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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razio da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.
Eis o que neste site Pergunte e
Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.


Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Estevao Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO V

51
M A R

1 9 6
ÍNDICE

Pág.

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "QuaÍ8 os criterios para que alguém possa ser conside


rado judeu ?
Basta que tenha sangue judaico ou será necessário professe
também a religiáo judaica ?» 91
Apéndice : Um novo livro sobre a raga judaica 09

II. DOGMÁTICA

2) "Médicos 0 psicólogos ensinam, por vSzes, que as causas


dos pecados sao meramente patológicas. Urna vez restaurada a
saúde do delinqüente, já nao há pecado.
Doutro lado, aprendí que as causas dos pecados sao as ten-
iacoes do demonio.
Que pensar ? Será que, de fato, o demonio tenta ? E, em caso
positivo, até que ponto poderá seduzir ao pecado ?" 101

ni. MORAL

3) "Pode-se afirmar que ká individuos criminosos natos,


como ensinava o jurista italiano César Lombroso ?
Existe urna constituicáo física própria dos delinqüentes ?" .. 107

IV. HISTORIA DAS RELIGIOES

U) "A doutrina da reencarnac&o parece ter sido eomum


entre os povos pagaos anteriores a Cristo. Sendo assim, deve na
turalmente gozar de grande autoridade.
Que se pode apurar a respeito f" H%

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

5) "Como se diz, os prímeiros cristáos professavam a teoría


da reencarnagáo. Foi sámente em 5S3, num sínodo de Constanti-
nopla, que a Igreja imprudentemente a condenou, introduzindo a
idéia do inferno.
Que houve prdpriamente nesse concilio de Constantinopla f" 121

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano V — N« 51 — Margo de 1962

I. CIENCIA E RELIGIAO

VASCONCELOS (Rio de Janeiro) :

1) «Quais os criterios para que alguém possa ser consi


derado judeu?
Basta que tenha sangue judaico ou será necessário professe
também a religiao judaica?»

A questáo ácima tem-se imposto com insistencia ao mundo con


temporáneo, em vista da recente criacáo do Estado de Israel. Proble
mas étnicos e religiosos dai derivados vém sendo arduamente debati
dos, implicando geralmente conseqüéncias práticas de importancia.
A fim de tomar posicáo diante do que se tem dito sobre o assunto,
analisaremos em primeiro lugar a situacáo religiosa e civil dos habi
tantes do país israelense; a seguir, focalizaremos o último decreto de
Israel que estabelece os criterios para se dizer se alguém é judeu
ou nao.

1. A situasáo religiosa e civil em Israel

1. O povo de Israel diferencia-se dos demais povos através


da historia por ser marcado simultáneamente por duas notas:
o sangue e a religiáo. Foi, sim, urna vocagáo religiosa que fez
que Abraáo (séc. XVm a. C.) abandonasse sua térra e sua pa
rentela, a fim de dar origem a urna linhagem nova — a linha-
gem israelita, assinalada tanto por caracteres étnicos («raciais»,
como se diz) como por sua inconfundível fé religiosa (mono
teísmo, em meio ao politeísmo dos pagaos). Essa linhagem de
Abraáo conservou-se sempre coesa e forte através dos seus de-
zoito primeiros séculos de existencia, por causa do ideal reli
gioso : o povo de Abraáo nesse período sempre foi o povo que
esperou o Messias ou a salvagáo proveniente de Deus; constítuiu
urna teocracia, cuja Magna Carta compreendia ao mesmo tempo
leis religiosas e leis civis, de modo que toda a vida pública e
particular dos israelitas tomava caráter religioso.

Urna vez expulsos da sua patria e dispersos pelo mundo no


inicio da era crista (70 d. C), os israelitas perderam o direito
de possuir legislagáo civil própria, tendo que se conformar as
leis das nagóes ñas quais se domiciliaran!; guardaran!, porém,
intata a sua legislagáo religiosa.

— 91 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 51/1962. qu. 1

2. Foi o que se deu por toda a Idade Media e a Idade


Moderna... até 1948, quando se restaurou o Estado nacional
de Israel; entáo o povo de Abraáo se viu em situagáo de que ele
já nao desfrutava havia quase 1900 anos; viu-se, sim, dotado do
poder de formular e observar autónomamente suas Ieis civis e
religiosas como nos tempos de Moisés (séc. XIII a. C). Nao há
dúvida, tal situagáo é a que mais condiz (ou mesmo é a única
que condiga) com as tradigóes e a índole de Israel; contudo ela
acarretou, e está acarretando, problemas serios para os judeus
de hoje.
Com efeito, a maioria déstes já nao atribuí á religiáo o
valor primacial que os ancestrais lhe tributavam, de modo a
fazer da sua fé a fonte de inspiragáo das suas instituigóes civis
e do seu género de vida nacional. Há, sim, residentes atualmente
no país de Israel, judeus ditos ortodoxos, fiéis observantes da
Lei de Moisés; há também judeus reformados, que seguem urna
disciplina nova, de ritos e observancias simplificados, segundo
as tendencias da mentalidade moderna; existem outrossim
judeus liberáis, cuja fé pretende ser tradicional, mas já se acha
assaz embotada; encontram-se igualmente judeus indiferentes
ou até mesmo ateus, para quem a religiáo nada significa. Sabe-se
que nao poucas familias nos últimos anos imigraram para o
Estado de Israel, sem compartilhar o ideal religioso dessa
nagáo...; eram familias nao raro constituidas por um consorte
judeu e outro cristáo, que tinham em vista apenas escapar a
opressáo sofrida nos países da «cortina de ferro»; tentaram re-
comegar a vida era circunstancias diferentes, talvez mais alvis-
sareiras, mas varias dessas pessoas em breve se deram por de
cepcionadas pelas dificuldades encontradas na própria térra da
Palestina...

Estatlsticas baseadas em resultados das eleigóes políticas no Estado


de Israel projetam alguma luz s&bre a mentalidade da populacáo. Em
verdade,
calcula-se que al haja 12 a 15% de judeus rigorosamente ortodo
xos, pois tal é a porcentagem de sufragios que tem tocado aos parti
dos explícitamente religiosos. Os observadores costumam aumentar a
cota até 18 ou 20%, pois se sabe que nem todas as pessoas religiosas
votam sempre em' partidos religiosos, mas preferem por vézes os do
centro;
há cérea de 20% de cidadüos explícitamente sem relig!3o, pois
tantos sao os eleitores dos partidos radicáis da esquerda;
contam-se entre 5 e 10% de liberáis, que votam em partidos de
orientagáo burguesa e tendem a se reunir em torno de programas
«progressistas».
Postas de lado essas cifras de pessoas cujas idéias sao mais ou
menos definidas, julga-se que existem em Israel 50 ou 55% de cida
dáos mais ou menos indiferentes; constituem a massa da populacáo,
que freqüenta por vézes a sinagoga, mas freqüentemente nem sabem

— 92 —
O JUDAISMO: RACA OU RELIGIAO?

«em que gaveta se acha o seu livro de oraches» (dado que o tenham);
sao pessoas que, embora nao contradigan! á religiáo, «nao tém tempo>
para atender aos preceitos desia; raandam circuncidar os seus filhos
únicamente a fim de guardar urna tradicáo de familia.
Em tais condig6es, vé-se que nao é íacll a um govérno orientar-se
em assuntos religiosos.

3. Como tem procedido o Estado de Israel nessas circuns


tancias?
O govérno, ao menos em teoría, reconhece a toda a popu-
lacáo plena liberdade de consciéncia, de modo a nao constran-
ger cidadáo algum. Na prática, porém, o Estado se comporta
como se tivesse oficialmente urna religiáo e como se essa reli
giáo fósse a dos antepassados judeus. Principalmente a profis-
sáq de Cristianismo é tida como apostasia... apostasia nao só
religiosa, mas também étnica, civil; o israelita feito cristáo é
tido como desertor da comunháo nacional.
Em conseqüéncia, acontece que todo judeu residente em
Israel tem que pertencer a urna coletividade religiosa. E, caso
nao se pronuncie explícitamente em sentido contrario, é tido
como membro da comunidade religiosa israelita: a «Knesseth-
-Jisrael»; ele nao pode sair desta seni entrar em outra socie-
dade religiosa... .

A «Knesseth-Jisrael» professa a estrita ortodoxia judaica, inspirada


pelo Talmud ou pelas sentencas dos antigos rabinos; é, portanto, de
acordó com os preceitos e os ritos destas que se celebram a circuncisao,
assim como a maioria dos casamentes e dos funerais em Israel. Nao
há ai matrimonio meramente civil.

Verifica-se, porém, estranho fenómeno : até um ateu pode


fazer parte da «Knesseth-Jisrael» (e nao sao poucos os cida-
dáos que se acham nessa situacáo). As autoridades governa-
mentals se contentam com a adesáo meramente extrínseca ou
formal dos cidadáos á «Knesseth-Jisrael»; basta que nao contra-
digam á fé tradicional e sigam, ñas grandes ocasióes da vida, os
seus preceitos. Já isto permite dizer que Israel constituí um só
grupo étnico e, ao mesmo tempo, religioso; salva-se assim a ín
dole própria que sempre caracterizou o povo judeu, isto é, a sua
índole religiosa, sem que por isto se tire a liberdade de pensa-
mento e conduta dos cidadáos. — Tem-se dito, em conseqüén
cia, que a religiáo se tornou urna «ficeáo nacional» em Israel.

Assim acontece que o ensino da Biblia é obrigatório em todas as


escolas de Israel; o Estado, porém, nao define o que é a Biblia; em
conseqüéncia, nos educandários religiosos, é estimada como a Palavra
de Deus. ao passo que nos Institutos liberáis passa por um livro de his
toria nacional.
O sábado é, como se dirá adiante, o dia de repouso oficial no país
israelense. Contudo o govérno nSo se pronuncia sobre a origem e a

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 51/1962, qu. 1

finalidade dessa norma; será instituicao religiosa ou, antes, um esta


tuto meramente humano e social?
Destarte o govémo israelense dá á vida pública certos moldes que
sao estritamente inspirados pela religiáo tradicional de Israel; nao
trata, porém, do conteúdo que a tais moldes dáo os cidadáos; muitos
déstes, sem dúvida, observam as lels religiosas com ánimo religioso;
muitos outros, porém, praticam a observancia religiosa sem possuirem
a religiáo correspondente.

Contra a redugáo da religiáo á categoría de «ficgáo» nao


se conformam certos núcleos de judeus ortodoxos... Pleiteiam,
da parte de seus concidadáos, urna adesáo mais plena á fé e as
observancias dos pais; dai a pressáo dos rabinos e de fiéis pie-
dosos em favor de urna prátíca religiosa mais profunda e gene-
. ralizada em toda a populagáo nacional.
Contudo a maioria dos israelenses, mesmo dos ortodoxos,
aceita a «ficgáo». Percebem que é impossível em nossos dias dar
ao govérno civil e á vida pública urna constituigáo semelhante
á da antiga teocracia de Israel; nao se poderia exigir que um
povo vivesse hoje como nos tempos de Moisés (séc. xm a. C.).
Por isto a mor parte dos cidadáos e o govérno se contentará
com o esfórgo por dar á vida nacional um caráter religioso que
se aproxime o mais possível do ideal.
Ora ésse esfórgo, essa tendencia tém provocado conflitos
entre blocos da populagáo israelense e o próprio govérno.
A titulo de ilustracáo, eis abaixo mencionados tres dos principáis
temas de controversia:

1) O sábado. A Leí de Moisés prescreve que em dia de sábado o


israelita, lembrando-se1 da narrativa da criacáo do mundo (Gen 1,1-2,4),
se abstenha de todo trabalho, de toda especie de criacáo, por conse
guirte. .. até mesmo de acender fogo (pois isto, embora nao seja tra
balho própriamente dito, é equiparado a urna criacáo); cf. Éx 21, 8s. —
Tal preceito é levado extremamente a serio pelos judeus ortodoxos;
contudo na sociedade moderna, como se compreende, torna-se prática-
mente impossivel observá-lo como os rabinos o desejam (em térra
estrangeira a sua observancia é possibilitada aos Israelitas pelo auxi
lio que lhes prestam os amigos e domésticos nao-judeus).
Consciente da importancia religiosa do sábado, o govérno de Israel
o declarou día oficial de repouso. no qual deixam de circular os trans
portes públicos, se fecham as lojas comerciáis e as casas de diverti-
mentos. As leis do govérno sao rigorosamente Interpretadas e aplica
das nos lugares em que predomina a ortodoxia : assim, em Jerusalém,
o coméco do sábado é assinalado por cidadáos (pertencentes ao bloco
ultra-ortodoxo dito «Naturej Karta», Guardas da Cidade) que saem
pelas rúas a tocar trombeta e incitar os comerciantes a fechar as lojas.
Certas empresas de taxis que funcionam com a autorizacao do govémo,
tém sido sabotadas; veiculos particulares tém sido apedrejádos.
• No bair.ro «Mea-Schearim» de Jerusalém, os habitantes ciosos da
ortodoxia chegam a barrar o tránsito pelas rúas. Contudo, junto a ésse
bainro os liberáis construiram a sede de um clube de diversSes, que na
turalmente se abre também aos sábados; em conseqüéncia, a popula-

— 94 —
O JUDAISMO: RACA OU RELIGIAO?

Cao de «Mea-Schearim» comecou a fazer demonstragóes contrarias ao


clube; dal se originaram choques violentos, que provocaram a Ínter-.
vencáo da policia para proteger o clube; houve feridos e mortos...
Finalmente a causa fol entregue a urna comissáo de inquérito, diante
da qua] o rabino S. Scrotschim destemidamente declarou : «Nao pode*
mos permitir que nao haja coacáo religiosa. Se o Estado tem seus
meios de coacáo para impor leis humanas, será certamente licito tra-
tarmos de que também as leis do céu sejam devidamente observadas».
A populacho liberal tem reagido através da imprensa e de demons
trares que vém exigindo repetidamente a intervengáo da policia.
Muítos saúdam, sim, o sábado como «dia de repouso bem merecido»;
queixam-se, porém, de que isso de nada Ihes adianta, pois tém que
caminhar duas horas a pé para ir até a praia mais próxima...

