorres) VII 224-236, art. 4-6.
Os ensinamentos do Concilio de Trento sao definitivos,
como se depreende do teor mesmo de suas afirmagóes. Em
conseqüéncia, julgam os teólogos, a Igreja nunca poderá dis
pensar a acusagáo dos pecados mortais cometidos após o Ba-
tismo (a menos — o que se compreende — que o penitente
esteja física ou moralmente impedido de fazé-la).
Seria yáo querer opor ás explícitas declaragóes do Con
cilio de Trento: os dizeres ou a praxe dos antigos Doutóres
da Igreja, que (como as vézes se afirma) teráo pensado
diversamente dos padres tridentinos. Na verdade, os estu
diosos apontam casos clássicos que manifestam como a Igreja
antiga era consciente da necessidade de se submeterem ao
poder das chaves Os pecados que Ela considerava graves,
embora nao fossem públicos. Mais ainda: admita-se que os
antigos cristáos nao tenham julgado mortais certos pecados
que hoje sao tidos como tais; ainda que isto se tenha dado,
o ensinamento de Trento permanece incólume, pois representa
urna fase mais evoluida da consciéncia moral dos cristáos.

Análogamente, o fato de que os antigos cristáos nao professavam


explícitamente certas verdades concernentes a Maria SS. (a Imaculada
Conceicáo, a Assuncao gloriosa...), que hoje sao familiares aos cató
licos, nao dep6e contra tais dogmas. Na verdade, verifica-se que, atra-
vés dos séculos, o povo de Deus se íoi tornando mais e mais cons
ciente das proposicOes implícitamente contidas na Divina Revelacáo.

— 123 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969, qu. 4

En» conclusáo: tendo a Igreja no Concilio de Trente so-


lenemente reconhecido que o Senhor, ao instituir o sacra
mento da Penitencia, instituiu também o exercício individual
do poder das chaves, a Igreja nao pode aprovar a adminis-
tragáo meramente coletivá ou comunitaria do sacramento da
Penitencia, administragáo que dispensa a confissáo e a absol-
vicáo individuáis (excetuando-se, naturalmente, os casos em
que a administracáo individual seja, de todo, impossível).

b) Quanto á alegacáo de que a confissáo individual


prolongaría excessivamente a celebragáo penitencial, é insu
ficiente no caso; nao basta, por si, para fazer que um ato
que nao é sacramento se tome sacramento. — Trate-se, pois,
de adaptar as sucessivas partes da celebragáo penitencial as
possibilidades da assembléia participante; assim preparacáo
comunitaria e administragáo individual do sacramento seráo
devidamente executadas.
A tais consideragóes de índole negativa, a consciéncia
honesta manda que se acrescente ainda urna observagáo.

4. Casos excepcionais

Diante de razc-es imperiosas, a S. Igreja pode permitir


que pecadores contritos recebam ¡mediatamente a absolvigáo
sacramental, á condigáo, porém, de que aceitem o Sever de se
confessar na primeira oportunidade que lhes ocorrer.
E quais seriam essas razoes imperiosas?

— A resposta será proposta por partes:

Em 1679 o Papa Inocencio XI condenou a opiniáo de


certos teólogos segundo a qual seria licito absolver pecadores
que só se confessassem parcialmente de suas faltas em vir-
tude de grande afluencia de penitentes (como se verifica, por
exemplo, nos grandes dias de festa ou de indulgencias). Cf.
Denzinger-Schonmetzer n' 2159.

Recusando dispensar a confissáo integral dos pecados nesses casos,


a Igreja quería evitar possiveis abusos: certos sacerdotes poderiam,
sim, renunciar precipitadamente a ouvir os penitentes em coníissáo,
ou certos penitentes poderiam intenclonalmente escolher os dias de
grande afluencia ao confessionário para .receber a absolvicao sacra
mental sem fazer a acusacáo pessoal de suas faltas.

Todavia em 1944 a Sagrada Penitenciaria de Roma teve


a ocasiáo de responder a urna pergunta que lhe fóra feita

— 124 —
CONFISSOES COMUNITARIAS 37

sobre possíveis excegóes á regra da confissáo individual.


Mencionou ent&o a condenagáo proferida por Inocencio XI
(ácima citada) e acrescentou o seguintej torna-se lícito dar
a absolvigáo geral (absolvigáo a um grupo de fiéis) nao pre
cedida de confissáo pessoal) em casos de extraordinaria aflu
encia de penitentes, desde que, para tanto, se registre urna
necessidade grave e urgente, necessidade proporcional ao pre-
ceito divino de se fazer confissáo integral dos pecados. Tal
necessidade grave e urgente ocorreria, conforme ,tal decisáo,
se, por exemplo, os fiéis, sem culpa sua, tivessem de perma
necer muito tempo sem a graga sacramental e a Santa
Comunháo.

