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"Questão Social": Particularidades no Brasil
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"Questão Social": Particularidades no Brasil

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Os fenômenos constitutivos da chamada 'Questão Social' se reproduzem no tempo presente com uma intensidade e volume desconhecidos em outras épocas históricas: são inquestionáveis as diversas formas de expressão da desigualdade social que estão longe de se reduzir à pobreza. Para desvendá-las, este livro mergulha nos fundamentos da crítica da economia política, tratando a 'questão social' como parte da dinâmica capitalista e das lutas sociais contra a exploração do trabalho.
LanguagePortuguês
Release dateAug 30, 2017
ISBN9788524925610
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    "Questão Social" - Josiane Soares Santos

    (2007).

    Capítulo 1

    Elementos para entender

    a concepção e a gênese da

    questão social

    Para alcançar o objetivo a que se destina essa publicação é indispensável tecer algumas considerações a respeito do que se está designando como questão social. Essa tarefa se fará sob dois ângulos necessariamente associados, mas nem por isso idênticos. Trata-se dos planos histórico e conceitual que se cruzam ao longo dessa breve exposição mostrando, a partir de um determinado ponto de vista, o surgimento da chamada questão social. Para ser mais clara: este capítulo aborda alguns dos aspectos mais significativos da questão social em sua gênese, considerando-se uma determinada concepção sobre o processo de sua produção e reprodução, baseada nos aportes da teoria social de Marx. Embora não seja homogênea a concepção de questão social entre os assistentes sociais, boa parte dos autores filiados à tradição marxista considera que ela

    […] não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção mais além da caridade e da repressão. (Iamamoto; Carvalho, 1995, p. 77)

    Iamamoto (2001) e Netto (2001) ressaltam, porém, que a expressão questão social é estranha ao universo marxiano embora não interditem, sob nenhuma hipótese, a possibilidade de sua análise nesta ótica. Ao contrário, sabe-se que a autora, desde seus escritos de 1982, notabilizou esse conceito entre os assistentes sociais, conferindo-lhe densidade a partir dos elementos da crítica da economia política contida em O capital.¹

    Se a compreensão das determinações inerentes ao debate da questão social nessa direção é impensável, portanto, sem os elementos da crítica da economia política marxiana, ela tem seu núcleo essencialmente fundado pela lei geral da acumulação capitalista. Isso significa dizer que a gênese da questão social é explicada pelo processo de acumulação ou reprodução ampliada do capital. Esse processo remete à incorporação permanente de inovações tecnológicas pelos capitalistas, tendo em vista o aumento da produtividade do trabalho social e a diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário à produção de mercadorias. Essa tendência, por sua vez, produz um movimento simultâneo de aumento do capital constante e diminuição do capital variável, que corresponde à força de trabalho.

    Essa redução relativa da parte variável do capital, acelerada com o aumento do capital global, e que é mais rápida do que este aumento, assume, por outro lado, a aparência de um crescimento absoluto da população trabalhadora muito mais rápido que o do capital variável ou dos meios de ocupação dessa população. Mas a verdade é que a acumulação capitalista sempre produz, e na proporção de sua energia e de sua extensão, uma população trabalhadora supérflua relativamente, isto é, que ultrapassa as necessidades médias de expansão do capital, tornando-se, desse modo, excedente. (Marx, 2001, p. 733)

    Antes de prosseguir uma advertência, originalmente formulada por Netto e Braz (2006), que é absolutamente pertinente nesse caso: não é simplesmente a incorporação do progresso técnico a geradora da população trabalhadora excedente, ou desempregada, acima referida. Isso poderia levar à errônea interpretação de que a incorporação de novas tecnologias à produção seja necessariamente negativa por substituir o trabalho humano. Veremos adiante como os próprios trabalhadores foram levados, num determinado momento histórico, a acreditar nessa falsa premissa. Na verdade, o progresso técnico é fator de extrema importância exatamente por proporcionar a diminuição da quantidade de horas de trabalho necessário por dia. Vejam, no entanto, que não é esse o objetivo do processo capitalista de produção, pois este não se satisfaz com o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir as respostas às necessidades humanas, realizando sempre para além deste, a busca da valorização do capital, ou seja, a obtenção de mais-valia.

