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P rojeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTTAQÁO
DA EDI9ÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questoes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO IV

46
0 U T U B R C

1 9 6 1
ÍNDICE

Pág.

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "A dontrina e a política do racismo poderiam de algum


modo ser justificadas d luz do Evangelho ou da ciencia: moderna?
Nao haverá, de fato, ragas humanas inferiores ou mesmo
indesejáveis, porque prejudiciais ao progresso da hwmanidade ?". Í07

2) "Se todos os homens sao descendentes do mesmo prin


cipio, como se explica a existencia de diversas rafas do género
humano através dos séculos ?" •ÍÍ4

3) "Poder-se-ia demonstrar que de fato o ambiente produz


modificacóes importantes na configurando dos «eren vivos ?" U22

H. DOGMÁTICA

i) "Na vida cotidiana, nao é raro surgirem dúvidas sobre a


participagáo de fiéis católicos em atos de culto (preces, cantos,
pregacüo, casamentos, batizados) de outras confissóes religiosas.
Quais seriam os principios que devem nortear os católicos
em tais casos f" ^ *26

IH. SAGRADA ESCRITURA

5) "A Sagrada Escritura ensina mesmo que o asno tenha


falado a Balaá no episodio relatado em Núm 22,22-35 ?" *SS

6) "O episodio bíblico (Gen 19,10-38) que refere as unióes


ilícitas das fühas de Lote, é escandaloso. Como pode figurar no
livro santo portador da Palavra de Deus ?
A Biblia nao merecería ser depreciada por causa désse e de
semelkantes trechos escabrosos ?" ¿S7

TV. MORAL

7) "As solteironas sao geralmerúe desprezadas pela sociedade.


Será que também a Igreja as considera como pessoas fracas-
sadas na vida, pessoas que se alhearam aos designios de Deus ?" UO

CORRESPONDENCIA MIÜDA

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano IV — NMó — Outubro de 1961

I. CIENCIA E RELIGIAO

SOCIÓLOGO (Recife):

1) «A doutrina e a política do racismo poderiam de al-


gum modo ser justificadas a luz do Evangelho ou da ciencia
moderna?
Nao haverá, de fato, ragas humanas inferiores ou mesmo
indesejáveis, porque prejudiciais ao progresso da humanidade?»

O racismo está em nossos dias mais urna vez em foco:


manifestagóes anti-semitas em varios países, conflitos ditos
«de segregagáo» («Apartheid») na África do Sul («segregacáo
e.menosprézo dos aborígenes»), tumultos e leis raciais no9
Estados Unidos, expressóes de povosr coloniais recém-emanci-
pados em represalia aos seus antigos colonizadores brancos,
enfim urna onda de odio sao impelidos hoje por preconceitos
de racas. Como já se tem dito, poucos sao os homens contem
poráneos que nao julgam que a urna diferenca de tez da pele
ou de forma do nariz corresponde urna diferenca intelectual e
moral nos respectivos sujeitos.
E — coisa digna de nota —, ao passo que outrora o ra
cismo era apoiado em razóes folclóricas, um tanto sentimentais
e superficiais, os seus partidarios modernos (desde Gobineau,
Vacher de la Pouge, Chamberlain, até Rosenberg) pretendem
dar-lhe aspecto de doutrina científica: estadísticas, testes psi
cológicos e outros métodos técnicos sao utilizados para justi
ficar a discriminacáo de concidadáos, a opressáo e o genoci
dio. £ em nome da biología, da sociología e da historia que se
apregoa a divisáo entre os homens.
Diante de tais atitudes tem-se feito ouvir a voz tanto de
autoridades religiosas como de dentistas, que visam dissipar
todo e qualquer equívoco no assunto. Sao essas afirmagóes re
centes da fé crista e do saber humano que vamos rápidamente
passar em revista.

1. O ponto de vista cristao

Ja em «P.R.» 34/1960, pág. 437-440, foi apresentado o julgamen-


to que a consciéncia crista profere sdbre o racismo. Ela nao pode

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 1

deixar de o condenar, visto que Deus nao faz accepgáo de pessoas


(cf. 1 Pdr 1,17; Gal 3,28); tdda e qualquer criatura humana custou,
por assim dizer, o sangue de Cristo. Nao pode haver fase de cultura
nem tipo de mentalidade que leve o cristáo a reformar éste seu modo
de ver.
Por conseguinte, a íim de nao repetir quanto já foi dito no ci
tado número de «P.R.». mencionaremos abaixo algumas das últimas
manifestagSes da Igreja a respeito da discriminacáo racial.

a) De maneira geral, o episcopado portugués, ao sair de


sua reuniáo plenária em Lisboa de 11 a 13 de Janeiro de 1961,
declarava em carta pública :

«Civilizacáo crista significa: respeito da dignidade humana, res-


tauracao da lei natural, estabelecimento da autoridade, garantía do
dixeito e da liberdade, promocSo da economía e da cultura, supressao
da superstigáo e do médo, confraternizacáo das rocas e das culturas,
protegáo aos fracos» (texto colhido em «Documentaron Catholique»
n' 1346, col. 251).

b) Em particular, com rela$ao aos judeus merece aten-


gao a atitude da Santa Sé para com Israel durante os anos de
perseguigáo nacional-socialista (1933-1945). Sejam destacados
apenas alguns tópicos :
Aos 26 de setembro de 1943, o Govérno nazista que ocupa
ra Roma, impós aos judeus desta cidade a entrega de tinquen-
ta quilos, de ouro dentro de 36 horas; caso nao a fizessem, du-
zentos dentre éles seriam deportados. Por essa ocasiáo, Her-
bert Kappler, chefe do «Sicherheits-Dienst» (Servigo de Segu-
ranca) nazista, declarou: «É judeu todo aquéle que possui san
gue judeu, seja israelita, seja cristáo quanto á religiáo». Pió
XII entáo notifícou á comunidade judaica de Roma que com
pletaría o que viesse a faltar aos israelitas na arrecadagáo do
ouro, de sorte que de todo modo ficava garantida a quantia
solicitada pelos ocupantes. Nao foi necessário, porém, recor
rer aos prestimos pontificios: aos 28 de setembro era entregue
á sede da Gestapo (via Tasso) todo o peso de ouro requisitado.
Cf. o depoimento do presidente da comunidade israelita de
Roma, Ugo Foa, em «Misure razziali adottate in Roma dopo
1'8 setiembre 1943» (nos números de setembro-dezembro de
1952 de «La Voce della communitá israelítica di Roma»).
Durante a ocupagáo nazista Pió XH fez saber que as ca
sas religiosas de Roma podiam e deviam abrigar os israelitas
perseguidos. Conseqüentemente em 1945 contavam-se em Roma
cem estabelecimentos de Irmas que haviam acolhido judeus;
eram de comunidades italianas, francesas, espanholas, inglesas,
norte-americanas, canadenses e mesmo alemas. Cada qual des-
sas casas acolhera um número de israelitas que ia de um a

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O RACISMO

187, sendo esta última a cifra das pessoas abrigadas pelas Re


ligiosas de Nossa Senhora de Sion (Via Garibaldi 28). Do seu
lado, os Religiosos e as paróquias de Roma receberam 992 ju-
deus, durante meses.

Em conseqüéncia, a Abadia de Sao Paulo íora dos Muros e o


Pontificio Instituto Oriental foram certa vez minuciosamente inspec
cionados pela Gestapo; esta prolongou suas buscas no Instituto Ori
ental em urna noits da primavera de 1944, desde as 22,30 até ás
6,30 h; conseguiu descobrir um judeu feito católico, que foi imedia-
tamente preso e levado, ficando o seu posterior paradelro totalmen
te ignorado.

Também se podem registrar as organizares do Vaticano


destinadas a encaminhar perseguidos e deslocados para o es-
trangeiro ou a colhér informagóes a respeito de pessoas desa
parecidas. '._•."•.-:

A solicitude de Pió XII para com Israel foi, de resto, peni


reconhecida por éste povo. No dia do falecimento de S. Santi-
dade em 1958, a titular do Ministerio israelense do Exterior,
Sra. Golda Meir, agradeceu ao Papa ter levantado a voz em
favor dos jüdeus. O Gráo-Rabino de Roma, Elio Toaff, decla^;
rou por essa ocasiáo: «Mais do que quaisquer oútros, tivemós
oportunidade de experimentar a grande bondade compadecen-
te e a magnanimidade do Papa durante os tristes anos da per-
seguigáo e do terror, quando nos parecía que nao havia saída
para nos». . / :

Aos 26 de maio de 1955, urna orquestra filarmónica- israelense


dirigida pelo regente Paulo Kletzki, composta por 95'judeüs de 14
países diferentes, tocou em presenga de Pío XH a segunda parte da
7a, sinfonía de Beethoven «em gratidao pela grandiosa pbrá humani
taria realizada por S. Santidade no intuito de salvar grande numero
de judeus durante a segunda guerra mundial», .' : ' •
Aos 29 de novembro de 1945, um grupo de mais de setenta jü
deus, proveniente dos campos de concentracao' da Alemanha, foi có-
movidamente-agradecer aó Papa ó seu generoso auxilio.

A imparcialidade, porém, pode também sugerir atitude


de reprovagáo... Foi o que se deu últimamente no Estado
mesmo de Israel: um prelado católico, Mons. Hakim, arcebispo
grego de Galiléia, nao hesitou em formular protestos contra
discriminacóes que as autoridades governamentais israelenses
vinham fazendo em detrimento de operarios árabes; a estes,
fóssem cristáos, fóssem muculmanos, eram ilegalmente sone-
gadas as oportunidades de conseguir emprégo. Escrévia entao
o arcebispo em carta aberta ao prefeito Aba-Khoushy da ci-
dade de. Haifa: ...'... v. .....:"..,.

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 1

«O Sr. Aba-Khoushy acha justo que a Companhia Ata, a qual


emprega 2000 operarios e vende seus produtos a árabes e judeus,
nao dé emprégo a um só trabalhador árabe (cristao ou muculma-
no)?... Acha justo que a Agencia dos Seguros Sociais, que recebe
taxas tanto dos árabes como dos judeus, e que se deveria ocupar
com todos indistintamente, nao dé colocagáo a um árabe (cristio
ou muculmano) ?»

É tempo, concluía o prelado, de se pdr fim, num Estado socialis-


ta-operário como o de Israel, a essa flagrante discrimlnagáo opera
rla; nSo se faca mais distincao, no tocante a empregos e colocagoes,
entre um operario árabe e um operario judeu. Os judeus, minorita
rios no mundo inteiro, muito clamaram, e com direito protestaran!,
para que justiga lhes fósse feita. Déem, pois, no seu Estado aos
árabes «o trabalho honesto que a estes permitirá ganhar honrosa
mente a sua vida e a de suas familias».

c) A propósito do racismo ñas colonias e ex-coldnias afri


canas, váo aqui referidos apenas os seguintes tópicos de urna
carta pastoral do episcopado de Ruanda-Urundi (parte do ex-
-Congo belga), publicada em inicios de 1961:
«Em varias regides de Ruanda, a justica para com o próximo foi,
e é gravemente violada; atacam pessoas, freqüentemente iracas e
sem defesa, sem outro motivo que nao o odio racial; seus bens sao
depredados, suas casas incendiadas, suas colheltas devastadas...

A imparcialidade deve nortear a concessao de empregos. É pre


ciso acautelar-se atualmente contra urna tendencia a obedecer a
certa exclusividade racial... Recusar emprégo a tal cidadSo única
mente pelo fato de perténcer a tal estirpe, é racismo que- a Igreja
com razáo condena. Certos genitores recusaram últimamente aceitar
determinados monitores; se esta medida foi inspirada por motivo
racial, é condenável.

O racismo constituí muí grande perigo para o espirito cristáo.


infelizmente, porém, ele penetra cada vez mais ñas mentalidades. Sa-
bei que nao pode estar em paz com Deus aquéle cuja conduta se ins
pira no racismo. Já aconteceu que, por efeito de pressáo do ambiente,
alguns candidatos ao batismo acabaram recusando o padrinho ou a
madrinha que éles mesmos tinham escolhido desde remota data;
a recusa devia-se únicamente ao fato de pertencerem a estirpes dife
rentes. Éste exemplo mostra até qUe extremos pode chegar o ra
cismo: ele tenta entrar mesmo dentro da Igreja, onde todos perten-
cem á grande familia de Deus, sem distincao de nac5es, tribos, po-
vos ou linguas (Apc 7,9). Exortamos os nossos fiéis a reagir enér
gicamente contra todas essas manifestagSes de racismo.

... Haja amor dos brancos para com os negros e dos negros
para com os brancos.

É interessante notar que as doutrmas sociais átelas (o socialis


mo, o comunismo) ensinam que o progresso social so se obtém pela
luta de classes, ou seja, pela luta de racas. Em oposigáo a erro tao
pernicioso, brilhe sempre no córagao dos nossos cristaos a luz da
doutrina de Cristo, que prega... a colaboragao entre as classes e as

— 410 —
O RACISMO

ragas; muito mais ainda: desejamos que reine o verdadeiro amor dos
homens de urna classe para com os de outra classe, dos homens
de urna raga para com os de outra raca. Longe de lutar uns contra
os outros, os Batwa, os Bahutu, os Batutsi e os Europeus, vivendo
lado a lado neste país, se respeitem e amem uns aos outros, como
Cristo os amou>.

Os testemunhos assim reunidos já sao sufidentementié ex-


pressivos para mostrar quanto o racismo é alheio á mensagem
de Cristo.

2. O ponto de vista da ciencia

Os estudos contemporáneos tém levado os dentistas a ave


riguar quanto sao inconsistentes os criterios geralmente ado
tados para estabelecer discriminacáo racial entre os homens.
O conceito de raga está atualmente passando por profunda
transformagáo: mais e mais verifica-se que o tipo radal nao
é algo de fechado e rígido em si, mas, ao contrario, é oscilan
te; define-se um tipo racial pela presenca, ora mais, ora me
nos acentuada, de traeos que em outros tipos raciais também
se encontram, variando apenas a proporgáo em que se acham
disseminados em cada tipo.

1. A UNESCO («Organizacáo das Nagóes Unidas para


a Escola, a Ciencia e a Cultura»), tendo em vista nao sómente
' a eliminagáo de conflitos raciais e o bem-estar social, mas tam
bém o progresso da ciencia, constituiu urna comissáo interna*
donal de antropologistas e geneticistas, a fim de estudarem a
nogáo de raga. Os resultados dos trabalhos désse grupo, cuja
competénda é internacionalmente reconhecida, foram em 1951
condensados na «Declaragáo Comum sobre a Raga e as Dife-
rengas Radais», documento de especial valor, pois parece ex
primir o pensamento do género humano como tal, na hora
presente, em que a política e o partidarismo tendem a sufocar
a ciencia.