A mesma declaragáo da Sagrada Penitenciaria terminava


lembrando insistentemente que os fiéis, após ter recebido a
absolvigáo sacramental sem previa confissáo nos casos indi
cados, ficavam na obrigagáo de confessar todos os pecados
graves ainda nao acusados; deveriam desincumbir-se dessa
obrigagáo logo que voltassem ao sacramento da Penitencia
(nao seria necessário, porém, procurar o sacramento só-
mente para fazer tal acusagáo). Cf. Denzinger-Schonmetzer
n* 3834s.

Essa determinagáo da S. Igreja tem sido aplicada, por


exemplo, em térras de missóes, onde faltam sacerdotes (os
missionários que possam raramente por determinada regiáo,
talvez nao tenham o tempo de ai ouvir cada penitente indi
vidualmente). Tem sido utilizada também nos países em que
um Govérno hostil torne difícil oU impossível o acesso dos
fiéis ao confessionário.

Desde que se verifiquem semelhantes razóes graves e


imperiosas ou, melhor, desde que em sá oonsciéncia se possa
prever que ficaráo os fiéis por muito tempo privados da
graga sacramental e da S. Eucaristía, caso nao sejam absol-
vidos coletivamente, pode o sacerdote conceder a absolvigáo
geral aos mesmos fiéis. Se o julgar oportuno, recorrerá entáo
a urna celebragáo comunitaria da Penitencia, que se concluirá
com urna absolvigáo geral sacramental. Conseqüentemente,
ficaráo os penitentes obligados a se confessar individualmente
das faltas ainda nao acusadas quando voltarem ao sacramento
da Confissáo.

Eis o que, mima visáo pastoral larga e ortodoxa ou fiel


á S. Igreja, se pode dizer a respeito de celebragóes comuni
tarias de Penitencia e confissáo pessoal dos pecados.

— 125 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969, qu. 5

Bibliografía:

Z. Alszeghy S. J., «L'aggiornamento del sacramento della Peni-


tenza», ,em «La Civiltá Cattolica», 20/IV/68, pág. 139-148.
ídem, «Problemi della celebrazinne penitenziale comunitaria», em
«Gregorianum» XLVHI (1967) 577-587.
ídem, «Carita ecclesiale nella penitenza cristiana», em «Grego-
rianum» XLIV (1963), pág. 5-31.
A.-M. Roguet, «Les célébrations de la Pénitence», em «Vie Spixi-
tuelle», abril 1967, pág. 188-202.
C. Vogel, «Le pécheur et la pénitence dans l'Église ancienne».
Paris 1966.
C. Jean-Nesmy, «Le sacrement de pénitence aujourd'hui», em
«Informations Catholiques Internationales», n» 282 (15/11/67), pági
nas 17-23.

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

5) «Se o Cristianismo é a verdadeira Beligiao, pode-se


dizer que a historia do Cristianismo dá testemunho dessa sua
autenticidade?

As origens do Cristianismo indicam de algam modo a


agito de Dieus entre os horneras?»

Resumo da. resposta: A historia do Cristianismo apresenta suas


íases positivas como também seus aspectos sombríos. Estes sao fre-
qüentemente evocados pelos racionalistas como testemunhos de que
a Igreja nada tem de sobrenatural. Para o cristáo, os quadros ditos
escabrosos da historia da Igreja nao sao surpreendentes: correspon-
dem, do seu modo, ao misterio da Encarnacáo. misterio central do
Cristianismo; Deus quer comunicar-se aos homens mediante os ho-
mens. Ora estes sao sempre limitados, cultural e moralmente. A luz
da fé, os aspectos sombríos da historia da Igreja vém a ser altamente
positivos, pois atestam que é Deus mesmo quem sustenta a sua Igreja,
através e apesar da fraqueza dos homens.

Doutro lado, devem-se considerar os aspectos positivos da histo


ria do Cristianismo, principalmente em seus tres primeiros séculos.
As origens da Igreja sao, por vézes, tidas como um portento na
ordem moral. Com efeito, considere-se a rápida e extraordinaria ex-
pansáo do Evangelho eíetuada a revelia de ingentes obstáculos e
com exigüidade de meios, de modo a provocar verdadeira revolucáo
moral da humanidade. Os recursos e artificios humanos nao dáo canta
de tal fenómeno, que parece exigir se admita a intervencáo de Deus

— 126 —
HISTORIA DEPOE PRO OU CONTRA CRISTIANISMO ? 39

na historia da humanidade. É justamente esta intervencao que explica


e sustenta a existencia da Igreja.
Vé-se, pois, que a historia do Cristianismo, longe de contradizer,
comprova a índole sobrenatural da Religiáo Crista.