2) Os alimentos proibidos. As leis religiosas referentes a alimen


tos puros e impuros íoram, no decorrer dos séculos, táo especificadas
pela casuística judaica que sómente a India possui legislacáo mais mi
nuciosa. Nessas circunstancias, os rabinos de Israel tém o direito de
supervisionar rigorosamente os matadouros, a fim de evitar seja ven- •
dida carne proibida. Disto resulta que, embora o govérno declare lícito
a todo cidadáo judeu comer o que quiser (até mesmo carne de porco),
é prátlcamente impossivel obter carne proibida pela legislacáo religiosa
de Israel; os partidos ortodoxos conseguiram também que só seja im
portada para Israel carne religiosamente licita, a qual resulta por vézes
bem mais cara do que a carne ritualmente impura... — Acontece,
porém, que 70% da populacáo nao se importa com as distincSes ali
mentares dos rabinos; em conseqüéncia, sente-se constrangida pelo
estado de coisas vigente e incitada a represalias.

3) A legislacáo matrimonial. Esta é toda inspirada pelos prin


cipios da religiáo tradicional israelita, que assim se tornam obrigató-
rios até mesmo para os ateus; como já dissemos, nao há matrimonio
meramente civil em -Israel. Caso um judeu queira esposar urna con
sorte nao judia (ou vice-versa), a parte náo-judia tem que se passar
oficialmente para a religiáo israelita (o que nao se recomenda a nin-
guém, pois acarreta conseqüéncias minuciosas para a vida da pessoa
«convertida») ou entáo é a parte judia que se vé obrigada a adotar a
religiáo da n&o-judia, a fim de contrair casamento na comunidade re
ligiosa desta.
Também estas normas sao fonte de descontentamente em Israel,
o que bem se depreende, por exemplo, do seguinte caso : há poucos
anos atrás, um judeu rumeno quis esposar urna crista; ambos, porém,
eram práticamente incrédulos e julgavam inconveniente professar urna
religiáo na qual nao acreditavam de coragáo. Em tais circunstancias,
o pretendente resolveu empreender greve de fome, a fim de mover a
opiniáo pública...

Os rabinos rejeitam terminantemente a introducáo do casamento


meramente civil em Israel. Haja vista o seguinte episodio:

Um careu (membro de seita religiosa judaica que ñáo é reconhe-


cida pelos rabinos como ortodoxa) quis casar-se com urna genuina
judia. Os rabinos opuseram a ésse matrimonio um veto provisorio,
prometendo resolver o problema mais tarde. Já que a decisáo ia sendo
protraída, o caso foi levado ao Parlamento; ora éste, como a opiniáo
pública em geral, tem os careus na conta de auténticos israelitas. A si-
tuacao se tornou táo tesa que o Primeiro Ministro Ben-Gurion resol-

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 51/1962, qu. 1

veu intervir, preconizando a adocao do matrimonio meramente civil


para tais casos. Os partidos religiosos, porém, lhe responderam enér
gicamente : caso a nagáo nao seguisse em tudo, e de maneira exclu
siva, a legislacáo matrimonial rabínica, em breve ter-se-iam em-Israel
duas faccóes ou um povo dividido em duas partes, pois os rabinos te-
riam que apresentar ao público listas das pessoas entre as quais o
matrimonio religioso é permitido, e listas daquelas ás quais é vedado.
Por essa ocasiSo os judeus ortodoxos lembraram mais urna vez ao
público que a unidade e a coesáo do povo israelita até hoje foram
mantidas por eíeito da religiao. Por conseguíate, querer separar vida
civil e vida religiosa em Israel equivaleria a desferir um golpe fatal
contra o Judaismo, poia quebrarla a unidade do povo.
Há, porém, cidadáos que recusam essa tese, pleiteando completa
separacáo de foro religioso e Idro civil em Israel. E há também os que,
sem ir táo longe, desejam ao menos a reforma da legislacáo rabinica,
a íim de que possa reger sem detrimento urna nagáo do século XX.
Éste último alvitre, por mais sensato que parega, na prática defronta-se
com dificuldades insuperáveis, pois a reforma só poderia ser empreen-
dida por autoridade unánimemente reconhecida em toda a nacáo; ora
tal autoridade falta...

É principalmente a situacao matrimonial em Israel, assim exposta,


que entra em jógo ao se propor a questáo capital para a populacáo
da Palestina :

2. Quem é judeu?

Urna das leis primordiais e mais importantes do Estado de


Israel é a que reconhece a todo judeu o «direito de voltar á
patria», ou seja, de estabelecer-se na térra de Israel. Contudo
os magistrados da nova nagáo a principio nao pensaram em de
finir quem haveria de ser tido como judeu... A omissáo bem se
explica, de um lado, por nao ser fácil formular teóricamente
tal definicáo e, de outro lado, porque na prática nao parece
haver problema em distinguir um judeu de um nao-judeu. A le-
gislagáo de Israel, no caso, tinha primariamente urna finalidade
humanitaria, mais prática do que especulativa : a finalidade de
socorrer aos individuos que sofriam perseguicáo por ser tidos
como judeus em nagóes estrangeiras.

Contudo, segundo as concepcóes religiosas de Israel, a nocáo de


«judeu» é claramente caracterizada, e essa caracterizacáo nao pode
escapar ao conhecimento do povo. Com efelto,
«judeu» é o individuo nascidu de máe judia (a prole é considerada
como propricdadc de sua gcnitora); supóc-so naturalmente que tal
Individuo professe a religiáo de sua máe e de seu povo (Israel);
«judeu» é também o estrangeiro que entre no povo da Alianca
aceitando a circuncisáo e a fé de Israel.
Em conseqüéncia, os rabinos impugnam a identidade judaica dos
sectarios, em particular dos careus, que, embora sejam filhos de Abraáo
pelo sangue. nao professam a mesma crenca que Abraáo.

Como dissemos atrás, logo após a fundacáo do Estado de


Israel, o respectivo govérno passava por cima désses criterios

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O JUDAISMO; RACA OU RELIGIAO?

de ortodoxia, a ñm de seguir a opiniáo pública internacional,


que pouco ou nenhum caso faz das características religiosas
ácima estipuladas : o Estado israelense tinha como judeus tam-
bém os filhos de máe nao-judia e pai judeu,... também os filhos
de Abraáo ateus, apóstatas da fé ou excomungados da sinagoga.
As instrucóes governamentais dadas aos funcionarios encarre-
gados do servico de imigracáo e repatriagáo eram as mais lirgas
e tolerantes possíveis: só faziam questáo de nao admitir como
repatriados sujeitos que fizessem profissáo de Cristianismo.
Aínda aos 11 de margo de 1958 o ministro (socialista) do Inte
rior dava aos seus subalternos a ordem de reconhecer sem mais
como judeu todo cidadáo que «de boa fé» afirmasse ser tal;
também as declaragóes referentes as familias dos jüdeus, desde
que fóssem feitas «de boa fé», deviam ser aceitas sem ulteriores
inquisitorios (o que, entre outras coisas, significava: os pais
que asseverassem ser judia a sua prole, nao poderiam ser con
testados por parte das autoridades de imigragáo). Tais normas,
como se vé, implicavam o reconhecimento de casamentos mistos,
casamentos severamente proibidos pelas autoridades rabínicas.
Assim o Estado de Israel caracterizava o judeu independente-
mente de criterios religiosos.
Eis, porém, que a mencionada instrugáo de 11 de margo de
1958 provocou celeuma em Israel; contra ela se levantaram os
círculos religiosos e os partidos da «Frente Nacional Religiosa».
Aos 16 do mesmo mes, o ministro da Religiáo Moisés Shapira
exigiu que o Conselho de Ministros revogasse a determinacáo
do ministro do Interior. O govérno nomeou entáo urna comissáo
de juristas para examinar o caso; tendo ouvido o parecer déstes,
o Conselho de ministros aos 22 de junho de 1958 resolveu que
deveria ser considerado judeu
quem de boa fé declarasse ser tal e, em verdade, nao per-
tencesse a alguma outra comunidade religiosa,
os filhos registrados como judeus por seus pais.
Esta decisáo nao conseguiu satisfazer aos círculos religio
sos de Israel, apesar dos esforgos de conciliagáo do primeiro
ministro Ben-Gurion. Por conseguinte, os tres ministros da
«Frente Religiosa Nacional» (Correios, Saúde e Religiáo) se re-
tiraram do govérno em novembro de 1958.
Quanto á opiniáo pública em Israel, ela tomou posigáo fa-
vorável ao govérno, em detrimento do prestigio da «ortodoxia»
judaica, a qual foi tída como exagerada e exorbitante no caso.

Todavia os rabinos continuaram a professar os seus principios e-


a aplicá-los na vida prática. E nao sem razao... Nao queriam admitir
urna conseqüéncia que de fato decorreria das leis governamentais: a
cisáo do povo israelita, povo de Deus, comunidade étnico-religiosa,

— 97 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 51/1962, qu. 1

em duas facgSes — a íaccao meramente étnica, nacional, fundada ape


nas na aíinidade do sangue, e a faccao étnico-religiosa, a única corres
pondente jls tradic6es do povo de Israel. O povo de Israel nao poderla
desistir de ser o pova de Deus, o povo da Alianca.
Inegávelmente, a posicao dos rabinos era multo mas reta e con-
seqüente do que a de seus adversarios; estes, em sua liberalidade, se
deixavam guiar pelo sentimentalismo subjetivo e relativista antes que
pela intuigáo objetiva e serena dos valores postos em jdgo (a historia
e as tradicóes de Israel).

Finalmente, após novos debates, em margo de 1960 a ques-


táo era encerrada mediante a promulgagáo de novas normas do
Ministerio do Interior, novas normas que práticamente davam
ganho de causa aos circuios ortodoxos.

Estipulavam o seguinte:

a) os filhos de müe judia e pai náo-judeu sao considerados


judeus, tanto do ponto de vista étnico (nacional) como do ponto de
vista religioso;
b) os filhos de máe náo-judia e pai judeu sao considerados como
pertencentes á nacionalidade e a religiáo de sua máe, ou, caso os geni
tores o desejem, a qualquer outra nacionalidade e religiáo que nao a
judia;
c) se os genitores, no caso b), se recusam a indicar urna religiáo
náo-judaica para seus filhos, no registro civil dessas crlancas deixa-sc
em branco o titulo «Nacionalidades (embora seja prole nascida em
térra de Israel) e sob o titulo «Religiáo» coloca-se a observado: «máe
náo-judia, pai judeu»;
d) a um júdeu que professc urna religiáo diversa da judaica, o
Estado de Israe] dá carteira de identidade em que o título «Nacionali
dade» fica em branco.

Estas leis tiveram suas conseqüéncias para o servigo de


imigragáo: foi denegado o direito de repatriagáo aos judeus que
professassem religiáo diferente da israelita, em particular aos
judeus convertidos ao Cristianismo. A todas as pessoas que no
estrangeiro hajam fornecido indicagóes erradas a respeito de
sua origem étnica .ou a respeito de sua religiáo, a fim de ser
recebidas em Israel, o govérno israelense pode cassar o direito
de permanecer em Israel (na prática, porém, parece que estas
normas concernentes a ¡migrantes nao sao aplicadas com muito
rigor). Assim sáó colocados em situagáo difícil milhares de
judeus casados com mulheres nao-judias, assim como os filhos
désses casamentes. Os judeus convertidos ao Cristianismo, sendo
denunciados como tais pela sua carteira de identidade no Es
tado de Israel, véem-se constrangidos a nao declarar a sua con-
versáo, a fim de evitar dificuldades em sua vida profissional e
social. Verifica-se, alias, que a populagáo israelense pode simpa
tizar com um cidadáo náo-judeu domiciliado no país de Israel;
acolhe-o gentilmente como hospede. Difícilmente, porém, aceita

— 98 —
O JUDAISMO: RACA OU RELIGIAO?

que um judeu se converta ao Cristianismo: um tal lhe parece


ser traidor do judaismo.
Como era de esperar, a imprensa liberal israelense reagiu
veementemente contra tais novas determinaeós do Ministerio do
Interior. Os protestos tomaram caráter humanitario e, á pri-
meira vista, simpático. Nao representan!, porém, a Índole pró-
pria e os genuínos interésses do povo israelense; éste se originou
e através dos séculos se conservou por efeito de sua vocagáo
religiosa, ficando os vínculos do sangue e as instituicóes civis su
bordinados a tal vocagáo. Em conseqüéncia, querer dar ao san
gue judaico um significado meramente étnico, «leigo» ou inde-
pendente da religiáo, equivale a desfigurar e destruir o ju
daismo.
Seja lícito, portante, frisar: o povo judeu só tem um sen
tido na historia: sentido religioso, que consiste em dar teste-
munho ao Messias, ao Cristo Jesús. £ o que os filhos mesmos.
désse povo insinuam ao mundo, principalmente na hora atual,
em que mais urna vez se afirma a religiosidade de Israel; em-
bora nao professem diretamente a fé em Cristo, os israelenses
da Palestina de hoje constituem um dos mais eloqüentes arautos
da veracidade do Cristianismo.

Apéndice

Um novo livro sobre a raga judaica

Merece atengáo urna obra recéra-publicada pela UNESCO («Orga-


nizacao das Nac5es Unidas para a Educacao, a Ciencia e a Cultura:»)
na serie «The Race Question in Moderne Science» (A questáo racial
perante a ciencia moderna). É da autoría do Proíessor Harry L. Sha-
piro, Diretor do Departamento de Antropología do Museu de Historia
Natural de Nova Iorque, e intitula-se «The Jewish People : a Biological
History» (O povo judaico : urna historia biológica), Unesco. París.

A posicáo do autor nesse estudo pode-se resumir nos seguintes


termos:

1. Do ponto de vista biológico, nao existe raca judaica. Os pre


tensos caracteres radais distintivos dos judeus, após seria análise cien
tífica, já nao podem ser considerados tais; com efeito, nem cábelos
frisados, nem olhos negros nem nariz aquilino... sao comuns aos
judeus em todas as partes do mundo; em geral, os israelitas tendem a
se assemelhar á populagao em meio a qual vivem. Para confirmar
esta proposicáo, o autor cita os seguintes resultados de pesquisas
recém-efetuadas: ,
14 a 20% dos judeus oriundos da Europa oriental tém os o'Jios
azuis, ao passo que entre os israelitas dolraque essa cor só se encon-
tra em 2%;
em um grupo de judeus do Mzab, no sul da Algéria, 70% dos indi
viduos tém cábelos frisados, enquanto grupo análogo no Iraque só
apresenta cábelos lisos.