Váo transcritas abaixo as principáis proposigóes dessa


Declaragáo:

«1. Os dentistas reconhecem geralmente que todos os homens


atuais pertencem á mesma especie e procedem do mesrao tronco...
No sentido antropológico, o termo 'raca' so pederá ser aplicado aos
grupos humanos qué se distingam por traeos físicos nítidamente
caracterizados e essencialmente transmissíveis.

2. As diferencas físicas entre os grupos humanos s&o devidas:


urnas, a variedades de constitulc&o hereditaria; outras, a variedades
de ambiente; a maioria, á ag&o simultanea désses diversos fatares.

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 1

3. Os grupos nacionais, religiosos, geográficos, lingüísticos e


culturáis nao coinciden! necessáriamente com os grupos raciais; nao
se pode demonstrar que os aspectos culturáis de tal grupo dependem,
de algum modo, dos caracteres raciais désse mesmo grupo.

4. As ragas humanas tém sido diferentemente classificadas pe


los antropologistas. Geralmente estes concordam em dividir a mor
parte da especie humana ao menos em tres grandes grupos: tal
classificagáo nao se básela apenas sobre um trago fisico, mas sobre
varios.

5. Nao se tem prova alguma da existencia de ragas ditas pu


ras... É consentáneo julgar que o processo de hibridacáo humana
se vem desencadeando desde época indeterminada, mas certamente
assaz remota.»

O § 9 da Declarado ainda resume de certo modo os diversos


tópicos do documento. Ei-lo:

«Julgamos útil expor de modo formal o que íoi científicamente


estabelecido a respeito das diferencas entre individuos e entre gru
pos humanos :

a) Os únicos caracteres sobre os quais os antropologistas até


agora puderám realmente fundar dassificagoes raciais, sao caracte
res anatómicos e fisiológicos.

b) No estado atual da ciencia nada justifica a tese de que os


grupos humanos divergem entre si por aptidSes inatas de índole
intelectual ou afetiva.

c) Certas diferencas biológicas podem ser tao grandes entre in


dividuos da mesma raga quanto entre urna raga e outra; podem
mesmo ser maiores entre individuos do primeiro caso.

d) Já foram observadas transformagoes sociais consideráveis


que de modo nenhum coincidem com transformacOes raciais. Os es-
tudos históricos e sociológicos corroboram a opiniáo segundo a qual
as diferencas genéticas nao intervém na determinagáo das diíerencas
sociais e culturáis existentes entre os grupos humanos.

e) Nao há provas de que o cruzamento das ragas tenha efeitos


nocivos do ponto de vista biológico. Os resultados, bons ou maus,
que o cruzamento produza, explicam-se igualmente bem pelo recurso
a fatóres sociais».

De táo importante Declaracáo interessa-nos realcar aqui


os tres seguintes tópicos :

1) Iodos os homens atualmente existentes no mundo


pertencem á mesma estirpe; originam-se de um só tronco.
Esta proposigáo faz, de certo modo, eco remoto ao ensi-
namento da Escritura Sagrada, segundo a qual todos os ho
mens atualmente existentes descendem de um só casal — Adáo

— 412 —
O RACISMO

e Eva. A ciencia, por si mesma, ilustra urna das afirmagóes


mais importantes da fé crista.

2) Os valores da cultura, da ética e da Beligiáo nao es-


táo necesariamente ligados a determinados caracteres rociáis.
Por conseguinte, é váo admitir ragas fadadas a ser serripre
culturalmente inferiores ou ragas incapazes de produzir gran
des heróis, grandes sabios ou grandes santos.

' 3) O conceito de raca é um conceito oscilante; depende


da associagáo de características varias em certo grau de in-
tensidade. Por conseguinte, nao há fundamento objetivo para
estabelecer rígida discriminagáo racial, ou para se atribuirem
aos homens direitos e deveres diferentes, pelo pretexto de per-
tencerem a ragas diversas.
«As diferencas biológicas existentes entre um negro e um bran-
co, entre um branco e um amarelo, entre um negro e um amarelo
nao sao mais marcantes do que as diferencas existentes entre um
branco de Paris e um branco do Cáucaso. Os homens, do ponto de
vista morfológico e fisiológico, pouco diferem uns dos outros. Pode-
-se afirmar que há igualdade biológica absoluta entre as racas hu
manas» (Paúl Delost, em «Cahiers d'Études biologiques» n* 4,
pág. 31).
Digno de nota também é o seguinte testemunho de outro antro
pólogo moderno :
«O estudo das reacfies serológicas do sangue acaba de confirmar
que tedas as populacOes atuais sao mestigas, cem vézes mesticas, e
que nenhuma délas pertence por inteiro a um só grupo» (J. Millot,
Biologie des races humaines. Paris 1952).

2. Depois de tal Declaragáo, a UNESCO se pronunciou


mais urna vez sobre o mesmo assunto. Com efeito; acaba de
publicar, em consorcio com as Edigóes Gallimard de Paris,
urna coletánea de estudos devida a dez famosos dentistas e
intitulada «O racismo perante. a Ciencia» («Le racisme devant
la science». UNESCO / Éditions Gallimard. Paris).
Eis como o boletim «Informations UNESCO» (n» 380,
pág. 9s, de 9/VI/61) apresenta ao público tal obra:

«Nesse volume, antropólogos, etnógrafos, biólogos e sociólogos


nos trazem, de maneira clara e acessivel a todos, a contribuicáo das
respectivas disciplinas. na questáo racial. Esforcaram-se por expor
o atual estado das pesquisas, evitando qualquer afirmacáo de Índole
ética ou sentimental. Nao sómente submeteram a urna análise criterio-
sa os argumentos da causa contraria ao racismo, mas examinaram a
natureza do preconceito racial e dos mitos de que éste se alimenta.
Nao se nota nesse trabalho intuito algum de propaganda nem exa
gero, mas a preocupagáo de confrontar as. teorías com os fatos. Di
vergencias de opinlóes que aparecem nessás páginas, atestam o res-
peito para com a verdade e a independencia de espirito dos colabora
dores dessa coletánea.

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 2 •

O racismo sendo, antes do mais, urna atitude desarrazoada, po-


deria parecer váo querer combaté-lo com as armas da ciencia. Con-
tudo nao seria obrigacáo dos cientistas impedir que os racistas ten-
tem justificar a sua posigáo procurando dar á injustica a dignidade
de urna ordem de coisas ditada pela natureza? Diante do silencio dos
auténticos especialistas, as noches mais falsas, as doutrinas mais
cruéis, difundidas por certos órgaos da imprensa, transformar-se-iam
em 'verdades'. Ora nestes tempos perturbados é bom sabermos que
nenhum ramo da ciencia fornece ao racismo, militante ou dissimu
lado, o minimo argumento de que se possa prevalecer.»
Urna edicao inglesa da dita obra acaba de aparecer na «Colum-
bia University Press» de Nova Iorque, sob o título «Race and
Science». O mesmo estudo está sendo editado também em Tokio,
com igual titulo (Ed. UNESCO / Charles E. Tuttle Co.).
Na base de táo autorizados depoimentos, verifica-se que
nem mesmo a ciencia humana, destituida de preconceitos, é
capaz de fundamentar as teorías ou as táticas do racismo
contemporáneo.

LUÍS (Rio):
2) «Se todos os homens sao descendentes do mesmo
principio, como se explica a existencia de diversas ragas do
género humano através dos séculos?»
Como vimos na resposta anterior, á luz das pesquisas
mais modernas o conceito de raga nao tem a rigidez que se
lhe atribuía antigamente; os etnólogos julgam mesmo que nao
existe raga humana pura; há apenas, em cada tipo humano,
predominancia de caracteres raciais.
Em conseqüéncia, a questáo «como se explica a forma-
cáo das ragas humanas?» coincide com esta outra : «Como se
explica em determinadas estirpes humanas a predominancia
mais ou menos constante de certos tragos raciais?»
A resposta a esta questáo é complexa, pois a diferencia-
Cáo racial supóe a agáo e a reacio de elementos múltiplos,
que podem ser assim discriminados :
Fator interno: um potencial genético
hereditario, ou seja, um
cabedal de tendencias a
atingir determinado tipo
racial. É o genotipo.
FATÓRES PRINCIPÁIS pator externo. q ^^ com suas
influencias de clima,
alimentacáo, regime de
vida social, etc.

FATOR INTERMEDIARIO (interno): as glándulas endocrinas e os


hormdnios.

Voltemos agora nossa atencáo para cada um dos elemen


tos assim referidos.

— 414 —
A FORMACAO DAS RACAS HUMANAS

1. Fatórcs principáis

A. Fator interno: o genotipo

1. «O que herdamos de nossos pais, nüo sao caracteres rema


tados, como urna elevada estatura, cábelos negros ou louros, lisos
ou crespos, olhos azuls ou castanhos; sao, antes, partículas químicas,
cuja natureza nao nos é conhecida com precisáo. Sao, numa palavra,
os genes» (J. Frézal, Génétique ét Médecine. — Le Médecin de Fran-
ce n« 117, novembre 1955).

Os genes... Procuremos focalizá-los de mais perto.


Em 1865, o frade agostiniano G. Mendel descobriu que a
transmissáo dos traeos morfológicos ou somáticos de pais a
filhos se faz pela transmissáo de corpúsculos elementares, de
mínimas dimensóes, hoje comumente chamados «genes». Cada
gene é responsavel por determinada característica do organis
mo vivo; assim existem os genes que produzem a coloracáo
dos olhos (azul, castanha, negra), os que regem a forma dos
cábelos (lisos, ondulados ou crespos), os que causam o tipo
de olhos (em améndoa ou nao), o tipo de nariz (achatado ou
aquilino), o comprimento das pernas, dos bragos, etc. «Os ge
nes acarretam e definem a totalidade ou a quase-totalidade
das características hereditarias dos individuos» (J. Frézal, ob.
cit.) .

2. Pergunta-se entáo: como se transmitem os genes?


— Tenha-se em mente o seguinte: o núcleo de toda célu
la viva é composto de urna substancia especial, dita «croma-
tina», a qual se dispóe em longos filamentos denominados
«cromosomas». Sobre os cromosomas, acham-se colocados em
linhas regulares, uns ao lado dos outros, os corpúsculos que
chamamos «genes». O número de cromosomas de urna célula
viva varia de urna especie vivente para outra; é constante, po-
rém, em todos os individuos da mesma especie e em todas as
células do mesmo individuo. As células sexuais do ser humano
(o espermatozoide do varáo e o óvulo da mulher) contém cada
qual 24 cromosomas; o ovo fecundado, portante, apresenta 48
cromosomas. O número de genes (corpúsculos alinhados sobre
os cromosomas) é naturalmente muito mais elevado; no tipo
humano, oscila entre 10.000 e 40.000. A existencia de tama-
nha quantidade de genes já insinúa quáo ampias sao as possi-
bilidades de variacóes morfológicas (variacóes que constituem
as ragas) dentro do tipo humano.

3. A combinagáo dos cromosomas e genes entre si tem


algo de estável ou de sempre igual; na verdade, milhares de

— 415 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, q'u. 2

genes se transmitem sempre da mesma forma desde as origens


do género humano. É o que explica a perpetuagáo da especie
humana, com as suas notas essenciais.
Ao lado, porém, dessa estabilidade, nota-se urna certa flu-
tuacáo na combinacáo dos genes e, conseqüentemente, na trans-
missáo de características acidentais (pigmentagáo da pele, es
tatura, forma dos cábelos, etc.)., que vérn a ser as variantes
raciais.

Observe-se, alias, que, mesmo sem constituir variantes raciais,


pequeñas oscilacSes se registram até entre irmáps, íilhos dos mes-
mos genitores: no momento da fecundacño do óvulo por parte do
esperma, dáo-se combinagóes cada vez novas, de tal modo que nao
há dois individuos morfológicamente iguais, a nao ser os gémeos mo-
nozigóticos (provenientes de um só óvulo partido em dois ou tres).

Os fatóres que motivam tais flutuagóes, ainda nao sao


de todo claros aos estudiosos; sabe-se que o ambiente tem al-
guma influencia sobre o fenómeno, como se verá abaixo; além
disto, porém, outras causas devem intervir, pois se registram
mudancas morfológicas de urna geragáo a outra totalmente
imprevistas e inexplicáveis.

Essas mudancas bruscas ocorrentes nos genes (ou no genotipo)


sao chamadas, em nomenclatura científica, «mutacoes»; os genes
novos e imprevistos sao ditos cálelos»; tendem a se perpetuar ou a
se tornar estáveis dentro da linhagem do individuo mutante.

A grande importancia das mutacóes para explicar a ori-


gem das ragas é reconhecida pelos dentistas modernos:

«A mor parte dos biólogos concorda em admitir, como resultante


de pesquisas realizadas em plantas, em animáis e no homem, que as
diferencas hereditarias provém, na grande maioria dos casos, de mu
tacóes acidentais» (P. Delost, art. cit. 29).
«Se os genes ficassem sempre idénticos, os homens, que salram
todos dos mesmos ancestrais, teriam todos conservado os mesmos
caracteres hereditarios através de centenas de milhares de geracóes»
(L.-C. Dunn, Race et biologie, ed. Unesco, Paxis 1951).

Sobre o mutacionismo encontram-se ulteriores indicacSes em


«P.R.» 7/1957, qu. 2.

Como exemplo de mutacáo ainda hoje nítidamente observável,


pode-se citar famoso caso ocorrido em urna familia norueguesa...
Seus membros tinham naturalmente cábelos ondulados. Um belo dia,
porém, nasceu no seio dessa familia urna crianga de cábelos crespos
(encarapinhados); entre os seus ascendentes, jamáis alguém tivera
tal tipo de cábelos!... Ora dentre os pósteros désse individuo «mu
tante» alguns herdaram de maneira estável a nova característica, de
sorte que existe atualmente certo número de noruegueses portadores
de um tipo de cábelos que nada tem de noruegués!...

