Sei sulla pagina 1di 50

Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESErsTTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso t rabal ho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
DOGMÁTICA '

triti mi oí
ÍNDICE

Pee.
I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "Que consta a respeito de um monge beneditino que


aplicou a si e a sua comunidade o tratamento da psicanálise,
incorrendo em grave censura da Santa Sé ?

Nao é licito recorrer á psicanálise ?" SGS

II. SAGRADA ESCRITURA

2) "Nao se deve materializar a ressurreic.&o de Jesús.

Cristo nao ressuscitou num corpo, mas apenas metafórica


mente !"

m. sociología

S) "O divorcio está sempre em foco...

Que diz a experiencia de outros povos a respeito ?" 887

TV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

4) "A viagem do Papa Paulo VI a Fátima provocou co


mentarios.

Terá sido incentivo a crendices e devoc.5es mal orientadas ?


Obstáculo ao movimento de unido don cristáos f" S98

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


« PERGUNTE E RESPONDEREMOS »

Ano VIII — N' 93 — Setembro de 1967

I. FILOSOFÍA E RELIGIÁO

JOÁO (Rio de Janeiro):

1) «Que consta a respeito de um monge bcneditino que


aplicou a si mesmo e á sua comunidade o tratamento da psica-
nálise, incorrendo em grave censura da Santa Sé ?
Nao é lícito recorrer a psicanálise ?»

O mencionado monge beneditino é o Padre D. Gregorio


Lemercier, Prior do Mosteiro de Santa María da Ressurreigáo,
situado perto de Cuernavaca (México). Os fatos que se desen-
rolaram em torno désse religioso e de sua comunidade, tiveram
larga repercussáo fora mesmo das esferas religiosas; jomáis,
revistas, magazines, televisáo deram-lhes extraordinaria publi-
cidade. Pareciam constituir urna experiencia apta a revolucionar
as clássicas concepcóes da vida religiosa.

«Pode-se lamentar todo ésse alarido, que, afinal de contas, ameaga


prejudicar mais do que beneficiar tanto a causa psicanalitica como
a causa religiosa. Nunca foi mediante debates no foro que as teorias
científicas ou religiosas adquiriram seu direito de cidadania !» (Dr.
Marcel Eck, em «La Presse Medícale» 28/1/1967, pág. 249).
O próprio D. Gregorio Lemercier publicou em 1966 um volume
de 284 páginas sóhre o assunto, com o título «Dialogue avec le Christ
— Moines en psychanalyse» (ediedes Bernard Grasset, París). A intro-
duciio do livro foí escrita por urna admiradora : F.rancoise Verny.
Embora se diga que a obra obteve o «Imprimatur» das autoridades
eclesiásticas, éste nao é mencionado no livro. O autor se apresenta
simplesmente como «Grégoire Lemercier» sem a mencüo de seus
títulos religiosos.

Ñas páginas que se seguem, o leitor encontrará urna sintese


dos principáis acontecimentos concernentes a D. Gregorio Le
mercier e sua comunidade; encerrar-se-áo com um juízo sobre
o assunto.

1. Urna visáo maravilhosa

D. Gregorio Lemercier é o sexto entre os quinze filhos de um


General do exército belga. Féz-se monge na Abadía de Mont-César,

— 365 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 1

pertó de Lovaina, na Bélgica. Em 1944, cheio de boas intengdes, desem-


barcou no México, a íim de ajudar dois outros monges, que tentavam
urna fundacáo monástica, milito pobre, num lugar chamado «Monte
Oassino». Em 1949, éste Mosteiro foi assaltado e saqueado por um
bando de «pistoleros»; D. Gregorio escapou incólume com oito dos
membros da comunidade, a Biblioteca da casa e 320 francos.
Alguns meses mais tarde, em 1950, após duros esforcos, o P.
Lemercier ressuscitou o Mosteiro, dando-lhe por titular «Santa Maria
da Ressurreicáo», na aldeia de Santa Maria Ahuacatitlan (1.800 m de
altitude), a 60km da capital do México; a 10km de distancia se
encontra a cidade de Cuernavaca, cujo nome costuma designar o pro-
prio Mosteiro.

A comunidade passou a compor-se de jovens que nao aspiravam ao


sacerdocio, mas apenas ao monaquisino ou á vida totalmente consa
grada a Deus na pobreza, na castidade e na obediencia.

Para compreender os acontecimentos subseqüentes da vida


e do Mosteiro de D. Prior Gregorio, é necessário mencionar
dois fatos importantes do ponto de vista médico.
É D. Lemercier mesmo quem no seu livro descreve o
seguinte:

«Durante a noite de 4 de outubro de 1960, eu cstava deitado sobre


as costas, acordado em meu leito. De repente, vi diante de mim urna
multidáo de relámpagos, de todas as cdres. Era um espetáculo excessi-
vamente bclo. Tinha os olhos estupcfatos e gozava ineíávelmente déssc
fogo de artificio, que eu quería se prolongasse indefinidamente. Vol-
tei-me para o lado esquerdo. Entáo apareceu sobre a parede da cela
como urna tela cinematográfica, na qual vi semblantes humanos que
se sucediam rápidamente. Ésse caleidoscopio detevese sobre belissimo
rosto, de grande bondade. Ncsse momento exclamei: 'Meu Deus, por
que, nao me falas assim ?' E logo comecei a chorar com extrema
violencia, invadido pela consciéncia profunda de ser amado por Deus».

Impressionado pelo episodio, D. Gregorio foi consultar um


médico que, pouco tempo antes, lhe havia desaconselhado a
psicanálise. Dessa feita, julgando que o caso bem podia provir
de certo estado neurótico, o clínico mudou de alvitre e reco-
mendou o tratamento analítico. Éste teve inicio aos 17 de
Janeiro de 1961.
Aos 8 de margo, os médicos descobriram um melanossar-
coma (formagáo cancerosa) num dos olhos de D. Lemercier,
de sorte que logo no dia seguinte lhe extirparam a vista esquer-
da. O P. Prior nao teve dúvida em associar a sua decisiva
experiencia da noite de 4 de outubro com ésse inicio de cáncer;
os oftalmologistas, porém, se mostram um tanto céticos sobre
tal relacionamento. Como quer que seja, D. Lemercier, privado
de um ólho e submetido á psicanálise, pode escrever:

— 366 —
PSICANALISE NO MOSTEIRO DE CUERNAVACA

«Desde entáo, vejo melhor; descobri urna nova dimensáo, mais


interior, mais profunda, em minha vida. O ólho que perdí para ver
as coisas exteriores, tornei a encontrá-lo centuplicado para ver as
coisas espirituais, o reino dos céus que está em miiro.
Neste ponto, o ■ monge seguía um principio de Pascal: "Fazer
bom uso das enfermidades».

Julgando-se altamente beneficiado pela psicanálise, o P.


Prior entregou-se a ela por cinco anos a fio, no ritmo de quatro
sessóes por semana. Mais aínda: quis que os seus monges
fóssem doravante

2'. Todos analisados

D. Gregorio Lemercier passou a receber no Noviciado de


seu Mosteiro todos os candidatos que se lhe apresentassem,
sem averiguar o estado de saúde psíquica dos mesmos; exigía
apenas que aceitassem a perspectiva de se submater á psica
nálise. Pediu outrossim aos membros mais antigos da comuni-
dade que passassem pela mesma terapéutica, a ser aplicada
geralmente em grupo.
Para tanto, contratou nao sómente o analista Dr. Gustavo
Quevedo, de 50 anos de idade, iniciador da psicanálise de grupo
no México; também quis recorrer á analista argentina Dr»
Frida Zmud, de 45 anos de idade; esta médica foi escolhida,
a fim de que os jovens candidatos do Mosteiro pudessem tomar
conhecimento sistemático de urna pessoa do sexo oposto; D.
Lemercier julgava que isto os ajudaria a viver mais conscien
temente a sua profissáo de castidade. Por conscguinte, urna
ou duas vézes por semana, os noviros do Mosteiro iam, parte
ao consultorio do Dr. Quevedo, parte ao da Dr* Zmud, a qual
os ouvia durante sessSes de oitenta minutos.

Verdade é que, aos 15 de julho de 1961, pouco depois que o P.


Prior iniciara seu tratamento analítico, a CongregacSo do S. Oficio de
Roma publicara a seguinte advertencia :
«Aos sacerdotes, aos Religiosos e ás Religiosas nao é lícito con
sultar psicanalistas sem a permissáo do Ordinario (Bispo ou Prelado
diocesano) dada por motivo grave.»
Essa permissáo, D. Gregorio talvez cresse (erróneamente) ter
o direito de a conceder aos seus monges ; pessoalmente, julgava-se
dispensado de a obter para si, já que iniciara o tratamento antes da
publicacáo do documento ácima.

O número de desistencias dos jovens.candidatos analisados


foi impressionante no decorrer dos anos de 1961-1965.

Entre os monges mais antigos, houve seis que nao aceitaram a


psicanálise, relutando assim contra os desejos do P. Prior; senti;

— 367 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS? 93/1967, qu. 1

ram-se incompatibilizados com o ambiente, o que lhes eleve ter tor


nado muito difícil a vida em Cuernavaca; em conseqüéncia, diz D.
Lemercier, «alguns pediram ou a dispensa dos votos ou a possibilidade
de viver fora do nosso Mosteiro». Outros monges, como o Lrmáo Ber
nardo, de temperamento muito dado, e o santo anciao lrmáo Mauro,
conseguirán! isentar-se da análise sem sofrer perturbares em sua vo-
cagáo. Em resumo, deve-se dizer que a psicanálise provocou em Cuer
navaca defeccóes numerosas tanto entre os que a'aceitaram como
entre os que a recusaram.
Até 1965, um total de sessenta monges, entre novicos e professos,
passou pelo tratamento analítico; apenas vinte perseveraram no
Mosteiro. Dos quarenta egressos alguns procuraram o casamento ;
cérea de vinte sairam após menos de um ano de análise.

Apesar de tais conseqüéncias, D. Gregorio se mostrava


otimista ao prever os resultados fináis da experiencia; para
ele, já eram maravilhosos os efeitos do tratamento na comuni-
dade; o decorrer dos anos haveria de comprovar tal éxito!

Assim se exprimía o P. Prior em 1966:


«Ao lancar um olhar retrospectivo sobre ésses últimos e fecundos
cinco anos, tenho a alegría de descobrir de maneira palpável que nosso
Mosteiro — rrteu Mosteiro — se tornou urna verdadeira escola de amor,
amor humano, amor cristao. Que mais poderia eu desejar ?>

Fora de Cuernavaca, as opinióes dos monges de outros


Mosteiros e das autoridades eclesiásticas eram contraditórias
frente ao empreendimento de D. Lemercier.

O Abade Primaz da Ordem de Sao Bento, hoje Cardeal D. Beño


Gut, reíerindo-se aos usos de Cuernavaca, reprovou enérgicamente o
emprégo da psicanálise ñas comunidades religiosas (cf. «Kipa-Concile»,
28/IX/65).
Todavía o teólogo P. Laurentin, tendo estado pessoalmente em
Cuernavaca, julgou que a experiencia era positiva; entre os egressos
havia vocales ilusorias... (cf. «Le Fígaro», ll/X/1965).
De resto, já após dois anos de experiencias, a Santa Sé houve
por bem nomear um Visitador Apostólico encarregado de examinar
a vida do cenobio. Os .relatónos redigidos por ésse Prelado nada con-
tinham de desfavorável á terapéutica do Mosteiro.

Por ocasiáo do Concilio Ecuménico, em setembro de 1965,


quando se debatía em assembléia conciliar a Constituicáo sobre
a Igreja no mundo de hoje, o caso de Cuernavaca mereceu
calorosa consideragáo: foi distribuido aos dois mil e quinhentos
Prelados conciliares um folheto com o título «Um Mosteiro
beneditino em psicanálise», opúsculo, por certo, apto a causar
sensagáo. Com efeito, assinado por «Gregorio Lemercier, da
Ordem de Sao Bento, Prior conventual», abria-se nos seguintes
termos: «O esquema 13 ('Igreja no mundo de hoje1) mostra
em filigrana dois grandes nomes do mundo de nossos tempos :

— 368 —
PSICANALISE NO MOSTEIRO DE CUERNAVACA

Darwin e Marx.Um terceiro parece ausente: Freud»; segvia-


-se o relato da experiencia feita no Mosteiro mexicano. A
respeito das defecgóes, dizia, entre outras coisas, D. Lemercier
que cérea de vinte Religiosos haviam deixado o Mosteiro após
menos de um ano" de análise, porque se haviam recusado á
necessária tarefa de enfrentar a suá própria esséncia. Isto se
dera, conforme o P. Prior, quase únicamente durante os dois
primeiros anos de análise, quando o Mosteiro aínda nao estava
suficientemente habilitado a lhes dar apoio. Varios désses Reli
giosos já haviam manifestado o desejo de voltar ao Mosteiro
para ai continuar a análise.
Como arauto vivo das novas teses, entrou em cena o próprio
bispo de Cuernavaca, Dom Méndez Arceo, que em presenga
dos Padres conciliares declarou :

«Nao compreendo o silencio do esquema 13 sobre a psicanálise.


A psicanálise se nos apresenta como verdadelra ciencia, com seu objeto,
seu método e sua teoria própria. Essa ciencia ainda nao está inteira-
mente madura, nem é isenta de perigos (o que se deve levar em
conta); mas nem por isso podemos ignorar a revolucao psicanalltica,
que nao é menos vultosa do que a revolucao técnica.
O discurso analítico faz parte da cultura humana ; impoe urna
renovacao do conceito de homem e suscita problemas dos quais nao
se tinha outrora a mínima idéia... Nao há um só terreno da pas
toral em que nao seja necessário levar em consideracáo a psica
nálise. ..
Nao faltam católicos que alimentam a ilusáo de urna psicanálise
crista ou católica, ao passo que a verdadeira ciencia nao é nem crista
nem náo-cristS.
Se, pois, a Igreja quer entrar em diálogo sincero e leal com o
homem de hoje, nao pode ignorar os analistas auténticos, aos quais
ela se deve dirigir diretamente, e nao por intermedio da moral ou
da teologia. Dai resultará grande bem, pois essa ciencia possui unía
virtude de purificagáo capaz de auxiliar valiosamente os homens
cuja fé é mesclada de desvíos psicológicos que a pervertem ou inibem»
í«La Documentation Catholique» LXII, 7/XI/1965, col. 1885s).

Tais observagóes de D. Méndez Arceo serio comentadas


no § 3 déste artigo.
Voltando a Cuernavaca, verificamos que em 1966 D. Gre
gorio resolveu por fim as provas de psicanálise entre os seus
monges, indicando ele mesmo dois motivos para isso: verificara
que muitos jovens entravam no Mosteiro de Cuernavaca
mais por desejo de tentar resolver seus conflitos interiores
mediante a psicanálise do que no intuito de se consagrar total
mente a Deus. Além disto, o cenobio estava provocando escán
dalo em grande parte do público, criando-se assim urna situagáo
que o próprio D. Lemercier lamentava profundamente. — Além

— 369 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 1

do que, pode-se acrescentar: no plano financeiro, a experiencia


analítica de Cuernavaca consumiu mais de metade dos rendi-
mentos do Mosteiro í

Todavía, ao lado do Mosteiro, o Padre Prior abriu o «Centro Psi-


canalltico Emaus», em que pacientes civis passaram a ser submetidos
ao duplo tr'atamento de psicanálise e ergoterapia (cura mediante tra-
balho realizado pelo próprio enfermo). Essa clínica, de tipo especial,
representava urna inovacjío interessante, como afirmam os médicos;
estava colocada sob o signo da beneficencia, pois o Padre Lemercier
lhe dera o lema : «Trabalho do povo pelo povo para o povo». D. Gre
gorio em 1966 exprimiu o desejo de que seus monges se tornassem
«os pioneiros do tratamiento comunitario da neurose».