Resposta: Nao é raro ouvirem-se objecóes ao Cristia


nismo provenientes da parte dos historiadores. Principalmente
nos últimos tempos tem-se dito que a obra de Cristo fracassou;
e, para prová-lo, apontam-se quadros «escabrosos», antigos e
contemporáneos, de sua historia.
As páginas que se seguem, levando em conta essas difi-
culdades, consideraráo primeiramente o sentido dos episodios
obscuros da historia da Igreja. A seguir, tentaráo chamar a
atencáo para o que a historia do Cristianismo apresenta de
positivo ao lado de seus pontos tidos como escabrosos. O con
fronto gerará luz...

1. Na fraqueza do homem, a torga «fe Deus

1. Quem considera o fenómeno «Cristianismo», descobre


néle aspectos contraditórios:
Muitos déles sao positivos. O Cristianismo purificou a
mentalidade dos homens, elevou os costumes da sociedade.
Formou e instruiu os povos bárbaros, que se tornaram sus
tentáculos da civilizacáo ocidental. Fomentou o cultivo das
artes e o estudo das ciencias através dos sáculos. — Fora do
Ocidente europeu, o Cristianismo educou numerosas popula-
cñes primitivas, dando-lhes a fé e a cultura. Grandes nomes
de santos e heróis (monges, bispos, cavaleiros, virgens consa
gradas, máes de familia...) marcam de ponta a ponta os vinte
sáculos de historia da Igreja.
Inegávelmente, porém, há fases pouco edificantes na his
toria da Igreja. Basta lembrar o sáculo X (dito «sáculo
obscuro» ou «de ferro»), o sáculo XVI (época do humanismo
paganizante e da cisáo luterana)... Nem todos os supremos
Pastores da Igreja foram santos; nem todos os que tém pro-
fessado a fé crista, a viveram coerentemente.
O estudioso liberal, considerando ésses episodios sombríos
da historia, tende a condenar a própria Igreja; tais fases

— 127 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11171969, qu. 5

parecem-lhe constituir o mais irrefragável testemunho de que


a Igreja nada tem de sobrenatural e, por conseguinte, nao
pode pretender ser mestra da verdade.

2. O cristáo olha para os mesmos quadros da historia


com olhar um tanto diferente. Nao pretende esquivar-se á
realidade dos fatos. Mas considera as falhas dos homens da
Igreja dentro de um quadro mais ampio, que é o da Encar-
nagáo. Explanando esta perspectiva, diz o P. Congar, um dos
maiores teólogos de nossos dias, que a comunicagáü de Deus
aos homens «se realiza numa encarnacáo em que Deus nao
segué a sua lógica própria, nem a lógica de espirites puros,
mas urna lógica de homens».

Isto quer dizer, em outros termos, que a santificagáo da


humanidade nao se realiza de maneira apocalíptica ou mila
grosa, mas de acordó com os moldes da condicáo humana;
Deus, tendo criado o homem livre, julgou que a salvagáo da
humanidade nao se deveria dar sem a partidpagáo désse
mesmo homem livre. Neste sentido é que se pode dizer que
«Deus precisa dos homens»..

3. De tais consideragóes se seguem importantes conclu-


•sóes para a historia da Igreja.

Esta tem por atores homens livres. Os atos désses ho


mens, mesmo que sejam homens de fé e de grande ideal, nao
podem deixar de apresentar, como qualquer outro ato hu
mano, suas motiva$6es humanas (por vézes, mesmo muito
humanas), que é possível analisar, e suas Iimitagdes humanas,
que é possível avaliar.

Essas limitagóes podem-se situar

a) na linha da inteligencia e do temperamento. Nem


sempre os atores da historia da Igreja (bispos, presbíteros
ou leigos) tiveram a devida competencia humana ou natural
para agir, nem sempre foram devidamente informados antes
de decidir, nem sempre compreenderam as situagoes em'que
tinham de intervir; ressentiram-se, por vézes, de estreita
visáo da realidade; foram, vez por outra, lentos na tarefa de
se adaptar á evolucáo dos homens e das circunstancias (por
que nao percebiam bem a necessidade de evoluir ou se sentiam
sufocados pelas dimensóes das obras a empreender).

Essas limitagóes deram ocasiáo as chamadas «faltas his


tóricas» (deficiencias ou lacunas da historia da Igreja), acon-
tecimentos infelizes, que nao implicam necessáriamente culpa

— 128 —
HISTORIA PEPOE PRO OU CONTRA CRISTIANISMO ? 41

pessoal em quem as comete, mas que acarretam conseqüen-


cias as vézes mais pesadas e trágicas do que as de pecados
pessoais,

b) Outro tipo de limitagSes dos homens da Igreja é o


de índole moral. Deve-se reconhecer que cometeram infideli
dades, por vézes, graves. A Providencia nao quis que de tais
faltas fóssem isentos nem os santos (estes podem ter come
tido erros, de que posteriormente se teráo arrependido), nem
os pastores mais elevados (pois infalibilidade papal nao se
confunde com impecabilidade).