— 99 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 51/1962, qu. 1

Grande importancia é atribuida pelos estudiosos modernos aos cha


mados «grupos sanguíneos» (tipos de sangue resultantes da respec
tiva composicao: tipo A, B, O, M, N, SS, P, Rh, Lutheran, Kell, Lewis.
Duffy, Kidd...). Ora veriíica-se que a distribuicáo dos grupos sanguí
neos entre os judeus é mais ou menos a mesma que entre os nao-
-judeus: por exemplo, em todos os individuos humanos (israelitas ou
nao) o sangue tipo B é relativamente raro na Europa (10% no má
ximo), mas freqüente na Asia (30 ou 40%).

Concluí entáo o Prof. Shapiro :


«Tais confrontas, e ainda outros que poderiam ser efetuados em
escala muito mais ampia, provatn que nao é possivel satisfazer ás
condicóes fundamentáis para se afirmar que os judeus constituem um
grupo racial próprio... As diversas comunidades judaicas diferem
entre si de maneira demasiado significativa para que possam ser tidas
como raca única».

2. Dito isto, pergunta Shapiro: como entáo puderam os israeli-


.tas manter-se como povo ainda hoje cioso de seus direitos, embora
tenham perdido seus traeos biológicos comuns ?
Em resposta, o autor indica o fator religioso, que desde o inicio
da historia de Israel (com Abraáo, em 1800 a. C. aproximadamente)
marcou o povo judaico, diferenciando-o das demais naedes. Abraáo, o
fundador do povo_ israelita, abandonou sua térra (Ur da Caldéia) e
seus parentes por causa de urna revelacáo religiosa — a revelacáo mo
noteísta — com que íoi agraciado em meio a um mundo politeísta e
pagáo. E foi a crenca no monoteísmo que deu coesáo e unidade aos
íilhos de Abraáo até Cristo; os judeus sempre viveram em funcáo da
sua religláo e das expectativas messiánicas que ela lhes apresentava;
isto ocasionou entre éles urna mentalidade e um tipo de cultura pró-
prios. Depois de Cristo, espalhados pelo mundo inteiro, sujeitos a ser
absorvidos pelas populacoes com as quais vivem, os judeus nao perdem
a consciéncia de constituir um povo próprio, dotado de direitos inde-
vassáveis. Ora isto se deve ao elemento fundamental da sua historia:
a religiáo —, embora a maioria talvez dos israelitas nao o saiba nem
intencione fazer da religiáo o esteio da sua vida.

Devemos frisar que muito sabias sao tais conclusóes de Shapiro:


os judeus sao essencialmente um povo marcado pela religiáo, e des
tinado a transmitir ao mundo urna mensagem religiosa, que é a men-
sagem de,,Jesús Cristo, em fungáo do qual éles viveram, vivem e vive-
ráo; a teñacidade inconfundivel do povo de Israel (mesmo após have-
rem perdido sua esperanca religiosa), sua subsistencia apesar de múl
tiplas perseguiedes sofridas, vém a ser um dos mais vivos testemunhos
da veracidade de Cristo; Israel nao se dilui entre os restantes povos,
porque, como povo ou coletividade, há de se converter a Cristo no fim
dos tempqs, segundo afirma Sao Paulo em Rom 11.

Eis o que torna o povo de Israel táo misterioso e, ao mesmo tempo,


táo rico de significado em nossos días.

— 100 —
AS TENTACOES VEM DO DEMONIO OU DE DOENCAS ?

. n. DOGMÁTICA

ESTUDANTE (Campiñas):

2) «Médicos e psicólogos ensinam, por v&zes, que as can


sas dos pecados sao meramente patológicas. Urna vez restau
rada a saúde do delinqüente, já nao ha pecado.
Doutro lado, aprendí que as causas dos pecados sao as ten-
tacoes do demonio.
Que pensar? Será que, de fato, o demonio tenía? E, em
caso positivo, até que ponto poderá seduzir ao pecado?»

A concepgáo segundo a qual todo pecado é fenómeno meramente


patológico e inculpado, supSe nao haver liberdade de arbitrio; o com-
portamento humano seria a expressáo de fatores irracionais ou mecá
nicos. Ora tal sentenca contraria á sá psicología, como íoi demons
trado em «P. R.» 5/1958, qu. 6. A criatura humana normal é dotada de
livre arbitrio e, por conseguinte, de responsabilldade dos seus atos.
Há, sem dúvida, casos doentios, nos quais o desequilibrio fisiológico
acarreta reacoes precipitadas do organismo, antecipando ou sufocando
a deliberacáo da vontade; em tais situagSes a responsabilidade e a cul-
pabilidade do agente sao, como se compreende, diminuidas ou de todo
tolhidas.

Nao se devem, porém, generalizar tais casos... Nem todo pecador


é um doente (se o fósse, nao se deveria dizer que todos os homens sao
doentes?). Verdade é que em bom número de falhas moráis ou pecados
há circunstancias atenuantes (nervosismo que lmpede ou reduz a capa-
cidade de reflexao, tendencias temperamentais, sugestoes do am
biente, etc.); na prática, só Deus sabe com retidao julgar a consciéncia
dos individuos que procedem mal. Isto nao impede que detenhamos
nossa atencáo sobre o homem normal e procuremos íixar os principios
que devem reger o seu comportamento. -

Vejamos entáo quais os fatóres que possam induzir o homem


mentalmente sadio ao pecado, ou seja> os fatdres que acarretam ten-
tacoes para o mal.

Donde provém as tentagoes?

Tres sao as causas de tentagóes geralmente assinaladas


pelos moralistas: o demonio, o mundo e a concupiscencia des-
regrada; as duas primeiras sao causas externas, a terceira é
interna, ou seja, situada na própria natureza humana. Na rea-
lidade concreta, estas tres fontes de tentagóes estáo freqüente-
mente associadas entre si, agindo em conjunto. É oportuno,
porém, considerar cada qual separadamente.

a) O demonio.
1. A. existencia do demonio é fato que nao padece dúvida aos
olhos da fé crista e que tanto os documentos profanos como fatos hls-

— 101 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 51/1962, qu. 2

tóricos comprovam com suficiente eloqüéncia; cf. «P. R.» 6/1958, au 5*


32/1960, qu. 4.

O demonio nao é um ser mau por si, mas um espirito que Deus
criou bom e que abusou de sua liberdade para se rebelar contra o
Criador. Éste Ihe concede atualmente certa interferencia na historia
do género humano, interferencia que o demonio explora para disseml-
nar a desordem e a revolta, mas que o Criador aceita com um fim salu-
tar: acrisolar as virtudes dos homens (cf. Eclo 2,1; Te 1.12; 1 Pdr 5,8;
Ef 6,11; 1 Cor 7,5; 2 Cor 2,11; 1 Tim 3,7; 2 Tim 2, 26). O sedutor, em-
bora vise provocar os homens á ruina, deve, segundo o designio de
Deus, servir á boa causa, pois, dos males que ele possa acarretar, a Pro
videncia dispós tirar maiores bens.

No primeiro encontró que teve com os homens, o Maligno


logrou a vitória : no paraíso tentou, sim, os primeiros país
(Adáo e Eva), conseguindo que pérdessem o dominio sobre si
e a harmonia de que gozavam no estado de inocencia (cf. Gen
3,1-6). Desde entáo a natureza humana é desordenada, trazendo
em si mesma tendencias contraditórias para o bem e para o mal
ou, em outros termos, trazendo a concupiscencia desregrada.
— Visto ter o demonio provocado o primeiro pecado do género
humano, pode-se dizer que ele é o tentador primordial e universal
(todos os pecados no decorrer da historia estáo relacionados
com a culpa de Adáo e Eva e, por isto, também com a tentacao
suscitada pelo demonio no paraíso). Isto, porém, nao quer dizer
que o Maligno cause diretamente todo e qualquer pecado ocor-
rente no decurso dos sáculos.

É verdade que alguns antigos doutores e escritores da Igreja,


como Orígenes (t 254), Evágrio Póntico (t 399), Cassiano (f 423), Sao
Leáo Magno (t 461), o Ps.-Dionisio (séc. VI), Sao Joáo Damasceno
(t 749), admitiram intervencáo direta do demonio em todos os pecados
dos homens e, par conseguirle, em todas as tentacfies. Outros Padres
antigos, porém, nao aceitaram essa tese. Na Idade Media, Sao Tomaz,
com a sua grande autoridade, optou pela negativa, lembrando que1 há
dentro da natureza humana mesma elementos suficientes para explicar
as tentacdes que todo homem padece (há, sim, tendencias múltiplas des-
regradas); por conseguinte, julga o S. Doutor, nao é necessário recor
rer ao demonio para dar conta de todo e qualquer conflito entre o bem
e o mal que ocorra no intimo da criatura humana (cf. S. Teol. 1114,3;
I/II 80,4).

Seja licito, porém, observar: embora o demonio nao seja


causa imediata de qualquer tentacao, deve-se-lhe reconhecer
influencia multo ampia em nao poucas das diadas para o mal
com que o homem se defronta nesta vida. Há casos em que a
intervencáo do Maligno é evidente : o tentador manifesta sua
presenca por vozes, clamores, estrépito, etc., como se dava fre-
qüentemente, por exemplo, na vida do Santo Cura de Ars. Con-
tudo essas intervenQóes portentosas sao raras: para suplantar

— 102 —
AS TENTACOES VSM DO DEMONIO OU DE DOENCAS?

os homens, principalmente em nossos tempos, o Maligno nao


precisa de recursos extraordinarios; dissimulando-se sob as
coisas mais corriqueiras possíveis, consegue seduzir com facili-
dade as criaturas. Admite-se que, com particular empenho, ele
procura entravar ou desvirtuar os exercícios de piedade, pois a
oracáo é a arma capital a que os homens (tanto os justos como
os pecadores) podem recorrer para o debelar.
Doutro lado, nao se deverá esquecer que a agáo do Tenta
dor fica sempre sujeita as disposicóes da Providencia Divina;
sómente porque Deus o permite, e na medida em que o permite,
é que o Sedutor pode atacar os homens. Por conseguinte, o de
monio nunca há de tentar as criaturas de maneira superior á
capacidade de resistencia de cada urna, porque o Senhor Deus
nao o permite (cf. 1 Cor 10,13); as tentagóes estáo envolvidas
dentro de um plano harmonioso que terminará com a vitória do
Bem sobre o mal (tudo que Deus faz ou permite, obedece a nú
mero, peso e medida, conforme Sab 11, 21).

Santa Teresa de Avila, em seu estilo gracioso, zombava do demo


nio. Segundo a santa, o Maligno, embora seja muito perspicaz no setor
da natureza, é tremendamente embotado ou obtuso para as coisas de
Deus...; além disto, «es muy cobarde», afirma ela freqüentemente
(Caminho da perfeicSo 23; Vida, passim).

2. Pergunta-se agora: como procede o demonio quando


tenta os homens por vias ordinarias?
Em primeiro lugar, observe-se que ele é incapaz de inter-
vir de maneira direta e ¡mediata em nossas faculdades superio
res (a vontade e a inteligencia). Com efeito; sómente Deus pode
agir diretamente sobre a vontade Hvre do homem, inclinando-a
para onde bem Lhe agrade; fora do Criador, nenhum ser tem
acesso dentro da livre vontade humana; por conseguinte, ne-
nhuma criatura a pode mover por dentro, determinando ou
constrangendo o livre alvitre. Na mais larga das hipóteses, o
demdnio pode indiretamente, ou seja, por meio dos sentidos,
sugerir a alguém tome tal ou tal alvitre; contudo nunca lhe é
dado penetrar dentro da vontade, coagindo-a físicamente a
abragar urna decisáo pecaminosa.

Mesmo nos casos de obsessáo e possessáo diabólicas (quando o


demdnio age de maneira muito intima sobre as faculdades sensiveis de
alguém), ele é incapaz de penetrar na vontade e a mover por dentro;
caso o possesso (que conserve lucidez de suas faculdades mentáis)
nao queira consentir em sugestSes pecaminosas, nao consentirá de ma
neira alguma. Acontece, porém, em muitos casos de possessáo diabó
lica, que a perturbacáo dos sentidos ou o choque emocional sao tais
que a mente fica como que ligada e a vontade carece dos pressupostos
necessários para exercer a sua liberdade; a pessoa deve entáo ser equi-

— 103 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 51/1962. qu. 2

parada a um doente irresponsável; os atos desregrados que ela cometa,


nao sao pecaminosos, porque nao sao atos voluntarios (em tais casos,
a livre vontade simplesmente nao funciona; nao se pode dizer que seja
interiormente dirigida ou movida pelo demonio). Fica entáo de pé a
afirrriacáo : o Maligno nao pode constranger o tíometn a pecar.

Quanto á inteligencia humana, o demonio também nao a


atinge diretamente; é incapaz de conhecer os pensamentos ínti
mos de cada um; ele só percebe o que nos está na mente, através
dos sinais sensíveis (palavras, gestos e atitudes) com que tra-
duzimos nossas idéias; por conseguinte, se nao manifestamos de
algum modo as nossas intengóes, ele nao pode tomar conheci-
mento délas nem apreender nossos planos.
Como se vé, toda a agáo direta do demonio sobre
os homens fica reduzida ao setor da sensibilidade; ele age, sim,
sobre os sentidos externos (vista, ouvido, tato...) e sobre a
fantasia ou imaginacáo; e sómente mediante impressóes suscita
das nessas faculdades é que ele influi ñas potencias superiores
(inteligencia e vontade), incutindo assim as suas sugestóes ao
pecado.

Mais precisamente: o demonio pode induzir ao mal

descnvolvendo ou mesmo suscitando nos sentidos (na vista, em


particular) representacoes que tornem mais atraentes certos prazeres
ilícitos;
avivando as paixóes (comodismo, afeto a urna criatura...) que
desviem do dever de estado e do scrvico de Deus;
inspirando ou corroborando concepc.6es que levem a pessoa a con-
tentar-se com deleites meramente terrestres;
perturbando a alma, principalmente na hora da morte, mediante
a excitagáo de sentimentos de luxúria, odio, escrúpulos, desespero, res-
peito humano...
transformando-se em «anjo de luz», isto é, fazendo-se arauto de
aparigoes e revelaQÓes, que a alma julga genuínas ou provenientes da
parte de Deus (cf. 2 Cor 11,14);
levando os íiéis a exageros ou a práticas exóticas em assuntos de
piedade ou ascese — o que sujeita as almas a perda de tempo e quedas
na vida espiritual;
inspirando aos devotos indevida confianza em si mesmos c na sua
opiniáo própria.