Por fim, aos 18 de maio de 1967, urna comissáo de Cardeais


que por varios anos estudara o caso de Cuernavaca, proferiu
sua sentenc,a sobre o assunto: D. Lemercier foi suspenso por
oito dias «a divinis» (do exercício das Ordens sacras) visto
haver abusado da sua jurisdigio e desobedecido á Santa Sé,
mandando, contra as determinacóes desta, submeter candidatos
religiosos as provas da. psicanálise. As autoridades religiosas
proibiram ao monge belga, sob pena de suspensáo e excomu-
nháo, tomasse a exigir dos seus novigos o tratamento analítico
ou fizesse apología, pública ou particularmente, de teses favo-
ráveis ia psicanálise. D. Gregorio Lemercier foi outrossim inti
mado a realizar um retiro e exercicios espirituais em Roma;
após o que, recebeu a autorizaqáo de regressar ao seu Mosteiro.
Todavía, pouco depois de voltar a Cuernavaca, o infeliz Religioso
resolveu abandonar por completo a Igreja.
Eis o desfecho da estranha aventura (é D. Gregorio mesmo
quem se apresenta como «um aventureiro de Deus») de Cuer-
¿navaca, que comegou com «maravilhosa visáo noturna» do P.
Lemercier!
Resta agora formular um juizo sobre o assunto.

3. Falam Medicina, e Fé

O caso de Cuernavaca apresenta dois aspectos — o médico-


-analítico e o religioso —, que requerem ser considerados cada
qual de per si.

1) O ponto de vista da Medicina

D. Gregorio Lemercier, ao introduzir a psicanálise em sua


comunidade, justificava-se apelando para «as possibilidades in
calculáveis da terapia (psicanalítica) mesmo nos casos de psi-
cose». Ora tal alegagáo poderá surpreender psiquiatras e psica-

— 370 —
PSICANALISE NO MOSTEIRO DE CUERNAVACA

nalistas, que bem conhecem os limites da análise no tratamento


das psicoses.
É de estranhar que D. Lemercier tenha aceito para a vida
religiosa todo e qualquer candidato, sem se certificar previa
mente de suas aptidóes mentáis; a psicanálise seria o remedio
universal! A propósito, deixamos a palavra ao Dr. Marcel Eck,
que na revista «La Presse Medícale», 28/1/1967, págs, 250s,
tratou do assunto, propondo as seguintes observares:

«A experiencia pessoal que eu possa ter dos problemas psiquiá


tricos relacionados com as vocaeoes religiosas, explica a minha reti
cencia (frente ao caso de Cuernavaca). Tenho em meu arquivo pouco
mais de novecentos casos de clérigos, Religiosos ou Religiosas que se
me apresentaram com perturbagoes psíquicas ou que simplesmentü
traziam um problema de oriantacáo.
— Pequeño número désses casos exigía tratamento analítico, que
eu mesmo ou colegas asseguramos.
— Outros casos so requeriam psicoterapias de inspiracáo analítica.
— Mais outros precisavam apenas de terapéuticas nao psicoló
gicas.
— Os restantes deviam ser levados a mudar de orientaeáo.
Em Cuernavaca, todos os candidatos recém-admitidos deviam
passar pela terapéutica analítica. Dom Lemercier expoe em longas
páginas os maravilhosos resultados obtidos únicamente pela psica
nálise...
O médico íica um pouco surpréso diante da exposicáo ditirámbica
dos resultados, que mais lembram o estilo do prospecto (de propa
ganda) do que o da observacáo clínica. Contudo nada há que nos per
mita pdr em dúvida o que íoi observado pelo Superior de Cuerna-'
vaca. Pessoalmente, estou convicto de que o que é afirmado .(por
D. Lemercier) está eventualmente ñas possibilidades da cura analítica.
Mas a experiencia prova que nao há métodos terapéuticos que seiam
aplicáveis a todos os casos, garantindo resultados positivos idénticos
em qualquer hipótese...
O que mais estranheza causa ao médico nessa aventura, é que os
movigos tcnham sido submetidos ao regime analítico sem que hou-
vesse previamente (a quanto parece) a mínima preocupaeáo de diag
nóstico para cada caso. Talvez o P. Lemercier considere a psicanálise
nao como urna terapéutica que se aplica a urna molestia particular,
mas como vacina que interessa a toda a gente: contudo nao há va-
ciñas que nao apresentem as suas contra-indicacSes...
A psicanálise nao é sadia para toda e qualquer pessoa; ela pode
curar, pode por vézes enriquecer, mas pode também esterilizar. Freud
mesmo o afírmava, e sabia formular as contra-indicacSes da terapéu
tica que' ele havia inventado. £ preciso ler as memorias de Bruno
Goetz a respeito de Freud. Sigmund Freud desaconselhava a um jovem
paciente que se submetesse a análise: 'Ora bem, meu bom amigo
Goetz, eu nao o analisarei; seus complexos seráo a sua salvacáo...'
'Guarde a sua audacia, isto importa únicamente, e nunca permita que
o aralisenV. Lamentemos que os discípulos de Freud nao tenham todos
guardado a prudencia, o bom senso e principalmente o tino clínico do

— 371 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 1

mestre, tino em virtude do qual Freud sempxe fazia seu diagnóstico


antes de propor urna terapéutica».

Os comentarios do Dr. Eck sao claros e autorizados. Ex-


plicam, em grande parte, a onda de pareceres negativos que
se fizeram ouvir a respeito de Cuernavaca.
Examinemos agora o aspecto religioso da questáo, aspecto
de importancia decisiva.

2) O ponto de vista da Fé

1. A voca"áo religiosa — vocacáo á vida consagrada a


Deus na pobreza, na castidade e na obediencia — supóe sempre
urna base humana ou natural da parte do respectivo candidato.
É preciso que éste saiba exatamente o que promete a Deus
mediante os votos religiosos e tenha saúde, tanto f sica como
mental, apta a arcar com as responsabilidades daí decorrentes.
Por isto faz-se mister que o candidato S3 certifique de suas
capacidades e que os Superiores levem em consideragáo o
aspecto humano de cada recruta.
Todavía a vocacáo religiosa nao pode ser julgada como as
vocasóes proferías, segundo os padrees da medicina, da psico
logía, da ciencia ou da técnica...; ela tem um aspecto trans
cendente ou sobrenatural, que ainda é de maior reltvo. S.m;
a vida religiosa é, por excelencia, a vida da graca ou a vida do
próprio Deus a se expandir dentro da alma consagrada. Por
isto, para se avaliar se alguém é, de fato, chamado a viver em
mosteiro ou convento, os criterios humanos (exames de saúde,
de temperamento, de aptidóes culturáis...) estáo longe de
poder fornecer a resposta adequada. Mais importantes seráo
os criterios religiosos sugeridos pela visáo crista da pessoa
humana: é preciso verificar se o candidato possui sólido espi
rito de fé, se tem amor a Daus e ao próximo a ponto de superar
simpatías e antipatías, se estima a ora'jáo, o silencio e o
rec>lhime-ito, sa procura ser humilde e obed'ente, etc. Nao há
dúvida: pessoas que tenham saúde deficitaria sob um ou outro
aspecto, mas dóem provas de possuir ou de procurar sincera
mente adcuiirir os predicados rclifnosos ácima, podem estar
sondo verdadeiramente chamadas por Deus á vida religiosa.

Em out.-os termos : o 6'ho do mídlco, do psicólogo, do analista


ou do pedagogo por si só é in-uficiente para averiguar umi vocacüo
religiosa. Pa:a tanto, é indlspcnsável e multo mais importante o
óllio do homem de fé, de o.'agáo e de aíinidade com a vida interior.
Muitos dos problemas de alma que surgem no inicio ou no decarrer
de urna vida religiosa podem e devem ser resolvidos segundo a

— 372 —
PSICANALISE NO MOSTEERO DE CUERNAVACA

direcáo dada por um pai espiritual; dependem, em boa parte, do


recurso á ascese (disciplina e mortificacáo) e á oracáo.

Por isto é que a tática de D. Lemercier, ja em suas lvnhas


gerais, nao pode ser aprovada pela consciéncia crista; parece
dar relevo excessivo, se nao decisivo, ao aspecto humano da
vocar.áo religiosa.

As desistencias de numerosos candidatos e monges professos do


Mosteiro de Cuernavaca se explicam,
em parte, pelo fato de nao terem tido realmente a vocagáo religio
sa; D. Gregorio recebia na comunidade todos os que Ihe pediam in-
gresso, confiando ao analista a tarefa de fazer posteriormente a sele-
gao devida ;
em parte, pelo fato de que foram levados a considerar sua voca-
cáo através de um prisma insuficiente e deficitario no caso: o prirma
dos condicionamentos sexuais. Quem dá importancia preponderante
a éste aspecto da personalidade. desvia seu olhar dos valores que
dáo todo o sentido á vocagáo religiosa.

2. Quanfo á psicanálise em particular, é preciso distinguir


as suas duas faces: urna técnica e outra filosófica.
A técnica anal'tica consiste em fazer emergir do subcons
ciente cortos fatóres ocultos que deformam o comportamento
da pessoa. Urna vez descobertos tais fatóres, o paciente se
desvencilha de sua influencia e dá sadias manifestagóes de sua
personalidade. Assim concebida, a técnica anal'tica nada tem
de condenável aos olhos da consciéncia crista; desde que naja
indicacáo da parte de médicos idóneos, pode ser aplicada. Apenas
será preciso, em todo e qualquer caso, escolher analistas de
consciéncia bem formada, dotados de urna concepjáo crista
do homem e da vida, de tal modo que respeitem as aspiragóes
íntimas, os sentimentos religiosos e o ideal de vida do paciente.
A filosofía da psicanálise, tal como foi concebida por Sigis
mundo Freud, ó materialista e pan-sexualista; reduz o ser
humano a um joguéte de instintos eróticos, negando o caráter
transcendente de Deus, da Religiáo e dos afetos religiosos. Tal
filosofía, como ss compreende, nao se concilia com a fé crista.
Por isto a Igreja nao aceita a psicanálise freudiana ou «orto
doxa» (técnica e filosofía pan-sexualistas), mas pode aceitar a
psicanálisé dita «dissidente» ou «heterodoxa» cultivada por
Adler, Cari, Jung, Bleuler, Stekel... (técnica analista acom-
panhada de filosofía espiritualista).

Tenham-se em vifta, a propósito, as palavras de Pió XII concer-


nentes ao pan-sexualismo íreudiano proferidas em discurso aos mem-
bros do I Congresso Internacional de Histopatologia do sistema ner
voso, em 14 de setembro de 1952:

— 373 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS? 93/1967, qu. 1

«Para se libertar de recalques, inibicdes, complexos psíquicos,


nao é licito ao homem despertar dentro de si, para fins terapéuticos,
todo e qualquer dos apetites da esfera sexual, que se agitam ou
agitaram no intimo da pessoa, movendo suas ondas impuras no plano
do inconsciente ou do subconsciente...
Nao está provado, é mesmo inexatofIque o método pan-sexual de
certa escola de psicanálise seja parte integrante indispensável de toda
psicoterapia seria e digna déste nome ; que o íato de se ter no
passado descuitado éste método terina causado graves males psíquicos,
erras de doutrina e de aplicaeñes em educacáo, em psicoterapia e
também em pastoral; que urja preencher essa lacuna e iniciar todos
aqueles que se ocupam com questóes psíquicas, ñas idéias diretrizes
e mesmo, se fór preciso, no manejo prático dessa técnica da sexua
lidades.

As palavras de Pió XII foram ulteriormente concretizadas


na seguinte advertencia do Santo Oficio, datada de 15 de julho
de 1961:

«Merece reprovagáo a opiniáo daqueles que afirmam ser absoluta


mente necessário o tratamento psicanalitico para a recepeáo das Ordens
sacras, ou asseveram que devem ser submetidos a exames e pesquisas
de psicanálise própriamente dita os candidatos ao sacerdocio e á pro-
fissao religiosa. A mesma reprovacáo se estende aos que propugnam
a necessidade de exame psicanalitico para se Investigar se alguém
é apto ao sacerdocio ou á profissáo religiosa.
Aos sacerdotes e aos Religiosos de ambos os sexos nao é licito
consultar psioanalistas sem a permissáo do Ordinario (Bispo ou
Prelado diocesano) dada por motivo grave» (cf. «L'Osservatore Ro
mano» 16/VII/1961).

A respeito do que declarou D. Méndez Arceo no Concilio


do Vaticano n, pode-se notar o seguinte:
Por certo, a psicanálise íéz ver ao homem a influencia de diversos
elementos latentes em seu intimo, levandoo assim a compreender
melhor a si mesmo. Éste resultado é de grande valor, mas está longe
de significar revolucáo das concepcoes antropológicas até hoje vigen
tes. Apesar do que dizia Freud, o homem nao é necessariamente mo
vido pela «libido» e pelos apetites sexuais; dentro do ser humano,
há, independentemente do sexo, outros agentes da vida psíquica, quais
as tendencias á ambicio, á inveja, ao egoísmo, á cobica de riqueza e
fama, etc. — A psicanálise, para atingir realmente o cerne dos pro
blemas humanos, há de reconhecer a existencia da alma espiritual,
de Deus transcendente c da necessidade da Religiáo. Por conseguinte,
ela n3o pode ser totalmente indiferente á Religiüo, mas está, até certo
ponto, relacionada com concepcSes filosófico-religiosas. É justo dizer
que a psicanálise por si nao é crista nem nao crista, mas deve se acres-
contar que é sempre movida por analistas que sao ou chistaos ou nao-
cris táos; isto é de importancia capital para um paciente católico.

Vé-se, pois, que D. Lemercier, submetendo de maneira


indiscriminada os seus monges ao tratamento analítico, fez
algo que merecía serias reservas nao somante por parte da

— 374 —
DESMITIZACAO E RESSURREIC&O

ciencia médica, mas também por parte do genuino pensamento


cristáo. É especialmente difícil compreender que o P. Prior,
nao contente por submeter seus jovens candidatos á psicanálise,
tenha intencionalmente escomido urna médica para realizar o
tratamento; é antes, e nao depois, de entrar na vida religiosa
que o novigo deve procurar o convivio com pessoas de outro
sexo.

A respeito de psicanálise e conscléncia crista, vejam-se ulteriores


dados em «P. R.» 8/1958, qu. 1.

A experiencia de Cuemayaca, infeliz como foi, deu, nao


obstante, ocasiáo a que se reafirmassem aínda mais claramente
na Igreja a índole e as caractersticas sobrenaturais da vida
religiosa. Se todo justo vive da fé, conforme Sao Paulo, é por
excelencia da fé que vive a alma consagrada a Deus: a psico
logía é subsidio importante, nao, porém, esteio decisivo...

II. SAGRADA ESCRITURA

LOURENQO (Belo Horizonte):

2) «Nao se deve materializar a ressurreicáo de Jesús.


Cristo nao ressuscitou nnm corpo, mas apenas metafó
ricamente !»

Nos últimos tempos, tém-se propalado teorías que, com


certo aparato filosófico, negam a realidade da ressurreicáo de
Cristo; derivam-se principalmente das idéias lanzadas por Ru-
dolf Bultmann e sua escola (cf. «P.R.» 91/1967, qu. 2).
Em vista dos debates suscitados por tais concepcóes, pro
curaremos abaixo expor o pensamento de Bultmann. A seguir,
tentaremos proferir um juízo sobre a nova interpretagáo da
Ressurreigáo de Jesús Cristo proposta por ésse autor.