    Comparando o processo de produzir valor com o de produzir mais-valia, veremos que o segundo só difere do primeiro por se prolongar além de certo ponto. O processo de produzir valor simplesmente dura até o ponto em que o valor da força de trabalho pago pelo capital é substituído por um equivalente. Ultrapassando esse ponto, o processo de produzir valor torna-se processo de produzir mais-valia (valor excedente). (Marx, 2001, p. 228)

    O desenvolvimento tecnológico se torna determinante do desemprego, portanto, em face de sua utilização no interior das leis de reprodução do capitalismo onde a produção de respostas às necessidades humanas está inteiramente subordinada ao processo de valorização do capital. Ou seja, quem permanece trabalhando é mais explorado na intensidade de horas trabalhadas e torna dispensáveis outros tantos trabalhadores. Em outra lógica — que não fosse a do processo de valorização — o progresso tecnológico poderia beneficiar a todos que permaneceriam trabalhando, porém num tempo que tenderia a encurtar, dado o aumento da produtividade por ele proporcionado.

    Desse modo, não preocupa aos capitalistas que o tempo de trabalho socialmente necessário seja diminuído em função de que os homens tenham tempo para usufruir de outras dimensões da vida social. Preocupa a eles que a diminuição deste tempo de trabalho socialmente necessário seja, por um lado, uma forma de maximizar a extração de trabalho não pago dos trabalhadores e, por outro, uma forma de produzir o chamado exército industrial de reserva como aquele contingente de trabalhadores excedentes, aptos ao trabalho, mas condenados à ociosidade socialmente forçada […] acirrando a concorrência entre os trabalhadores — a oferta e a procura — com evidente interferência na regulação dos salários (Iamamoto, 2001, p. 14). Assim,

    Cada dia se torna mais claro que as condições de produção em que se move a burguesia não têm caráter unitário, simples, mas dúplice; que nas mesmas condições em que se produz a riqueza, produz-se também a miséria; que nas mesmas condições em que se processa o desenvolvimento das forças produtivas, desenvolve-se também uma força repressiva; que essas condições só geram a riqueza burguesa, isto é a riqueza da classe burguesa, com a destruição continuada de membros que integram essa classe e com a formação de um proletariado cada vez maior. (Marx, 2001, p. 749; grifos meus)

    Esses processos se intensificam na mesma medida em que se desenvolve o modo de produção especificamente capitalista, ou seja, aquele que, sob o formato da grande indústria, aprofunda a vigência e capilaridade de suas leis fazendo emergir, no século XIX, o pauperismo. Tem-se então o marco histórico do conjunto de fenômenos que, incluindo o pauperismo, mas também se reproduzindo para além dele, se considera aqui como gênese da questão social. De acordo com Netto (2001, p. 42-43),

    se não era inédita a desigualdade entre as várias camadas sociais, se vinha muito de longe a polarização entre os ricos e os pobres, se era antiquíssima a diferente apropriação e fruição dos bens sociais, era radicalmente nova a dinâmica da pobreza que então se generalizava. Pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas. […] Se, nas formas de sociedade precedentes à sociedade burguesa, a pobreza estava ligada a um quadro geral de escassez ([…] determinado pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais e sociais), agora ela se mostrava conectada a um quadro geral tendente a reduzir com força a situação da escassez. Numa palavra, a pobreza acentuada e generalizada no primeiro terço do século XIX — o pauperismo — aparecia como nova precisamente porque ela se produzia pelas mesmas condições que propiciavam os supostos, no plano imediato, da sua redução, e, no limite, da sua supressão.