— 416 —
A FORMACAO DAS RACAS HUMANAS

O tipo humano que os genitores transmitem á sua prole


por meio dos genes, está sujeito a sofrer as influencias do am
biente de vida em que o individuo é colocado. «O que se trans
mite por heranca biológica, é um conjunto de possibiüdades
que permitem ao ser humano reagir déste ou daquele modo
as influencias do ambiente... O tipo humano... é o produto
da aqáo simultánea de fatóres hereditarios e do ambiente»
(L.-C. Dunn, ob. cit).
Sendo assim, muito importa agora considerar a funqáo
que o ambiente possa desempenhar na configuragáó do tipo
humano.

B. Fator externo: o ambiente

A enanca, ao nascer, herda de seus genitores um patrimo


nio biológico assaz rico e, por isto mesmo, capaz de tomar tra
eos concretos variáveis em escala bem matizada, de acordó
com as condicóes de clima, alimentagáo, trabalho, regime eco
nómico de que o novo ser humano venha a depender.
Os biólogos puderam verificar que certos genes realizam
á sua funcáo, qualquer que seja o ámbito em que o ser huma
no se desenvolva; tais sao, por exemplo, os genes responsáveis
pela cor dos olhos e o tipo sanguíneo do individuo. Outros, ao
contrario, vacilam segundo os agentes externos; assim, os ge
nes responsáveis pela pigmentacao da pele.

A segulnte experiencia, entre outras, justifica tal afirmacáo:


Observem-se duas crianzas, irmáo e irma... O primeiro tem por
sua constituicao genética, desde o nascimento, tez clara e olhos azuis;
a menina, ao contrario, possui pele morena e olhos negros.
Suponha-se que em tenra idade a menina tenha de ser, por mui
to tempo, recolhida em hospital ou levada para regi6es em que o
sol pouco se mostré; entrementes seu irmao é exposto diariamente
á acáo de um sol causticante. Em conseqüéncia, reglstrar-se-á que
a tez da menina se empalidecerá, ao passo que a do menino se
obscurecerá; o mesmo, porém, nao se dará com a cor dos olhos das
criancas, que permanecerá sempre a mesma.
Desta observac&o se concluí que as diferencas de tez da pele
dependem simultáneamente dos genes (fator interno) e da acao do
sol (fator externo); os genes nao condicionam sempre de maneira
direta as diferencas de edr da pele entre os individuos; o que éles
certamente determinam, é o modo como o organismo reage a tal
ou tal influencia do ambiente.
Quanto á cor dos olhos, parece essencialmente determinada pelos
genes antes do nascimento do individuo. No atual estado da ciencia,
nao se conhece mudanca alguma de ambiente capaz de modificar a
cor dos olhos.

— 417 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, q'u. 2

Voltemos agora a nossa atengáo para alguns dos principáis


fatóres do ambiente relacionados com a configuracáo das ra
gas humanas.

a) A selegao natural

É fato obvio que os seres humanos sao obligados a viver


em ambientes assaz diversos; as reagóes dos individuos a és-
ses diversos ambientes nao sao sempre as mesmas; há pessoas
cujo potencial genético se adapta bem, como há aquelas que
menos bem, e aquelas que de modo nenhum se adaptam. Re-
gistram-se, portante, casos em que o patrimonio biológico de
alguém nao se pode plenamente exprimir no ámbito em que
está colocado. É éste fato que explica as grandes migragóes
de grupos humanos de urna regiáo para outra, assim como o
desaparecimento de ragas.
Estudos efetuados em animáis e vegetáis deram a ver que
a proporgáo de individuos dotados da configuragáo genética
mais vantajosa para viver em determinado ambiente tende a
se aumentar de geragáo em geragáo, ao passo que os indivi
duos menos adaptados tendem a se extinguir. É éste fenómeno
que se chama «selegáo natural». Atribui-se-lhe grande peso na
formagáo das ragas humanas (é certo, porém, que a selegáo
natural nao age ao acaso ou mecánicamente; é sempre contra-
balangada por urna aspiragáo espontánea da natureza a man-
ter o seu tipo próprio ou as suas notas essenciais).

Entre os homens, a selecáo natural contribuiu para que se asso-


ciasse o nome de determinado continente com o de determinada cons-
tituicáo racial. Assim os negros, por seus caracteres genéticos, sao
muito mais adaptados ás condicdes de vida equatorial da África do
que os brancos: a pigmentagao da sua pele, seu sistema de transpi-
racáo e seu metabolismo em geral, sua íecundidade, as modalidades
do desenvolvimento das suas crianzas sao fatóres bem acomodados
ás condigóes climatéricas em que vivem.

b) As migragóes e os cruzamentos

«O homem sempre foi um grande emigrante» (J. Millot,


Biologie des races humaines. Paris 1952). Ora, emigrando, urna
tribo humana se sujeita nao sómente a sofrer influencias cli
matéricas novas, mas também a encontrar outras tribos, per-
tencentes quigá a diversa raga. Désses encontros por vézes ori-
ginam-se conflitos e batalhas; geralmente, porém, resultam
unióes conjugáis. É o que explica nao haver em nossos dias
ragas puras, mas tipos raciais provenientes do cruzamento de
outros tipos e tendentes a produzir, por sua vez, novos tipos
(mestigagens).

— 418 —
A FORMACAO DAS RÁCAS HUMANAS

Podem-se apontar exemplos contemporáneos de racas novas em


íormagáo: tais sao as que se devem á uniáo de europeus e negros
na África do Sul e nos Estados Unidos da América; as que redun-
dam dos casamentes de indígenas com os imigrantes europeus ou
chineses ñas ilhas Hawai.

c) O isolamento geográfico e social

Acontece que cada tipo racial está naturalmente associa-


do a determinado ambiente geográfico, ao qual a populacáo
se adaptou a fím de sobreviver. Ás vézes, ésse ambiente é bem
restrito e isolado de outros ambientes (por oferecer condigóes
de vida muito dificéis ou raras); em conseqüéncia, os homens
que habitam tais ambientes se véem obrigados a casamentos
dentro da respectiva populagáo apenas — o que contribuí na
turalmente para mais e mais acentuar as características ra-
ciais.

Assim verifica-se que pequeñas aldeias, por muito próximas que


sejam urnas das outras, apresentam por vézes tipos raciais assaz di
versificados. É o que se dá em lugarejos da Franca, por exemplo
(no sul do Macigo Central, ñas Cevenas e na Montanha Negra), onde
se encontram pequeñas comunidades que conservam o tipo celta qua-
se integralmente como era nos tempos das legioes de César. Sobre
ésses grupos restritos e fechados, porém, pesa o perigo da degene
rescencia; com efeito, os casamentos produzindo-se sempre entre fa
milias muito afins urnas ás outras, a prole fácilmente herda genes
recessivos, o que dá lugar á formacao de individuos fisica ou psíqui
camente depauperados, tais como os famosos «idiotas de aldeia» dos
Pirineus e dos Alpes.

Semelhante efeito ao do isolamento geográfico é o do iso


lamento so'cial. Acontece que certas convengóes sociais pres-
crevem, nao se facam casamentos fora de determinada popu
lado. Além disto, a própria natureza impele freqüentemente
o jovem e a donzela a escolher a sua comparte entre as pes-
soas que falam a mesma língua, pertencem a mesma catego
ría social, professam as mesmas idéias, etc. Essas tendencias
váo acentuando distancias ou mesmo criando barreiras entre
os homens; as populacóes que se deixam assim murar, cons-
tituem ragas em embriáo. Verdade é que a vida moderna, com
seu cosmopolitismo, concorre para mais e mais derrubar tais
barreiras.
• Eis, em poucas linhas, os principáis fenómenos pelos quais
se exerce a influencia do ambiente sobre a constituigáo gené
tica ou hereditaria das respectivas populagóes. Deve-se agora
acrescentar ulterior observagáo: os fatores externos nao agem
diretamente sobre o patrimonio genético ou sobre os genes do
individuo, mas, sim, indiretamente. Em termos mais precisos:

— 419 —
<PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 2

a agáo consiste principalmente em modificar o metabolismo


ou o funcionamento de glándulas e hormónios do organismo;
estes é que influenciam inmediatamente a formacáo das carac
terísticas somáticas da pessoa.
Donde se vé que, entre o potencial biológico, interno, de
cada individuo e o ambiente externo, se sitúa, na configurapáo
das ragas, um elemento intermediario, que sao os hormónios.
Consideremos, pois, sumariamente o que a ciencia ensina a
respeito déste terceiro fator.

2. Fator intermediario: os hormónios

No inicio do século XX, os estudiosos comegaram a per-


ceber a considerável importancia que, no d.esenvolvimento do
organismo humano, compete a certas glándulas, ditas «endo
crinas» (em grego, endo significa dentro; krino, segregar; don
de endocrino é o que segrega dentro ou para dentro. As glán
dulas endocrinas sao assim chamadas porque segregam ou der-
ramam o seu produto dentro do organismo mesmo, ou seja,
nos vasos sanguíneos).
As secregóes de tais glándulas sao chamados «hormónios»,
substancias químicas elaboradas em quantidade mínima, ou
seja, da ordem do «gama» (1/1000 de mg). Derramando-se
diretamente no sangue, os hormónios presidem a numerosos
metabolismos (processos de assimilagáo e eliminagáo) do or
ganismo; sao necessários para conservar em atividade certos
tecidos; regem a fungáo reprodutora; enfim norteiam o com-
portamento ou a capacidade de reagáo dos órgáos que estáo
em contato imediato com o mundo externo; sao éles, portan-
to, que respondem pela maior ou menor resistencia aos influ-
xos do ambiente. Cada hormónio desempenha fungáo bem de
terminada, de tal modo que a extragáo da respectiva glándula
ou qualquer alteracáo da mesma provoca atrofia e perturba-
góes dos órgáos e tecidos dependentes.

2. Eis a lista das principáis glándulas endocrinas e das suas


fungues:

1) A tiroide, situada na base da nuca, produz os hormónios di


tos «tiroidianos» (por exemplo, a üroxina), que sao compostos ioda-
dos. Rege os metabolismos celulares e desempenha papel notável no
crescimento do individuo.

2) O pincreas endocrino produz a insulina, hormónio importan


te para o aproveitamento do agúcar no organismo.

3) As glándulas supra-renais, elaboradoras de' numerosos hor


mónios, responsáveis por varias funcñes. Distinguem-se

— 420 —
A FORMACAO DAS RAQAS HUMANAS

a glándula medular, que segrega a adrenalina, importante na


regulacao do sistema cortical;

a glándula cortical ou o córtice suprarrenal, que, mediante


os hormónios cortícosteroides, rege os diversos metabolismos e toma
parte na defesa do organismo contra todas as agressóes infecciosas.

4) As glándulas sexuais ou gónadas. Distinguem-se

a glándula intersticial, que segrega o hormónio masculino ou


andrógeno;

o ovario, produtor dos hormónios femininos: os estrógenos,


que estimulam os órgáos genitais femininos, e a progestorona ou Iu-
teina, indispensável ao desenvolvimento normal da gestacáo.

5) A hipófise glandular, hoje em día tida como glándula que


controla e domina as funcdes de todas as demais glándulas endocri
nas. Situada na base do cerebro, segrega varios harmonios denomi-.
nados «estimulinas» e encarregádos de ativar as outras glándulas do
organismo. Segrega também o hormdnio somatotrópico, do qual de
pende o desenvolvimento do organismo em geral (formacáo do es
queleto, do cránio, dos órgáos internos, de tipo de estatura, etc.).
A eliminacáo ou as perturbacóes da hipófise acarretam atrofia ou de
sequilibrio das restantes glándulas endocrinas, as quais se tornam
incapazes de elaborar seus hormónios, com detrimento geral para a
saúde do individuo.
Pesquisas muito recentes deram a ver que a hipófise glandular,
por sua vez, depende dos núcleos do hipotálamo, que parecem segre
gar substancias destinadas á producáo das estimulinas hipofisiárias.

3. Com o progresso dos estudos, mais e mais se verifica


a importancia dos hormónios no funcionamento do organismo.
Para que éste seja sadio, supóe o equilibrio hormonial, equili
brio que se baseia em dosagens de má?áma precisáo e de valor
quase infinitesimal: deve haver, com efeito, proporgáo e har
monía entre os diversos hormónios dentro do sangue; além
disto, harmonía entre o funcionamento de cada hormónio e o
da glándula que o segrega. Enfim pode acontecer que os hor
mónios se associem em sua atividade, dando lugar ao que se
chama «a sinergia (colaboragáo) hormonial». Basta urna te
nue avaria no sistema endocrino para ocasionar perturbacóes
de vastíssimo alcance ñas características anatómicas e fisioló
gicas do individuo.

E essas tenues avarias podem ser ocasionadas por fatóres múl


tiplos :
a) íatóres que intervém no desenvolvimento do feto durante a
gestagáo : doengas infecciosas da gestante, carencias ou irregularida
des de nutrigao, perturbacSes hormoniais e outras que se possam
registrar no organismo materno. Isso tudo vai repercutir no funcio
namento das glándulas endocrinas do feto e, por conseguinte, no
próprio tipo somático désse individuo;

— 421 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 3

b) fatores que intervém no • desenvolvimiento da crianga e na


evolucáo do adulto: doengas infecciosas, tumores... Mais e mais se
verifica o grande papel que podem desempenhar as avitaminoses ou
carencias alimentares, assim como os fatores climatéricos (luz, ca
lor, temperatura...).

Para que urna glándula endocrina funcione normalmente,


supóe-se o funcionamento normal de varios outros agentes: as
sim a hipófise é estimulada pela luz, mas as suas estimúlalas
nao seráo devidamente segregadas se a pessoa nao receber ali-
mentacáo suficientemente rica em vitaminas e se nao estiver
colocada em ambiente de calor mais ou menos constante...
Estes poucos traqos de fisiología (que nao pretendem ser
urna exposigáo sistemática do assunto) foram aqui citados ape
nas a fim de evidenciar qüáo múltiplos e complexos sao os ele
mentos que concorrem para diversificar os tipos humanos; os
mínimos fenómenos podem produzir extraordinarias mudangas
na configuragáo do individuo, dando lugar a estirpes, ragas e
sub-ragas extremamente variegadas.

INTEBESSADO (Rio):

3) «Poder-se-ia demonstrar que de fato o ambiente pro-


duz modificacSes importantes na configuragao dos seres vivos?»

Na verdade, apontam-se numerosos casos de mudanga do


tipo somático dos viventes por efeito do respectivo ambiente
de vida.

Os fatóres de ambiente que vém em consideracáo neste estudo,


sao as condicóes do «habitat», como temperatura, umidade, luz, ven
to, altitude...; além disto, o regime de trabalho e o de alimentacao.