1. Bultmann e a escola da desmitizaajao

Eis as grandes linhas da filosofía religiosa de Bultmann:


1) Palavra de Dous e resposta do homcm
1. Rudolí Bultmann é um exegeta protestante contemporáneo
que resolveu aplicar á interpretacáo do texto biblico algumas das
categorías da mentalidade moderna. Em conseqüéncia, propóe a se-
guinte sintese:

— 375 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 2

Nenhum homem pode considerar a historia como considera


a natureza, pois é imposs'vel ao homem falar da historia sem
falar de si mesmo. «Por conseguinte, di2 Bultmann, nao pode
haver... consideracáo objetiva da historia como há conside-
ragáo objetiva da natureza» («Jesús», ed. de 1929, pág. 7).

Quem cstuda a historia, trava um continuo diálogo com a mesma;


é interpelado, sacudido, pelos textos que le, e interpela, interroga ésses
textos. Donde se vé que nao se pode abordar um livro de historia com
a atitude de um espectador desinteressado ou com urna pretensa neu-
tral'.dade científica. Essa neutralidade íria e objetiva pode ser prati-
cada por quem estuda Fisica, Química, Matemática; tais disciplinas
nao in'terpelam o estudioso, nao o envolvem em seu enredo, ao passo
que a historia interpela e envolve necessáriamente...

Com muito mais razáo, devem-se afirmar estas premissas


quando se trata de historia bíblica ou sagrada.
2. Postas estas premissas, Bultmann dá um passo adiante:
a Biblia é de tal modo viva e voltada para o seu leitor que ela
nao pretende própriamente comunicar aos homens noticias de
Índole histórica; nao visa narrar objetivamente acontecimentos
realmente ocorridos. É urna mensagem que interpela o homem;
pede-lhe urna decisáo, um «engajamento», a fim de o levar á
salva-áo. ~A palavra bíblica foi escrita em fungáo do homem
que a lé, nao em fungáo de «acontecimentos» que ela parece
narrar.

3. Aplicando tais idéias á biografía de Jesús descrita pelo


Novo Testamento, Bultmann tentou reformular a mensagem
dos Evangelhos; adverte de antemáo que nao pretende apre-
sentar Jesús «como grande homem, genio ou herói, nem como
demoníaco nem como fascinante». Nao lhe interessa a pessoa
de Jesús como tal ou o que Jesús foi, mas o que Jesús quis e fez
e, conseqüentemente, o que os discípulos de Jesús devem querer
e fazer.
Em outros termos : Bultmann nao procura reconstituir a figura
humana ou o perfil psicológico de Jesús. Por certo, afirma é:e, 6
legítimo da nossa parte o interésre pela parsonalidade dos grandes
homens do passado, nías ésse nosso intertese nao coincide com o
interésse de tais grandes homens ou com o que éles mais ardorosa
mente intencionaran-i. «O interésse (dos grandes homens) nílo foi a
sua personalidade. mas a sua obro»,... obra entendida como «algo
em que éles se empenharam (eine Sache für dle sle sich einsetzten),
algo que éles qulseram e que constituiu a razao de ser da sua exis
tencias (ob. cit., pág. 13).

Ora Jesús agiu, antes do mais, pela palavra. Por conse


guinte, o que Ele quis só pode ser reproduzido como um con
junto de sentencas ou pensamentos ou como um ensinamento.
Ésse ensinamento, porém, nao pretende propor verdades abs-

. — 376 —
DESMTTIZACAO E RESSURftEICAO

tratas, mas visa fazer que o homem descubra o sent'do de sua


própria existencia. Por isto, Bultmann, ao expor a vida de Jesús
(na base dos textos do Evangelho), nao trata de distinguir entre
aquilo que Jesús de fato disse e aquilo que os primeiros cristáos
disseram depois de ter sido atingidos pela mensagem de Crsto;
Bultmann julga que nao se pode estabelecer urna fronteira
exata entre os dizeres que por certo háo de ser recolocados
nos labios de Jesús e as sentencas que devem ser atribuidas
'ás comunidades cristas primitivas. A identidade do sujeito que
profere as palavras no Evangelho, é coisa secundaria (pode-se
dizer que é Jesús entre aspas); importa apenas que o leitor se
defronte com urna mensagem viva e interpelante.

A propósito convém lembrar que Bultmann é um dos pionetros


do «Método da historia das íormas», de que trata «P.R.» 91^1967, qu. 2.

4. Em conseqüéncia de tais idéias, Bultmann admite que


se possa destruir tudo que se tem dito até hoje a respeito da
personalidade e dos feitos de Jesús. Os críticos, entre os quais
figura o próprio Bultmann, poderáo negar a historicidade dos
acontec'mentos descritos pelos Evangelhos; nao obstante, a
fé de Bultmann permanece inabalável, porque tal fe nao consiste
em aceitar a veracidade de deternrnados acontecimentos, mas,
sim, em se deixar penetrar e abalar por urna mensagem
dinámica.

Diria Bultmann : nem Jesús nem os antigos cristáos se interes-


ram pelo curriculo da vida de Jesús. Conseqüentemente, nem Bultmann
se interessa por ele.

5. Desenvolvendo ulteriormente seus conceitos, o autor


protestante assevera que no Evangelho existem mitos, o que
quer dizer: a «imagem do mundo» (Weltbild), o sistema de
representacóes, o universo, no qual se movem os autores do
Novo Testamento, dependem de um modo de pensar marcado
pela confusáo e pela incoeréncia.
Assim «cede ao mito, conforme Bultmann, quem eré que o que
nao é do mundo (das UnwelEiche), o divino, possa aparecer como
algo de humano, pertenecnte a éste mundo ;... eré que a transcen
dencia de Dcus equivale a urna ascensáo ou a um afastamento no
espaco superior á térra;... quem eré que o culto reja um ato visível,
dotado de eíeitos espirituais» (cf. «Kerygma und Mythos» I, pág. 22).

Ora, segundo Bultmann, o modo de pensar «em mitos»,


caracterstico dos Evangelhos, se opóe diametralmente ao modo
de pensar científico, próprio dos nossos tempos ; o pensa-
mento científico é marcado pelo principio do determinismo,
isto é, da coeréncia do universo regido pelas leis físicas.

— 377 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 2

Em conseqüéncia, o homem contemporáneo nao pode acei


tar a «imagem do mundo» do Novo Testamento; é preciso
proceder á «desmitizacáo» ou á tradugáo dos mitos (formas
de expressáo figurada) do Evangelho para a linguagem mo
derna; faz-se mistef dizer ao cidadáo moderno o que os Evan
gelistas queriam significar em sua linguagem «mitológica». Em
particular, é preciso entender de maneira nova as passagens
do Evangelho que supóem extraordinarias intervencóes de Deus
na historia. De antemáo, é excluida a possibilidade de qualquer
milagre.

«NSo é possível utilizar luz elétrica e aparelhos de radio, recorrer


á medicina moderna e a meios clínicos em casos de doenca e, ao mesmo
tempo, crer no mundo de espíritos e milagres do N&vo Testamento»,
afirma Bultmann em «Kerygma und Mythos» I. Hamburg, 4' ed.,
1960, pág. 18.

Em resumo, verifica-se que a posicáo de Bultmann se


inspira de tres correntes de pensamento moderno:

a) o existenclallsmo, ao qual nao interessam as realidades obje


tivas, mas apenas os aspectos subjetivos das situares em que o
homem se encontra ;
b) o racionalismo, que nega a possibilidade do sobrenatural;
c) a fé em sentido protestante, que nao depende de aconteci-
mentos históricos, mas se reduz a coníianca e declsüo subjetivas.

Foi á tarefa de desmitizar que Bultmann se entregou


quando pretendeu reformular o sentido da ressurreigáo de
Cristo nos Evangelhos.

2) A ressurreisáo de Jesús

Analisaremos sucessivamente as teses de Bultmann e seu discí


pulo W. Marxsen, referindo por íim a sentenca de Karl Barth.

a) Para Bultmann, o conceito de ressurreicáo de um


morto, supondo um milagre, cai por si sob a nocáo de mito.
É necessário, pois, explicá-lo de modo a traduzir o respectivo
mito.
Que queriam entáo os antigos cristáos significar quando
afirmavam que Jesús havia ressuscitado dos mortos ?
— Tinham em vista dizer que a morte de Jesús, para nos,
homens, tem mais sentido do que a morte de um homem
qualquer; foi a morte de «Cristo, isto é, do Messias. As primei-
ras comunidades cristas teriam assim professado que a cruz
salvou o mundo. Por conseguinte, quem hoje em día apregoa
a «ressurreigáo» de Cristo, nao deve querer afirmar que Jesús

— 378 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 2

tenha saído do sepulcro redivivo, mas, sim, lancar ao ouvinte


uma interrogasáo: «crés na cruz de Cristo como fonte de
salva^áo ? Reconheces, em presenga da cruz, que és pecador,
e pecador agraciado ?»

O ouvinto que procure saber se, de fato, Jesús ressuscitou cor-


poralmente e tente provar esta proposicáo, íoge a interpelacáo da
mensagem ácima. O cristáo que tenha realmente fé, nao se interessa
pela historicidade da «ressurreigáo de Jesús» ; Cristo «está ressusci-
tado> para todo homem que aceita a salvagáo trazida pela cruz, re-
conhecendo-se destarte livre de seus pecados. Quem se interessa pela
realidade da ressurreicao de Jesús, arriscase a fazer a obra fría e
objetiva de um dentista, e desvia-se da atitude de fé, que é sempre
uma tomada de posicáo pessoal.

b) O biblista W. Marxsen, que adota os principios exe-


géticos de Bultmann, explica do seguinte modo a ressurreicao
de Jesús :
Nao se pode dizer com precisáo o que aconteceu com os
Apostólos após a morte de Jesús. O fato, porém, é que foram
sacudidos interiormente, de modo a conceberem a idéia de que
a aventura ou a obra de Jesús continuariam a sua historia
(die Sache Jesu gehe weiter); persuadiram-se de que a morte
de Jesús nao pusera termo á pregacáo do Mestre; sentíram-se
estimulados a continuar, por sua vez, o anuncio da Boa-Nova.
Ora esta atitude, concebida depois de Páscoa, foi aos poucos
expressa mediante uma das categorías fíguradas do pensamento
da época; passaram a dizer que Jesús havia ressuscitado. «Res
surreicao» era, conforme Marxsen, uma das maneiras antigás
de dizer que acontecimentos passados haviam sido interrompi
dos, mas prosseguiram seu desénrolar. Já que o homem antigo
tendía a falar em termos concretos, os disc!pulos de Cristo nao
se contentaran! com dizer que a mensagem de Jesús continuava
a ser apregoada; preferiram recorrer a urna expressáo mais
material, afirmando que Jesús continuava vivo após haver res-
suscitado corporalmente dentre os mortos.

c) Também Karl Barth, pensador protestante de nomeada em


nossos dias, tem sua maneira própria de interpretar a ressurreicao
de Jesús, embora se distancie de Bultmann e de sua escola.
Analisando o texto de 1 Cor 15, 3-8, Barth nota o seguinte: S3o
Paulo afirma que Jesús ressuscitou «segundo as Escrituras». E ar
gumenta : o Apostólo apxegoou a ressurreicao de Jesús únicamente
por autorldade das Escrituras. Nem Paulo nem os demais discípulos
do Senhor pretenderam ter visto realmente Jesús, mas afirmaram
apenas que Cristo se manifestou a éles como ser vivo (de que ma
neira ?, perguntariamos nos ; o pensamento de Barth nao é claro).
A historicidade da xessurreicáo nao interessa á íé; é mesmo inútil
a esta; nenhum dos Apostólos a quis apresentar como fato histórico.

— 379 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/19G7, qu. 2

Para explicar mais a íundo 1 Cor 15, 3 8, Barth admite que Sao
Paulo, nesse texto, tenha afirmado a ressurreigáo de Jesús porque
o Apóstalo asseverava que todos os mortos háo de ressuscitar ; admi-
tiu. em conseqüéncia, que também Je?us tenha ressuscitado. Para
Sao Paulo, poxém, a ressurreigao de Jesús nao é um fato provado
históricamente.

A sentonca de Barth carece de tdda probabilidade exegética, pois


inverte por completo o pensamento de Sao Paulo. O que o Apostólo
em 1 Cor admite antes do mais, é a ressurreigao de Jesús ; desta
(entend'.da como fato real, histórico) Sao Paulo deduz em 1 Cor
15, 12-18 a realidade e a historicidade da ressurreicao de todos os
homens no íim dos tempos. Para Sao Paulo, a ressurreigao de Cristo
é mesmo a pilastra máxima que justifica nao sómente a futura
ressurreigáo dos mortos, mas a própria fé crista (cf. 1 Cor 15,14).

Vejamos agora o que se pode observar frente as sentemcas


de Bultmann e Marxsen.

2. Urna reflexao serena

1) A historia das formas

As idéias de Bultmann nao sao senáo urna aplicacáo do


chamado «Método da historia das formas». Por isto pode-se
lembrar a propósito quanto foi dito a respe'to de tal método
em «P. R.» 91/1967, qu. 2: os escritos do Novo Testamento
sao estritamente dependentes da prega^áo oral dos Apostólos,
pregagáo que teve in'cio no dia mesmo de Pentecostés; há
continuidade entre a primeira reda~áo oral da Boa-Nova (ano
de 33 aproximadamente) e a primeira redacáo escrita da mesma
(entre os anos de 50 e 60). Durante ésses decenios os Apostólos
formutaram as narragóes que, sem demora, foram colhidas
pelos evangelistas S. Mateus, S. Marcos e S. Lucas para redi-
girem os Evangelhos : ora os vinte ou trinta anos que medeiam
entre a Ascensáo de Jesús Cristo e a confeccáo do primeiro
Evangelho, nao constituem o espago de tempo necessário para
que se formassem lendas a respeito de Jesús. As lendas só se
orig?,nam lentamente, depois que desaparecerán! as testemunhas
oculares e auriculares da vida do herói que as lendas pretendem
exaltar.

Nótese outrossim que os Apostólos e discípulos de Jesús de modo


nenhum estavam dispastos a imaginar a ressurreigao de Cristo ou a
continuacao da obra do Senhor Jesús. Tenha se em vista o animo
abatido dos discípulos de Emaus, que, no fim do tercelro dia após a
marte do Senhor, julgavam que «tudo acabara». Foi únicamente a
evidencia dos íatos que os levou a professar firmemente a ressurrei
gao corporal do Senhor Jesús (cf. Le 24, 13 35). — Algo de análogo
se deu com os Apostólos e demais seguidores de Cristo ; desencora
jados como estavam, de modo nenhum quiseram dar crédito ás pri-

— 380 —
DESMITIZACAO E RESSURREICAO

meiras noticias de que Jesús ressuscitara (cí. Le 24, 3643); só se


renderam a tal mensagem depois de conviver com Jesús ; a relutáncia
de Tomé chegou ao ponto de exigir provas palpáveis da ressurrelcáo
(c£. Jo 20, 2429).
Ademáis sabe se que os judeus a quem os Ap&stolos comecaram
a apregoar a Boa-Nova, eram Lníensos á íac;áo dos «Nazarenos»;
asrim como haviam perseguido Jesús, estavam dispostos a denunciar,
e perseguir os discípulos déste. Por conseguinte, se os Apostólos ti-
vessem apregoado algo de engañador ou falso (= urna pretensa
«ressurrelcáo» de Jesús que todas as geracSes cristas até os últimos
tempos entenderam no sentido físico, corporal), teriam sido ¡media
tamente contraditados pelos adversarios de Jesús ; estes nao have-
riam deixado pafsar a Uusáo ou o mito da ressurreicáo corpórea de
Jesús, de mais a mais que esta fornecia aos Apostólos um argumento
fortissimo em favor de Cristo.