    É importante destacar aqui duas questões. A primeira delas é que não se está designando como questão social a desigualdade e a pobreza indistintamente e sim aquelas que têm sua existência fundada pelo modo de produção capitalista. Isso tem por suposto o reconhecimento de outras formas de ser (Marx) desses fenômenos que antecedem o capitalismo. No escravismo e no sistema feudal, existiam diferenciações entre classes, propriedade privada e exploração do trabalho² e, portanto, reproduzia-se a desigualdade. A diferença entre esses modos de produção e o capitalismo está em que, neste último, sua existência é única e socialmente produzida, pois o desenvolvimento das forças produtivas operado nos seus marcos é capaz de reduzir, significativamente, a dependência e determinação de fatores naturais na produção da escassez. Sobre isso, Marx ([s.d.], p. 25) escreve, em 1848,

    A burguesia, em seu domínio de classe, apenas secular, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais que todas as gerações passadas em conjunto. A subjugação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química à indústria e à agricultura, a navegação a vapor, as estradas de ferro, o telégrafo elétrico, a exploração de continentes inteiros, a canalização dos rios, populações inteiras brotando na terra como por encanto — que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social?

    Dito de outro modo: a pobreza existente antes do capitalismo era determinada socialmente pela divisão entre classes, mas se devia, principalmente, ao baixo desenvolvimento das forças produtivas que deixavam, por exemplo, a produção agrícola inteiramente vulnerável às pragas que acometiam as plantações ou outras catástrofes naturais, produtoras de longos períodos de fome e epidemias nos países do velho mundo.

    Isso não significa dizer, porém, que no século XIX, em pleno desenvolvimento da Revolução Industrial, não ocorressem mais esses fenômenos. Hobsbawm nos fala da Grande Fome Irlandesa de 1847, como parte da Grande Depressão ocorrida em toda a Europa Ocidental ante o fracasso na colheita de batatas. O autor afirma que

    ninguém sabe, ou jamais saberá precisamente, o custo humano [desta] que foi, de longe, a maior catástrofe humana da história europeia no período que focalizamos [1789-1848]. Estimativas grosseiras permitem supor que perto de 1 milhão de pessoas morreu de fome e que outro tanto emigrou da ilha entre 1846 e 1851. (2005, p. 232)

    Sob um ângulo diferente, mas relacionado com o anterior, não é possível ignorar que mesmo com as precárias condições de vida após a Primeira Revolução Industrial as taxas de mortalidade vinham caindo desde o século XVIII. Dados de registro da maternidade de Londres, apresentados por Huberman (1976), indicam que a proporção de mortes entre 1749 e 1758 era de 1 para cada 42 mulheres e caiu para 1 em cada 914 entre 1799-1800. O mesmo ocorreu com a morte de crianças que caiu entre os dois períodos de 1 para cada 15 para 1 em cada 115.

    Esses dados se explicam em face da progressiva descoberta de recursos cientificamente produzidos que, ao longo do desenvolvimento capitalista, têm sido essenciais no desvendamento de propriedades/mecanismos de funcionamento da natureza. Seu uso servindo, primeiramente, como força produtiva para ampliar a rentabilidade do capital também introduziu importantes conquistas em todos os setores da vida social, materializando o que Marx e Engels (apud Netto, 1994) vão denominar como recuo das barreiras naturais.

    O segundo destaque a fazer é que além de socialmente produzida, a escassez que gera o pauperismo não expressa sozinha a questão social. Outra característica que a particulariza como tal no âmbito da sociedade burguesa relaciona-se diretamente aos seus desdobramentos sociopolíticos. De acordo com Netto (2001), a escassez que se reproduz nos marcos do capitalismo resulta da forma como estão estabelecidas as relações sociais de produção, podendo ser superada caso sejam superadas as formas de exploração do trabalho que garantem a apropriação privada do que é socialmente produzido.

    Assim é que as lutas de classe são ineliminavelmente constitutivas da questão social. Elas atingem o cerne do processo de sua produção: as relações sociais contraditórias e antagônicas entre capitalistas e trabalhadores que tornam cada vez mais socializado o processo de produção de riqueza e, com a mesma intensidade, privatizado o seu resultado final. Tendo presentes essas premissas teóricas preliminares, avançarei então na direção dos principais aspectos históricos presentes na gênese da questão social.