De resto, os documentos da historia da Igreja atestam


nao sómente as fainas ácima apontadas, mas também o reco-
nhecimento dessas falhas por parte dos próprios pastores da
Igreja.

Assim o Papa Adriano VI (1522-23) dava as seguintes


instrugóes ao legado que o representaría na Dieta de Ratis-
bona, após o cisma de Lutero:

«Dirás que reconhecemos livremente que Deus permitiu esta per-


seguicao da Igxeja por causa dos pecados dos homens, e, de modo
especial, dos sacerdotes e dos prelados... A Escritura Sagrada en-
sina-nos com éníase que as faltas do povo tém suas fantes ñas faltas
do clero... Sabemos que, mesmo na Santa Sé, anos atrás, foram
cometidas abominaoSes numerosas, abusos das coisas sagradas, trans-
gressdes dos mandamentos, de tal sorte que tudo redundou em
escándalo» (transcrito de L. Pastor, «Histoire des Papes», t. IX,
pág. 103s).

Quando se concluiu o Concilio de Trento, o Cardeal de


Lorena, evocando a reforma protestante, exclamou:

«Tendes o direito de nos perguntar qual a causa de tal tempes-


tade. Quem acusaremos nos, irmáos Bispos?... Foi por causa dé
nos que esta tempestade se levantou, meus Padres, ... o juizo co-
meca pela casa do Senhor (cí. 1 Pe 4, 17); puriflquem-se aqueles que
trazem os vasos do Senhor (cf. Is 52,11)» (cí. «Concilium Triden-
tinum», ed. (Jorres, t. IX, 1924, pág. 163s).

Sao Vicente de Paulo, santo como era, observava:

«Foi mediante os sacerdotes que os herejes prevaleceram, o vicio


reinou e a ignorancia estabeleceu o seu trono em meio ao povo
pobre» (citado por J. Delarue, «L'ldéal missionnalre du prétre d'aprés
saint Vincent de Paúl». Paris 1947, pág. 283).

Tais testemunhos, impressionantes por sua sinceridade, e


os fatos que éles supóem, nada tém que surpreenda um fiel
cristáo. Com efeito, as manifestagóes de Deus através da

— 129 —
42 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969. qu. 5

sua Igreja estáo sujeitas ás condicóes ordinarias do «huma


no». Visto que a Igreja — Corpo de Cristo e Templo do Es-
Dírito Santo — é, em sua face externa, constituida de homens
que oonservam sua personalidade humana, visto também que
Ela é dirigida, segundo a vontade de Cristo, por homens que
agem com suas qualidades e seus defeitos humanos, torna-se
compreensível que haja lugar para erro e pecado na vida
dos membros da Igreja. Só tem garantía de infalibilidade o
magisterio da Igreja (ordinario e extraordinario) quando se
pronuncia sobre questóes de fé e de moral, com a intencáo
de definir proposigóes a ser aceitas por todo o povo de Deus.

O magisterio ordinario é o ensinamento ootidiano dos Bispos,


espalhados pelo orbe e unidos ao Bispo de Roma (o Rapa). O magis
terio extraordinario é exercido pelos Concilios Ecuménicos e pelos
Papas, quando tém em vista íalar em termos definitivos sobre assun-
tos de íé e moral.

Quem esquecesse o papel do humano na Igreja, cairia


em nova modalidade da antiga heresia dita «monofisitismo»
(séc. V/VH).
O monofisitismo ensinava que em Cristo a natureza hu
mana fóra totalmente absorvida pela divina, após a ressur-
reicáo do Senhor. Essa escola menosprezava a humanidade
do Senhor Jesús. Atitude semelhante é a de quem se surpre-
ende com procedimentos humanos no Cristo prolongado, que
é a S. Igreja.

4. Deve-se mesmo dizer que, para o fiel católico, os


aspectos escabrosos da historia da Igreja, longe de ser sinal
de inautenticidade dessa Igreja, constituem um dos mais
fortes argumentos em favor da índole sobrenatural dessa
sociedade. A fraqueza dos homens teria feito sogobrar o
Barco de Pedro se nao fóra a constante agáo de Deus mesmo
nesse Barco; quanto mais sombríos parecem certas quadros
da historia da Igreja, mais concorrem para manifestar a pre-
senga e a eficacia do Senhor no desenrolar dessa historia.
Se a Igreja subsiste até hoje — e subsiste como foco de luz
(verdade) e calor (amor) entre os homens — isto se deve
únicamente ao fato de que é Deus quem a sustenta, garan-
tindo-lhe o exercício de sua missáo na térra, através (e ape- ■
sar) da fraqueza dos homens que a integram. .?
Estas ponderagóes se tornam especialmente significativas j
para quem se detenha um pouco sobre as origens da Igreja. ¿
É entáo que de maneira particularmente lúcida se evidencia j
o caráter sobrenatural da Esposa de Cristo. ¡)