Nao poucos estudiosos também fazem observar que a mensagem


da ressurreicáo de um morto nao era algo de mais comum na anti-
güidade do que em nossos dias. — Neste ponto, Bultmann parece ter
exagerado a diferenca entre as categorías de pensamento (ou as
«ámagens do mundo») dos antigos e dos modernos; entre os gregos e
os romanos de outrora. noticias de ressurreigoes de mortos nao eram
mercadería táo freqüentemente propalada e aceita como se poderia
pensar em nossos días.

2) O texto de 1 Cor 15, 18

Bultmann mesmo reconhece que sua teoría encontra obs


táculo serio («fatal», segundo a expressáo usada pelo próprio
Bultmann em «Kerygma und Mythos» I, pág. 44s) por parte
do texto de Sao Paulo em 1 Cor 15,1-8.
Eis a passagem do Apostólo em tradu;áo literal:
««Facovos conhecer, irmáos, o Evangelho que vos preguei, o
mesmo que vos recebestes e no qual permanecéis firmes. 2 Por ele
também seréis salvos, se o conservardes tal como vólo preguei... a
menos que nao tenha fundamento a vossa fé.
«Transmitivos, antes de tudo, aquilo que eu mesmo recebl, a
saber, que Cristo morreu par nossos pecados, conforme as Escrituras,
* e que foi sepultado
e que ressuscltou ao tercei.ro dia conforme as Escrituras
s e que apareceu a Cefas, depois aos doze.
0 Posteriormente apareceu de urna vez a mais de quinhentos ir
máos, dos quais a maior parte vive até hoje, alguns, porém,. já
morreram.

1 Depois apareceu a iTago e, em seguida, a todos os Apostólos.


«Por fim, depois de todos, apareceu também a mim, como a um
abortivo».

Estes dizeres sao de época milito antiga ou do sexto decenio


do século I (56/57); pouco mais de vinte anos apenas os sepa-
ram da Ascensáo de Jesús (o que Bultmann nao póe em

— 381 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 2

dúvida). Referem-se á pregagáo que Sao Paulo realizou em


Corinto entre os anos de 50 e 52; nessa época, o Apostólo
entregou aos fiéis os ensinamentos que lhe haviam sido ante
riormente entregues.

Alias, também em 1 Car 11, 23 afirma o Apostólo ter transmitido


aos corintios o que lhe fóra transmitido, a saber: a mensagem re
ferente á Ceia do Senhor.

E quando recebeu Paulo tais ensinamentos ?


Ou por ocasiáo da sua conversáo, que se deu aproximada
mente no ano de 35, ou no ensejo de sua visita a Jerusalém,
que teve lugar em 38, ou, ao mais tardar, por volta do ano de 40.

Observe-se agora o estilo do texto de 1 Cor 15, 3-8: as frases


sao curtas, incisivas, dispostas segundo um paralelismo que lhes
comunica um ritmo notável. Abstracáo feita dos w. 6 e 8, dir-se ia
que se trata de fórmulas estereotípicas, forjadas pelo ensinamento
oral e destinadas a ser freqüentemente repetidas. Nesses versículos
encontram-se varias expressSes que nao ocorrem em outras cartas
de Sao Paulo: assim «conforme as Escrituras», «.no terceiro dia»,
«aos doze», «apareceu» (expressáo que só ocorre sob a pena de
Sao Paulo num hiño citado pelo Apostólo em 1 Tim 3, 16).

Estas indicacóes dáo a ver que Sao Paulo em 1 Cor 15,


3-8 reproduz urna fórmula de fé que ele mesmo recebeu já
definitivamente redigida poucos anos (dois, cinco, oito anos ?)
após a Ascensáo do Senhor Jesús. O v. 6, quebrando o ritmo
do conjunto, talvez tenha sido introduzido posteriormente;
quanto ao v. 8, é por certo urna noticia pessoal que Sao Paulo,
acrescenta ao bloco.
Vé-se, pois, que desde os primeiros anos da pregagáo do
Evangelho já existia entre os fiéis urna profissáo de fé na
ressurreigáo de Cristo formulada em frases breves e pregnantes;
tais frases eram transmitidas como expressóes exatas da men
sagem dos Apostólos.
Ora essa fórmula de fé antiqüíssima professa a ressurrei-
Cáo corpórea de Cristo como realidade histórica. Para a com-
provar, havia testemunhas oculares, das quais, diz Sao Paulo,
muitas aínda viviam vinte e poucos anos após a ressurreigáo
do Senhor.
Tal depoimento de primeira hora, concebido e transmitido
pelos discípulos imediatos do Senhor, já seria argumento sufi
ciente para remover qualquer teoría tendente a desvirtuar a
fé na ressurreigáo corgoral de Cristo. Esta fé nao surgiu tardía
mente na historia das primeiras comunidades cristas, mas é
o eco direto da missáo de Cristo acompanhada dia a dia pelos
Apostólos.

— 382 —
DESMTTIZACAO E RESSURREICAO

Bultmann mesmo reconhece a fórga demonstrativa de


1 Cor 15,3-8; julga, porém, que Sao Paulo, ao redigir tal pas-
sagem, foi incoerente consigo mesmo:

<Só posso comprender o texto (1 Cor 15, 3-7) como tentativa de


apresentar a ressurreicáo como um íato objetivo, merecedor de fé.
Apenas" posso dizer que Paulo, levado por sua apologética, caiu em
contradicho consigo mesmo» («Glauben und Verstehen» I. Tübingen
196á, 54s).

A explicagáo de Bultmarm é gratuita e inspirada por


preconceitos.
Estas observacóes se completaráo no decorrer do inciso
abaixo.

3) Carne que morre e ressuscita

A ressurreicáo corporal de Jesús constituí a principal virga-


-mestra ou mesmo a pedra fundamental da Boa-Nova crista.
«Se Cristo nao ressuscitou, vá é a nossa pregagáo, e também
vá é a vossa fé», diz Sao Paulo em 1 Cor 15,14.
Na verdade, a missáo de Cristo consistiu em salvar os
homens, merecendo-Ihes nao apenas a remissáo dos pecados,
mas também o cancelamento de todas as conseqüéncias do
pecado, entre as quais está a morte. «Cristo morreu como
verdadeiro homem para destruir a nossa morte, e ressuscitou
como verdadeiro homem (em sua natureza corpórea) para
restaurar a nossa vida» (cf. Prefacio de Páscoa, no Missal
Romano). Assim como a morte de Cristo foi física, afetando
o corpo do Senhor, assim necessariamente a sua Vitoria sobre
a morte foi física, corpórea, a fim de comunicar á carne humana
o dom da imortalidade. Morte real e ressurreigáo real de Jesús
sao inseparáveis urna da outra; é o conjunto do Novo Testa
mento que o incute. O Apocalipse aprésenla de pé (em atitude
de vitória) o Cordeiro que traz as marcas da imolacáo (cf.
Apc 5,6).

«Jesús nao é apenas o Cruciíicado, mas é também o Ressuscitado.


N3o existe um Evangelho da morte apenas, mas o que constituí o
Evangelho, a 'Boa-Nova', é justamente o e da morte e da ressurreicáo;
dois acontecimentos que... períazem urna indissolúvel unidade»
(D F,ranz Hengsbach, bispo de Essen, em «Deutsche Woche» de
25/111/1967).
Quem nega ou atenúa as aflrmacóes ácima, nega simplesmente
a mensagem crista, ou a razáo de ser do Cristo Jesús. Se o Filho de
Deus nao houvesse provado a marte dos homens para a superar em
sua realidade material e nao meramente metafórica, o género humano
nao haveria sido remido; teria recebido em Jesús apenas a visita

— 383 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 2

de um sabio, um mestre, um santo (como tantos houve e há), nao,


porém, a do Salvador... Salvador em relacáo ao pecado e á morte.

4) Existencialismo, antropocentrismo e racionalismo

Pode-se muito bem admitir com Bultmann que a historia


interpele sempre o estudioso, mormente quando é historia
sagrada ou historia narrada pela Palavra de Deus. Estudar a
B'blia de maneira fria ou meramente científica, como se estuda
Física ou Química, equivale a frustrar ou esterilizar o estudo
sagrado; a Biblia exigirá sempre urna resposta, um empenho
total da parte do seu leitor. Isto, porém, nao quer dizer que ela
nao apresante fatos reais ou verdades históricas; a mensagem
de Deus aos homens, desde os tempos de Abraáo, costuma-se
exprimir nao sómente por idéias abstratas e académicas, mas
também, e principalmente, por meio de acontecimentos vividos
e comprovados. Nao seria licito esquecer o conteúdo objetivo
da historia sagrada para só valorizar o seu aspecto subjetivo,
exlstencial (o aspecto que interessa as atitudes do leitor).
Quem cede a ésta tendencia, faz finalmente do homem «a
medida de todas as coisas»; cai fácilmente na arbitrariedade
e no cetícismo. A Biblia nao é simplesmente um código destinado
a excitar a fé ou as decisóes do homem, mas é um livro portador
de mensagem objetiva; revela-nos o plano e as obras de Deus,
de modo a interpelar calorosamente o leitor.

Nótese outrossim que o interésse pelo pensamento e as obras dos


grandes homens do passado de modo nenhum exclui o interésse pela
sua personalidade ; deve se mesmo dizer que é impossivel compreender
a obra de alguém sem que se conheca éfse homem como homem,
através do seu curriculo de vida. De modo especial diga-se isto a
respeito de Jesús.
As idéias de Bultmann e sua escola dáo a ver como atitudes
subjetivistas sugeridas pelo existencialismo e o conceito protestante
de fé, assim como o racionalismo, podem fazer que o homem se
contraponha a realidades evidenciadas por documentos fidedignos e
pelo bom senso: «Bulímann nos parece exprimir mais urna vez, em
suas últimas conreqüéncias. o que se poderia chamar 'a aventura
protestante'», comenta R. Marlé, «Le probléme théologique de l'her-
méneutique». Paris 1963, pág. 119.

A recusa do sobrenatural ou das interven^óes de Deus


neste mundo leva por vézes o homem a solu~5es pouco lógicas;
o racionalismo extremado chega ao desarrazoado, como, alias,
já insinuava o Apostólo em 1 Tim 4,3s:

«Vira tempo em que os homens já nao suportarlo a sa doutrina


da salvacjio. Tendo nos ouvidos o prurrido de ouvir novidades, esco-
lhorüo para si, ao capricho de suas paixOes, urna multidáo de mestres.
Apartaráo os ouvidos da verdade c se atiraráo ás fábulas».

— 384 —
DESMITIZACAO E RESSURREICAO

Em conclusa*), pode-se dizer que Bultmann merece atengáo


na medida em que dá grande énfase ao valor vital da B'blia
Sagrada. As suas premissas e afirmagóes existencialistas real-
Cam a necessidade de traduzir a doutrina e as idéias bíblicas
em atitudes concretas e vivencia generosa. É de lamentar,
porém, que o existencialismo de Bultmann (associado ao racio
nalismo) tenha chegado a menosprezar ou negar os fatos obje
tivos sem os quais a própria B blia e o Cristianismo perdem
a sua razáo de ser. Nao é mais cristáo (nem mesmo em nome
da fé meramente fiducial do protestantismo) quem nega a
historiddade da ressurreicáo corporal de Cristo.

Bibliografía:

Fr. Viering, Die Bedeutung der Auferstehungsbotschaft íür den


Glauben an Jesús Chr'lstus. GUtersloh 1986.
Bibel und Kirche («Auíerweckt am drltten Tage»), XXII,
márz 1967.
Max Brandle, Zum urchristlichen Verstandnis der Auferstehung
Jesu, em «Orientierung* 31/111/67.
J. Kremer, Das alteste Zeugnis von der Auferstehung Christi.
Stuttgart 1966.

APÉNDICE

A título de ilustrado o complemento, segue-se trecho de


urna Carta Pastoral coletiva do Episcopado da Austria, datada
de 16 de Janeiro de 1967 :

«Muitos dentre vos por cert'o já ouviram palestras radiofónicas


ou disputas recentes televisionadas ou leram artigos, nos quais os
assuntos bíblicos eram tratados de maneira totalmente diversa do
nosso habitual modo de pensar.
Nesse novo modo de estudar, tem precedencia a exegce pro
testante. O principal nome que costuma ser citado em tal setor, é
o de Bultmann. Éste usa freqüentemente a palavra 'desmitologizacao'.
Nao há dúvida, na 'desmitologizacáo' está oculto ura cerne de verdade.
É fato que o Antigo Testamento nao ensina, mas pressupóe, urna
cosmología já obsoleta : aprerenta a térra como 'disco', o céu no
alto, o inferno em baixo. Essa imagem do mundo hoje é tida como
•mítica', o que bem se pode justificar; nao há mal nisso. Também
nos usamos urna expressáo 'mitológica', quando dizemos 'o sol nasce',
o que de fato nao acontece.
Todavía Bultmann vai mals longe. Propugna que o Novo Testa
mento deve ser depurado de todas as fábulas. Entre outras coisas,
Bultmann considera míticas as narracdes de milagres, supondo im-
possivcl toda e qualquex influencia de algum íator transcendente neste
mundo; em conseqüéncia, julga que se deve procurar explicar de
maneira natural a origem das narragaes de milagres. Em vista disto,
ele se serve do método da historia das formas literarias. No Evan-
gelho, como sempre se reconhecéu, há diversas formas literarias ;

— 385 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 93/1967, qu. 2

tenhamse em vista as parábolas: todos sabem que elas carecem


de índole histórica; as historias propostas pelas parábolas nunca
aconteceram. Além déste exemplo muito simples, há evidentemente
outros, sobre os quais é difícil proferir algum juizo. Buitmann, porém,
segundo a sua .teoría, ousa enquadrar as narrativas de milagres
dentro de formas literarias que carecem de veracidade histórica ;
julga que foram as antigás comunidades cristas que criaram tais
descricóes de milagres; elas passaram assim do 'Jesús da historia'
para o 'Cristo da fé'...
Buitmann chegou ao ponto de menosprezar a ressurreicáo objetiva
de Jesús Cristo. Guarda poucos elementos apenas das narrativas dos
Evangelhos ; pouca coisa subsiste após a 'desmitologizacáo'. Destarte
acontece que a 'desmitologizacáo' redunda em genuina 'desistoriza-
cáo' ou destruicáo da historia. Em conseqüéncia, ohserva-se que a
exegese protestante, em alguns de seus representantes, tomou urna
direcáo singular. Outrpra valorizava a historia, julgando poder de
monstrar a historicidade dos Evangelhos; agora, porém, ela se torna
um processo de desistorizacáo. Da historizacáo á desistorizagáo «jos
Evangelhos, eis o surpreendente percurso de tal exegese.
A esta altura comeca a nossa inquietagáo. Sabemos que em escolias
católicas se manifestam tendencias a seguir o mesmo caminho...
Alguns jovens sacerdotes e teólogos, movidos por zélo unilateral,
léem a obra de Robinson 'Deus é diferente', obra ¡na qual sao apre-
sehtadas tais opinióes.
Désse modo abandonam a fé da Igreja, enunciada pelo Vaticano II
e atrás mencionada por nos. Tal atitude já nao é aperfeicoamento dos
métodos de trabaiho, mas destruigáo da própria substánc.a dá fé.
Estas duas' coisas diferem urna da outra. O fundamento das novas
opinióes entre os católicos é a excessiva credulidade com que so
entregam a proposic.5es de ciencia: logo que alguma teoria é apre-
sentada como ciencia, passa a ser considerada como verdade definitiva.
Vejamos, porém, se tal posicáo pode ser a auténtica posicao de
um estudioso. Os mais velhos dentre vos estudaram a dita Física
clássica. Hoje em dia, porém, propóese a Física baseada na teoria
da relatividade e na da energía dos 'quanta' de Plarik. No ámbito da
psicología, Freud instituiu a psioanáliíe; seguiu-se-lhe Adler, com
sua psicología individual; depois, veio Jung, com a psicología dos
complexos. Urna teoria substituí outra. Haraack concebeu urna imagem
de Jesús inspirada pelo racionalismo liberal; Barth, porém, apro-
sentou um Jesús absolutamente transcendental; Buitmann, por sur»
vez, propOe a desmitologizacáo, enquanto seus discípulos tomam va
riados caminhos. Vé se, pois, que as opiniSes da ciencia estáo sujeitas
a ser impugnada; por novas pesquisas ou a se tornar relativas. Donde
se concluí que nao pode ser suprema norma da exegese a ciencia
com suas conclusSes mutáveis e reformáveis. t
Conscientes désse estado de coisas, desejamos explícitamente
afirmar: somos favoráveis ao progresso dos estudos, nao excluidos
os estudo? bíblicos, favoráveis ao aprimoramento dos respectivos mé
todos, a urna mais profunda penetracáo do texto sagrado, tendo em
vista principalmente a teología bíblica. É a esta que a exegese bíblica
deve servir precipuamente. Indagamos, porém, qual deva ser a norma
suprema dos estudos bíblicos.
Qual é a norma suprema da verdade ? É Deus. Visto que Deus
se revelou, a Revelagao divina é o criterio supremo da verdade. De-