Nota-se que geralmente as modificagSes produzidas pelo ámbito


sobre determinado vívente tendem a desaparecer desde que ésse in
dividuo volte ao «habitat» ou ao regime de vida primitivos. Em con-
seqüéncia, os biólogos distinguen-! entre '

genotipo, patrimonio biológico que o individuo herda de seus ge


nitores e que está sujeito a ser moldado, dentro de certos limites,
pelas condicóes extrínsecas de vida,

e fenotipo, configuragáo visível que o individuo de fato toma ñas


circunstancias precisas em que ele vive.

O genotipo nao nos é manifestado como tal, mas sempre sob os


tragos mais ou menees contingentes e variáveis do fenotipo. O geno
tipo só se manifestaría genuínamente num individuo que se desen-
volvesse ñas circunstancias «normáis» ou «ideáis», ou seja, ñas cir
cunstancias (de temperatura, umidade. alunentagáo...) que cor-
respondem rigorosamente ás exigencias do seu potencial biológico;
já, porém, que é muito difícil ou mesmo impossivel obter tais cir
cunstancias ideáis, diz-se que todo individuo tem algo de anormal;

— 422 —
INFLUENCIA DO AMBIENTE NO SER VIVO

ésse algo de anormal, porém. desde que nao ultrapasse certos limi
tes, é justamente o que constituí a graga e o encanto de cada indi
viduo principalmente na personalidade humana (o ser humano que
íosse 100 % normal, seria insípido ou pouco atraente, chegam a afir
mar alguns estudiosos).

Ñas linhas que se seguem, analisaremos alguns exemplos'


mais frisantes de modificacóes do vívente (vegetal e animal)
devidas ao respectivo ambiente.

1. No reino vegetal

É entre os vegetáis que se podem apontar os casos mais


característicos de adaptacáo as circunstancias externas; as
plantas sao mais «plásticas» do que os animáis, porque, estan
do fixas ao solo, nao podem procurar, pela fuga, o ambiente
que mais lhes convenha: elas tém que se acomodar ao meio
em que se encontram ou simplesmente sofrer a morte. Em
conseqüéncia, as acomodagóes (ou as variacóes do genotipo)
entre os vegetáis sao por vézes táo vultosas que éles parecem
pertencer a especies diferentes, quando na verdade pertencem
á mesma especie e tém o mesmo genotipo.
Exemplo bem saliente é o de urna especie de crisantemo
branco, chamado «leucanthemum vulgare». Caso se faga cres-
cer em montanha urna muda dessa planta, observa-se grande
diferenga da mesma em relagáo a outra muda que se desen-
volva em planicie: a planta da montanha nao cresce para o
alto, mas toma a forma de urna roseta rasteira, ficando todas
as fólhas acumuladas junto ao solo; transpondo-se, porém,
essa mesma planta para a planicie, verifica-se que ela toma a
estatura elevada que Ihe é característica. Como se vé, em
tal caso o mesmo genotipo se manifesta de duas maneiras bem
diferentes urna da outra (ou sob dois fenotipos.) — Fenómeno
semelhante se dá com o lirio tuberoso: esta planta que, em
planicie, pode atingir 2 m de altura, em montanha apresen-
ta-se muito baixa, a semelhanga de roseta. De maneira geral,
verifica-se que o clima de montanha faz que as plantas tomem
forma exigua, como que «encolhida», déem flores de colorido
muito vivo e desenvolvam abundante pilosidade — modificar
góes estas que se explicara por efeito da intensa luz, do frío
noturno e do vento que dominam o clima das cumiadas.

O vento forte, seja nos topos montanhosos, seja á beira-


-mar, torna geralmente irregular a estatura das grandes ár-
vores: dificulta a existencia de longos ramos e faz que os ar
bustos crescam inclinados no sentido do vento dominante. Cer-

— 423 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 3

tas especies, como, por exemplo, o zimbro, tomam ao vento um


aspecto tortuoso ou enroscado.

A luz (em particular, a duragáo dos dias e das noites) tem


outrossim notável influencia na floragáo e na frutificagáo dos
vegetáis, fato éste que os industriáis muito exploram, instalan
do iluminagáo artificial e distribuindo sistemáticamente calor
e frío em ambientes adequados, a fim de obter o máximo ren-
dimento em flores e frutas.

Omitindo outros exemplos, referimos por fim a arte japonesa


dita de «Bonsab: consiste em obter dentro de vasos de ornamentacáo
certas plantas em tamanho de miniaturas (ou de dezenas de centí
metros), plantas que na natureza seriam verdadeiras árvores (cedros,
pinheiros, faias...); mediante tratamento meticuloso, os artistas ni-
pdnicos conseguem árvores «anas», cujas partes apresentam todas
tamanho uniformemente diminuido, ostentando a silhueta de urna
árvore normal em escala reduzida. Para conseguir ésse efeito, os
cultivadores submetem o vegetal a condicoes de existencia tais que
ele nem se pode desenvolver normalmente nem tampouco morrer: a
composicáo do solo é devidamente estudada a fim de ser relativamen
te pobre; as raizes soírem podas periódicas de modo que nunca se
possam estender muito; a irrigacáo é bem graduada. Ésses artificios
equivalem a circunstancias de ambiente cuja influencia, como se vé,
é decisiva para o fenotipo da planta.

Passemos agora a outro setor de viventes.

2. No reino animal

Os animáis sao menos «plásticos» do que as plantas, sem


contudo deixar de se mostrar bem sensíveis as influencias do
meio de vida.
O fator mais importante para a determinagáo do fenotipo
dos animáis parece ser o regime de nutrigáo. A superalimenta-
gáo é aplicada mormente no tratamento de animáis domésti
cos: assim a galinha, ricamente nutrida, póe ovos mais nume
rosos e substanciosos; o boi superalimentado acelera o seu de-
senvolvimento de modo a se tomar adulto dentro de tres anos,
em vez de cinco. A quanto parece, o aumento de estatura dos
homens de certas regióes verificado nos últimos tempos se deve
a mais abundante alimentagáo.
A qualidade de nutrigáo repercute naturalmente na qna-
lidade da carne dos animáis domésticos: carneiros, por exem
plo, que pastam á beira-mar, dáo urna carne de gósto especial
e muito estimado; ao contrario, aves nutridas com farinha de
peixe se tomam intoleráveis ao paladar, devendo-se suspender
tal regime semanas antes de abater os animáis, caso devam
ser consumidos.

— 424 —
INFLUENCIA DO AMBIENTE NO SER VIVO

A alimentagáo também condiciona a coloracao de certos


insetos, como a lagarta díta «Saturnia pavonia»; caso seja
nutrida com fólhas de peónia, torna-se parda; alimentada, po-
rém, com fólhas de carvalho, é verde.

A luz é outro fator influente no fenotipo dos animáis.


Sabe-se que a tez humana pode ser «queimada» pelo sol. Os
animáis que habitam em cavernas, carecem geralmente de
cor característica; tal é o caso, por exemplo, do proteu, o qual,
porém, trazido á luz, se vai colorindo lentamente mediante a
produgáo de pigmentos escuros (melanofórícos).

É notorio que o pelo de certos animáis tem urna cor própria para
o invernó e outra para o vérao; a doninha, por exemplo, torna-se
branca durante o invernó das térras polares; permanece, porém,
parda por todo o ano ñas regioes da Europa Central. A lebre dos
Alpes apresenta-se branca nos meses de invernó. De modo geral é
sómente nos polos que se encontram animáis inteiramente alvos.

Como se compreende, as circunstancias de alimentagáo,


clima, alternancia das estagóes, etc. podem acelerar ou retar
dar a vida sexual dos animáis.

Também o desenvolvimento da vista depende da ilumina-


gáo do ámbito onde vive o animal; em varias especies que cos-
tumam residir em antros e rochas, os olhos deixam de ter
fungáo. No ser humano, a resistencia ao fulgor da luz é mais
intensa ñas ragas que habitam regióes mais banhadas pelo sol.

As citagóes de casos análogos se poderiam multiplicar.


Contudo os exemplos mencionados já bastaxn para por em evi
dencia a ampia e profunda repercussáo que podem ter os fa-
tóres ambientáis na morfología dos seres vivos. Quanto á
transmissáo dos caracteres assim adquiridos, constituí outro
setor de pesquisas, e setor assaz complexo; ela depende, sem
dúvida, do concurso de diversos elementos, referidos na res-
posta n' 2 do presente fascículo (assim é certo que nao basta
cortar a cauda dos camundongos que váo nascendo, geragáo
por geragáo, dentro de determinada familia, para que final
mente tais animáis nasgam sem vestigio de cauda; ao contra
rio, éste reaparecerá sempre e deverá ser amputada de cada
vez, caso se queiram camundongos adultos destituidos de
cauda).

— 425
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 4 ■

n. DOGMÁTICA

ELZA (Rio de Janeiro):

4) «Na vida cotidiana, nao é raro surgirem dúvidas so-,


bre a participacáo -de fiéis católicos em atos de culto (preces,
cantos, pregacáo, casamentes, batizados) de outras confissóes
religiosas.
Quais seriam os principios que devem nortear os católicos
em tais casos?»

A fim de «se formularen* normas bem claras, faz-se mister


distinguir entre «participagáo ativa e formal» em culto nao ca
tólico e «participacáo passiva e meramente material».
Fala-se de «participagáo ativa e formal», no nosso caso,
quando um católico desempenha alguma fungáo em culto nao
católico, com a intengáo de assim honrar a Deus á semelhanga
dos seus irmáos nao católicos.
Quanto á «participagáo passiva e meramente material»,
significa que um católico, movido por serias razóes (de con
veniencia social, por exemplo), assista as cerimónias de um
culto nao católico, sem desempenhar ai algum papel e sem
prestar adesáo interior a quanto se diz ou faz na execugáo
do rito.
Feita esta distingao, já se podem formular os principios que de
vem nortear a conduta dos católicos frente aos cultos nao católicos.
A isso acrescentaremos algumas normas concernentes á hipótese in
versa, isto é, á possibilidade de participaren! do culto católico os
membros de confissóes nao católicas.

1. Os fiéis católicos o os cultos nao católicos

A. Participacáo ativa e formal

1. Esta maneira de participar em cultos nao católicos


fica estritamente vedada aos fiéis católicos; cf. Código de Di-
reito Canónico, can. 1258 § 1.
. As razóes de tal proibigáo sao obvias :
a) o fiel católico, numa fungáo religiosa comportando-se
em tudo como um nao católico, está explícita ou implícitamen
te professando um credo alheio ao seu, o que equivale a rene
gar a fé católica.
b) Aínda que o católico, durante a participagáo ativa en\
culto nao católico, nao renegué inteiramente a sua fé, fica
sempre o perigo de contaminagáo ou de ecleticismo. Mesmo
que nao o queira nem saiba, ele cria, para si e pata quem o
vé, um clima de relativismo ou indiferentismo religioso.

— 426 —
FIÉIS CATÓLICOS E CULTOS NAO CATÓLICOS

A participacüo ativa sugere sorrateiramente a impressáo de que


todas as religiSes sao mais ou menos equivalentes entre si ou... de
que Religiáo é questáo de sentimento e aíeto apenas, nao envolvendo
própriamente o patrimonio da verdade. Assim corre perigo ésto pa
trimonio, que certamente nao é alheio á ReligiSo, antes por exce
lencia nela está envolvido. Já que tal patrimonio nao é próprio dos
católicos, mas pertence a todos os homens, é de interésse comum
seja guardado incólume. Destarte se explica a aparente intransigencia
dos católicos perante tudo que tenha sabor de relativismo ou confu-
sáo religiosa.
-^ *■
c) Além disto, deve-se levar em conta o grave perigo do
mau exemplo e do escándalo que o ecletícismo religioso assim
praticado acarreta para os fiéis que o observam e que valori-
zam a reta fé.

2. A norma geral que acaba de ser formulada, pode ser


aplicada á con.siderac.ao de casos particulares. É o que se fará
abaixo:

a) Fora de perigo de morte (que será explícitamente fo


calizado adiante), nao é lícito a um católico receber os sacra
mentos de ministro nao católico ou de um sacerdote católico
excomungado, ainda que durante anos o católico nao se possa
encontrar com um sacerdote aprovado pela Igreja.

Táo rigorosa prescricáo se explica pelo íato de que os sacra


mentos sao sinais muito concretos da unidade da Igreja (isto se ve
rifica, de maneira especial, com a S. Eucaristía; cf. 1 Cor 10,17). Con-
seqüentemente, a recepcao dos sacramentos das maos de ministro
nao católico vem a ser, por si mesma, um testemunho de descaso
ou de negacáo da unidade da Igreja, unidade em que Cristo tanto
insistiu (cf. Jo 17).

b) Nao é permitido a um católico exercer as fungóes de


padrinho (ainda que o faga por procurador apenas) em batis-
mo conferido por ministro herético. Apresentando o candidato
ao batismo herético, o padrinho o introduz em urna falsa re
ligiáo, e obriga-se a assegurar a sua formagáo religiosa den
tro dos moldes dessa crenga errónea. Nada se opóe, porém, a
que um fiel católico assista a um batismo de hereje na quali-
dade de simples testemunha; ele nao participa entáo da admi-
nistragáo do sacramento.

c) Quanto ao matrimonio, compreende-se (pelos moti


vos indicados), seja vedado aos fiéis católicos qualquer contra
to matrimonial perante ministro nao católico; nos casamentes
mistos, mesmo após o consentimento conjugal dado pelos nuben-
tes na Igreja Católica, nao é lícito ao católico ir fazer o mesmo
em templo de outra confissáo religiosa; quem o faz, incorre

— 427 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 4

em pena de excomunháo da qual sómente o Ordinario (prela


do ou Bispo diocesano) pode absolver (cf. C. D. C. can. 2319).
Contudo, se o ministro de urna crenc.a nao católica exercer as
suas funcóes apenas na gualidade de oficial civil e se o con
trato matrimonial realizado em sua presenca nao tiver signi
ficado religioso, mas fór mero ato civil, nao há objegáo algu-
ma contra a participacáo de nubentes e convidados católicos
nesse ato civil (cf. can. 1257 § 2). Será preciso, porém, que
tal cerimónia nao envolva perigo de escándalo ou de contami-
nagáo da fé ou de desprézo da autoridade eclesiástica.