Ao mover os maus estímulos, o Maligno é terrivelmente


hábil e sorrateiro; explora a constituicáo física e o tempera
mento de cada um: procura vulnerá-lo no respectivo ponto
fraco, fomenta as mais leves tendencias ao desequilibrio laten
tes dentro da personalidade (assim o tentador concorre para
fazer crer que ele nao age nem existe, e que o pecado nao é
realmente senáo o produto de um desajuste físico-psíquico).

— 104 —
AS TENTACOES VBM DO DEMONIO OU DE DOENCAS ?

b) O mando.

Em sentido largo, «mundo» vem a ser o conjunto das criaturas


materiais que cercam o homem. Embora todas tenham sido criadas
boas, compreende-se que nos possam desviar dos nossos deveres e do
servico de Deus, pois apresentam aos sentidos e as paixdes bens que
sao capazes de satisfazer parcialmente ao homem, á revelia mesma da
Lei de Deus.

Contudo o mundo é fonte de tentagóes principalmente quan-


do tomado em sentido restrito, ou seja, segundo a linguagem
do Novo Testamento (cf. Mt 18,7; Tg 4,4), máxime de S. Joáo
(cf. 15,8s; 16,8.33; 17,9-16; 1 Jo 2,15-17; 3,13; 4,5; 5,4.19).
Designa entáo o conjunto dos homens apegados aos bens terres
tres, avessos a Deus e aos valores eternos. Tais pessoas, seguid-
do como única norma de conduta os atrativos desregrados da
natureza, seduzem ao mal nao sómente mediante suas palavras
e seus conselhos, mas também e simplesmente pelos seus exem-
plos: concorrem para criar urna atmosfera em que talvez nao
se fale de pecado, mas em que se vive o pecado como se fósse
urna realidade normal. Sua influencia é tanto mais perniciosa
quanto mais ela se encobre sob fórmula de aparente sabedoriá
e bom sensoj «civilizagáo» e «progresso» tornam-se destarte pre
textos capciosos para se promover a descristianizagáo da socie-
dade.
Nao há dúvida, o mundo assim entendido é ocasiáo de ten-
tagóes ao pecado. O demonio tem certamente seu interésse em
utilizá-lo e, na verdade, nao raro o utiliza, principalmente fo
mentando 6 chamado «mundanismo», ou seja, a mentalidade
alheia a Deus e entregue aos prazeres dos sentidos. .

É o mundanismo que Sao Joáo caracteriza no versículo abaixo, ao


referir-se a duas cobigas desregradas e ao íasto ou ao luxo de vida:

«Tudo que há no mundo, é cobica da carne, cobica dos olhos e so-


berba da riqueza» (1 Jo 2,16).

O mundo deseja satisfazer á carne, á curiosidade e á vaidadd os


tensiva. '
Resta ainda assinalar nesta ordem de coisas

c) A concupiscencia desregrada.
Por assim dizer, o adversario n* 1 do homem, adversario
sem o qual o demonio e o mundo nada obteriam, é o homem
mesmo, ou seja, a desordem de aspiragóes da natureza humana
decaída; numa palavra: a concupiscencia desregrada.
Em que consiste própriamente tal desordem?
Por experiencia sabemos que nao raro as faculdades infe^
ñores do homem desejam bens sem dúvida atraentes, mas con-

— 105 —
<PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 51/1962, qu. 2

trários aos que a sá razáo e a fé indicam cómo verdadeiros va


lores do homem. Em conseqüéncia, os sentidos externos, a ima-
ginagáo e os afetos sensíveis (as paixóes) dáo origem a um
arsenal de tendencias que perturbam o juízo da razáo e conti
nuamente ameagam sobrepujá-lo, fazendo que o individuo pro
ceda de maneira oposta á voz da consciéncia; ésse arsenal é o
que o Concilio de Trento chama «fomes peccatb, estupim do
pecado.
Tal fonte de tentagóes é por si suficiente para suscitar dentro
do individuo uma luta constante, a fim de que a desordem nao
prevaleca em seu comportamento moral.

A propósito vém as palavras de Sao Tiago: «Cada qual é tentado


por sua própria concupiscencia, que o atrai e arrasta» (1,14).

Um dos principios básicos da vida espiritual ensina que «sentir a


concupiscencia» ou a solicitacáo ao pecado nao é pecado, enquanto o
individuo nao consente ou nao dá sua adesáo a tal solicitacáo. Na prá-
tica, nao é sempre fácil distinguir entre «sentimento» e «consenti
miento», dado o intimo éntrelagamento das atividades da alma". A fim
de evitar os casos de dúvida ou perplexidade, procure cada um evitar
tudo que de longe possa excitar as paixOes desregradas. Quem brinca
com o fogo. pode vir a ser vtMma do fogo; sofrerá entáo á xevelia sua,
e com lamentos profundos..., mas nao sem culpa própria. Assim nao
queira o homem sinceramente sequioso de perfeigáo brincar com o
logo da concupiscencia, dando aos seus sentidos liberdade descontro
lada! Poderá vir a sofrer em conseqüéncia disso, nao, porém, sem
culpa ou pecado da sua parte.

É certo que o demonio e o mundo excitam a concupiscen


cia em cada pessoa, embora a cobiga possa por si mesma entrar-
em conflito contra a sá razáo. Alias, demonio, mundo e- concu
piscencia, freqüentemente se concertam entre si para provocar
a ruina do homem. Difícil é por vézes assinalar a parte própria
de cada um désses tres agentes na provocagáo de uma tentagáo.
O fato de que a concupiscencia de cada individuo é sempre
a fonte imediata das tentagóes, explica que cada um seja ten
tado de modo próprio, ou seja, de acordó com o seu tempera
mento pessoal. Assim o problema de consciéncia de cada um
parece nao ter igual em oütra criatura; muitos sao levados
entáo a crer que seu caso é por isto insolúvel... Nao o creiam;
embora tenha cada um seu caso próprio, estejam todos certos de
que os remedios da Misericordia Divina se adaptam a todas as
indigencias possiveis.
Por reconhecer ñas crises de consciéncia os tragos próprios
da personalidade do respectivo sujeito, nao poucos estudiosos
julgam poder resolvé-los pelo recurso exclusivo á Medicina. Ora
tal esperanga ficará sempre vá; a psiquiatría e a ciencia hu
mana, nos casos de pessoas moralmente desequilibradas, só

— 106 —
EXISTEM CRIMINOSOS NATOS?

atingem a periferia, e nao o ámago do problema. A nao ser que


o paciente seja totalmente anormal ou tarado, imprescindível
será sempre a ascese ou o dominio do sujeito sobre si mesmo.
Em vez de relegar o paciente para a categoría dos «dpentes.viti
mas» e dispensá-lo de qualquer esfórgo na luta, procuran o edu
cador e o médico despertar no paciente a consciéncia de que
justamente ele nao é vítima e de que pode reagir e vencer. Os
individuos que certos psicólogos, de maneira mole e cómoda,
dáo por vitimas (procurando apaziguá-los como se nao tivessem
que lutar), ésses mesmos podem tomar-se heroicos vencedores
de si mesmos; podem, em urna palavra, recuperar-se. '.'■ •■...

ID. MORAL

LEITORA EXIGENTE (Minas) :

3) «Pode-se afirmar que há individuos criminosos natos,


como ensinava o jurista italiano César Lombroso?
Existe urna constituigá© física própria dos delinqüentes?»

Em nossa resposta, apresentaremos primeiramente os


dados biográficos e as idéias de César Lombroso; a seguir, pro
curaremos formular um juízo sobre a sua doutrina referente
ao «criminoso nato».

1. Traeos biográficos e idéias de Lombroso

1. César Lombroso nasceu de familia judia em Verona (Italia)


aos 18 de novembro de 1836. Em 1858 doutorou-se em Medicina na
Universidade de Pavia, apresentando a tese «Ricerche sul cretinismo in
Lombardia» (Pesquisas a respeito do cretinismo na Lombardia); desde
entáo revelava interésse particular pelos estudos das doencas mentáis e
dos seus aspectos sociais. Tendo-se especializado em Pádua. Viena e
Paris, foi chamado em 1862 a dar um curso de Psiquiatría na Univer
sidade de Pavia. tornando-se de entáo por diante famoso neste ramo da
Medicina. Em 1867 obteve a nomeacáo de professor extraordinario de
Psiquiatría. Em 1871 passou a dirigir o manicomio de Pesaro. Em 1876
era professor ordinario de Medicina Legal e Higiene na Universidade
de Turim, onde finalmente em 1905 lhe foi confiada a cátedra recém-
-instituida de Antropología Criminal; pode-se mesmo dizer que Lom
broso é o fundador desta disciplina, sumariamente explanada na sua
obra «L'Uomo delinquente» (a partir -de 1875, varias vézes editada
e traduzida). Nos últimos anos de sua vida, dedicou-se também á Me-
tapsiquica e ao Espiritismo, vindo a falecer repentinamente em Turim
aos 19 de outubro de 1909.

Lombroso gozava de personalidade entusiasta, apaixonada


e aberta a largos horizontes. Costumava estar presente em toda

_ 107 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 51/1962, qu. 3

parte (na Italia e no estrangeiro) onde suas idéias entrassem


em seria discussáo? com isso granjeou para si ardentes admira
dores assim como ferrenhos adversarios. Como quer que seja,
desfrutoü de grande autoridade entre os seus contemporáneos;
A posigáo doutrinária de Lombroso é, em principio, tribu
taria da escola de Augusto Comte : de maneira muito mais sis
temática e minuciosa do que seus antecessores, Lombroso pre-
tendia reduzir o comportamento psíquico a fatóres meramente
biológicos ou materiais. Foi o que o" levou a conceber a famosa
tese do «criminoso nato», que vamos agora fixar de perto.

2. LQmbroso partía de um precedente já, de certlo modo, estu-


dado na Idade Media, a saber:, há tragos físicos que nao raro acom-
panham e caracterizan! tendencias psíquicas delituosas do respectivo
sujeito. Assim já Sao Boaventura (t 1274) via em determinadas formas
da cabeca os sinais de determinadas qualidades psíquicas; Freí Fran
cisco Ximenez (séc. XIV) enumerou alguns sinais do corpo que de-
nunclariam más inclinac6es da pessoa. No sáculo XVIII, Lavater fun-
dou a ciencia dita «Fisionomía»; pouco depois, Gall, por sua vez, insti-
tuiu a «Frenología» : estas duas disciplinas visavám esMpular as rela-
góes existentes entre o tipo físico e o caráter moral do individuo; para
Gall, os defeitos e as virtudes correspondían! ao aspecto exterior do
cránio; chegou a admitir urna «bossa do assassinio» no cránio dos ho
micidas. Em meados do séc. XIX era o psiquiatra francés Morel quem
enumerava as características somáticas que ele chamava «estigmas»
do louco ou do delinqüente; influenciado por suas convicgSes religio
sas referentes k queda do homem, Morel asseverava ser o delinqüente
o tipo degenerado de um ser humano inicialmente períeito.

Ora Lombroso em questóes de antropología inspirou-se ime-


diatamente das idéias de Lavater, Gall e Morel; além disto,
compartilhava o evolucionismo de Darwin, segundo o qual os
seres vivos passam de tipos menos perfeitos para tipos mais per
feitos por motivos meramente mecánicos ou materiais. Desen-
volvendo tais principios, julgou poder concluir que existe um
tipo de físico humano que por si mesmo leva o individuo ao
crime ou, em outros termos, existe o tipo do «criminoso nato»,
ser predestinado ao crime por suas disposigóes congénitas, ser
totalmente inculpado, mas também incorrigivel, pois o crime
para ele é algo de espontáneo e instintivo; o delito, asseverava
Lombroso, «aparece... conseqüentemente... como um fenó
meno natural, um fenómeno (diriam alguns filósofos) necessá-
rio, como o nascimento, a morte...» (L'Uomo delinqüente m
5a. ed. pág. 518).

Mais precisamente : o criminoso nato seria vítima de urna forma


de epilepsia oculta e atávica ou degenerescente, isto é, de epilepsia que
o faria regredir para formas de corpo e de comportamento rudes e pri
mitivas próprias de seus antepassados. As convulsóes epilépticas no
delinqüente nato estariam representadas por impulsos violentos e irre-

— 108 —
EXISTEM CRIMINOSOS NATOS?

sistlveis a cometer o crime. O tipo do criminoso nato poderia ser obser


vado em embriio no comportamento de certos animáis irracionais, de
homens selvagens e de criancas em geral: assim Lombroso pretendía
elaborar a «embriología do crime»; o delinqüente constituirla urna ía-
céta intermediaria entre o selvagem e o louco.

Os traeos típicos do criminoso nato seriam:


quanto ao corpo: testa estreita e íugidia, prognatismo, mandí
bula volumosa, assimetrias do cránio e da face, orelhas em
asa, malares salientes, bracos compridos, face glabra;
quanto ao comportamento geral: insensibilidade á dor e ao re-
morso, crueldade, vaidade, carencia de senso moral, etc.

Conseqüéncia lógica destas idéias é que, segundo Lom


broso, nao se deveria falar de «punigáo» infligida aos crimino
sos, mas, sim, de «medidas de defesa» da sodedade em relacáo
a estes. Os delinqüentes nao teriam culpa moral, mas seriam
perigosos para o bem comum, de sorte que nos casos mais gra
ves se lhes deveria aplicar a própria pena de morte (de tal
modo era evidente, para Lombroso, a sua incorrigibilidade!).
O criterio, pois, e a medida para se reprimir o crime nao seriam
a culpa do delinqüente, mas o grau de perigo que éste acarreta
para a sociedade.

3. Além do criminoso nato, Lombroso admitía, sempre na base


de caracteres somáticos, o criminoso louco ou alienado, o criminoso
de ocasiüo, o criminoso por paixSo, assim como o crimlnaloide ou cri
minoso acidental! — Paralelamente ao delinqüente nato, haveria tam-
bém a «prostituta nata» — tese esta ainda mais sujeita a discussáo do
que a anterior.