— 386 —
DIVORCIO E ESTATISTICAS

ve-se, portanto, dizer: em assuntos de fé, a liberdade de opiniSes


tem seus limites. O que foi revelado, é verdade ; o que contraria a
Revelagáo, é falso. E, para que ningüém indague perplexo o que
consta e o que nao consta da Revelacáo, & Igreja compete a tarefa de
interpretar auténticamente a Revelagáo e seu significado. A Igreja
nao toca revelar proposicáo alguma; cabe lhe apenas interpretar a
Revelac&o. ELa o pode segundo a vontade do Senhor. É assim que as
questdes de fé encontram sua solucao.
Ora a Igreja professa firmemente como doutrina imutável: toda
e qualquer proposicáo dos livros que foram declarados canónicos pela
Igreja — proposicao entendida no sentido intencionado pelo autor
sacro — é Revelagáo divina a nos dirigida. Quando a Revelagáo e
seu sentido sao claros (para que o sejam, nao é sempre necessária
a intervencáo do magisterio da Igreja), entáo toda interpretagáo
divergente e toda alteragáo de sentido equivalem ao menos a urna
parcial rejeigáo da Revelacáo Divina».

III. SOCIOLOGÍA

LUCIO (Rio de Janeiro):

3) «O divorcio está sempre em foco...


Que diz a experiencia de outros povos a respeito ?»

A historia é a «mestra da vida». Por isto, a fím de ilustrar


a atual conjuntura brasileira, pode-se auscultar com proveito
a experiencia de outras nacóes no tocante ao divorcio.
Abaixo seráo apresentados recentes dados estatísticos rela
tivos á Fran;a; consideram o número, os efeitos e as causas
do divorcio. Álgumas conclusóes poderáo ser daí depreendidas
com clareza.

1. O número de divorcios

O divorcio foi introduzido na Franca pela Revolucáo de 1789 e


sancionado pelo Código Civil de Napoleáo. A dita «Restauracáo Fran
cesa» o aboliu em 1836. Mas, aps 27 de julho de 1884. foi .restabele-
cido pela lei Naquet (nome do seu autor). A seguir, promulgaram se
diversas normas no intuito ou de facilitar ou de dificultar o divorcio;
aos 2 de abril de 1941, em vista do decréscimo da popu!acáo e da
derrocada militar, foram decretadas medidas severamente restritivas
ao divorcio.
Verifica-se que no primeiro periodo de vigencia o divorcio quase
nao foi utilizado pelo povo francés.
De 1S36 a 1884, Jiavendo apenas desquite na Franca, éste foi
subindo moderadamente: passou de 500, em 1836, a 3.000 casos
em 1884.

— 387 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 3

A partir de 1884, a curva de desquites e divorcios foi


subindo em flecha :
em 1884 1.657 casos
em 1913 16.335 casos
em 1925 20002 casos
em 1937 23 614 casos
em 1938 27.056 casos

Diante déstes dados, pode-se afirmar que muitas pessoas


que pediram o divorcio, .nao o teriam pedido se nao fóra a
parspectiva oferecida pela lei. Muitos casáis se teriam recon
ciliado, numerosos lares se haveriam conservado se nao tívessem
visto aberta a porta do divorcio. A dissolubilidade acarreta a
própria dissolu áo do matrimonio. Os ánimos dos cónjuges se
enfraquecem ante a primeira divergencia; em vez de procurar
resolver .as mágoas e decepsóes da vida comum mediante disci
plina sobre si mesmos, magnanimidade e mutua comprecnsáo
(o que é sempre arduo), preferem quase*espontáneamente a
solu áo que parece mais rápida e cómoda, ou seja, a recisáo
do contrato matrimonial.

Observa-.se que os divorcios se realiznm em media após dez ou


doze anos de vida conjugal; os primeiros casos dcspontam após sctc
anos de vida matrimonial. Atualmente a media de um casal sobre
doze corre o risco de ser dissolvida pelo divorcio na Franca.
Verdade é que o divorcio tem estado em discreta regressüo nessc
país : 35.000 casos em 1951, 32.000 em 1959. Difícil é prever o futuro.
Vejamos agora

2. Os efeitos do divorcio

1) Divorcio e equilibrio psíquico

Nao há dúvida, há cdnjuges divorciados que parecem haver recu


perado o seu natural estado de ánimo após romper o contrato matri
monial. Mas há tambóm — e nao sao poucos — aqueles para quem
o divorcio se torna um acídente grave na vida, traumatizando profun
damente a sua aíetividade (o que, de resto, é bom sinal: sinal de
que haviam levado a serio o seu casamento).

A atitude da imilher que pede o divorcio, equivale a urna


afirmagáo de independencia, que nao raro humilha o marido.
Nao é certo, porém, que éste utilize a humilhacáo para fazer
urna frutuosa «revisáo de vida»; muitos, pelo resto de sua
existencia, carrestam sem proveito ou mesmo com crescentes
resultados negativos o sentimento da frustragáo.
Quando é o marido que pede o divorcio, éste redunda em
ruina do equilibrio afetivo da mulher; o que quer dizer:...

— 388 —
DIVORCIO E ESTATÍSTICAS

em grande parte, ru'na da vida mesma da mulher. Esta é


humilhada pelo fato, que se tornou público, de nao ter sabido
«guardar o marido». Por vézes, a mulher procura demonstrar
a si mesma que ela ainda é capaz de interessar a um homem
e prendé-lo a si, envolvendo-se para tanto em aventuras de amor.
Nao poucas outras manifestac5es de desequilibrio produzidas pelo
divorcio sao registradas pelos autores.

É principalmente nos filhos que se eyidenciam os trauma


tismos conseqüentes á separagáo dos pais.
Os criminologistas tém chamado a atengáo para o íato de que a
delinqüéncta juvenil (principalmente quando é habitual ou recidiva)
tem causas principalmente psicopatológicas. Com eíeito, a delinquen-
cia juvenil e habitual nao é senao a maniíestagáo extrema de um
fenómeno mais ampio: a desadaptacáo social. Ora dois sao os grandes
íatóres de desadaptagáo social: a «familia corruptora» e a «familia
dissociada», .duas causas, alias, que freqüentemente estSo conjugadas
entre si.

Já que o divorcio é» por definicáo, um elemento que dissocia


a familia, pergunta-se: em que propor;áo as enancas delin-
qüentes sao filhos de pais divorciados ?
Na regiáo de Paris, em meio urbano, um inquérito deu a ver
que 88% das criancas delinqüentes provinham de familias dissocia-
das assim distribuidas:
4 % familias desintegradas par morte de ambos os genitores ;
30 % » » por morte de um dos genitores;
Yl % » » por divorcio nao seguido de novas
nupcias ;

22 % > » por desquite;


2i % » > por divorcio e n5vo casamento de
um dos genitores.

No quadro ácima, ponham-se de lado os casos de dissolucSo por


motivo de óbito, casos inevitáveis. Nos dados restantes, verificase
que o divorcio tem largas partes entre as causas da delinqücncia
infantil; ora o divorcio é um fator coercível, ao passo que a. morte,
em numerosas circuntáncias, é inexorável.

A crianga é profundamente afetada pelo divorcio dos pais,


porque, entre outras coisas, passa a carecer da seguranza física
e psíquica que a familia lhe deveria proporcionar.
Quando se instaura um processo de divorcio num casal que tem
filhos, as assistentes sociais encarregadas do inquérito a respeito da
prole, alegam geralmente o eeguinte: «A crianca precisa de se sentir
em seguranga, reguranga que lhe proyém do ambiente da famíl.a,
do amor que lhe demonstram os pais é também do amor que estes
alimentam entre sis.

\
— 389 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 3

A dissolugáo abala ou destrói essa seguranga; é notoria


a perplexidade de urna criarra quando vem a saber que seus
país estáo para se divorciar: torna-se aos poucos um ser desa
daptado e, possiveimente, num futuro próximo, urna criatura
delinqüente. Paulatinamente, a inseguranga procedente do lar
atinge a escola e, por fim, a sociedade inteira.
Nao raro, a avidez de afeto, frustrada no seio da familia,
vai traduzir-se em avidez material: o dinheiro torna-se um
substitutivo do amor, a crianga entrega-se ao roubo.

Observa-se também que a separagáo definitiva induzida pelo


divorcio é mais traumatizante do que a simples separacáo de corpos
dos genitores, pois esta deixa na crianga a esperanza de que será
provisoria.

A sensagáo de inseguranga é agravada quando os ñlhos


sáó, pelo juiz, separados uns dos outros, ficando uns com o
pai, outros com a genitora.

Verificamse traumatismos mais sutls nos pequeninos: sao ge-


.ralmente confiados á máe; carecem entSo da contribuigáo especifica
do pai na educagao, o que nao pode deixar de redundar em disturbios
de afetividade.
Aos poucos, a crianca tende a se identificar com aquéle dos
cónjuges divorciados com o qual ela nao vive; o pai ou a máe ausente
aparece lhe como herói ou heroína, que ela procura imitar — o que
é particularmente grave se tal pessoa leva vida repreensivel.
É freqüente também que cada qual dos genitores procure atrair
a prole para o seu lado, esmerándose por agradar á crianca (dond«
resultam os «eníants gátés» ou as criangas caprichosas). A familia
dissociada torna-se assim «familia corruptora», novo íator de desa-
daptacáo e, conseqüentemente, de delinqüéncia.
Pódese recordar outrossim que, no caso de novas nupcias, pa-
drastos e madrastas sao por vézes avessos aos filhos do primeiro co-
núbio; pai e máe entáo se sentem incomodados por tais filhos; atiram
essas criancas um para o outro, pois sao «excedentes» nos novos lares.
Pode acontecer que os coloquem em «terreno neutro», isto é, em
casa de algum familiar mais ou menos afastado, ou em colegio interno,
o que talvez seja a menos lamentável das solucóes.
Em todos ésses casos, a crianca sentese intrusa em toda parte
e, por conseguinte, profundamente frustrada em sua afetividade.

Como se vé. a sorte dos filhos é elemento ponderoso em


desabono do divorcio. Independentemente de outros fatóres,
o bem da prole e, consequeiitemente, das futuras gera;6es de
um país pede, com razdes suficientes, que se conserve a esta-
bilidade do lar. É, pois, altamente louvável a atitude dos cón
juges que, em vista dos filhos, procuram superar os deseñten-
dimentos mutuos (até mesmo as situagóes criadas por adul
terio) . ^

— 390' —
DIVORCIO E ESTATÍSTICAS

2) Divorcio e livre uniao

Nao raro o divorcio é apresentado como solugáo de franqueza.


Parece ser o meio oportuno para diminuir ou extinguir aliancas
concubinárias, que íavorecem a hipocrisia e o senso da ilegalidade.
Quem nao se dá bem com o respectivo consorte, separase déle e
trava nova aiianca reconhecida pelas leis da sociedade civil.

Á primeira vista, poder-se-ia crer que a solucáo é plausivel.


Eis, porém, que as estatísticas na Franga a apresentam como
ilusoria: grande número de concubinos (pessoas que vivem
maritalmente sem haver legalizado sua situa^áo) sao divorcia
dos. Dáo a ver outrossim que tanto o divorcio como as unióes
livres sao praticados em larga escala ñas mesmas regióes e
nos mesmos ambientes; o divorcio, portanto, nao excluí nem
diminuí o concubinato. Note-se ainda que, além das unióes
livres, definidas por coabitacáo sob o mesmo teto e comunháp
de bens, há nos países divorcistas também «relacóes» que
consistem em encontros extra-conjugais sistemáticos entre pes
soas casadas, relajees, porém, que nao chegam a constituir
comunháo de vida entre amantes. É difícil estabelecer o número
exato de casos em que tais relagóes ocorrem; poder-se-ia afirmar
que seriam mais freqüentes se nao houvesse divorcio no país ?
Como quer que seja, é certo que o divorcio nao as suprime;
duplicidade e falsidade contlnuam a subsistir mesmo ñas socie
dades em que o casamento é solúvel.

3) Divorcio e suicidio

O divorcio é tido freqüentemente como via para a recon


quista da felicidade frustrada. Muitos esperam, mediante o
divorcio, chegar a viver urna existencia mais feliz do que a
sua vida conjugal.
Todavía algumas estatísticas coihidas fora da Franca (nao
encontramos dados referentes a éste país) demonstram que o
divorcio e o suicidio costumam ser correlativos; as pessoas que
mais se suicidam, sao as pessoas divorciadas.

Na Hungría, Teodoro Szel veriíicou que, sobre um milháo de


habitantes, se suicidaran-»:
Homens Mulheres
Casados 252 134
Celibatários 288 141
Viúvos 2.353 348
Divorciados 1.479 702

(Estudo publicado na revista húngara de Estatistica «Magyar


Statistikai Szemlex» n* 7, julho de 1928).

— 391 —
«tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 3

Nos E. U. A., A. D. Frenay («The suicide problem in the United


Statesi-. Bostón 1927, pág. 84) investigou as grandes cidades, che-
gando aos seguintes resultados:

Sao Francisco Chicago Milwaukee


191120 1912 21 1911-20
Solteiros 460 220 160
Casados 430 260 240
Viúvos 570 450 480
Divorciados • 1.090 1.740 1.040

Passando para os Estados :

Estado de Ohio (1911-20)


Homens Mulheres
Solteiros 220 90
Casados 260 90
Viúvos 640 120
Divorciados 1.000 320

Estado da California (1914-1917)


Homens Mulheres
Solteiros 530 140
Casados 470 160
Viúvos 1020 180
Divorciados 1.300 540

Tais dados, que se poderiam multiplicar, evidenciam que


o divorcio nao pode ser tido como meio de sanear desgrasas
e caminho para a felicidade. Verdade é que a dissolu.áo do
matrimonio parece por vézes ocasionar certa libertacáo para
esposos comprometidos numa uniáo dita «insustentável»; toda-
via ésses casos sao «casos-limite»; constituem excecóes, de cujo
éxito, alias, bem se pode duvidar; sao excecSes que confirmam
a regra, segundo a qual o divorcio é (como foi atrás exposto)
portador de vultosos males tanto psíquicos como físicos, tanto
individuáis como sociais.

2. Causas do divorcio

Distinguem-se causas sociológicas, psicológicas e moráis


do divorcio.