Convém aqui lembrar o grave perigo que para a fé constituem


os chamados «matrimonios mistos» ou os casamentos de parte ca
tólica com parte nao católica. O nubente católico se arrisca, nesses
casos, a contaminar o seu patrimonio religioso ou a cair no relati
vismo. A prole, por sua vez, observando dualidade religiosa nos ge
nitores, em geral nao abraca devidamente a religiáo; tende, antes,
ao discrédito e ao indiferentismo religioso. Dai a admoestacáo do
Código de Direito Canónico (can. 1060s) a que nao se facllitem tais
casamentos.

d) Em perigo de morte, os fiéis católicos, nao tendo á


disposicáo sacerdote católico aprovado, podem recorrer a qual-
quer padre excomungado ou cismático, contanto que tenha
sido válidamente ordenado sacerdote, como se eré ser o caso
dos orientáis separados de Roma. A ésse sacerdote separa
do a Igreja, em tal caso (de morte iminente), confere juris-
dicáo para agir em nome da Esposa de Cristo; requer-se entáo
apenas que o sacerdote tenha a intengáo de fazer o que faz a
Esposa de Cristo quando confere os últimos sacramentos aos
moribundos.

Pergunta-se: as enfermeiras católicas podem chamar um mi


nistro nao católico para atender a um doente nao católico que o
peca? — Deve-se responder afirmativamente, contanto que evitem
qualquer eventual escándalo. Na verdade, a transmissáo do chamado
ao ministro nao católico nao significa aprovagáo da heresia, mas ape
nas testemunho de afeto para com um enfermo- que, em virtude do
seu débil estado de saúde, já deve estar incapacitado de mudar de
«renca ou de passar da mera «boa fé» para a «boa e verdadeira fé».

e) JÉ lícito aos católicos assistir a funerais celebrados


segundo rito nao católico, a menos que tenham caráter implí
cita ou explícitamente contrario á fé católica. As cerimónias
de exequias sao freqüentemente consideradas como ato mera
mente social, de modo que quenr a elas comparece nao está
necessáriamente professando algum credo religioso.

f) Quanto ao mais, a consciéncia proibe aos católicos


orar, cantar ou tocar órgáo em templo herético ou cismático,

— 428 — ,
FIÉIS CATÓLICOS E CULTOS NAO CATÓLICOS

associando-se assim ao culto público nao católico, mesmo que


os textos da prece ou da melodía sejam plenamente conciliáveis
com a fé católica.

Nada impede, porém, que, tora do culto público e oficial, os ca


tólicos orem juntamente com nao católicos, desde que as fórmulas
de oragáo sejam ortodoxas (assim poderáo perfeitamente rezar o
«Pai Nosso» ou cantar salmos em comum).
De maneira geral, nSo é permitido aos católicos deixar que cultos
heterogéneos sejam celebrados em templos católicos (o que bem se
entende, á luz dos principios ja expostos). Contudo em certas regiSes,
a titulo de excecáo e por motivos especiáis, o bispo local pode per
mitir culto ñáo católico ñas igrejas católicas em horas adequadas. É
o que se tem visto em territorios da Alemanha e na igreja do Sto.
Sepulcro em Jerusalém.

g) Há certos ritos habituáis ou mesmo obrigatórlos em países


do Oriente, cuja índole é ambigua, pois tanto podem ser tidos como
expressSes de culto pagao como simples homenagem civil tributada a
célebres personagens da patria. É o que se dá na China, no Japáo,
na Tailandia, por exemplo, onde se veneram estatuas de Confúcio,
tabuinhas dos ancestrais e urnas portadoras de despojos dos ante-

Depois de hesitacáo por parte dos moralistas católicos, a Santa


Sé houve por bem decidir recentemente ser licito aos fiéis participar
de tais ritos, contanto que haja motivo serio para isto e déem a en
tender, por suas atitudes, que nao intencionan! praticar um rito re
ligioso, mas urna cerimónia meramente civil (cf. «Acta Apostolicae
Sedis» 1939, 406; 1940, 379). Muito contribuiu para éste pronuncia-
mentó da Igreja a declaracao de governos orientáis modernos segun
do a qual .os mencionados ritos nao implicam profissáo de fé reli
giosa.

Passemos agora aos casos de

B. Participacáo passiva e meramente material

A assisténcia meramente passiva a casamentes, funerais


e cerimónias semelhantes de rito nao católico é permitida aos
católicos contanto que, de um lado, os fiéis tenham para isso
serios motivos (obrigasóes civis, deferencia a pessoas bene
méritas ou amigas...) e, de outro lado, nao haja perigo de
contaminacáo da fé nem de escándalo para o público. Cf. Có
digo de Direito Canónico, can. 1258, § 2.

Para formar devidamente a sua oonsciéncia em tais casos, o fiel


católico deverá levar em conta a projecao social que sua personali-
dade possa ter (as atitudes de pessoa muito notoria sao muito mais
expostas a ocasional" comentarios' por vézes deturpadores e a provo- ■
• car mau exemplo e escándalo, do que as atitudes de pessoas menos
conheddas pelo público). Também se deverá levar em conta a men-
talidade que inspira tal ou tal rito Tiáo católico, pois pode acontecer

— 429 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 4

que a inspiragao dessa cerimdnia seja dissimuladamente hostil a reta


fé ou aos bons costumes; em tais casos, o comparecimento de um
católico já nao pode ser tido como cumprimento de um dever mera
mente civil ou social; o elemento religioso entra indiretamente em
causa, elemento a respeito do qual nao se pode criar ambigüidade.

Motivo de mera curiosidad» nao basta para justificar o compa


recimento de um fiel católico a cerimónia religiosa nSo católica (ca
samento, batizado, funerais...); mesmo que isto nao acarrete perigo
para a íé do católico, trata-se de um ato váo em assunto muito de
licado, prestando-se a causar mal-entendidos e escándalo.

Estabelecido o principio geral ácima, váo agora focaliza


dos alguns casos particulares, de ocorréncia mais freqüente
na vida prática:

a) a visita a templos nao católicos fora das horas de


culto, empreendida a título de ilustragáo cultural, nada tem
de reprováyel, pois ninguém interpretará tal ato como pro-
fissáo de crenga religiosa ou deturpacáo da verdadeira fé.

b) É lícito a um católico servir de testemunha meramen


te passiva do casamento religioso nao católico de dois nubentes
nao católicos; o mesmo, porém, nao se dá quando um dos
nubentes é católico.

Com efeito; é de supor que os nao católicos, comparecendo di


ante de ministro nao católico para se casar, estejam cumprindo um
ditame de sua consciéncia. de tal modo que nao se poderia exigir
déles outra conduta. Ao contrario, o nubente católico que se casa
perante ministro nao católico, comete um ato que a consciéncia ca
tólica reprova, de tal maneira que déle se poderia e deveria exigir
outro comportamento. Em conseqüéncia, ser testemunha de casamen
to désse católico significa, de certo modo, dar apoio a urna atitude
que a moral católica condena.

c) Por motivo semelhante, nao é lícito a um católico ser


testemunha do casamento meramente civil de dois católicos
que nao se queiram casar na Igreja. Na verdade, o contrato
meramente civil nao é casamento para o católico, de sorte que
«prestigiá-lo» implica diluir os valores e favorecer o indiferen
tismo religioso.

d) Ouvir pelo radio a pregacáo de mensageiros nao ca


tólicos também é reprovável. Na realidade, sem o saber, o ca
tólico, assim procedendo, expóe a sua fé ao risco de desvio e
de certo modo tenta a Deus, pois o Senhor nao está obrigado
a conservar os seus dons a quem táo pouco caso déles faz.
Além disto, a audiencia concedida a programas doutrinários

— 430 —
FIÉIS CATÓLICOS E CULTOS NAO CATÓLICOS

nao católicos é apta a causar escándalo, dada a aparéncia de


relativismo e ecleticismo religioso que ela apresenta em público.

e) Em suma, para formar a sua consciéncia nessas e em ou-


tras situares semelhantes, os fiéis tenham sempre em vista o se-
guinte: o criterio a adatar em tais casos é o perigo de perversáo
da reta íé e de escándalo para o próximo; onde éste perigo exista,
nao é licito ao católico participar, nem mesmo passiva e material
mente, de culto nao católico. Por isto nao se poderia raciocinar nes-
tes termos: «A visita a urna igreja protestante é licita em tal lugar
e a tais pessoas. Por conseguinte, será licito a quaisquer pessoas e
em qualquer lugar visitar igrejas protestantes». Faz-se, antes, mister
ponderar as circunstancias próprias de cada caso ocorrente.

Estas normas seráo completadas por quanto se dirá abaixo:

2. Os nao católicos e o culto católico

1. Nada se opóe a participagáo de nao católicos em va


rios dos atos de culto católico, desde que se evite qualquer
especie de confusáo doutrinária. Em verdade, assistir as fun-
cóes da S. Liturgia e ouvir a pregagáo de Palavra de Deus só
pode ser benfazejo para os nao católicos. A Sta. Igreja deseja
mesmo que pessoas nao católicas, animadas de sinceridade e
lealdade, assistam ás funcóes do culto católico, pois, na ver
dade, «ninguém ama aquilo que nao conhece».

O Código de Direito Canónico (can. 1149) permite dar a essas


pessoas as béngaos que lhes possam valer a luz da fé ou a saúde
do carpo; o can. 1152 admite que lhes sejam aplicados os exorcis
mos; contudo béngaos e ritos nao lhes devem ser administrados em
público, mas, sim, em ambiente discreto.

Aínda se poderiam citar ulteriores determinagóes baixa-


das pela Santa Sé no decorrer dos tempos. Assim:

Por motivos serios e removido todo perigo de escándalo, pode-se


aceitar que nao católicos facam o papel de testemunhas em casamen
to de fiéis católicos.
Nao é lícito, porém, convidar um nao católico para o encargo de
padrinho em batizado católico, pois o padrinho se obriga a exercer
urna tutela religiosa sobre o afilhado, tutela que dependerá natural
mente da fé do respectivo padrinho (cf. can. 765 n» 2). Nada, porém,
impede que urna pessoa nao católica assista a um batizado na qua-
lidade de testemunha.
Na falta de organista católico em templo católico, é licito re
correr provisoriamente a organista protestante, tomando-se natural
mente as cautelas para evitar equívocos e escándalos.
Mogas pertencentes á Igreja Ortodoxa (cismática) podem ser
admitidas num coro paroquial para cantar com jovens católicas no
decorrer das fungóes litúrgicas.

— 431 —
«PERGÜNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 4

2. Dado que um nao católico (hereje ou incrédulo), pu


blicamente conhecido como tal, se converta á fé católica, nao
lhe será lícito contentar-se apenas com urna adesáo dissimu
lada ou de foro meramente interno; como é bem compreensí-
vel, requer-se que professe publicamente a sua nova fé, á se-
melhanga do que fazem os demais fiéis. A razáo desta norma
é a que nos tem ocorrido constantemente: a ambigüidade re
ligiosa é detestável, pois significa diluigáo e sufocagáo dos
maiores valores de que o homem possa dispor na térra. Con-
tudo motivos serios (como talvez o de evitar a dissolugáo de
um lar ou urna perseguicáo violenta) podem aconselhar o
adiamento da pública profissáo de fé (o que nao impede a re-
cepgáo dos sacramentos em circunstancias discretas).

Conclusao

Acabamos de propor as principáis normas que deveráo


orientar a conduta dos fiéis católicos sempre que, na convi
vencia social de cada dia, parentes ou amigos nao católicos
lhes dirigirem algum convite referente a culto religioso.
Terminaremos citando um caso recente de participagáo
em culto alheio, caso que envolve.u católicos e protestantes
numa atitude unionista inaudita em épocas passadas.

Em agosto de 1959 reuniram-se na Abadia beneditina de Nie-


deralteieh, na Baviera, cérea de cem cristaos, dos quais 60 eram ca
tólicos e 40 evangélicos (dentre estes, dez eram pastores). Durante
os días do encontró, íoram proferidas conferencias por parte tanto
de católicos como de protestantes, sobre os assuntos seguintes: 1)
Escritura Sagrada e Tradicüe; 2) a Igreja; 3) o Concilio Ecuménico.
Certa manha agruparam-se ésses estudiosos numa capelinha
junto a um altar a íim de ouvir a S. Missa; os católicos se dispu-
nham em semi-clrculo ¡mediatamente após o altar; os protestantes
formavam um segundo semi-círculo atrás déles. Os católicos rece-
beram a S. Comunháo. O celebrante era um jovem monge beneditino,
que no momento oportuno fez urna homilia sobre o sacramento da
uniáo dos cristaos, exprimindo, entre outras coisas, s°u vivo pesar
por verificar que nem todas as pessoas presentes podiam participar
da mesma mesa eucarística, pois entre protestantes e católicos a
toalha de mesa, por assim dizer, estava cortada.
Em outra manhá, semelhante assembléia se realizou num dos
salóes da Abadia, onde a ceia eucaristica (que, para os evangélicos,
nao é o sacrificio da cruz) teve lugar segundo um rito luterano re
modelado de acordó com os costumes dos primeiros tempos da Re
forma, ou seja, em termos que lembravam ainda de perto as ceri-
mónias da S. Missa católica. O oficiante era um pastor luterano da
Baviera, assistido por outro pastor, que se encarregou do respectivo
sermáo: éste, versando sobre a Eucaristía, poderia ter sido, quase na
Integra, repetido numa igreja católica. Dessa vez, os protestantes se
colocaram ñas primeiras fileiras junto ao oficiante, ficando os ca
tólicos atrás déles; os protestantes receberam o pao da ceia. Devo-

— 432 —
BALAA E O ASNO QUE FALOU

gao e recolhimento davam a nota marcante ao ambiente; alguns ca


tólicos chegaram mesmo a se associar aos cantos populares entáo
executados.

Éste episodio, sem precedentes na historia do Cristianis


mo, muito chamou a atengáo do público: seria um passo a mais
para a uniáo dos cristáos na base da verdade, que é una, ou
seria talvez uma traicáo por parte dos católicos ao patrimo
nio da genuína fé?
As autoridades eclesiásticas nao reprovaram a atitude dos
católicos no caso (nem é de crer que estes tenham agido sem
consentimento previo da hierarquia). Quanto aos teólogos, re-
fletindo sobre o assunto, julgam tratar-se de um episodio de
participagáo meramente material ou passiva de católicos e
protestantes em culto alheio. No que diz respeito aos católicos
em particular, estava suficientemente esclarecida pelos demais
atos do encontró a sua posigáo doutrinária, de modo que o seu
comparecimento á liturgia protestante, longe de significar re
lativismo na fé, devia manifestar caridade e desejo de uniáo
em torno de um só pao, numa só comunháo eucarística e ecle
siástica.
Ademáis o famoso acontecimento bem atesta que a apa
rente intransigencia da Santa Igreja em questóes de culto nada
tem de mesquinho; é, antes, a necessária salvaguarda do pa
trimonio da verdade religiosa, verdade que só poderá benefi
ciar os homens se fór mantida pura.

m. SAGRADA ESCRITURA

5) «A Sagrada Escritura ensina mesmo que o asno te-


nha falado a Balaa no episodio relatado em Núm 22,22-35?»