O psiquiatra italiano aplicou seus principios outrossim ao estudo


dos homens de genio. Estes seriam vítimas de psicose de índole dege
nerativa, devendo por conseguinte ser considerados á luz da patología
mental.
Eis em grandes linhas a posicáo doutrinária de Lombroso. Como
se compreende, provocou vivas discussdes, principalmente em assem-
bléias e congressos. Encontrou, porém, numerosos discípulos (Garo-
falo, Ferri, Di Tullio...), de modo que ainda hoje é representada por
certa corrente de pensadores, os quais se inspiram do positivismo
jurídico.
Entre outros, pode-se notar o nome de Nicéforo, qué em 1902 pro-
pós a sua teoría da «criminalidade latente» : o delito nao seria senáo
a ascensáo do «Eu inferior» (sede do comportamento atávico, primi-
1ivo, carregado.de agressividade, egoísmo, misantropía) ao nivel-do
«Eu superior» (sede dos sentimentos evoluídos da pessoa).

Faz-se oportuno agora formular

2. Um juízo sobre a teoría de Lombroso

1. A distingáo entre «criminoso» e «doente» ou entre

— 109 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 51/1962, qu. 3

«réu» e «irresponsável» já fol objeto de estudo e demonstragáo


em «P. R.» 5/1958, qu. 6.

Quanto ás idéias de Lombroso em particular, estáo hoje


ultrapassadas. pelos resultados de pesquisas modernas. Tor-
nou-se evidente que nao existe tipo somático específico nem de
criminoso nem de genio; aos tragos morfológicos assinalados
por Lombroso nao se pode atribuir o valor de caracterizacáo
que o estudioso italiano lhes atribuía, pois está comprovádo que
existem pessoas integralmente honestas portadoras dos «es
tigmas» de criminosos enumerados por Lombroso, como tam-
bém há malfeitores requintados que, do ponto de vista morfo
lógico, nada de característico apresentam.

Nao há. por*anto, raca de criminosos nem constituicáo física de


delinqüentes. Em outros termos : pode haver «individuos delinqüentes>,
mas nao há «tipos delinqQentes». O que quer dizer: há pessoas que
herdam desequilibrio de hormónios e de metabolismo, em vlrtude do
qual agem precipitadamente ou contra a razao; tornam-se assim cri
minosas, mas criminosas, em grau maior ou menor, inculpadas, porque
sao juguetes de reagSes irrefletidas. Há, portante, anomalías congént-
tas, em virtude das quais alguns individuos caem no crime (natural
mente, com culpabilidade atenuada ou talvez mesmo nula).
Nao existem, porém, dados científicos para concluir que tais pre-
disposicóes se transmitem de maneira íixa, de sorte a constituir ura
tipo racial definido e estável, regido pelo determinismo de leis bioló
gicas e destituido de liberdade de arbitrio. Esta deverá ser sempre
levada em consideracáo; o homem sadio pode, principalmente com o
auxilio da graca de Dcus (que a ninguém abandona), corrigir as más
tendencias de sua natureza assim como as perniciosas sugestoes do
seu ambiente.

Lombroso, observando casos individuáis, foi vítima da ten


dencia a generalizar precipitadamente.

Eis, no setor dos genios, alguns espécimes dessa tendencia :


O cientista italiano apresenta a estatura multo alta ou multo baixa,
assim como a magreza, quais características íreqüentes dos homens de
genio. A seguir, analisa 1.100 homens da historia ditos «geniais» e
dentre estes aponta apenas 78 muito baixos, 23 muito altos e 45
magros!
A esterilidade seria outra nota freqUente nos homens de genio.
Todavía entre os 1.100 casos estudados, Lombroso só pode indicar 50
casos de esterilidade. Carnees aparece apenas com um estigma do
genio : era celibatário...

2. Varios dos adversarios de Lombroso, prendendo-se


ainda ao determinismo e materialismo do séc. XIX, tentaram
explicar a criminalidade por influencia exclusiva do ambiente
social: o delinqüente seria vítima do seu meio, vítima irrespon-
sável, que se poderia recuperar mediante a técnica humana da

— 110 —
EXISTEM CRIMINOSOS NATOS?

reeducagáo, sem apelo as normas da consciéncia e aos valores


moráis. Ora tembém ésse determinismo sociológico é erróneo,
por negar radicalmente a liberdade de arbitrio humano.
Na verdade, tanto os fatóres biológicos hereditarios como
as influencias do ambiente contribuem para explicar o compor-
tamento do individuo criminoso; contudo nao háo de ser toma
dos como fatóres absolutos.
É.sobre estes principios muito mais objetivos que se baseia
a nova «Antropología Criminal», divergente da antiga «Antro
pología criminal». Em última análise, Lombroso granjeou ao
menos o grande mérito de chamar a atengáo dos juristas para
as condigóes subjetivas do criminoso, mostrando que nao se
podem julgar os delitos apenas segundo os danos materiais ou
visíveis acarretados, nem apenas segundo a gravidade da trans-
gressáo da lei ou da ordem objetiva; os legistas compreenderam
melhor que as circunstancias peculiares em que se ache um de-
linqüente por ocasiáo do seu crime, podem merecer mitigacáo
das penas estipuladas pelo direito. Quebrou-se assim o binomio
únicamente considerado pelos juristas de outrora : o delito e a
pena; já agora se levam em conta a pessoa e as condicoes subje
tivas do delinqüente, para se poder definir o tipo do delito e da
pena.

3. Infelizmente, verifica-se que, embora o nome de Lom


broso e a nomenclatura por ele utilizada já estejam ultrapassa-
dos, a teoría do «criminoso nato» suscitou urna mentalidade
ainda hoje assaz difundida: permanece, sim, tanto ñas élites
intelectuais como ñas carnadas mais modestas da sociedade, a
tendencia a negar a culpabilidade moral, e a substitui-la pelo
fator «doenga» ou «estado patológico»; tal processo é muito
cómodo, porque, urna vez tachado de doente, o transgressor da
lei é naturalmente dispensado de fazer violencia a si mesmo ou
de se coibir mediante disciplina moral; o pretenso fator «doenga»
e a categoría «enfermo» servem de pretexto para a moleza ou
para a condescendencia com a natureza desregrada. A respon-
sabilidade da regeneragáo, em tais casos, é transferida da cons
ciéncia do individuo para a ciencia dos médicos e a técnica dos
psiquiatras; «nao adianta remar contra a natureza doente;
antes, torna-se prejudicial», pensam nao poucos... muito erra
damente!

— 111 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 51/1962, qu. 4

IV. HISTORIA DAS RELIGIÜES

FELIPE (Sao Paulo) :

4) «A doutrina da reencarnacáo parece ter sido comuna


entre os povos pagaos anteriores a Cristo. Sendo assim, deve
naturalmente gozar de grande autoridade.
Que se pode apurar a respeito?»

O tema da reencarnagáo já foi abordado em «P. R.» 3/1957, qu. 8


(do ponto de vista bíblico e filosófico) e «P. R.» 26/1960, qu. 3 (dife-
renca entre reencarnacáo e ressurreicáo da carne). Consideramo-lo de
novo neste número de «P. R.», a fim de elucidar alguns aspectos histó
ricos do assunto.
Entendemos, na presente resposta, analisar a posicáo dos prin
cipáis povos pagaos frente á doutrina da reencarnacáo; a seguir, pro
curaremos averiguar como esta pode ter surgido na mente humana.

1. O testemunho dos povos pagaos

As vézes se lé que a doutrina da reencarnacáo «teve origem ñas


primeiras idades do mundo» e que foi professada «em todos os tempos,
em todas as regióes e em todas as seitas». É o que lhe parece dar um
cunho de veracidade. Pois bem; um exame objetivo da documentado
histórica revela que tais afirmacoes sao gratuitas ou mesmo contrarias
á realidade.
Passemos, pois, em revista sumaria os principáis ensinamentos dos
antigos povos com referencia ao assunto.

1) India. É nesta regiáo que se vai encontrar o mais re


moto testemunho em favor da reencarnagáo; acha-se nos hinos
religiosos ditos «Upanishads», dos quais os mais antigos datam
dos séc. Vn/VI a. C.
Esta verificagáo é importante, pois mostra que a tese da
reencarnagáo era estranha á primitiva religiáo dos hihdus, cujas
crengas estáo documentadas na colegáo de textos do «Rig-
-Veda». Foram os brámanes (que professavam urna forma de
religiáo relativamente tardia na India) os primeiros arautos da
reencarnagáo.

Eis precisamente o tcor do mais antipo texto que enslna a volta


dos defuntos a carne mortal :
«Todos aqueles que delxam éste mundo, vüo-se para a lúa. Na pri-
meira parte do mes a lúa se incha com os seus sopros. vitáis; na se
gunda metade, ela os concita a renascer. A lúa é a porta da regiáo dos
céus. Deixa passar quem saiba responder as suas perguntas; quem nao
lhe responde, 6 por ela rejeitado para a térra sob forma de chuva. Os
seres rejeitados renascem, de acordó com as suas obras e o seu saber,
sob forma de vermes, tracas, peixes, pássaros, ledes, parcos, asnos sel-
vagens, tigres, homens ou outros entes» (Kaushitaki-Brahmana-Upa-
nishad).

— 112 —
REENCARNACAO E POVOS ANTIGOS

E como justificavam os brámanes a sua crenga na reen-


carnacáo?

Conforme o hinduismo, cada alma humana é da mesma


substancia que a Alma do universo; em outros termos: cada
«eu» humano se identifica com o mundo. Contudo os homens, ao
nascer, nao sabem disto; ao contrario, julgam-se distintos do
mundo que os cerca, e tendem a conservar a sua individualidade;
querem sobreviver com a sua personalidade inconfundível; ora,
enquanto nutrem tais desejos, estáo fora da via e, por conse-
guinte, longe da felicidade; só conseguiráo bem-aventuranga
perdendo consciéncia de si e dissolvendo a sua individualidade
ou personalidade na substancia comum do universo. Já, porém,
que o homem nao renuncia a si mesmo ou ao próprio «eu» no
decorrer de urna só vida terrestre, a natureza prové a sucessivas
encamacóes, constituindo a roda da vida (o «Samsara») ou o
ciclo dos renascimentos; no decurso de cada existencia terres
tre, o homem deve ir extinguindo em' si o desejo de viver em sua
individualidade; procure mais e mais entrar em estado de re
nuncia, que equivale á paralisagáo de todo «querer», a fim de
que o «querer» do individuo se torne idéntico com o «querer»
da Alma Cósmica ou da Alma Suprema. É na total despersonali-
zagáo ou absorgáo do individuo no grande Todo (Brahma ou
Nirvana) que consiste a felicidade do homem.
As sucessivas encarnagóes das almas sao regidas por urna lei
inquebrantável, dita «do Karma» : cada ato desprende de si
mesmo como que urna fórga misteriosa, a qual assinala a cada
um a respectiva sangáo: a recompensa ou o castigo (vida fu
tura mais feliz ou menos feliz do que a presente). O sistema das
retribuigóes postumas toma assim um caráter extremamente
rígido.

O budismo aue. oriundo no séc. VI a. C., representa por sua vez


urna nova fase da evolucao religiosa da India, acentuou a doutrina da
reencarnacSo (do Kaxma e do Nirvana). Passando para a China no
séc. IV d. C. ésse sistema religioso ai propagou a teoria da transmi-
gracáo das almas, teoría que até tal época lá era desconheclda. Em
372 d. C, o pregador Choentan levou o budismo para a Coréia, donde
finalmente se estendeu até o Japáo, que nos séculos anteriores flcara
alheio as idéias da reencarnagáo.

Pergunta-se agora: tal doutrina, oriunda na india em


época relativamente tardía, representará a evolugáo natural de
principios religiosos mais antigos do próprio povo hindú ou terá
sido importada de outra regiáo? A esta questáo, difícil é dar res-
posta segura : as origens da doutrina da reencarnagáo estáo en
volvidas em trevas, pois nao se pode dizer por quem, quando ou
como tal teoria foi introduzida na ideología religiosa dos hindus.

— 113 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 51/1962. qu. 4

2) Egito. A religiáo dos egipcios parece ter desenvol


vido aos poucos as suas idéias, adotando crengas de outros
poyos, crengas as vézes contrarias as primitivas concepgóes do
Egito mesmo.
Apesar de quanto atesta Heródoto, os estudiosos modernos
afírmam que a religiáo egipcia nos seus primordios ignorava a
tese da reencarnagáo.
Com efeito, os antigos egipcios julgavam que a alma, após
a morte do individuo, percorre tres etapas postumas :

vida solitaria no túmulo,


vida bem-aventurada no «Amentb, ou seja, num novo Imperio
egipcio existente debaixo da térra, em regioes indeterminadas, gover-
nado diretamente pela divindade Osiris,
vida perfeita com os deuses no céu.
Éste itinerario nao prevé reencarnacSes. Contudo os devotos jul
gavam que as almas dos defuntos gozavam da liberdade de circular por
onde Ihes aprazia; por isto voltavam á térra de maneira invisivel para
ver o seu túmulo e fazer uso tanto dos alimentos como dos animáis e
utensilios que os familiares e amigos Ihes pusessem á disposicáo.

Todayia, ao lado desta concepgáo, aparecem, nos monu


mentos egipcios, vestigios de teorías heterogéneas. Assim note-se
o chamado «Livro dos Mortos», urna das mais antigás pegas da
literatura egipcia: constituí o «vade-mecum» da alma que deixa
éste mundo; descreve o que a aguarda no Além e ensina-lhe o
que deve fazer; revela os cánticos que é preciso cantar, as ora-
góes que háo de ser pronunciadas e as fórmulas que a alma deve
proferir para se libertar dos obstáculos na caminhada postuma.
Ora, em meio a tais normas, encontram-se as instrugóes para
que a alma possa realizar as metamorfoses que deseja, isto é,
para que se possa transformar em falcáo (ce. 77 e 78), em fénix
(c. 83), em andorinha (c. 86), em serpente (c. 87), em pássaro
com cabega humana (c. 85), em crocodilo (c. 88), em planta de
lotus (c. 81), etc. Essas transformagóes se diferenciam das reen-
carnagóes dos hindus por serem espontaneas e voluntarias da
parte da alma, nada tendo que ver com castigo ou expiagáo ou
com a lei do karma.