1) Causas sociológicas
Os sociólogos na Fran-a procuraram averiguar a densidade
dos divorcios segundo as respectivas regióes geográficas, che-
gando as seguintes conclusóes:

Na regiáo de París, os divorcios sao sete vézes mais numerosos


do que na Bretanha. Nos Alpes Marítimos, a proporcáo é. de 28 divór-

— 392 —
DIVORCIO E ESTAT1STICAS

cios para 100 casamentes. Na regiáo de Lozére, porém, registramse


11 divorcios para 1.000 casamentos. Em suma, as regióes mais íe-
cundas em divorcios sao, em ordem decrescente, os Alpes Marítimos,
París, Bordeas e Liño.

Refletindo sobre ésses dados, depreende-se que há relaoáo


entre o divorcio e a concentracao de populacao, a proletarlzagáo,
o regime em que a mulher trabalha fora de casa como funcio
naría á semelhanca do marido, o movimento de via^ens, a vida
de prazer c luxo, a descristianizacáo. Onde muitos désses fatóres
estáo reunidos, o divorcio é freqüente.
Verifica-se outrossim que certos elementos desfavorecen!
o divorcio :

fidelidnde h vida católica — o que se dá principalmente na Bre-


tanha; a Igreja nao admite o divorcio. Em certas regiñes de profunda
vida religiosa protestante, como na Franca oriental, os divorcios podem
ser relativamente numerosos, pois o protestantismo nao os reprova;
vida rural na base da pequeña propriedade : marido e mulher tra-
balham juntos e procuram transmitir a sua térra aos fühos e netos.

As características das regióes em que há mais divorcios,


indicam que estes sao geralmente o resultado de deseqii líbrio
de vida dos cidadáos e da sociedade — o que redunda em
desadaptacáo social. O ritmo febril da vida moderna faz muitas
vézes que as pessoas percam o controle sobre si mesmas, sobre
seu horario de trabalho e lazeres ou divert'mentos, assim como
sobre suas relajees sociais; fácilmente entáo abandonam tam-
bém a disciplina religiosa; daí resulta que nao sintam mais o
ánimo necessário para sustentar os sagrados compromissos
do lar.

2) Causas psicológicas

As causas sociológicas apresentam os elementos externos que con-


tribuem para abalar mais ou menos gravemente os casáis unidos.
SupSem fatóres psicológicos, que exercem sua acáo no íntimo dos
cónjuges, levándoos ao desentendimento.

Quais seriam os motivos de litigios conjugáis mais fre-


qüentes ?
As atas dos processos de divorcio indicam os seguintes:

coabitacao dos esposos com os familiares de um déles — o que


é particularmente nocivo se um dos cónjuges permanece na depen
dencia afetiva de seus genitores ;
diíiculdades íinanceiras do casal (acontece, porém, que estas
por vézes corroboram o vínculo conjugal) ;

— 393 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 3

trabalho da mulher em vista do ganha-páo: pode humilhar o


marido e ocasionar reagSes masculinas na mulher ;
absorcáo do marido pelo trabalho: provoca o ressentimento da
mulher.

Em última análise, tais elementos se tornam nocivos a.


uniáo conjugal porque sao acompanhados de falta de maturi-
dade afetiva dos consortes. Estes nao se mostram em condi;óes
de realizar um amor que seja realmente doagáo,... de reco-
nhecer as próprias fainas, de se separar dos genitores, de
superar dificuldades financeiras, de dominar seu trabalho pro-
fissional; numa palavra... de tomar a serio o casamento,
passando por cima dos choques da vida cotidiana.
Um jurista francés, Jean-Charles Laurent, realcou também, entre
as causas de divorcio, a influencia de
casamentes precoces,
casamentas precipitados pela gravidez da jovem,
inexperiencia do jovem marido que nao sabe compreender as
mudangas (de atividades, de humor) acarretadas na esposa pela
gravidez,
falta de habilidade da mulher na direcao do lar,
diferencias de classes sociais, de cultura...
Laurent concluía seu estudo apontando a desproporgao muitas vézes
existente entre os fatos alegados pelos esposos que pleiteiam o divorcio,
e a importancia que estes Ihes atribuem. Em última instancia, pois,
verifica-se que a imaturidade parece ser um dos propulsores funda
mentáis do divorcio; ... imaturidade no ato de contrair matrimonio
ou no modo como os esposos se comportam. Cf. Jean-Charles Laurent,
«Quelques réflexions sur les causes du divorce», em «Dalloz» 1949,
chron. XIV, pág. 61.
Chama a atengao o fato de que o adulterio nSo seja indicado, nos
dados ácima entre as causas de divorcio. Todavía isto se explica :
talvez o adulterio seja o último motivo que os esposos revelam mesmo
em conversas confidenciais; além disto, julga-se que o adulterio nao
é, em numerosos casos, a causa principal do desacordó, mas, sim, a
conseqüéncia do mesmo.
Na Inglaterra dos últimos tempos, tornou-se notorio o fato se-
guinte:
Os casamentos que malor número de divorcios acarretam, sao
os que se real izam em idade muito juvenil,
os que se efetuam após gravidez pré-matrimonial,
ou aínda aqueles em que a idade muito juvenil e a gravidez pre
nupcial estao assocladas entre si.
Rowntree estudou um grupo de 3.000 homens e mulheres que
se casaram entre 1930 e 1949. Dos casamentos realizados aos 19 anos
ou menos, 11 % íoram dissolvidos pelo divorcio. Dos que se efetuaram
aos 25 anos ou depois, apenas 3 % se romperam pelo divorcio.
No primeiro grupo de divorcios, a gravidez prémarital ocorreu
na proporcáo de 26%. No segundo grupo, na proporcao de 8%.

— 394 —
DIVORCIO E ESTAT1STICAS

Estes dados íoram confirmados por outras estatísticas inglesas.


Cí. J. Dominian, «Vatican II: The Church and Marriag», em «Bulletin
CMAC», London 1966, vol. VI, n' 4, pág. 7.
Os resultados ácima sao bem compreensiveis. A inexperiencia da
vida, o amor pouco amadurecido, suscitado por situacóes de paixáo,
arriscam se a ser surpreendidos e decepcionados por duras experiencias
posteriores. Da mesma forma, o amor mal iniciado, indisciplinado,
dado á liberdade abusiva, é de certo modo penhor de vida conjugal
desregrada e infeliz.

Em conclusáo: como motivos de divorcio, os sociólogos


apontam a falta de adaptacáo social; os psicólogos, a imaturi-
dade afetiva... Ora estes dois fatores estáo intimamente asso-
ciados entre si; parecem ser causa e efeito um do outro: a
pessoa desadaptada torna-se mais difícilmente adulta; e a pessoa
que nao se toma adulta, nao se adapta. Quem nao é adaptado
e quem nao é adulto, tém pouca probabilidade de que a sua
vida conjugal se desenvolva sem choques, e de que ésses choques
sejam devidamente superados; estáo, pois, a caminho do di
vorcio.

3) Cansas moráis

O divorcio supSe nao só desentendimento entre os cónjuges,


mas também um dimimrdo apreso do vínculo conjugal. Está
claro que tanto mais alguém se empenha por evitar o divorcio
quanto mais estima o enlace matrimonial. O clima de moral
frouxa como o que hóje existe, contribuí para que, de antemáo,
os cónjuges nao atribuam o devido valor á uniáo conjugal. Em
conseqüéncia, o divorcio entra espontáneamente ñas perspec
tivas dos nubentes e esposos; vem a ser quase inconscientemente
considerado como urna das variadas e inevitáveis «sortes» da
vida, nem mais nem menos grave do que as outras.

Refere Lalou que urna senhora perguntou a um advogado quanto


Ihe poderia cusbar um processo de divorcio. Tendo ouvido a resposta,
exclamou : «Por ésse prego, nao me faz diferenca permanecer com
meu marido!» («Histoire du divorce en France», em «Actes du Congrés
de Droit Canonique». Paris 1950, 329).
O Instituto Francés de OpiniSo Pública (I. F. O. P.) averlgüou
que mais de 70 % de jbvens de 15 a 20 anos aceitam o divorcio.

Para tornar a noció de divorcio cada vez mais natural


e «normal», concorrem dois grandes tragos característicos da
vida de nossos dias:
a) os meios de publicidade (cinema, teatro, jomáis, literatura,
televisüo...) explanam e exploram o divorcio com certa complacen
cia: propSem exetnplos, reais ou imaginarios, que criam um clima

_ 395 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 3

contagioso. Temse dito que vivemos na «civiliaicáo do divorcio»,


como também vivemos na civilizacáo do atríomóvel, do radio e da
televisáo;

b) está assaz difundido o conceito afrodisíaco ou carnal, sexual,


de amor. Nesta conceituacáo o coracáo tem menos lugar do que a
carne; o casamento passa a ser considerado como autorizacáo ou
legalizacáo da prática do amor no sentido biológico. Por certo dcve
haver harmonía íisica entre os cónjuges; todavía o problema do amor
é muito mais ampio. O amor é, principalmente, dom de si e recepc&o
de outrem, é comunháo no mesmo ideal com as inevitáveis renuncias.
Existe um nexo entre uniáo dos corpos e uniáo dos coriagóes, entre
uniáo (dos corpos e dos corac5es) e fecund'.dade; existem compro-
mlsros dos esposos entre si e com seus f lhos,... de tal familia (pais
e filhos) com a sociedade em que está situada.

3. Conclusao

Ve-se que as causas sociológicas, psicológicas e moráis do


divorcio se sobrepóem, influindo seriamente urnas sobre as
outras. Os malef cios do divorcio sao evidentes e graves, pois
atingem profundamente a familia e a sociedade.
A considera áo das experiencias feitas fora do Brasil de
monstra que a introdugáo do divorcio em nossa patria está
longe de ser a almejada sohrio para a infelicidade de mu'tos
dos nossos casáis; a historia o ensina, sem que haja neccssidade
de recorrer á fé católica. Por isto é que .nao S3 vé como preco
nizar o divorcio ao menos para náo-católicos. Católicos e náo-
-católicos possuem todos a mesma natureza humana e estáo
sujeitos ás mesmas Ieis naturais, suieitos, portanto, a sofrer
as mesmas desgracas ou a mesma san?áo que a própria natureza
inflige a quem pretenda violar suas normas ou, .no caso, dissolver
o vínculo conjugal.

Alega-se que em Portugal a Igreia reeonheceu, por concordata


com o Governo o divórc'o para nao católicos. — Note re. poréni, que,
anteriormente á Concordata, o divorcio já existia em Portugal para
todo e qualquer cidadáo. A Concordata equivaleu, portanto, a urna
restricáo ao divorcio ; serviu para diminuir o mal. O caso é bem
diverso no Brasil, onde nao há divorcio; introduzi-lo para nao católi
cos significaría decadencia da moral e da jurisprudencia, e nao
progresso.

O que se deve veementemente pleitear como solu*;áo para


muitas das desgracas ocórrentes na vida matrimonial, é urna
revisáo lúcida e seria da mentalidade e das instituigóes da nossa
sociedade. Essa revisáo pediría
a) no setor moral: dissipe-se e remova-se por completo
a nojáo de amor hedonista, afrodisíaco, meramente gozador...

— 396 —
DIVORCIO E ESTATiSTICAS

Mostre-se principalmente aos jovens que o amor é prontidáo


á doacáo de si e ao sacrificio heroico. Juntamente com a edu-
ca-áo sexual (ministrada individual e gradativamente, nao em
turmas, sem aten;áo direta ao caso de cada um dos adolescen
tes), dó-se a educagáo do coracáo ou dos afetos; procure o
educador cultivar os sentimentos nobres, excitar a firmeza e
a psrseveranca da vontade na juventude. Em verdade, nao há
realizagáo de ideal onde .nao há tenacidade de ánimo. Procure-se
esmerar a preparado dos jovens para o matrimonio; multi-
pliquem-se os bons cursos destinados a tanto;
b) no setor da vida pública: promova-se o saneamento
do cinema, do teatro, da imprensa (principalmente jomáis,
reVistas, obras de divulgagáo popular). É para desejar caloro
samente que ésses meios de publicidade se tornero formativos
em vez de ser deformativos; sejam subtra'dos as especulares
do lucro comercial, do sensacionalismo e da auto-promogáo de
artistas escritores e produtores;

c) no setor da psicología: haja educagáo da afetividade,


a fim de que se diminuam os casos de imaturidade. É preciso
porfiar para que as pessoas desadaptadas na sociedade se inte-
grem nesta. Faz-se mister também comunicar a quem nao o
possui, o sentido apurado do amor e da familia, a consciéncia
das responsabilidades increntcs ao matrimonio, assim como as
exigencias de estabilidade e fidelidade do amor;

d) no setor sociológico : merece especial atengáo a política


da habitagáo com extingáo dos tugurios. Evitem-se a proleta
riza 'áo ou a massificagáo humana, os aglomeramantos residen
ciáis de casáis, os regimes de promiscuidade hab;tacional, em
que a vida particular dos moradores é devassada. Haja também
sadia sistematizado de trabalho e lazeres. Preconiza-se outros-
sim que nao falte a presenga marcante e insubstituível da
mulher no lar. Combata-se o alcoolismo, causa de numerosos
desajustes individuáis e sociais.
A aceitagáo de tais tarefas por parte de todos os membros
da sociedade, no Brasil e no mundo, é a única resposta que
se possa dar com dignidade ao problema dos matrimonios mal
sucedidos Naturalmente, a obra de saneamento é vasta : nao
pode produzir todos os seus frutos em breve prazo, mas por
certo nao deixará de fazer sentir sem demora os seus primei-
ros benefeios, desde que empreendida com seriedade e afinco
por educadores, professóres, juristas, jornalistas, publicistas,
enfim, por todos quantos se sentem responsáveis por urna
sociedade melhor.

— 397 —
«PERGUNTE E RESPONPEREMOS> 93/1967, qu. 4

Bibliografía:

H. Lalou, Histoire du dlvorce en Franoe, em «Artes du Congrés


de Droit Canonique». París 1950, 313-335.
J. Desforges. Le divorce en Framce, étude démographique. Pa-
ris 1947.
Ledermann, Les divorces ct les séparations de corps en France,
em «Population» 1948.
Granier, Épouse, concubine ou compagne ? em «Jurisclasseur
périodique» 1956, I n' 1299.
Colette Hovasse, Difficultés de vivre. Toulouse 1960.
Heuyer, Enquéte sur la délinquance juvénile, em «L'enfance cou-
pahle» 1942.
PInatel, Blanc et Bertrand, Inadaptation juvénile, em «Revue in-
ternationale de criminologle et de pólice technique» 1953, 1.
Rene Theiy, Le concubinage en France, recherche de sociologie
juridique, em «Revue trimestrielle de D.roit civil> 1960, pág. 3352.
L. de Maurois, Le probléme du divorce en France, em «Revue
de Droit Canonique» XV (1965), pág. 240-264.

IV. HISTORIA DO CRISTIANISMO

BORGES (Ouro Préto):

4) «A viagem do Papa Paulo VI a Fátima provocou


comentarios.

Terá sido incentivo a crendices e devocoes mal orientadas ?


Obstáculo ao movimento de nniáo dos cristaos ?»

O significado da visita do S. Padre Paulo VI ao santuario


de Fátima pode ser resumido na seguinte frase: «Papa peregrino
pede paz por Maña em Fátima».
Abaixo procuraremos comentar os quatro termos mar
cantes de tal noticia, o que nos dará ocasiáo de considerar as
principáis objegóes levantadas contra a viagem do Sumo
Pontífice.

1. Papa peregrino

Em seus pronunciamentos feitos em Portugal, Paulo VI


quis salientar freqüentemente que empreendera sua viagem
como peregrino.

— 398 —
PAULO VI EM FATIMA

Peregrinar é urna das atitudes mais espontáneas ao homem.