Na travessia de Israel pelo deserto, de que falam os pri-


meiros livros da Biblia, deu-se estranho episodio, ou seja, o en
contró da caravana israelita com o mago Balaá.
Abaixo resumiremos o teor do acontecimento, para pro
curar definir devidamente o seu sentido.

1. A narrativa bíblica como tal

Os judeus, caminhando pelo deserto, haviam, com o au


xilio do Senhor, conseguido debelar povos poderosos, que ti-
nham tentado criar-lhes obstáculos. Ora o rumor désses feitos
aterrorizou o rei de Moab, Balaque, o qual na previsáo de um
encontró com Israel, julgou estar ameagada a subsistencia de
sua gente. Reputando-se incapaz de conjurar o perigo pelas ar-

— 433 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 5

mas apenas, resolveu x-ecorrer ao poder religioso: lembrou-se


de um mago residente em Petor, junto ao Eufrates, o qual lo
grara fama em todo o Oriente; era Balaá. Mandou, pois, lega
dos, portadores de ricos presentes e promessas, os quais lhe
rogaram fósse ter ao país de Moab e de lá amaldigoasse os
israelitas acampados na vizinhanca. Balaá era temente á Di-
vindade; por isto nao quis partir sem consultar o Senhor. Após
insistencia, obteve licenga para seguir viagem, a condicáo, po-
rém, de nao proferir sobre Israel senáo os oráculos que lhe
fóssem inspirados do alto.
Ao viajar para Moab sobre um jumentinho, experimentou
estranha aventura: um anjo de Javé, de espada na máo, as-
sustou o animal, fazendo que se desviasse da estrada e entras-
se nos campos; de novo apareceu o anjo num caminho estrei-
to, de modo que o jumento só pode passar atritando o pé de
Balaá contra as pedras do muro; em terceira aparigáo, o anjo
se postou em lugar táo estreito que o asno, nao podendo pros-
seguir, se deitou por térra. Como Balaá espancasse veemente-
mente o animal, «o Senhor abriu a boca do jumento» (22,28),
o qual explicou que algo de extraordinario se dera. Entáo o
anjo se tornou visível também ao mago e repreendeu-o por
ter encetado tal viagem; permitia-lhe, porém, continuar, reno
vando a condigáo anteriormente expressa.
Chegando a Moab, Balaá, apesar das insistencias contra
rias de Balaque, só proferiu os oráculos de bom presagio para
Israel que o Senhor Deus lhe inspirava.
A historia assim descrita pelo livro sagrado pede natu
ralmente algumas explicagóes para ser devidamente entendida.

2. A fala do asno...

1. Em primeiro lugar, note-se que Balaá era pagáo, nao


israelita. Exercia a profissao de mago ou adivinho, isto é, vi
vía perscrutando os sinais que a natureza ou artificios secre
tos lhe ofereciam (cf. Núm 23,3; 24,1), sinais mediante os
quais julgava perceber os designios da Divindade; em troca
de seus oráculos, recebia paga correspondente (cf. Núm 22,7),
consoante a praxe observada no Oriente.

O fato de que ele reverencien! o Deus de Israel, deixando-se guiar


pelas suas inspiracoes, nao quer dizer que habitualmente Lhe pres
tava culto nem mesmo que era monoteísta; apenas, tendo tido conhe-
cimento de quanto o Senhor íizera por seu povo desde a saída do
Egito, reconhecia a existencia e o poder respeitável do Deus de Is
rael, e nao queria incorrer no seu furor. Segundo a mentalidade co-
mum dos pagaos, ao lado de Javé, nao deixava de admitir as divin-
dades dos outros povos.

— 434 —
BALAÁ E O ASNO QUE FALOU

O Senhor Deus se dignou responder a Balaá, que, temeroso,


antes de falar, invocara a Divindade (o nrago ter-se-á dirigido
simplesmente ao Poder Divino competente para o esclarecer
no caso). Comunicou-lhe alguns dos seus designios a respeito
de Israel; fé-lo assim instrumento de auténticas revelagóes nos
oráculos que proferiu (cf. Núm 23, 7-10. 18-24; 24, 3-9. 15-24),
o que náó supóe necessáriamente santidade na respectiva cria
tura (cf. o caso de Caifaz em Jo 11,50-52).

2. Eis, porém, que a figura de Balaá, embora tenha dei-


xado vaticinios de ótimo agouro para Israel, passou para a
tradicáo judaica e crista com nota depreciativa; fícou sendo o
tipo do homem avarento, que ácima de Deus estima os seus
interésses próprios, materiais.

Por que isto? Será essa a germina face de Balaá?

O texto sagrado o explica. Embora já antes de partir para Moab


soubesse que Deus abengoara Israel (cf. 22,12), Balaá tudo fez para
nao perder os ricos premios que lhe prometía Balaque, caso amaldi-
goasse; as instancias do rei quis dar resposta favorável, esperando
que Deus mudasse os seus designios (22,18s). Chegando á térra de
Moab, nao excluiu a possibilidade de amaldicoar (22.38); nao tendo
recebido licenga para isto, nao ousou desobedecer para nao se expor
ao castigo divino conseqüente; mas, irritado, procurou desforra: ten-
tou mais tarde levar Israel á ruina, persuadindo os madianitas a
seduzir o povo para a apostasia religiosa (cf. 31,16). Em suma, as
gracas do Senhor foram em Balaá sufocadas pela cobica de vanta-
gens temporais e pela amargura de nao as íer alcancado.

3. É nesta perspectiva que se deve considerar o episodio


do jumento que falou ao mago... Já que o fenómeno foi oca
sionado pelas aparicóes de um anjo que dificultava a cami-
nhada, pergunta-se antes do mais: por que terá Deus, por um
emissário, impedido a viagem que Ele mesmo pouco antes au
torizara (cf. 22,20 e 22) ? O proceder se explica bem desde que
se admita que Balaá nao viajava com a disposigáo de ánimo
(docilidade as futuras comunicacóes divinas) que o Senhor lhe
incutira ao lhe permitir a partida; enquanto cavalgava, o adi-
vinho, refletindo consigo, terá tomado a resolugáo de amaldi
coar em qualquer caso, a fim de nao perder o salario devido
ás suas fadigas. Ora urna viagem com tal propósito nao podia
deixar de desagradar ao Senhor, que houve por bem chamar
Balaá á ordem. A repreensáo se efetuou com o concurso de
fenómenos sensíveis, aos quais o oriental, muito impressioná-
vel, se rende com mais facilidade...
Assim entra em cena no texto bíblico o asno que fala.
Nao faltaram os que lhe denegaram historicidade, consideran-

— 435 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 5

do a narrativa inteira como lenda, mito popular, sonho de


Balaá, visáo de alucinado, etc.. Tais sentengas, como em va
rios outros casos, sao ditadas pelo desojo de nao admitir o so
brenatural no curso dos acontecimentos.
Entre os que defendem a realidade histórica do episodio,
há quem julgue que o asno produziu realmente sons de lin-
guagem humana. Nao é esta, porém, a única explicagáo pos-
sível do texto sagrado. Conforme outros exegetas, o animal es-
pancado emitiu os sons queixosos que Deus Ihe dirigia; em
outros termos: ouvindo o asno, Balaá ouviu simultáneamente
a voz da consciéncia, voz de Deus no seu intimo, a' qual o cen-
surava amargamente por estar viajando com propósitos con
trarios ao Senhor ou por se haver deixado obcecar pela pers
pectiva do ouro... Assim o episodio nao viria a ser senáo o
relato vivo e dramático da luta que, no ánimo do adivinho em
viagem, se travou entre o temor de Deus, de um lado, e a pai-
xáo da avareza, do outro lado; sómente na consciéncia do mago
é que os berros desarticulados do animal tomaram o vulto e o
significado das palavras que o autor sagrado, visando maior
énfase, coloca diretamente na boca do jumento. A visáo e os
dizeres do anjo, sobrevindo a ésse estado de alma de Balaá,
teráo corroborado a voz da consciéncia e feito que o adivinho
se rendesse finalmente á admoestagáo do Senhor; em conse-
qüéncia, foi autorizado a prosseguir viagem.
Esta última interpretagáo é muito digna da Sabedoria e
da Providencia divinas. Nao se Ihe pode opor o texto de 2
Pdr 2,15s:

«Balaá, filho de Bosor,... amou o salario da iniqüidade, mas foi


repreendido por sua desobediencia: um animal mudo fez ouvir voz
humana para reprimir a demencia do profeta».

É o Cardeal Meignan quem observa :

«O apostólo íala conforme a opiniáo comum dos judeus; visa o


ensinamento moral, nao a realidade material dos fatos» (L'Ancien
Testament. De Molse á David, 1896, 216 n* 1).

O que acaba de ser exposto parece por em suficiente evi


dencia o sentido religioso e auténtico do episodio de Balaá, epi
sodio que é mais do que a historia de um animal que fala!...

— 436 —
O «ESCÁNDALO» DAS FILHAS DE LOTE

GERALDO (Belo Horizonte):

6) «O episodio bíblico (Gen 19,30-38) que refere as


unióos ilícitas das filhas de Lote, c escandaloso. Como pode fi
gurar no livro santo portador da Palavra de Deus?
A Biblia nao merecería ser depreciada por causa désse e
de semelhantes trechos escabrosos?»

Em vista de toda a clareza na explanagáo do texto cita


do, transcrevemo-lo na integra :

GEN 19, 30 «Lote partiu de Segar e veio estabelecer-se na


montanha com suas duas filhas, pois temia íicar era Segor. E habi-
tava numa caverna com suas duas filhas. 31 Á mais velha disse
entáo á mais jovem: 'Nosso pai está velho, e nao há homem algum
na regiáo com quem nos possamos casar, segundo o costume geral.
32 Vern, embriaguemos nosso pai e durmamos com ele, para que
possamos assegurar urna posteridade nossa1. 33 Elas fizeram, pois,
o seu pai beber vinho naquela noite. Entao a mais velha entrou e
dormiu com ele; ele, porém, nada notou, nem quando ela se apro-
ximcu déle, nem quando se levantou. 34 No dia seguinte, disse
ela á sua irmá mais nova: 'Dormi ontem com meu pai, fagamos-lhe
beber ainda urna vez esta noite, e dormirás com ele para nos asse-
gurarmos urna posteridade'. 35 Também naquela noite embriaga-
ram seu pai, e a mais nova dormiu com ele, sem que ele o perce-
besse, nem quando ela se aproximou, nem quando se levantou.
36 Assim as duas filhas de Lote conceberam de seu pai. 37 A mais
velha deu á luz um filho.'ao qual pos o nome de Moab; éste é o pai
dos Moa bitas, que vivem ainda hoje. 38 A mais jovem teve tam
bém um filho, ao qual chamou Ben-Ami; éste é o pai dos Amonitas,
que vivem ainda hoje».

Pergunta-se agora : como é possível que relato táo pouco


edificante tenha sido consignado pela Palavra de Deus?
É o que vamos ver, percorrendo duas maneiras de o en
tender, ambas consentaneas com a índole do texto bíblico
mesmo.

1. Feito real?... Escándalo ou edificacao?

A Sagrada Escritura, redigida por especial disposieáo de


Deus, é um sacramental, ou seja, um dom do Senhor destina
do a santificar os homens. Nao foi senáo com éste fim que o
Espirito Santo moveu os autores sagrados a escrever.
Como é entáo que a Sagrada Escritura realiza éste seu
papel ?

Poder-se-ia imaginar que a Biblia Sagrada edifique e santifique


os leitores narrando-lhes apenas atos de virtude e rasgos de heroísmo
religioso. É assim que muitas vézes a hagiografía moderna ou as
«Vidas da Santos» modernas visam edificar: selecionam episodios de

— 437 —
«PERGüNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 6

virtudes dos justos o os apresentam de modo a mostrar únicamente


um aspecto da vida do respectivo santo. O tipo de edificagáo assim
produzida nao deixa de ser um tanto artificial ou baseado em pressu-
postos mais ou menos irreais, pois inegávelmente os santos tiveram
urna natureza humana semelhante á dos demais mortais, e nessa
natureza íoram obrigados a lutar como os demais homens (cf. «P.R.»
45/1961, qu. 1); váo ou mesmo erróneo seria querer desconhecer
éste aspecto «humano» dos santos. Em conseqüéncia, é de outro
modo que as narrativas bíblicas visam suscitar a edilicagáo dos lei-
tores.

Em verdade, a historia sagrada nao deixa de descrever


as fallías e a miseria dos homens, mesmo daqueles que eram
mais chamados á intimidade com Deus (Abraáo, Jaco, Davi,
Salomáo...); nao as descreve, porém, para que o leitor se
detenha na consideragáo (meramente curiosa ou mesmo mór
bida) de tais episodios, como se éles tivessem significado por
si mesmos ou isoladamente, ou como se a Escritura quisesse
apenas narrar crónicas do povo de Israel. Nao; a Sagrada Es
critura os descreve para que o leitor compreenda melhor as
dimensóes da misericordia divina; o abismo da miseria huma
na assim proposto deve despertar a consciéncia da surpreen-
dcnte misericordia divina. Quanto mais o leitor, através das
narrativas bíblicas, percebe a indignidade do homem anterior
á Redengáo, tanto mais deve conceber... nao o escándalo por
causa dos feitos pecaminosos dos homens antigos (o escándalo
seria talvez urna especie de farisaísmo, no caso), mas a admi-
ragáo por causa da estupenda benignidade do Redentor, que
se dignou acudir aos homens em táo hedionda situagáo. Em
poucas palavras: os episodios escabrosos relatados no Antigo
Testamento devcm ser tidos apenas como fundo de cena,...
fundo de cena negro, que serve para fazer contraste e dar
todo o relevo á figura misericordiosa de Deus Salvador.