Apenas esporádicamente se encontra algum traco de metempslcose


infligida á alma como punicáo: é o caso, por exemplo, da cena repro-
duzida na sepultura do faraó Ramsés m e no sarcófago de Setos, em
que se vé a alma condenada a tomar o corpo de um porco na térra.
Essa pintura, porém, nao constituí argumento suficiente para se pro-
var que os egipcios admitiam a doutrina da reencarnacao como ele
mento básico da sua religiao. Tal doutrina, na medida em que ela é
professada no Egito, é tida pelos estudiosos como elemento relativa
mente tardío e importado da India.
REENCARNAgAO E FOVOS ANTIGOS

3) Mesopotámia. Os povos da Assíria e da Babilonia nos


consignaram famoso poema que narra «a descida da deusa (me-
sopotámica) Istar aos infernos (ou as regióes subterráneas)».
Ésse documento descreve a sorte das almas após a morte do res
pectivo individuo : váo para um lugar subterráneo, governado
pelo deus Nergal e a deusa Eriszkigal, senhora da «Grande Re-
giáo»; em tal lugar há trevas impenetráveis (donde o nome de
«Casa das Trevas» que Ihe é dado). Duras sao as condicóes de
existencia ai vigentes : a alma se vé rodeada por sete muralhas,
que Ihe impossibilitam o regresso á térra. Sómente raríssimos
individuos, após dilatado prazo, conseguem um dia a permissáo
de sair da Casa das Trevas, a fim de continuar a vida em cir
cunstancias menos penosas.
Como se vé, fica estranha a tais concepgóes a doutrina da
reencarnagáo.

4) Irá. Os livros sagrados dos povos do Irá (Medos, Per


sas, Parténios) — livros intitulados «Avesta» ou (menos ade-
quadamente) «Zend-Avesta» ou simplesmente «Zend» — ensi-
nam que a alma do defunto, após a morte déste, é levada ao tri
bunal dos deuses Mitra, Raxnu e Szaosha; seus méritos e demé
ritos sao rigorosamente pesados numa balanza, após o que a
alma passa para um lugar de felicidade ou é condenada a justas
penas. O local da bem-aventuranga ou o paraíso é, nessa lite
ratura, ornado com tapegarias feitas dos mais preciosos ños e
metáis; refulge com luzes brilhantes e cores admiráveis...
A Sra. Annie Besant, urna das fundadoras da Teosofía, que no
século passado muito se empenhou por encontrar testemunhos da
crenca na metempsicose entre os antigos povos, reconhecia verbal-
mente:

«A reencarnagáo nao parece ter sido ensinada ñas obras (persas)


até o presente traduzidas; nem entre os persas modernos se encontra
essa crenca» (La sagesse antique. Paris 1912, 41).

5) Grecia. Verificam os historiadores que os mais anti


gos textos e monumentos da Grecia desconhecem a migragáo
das almas. Reverencia e culto dos morios, por exemplo, sao ates
tados sem vestigio de reencamacionismo; Hornero (séc. VIH
a. C), por sua vez, dá testemunho da fé dos seus contemporá
neos referente á sobrevivencia das almas, sem mengáo de me
tempsicose.
O introdutor da tese da reencarnagáo na Grecia é Pitágo-
ras (t 496 a. C), o qual depende de urna corrente filosófico-
-religiosa dita «o Orfismo». Ora urna das narrativas básicas do
Orfismo assim explicava o sentido da existencia do homem
sobre a térra:

— 115 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 51/1962, qu. 4

No mundo dos deuses, Dionisio Zagreu incorreu na ira dos Titas,


aos quais procurou escapar transformando-se sucessivamente em ani
máis diversos; quando, porém, estava revestido da forma dé um touro,
foi apreendido, despedazado e devorado pelos Titas. Contudo aconteceu
que Pallas salvou o coracáo de Dionisio, órgáo do qual veio a nascer
um novo Dionisio. Éste conseguiu vingar-se dos Titas, fulminando-os.
Das cinzas dos Titas saiu o género humano, no qual dois elementos
antitéticos se combatem mutuamente: o elemento titánico, que é prin
cipio do mal, e o elemento dionisiaco, derivado do sangue de Zagreu,
que é principio do bem. Em conseqüéncia, a todo homem cabe a tarefa
de se libertar do elemento mau para fazer triunfar em si o principió
bom ou dionisiaco; isto só se pode obter mediante urna serie de puri-
ficacfies através de existencias sucessivas aqui na térra. Na etapa
final, ao homem puro é dado ouvir a palavra salvadora de Persefonas :
«Feliz e afortunado, serás deus e nao mais mortal».
A escola órfica admitía assim um «ciclo de nascimentos» ou urna
<rota de geracfies» para cada individuo humano. Asseverava outrossim
que ésse ciclo de geragóes estendia o seu ritmo á natureza inteira,
pois, conforme o orfismo, o mundo se devia renovar periódicamente,
de sorte que em cada periodo se repetiriam idénticamente todos os
acontecimentos já registrados nos anteriores.

As idéias do Orfismo nao parecem oriundas da Greda


mesma, mas, sim, da Trácia (Baleas)... O fato é que, entre os
gregos, tomaram impulso por obra de Pitágoras. Éste é, ..por
excelencia, o «varáo dos renascimentos», o qual, por concessáo
dos deuses, tinha a recordagáo exata de suas encarnagóes ante
riores. Com efeito, seu pai Hermes dera-lhe a escolher o privi
legio que ele quisesse, exceto o de nao morrer; Pitágoras entáo
pedirá e obtivera o dom de se poder lembrar de tudo que lhe
tivesse acontecido tanto nesta vida quanto ñas antecedentes.
Conta Xenófanes, contemporáneo de Pitágoras, que éste mestre,
assim ilustrado, certo dia ao ver um cao que, espancado, hur-
lava de dor, terá exclamado : «Parem, nao batam mais; pela voz
désse cao reconheci a alma de um dos meus amigos» (Diógenes
Laércio Vm 36). Segundo Pitágoras, tanto os animáis quanto
as plantas possuem alma semelhante á do homem; só lhes fal-
tam os órgáos necessários á manifestagáo de sua vida psíquica
superior. Em conseqüéncia, os Pitagóricos rejeitavam, total ou
ao menos parcialmente, o consumo de carne, ovos, peixe,
favas, etc., pois receavam prejudicar a alma humana que talvez
estivesse vivendo ém tais seres inferiores.
A ctoutrina órfica e pitagórica foi ulteriormente cultivada por
Empédocles de Agrigento. Quem. porém, na Grecia lhe deu a sua apa-
réncia científica, íoi Platao (t 349 a. C). Éste filósofo utilizou os seus
talentos de agudo psicólogo e poeta para expor e defender a teoria da
metempsicose; contudo é difícil dizer até que ponto as imagens litera
rias propostas por Platáo corresponden! as suas conviccQes intimas;
certo é que nem sempre devem ser tomadas ao pé da letra.
De Platao, a doutrina da metempsicose passou a escola platónica
e á neoplatónica, sendo esta representada principalmente por Plotino

— 116 —
REENCARNACAO E POVOS ANTIGOS

(t 270 d. C.) e Porfirio (t 233 d. O. Plotino julgava que as reencarna-


cSes sucessivas obedecem estritamente á lei do taliáo, de tal modo que,
por exemplo, quem é patráo cruel mima existencia, renasce como es-
cravo; quem é ricaco avarento, volta ao mundo como mendigo; quem
matout torna-se vltima de assassinio; o filho que tire a vida de sua
máe, vem a ser máe que sucumbe aos golpes de seu filho (cf. Eneada
IIIII 13); as almas que se puriíicam, sao, ao contrario, transformadas
em estrélas e, do alto dos céus, contemplam o espetáculo do universo
(III IV 2). Por fim. as almas mais puras váo-se fundir com a divin-
dade (m IV 6).

Como se vé, todas estas especulagóes datam de época tar-


dia entre os gregos. O que interessa aqui relevar, é que a tese
da reencarnagáo nao faz parte das concepgóes primitivas déste
povo, mas constituí algo de novo e heterogéneo.

6) Boma. A religiáo dos romanos professava desde os


seus primordios a sobrevivencia da alma. É o que prova o.culto
dos antepassados domésticos (Manes, Larvas, Lemúrios), os
quais ou eram honrados com piedade férvida ou afugentados
como hospedes importunos. Tais atitudes nao supóem, antes ex-
cluem, a crenga na reencarnagáo.

Esta aparece, sim, na literatura latina, mas como algo de esporá


dico e tardío. Assim o poeta Énio (t 169 a. C), da Calabria, narra, nos
seus «Ármales», ter visto em sonho Hornero...; éste lhe haverá decla
rado que a mesma alma que animara Hornero e animava Énio, fóra
numa encarnagáo remota alma de um paváo!
Contudo os romanos eram em geral mais inclinados a seguir as
tendencias de Lucrecio (o qual professava puro materialismo) do que
a adotar as teses e os mitos referentes á metempsicose.
Surge agora espontáneamente a questáo:

2. Gomo terá tido origem na mente humana


a idéia da reencarnac.áo?

Os estudos modernos dáo a ver que o conceito de reencarr.acáo


nao se encontra nos mais antigos testemunhos da literatura ou da re
ligiáo dos povos; constituí, antes, urna tese relativamente tardia, pois
é, pela primeira vez, atestado em um documento hindú dos séc. VII/VI
a. C, documento que p6e termo á época védica ou primitiva da religiáo
na india.
Levanta-se assim urna questao: poder-se-ia de algum modo expli
car o surto dessa idéia na mente dos homens?
A isto respondem os estudiosos, apontando alguns fatdres que
teráo exercido a sua influencia no caso:

1) O homem primitivo difícilmente conseguía abstrair de


conceitos concretos e sensíveis, de sorte que arduo problema se
tornava, para ele, imaginar como urna alma poderia viver sepa
rada do corpo. A carne parecía ser o meio necessário para en-

— 117 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 51/1962, qu. 4

trarmos em contato com outras almas e mesmo com a natu-


reza que nos cerca.

«A mentalidade do homem primitivo se acha mui próxima da da


crianca. Assim como a crianca, o primitivo nao apreende com facili-
dade a vida profunda do espirito, suas .alegrías intimas, suas dores
mudas : alegría ou tristeza, néle, natural e espon*aneamente, assumem
a ruidosa feicáo dos gritos, das lágrimas, dos espasmos. O discípulo
do Avesta adorna o paraíso com a mais brilhante luz, com as mais
deslumbrantes cdres,' com tapecarias íeitas dos .mais esquisitos, dos
mais preciosos materiais. Hornero faz consistir*a ventura de além-
-túmulo em viver_«nos Campos-Elíseos, la no fim da térra», «onde a
vida mais agradável'é oferecida aos humanos, onde, sem nevé, sem
rigoroso invernó, sempre sem chuva, apenas se seníem os záfiros,
cujas brisas cantantes sobem do Océano para refrescar os homens»
(Odisséia p. IV 562-568). Ora nao eram senslvelmente mais elevadas as
idéias religiosas das outras nacSes ném suas concepcdes da felicidade
e da punicáo no além.
Compreende-se portanto que fascinacao devia, nessa mentalidade
grosseira, exercer a idéia da reencarnacáo, que de modo táo simplista
resolve as dificuldades há pouco assinaladas : a alma,... dar-se-á um
corpo novo — humano, animal ou vegetal, pouco importa; o essencial
é que se torne concebível a existencia do homem na outra vida, que
lhe sejam posslveis a felicidade e a punicáo» (Paulo, Siwék, A reen
carnacáo dos esplritos. Sao Paulo 1946, Introducao n. 2).

A medida, porém, que se esmeraría o pensamento filosófico da hu-


manidade, evidenciar-se-ia a inconsistencia da solucáo reencarnacio-
nista para justificar a lmortalidade da alma e explicar as sancSes da
justica divina. A humanidade percebeu melhor^que pode haver autén
tica vida, dotada de profundo conhecimento e amor, mesmo fora da
materia.

Outra razáo que nos antigos terá sugerido o reencarnacionismo é,


conforme alguns estudiosos, a seguinte:

2) Os povos primitivos observavam que o cadáver hu


mano é muitas vézes consumido pelos animáis irracionais (se
jam os vermes da térra, sejam as aves do céu, sejam os quadrú-
pedes carnívoros). Ora era comum admitir entre os antigos que
o consumo do cadáver comunicava aos consumidores as quali-
dades do defunto destruido (daí a prática da antropofagia e do
canibalismo em muitos povos primitivos).
Destas premissas se derivava (por efeito da imaginagáo
antes que por rigor da lógica) que os corpos de certos animáis
irracionais (reptéis, aves, quadrúpedes) constituiam as man-
sóes das almas de homens defuntos (justamente a alma é o prin
cipio vital característico da personalidade).
Em particular, o culto da serpente, muito comum entre os povos
primitivos, se explicaría á luz dessa teoría: verificando que sao ge-
ralmente os vermes da térra que devoram o cadáver do defunto, os
antigos homens haveriam concebido a idéia de que um désses vermes
era escolhido pelos deuses para se desenvolver em reptil maior ou ser-

— 118 —
REENCARNAgAO E POVOS ANTIGOS

pente e ser assim a mansao da personalidade do defunto; a alma déste


habitarla no corpo da serpente. Aíirmavam entáo urna especie de pa
rentesco entre certas serpentes e determinadas familias humanas; em
conseqüéncia, a serpente veio a ser um dos animáis mais venerados
na religiáo popular dos antigos (em menor escala, era atribuido seme-
lhante culto também a moscas, abelhas e a animáis de rapiña ou car
nívoros).
De modo especial no Egito. antigos textos afirmam que as ser
pentes corustituiam a mansáo das almas de todos os deuses, isto é,...
dos antepassados divinizados. As serpentes ñas quais os homens jul-
gassem que os defuntos habitavam, eram proclamadas «protetoras da
familia»; por extensáo de tal praxe houve até serpentes protetoras
de cidades, provincias e mesmo da nacáo inteira do Egito.