Éste é sequioso do Absoluto e Transcendente (que é o próprio
Deus). «Ver a face de Deus», eis urna das grandes aspiragóes
da criatura humana. Exprimindo éste seu desejo, os homens
em todos os tempos se deslocaram em demanda de lugares
que, por algum motivo, lhes pareciam particularmente assina-
lados pela presenga de Deus.

É o que historia das ReligiSes atesta sobejamente ; cf. «P.R»


24/1959, qu. 7.
Na India os monges brámanes passam quase toda a sua vida
a percorrer o territorio da península, visitando os numerosos san
tuarios que lá se encontram.
Os antigos gregos conheciam também seus famosos templos
sagrados, para os quais convergiam constantemente numerosos de
votos : o santuario de Apolo em Delíos, o de Diana em Éfeso, o de
Asclépio ou Esculapio, o deus médico, em Cós e Epidau.ro...
Entre os árabes, o islamismo impoe a peregrinag&o a ser íeita
ao menos urna vez na vida.
Também o povo judaico do Antigo Testamento, que gozava dos
beneficios da Palavra de Deus, tinha seus santuarios, aonde os israe
litas se dirigiam asiduamente: Siquém, Betel, Bersabéia, Da, Jeru-
saiém...; eram lugares geralmente caracterizados por alguma ma-
miíestagáo solene de Deus aos Patriarcas ou a outros justos.
No Cristianismo, a pnaxe das peregrinagSes tomou sentido aínda
mais denso: Jerusalém e outros lugares santos da Palestina, mar
cados pela presenta do Messias, foram desde os primeiros sáculos
freqüentemente visitados com ánimo devoto; também Roma, sede
de reliquias notáveis, gozou sempre da estima dos peregrinos. Nos
tempos modernos, Assis, Lourdes, La Salette, Chartres, Fátima sao
pontos da térra em que Deus parece manifestar aos homens, de
maneira bem sensível (mediante conversSes á fé e gracas extraordi
narias), a sua presenga e a sua benevolencia; sao grandes centros
de oragáo humilde e contrita, oriunda do fundo da alma de milhares
de pessoas atribuladas pela vida e sequiosas de Deus.
Freqüentemente através dos séculos os santos empreenderam pe-
regrinagóes cm espirito de penitencia e pobreza: Silvia ou Etéria,
a famosa peregrina da Térra Santa no séc. IV, S. Helena, mae do
Imperador Constantino, S. Francisco de Assis, S. Inácio de Loiola...
Nao raro também os grandes convertidos, urna vez tocados pela
graga de Deus, colocaram-se na fila dos peregrinos humildes (haja
vista o caso de Charles Péguy).

Ora o Papa Paulo VI, viajando até Fátima, nao quis senáo
ser mais um dos peregrinos déste santuario. Nuraa hora par
ticularmente delicada do género humano, quando os homens,
angustiados por múltiplos problemas, experimentam a neces-
sidade de benévola intervencáo divina, o S. Padre quis dar
expressáo aos ardentes anelos da humanidade, indo orar com
milhóes de fiéis em um dos lugares que o próprio Deus parece

— 399 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967. qu. 4

ter escolhido para ser ponto de contato mais íntimo entre a


térra e o céu.
Em resposta ao discurso de boas-vindas proferido pelo
Presidente de Portugal, S. Santidade declarou:

«É com a maior satisfaeáo que pisamos o solo portugués... Vimos


como peregrinos. Desejamos ardentemente rendcr homenagem filial
á Santa Máe de Deus na Caverna da Iria. Dirigimos a e.a nossos
passos em espirito de o.ra"ao e penitencia para suplicar a Nossa
Sen.ho-a de Fátima, faga reinar, na Igreja e no mundo, o bem ines-
timável da paz...
Tendo em conta que estas duas intencoes (paz m Igreja e no
mundo) sao objeto de Nossa mais viva preocupacáo, iremos a Fátima
com a humildade e o fervor do peregrino que afronta urna tonga
viagem para confíalas áquela que a Igreja e o povo cristáo invocam
sob o nome doce de María».
Estes dizeres visavam. por certo, remover a suspeita de que
intenses alheias aos interfisses da fé inspirassem de algum modo a
viagem do Papa a Portugal.
Dec'araíóes semelhantes se encontram em quase todos os pro-
nunciamentos de S. Santidade referentes á sua ida a Fátima.
Ademáis Monsenhor Faurto Villainc, Chefe do Departamento de
Imprensa do Vaticano, tendo em vista dissipar qualquer dúvida sobre
o assunto, chegou a afirmar:
«As insinuares de que existem motivos políticas por tras da
peregrinado religiosa do Papa Paulo VI a Fátima, sao ofensivas ao
Sumo Pontífice. Sao ofenrivas, porque duvidam da sinceridade na
pfrmacño dos moíivos puramente religiosos da peregrinagao Pau'o VI
deixou c'aro em varios pronuncia mentos que o motivo de sua viagem
era d'rigir .suas preces á Virgem Maria para que esta intercedesse
em favor da paz».

2. .. .Pede paz

Indo a Fátima a fim de orar, S. Santidade exprimlu repe


tidas vézes os dois grandes objetivos da sua prece: paz interna
da Igreja, paz entre todos os povos.

1) Paz interna da Igreja

Eis palavras do Sumo Pontífice proferidas na homilía da


Missa celebrada em Fátima :

«A primeira intencáo (da Nossa oracao) é a Igreja : a Igreja


una. santa, católica e apostólica. Queremos rezar, como disremos,
pela sua paz interior. O concilio ecumfia'co despertou muitas ener
gías no seio ó-í Igreja... Queremos firmemente que táo grande
beneficio e táo profunda renovacao se conservem e se tornem ainda
miiores. Que mal seria, se urna isiterpretacáo arbitraría e nao auto
rizada pelo magisterio da Igreja transformasre éste renascimento
espiritual numa inquietagáo que desagregasse a sua estrutura tra-

— 400 —
PAULO VI EM FATIMA

dicional e constitucional, que substituisre a teología dos verdadeiros


e grandes mestres por ideologías novas e particulares que visam a
eMminar da norma da íé tudo aquilo que o pensamento moderno,
muitas vézes falto de luz racional, nao compreende e nao aceita, e
que mudasse a ansia apostólica de caridade redentora na aquiescencia
ás formas negativas da mentalidade profana e dos costumes mun
danos».

Orar pela paz interior da Igreja é inten^áo inédita ñas


iniciativas de Paulo VI em favor da paz.
A que se deve ?
— O órgáo do Vaticano «L'Osservatore Romano» de
20/V/67 o explica:
A Igreja .nao se acha em guerra, nem está dilacerada
interiormente; a sua un'dade é atestada pala qua~e uianimidade
com que os Padres conciliares aprovaram Constituigóes e
demais documentos do Concilio do Vaticano II. Essa unidade
vive e vale em jiossos dias.
Acontece, porém, que em nossos tempos pós-conciliares
numerosas iniciativas váo sendo empreendidas a fim de executar
as normas do Conc lio; podem ser muito fecundas, como tam-
bém podem-se tornar nocivas a Igreja, caso sejam realizadas
sem a devida fidelidade ao magisterio. Certas atividadas, suge
ridas palas melhores'das inten^óes, ameanam degenerar desde
que percam o contato com as diretrizes oficiáis da hlerarquia.
A re.novac.5o da Igreja nao pode, em absoluto, significar rup-ura
com o passado. Sendo a Igreja um organismo vivo, Ela só conserva
a sua vida dentro das llnhas da continuidade e da hereditariedade;
um vívente que queira cortar os vínculos com o próprio passado,
condenase a perecer, sem transmitir a riqueza da sua própria vida
aos tempo? futuros A continuidade do magisterio e da hierarquia da
Igre'a é condigáo para o desabrochar orgánico do depósito de doutrina
e santifxacao entregue por Cristo aos Apostólos.

Na audiencia pública de quarta-feira 17/V/67, logo após


a peregrmacáo a Fátima, o S. Padre Paulo VI, dispertando
sobre o misterio de Pentecostés, voltava ao tema «unidade da
Igreja» nos seguintes termos :
«Há quem seja tentado a julgar que as no=sas relucóes com a
Igreia visivel. hierárquica e can&nica sao algo de estranho supé-f no,
contrario e quase abusivo, desde que commradas com ?s relagoes
intimas e 'carismáticas' da alma com o Espirito Santo. Sejamos cau
tos. Filhos carissimos. diante de tal prob'ema. e tratemos de resol-
vñ to da forma devida: a Igreja, Corpo Místico de Cristo nao se
disMngue di Igreja o-ganizada soc'almente, Igreja que.nos confe~e
o no-so título de católicos, que dá ás alims sant'ficadas peli gra"a
a forma mesma da vida nova crista, e que é o instrumento indispen-
sável mediante o qual temos a doutrim, temos os sacramentos temos
a guia que nos levam e nos conrervam na comunháo com o Espirito

— 401 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967. qu. 4

Santo. Abramos, sim, as velas da alma ao sdpro do Espirito de Jesús,


que sopra onde quer (Jo 3, 8), livre e misterioso; mas nao abando
nemos o timáo da nossa barca, o timáo do Pescador apostólico, que
nos governa para um fim salutar> («L'Osservatore Romam» 18/V/67).
A Igreja é una na sua estrutura vislvel e na sua alma invisfvel;
deve, portanto, permanecer una também na mente e mas atitudes
de todos os seus fiUios.

Foi primeiramente para obter táo grande graca que o S.


Padre Paulo VI elevou, com o povo de Deus, ardentes preces
em Fátima.

2) Paz no mundo

Após mencionar o primeiro objetivo de sua oracáo, o S.


Padre assim prosseguiu sua homilia em Fátima :
«Passamos á segunda intencáo déste Nosso peregrinar, intencáo
que enche a Nossa alma : o mundo, a paz do mundo...
Sabéis e verificáis que o mundo nao é feliz nem está tranquilo.
A primeira causa desta sua inquietacáo é a dificuldade que encontra
em estabelecer a concordia, em conseguir a paz. Tudo parece impelir
o mundo para, a fraternidade, para a unidade; no en tanto, no seio da
humanidade, descobrimos aínda tremendos e continuos conflitos. Dois
motivos principáis tornam, por isso. grave esta situacáo histórica da
humanidade: ela possui um grande arsenal de armas terrlvelmente
mortíferas, mas o progresso moral nao iguala o progresso cientifico
e técnico. Além disso, grande parte da humanidade encontrase aínda
em estado de indigencia o de fome, ao mesmo tempo que nela se
acha tao desporta a conscléncia inquieta das suas necessldades e do
bem-estar dos outros. É por éste motivo que dizemos estar o mundo
em perigo. Por éste motivo, vivemos Nos aos pés da Rainha da paz
a pedirlhe a paz, dom que só Deus pode dar.
Sim, a paz é dom de Deus, que supSe a intervengáo de urna acao
do mesmo Deus, agáo extremamente boa, misericordiosa e misteriosa.
Mas nem sempre é dom miraculoso; é dom que opera os seus pro
digios no segrédo dos coragóes dos homens ; dom que, por isso,
tem necessidade da livre aceitagáo e da livre colaboragáo da nossa
parte. Por isso a nossa oracáo, depois de se ter dirigido ao céu,
dirige-se aos homens de todo o mundo : homens, dizemos neste mo
mento singular, procurai ser dignos do dom divino da paz. Homens,
sede homens. Homens, sé homens, sede cordatos, abri-vos á considera-
cao do bem total do mundo. Homens, sede magnánimos. Homens,
procurai ver o vosso prestigio e o vosso interésse nao como contrarios
ao prestigio e ao interésse dos outros, mas como solidarios com ele.
Homens, nao penséis em projetos de destruicao e de marte, de revo-
lucüo e de violencia ; pensai em projetos de coníñrto comum e de
colaboracao solidaria. Homens, pensai na gravidade e na grandeza
desta hora, que pode ser decisiva para a historia da geracáo presente
e futura; e reeomecai a aproximar-vos uns dos outros com intencoes
de construir um mundo novo ; sim, um mundo de homens verda-
deiros, o qual é impossivel de conseguir se nao tem o sol de Deus no
seu horizonte. Homens, escutai através da Nossa humilde e trémula
voz o eco vigoroso da Palavra de Cristo: 'Bemaventurados os mansos,

— 402 —
PAULO VI EM FÁTIMA

porque possuiráo a térra, bem-aventurados os pacíficos, porque seráo


chamados ÍUhos de Deus'».

Em resumo, lembra o S. Padre que

a) a presente fase da historia nao é feliz nem tranquila,


por dois motivos:
os homens progrediram extraordinariamente no campo da
ciencia e da técnica, mas nao se avantajaram igualmente no
setor da moral; o desenvolvimento da humanidade é freqüen-
temente unilateral, ou seja, meramente material, sem que haja
o necessário cultivo dos valores da consciéncia ou do amor a
Deus; a humanidade, portante, está longe do desenvolvimento
integral (sócio-económico, moral, religioso) tio preconizado
pela encíclica «Populorum Progressio». Ésse desenvolvimento
incompleto faz que os homens possuam grande poderío, mas
nao saibam como o empregar para o seu engrandecimento;
isto nao pode deixar de ser causa de desequilibrio e infelicidade
do género humano.
Ademáis, enquanto uns tém o suficiente ou mesmo supér-
fluo para viver, outros nao dispóem sequer do necessário; a
consciéncia désse desajuste inquieta os individuos e os povos,
ameacando a paz do mundo.

b) Em conseqüéncia, é preciso rogar a Deus a paz para


o mundo. Contudo a Misericordia Divina, por sua vez, pede
aos homens que se mostrem dignos do dom da paz; compor-
tem-se como homens, isto é, como seres que sabem sobrepor
aos seus interésses particulares os do bem comum.
Assim a prece sincera pela paz do mundo implica natural
mente em conversáo dos costumes da humanidade envolvida
no egoísmo. O novo nome da paz é «desenvolvimento integral
e solidario dos homens», afirmava S. Santidade em «Populorum
Progressio» (n-> 76-80).

3. Por María

Pedir a paz é tareía que todo homem de fé pode estimar.


Paulo VI, porém, íoi pedila a Deus, solicitando ao mesmo tempo
a intercessao benigna de María Santissima.
Éste aspecto da peregrinagáo a Fátima tornou-se, como se com-
preende, objeto de debates nos meios cristáos. Certos órgáos da im
prensa protestante maniíestaram perplexidade diante do gesto do
S. Padre: Paulo VI, que nos anos do Concilio Ecuménico deu provas
de ardente desejo de promover a uniáo dos cristáos, tocou numa tecla
melindrosa ou decepcionante em materia de ecumenismo, reafirmando
a devocao da Igreja Católica para com Maria. Nao era de esperar

— 403 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 4

que, ao contrario, o Catolicismo deixasse aos poucos marrer a pie-


dade mariana ?

Sua Santidade tinha consciéncia dos problemas ecuménicos


que sua atitude de peregrino suscitaría. Por isto, mais de urna
vez cuidou de os elucidar. O documento mais importante a
respeito é a Exortagño Apostólica «Signum Magnum» publicada
precisamente a 13 de maio de 1967 : Paulo VI ai explica que
María SS., sendo Máe de Jesús Cristo, é também a Máe de
toda a Santa Igreja :

«Depois de haver participado do sacrificio redentor do seu


Filho,... Ela agora continua do céu a realizar a sua funcáo materna
de colaboradora para que a vida divina nasca e se desenvolva em
cada urna das almas dos homens remidos».
Como Máe de todos os homens, María é a Nova Eva,
associada ao novo Adáo na restauragáo do género humano;
éste título foi-lhe atribuido desde o séc. II por S. Ireneu.
Em conseqüéncia, aos cristáos incumbem deveres de espe
cial veneracáo a María.
O Santo Padre, nessa Exortacáo Apostólica, aludiu fre-
qüentemente á Constituigáo «Lumen Gentium» do Vaticano II,
que incute a piedade para com María, exigindo, porém, que
todos os exageras e desvíos nesse setor sejam evitados.