    1.1 A acumulação primitiva do capital e a pré-história da questão social

    Torna-se sempre difícil demarcar com exatidão a periodicidade dos fenômenos da vida social, cuja processualidade requer cuidados, sempre reiterados, a fim de evitar simplificações esquemáticas. Considerando-se, portanto, tais dificuldades, mas sem abrir mão da necessidade de localizar historicamente a questão social é praticamente uma unanimidade na literatura que trata dos fenômenos que lhe são constitutivos — o pauperismo e as lutas do proletariado contra a burguesia — a afirmação dessa gênese por volta de 1830. De acordo com Hobsbawm (2005, p. 162),

    Qualquer que seja o aspecto da vida social que avaliarmos, 1830 determina um ponto crítico […]. Ele aparece com igual proeminência na história da industrialização e da urbanização, na história das migrações humanas, tanto sociais quanto geográficas, e ainda na história das artes e da ideologia. […] 1830 determina uma inovação ainda mais radical na política: o aparecimento da classe operária como uma força política autoconsciente e independente na Grã-Betanha e na França. […] na Grã-Bretanha e na Europa Ocidental em geral, este ano determina o início daquelas décadas de crise no desenvolvimento da nova sociedade que se concluem com a derrota das revoluções de 1848 e com o gigantesco salto econômico depois de 1851.

    No entanto é preciso retroagir alguns séculos para localizar, com a gênese do próprio capitalismo, os fatores que levaram a esse processo de pauperização acentuada no século XIX. Refiro-me ao seguinte: tratar do pauperismo e das lutas sociais do século XIX requer uma compreensão mínima do período chamado por Marx de acumulação primitiva do capital, responsável por criar o trabalhador livre.³ Esse processo que configura a pré-história do capitalismo (Marx) se inicia na Inglaterra, entre o último terço do século XV e o início do século XVI, consistindo na pura e simples expropriação dos camponeses de suas terras, objetivando transformá-las, majoritariamente, em pastagens para ovelhas.

    Como o preço da lã subira (a lã era a principal exportação da Inglaterra) muitos senhores viram uma oportunidade de ganhar mais dinheiro da terra transformando-a de terra cultivada em pasto de ovelhas. […] Enquanto isso significava mais dinheiro, significava também a perda do emprego e do meio de vida dos lavradores que haviam ocupado a terra que passava a ser cercada. Para cuidar de ovelhas, é necessário um número de pessoas menor do que para cuidar de uma fazenda — e os que sobravam ficavam desempregados. (Huberman, 1976, p. 114)

    Os conhecidos cercamentos das terras se fizeram objetivando gerar uma oferta de trabalho adequada às necessidades do capital que, para dar lucro, precisa, necessariamente, explorar a força de trabalho. Ante os níveis de desemprego atuais chega a ser difícil imaginar que algum dia a oferta de força de trabalho tenha sido um problema para os capitalistas. No entanto devemos lembrar que, nesse momento, o acesso à terra por parte dos camponeses supria suas necessidades de modo que era preciso apartá-los desses meios de produção para que estivessem dispostos a trabalhar em troca de um salário.

    Os cercamentos enfrentaram, inicialmente, algum nível de oposição por parte dos governantes que promulgavam, em vão, legislações com várias condicionantes, tentando coibir o excesso dessas práticas. Algumas das principais razões que levavam à existência desse tipo de legislação devem ser atribuídas não a preocupações dos monarcas com justiça social e sim à queda na arrecadação de impostos dos camponeses pela Coroa e ao risco social eminente com a ocorrência de incêndios e motins promovidos por grupos de desempregados (Huberman, 1976).

    Some-se a isso as medidas de desapropriação dos bens da Igreja Católica por ocasião da Reforma Protestante que também teve efeito sob os camponeses na medida em que o direito legalmente explícito dos lavradores empobrecidos a uma parte dos dízimos da Igreja foi confiscado tacitamente (Marx, 2001, p. 835). Esse processo se estende ao longo do século XVIII quando se pode afirmar que desaparecem os últimos traços do regime comunal de propriedade e a política dos cercamentos ganha, definitivamente, o Parlamento como aliado. É importante ter em vista as relações que este apoio parlamentar tem com a ocorrência das revoluções políticas inglesa (1640) e Francesa (1789), responsáveis por reestruturar o Estado em termos liberais conforme aspirações da burguesia que se tornara, a partir disso, classe dominante.