3) O fenómeno dos sonhos, por sua vez, sugería a teoría


da reencarnacao. Com efeito; em sua imperfeita psicología, os
primitivos explicavam os sonhos como sendo verdadeiras histo
rias vividas pela alma da pessoa adormecida : logo que o corpo
caísse em estado de sonó, a alma o abandonaría e, encarnando-se
em outro corpo, comecaria a percorrer as diversas aventuras
registradas pelos sonhos. Os antigos julgavam que a alma esca-
pava pelas narinas, pela boca ou pelos poros da pele; por isto
atribuiam-lhe forma esguia, comparando-a com urna borboleta
ou com urna ave (de preferencia, urna pomba) ou aínda com
urna serpente, um camundongo, um inseto...
O desenvolvimento de tais conceptees (muitas vézes ins
pirado por mitos e superstigóes) levou, como se compreende,
certos povos primitivos a admitir a transmigrado da alma de
um corpo para outro apos a morte do individuo; o novo corpo
poderia ser o de urna pessoa humana, o de um irracional ou
mesmo o de urna planta!

Assim algumas tribos de Assam (India) julgavam que as vespas,


tracas e outros insetos que se instalavam na madeira de estatuetas de
personagens defuntos, eram almas humanas, que destarte se reencar-
navam. Também se sabe que certas tribos antigás se recusavam pe-
remptdr¡amenté a dar a seus íilhos o nome de um párente ainda vivo;
a duplicacao do nome implicarla duplicacao, ou seja, divisao, dilace-
ragáo, da personalidade, pois a mesma personalidade teria que viver
simultáneamente em dois carpos; tal fenómeno acarretaria final
mente a morte de um dos dois membros homónimos da familia (esta
crenca mostra que até o nome era, de certo modo, considerado como
encarnacao ou reencarnado de urna alma).

Além das tres premissas que acabamos de expor. devem-se outros-


sim assinalar, entre os motivos que teráo sugerido a tese da me-
tempsicose,

4) O fenómeno das semelhancas ou analogías que por


vézes se podem observar entre urna pessoa falecida e urna
crianga recém-nascida;

— 119 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 51/1962. qu. 4 ;_

5) Ó problema da designaldade de sortes ou do sofri-


mento, que parece depender do comportamento de cada indivi
duo em urna vida anterior á presente, vida anterior na qual
cada um terá merecido o destino que ele ora possui.
Contudo nenhuma destas razóes (nem o conjunto de todas
elas) faz da hipótese da reencarnacáo urna doutrina lógica e
necessária ou urna conclusáo que se imponha ao estudioso.

Em verdade, as tres primeiras premissas sao evidentemente suge


ridas por mentalidade infantil e rude, de sorte que sobre elas nenhuma
doutrina segura se poderia arquitetar.
Quanto ao fenómeno das semelhangas ou analogías, é demasiado
vago para poder ser firme suporte de alguma tese doutrinária.

A quinta observagáo, a das sortes desiguais, nao exige


como explicagáo única e necessária a teoría da reencarnacáo.
Tal assunto já foi abordado em «P. R.» 3/1957, qu. 8; 32/1960,
qu. 3 e 4. Aqui apenas interessa lembrar que Deus é livre para
criar os seres humanos de acordó com o seu sabio e soberano
beneplácito; o Senhor a ninguém deve coisa alguma; por isto
concede a cada criatura um quinháo variável de perfeigóes (a
infinita perfeigáo divina pode ser expressa de variadissimas ma-
neiras). Dispensa outrossim a cada urna dessas criaturas os au
xilios proporcionáis para que possa conseguir o seu Fim Su
premo ou a sua bem-aventuranca eterna. Cada criatura, por-
tanto, recebe, dentro do setor das suas possibilidades, todos os
subsidios necessários para chegar á suma bem-aventuranca; nao
há, pois, injustíca da parte de Deus, que chama igualmente a
todos para a visáo face a face no céu. Se nem todos conseguem
éste Supremo Objetivo, se muitos falham, a raíz da falha nao
está no Criador, mas na criatura ou, mais precisamente, na
liberdade de arbitrio humano, que nem sempre se acha disposta
a aceitar e utilizar o magnánimo dom de Deus. O Criador, tendo
dado livre vontade ao homem a fim de que éste seja mais digno
do que um autómato, nao retoca nem mutila o seu dom; apenas
trata de dispensar á livre criatura todos os auxilios necessários
para que possa fazer bom uso da sua liberdade e assim conse
guir o seu Fim Ultimo.
Portante, nem os testemunhos da historia nem as conside-
ragóes da filosofía dáo á teoria da reencarnagáo a autoridade
que alguns escritores contemporáneos lhe querem atribuir.

— 120 —
REENCARNACAO E CRISTIANISMO

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

ALBERTO (Sao Paulo):

5) «Como se diz, os primeiros cristaos professavam a teo


ría da reencarnacao. Foi sómente em 533, num sínodo de Cons-
tantinopla, que a Igreja imprudentemente a condenou, introdu-
zindo a idéia do inferno.
Que houve propriamente nesse concilio de Constantinopla?»

Em resposta, analisaremos primeiramente a doutrina das antigás


íontes do Cristianismo no tocante á reencarnado; a seguir, deter-nos-
-emos sobre o citado sínodo de Constantinopla.

1. Antigos documentos cristaos e reencarnacao

1. Sagrada Escritura. Nem o Velho nem o Novo Testamento dáo


testemunho que de algum modo insinué a doutrina da reencarnacao.
Ao contrario, a Escritura professa categóricamente urna so existencia
do homem sdbre a térra, após a qual cada um é definitivamente jul-
gado: «Foi estabelecido, para os homens, morrer urna só vez; depois
do que, há o julgamento» (Hebr 9,27). Ao bom ladráo arrependido dizia
Jesús: «Hoje mesmo estarás comigo no paraíso» (Le 23,43).
Os principáis textos bíblicos concernentes a éste assunto (Mt 11,14;
17,12; Jo 1,21; 3,3; 9,1-3) já íoram considerados em «P.R.» 3/1957, qu. 8.
Dispensamo-nos, pois, de os analisar novamente aqui, e passamos ao
testemunho dos antigos escritores cristaos.

2. Os Padres da Igreja. Os adeptos da reencarnacao nao raro


proferem afirmacóes como a seguinte :

«A Igreja primitiva nao repele absolutamente o ensino reencarna-


cionista. Os primeiros padres e, entre éles, S. Clemente de Alexandria,
S. Jerónimo e Rufino, afirmam que ele era ensinado como verdade
tradicional a um certo número de iniciados» (Campos-Vergal, Reencar
nacao ou Pluralidade das Existencias. S. Paulo 1936, 41).

Contudo os autores desta e de semelhantes proposites nao tratara


de as comprovar citando os textos sobre os quais se apoiam; é o que
tira a autoridade a tais assertivas.
Quem, ao contrario, investiga diretamente as obras dos antigos
escritores da Igreja, chega a conclusáo bem diferente da do trecho
ácima transcrito. Percorramos, portante, os escritos dos principáis
Padres citados pelos reencarnacionistas modernos.

S. Ireneu (í 202) rejeitava explícitamente a tese da reen-


carnagáo, lembrando que em nossa memoria nao nos fice, ves
tigio algum de existencias anteriores; de outro lado, advertía, a
fé crista ensina a ressurreicáo da carne, a qual é incompatível
com a reencarnagáo das almas em novos corpos (cf. Adv. haer.
H 33).

— 121 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 51/1962, qu. 5

Tertuliano (t 220), usando do seu estilo mordaz, opunha-se


ao reencamacionismo em famosa passagem («De anima»
28-35), que assim se pode resumir:

Pitágoras, que afirma lembrar-se das suas anteriores existencias,


é vergonhosamente mentiroso : asseverava, por exemplo, ter tomado
parte na guerra de Troia; como explicar entfio que, depois, se tenha
mostrado táo pouco valenfe? Pois, íugindo da guerra, nao veio ele á
Italia? E, se em vida anterior íoi, segundo afirmava, o pescador Pirro,
como se lhe justificará a aversáo pelo peixe? (Sabé-se que Pitágoras
nunca comia peixe). E Empédocles? Nao pretendeu ser peixe numa
existencia anterior? Deve ser por isso que se atirou na crátera de um
vulcáo : com certeza quis ser frito. É tao absurda a migragáo das almas
para corpos de animáis que nem os próprios herejes ousaram de-
fendé-la. — Tertuliano afirmava oufrossim que a reencarnagáo contra
ria a nocao de justica de Deus, a quai exige que a púnica o afete o
próprio corpo que cometeu o pecado, e nSo algum outro.

Clemente de Alexandria (t 215) tinha a doutrina da reen


carnagáo na conta de arbitraria, pois nem as reminiscencias
nó-la atestam nem a fé crista.

«Se tivéssemos existido antes de vir a éste mundo, deveriamos


agora saber onde estávamos, assim como o modo e o motivo pelos quais
viemos a éste mundo» (Eclogae XVII). Clemente notava que nunca a
Igreja professara tal doufrina, a qual só fdra sustentada por conven
tículos de herejes ditos «gnósticos» (Basilidianos e Marcionitas).

Sao Gregorio de Nissa (f 394) é explícitamente citado


pelos reencarnacionistas como adepto de sua doutrina. Quem,
porém, examina os escritos déste autor, verifica que Gregorio
considera a reencarnagáo como fábula injuriosa á dignidade hu
mana, pois nao hesita em atribuir ao homem, ao animal irracio
nal (ave, peixe, rá...) e á planta o mesmo principio vital (cf.
«De hominis opificio» 28).

Se, nao obstante, os reencarnacionistas modernos apelam para a


autoridade de S. Gregorio de Nissa, isto se deve ao fato de que em al-
guns pontos foi discípulo de Orígenes (do qual falaremos no § 2 desta
resposta).

Sao Jerónimo (t 421) é por vézes nominalmente citado em


favor da reencarnagáo. Contudo seria difícil ou impossível jus
tificar essa «procura de patrocinio» em S. Jerónimo, pois o
S. Doutor se pronunciou diretamente contrario á teoría, e isto...
precisamente ao comentar o texto (muito caro aos reencarna
cionistas) de Mt 11, 14, em que Sao Joáo Batista é designado
como Elias :

«Joáo é chamado Elias, observa S. Jerónimo, nao segundo a men-


talidade de tolos filósofos e de alguns herejes, que introduzem a dou-

— 122 —
REENCARNACAO E • CRISTIANISMO

trina da metempsicose, mas pelo fato de ter ele vindo cheio da fórca
e do zélo de Elias, como atesta outra passagem do Evangelho> (cí.
Le 1,17).

Sto. Agostinho (t 430) é tido por Alian Kardec como um


dos maiores divulgadores do espiritismo, pois, conforme o Codi
ficador, terá sido adepto da reencarnagáo. Na verdade, Sto.
Agostinho, no livro X c. 30 «De civitate Dei», mostra conhecer
as doutrinas reencarnacionistas de Platáo, Plotino e Porfirio,
que ele assim comenta :

«Se julgamos ser indigno corrigir o pensamento de Platáo, por


que entáo Porfirio modificou a sua doutrina em mais de um ponto, e
em pontos que nio sao de pequeñas conseqüéncias? É certíssimo que
PlatSo ensinou que as almas dos homens retornam até mesmo pí.ra
animar corpos de animáis. Esta opiniáo foi tambérn adotada por Plo
tino, mestre de Porfirio. Mas nao lhe agradou, e com muita razáo.
É verdade que Porfirio admitiu que as almas entram em sempre novos
corpos: ele, de um lado, sentia vergonha em admitir que sua máe
pudesse algum dia carregar as costas o filho, se lhe acontecesse reen-
carnar-se no corpo de urna muía; mas, de outro lado, nao tinha ver
gonha em acreditar que a máe pudesse transformar-se numa 'jovem é
desposar o seu próprio filho! Oh, quanto mais nobre é a fé que os san
tos e verazes anjos ensinaram, fé que os Profetas dirigidos pelo Espi
rito de Deus anunciaram,... fé que os Apostólos apregoaram por todo
o orbe! Quanto mais nobre é crer que as almas voltam urna só vez aos
seus próprios corpos (no momento da ressurreicáo final) do que admi-.
tir que elas tomem tantas vézes sempre novos carpos!» (De civitate
Dei X 30).

Consideragóes análogas se poderiam multiplicar caso se


quisesse continuar a percorrer a antiga literatura crista. Isto
escaparía, porém, ao intento do presente artigo. Os dizeres de
Sto. Agostinho, fazendo eco a sentenga de escritores mais anti-
gos, principalmente dos mais evocados pelos reencarnacionistas,
já bastam para mostrar que váo seria procurar nos Padres da
Igreja tutela e autoridade para a doutrina da reencarnagáo.
Quem, com sinceridade, observa a documentacáo patrística, é
levado a concluir que na realidade a Igreja antiga, longe de en-
sinar a reencarnagáo, se lhe opós abertamente.

Eis, porém. que a historia registra o caso de Orígenes, do Orige-


nismo e do Concilio de Constantinopla (543), caso assaz controvertido,
ao qual devemos agora voltar a nossa atencáo.

Z. Orígenes, Origenismo e Constantinopla

É o nome de Orígenes que por excelencia dá ocasiáo a que alguns


escritores modernos asseverem, terem os antigos cristáos admitido a
doutrina da reencarnacáo, prosseguindo destarte urna tradicáo pré-
-cristá.

_ 123 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 51/1962, qu. 5

Será preciso, portento, considerar antes do mais

1. Quem era Orígenes?


Orígenes (185-254) foi mestre de famosa Escola Catequé-
tica ou Teológica de Alexandria (Egito) numa época em que os
autores cristáos comegavam a confrontar a revelagáo do Evan-
gelho com as teses da sabedoria humana anterior a Cristo. As
fórmulas oficíate de fé da Igreja eram entáo muito concisas; a
teología (ou seja, a penetracáo lógica e sistemática das propo
sigóes reveladas) ainda estava em seus primordios; em conse-
qüéncia, ficava margem assaz ampia para que o estudioso arqui-
tetasse teorías e propusesse sentengas destinadas a elucidar, na
medida do possível, os artigos da fé. Orígenes entregou-se a tal
tarefa, servindo-se da filosofía de seu tempo e, em particular,
da filosofía platónica. Ao realizar isso, o mestre fazia questáo
de distinguir explícitamente entre proposigóes dogmáticas, per-
tencentes ao patrimonio da fé e da Igreja, e proposigóes hipo
téticas, que ele formulava em seu nome pessoal, á guisa de su-
gestóes, para penetrar o sentido das verdades dogmáticas; além
disto, professava submissáo ao magisterio da Igreja caso esta
rejeitasse alguma das teses de Orígenes.
Ora, entre as suas proposigóes pessoais, Orígenes formulou
algumas que de fato vieram a ser repudiadas pelo magisterio
eclesiástico.