Ao se defrontar, pois. com as cenas de «barbarie» das Escrituras


antigás, nao se deixe o leitor prender ao aspecto repugnante que elas
podem ter em comum com as narrativas de panfletos modernos;
passe além da aparéncia superficial, e olhe «para dentro désses acon-
tecimentos» com o olhar de Deus; entáo também éles Ihe falaráo
de algo de muito sublime, pois, em última análise. Ihe evocaráo o
Deus invencivel em bondade, que se dignou dar remedio a tanta vi
leza da criatura; é, sim, conforme os teólogos, nos atos de compade-
cer-se da continua fraqueza humana e perdoar, que Deus por exce
lencia revela a sua Onipoténcia, a sua ilimitada Perfeicáo.

É á luz de tais idéias que há de ser considerado o episo


dio incestuoso das filhas de Lote, dado que tenha realmente
ocorrido na historia (veremos abaixo que bons exegetas jul-
gam nao se tratar de um relato de historia). O leitor pode
e deve reconhecer tudo que de hediondo há no pecado das

— 438 —
O «ESCÁNDALO» DAS FILHAS DE LOTE

duas jovens; nao detenha, porém, sua atengáo no acontecimen-


to como tal; sem demora, estimulado pelo relato mesmo, pas-
se a considerar a imensa bondade de Deus, que se dignou amar
os homens postos em tais condigóes de degradacáo moral.
Que o abismo da miseria evoque ¡mediatamente o abismo da
misericordia na mente do cristáo !
Apenas seria de notar que a narrativa faz de Lote urna
inconsciente vítima, ludibriada pela astucia de suas filhas; nao
se lhe deveria imputar culpa (alias, em 2 Pdr 2, 7s Lote é dito
«o justo»),
2. Narrativa artificial

Eis, porém, que exegetas recentes sao inclinados a crer


que o trecho de Gen 19,30-38 refere nao urna historia real,
mas o que se chama «urna narrativa etnológica», cujo signi
ficado seria o seguinte: os moabitas e os amonitas eram povos
vizinhos que, tendo-se oposto aos hebreus por ocasiáo do éxo
do, haviam incorrido no odio e no desprézo déstes (cf. Dt 23,3-7;
Jer 48,26; Ez 25,1-11). Ora, para exprimir a animosidade, ter-
-se-ia formado em Israel urna narrativa imaginaria: «Moab»
(mé-ab) podia, conforme a etimologia, significar «Ele é do
meu pai»; «Amon» (ben-ammi) seria «Filho do meu povo» ou,
segundo um termo paralelo árabe, também «Filho do meu pai».
Pois bem; estes nomes no decorrer do tempo haveriam sido
apresentados pela tradigáo israelita como os sinais de atos pe
caminosos que teriam dado origem aos dois povos: duas filhas
haveriam, sim, concebido de seu pai Lote, e gerado os varóes
a quem teriam imposto os nomes adequados «Ele é do meu
pai» (Moab) e «Filho do meu pai» (Amon). Déstes varóes
eram ditas proceder as duas nacóes inimigas ferrenhas de Is
rael, as quais assim ficavam bem caracterizadas como oriun
das do pecado, impuras, gente com a qual nao se podia ter
amizade. A narrativa, portante, exprimiría urna «historia ima
ginada para depreciar amonitas e moabitas». Eis como o Pe.
Lagrange resume as razóes que o levam a adotar esta ex-
plicacáo :

«O autor certamente nao acreditava na historrcidade do episo


dio ... quando narrava a origem incestuosa de Moab e Amon. A iro
nía é táo acerba, os trocadilhos tao artificiáis e cruéis que a tradigáo
sabia multo bem como os devia entender; S. Jerónimo dizia dos ra
binos do seu tempo, sem contra éles protestar: 'Assinalaram o tre
cho com pontinhos, para Indicar que nao merece fé\ Abstracto fei-
ta da finalidade do pontilhado, o sentido exegético é muito exato:
urna sátira nao é hlstória> (La méthode historique 207).

Com Lagrange concordam Clamer, La Sainte Blble I (Paris 1953)


297; J. Chalne, Le livre de la Genése (Paris 1949) 253.

— 439 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 7

A interpretagáo assim concebida nao é incompatível com


a inspiragáo do texto sagrado. Com efeito, o hagiógrafo pode
ter consignado no livro do Génesis tradigóes populares cujo
significado era conhecido entre os judeus; inserindo o episodio
de Gen 19,30-37, o autor nao fazia senáo exprimir, nos ter
mos mesmos em que isto se costumava fazer em Israel, a ani-
mosidade existente entre o seu povo e os adversarios do seu
povo. Nao quería de modo nenhum apresentar como históricos
os tragos que nao eram tidos como tais pela gente que os
referia.
Entre as duas interpretagóes propostas, escolha o leitor.
Em qualquer caso, porém, saiba que o episodio nao deve ser
considerado em si mesmo, mas a luz de urna finalidade que
nada tem de escandaloso, antes mesmo (conforme a primeira
interpretagáo) é profundamente edificante !

IV. MORAL

M.P.N. (Ponte Nova):

7) «As solteironas sao geralmente desprezadas pela so-


ciedade.
Será que também a Igrcja as considera como pessoas fra-
cassadas na vida, pessoas que se alhearam aos designios de
Dcus ?»

A questáo ácima formulada é assaz freqüente. Ocorre


nao raro na sociedade o tipo da «tia» solteirona ou da celiba-
tária «amiga de casa», sempre prontas a «tapar buraco» como
se nao tivessem consistencia própria. As estatísticas dáo a ver
que em alguns países da Europa cérea de 10 % da populacáo
feminina se vé obrigada a permanecer no celibato involunta
rio, pois o número de mulheres ai excede o dos yaróes; estes
sao muito afetados tanto pela mortandade profissional (desas
tres e morte ocorrentes no trabalho duro de cada dia) como
pela hecatombe das guerras que periódicamente devastam os
povos; por conseguinte, em cada geragáo certo número de don-
zelas passa inevitávelmente a constituir um estado própno,
que é o das celibatárias forgadas, também ditas «solteironas».
A opiniao comum habituou-se a menosprezar um pouco
tal categoría de pessoas.

Entre outros fatóres. contribuiu para isto o escritor francés H.


Balzac (t 1850), que em famoso romance descreveu a solteirona
(«vieille filie») condenada á ociosidade, condenada também a nutrir
em si urna mentalidade estreita e tacanha (por falta de cultura e
por efeito de certas convenc5es sociais; no sécula passado diflcilmen-

— 440 —
O PROBLEMA DAS SOLTEIRONAS

te se entendía que a mulher saísse úe casa para estudar ou traba-


Ihar...); as «damas de chapéu verde», a «tia Pittypat», Miss La
Creevy, a miniaturista de Dickens sao figuras típicas de solteironas
na literatura do século passado.

Será, porém, irreformável ésse juizo pejorativo? Nao te-


ria o Cristianismo algo de próprio a dizer sobre o assunto?.
É o que vamos focalizar abaixo, propondo primeiramente
alguns principios que ajudam a conceituar devidamente o ce
libato forcado; a seguir, citaremos alguns depoimentos forne-
cidos por pessoas celibatárias a propósito do seu estado. Em
conclusáo, verificar-se-á que o conceito cristáo de celibato mui-
to difere do respectivo conceito mundano.

Será oportuno lembrar que temos em vista aqui nao o celibato


espontáneamente abracado por motivo religioso (no sacerdocio ou
na profissáo religiosa de um convento), mas o celibato imposto pe
las circunstancias de vida, como que á revelia da pessoa interessada.

1. O celibato a luz do Cristianismo

1. O cristáo nao considera o estado celibatário (em par


ticular, o da solteirona) em termos pejorativos; antes, vé no
celibato um possível ideal de vida.
Possivel ideal?!-... Talvez porque tenha o celibato na con-
ta de estupenda ocasiáo de renuncia e de contradicho á na-
tureza ?
Ñáo. Nenhum ideal de vida crista pode consistir apenas
em renuncia ou em elementos negativos. O homem foi feito
para amar; nao há quem nao experimente a necessidade espon
tánea de amar; principalmente o cristáo é destinado a amar...
Sem exercício do amor nao há realizagáo da personalidade
humana.
Ora geralmente a Providencia Divina chama os homens
a praticar o amor na vida conjugal; é esta a vocagáo mais co-
mum; amando-se reciprocamente, o esposo e a espesa amam
a Deus e ao próximo, e atingem a perfeigáo que lhes compete.
Acontece, porém, que a algumas pessoas a Providencia
nao dá a oportunidade de se casar; vém a ser entáo os celiba-
tários e as solteironas... A ésses deve-se dizer que Deus tam-
bém chama a amar — a amar o próximo e o próprio Deus;
apenas a modalidade do amor difere: amaráo de maneira mais
desembaragada, menos vinculada... E, amando dessa forma,
realizaráo plenamente a sua personalidade.
É por isto que, para o cristáo, o celibato forgado vem a
ser urna vocagáo (isto é, um chamado da parte de Deus),
como o matrimonio e a virgindade sao vocagóes. E «vocagáo»
quer dizer «missáo, tarefa a cumprir», sempre portante algo

— 441 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 7

de positivo e grandioso. É o que o Sto. Padre o Papa Pió XII


lembrava numa alocucáo proferida aos 21 de outubro de 1945:
«A donzela crista que, apesar dos seus esforcos, íica sem se ca
sar, mas eré firmemente na Providencia do Pai Celeste, reconhece
em meio ás vicissitudes da vid.i a voz do Mestre (cf. Jo 11, 28).
Ela responde, renunciando ao sonho da sua adolescencia e da sua ju-
ventude: ter um companheiro íiel na vida, constituir um lar. E, di
ante da impossibilidade do casamento, ela entrevé sua vocacSo; en
táo... consagra-se inteiramente as múltiplas obras de beneficencia».

2. Destas consideracóes se depreende que o celibato sem


Deus e sem religiáo pode realmente significar um revez na
vida: para quem só estima as criaturas e nao valoriza o
Criador, a falta daquelas é decisiva, deixando um vazio in-
substituível. Á luz de Deus, porém, o celibato tem significado
grandioso, pois permite mais pura e desimpedida convergencia
do amor do celibatário para Deus e para o próximo. O celiba-
tário (em particular, a solteirona) deve encher a sua vida,
entregando-se, por amor a Deus, a obras de servigo ao próxi
mo; entáo certamente sua existencia nao poderá ser tida como
algo de frustrado perante Deus e os homens.

Seja licito repetir: nao tendo a xesponsabilidade de um lar, o ce


libatário (de qualquer dos dois sexos) poderá mais fácilmente esco-
Iher tal ou tal tipo de amor ou de dedicacao a Deus e ao próximo,
de acordó com os seus predicados pessoais; ser-lhe-á possível entre-
gar-se com plenitude a essa tarefa, ao passo que o varáo e a mulher
casados se veráo sempre cerceados pelas obrigacóes contraídas para
com os seus no lar: ao exercerem urna atividade social, ver-se-ao
talvez acometidos pelo escrúpulo de estar lesando os direitos de ou-
tras pessoas (consorte e filhos) que poderiam pleitear em primeiro
lugar os seus cuidados e a sua dedicagáo.

Note-se mesmo que a vida moderna, tornandOrse cada vez


mais complexa e absorvente, parece exigir a presenca de pes
soas inteiramente consagradas a certas tarefas, tarefas que,
por assim dizer, «monopolizan!» seus agentes. Muitas dessas
tarefas sao mesmo comumente consideradas como setores de
agáo feminina por excelencia; assim, por exemplo, a enferma-
gem, a puericultura, a assisténcia social, certas formas de ma
gisterio e educacáo...; ésses afazeres requerem, da parte de
quem os exerce, disponibilidade de corpo e espirito tal que urna
esposa ou máe de familia, por mais dedicada que deseje ser,
difícilmente pode apresentar; a mulher casada estará sempre
dividida, ficando sujeita em primeiro lugar ás vicissitudes do
próprio lar (o mesmo se diga do varáo casado).

Urna analogía talvez possa ilustrar tal observacáo: as sociedades


das abelhas e das íormigas exigem, para o desempenho de certas

— 442 —
O PROBLEMA DAS SOLTEIRONAS

tarefas da colméia e do íormigueiro, a presenea de operarías cha


madas «neutras». Ora essa «neutralidades rica de sentido e rendimen-
tos nao seria, na socledade humana, a parte das celibatárias au sol-
teironas? — A analogía é um tanto rude, mas valiosa, por .ierivar-se
da natureza tal como o Criador a fez.

3. A fim de que o celibato nao se desvirtué, mas venha


realmente a ser um valor positivo e grandioso, faz-se mister
chamar a atengáo para dois perigos que constantemente o
ameagam :

a) o libertinismo. A liberdade de dispor..., de dispor


do tempo, do salario, das posses, das atívidades pode fácilmen
te degenerar em instrumento de abusos... Com outras pala-
vras: a isengáo de qualquer controle por parte de superiores
ou de consorte muito pode favorecer, no celibatário, o surto
e o desenvolvimento de tendencias anómalas ou de costumes
singulares, principalmente no tocante ao regime de vida: ho
rarios fantasistas, excessos no trabalho ou no recreio, inconti
nencia sao males que aos poucos podem desequilibrar e arrui
nar uma vida por si muito promissora.

Está claro que qualquer concessáo íeita nesse plano equivaleria á


perversáo do ideal. É preciso que o celibatário estime e cultive certa
solidáo; guarde alguma reserva em relacáo as criaturas. Mais con
cretamente: é preciso que tenha sua «clausura», seu aposento em
que após um dia inteiro de trabalho, se encontré durante horas no-
turñas num íeliz e fecundo «só-a-só» com Deus. Essa reserva e In-
dispensável penhor de éxito.

De outro lado, faz-se mister tomar cuidado para que a


reserva e o isolamento nao degenerem em

b) egoísmo e egocentrismo. Dispensado de se preocupar


com consorte e prole, o celibatário pode tender a fazer de seu
próprio «eu» o ponto de referencia de suas atengóes e ativi-
dades ou mesmo o criterio para aferir todos os valores. Pode
também ser assaltado pelo desejo de introversáo ou de cons
tante análise de si mesmo, com esquecimento dos bens objeti
vos que merecem primariamente a atengáo de todo homem.
A ausencia da crítica de um companheiro ou de uma compa-
nheira facilita a complacencia da pessoa em si mesma, em seus
alvitres e empreendimentos. Um orgulho mórbido, desprezador
de todos e de tudo, pode assim fácilmente irtstalar-se no íntimo
do individuo.
Cedendo a tais defeitos, é evidente que o celibatário se esteriliza
espiritualmente, definha e morre na sua miseria. Ninguém é íeito
para se consumar em si mesmo. Dizia mesmo o Senhor Jesús: «Ha

— 443 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 7

mais felicidade em dar do que em receber» (At 20,35). Sim; é dando


(pelo fato de poder dar mais ou de estar mais disponível) que o ce-
libatário se enriquece.