— 130— i
HISTORIA DEPOE PRO OU CONTRA CRISTIANISMO ? 43

Donde o novo título:

2. As origens do Cristianismo

Tem-se dito que a historia da Igreja, principalmente em


seus inicios, é auténtico portento de ordem moral.
Esta afirmacáo se apoia nos quatro seguintes tópicos:
1) O Cristianismo conheceu, nos seus principios, rápida
e extraordinaria expansáo,
2) embora tivesse de enfrentar gigantescos obstáculos,
3) e contasse com insuficiencia de meios.
4) Produziu assim verdadeira revolugáo moral.

Consideremos de per si cada urna das proposigóes ácima.

1) Rápida expansáo

Os antigos nao se preocupaVam com estatísticas, nem tinham os


meios mais adequados para realiza-las. Nao obstante, podem-se en
contrar no decorrer da historia documentos sucessivos que dio a ver
algo da difusáo do Evangelho em seus primeiros tempos.

Pode-se dizer que, pouco depois da Ascensáo jdo Senhor,


o Cristianismo já contava milhares de adeptos dispersos ao
redor da bacia do Mediterráneo.

Em 64, o Imperador Ñero deu inicio á perseguigáo aos


cristáos na cidade dé Roma. O escritor romano Tácito refere
que foi entáo martirizada «imensa multidáo» (Anais 15,44)
de discípulos de Cristo — o que sugere notável propagagáo
da re criotg trinta e um anos após a morte do Senhor.
Em 112, oitenta e cinco anos apos a Ascensáo, a Asia
Menor se fez ouvir a respeito dos cristáos. — Plínio o Jovem,
Governador da Bitínia (Asia Menor), escrevia ao Imperador
Trajano dizendo-lhe que «o contagio dessa superstigáo havia
atingido nao sómente as cidades, mas também as aldeias e
os campos» (Epístolas X). O Cristianismo, na Asia Menor,
modificara a vida social a ponto de inquietar os partidarios
da antiga ordem: os templos pagaos estavam mais ou menos
desertes, desprezavam-se os cultos oficiáis do Imperio, o co
mercio de animáis para os sacrificios pagaos corría serio
perigo de estagnacáo.

— 131 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969, qu. 5

Em cérea de 197, Tertuliano assim se dirigía aos perse


guidores no seu «Apologético»:
«Se quisermos agir nao como viingadores clandestinos, mas como
inimigos declarados faltar-nos-áo efectivos? Sao talvez mais nume
rosos do que nos os Mouros, os Marcomanos e os próprios Partos?
Urna populacáo qualquer, limitada a urna regiáo e encerrada em
seus coníins próprios, será acaso mais numerosa do que aqueles que
estáo disseminados por todas as partes da térra? Somos apenas de
ontem, e já enchemos o mundo. Encontramo-nos hoje em tudo que
é vosso: ñas cidades, ñas ilhas, ñas fortalezas, nos municipios, nos
pequeños burgos e mesmo nos campos, ñas tribos, ñas curias, no
senado e mo foro. Nao vos deixamos senao os vossos templos vazios.
Sem pegar em armas e sem mover urna rebeliao aberta, poderiamos
combater-vos afastando-nos com o desdém de um recesso. Dada a
grande multidáo que somos, se nos separássemos de vos, retirando-
-nos para um lugar distante, a perda de tantos cidadaos (nao impor
ta quem sejamos nos) solaparía o vosso orgulho de soberanos do
mundo... Convosco ficaria maior número de inimigos do que de
súditos Eis, porém, que agora é menor o número dos vossos inimigos
por mérito -desta multidáo de cristáos, pois, na verdade, tendes súditos
cristáos em quase todas as vossas cidades e populacSes».