Assim. inspirando-se no platonismo, derivava a palavra grega


«psyché» (alma) de «psychos» (Irio), e admitia que as almas humanas,
unidas á materia tais como elas atualmente se acham, sao o produto
de um resfriamento do fervor de espLritos que Deus criou todos
iguais e destinados a viver fora do corpo; a encarnacáo das almas, por-
tanto, e a criacáo do mundo material dever-se-iam a um abuso da
liberdade ou a um pecado dos esplritos primitivos, que Deus terá
punido ligando tais esplritos á materia. Banidos do céu e encarcerados
no corpo, estes sofrem aqui a justa sancao e se váo purificando a fim
de voltar a Deus; após a vida presente, alguns ainda precisaráo de ser
purificados pelo fogo cm sua existencia postuma, mas na etapa final
da historia todos seráo salvos e recuperar ao o seu lugar junto a Deus;
o mundo visível terá entáo preenchido o seu papel e será aniquilado.
Note-se bem: o alexandrino propunha tais idéias como hipótescs,
e hipóteses sdhre ás quais a Igreja nao se tinha pronunciado (justa
mente porque pronunciamentos sobre tais assuntos ainda nao haviam
sido necessarios); nao havia, pois, da parte de Orígenes a intengao de
se afastar do ensinamento comum da Igreja a fim de constituir urna
escola teológica própria ou urna heresia («heresia» implica em obsti-
nagáo consciente contra o magisterio da Igreja).

2. A desgraga de Orígenes, porém, foi ter tido muitos dis


cípulos e admiradores... Estes atribuiram valor dogmático ás
proposigóes do mestre, mesmo depois que o magisterio da Igreja
as declarou contrarias aos ensinamentos da fé.

— 124 -.
REENCARNACAO E CRISTIANISMO

É preciso observar outrossim o seguinte : o mestre alexan


drino admitiu como possivel a preexistencia das almas humanas.
Ora esta nao implica necessáriamente em reencarnagáo; signi
fica apenas que, antes de se unir ao corpo, a alma humana viveu
algum tempo fora da materia; encarnou-se depois...; dai nao
se segué que se deva encarnar mais de urna vez (o que seria a
reencarnagáo própriamente dita).
£>.:
Alias, Orígenes se pronunclou diretamente contrario a doütrina da
reencarnagáo... Com efeito; em certa passagem de suas obras, con
sidera a teoría do gnóstico Basílldes, o qual queria basear a reencarna-
cao ñas palavras de S. Paulo: «Vivi outrora sem lei...» (Rom 7,9).
Observa entao Orígenes: Basílldes nao percebeu que a palavra «ou
trora» n&o se refere a urna vida anterior de S. Paulo, mas apenas a
um periodo an'terior da existencia terrestre que o Apostólo estava
vivendo; assim, concluía o alexandrino, «Basílides rebaixou a doütrina
do Apostólo ao plano das íábulas ineptas e impías» (cf. In Rom VII).

Contudo os discípulos de Orígenes professaram como ver-


dade de fé nao sómente a preexistencia das almas (delicada
mente insinuada por Orígenes), mas também a reencarnacáo
(que o alexandrino nao chegou de modo nehhum a propor, nem
como hipótese).

Os principáis defensores destas idéias, os chamados «origenistas»,


foram monges que viveram no Egito, na Palestina e na Siria nos
séc. IV/VI. Ésses monges, como se compreende, levando vida muito
retirada, entregue ao trabalho manual e k oracáo, eram p.ouco ver
sados no estudo e na teología; admiravam Orígenes principalmente por
causa dos seus escritos de ascética e mística, disciplinas em que o ale
xandrino mostrou realmente ter autorldade); nao tendo, porém, cabe-
dal para distinguir entre proposites categóricas e meras hipóteses do
mestre, os origenistas professavam cegamente como dogma tudo que
liam nos escritos de Orígenes; pode-se mesmo dizer que eram. tanto
mais fanáticos e bulicosos quanto mais simples e ignorantes.

A tese da reencarnacáo, desde que comecou a ser sustentada pelos


origenistas, encontrou decididos oponentes entre os escritores cristSos
mesmos. que a tinham como contraria á fé. Um dos testemunhos mais
claros é o de Enéias de Gaza (t 518), autor do «Diálogo sobre a Imor-
talidade da alma e a ressurreicao», em que se lé o seguinte raciocinio:

«Quando castigo meu filho ou meu servo, antes de lhe infligir a


punicao, replto-lhe varias vézes o motivo pelo qual o castigo, e reco-
mendo-Ihe que nao o esqueca para que nao recaia na mesma falta.
Sendo assim, Deus, que estipula... os supremos castigos, nao haveria
de esclarecer os culpados a respelto do motivo pelo qual Ele os cas
tiga? Haveria de lhes subtrair a recordacáo de suas faltas, dando-lhes
ao mesmo tempo a experimentar muito vivamente as suas penas? Para
que servirla o castigo se nao fósse acompanhado da recordacáo da
culpa? Só contribuiría para irritar o réu e levá-lo á demencia. Urna
tal vitima nao teria o direito de acusar q seu juiz por ser punida sem
ter conscléncia de haver cometido alguma falta?» (ed. Migne gr. t.
LXXXV 871).

— 125 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 51/1962, qu. 5

Sem nos demorar sobre éste e outros testemunhos anti-reencarna-


clonistas do séc. V, passamos imediataraente á lase culminante da luta
origenista.

Na realidade, a corrente dos origenistas ou o origenismo


na primeira metade do séc. VI provocou famosa celeuma teo
lógica.
Como se terá desenrolado?

3. No inicio do séc. VI estava o origenismo multo em voga


nos mosteiros da Palestina, tendo como principal centro de pro-
pagagáo o cenobio dito da «Nova Laura», ao sul de Belém: ai
gozavam de aprego as doutrinas referentes á preexistencia das
almas, á reencarnagáo e á restauragáo de todas as criaturas na
ordem inicial ou na bem-aventuranga celeste.

Em 531, o abade Sao Sabas, que, com seus 92 anos de idade, se


opunha enérgicamente ao origenismo, íoi a Constantinopla pedir a pro-
tecáo do Imperador para a Pales*ina devastada pelos samaritanos,
assim como a expulsáo dos monges origenistas. Contudo alguns dos
monges que o acompanhavam, sustentaram em Constantinopla opi-
nioes origenistas; regressou & Palestina, para al morrer aos 5 de de-
zembro de 532.

Após a morte de S. Sabas, a propaganda origenista recrudesceu.


invadindo até mesmo o mosteiro do íalecido abade (o cenobio da
«Grande Laura>); em conseqüéncia, o novo abade, Gelásio, expulsou
do mosteiro quarenta monges. Estes, unidos aos da Nova Laura. n5o
hesitaram em tentar tomar de assalto a Grande Laura. Por essa época,
os origenistas (pelo fato de combater urna famosa heresia cristológica
dita «monoíisitismo») gozavam de prestigio mesmo em Constantino
pla, tendo sido dois dentre éles nomeados bispos: Teodoro Askldas,
para a sede de Cesaréia na Capadócia; e Domiciano, para a de Ancira.

Com o passar do tempo, a controversia entre os monges da


Palestina se tornava cada vez mais acesa, exigindo em breve a
intervengáo de instancia superior. Foi o que se deu em 539 :
num sínodo reunido em Gaza, o origenismo foi denunciado ao
legado papal Pelágio. Éste voltou a Constantinopla na compa-
nhia de monges de Jerusalém encarregados pelo Patriarca desta
cidade de pedir ao Imperador o seu pronunciamento contra o
origenismo. A petiráo foi de fato transmitida, logrando o alme-
jado éxito: Justiniano, Imperador, comprazia-se em disputas
teológicas; de bom grado, portanto, escreveu um tratado contra
Orígenes, de tom extremamente violento, equiparando as sen-
tencas do alexandrino aos erros dos pagaos, maniqueus e aria-
nos; concluía com urna serie de dez anatemas contra Orígenes,
dos quais especial atengáo merecem os seguintes :

«1. Se alguétn disser ou julgar que as almas humanas existiam


anteriormente, cómo espíritos ou poderes sagrados, os quais, des-

— 126 —
REENCARNACAO E CRISTIANISMO

viando-se da visao de Deus, se deixaram arrastar ao mal e por éste


mo'jvo perderam o amor a Deus, íoram chamados almas e relegados
para dentro de um corpo a guisa de punic§o, seja anatema.

5. Se alguém disser ou julgar que, por ocasiáo da ressurrelcáo,


os corpos humanos ressuscitaráo em forma de esfera, sem semelhanca
com o corpo que atualmente temos, seja anatema.

9. Se alguém disser ou julgar que a pena dos demonios ou dos


impios nao será eterna, mas terá fim, e que se dará urna restauracáo
(«apokatástasis», reabilitacáo) dos demonios, seja anatema.»

Os qutros aná"emas interessam menos, pois se referem a erros


cristológicos.

Justiniano em 543 enviou o seu tratado com os anatemas


ao Patriarca Menas de Constantinopla, a fim de que éste tam-
bém condenasse Orígenes e obtivesse dos bispos vizinhos e dos
abades de mosteiros próximos igual pronunciamento.
Assim intimado, Menas reuniu logo o chamado «sínodo per
manente» (conselho episcopal) de Constantinopla, o qual, por
sua vez, redigiu e promulgou quinze anatemas contra Orígenes,
dos quais os quatro primeiros nos interessam de perto :

«1. Se alguém crer na fabulosa preexistencia das almas e na re-


pudiável reabilitacáo das mesmas (que é geralmente associada áquela),
seja anatema.
2. Se alguém disser que os espiritos racionáis foram todos cria
dos indepondentemente da materia e alheios ao corpo, e que varios
déles rejeitaram a visáo de Deus, entregando-se a atos ilícitos, cada
qual seguindo suas más inclinagoes, de modo que foram unidos a
carpos, uns mais, ouTos menos perfeitos, seja anatema.
3. Se alguém disser que o sol, a lúa e as estrélas pertencem ao
conjunto dos seres racionáis e que se tomaram o que éles hoje sao
por se terem voltado para o mal, seja anatema.

4. Se alguém disser que os seres racionáis nos quais o amor a


Deus se arrefeceu, se ocultaram dentro de corpos grosseiros como sao
os nossos, e foram em conseqüéncia chamados homens, ao passo que
aqueles que atingiram o ulimo grau do mal tiveram como partilha
corpos frios c tenebrosos, tornando-se o que chamamos demonios o
espirites maus, seja anatema».

O papa Vigilio e os demals Patriarcas deram a sua aprovacáo a


ésses anatemas. Como se vé. tal condenacSo foi promulgada por um
sínodo local de Constantinopla reunido em 543. e nao, como se costuma
dizer, pelo II concilio ecuménico de Constantinopla, o qual so se rea-
lizou em 553. Neste concilio ecuménico, a questáo da preexistencia e
da sorte postuma das amias humanas nao voltou á baila; verdade é
que Orígenes ai foi condenado juntamente com alguns herejes por
causa de erros cristológicos (cf. anatema XI proferido pelo mencio
nado concilio ecuménico). Os historiadores recentes rejeitam a opi-
niáo de autores mais antigos segundo os quais o II concilio ecumé
nico de Constantinopla se teria ocupado com a doutrina origenistica
concernente á preexistencia das almas.

— 127 —
«PERGUNTE K RESPONDEREMOS» 51/1962, qu. 5

Em todo e qualquer caso, nao houve condenacáo de Orígenes em


533, como afirmam certos escritores reencarnadonistas modernos, os
quais por sua pouca meticulosidade se mostram destituidos de auto-
ridade para tratar do assunto.

4. Na verdade, a doutrina da reencarnacao deve ser tida como


positivamente condenada pela Igreja nao sámente na base dos teste-
munhos dos Padres anteriormente citados neste artigo (os quais re-
presentam o magisterio ordinario da Igreja), mas principalmente por
efeito das declarares explicitas do II concilio ecuménico de Liáo
(1274): «As almas... sao imediatamente recebidas no céu», e do con
cilio ecuménico de Florenca (1439) : «As almas... passam imediata
mente para o inferno a fim de ai receber a punicáo» (Denzinger, En-
chiridion 464. 693).
Quanto á doutrina do inferno, ela está contida na Sagrada Escri
tura e sempre foi professada pelos crisifios; cf. «P. R.» 3/1957, qu. 5.
Erróneo, portanto, seria dizer que ela se deve a algum concilio do
séc. VI.

5. Em conclusáo, observamos o seguinte:


a) a doutrina da reencarnacao nunca foi comum, nem é primitiva,
na Igreja Católica (atestam-no os depoimentos dos antigos escritores
cristáos aqui citados);
b) após Orígenes (séc. III), ela foi professada por grupos particu
lares de monges orientáis, pouco versados em Teología, os quais se
prevaleciam de afirmagdes daqucle mestre alexandrino, exagerando-as
(daí a designacáo de «origenistas»);
c) mesmo dentro da corrente origenista, a teoría da reencarna-
Cüo nao teve a voga que tíveram, por exemplo, as teses da preexisten
cia das almas e da restaurado de tddas as criaturas na bem-aventu-
ranga inicial;
d) por isto as condenagSes proferidas por bispos e sínodos no
séc. VI sobre o origenismo versaram explícitamente sobre as doutrinaa
da preexistencia e da restauracüo das almas (o que naturalmente im
plica na condenacáo da própria tese da reencamacao, na medida em
que esta tese depende daquelas doutrinas e era professada pelos ori-
gerüstas);
e) a doutrina da reencarnacao foi rejeitada nao sómente pelo
magisterio ordinario da Igreja desde os tempos patrísticos, mas tam-
bém pelo magisterio extraordinario nos concilios ecuménicos de Lito II
(1274) e de Florenga (1439).
D. Estév&o Bettcncourt O. S. B.

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
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