«Saibam os fiéis que a verdadeira devocáo nao consiste num


estéril e passageiro afeto, nem numa certa va credulidade, mas pro
cede da fé verdadeira pela qual somos levados a reconhecer a exce
lencia da Máe de Deus e excitados a um amor filial para com nossa
MSe e k imitacáo de suas virtudes» ÍConst. «Lumen Gentium» n* 67).

Tendo assim lembrado os títulos que justificam a devogáo


da Igreja para com María, S. Santidade nao hesitou em dirigir,
do santuario mesmo de Fátima, sua saudagáo aos cristáos
náo-católicos :

«Juntos poderemos encontrar na Virgem, como o Novo Testa


mento nó-la apresenta, o modelo de nossa fé e de nossa humildade.
Maria foi quem acreditou : 'Eis a serva do Senhor ; faca-se em mlm
segundo a sua palavra1. Ela eré e ao mesmo tempo declara-se serva...
Na atual situacao de divisSo entre cristáos, nao vos é possivel,
irmaos, compartllhar tddas as nossas convicefies sobre María. Mas,
ao menos, temos ém «mura ésse modelo de fé e de humildade, que
devemos traduzir, por nossa vez, em nossas próprias vidas, a servico
do Senhor, e podemos legítimamente esperar, com a grasa do Senhor,
que ésse comum servico nos aproximará uns dos outros».

O Santo Padre assim intencionava dizer que a veneragáo


a Maria, longe de ser obstáculo á uniáo dos cristáos, pode-se

— 404 —
PAULO VI EM FÁTIMA

tornar, na realidade, verdadeiro elo entre os mesmos. — Nao


sem fundamento falou S. Santidade. Quem pesquisa as obras
dos Reformadores do séc. XVI, nelas encontra afirmagóes sur-
preendentemente tradidonais no tocante a Maria. Eis algumas
das mais significativas:
a) Uirlco ZwinKll (1484-1531), reformador em Zuriquc, deixou-
■nos as seguintes deelaragóes :
«Quanto mais crescem entre os homens a honra e o amor a
Cristo, tanto mais também crescem a estima e a honra a Maria,
pois que Ela nos gerou táo grande e propicio Senhor e Redentor»
(«Corpus Reformatorum, Zwinglii Opera» I 427s).
Esta frase, que corresponde genuinamente ao pensamento de
Sao Paulo, nao pode deixar de ser profundamente católica: tolo
cristao é predestinado a ser conforme a imagem do Cristo Jesús, o
Primogénito (cf. Rom 8,29); por eonseguinte, quanto mais o cristao
se aperfeicoa, tanto mais reproduz em sua alma os traeos de Jesús,
filho de Maria; conseqüentemente,... mais também se torna filho de
Maria, penetrado do amor e da ternura de Cristo pana com sua Máe
Santíssima.
Aos 4 de novembro de 1529, as autoridades civis de Berna proibi-
ram o toque de sinos na cidade por ocasiSo do «Ángelus». Zwingli,
porém, mandou conservar tal costume em Zurique, incutindo a reci-
tacüo da «Ave Maria> :
«Ave Alaria nao é oragáo, mas saudacáo e louvor. Ao reíletir sobre
tais palavras, nelas nao encontrareis prece alguma, mas apenas sau-
dagáo e louvor a María* («Corpus Reíormatorum, Zwinglii Opera»
I 408).
Em urna profissáo de fé, afirmava Zwingli:
«Creio firmemente que, segundo as palavras do Evangelho, Maria,
como virgem pura, nos gerou o Filho de Deus e que permaneceu vir-
gem pura e íntegra tanto no parto como depois do parto para
sempre. Confio também firmemente em que tenha sido exaltada por
Deus na eterna bem-aventuranca sobre todos os homens e anjos bem-
■aventurados» («Corpus Reformatorum, Zwinglii Opsra»» I 424).
Sao assaz eloqüentes estes dizeres do Reformador. Sem comen
tarios pnssamos a

b) Martinho Lutero (1483-1546)


Ao explicar o significado do nome de Maria, escreve Lutero:
«Neste nome apresenta-se-nos insigne louvor da Virgem, pois ela
foi a única gota preservada (do pecado) no mar de toda a massa
do género humano... Quáo grande é a gloria de ser a única gota
incontaminada em táo vasto mar!» (Obras de Lutero, ed. Weimar
I 107).
No comentario ao canto «Magníficat» em 1521, já depois de haver
rompido com a Igreja, dizia Lutero:
«Pelo fato de se ter tornado Máe de Deus, foram-lhe concedidos
(a Maria) táo grandes bens que ninguém pode compreender. Désses
bens deriva-se para ela toda honra e felicidade; em todo o género
humano é a única pessoa colocada ácima de todas, a qual nenhuma
é semelhante: com o Pai celeste, ela tem um único Filho e tal

— 405 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 4

Filho . Portante quando se diz que ela é a Máe de Deus, nesta


única palavra está incluida toda a sua gloria; nem se poderla dizer
algo de maior a seu respeito, embora alguém tivesse tantas línguas
quantas sao as ídlhas das árvores e as folhas da relva e as estrélas
do céu e as areias do mar. É preciso que se medite no coragao o
que significa 'ser máe de Deus'» (Ed. Weimar 7, 572s).
Ainda no comentario ao «Magníficat» se lé:
«María há de ser invocada, a fim de que Deus por vontade déla
conceda e faga o que rogamos. De modo semelhante, todos os santos
nao de ser invocados, de tal modo, porém, que toda a obra (de dis-
pensagáo das grasas) fique sendo obra de Deus so» (Ed. Weimar
7, 601).
Posteriormente, Lutero se mostrou muito mais reservado frente
a Maria, chegando a recusar a invocagáo da Máe de Deus e dos
Santos. Nao obstante, em 1531, nura sermáo sobre a Natlvidade de
Jesús Cristo, assim se dirigía a Maria:
«Tu és mais do que Imperatriz e Rainha... és mais digna de
louvor do que toda nobreza, sabedoria e santidades (Ed. Weimar
45, 105).
Em 1544 pedia que o canto do «Magníficat» fósse diariamente can
tado ñas igxejas, por ter sido inspirado pelo Espirito Santo (cf. Ed.
Weimar 49, 492).
No último sermáo proferido em Wittemberg aos 17 de Janeiro
de 1546, próximo a sua morte exclamava Lutero :
«Apenas Cristo deverá ser adorado ? Nao se deverá também dar
honra á Santa Máe de Deus? Esta é a mulher que esmagou a
cabeca da serpente. Ouyenos. Pois o Filho de Deus te honra, Ele
nada te nega» (Ed. Weimar 1, ]28s>.
Vé-se pois, que, embora Lutero se tenha oposto a piedade ma
ñana, até o fim da vida guardou filial devogáo a Maria, devocáo
que ele exprimía no inicio do comentario ao «Magníficat» :
«A mesma ternissima Máe de Deus queira obter-me as dispo-
sigoes para explanar éste seu cántico de maneira útil e profunda»
(Ed. Weimar 7, 545).
c) JoSo Calvino (1509-1564)
Embora mais sobrio do que Zwingli e Lutero, também Calvino
reconheceu a excelencia de Maria na obra da Redengáo :
«Nao se pode negar que Deus, tendo escolhido e destinado Maria
para ser MSe de seu Filho, se dignou coníerir-lhe suma honra... Nao
menos do que em seu seio, Ela alimentava o Filho de Deus em seu
coracao pela lé» («Corpus Reformatorum, Calvini Opera» 45, 348).
Raramente Calvino usava o mero apelativo «Maria»; geralmente
falava de «la vjerge Marie», «la Vierge», e, mais comumente, «la
saínete Vierge».
Os textos ácima foram colhidos na coletánea «De Mariologia et
Oecumenismo» (Roma 1962), em que varios autores estudam os
pontos de contato entre Maria e os teólogos protestantes do séc. XVI
a nossos dias. Numerosos e belos depoimentos ainda se encontram,
os quais bem demonstram que o reconhecimento dos nobres predi
cados de Maria, assim como a devogao & Santa Máe de Deus nao
sao alheios as grandes linhas da teología protestante.

— 406 —
PAULO VI EM FÁTIMA

Seria erróneo, portanto, crer que, para obter a uniáo com


os irmáos separados, os católicos deveráo encobrir a figura de
María e sufocar os filiáis afetos que nutrem para com ela.
A piedade mañana, entendida dentro dos tragos da teologia
bíblica e dos antígos doutores do Cristianismo (isenta, portanto,
de expressóes e. práticas mal orientadas), pode, sem dúvida,
tornar-se um dos pontos de contato fraterno entre católicos,
protestantes e ortodoxos (estes últimos, alias, sempre dedi-
caram cordial devogáo á Virgem SS.).

4. Em Fátima

O norae de Fátima está associado ao conceito de aparigdes, revela*


cSes e segredos. Ora sábese quanto a imaginario popular é fecunda
para conceber, descrever e divulgar tais fenómenos maravilhosos,
freqüentemente com detrimento para a genuina fé e a sadia piedade;
engaños, fraudes e desvíos se tém verificado neste setor.

Ao ouvir a noticia de que Paulo VI viajaría para Fátima,


nao poucos católicos e protestantes julgaram que a S. Igreja
assim intencionava incutir a fé ñas aparicóes e nos demais
episodios portentosos que se referem a Fátima.

Lia-se mesmo na imprensa do Rio de Janeiro aos 14/V/67:


«A visita do Papa Paulo VI (a Fátima) póe um ponto final na
indecisüo da Igreja. que negou a verdade das aparicoes da Virgem
durante muitos anos».
Na verdade, a Igreja jamáis pretendeu nem pretenderá
impor a fé católica alguma revelacáo particular; após a morte
do último dos Apostólos, nenhuma proposigáo pode ser acres-
centada ao depósito da fé. A todo fiel católico fica plena liber-
dade para crer ou nao nos fenómenos relatados a respeito de
Fátima. Cf. «P. R.» 87/1967, qu. 2.
Pode-se, alias, notar que, nos varios pronunciamentos de
Paulo VI e do Vaticano referentes a Fátima nao se encontra
a mais leve alusáo a aparigóes e revelagóes; o S. Padre quis.
deixar tal assunto em total silencio.

Quanto ao segTédo de Fátima, afirmam os estudiosos o seguinte:


A mensagem de Fátima, datada de 1917, consta de tres partes:
1) a primeira anunciava a morte • próxima de Francisca • e
Jacinta e a entrada de Lucia para um convento. — A predicáo cum-
priu-se exatamente.
2) A segunda versava sobre o fim da primeira guerra mundial
e a difusáo de graves erros no mundo. Previa a conversáo da Rússia,
caso fósse consagrada ao Coracáo Imaculado de Maria. E exortava
os cristáos á oracáo e á reforma de vida. — Em conseqüéncia, o S.
Padre Pió XII realizou o ato de consagragáo da Rússia em 1942.

— 407 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 93/1967, qu. 4

Todo o povo cristáo íoi outrossim. ardentemente solicitado á prática


da oracáo e da penitencia.
3) A terceira parte íoi denominada «o segrédo de Fátima», reser
vado aos Papas; nao devia ser aberta antes de 1960.
Compreende-se que esta última parte tenha dado margem a nume
rosas suposic.ñes. de caráter geralmente sinistro. Consciente disto,
o Cardeal Ottaviani, Pró-Prefeito da S. Congregacáo da Doutrina da
Fé, cm 11 de íeverciro de 1967, proíeriu discurso olucidativo sobre
o assunto.
Declarou destituidas de fundamento as funestas conjeturas que
se íaziam sobre o segrédo de Fátima. A seguir, expós o histórico
désse segrédo : Lucia escreveu em portugués o que Maria SS. lhe
recomendara dissesse ao Papa; tal mensagem devia ser aberta antes
de 1960, porque, dizia Lucia, tudo entáo aparecería «mais claro».
Os dizeres de Lucia foram colocados em um envelope e entregues
ao Sr. Bispo de Leiria ; éste o fez chegar ao Sr. Nuncio Apostólico
em Portugal, D. Fernando Cento, o qual por sua vez o transmitiu
á Congregagáo da Doutrina da Fé em Roma. Por fim, o envelope
foi levado ás máos do S. Padre Joáo XXIII, que o abriu, leu a men
sagem, e afirmou que a entenderá bem, embora escrita em portugués.
A seguir, o Papa encerrou o documento em outra sobrecarta, lacrou-a
e depositou-a num arquivo do Vaticano, sem lhe dar publicidade até
o fim do seu pontificado. Nem Paulo VI quis dizer algo a respeito
até o dia de hoje.
Donde se depreende que o tao propalado scRrédo de Fátima nada
contém que deva despertar a ateneáo ou a curiosidade dos fiéis ;
provávelmente destinava-se ao uso exclusivo dos Sumos Pontífices.
De quanto disse o Carrionl Ottaviani, deduzem alguns comentadores
que so rofc.ria ao ateísmo e ¡i insidiosa perse^iiicAo ;i chic v¡i¡ sonrio
submetida a igre.ja do silencio em nossos dias. Sua Eminencia, em
sua alocucáo, procurou tranquilizar os ánimos dos fiéis e incutir a
esperanza em melhor futuro.

Em suma, pode-sc concluir que, por sua viagem a Portugal,


o S. Padre Paulo VI apenas quis recomendar dois tragos da
mensagem de Fátima, traeos que sao válidos independentemente
de qualquer atitude tomada perante as aparicóes. Acham-se
formulados no inciso final da homilía pronunciada no santuario:
"Vede, Filhos e Irmaos, que aqui Nos escutais, como o quadro
do mundo e dos seus destinos se aprésenla aqui ¡menso e dramá
tico... quadro do qual Nos aproximaremos sempre — assim o pro
metemos — seguindo a admoestacáo que a própria Nossa Senhora
nos deu : a da oracao e da penitencia.»

A necessidade de orar c mudar de vida — eis, em última


análise, o que Paulo VI, mediante a sua visita a Fátima, quis
mais urna vez proclamar a todos os cristáos ou mesmo a todos
os homens de fé. Possa táo sabio incitamento encontrar pro
funda acolhida nos ánimos de quantos aspiram por dias mais
tranquilos !
D. Estéváo Bettcncourt O. S. B.

— 408 —
A RADIO TUPI DA GUANABARA

apresenta os programas

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

todos os domingos, das 6h 30min as 7h, na palavra de

D. Estéváo Bettencourt O. S. B.

«CONVERSA DE TRES MINUTOS»

todos os días (exceto aos domingos), as 6 h 50 min, por

monges de Sao Bento da GB


NO PRÓXIMO NÚMERO :

O homem da pré-historia era verdadeiro homem ?

A sorte final de Judas

Celibato do clero

«Cassagoes» de Santos ?

Igreja Santa e «Santo Erario»

Ainda a eleicáo dos Bispos

« PER G UNTE E RESPONDEREMOS»

porte comum NCr$ 10,00


Asslnatura anual
porte aéreo NCr$ 12,00

Número avulso de qualquer mes e ano NCr$ 1,00

Colecáo encadenada de 1957 a 1964 NCr$ 80,00

Índice Geral de 1957 a 1964 NCr$ 7,00

Encíclica «Populorum Progressio» NCr$ 0,50

Bogamos a todos efetuem seus pagamentos com'a possível


brevidade.

SEDAQAO ADMINISTEACAO

Blo de Janeiro (GB) Av. Eio Bronco, 9, s/lll-A - ZG05


ou R. Real Grandeza, 108 — Botafogo - ZC-02
Calxa Postal 2666 XeL : 26-1822
Blo de Janeiro (GB)

Potrebbero piacerti anche