O leitor fará o descontó exigido pela énfase de um ora


dor inflamado do norte da África. Todavía pode-se dizer que
a idéia ácima expressa por Tertuliano era, em suas grandes
linhas, exata; já no fim do século II a Igreja, pelo número
de seus membros e por sua projegáo na sociedade, era um
poder com que o Imperio Romano devia contar.
No inicio do ano 300 defronta-se outro testemunho,
especialmente valioso porque proveniente de um pagáo. O
Imperador Maximino escrevia a Sabatino urna carta, onde
se lia:

«Creio que sabéis, tu e todos os cidadaos, como os nossos chefes


e pais Diocleciano e Maximiano, vendo que quase todos os Jhomens
abandonam o culto dos deuses e se unem á seita dos cristáos, co^
razáo estabeleceram... que fóssem de novo chamados »° ^ult0 lra"
dicional mediante pública correcüo e supliré-

Em 345 o eocrltor cristáo Firmicio Materno indagava:


«Km aue parte da térra se enoontra urna aldeia que nao tenha
sido conquistada pelo nome de Cristo? O Oriente e o Ocidente, o
Norte e o Sul foram preenchidos pela majestade désse nome. É ver
dade que em algumas regioes ainda se movem os membros mori
bundos da idolatría, mas estamos próximos do momento em que esta
molestia pestífera estará totalmente erradicada em todas as locali
dades» («De errore profanarum religionum»).

Tinha, pois, razáo o historiador liberal Adolfo Harnack


(tl930), quando afirmava:

— 132
HISTORIA DEPOE PRO OU OONTRA CRISTIANISMO? 45

«É ocioso perguntar se a Igreja teria vencido, mesmo sem Cons


tantino. Um Constantino devia, cedo ou tarde, aparecer. Como quer
que seja, mesmo antes de Constantino, a vitória do Cristianismo ja
estava decidida em tóda a Asia Menor e seguramente preparada ñas
demais regi6es do Imperio» («Mission und Ausbreitung des Chris-
tentums»).

O mesmo autor afirmava que em 312 (um ano antes da


paz de Miláo, outorgada por Constantino aos cristáos) o
Oriente contava cérea de 900 diocesses e o Ocidente 600.
Donde concluía Harnack: «Creio que o Cristianismo se pro-
pagou oom extraordinaria rapidez... Os Padres da Igreja no
sáculo IV tinham razáo ao se surpreender com os progressos
que a sua fé tinha feito de geragáo a geracáo» (ob. cit.).
Note-se ainda que o Cristianismo, tendo comecado a se
propagar ñas classes mais humildes da sociedade, nao se li-
mitou a estas; já no sáculo n nobres, intelectuais, oficiáis da
c6rte e membros da familia, imperial foram atingidos pela
Boa-Nova. O historiador Eusébio de Cesaréia (t 340 aproxi
madamente) atesta que «toda a corte de Valeriano (253-260)
era cheia de homens timoratos e parecia urna igreja de Deus»
(Historia da Igreja V 21).

2) Os obstáculos á exponsáo

a) Os destinatarios greco-romanos aos quais se dirigía


a pregacáo crista, achavam-se em nivel moral extremamente
baixo: os vicios eram nao sámente praticados, mas até vene
rados ñas figuras das divíndades do paganismo. A sodomía,
o adulterio, o lenocinio, o infanticidio, a crueldade constituiam,
por vézes, o espetáculo público tanto dos nobres como das
massas,

Foi precisamente a ésse mundo que os arautos cristáos


pregaram a moral mais pura e exigente: «Bem-aventurados
os que tém o coracáo puro, ... os que tém O espirito de
pobre, ... os que choram». Apresentavam como trofeo urna
cruz, que, para os antigos, devia ser o que urna fórca é para
nos. Quem se convertesse, devia contar com a perspectiva da
perseguigáo e do martirio. Nao obstante, em um sáculo mi-
lhóes de pessoas aceitaram tal mensagem dura e acolheram
o martirio como festa nupcial.
No séc. II podia S. Justino dízer aos pagaos:
«Nos, que nos aíogáv'amos na impureza, agora abracamos a cas-
tidade; nos, que praticávamos a magia, agora nos consagramos ao

— 133 —
46 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969, qu. 5

Deus bom e eterno. Outrora procurávamos ácima de tudo o ouro e


as riquezas; agora os pomos em comum e fazemos que os pobres os
compartilhem. Outrora éramos divididos pelos odios e as vingancas;
considerávamos como estrangeiros os que nao eram da nossa estirpe;
agora, porém, canvivemos em paz e oramos por nossos inimigos. Isto
tudo acontece a partir do dia em que conhecemos a religiáo de Cristo>
(I Apología 14).

Verdade é que também os filósofos estoicos (Séneca,


Epicteto...) apresentavarn ao mundo urna moral elevada.
Mas tiveram poucos seguidores; o estoicismo ficou sendo um
fenómeno confinado a grupos de intelectuais e aristócratas.
Ao contrario, o Cristianismo foi contagiante para todas as
categorías da populagáo paga.