Justamente para evitar o egocentrismo e as singularida


des, que depauperam a personalidade, recomenda-se as pessoas
«solteironas», procurem ter, além das inevitáveis obrigagóes de
«ganha-páo» (que geralmente contribuem para «materializar»
e concentrar o sujeito em si mesmo), urna tarefa espontánea
mente abragada; a adogáo de urna crianga, por exemplo, cons
tituí ótimo alvitre para nao poucas solteironas. Também se ve
rifica ser útil as celibatárias habitarem juntas — amiga com
amiga em pequeña mansáo ou mais de duas numa casa maior
destinada exclusivamente a tais pessoas. Será necessário, po-
rém, que, mesmo compartilhando o teto comum, as referidas
pessoas evitem qualquer promiscuidade ñas relagóes recíprocas.

Em resumo: um misto de solidao e de convivio social, ou


melhor, de acao social, fecunda no plano da beneficencia, re-
quer-se para que o celibato dé os frutos devidos («nao é bom
que o hornera fique so», diz o livro do Génesis 2, 18; o mesmo
se deve afirmar a propósito da mulher). A solidáo servirá de
muralha em cujo recinto a pessoa se reabastecerá espiritual-
mente todos os días a fim de poder exercer sem desvirtuamen-
to a sua agáo social; é na fé e em Deus que o celibatário tem
que procurar o esteio da sua vida.

2. Depoimentos colhidos ao vivo

A escritora francesa Céline Lhotte efetuou um inquérito


junto a solteironas comerciarías e bancárias da Franga, pro
curando com objetividade averiguar como pensavam a respeito
do estado de vida que a Providencia lhes impusera. Os princi
páis resultados das indagagóes, certamente muito interessantes,
foram publicados na obra «Le célibat est-il un échec?» par
Carré, Folliet..., obra da qual extraimos os testemunhos
abáixo :
Escreve Céline Lhotte :

1) «Quis interrogar essa solteirona de cinqüenta anos que me


vende sapaios nn loja há quase um quarto de século. Semprt admi-
rei a igualdade de seu humor e o seu sorriso, que nao é o sornso
convencional dos comerciantes, mas um sorriso simultáneamente dis
creto e amigo, que reconhece pessoalmentc cada um dos seus inter
locutores. ..
Anita (assim se chamava ela) admitiu que o seu testemunho
me poderia ajudar, e aceitón de antemao a indiscricáo do meu in
terrogatorio. ■ • • •

— 444 —
O PROBLEMA DAS SOLTEIRONAS

— 'Anita, outrora desejou easar-se?


— Sim; sempre o desejei.
- Por causa do marido? Ou por causa dos íllhos?
Por causa do companheiro em quem eu me poderia apolar;
também por causa dos íilhos e, imagine, nao menos por causa dos
netinhos! Meu olhar ia longe!
— E teve ocasides de se casar?
— Sim; varias. Diria mesmo que até agora nao deixam de se
apresentar... ainda recentemente!
— E entáo?
— Nenhuma dessas ocasioes correspondía ao que eu esperava...
Creio que (e, isto, será preciso que o diga no seu inquérito) as don-
zelas serias sao as que mais difícilmente se casam...
— Entáo vocé um dia renunciou de vez ao casamento ou aos
pouquinhos íoi removendo do seu espirito essa idéia?
— Isso nao se faz bruscamente... Em todo caso, nao me cau-
sou o mínimo desequilibrio... Entrego-me ao trabalho, de todo o co-
racáo.
É o que se percebe pelo modo mesmo como vocé recebe cada
urna de suas clientes. Vender calcados, porém, isso nao basta para
encher urna vida!
— Compreendi-o sem demora. Houve um periodo, por volta dos
meus trinta anos do idade, em que me parecía que nao agüentaria
essa vida; fora da loja, eu me aborrecía, nao tinha ideal algum. A
minha fé pouco me ajudava, porque eu nao a praticava. Depois,
reagi: obriguei-me a ler, a salr, a receber amigas e a ir ter com
elas; já assim as coisas iam melhor, mas ainda nao estavam total
mente nos eixos. Agora dedico regularmente algumas horas da se
mana a pessoas idosas, que nao costumam ser visitadas; mantenho
sempre um velhinho ou urna velhinha no hospital; em suma, nao
tenho mais tempo para me ocupar comigo.
Vocé talvez me diga que me quero engañar a mim mesma. Nao
é assim; veja, eu lhe falava, há pouco, de urna ocasiáo recente...
— Sím.
— Era um viúvo, sem filhos, um homem bom, em toda a accepgSo
da palavra. Ganhava um pouco mais do que eu. nao multo. Para
entreter o nosso lar, eu deveria abandonar o meu trabalho. Ora con-
fesso que esta perspectiva nem chegou a me tentar, com grande sur-
présa para os amigos que haviam provocado o encontró, e mesmo,
creio, para o próprio senhor interessado.
Em resumo: embora tenha desejado a existencia da espdsa
e da máe de familia, vocé fez de urna vida de solteirona involuntaria
urna vida relativamente feliz?
Urna vida que seria feliz por completo se a sociedade a com-
preendesse melhor. Mesmo em nosso ambiente de trabalho nao nos
dispensam o mesmo trato que ás mulheres casadas. De nos, usam
e abusam; sabem que precisamos de trabalhar a qualquer preco,
visto que, por tras de nos, nao há quem nos sustente. Exigem de
nos esforcos e rendimentos que nao se pedem a outros.
Contudo nao é de nos que, na ma'iorla dos casos, os patrñes tém
que se queixar. Nosso trabalho é infinitamente mais regular que o
dos outros, pois nos sentimos mais interessadas por ele'» (ob. cit.
134-36).

2) «Genoveva tem sessenta e cinco anos de idade. N&o é oriunda


da cidade. Sua vida foi ardua, mas também humilde; fica multo sur-

— 445 —
*PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961, qu. 7

presa... por ver que a sua opiniao s6bre o celibato vai ser levada em
conta.
Dissc clu ¡
'As solteironas do meu tempo, isto é, da época em que eu tl-
nha vinte anos, nao se pareciam com as de hoje, mas os nossos co-
racoes batiam do mesmo modo, eu lho asseguro!
— Vocé entáo desejava casar-se?
— Por certo!
Nao teve ocasiáo para isso?
— Tive-a em 1920, com um rapaz que muito me agradava...
Um día foi-se sem dar explicacóes. A seguir, escreveu ao Sr. Páro-
co que o casamento nao era possivel. Sofri grande choque com
isso Depois, reconheci que aquilo que a Providencia dispñe, é sem-
pre bom. Quantas vézes já agradecí ao Bom Deus nao ter file per
mitido ésse casamento!
Por que? Vocé, sem dúvida, teria sido feliz!
— Parece-me que é preciso, naja celibatários íora dos conventos,
celibatários que aceitem o seu celibato pata terem o grande prazer
de prestar servico a outros.
Ésses servicos, de que modo vocé os prestou?
— Sonhei ser enfermeira, mas íaltava-me a formagáo necessá-
ria Na minha aldeia, tornei-me a benévola eníermeira de todos. Se-
puítava os mortos; até os anticlericais aceitavam as minhas oracSes
proíeridas em alta voz durante os velorios fúnebres.
— Levava vida bem austera, a quanto me parece!
Nao! Para mim, solteirona que nao é rica e nao pode dar
multa coisa, a alegría consistía em que..., ao deixar os doentes, eu
via o pessoal da casa a sorrir e a dizer-me: 'Voltarás, nao é verda-
de?'. Todos na aldeia me tratavam por tu.

— E que mais?
-- Enquanto pude trabalhei. Agora para mim a vida é triste,
pois quase nao posso mais ser útil... Em todo caso, sempre pense!
que urna solteirona nao deve ser triste, nem também rígida demais.
— Em suma, vocé nao lamenta o seu género de vida?
— Nao por certo. Nao permanecí celibátária em conseqüéncla
de um desapontamento. Eu era feliz por poder prestar servico!» (ob.
cit. 139-141).

3) «Alissa bancária, tem quarenta e cinco anos. Ainda é bela;


aos vinte anos, deve ter sido encantadora... Eis urna pessoa em
cujo dedo espontáneamente se procuraría ver a alianca do noivado
ou das nupcias.
— Por que nao se casou?
Por urna serie de circunstancias.
Mas ao menos desejou casar-se?
— Sem dúvida. „,. _
— Por causa do marido ou por causa dos fimos?
— Principalmente por causa dos filhos. Nao fóssem os princi
pios que aprendí em juventude..., em certa época eu teria mesmo
aceito ser máe sem ser esposa.
Mas entáo como se explica o seu celibato?
— Diziam-me, com certo exagero, que eu era bela. Em conse-
qüéncia alimentava pretensoes; até os vinte e cinco anos íiz-me de
dilícil: tal pretendente era gordo demais, tal outro nao me parecía
bastante iaceteiro; vocé compreende!... Ademáis, eu era feliz em
casa de meus pais. A seguir...

— 446 —
O PROBLEMA DAS SOLTEIRONAS

A seguir... ■
— Minha máe caiu doente; quis tratá-la; ficou paralítica duran
te anos. Depois, meu pai foi operado; minhas irmás, entrementes, se
haviam casado; parecia-me entáo quase impossível, abandonar a
casa, deixando os genitores a sos.
— E, durante todo ésse tempo, nao lhe íazia falta um marido?
Nao tanto; cada vez menos. O que observo em torno de mim,
teva-me freqüentemente a apreciar a minha liberdade.
— A solidáo nao lhe é pesada?
Sim; quando a noitinha volta; precisaría entáo... de urna ami-
zade, nao tanto de um marido.
... Se tivesse recursos para educar devidamente, eu teria ten
tado adotar urna crianca. Preciso de me interessar ativamente pelos
outros. No escritorio, todos o sabem. Urna das nossas colegas foi re-
centemente para o sanatorio. Fui eu que me ocupei com seus filhos...
Há urna caixa de costura que, de andnima, veio a yer 'a caixa de
Alissa'. 'Alissa, dizem-me, rasguei a orla do meu manto. — Alissa,
estou para perder éste botáo já meio-sdlto'. Para brincar comigo, na
semana de Páscoa deram-me, junto com os ovos de chocolate, um
ovo de madeira, do tipo daqueles que nossas avós usavam, quando
serziam meias... Os servicinhos de boa vizinha, ninguém os pode
esperar de mulheres casadas; estas vivem demais em circulo fecha
do: marido, filhos, filhos, marido.
— Ésses servigos miúdos, vocé experimenta alegría em pres-
tá-los?
— Sim...

— Frente as suas irmás casadas e as suas cunhadas, nao senté


complexo de inferioridade?
— Ah, de modo nenhum! Nao me julgo em absoluto diminuida
pelo celibato; os que me cercam, percebem-no bem. É sómente quan
do nos damos por vencidos que os outros também nos julgam der
rotados.

— É, quando vier a idade da aposentadoria, que tem voeé em


vista fazer?
— Gestaría entáo de ocupar-me com criancas ou anciaos. Tenho
prazer em derramar alegría, tenho prazer em proteger o próximo'»
(ob. cit. 141-143).
Estes tres testemunhos, aos quais muitos outros seme-
lhantes fazem eco, sao suficientes para se preconizar hoje em
dia urna revisáo do conceito pessimista de vida solteirona. O
varáo e a mulher que, por fórca das circunstancias, permane-
cam celibatários, de modo nenhum sao pessoas frustradas na
vida e inúteis para a sociedade. Nao se julguem tais, nem per-
mitam que outros os tenham nesse conceito. Para dissipar a
triste idéia que a sociedade formula a seu propósito, facam do
seu estado de vida a ocasiáo de amar,... de amar mais inten
samente a Deus e ao próximo (no casamento, amariam tam
bém, mas amariam talvez dentro de um recinto mais estreito).
Assim procedendo, o celibatário e a solteirona nobilitar-se-áo,
construiráo o seu ambiente e seráo felizes, pois, na verdade,
«há mais felicidade em dar do que em receber» (At 20,35).

— 447 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 46/1961

CORRESPONDENCIA MIÚDA
EVAMARÍA : Sobre a salvag&o dos que vivem fora da Igreja (pa
gaos, herejes, cismáticos...), encontrará resposta em "P.R." 1/1958,
qu. 7. No fascículo 47 (novembro de 1961) de "P.R." sairá urna eluci-
dagüo do axioma "Fora da Igreja nao há salvagáo".

JOSÉ VICENTE (Rio de Janeiro): Há muito que recebemos súa


estimada cartinha, á qual nao respondemos até hoje por ignorar o en
derezo.

MANOEL ROSA (Porto Alegre): Temos sua missiva em máos.


Chegou-nos tarde demais para que pudéssemos atingir o amigo no en-
derégo indicado. Queira fomecer o enderégo atual, para possibilitar
resposta.

Aos nossos assinantes e devedores cujas contas com "P.R." estáo em


atraso, rogamos o favor de as por em dia a fim de que, por sua vez, a
administradlo de "P.R." possa satisfazer devidamente a seus compro-
missos. Gratos pela colaboragao.

D. ESTÉVAO BETTENCOURT O. S. B.

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Aos nossos amigos pedimos a bondade de aceitar a nova lista de


pregos de "P. R.", que entrou em vigor a 1' de agosto de 1961, ditada
pela elevagáo peral do custo de vida:

Assinatura anual de 1961 Cr$ 300,00


Assinatura anual de 1961 (via aérea) Cr$ 300,00 mais Cr$ 360,00 de porto
Número avulso de 1961 Cr$ 30,00
Número de ano atrasado Cr$ 35,00
Colegáo encadernada de 1957 Cr$ 400,00
Col. encadernada de 1958, 1959, 1960 Cr$ 550,00 (cada urna)

"PLANO PARA LER A SAGRADA ESCRITURA". Consta de fichas


que distribuem os diversos livros da Biblia (á razáo de tres capítulos por
dia aproximadamente) para a leitura cotidiana da Sagrada Escritura,
de modo que em um ano esteja assegurada a leitura de toda a Biblia.
Prego : Cr$ 50,00. Os pedidos podem ser enviados a qualquer dos dois
enderegos abaixo.

REDAQAO ADMINISTRAC/AO
Caixa Postal 2666 K. Real Grandeza, 108 — Botafogo
Rio de Janeiro Tel. 26-1822 — Rio de Janeiro

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