Ainda outros obstáculos ao Cristianismo merecem mengáo:


b) Jesús era um judeu, filho de estirpe desprezada por
todos os povos de sua época, em particular por gregos e ro
manos. Mais ainda: os cristáos eram tidos como membros de
urna seita judaica, adeptos de superstigáo funesta e de urna
das crengas mais abjetas que haviam entrado em Roma.
Ésse mesmo Jesús passara por réu, condenado ao supli
cio mais degradante, após processo legal. Em vista do que,
dizia Sao Paulo que pregar o Cristo crucificado constituía
«escándalo para os judeus e loucura para os pagaos» (1 Cor
1, 23).
c) O Cristianismo se apresentava como religiáo exclu
sivista em relagáo as demais crengas religiosas. Apregoava
monoteísmo rígido, sem tolerar o mínimo vestigio de sincre
tismo; profligava até os deuses de Roma — o que parecia
por em perigo a subsistencia de Roma e dava motivo a que
os cristáos fóssem acusados de lesa-pátria e odio ao género
humano.

d) A conversáo ao Cristianismo ocasionava freqüente-


mente dolorosas tragedias de familia: por causa de Cristo,
houve filhos que se viram deserdados por seus pais, esposas
repudiadas ou mesmo acusadas por seus maridos dianle dos
tribunais, mangas martirizadas em presenga dos genitores.
Quem se convertesse ao Evangelho, corría o risco de sofrer
o confisco de seus bens, a perda de um cargo público, graves
calúnias, miseria e desprézo.
Em urna palavra, pode-se dizer que o Cristianismo en-
controu, conjuradas contra si, todas as fórgas de que urna
sociedade pode dispor: o poder governamental e a opiniáo

— 134 —
HISTERIA DEPOE PRO OU OONTRA CRISTIANISMO ? 47

pública, a ciencia dos intelectuais e os preconceitos do povo,


a policía e as leis... Sustentou a luta durante quase tres
sáculos, e saiu vencedor.

3) Insuficiencia de meios

Os recursos mediante os quais o Cristianismo se difun-


diu, foram os mais exiguos possiveis.

Os arautos da Boa-Nova nao eram filósofos, nem orado


res, mas um grupo de homens rudes que nao tinham apren
dido a falar senáo o próprio dialeto; ignoravam os métodos
da propaganda; nao tinham em si mesmos nem coragem,
nem poder de fascinacáo nem senso de organizacáo... Nao
obstante, foi déles que procedeu a conquista do mundo greco-
-romano. O mais poderoso Imperio da antigüidade se defron-
tou com urna populagáo de fiéis inermes, que se deixaram
degolar e queimar vivos...; finalmente a vitória coube nao
ao Imperio, mas ao ideal dos mártires (em 313, foi promul
gada a Paz de Miláo).
Dirá talvez alguém: o Cristianismo prevaleceu porque
esposou a causa dos míseros e oprimidos, despertando néles
a esperanga de urna redencáo social... — Em verdade, nao
se poderia dizer que os primeiros arautos do Evangelho
hajam prometido aos pequeninos bem-estar terrestre, mu-
danga de condigóes económicas ou sociais, liberdade civil...;
ao contrario, o que éles podiam prever para seus seguidores
eram insultos e perseguigSes. Donde se pode concluir com
Sao Paulo (1 Cor 2, 1-5) que o sucesso da pregagáo crista
nao se explica por fatóres e artificios humanos, mas única
mente por intervengáo da Providencia Divina, que houve por
bem produzir com recursos inadequados os mais estupendos
efeitos.

Há, porém, quem recordé, a esta altura, a notável ex-


pansáo do Budismo e do Islamismo, que hoje em dia contam
respectivamente 165 e 465 milhóes de adeptos. — Em res-
posta, deve-se observar que budistas e maometanos nao so-
freram tres séculos de perseguigáo ao nascer. O Budismo
ficou confinado aos povos da Asia. Quanto ao Islamismo,
chegou mesmo a servir-se da guerra santa para garantir a
sua propagagáo. Ao contrario, a difusáo do Evangelho no
Imperio Romano se fez mediante pregagáo e persuasáo ape
nas, num ambiente hostil.

— 135 —
4i «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 111/1969. qu. S

4) Revolujáo moral

Há ainda outro tópico importante a considerar ñas orí-


gens da Religiáo Crista: a renovacáo moral que ela acarretou
para a humanidade.
Considere-se a familia no Imperio Romano. — As lcis
iivis permitiam o aborto, o infanticidio, a. venda dos filhos
A consciéncia de Séneca, um dos maiores moralistas roiña-
oos, nao se surpreendia diante de tais crimes: ao contrario
ohservava:

«Quando matamos os caes furiosos... e submergimos as crian-


lSSS0?aSf7í!Í»)!ÍMemos movldos **c6Iera- ^
A mulher, no paganismo, era vilipendiada pela poligamia
o adulterio, o divorcio, a prepotencia do marido... Depois
de casada, podía ser tratada pelo esposo como um objeto
lualquer de propriedade déle; podía ser repudiada por mo-
ávos fúteis ou ser entregue em heranca como um ser Ina
nimado.
O Cristianismo reformou ésses costumes: reconheceu na
mulher a dignidade da natureza do próprio homem; de ins
trumento da volúpta, transformou-a em companheira e con-
selheira do marido, destinada a comparülhar com ele as res
ponsabilidades do lar e a educacSo dos filhos. A Moral crista
cejeitou o aborto, condenou o infanticidio e proibiu a venda
ie filhos. Declarou o matrimonio uno e indissolúvel, e enal-
feceu o valor da prole. Observa multo bem Giovannl Albanese:
«O pai pagSo que incita a ama a langar o íllho recém.nascldo
10 llxo na rúa . O mártir crlstao Leónidas, que descohre o peltode
deu fllhlnho Orígenes adormecido e o beija com veneracao como
sendo o templo do Espirito Santo; els concreUzados dols mundos, duas
Hlosotlas» («Alia ricerca dalla fcde». Assisl 1968, p&g. ¿76)?

Observe-se também o influxo do Cristianismo sobre a


radedade dvil. — A tiranía e o despotismo forara condenados,
* autoridade reconhetída dentro dos Justos limites. O homem
tprendeu, pela primelra vez na historia, que ele é llvre do
feto e do destino, Uvre para vlver segundo a sua consciéncia.
0 Cristianismo, embora nao tenha excitado os homens a
oebeliSo armada, formulou e difundiu os principios de igual-
dade e fraternldade em virtude dos quais seriam paulatina
mente repudiadas as discrimmacSes baseadas sfibre a raca,
o sexo, a prepotencia, a política, a nadonalldade. Foi o Cris*

— 136 —
tianismo que pela primeira vez proclamou aos homens: cJá
nao há judeu, nem grego; nem escravo. nem livre; nem
homem, nem mulher; mas todos sois um so em Cristo»
(Gal 3, 28).
O Evangelho ensinou que nao bá estrangeiro a odiar,
nem bárbaros a escravizar, mas apenas, e em toda parte,
Irmáos a amar: «Amai os vossos inimigos e orai por vossos
perseguidores (Mt 5,44). Por teto podia Tertuliano (séc. HI)
dizer: cSó reconhecemos urna república para todos: o mundo»
.(cApologético» 38).
O Cristianismo, portante, íoi a grande revolucjto moral
da historia. Soube transformar os homens, a partir de qual-
quer nivel moral, elevando-os ao heroico exerddo da virtude
através de todos os sáculos.
Nao há dúvida, nem todos os cristáos sao © que deve-
riam ser. No quadro destas páginas, porém, basta mostrar
que o Evangelho possui a fdrga para transformar os homens,
desde que estes se deixem penetrar por ele. De resto, se
tantos cristáos sao pouco edificantes, ele o sao nao em
conseqiienda do Cristianismo, mas por incoerericia com o
Cristianismo; nao por serem cristáos, mas por serem pouco
cristáos.
Em condusSo: a rápida expansáo do Cristianismo nos
primelros sáculos, apesar dos ingentes obstáculos que encon-
trou, e da exigüidade de meios com que contou, expansáo que
marcou profundamente os rumos da historia, ésse fenómeno
parece nao encontrar explicacáo satísfatória no mero Jógo dos
fatdres humanos. É, antes, o sinal de que Deus mesmo é o
Autor e Sustentáculo da Religiáo Crista.

Religiosa de S. Paulo: veja, por favor, «P.H..» 96/196?,


pág. 501-514; 86/1967, pág. 56-67*

Errata: no n« de «P.R.» 109/1969, pág. 9, linha 10 de


babeo para cima, ler: cirreligiosa de seus limaos.»

D. Estéváo Bettencourt O.S.B.


NO PRÓXIMO NÚMERO :

- «Procura-se Deus vivo ou morro»

A ressurreícao de Jesús nos Evongelhos

Aínda se pode falar de «sobrenatural» ?

A consoiéncia frente á le¡ natural e á Igreja

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

porte comum NCr$ 17,00


Assinatura anual
porte aéreo NCr$ 22,00

Número avulso de qüalquer mes e ano NCr$ 1,50

Número especial de abril de 1968 NCr$ 3,00


V
Volumes encadernados:-1957 a 1963 (preco unitario) .. NCr$ 10,00

Volumes encademados: 1964 e 1967 (preco unitario) .. NCr$ 15,00

índice Geral de 1957 a 1964 NCr$ 7,00

Índice de 1967 NCr$ 1,00

Encíclica «Populorum Progressio» NCr? 0,50

Encíclica «Humanae Vitae> (Regulacáo da Natalidade) NCr$ 0,70

Avisamos aos nossos leitores que já se enoontra a dispo- '


sigao, o índice de «P.R.» 1968. Prego: NCr$ 1,00.

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