    Huberman (1976) apresenta uma analogia entre essas revoluções e a situação de um pinto dentro do ovo quando chega o momento em que, estando maior que o espaço disponível, precisa romper a casca ou morre. Tal era a situação da burguesia diante das inúmeras restrições que existiam sob suas atividades econômicas em razão da estrutura social imobilista (vinculada ao nascimento) do sistema feudal e seus respectivos privilégios usufruídos pelas castas mais altas na estrutura do poder político. A burguesia desejava que seu poder político correspondesse ao poder econômico que já tinha. Era dona de propriedades — agora queria os privilégios (Huberman, 1976, p. 160).

    Voltando aos cercamentos, o trânsito ao século XIX, em suas duas primeiras décadas, marca o seu apogeu com a limpeza que, segundo Marx, (2001, p. 842) consistiu em

    […] varrer [das propriedades] os seres humanos. Conforme vimos anteriormente, ao descrever as condições modernas em que não há mais camponeses independentes para enxotar, a limpeza prossegue para demolir as choupanas, de modo que os trabalhadores agrícolas não encontram mais na terra que lavram o espaço para sua própria habitação. Mas a limpeza das propriedades, no seu verdadeiro sentido, vamos encontrar mesmo na […] Escócia serrana. A operação lá se destaca pelo caráter sistemático, pela magnitude da escala em que se executa de um só golpe (na Irlanda, houve proprietários que demoliram várias aldeias ao mesmo tempo; na Escócia, houve casos de áreas do tamanho de ducados alemães).

    Do ponto de vista produtivo, enquanto se realizava o movimento de libertação dos trabalhadores em relação aos meios de produção, o capitalismo desenvolveu-se sob duas formas históricas. A primeira delas foi a cooperação com atuação simultânea de grande número de trabalhadores, no mesmo local, ou, se se quiser, no mesmo campo de atividade, para produzir a mesma espécie de mercadoria sob o comando do mesmo capitalista (Marx, 2001, p. 375). Esse processo criou uma força coletiva de trabalho aumentando a produtividade, embora subjetivamente o trabalhador ainda tivesse domínio do processo produtivo, mas não mais do produto.

    A segunda forma histórica do capitalismo no período da acumulação primitiva foi a manufatura (entre meados do século XVI e o último terço do século XVIII) consistindo numa forma de cooperação que decompõe as diversas operações de origem artesanal. A manufatura está, portanto, baseada na divisão do trabalho, mas sua base técnica não registra modificações em relação à primeira forma histórica capitalista, uma vez que

    complexa ou simples, a operação continua manual, artesanal, dependendo, portanto da força, da habilidade, rapidez e segurança do trabalhador individual, ao manejar seu instrumento. O ofício continua sendo a base. Essa estreita base técnica exclui realmente a análise científica do processo de produção, pois cada processo parcial percorrido pelo produto tem de ser realizável como trabalho parcial profissional de um artesão. (Marx, 2001, p. 393)

    Entretanto, neste momento, dada apenas a subsunção formal do trabalho ao capital (Marx, 2001), a transformação do imenso contingente de lavradores expropriados em trabalhadores assalariados não foi um processo automático. Entre outras razões, por traços da cultura que determinam ritmos e disciplinas bastante diferentes entre o trabalho agrícola e o das manufaturas nascentes. Assim sendo, as escolhas que se colocavam no horizonte desses sujeitos incluíam, além do assalariamento, a mendicância, a vadiagem ou mesmo a ladroagem, largamente utilizadas como formas de resistência às novas relações sociais emergentes. Quanto a isso, desde o século XV foram sendo promulgadas leis, não casualmente chamadas por Marx (2001) de sanguinárias, que coibiam tais fenômenos, impelindo os desempregados ao trabalho assalariado com a utilização de instrumentos de tortura como punições àqueles que resistissem às necessidades do capital.

    Outro conjunto de leis foi necessário nesse momento para, de modo coercitivo, dar início à intensa exploração do trabalho a que esses assalariados foram submetidos. Tratam-se das leis que mantinham baixos os salários e estendiam a jornada de trabalho, originando a mais-valia absoluta como importante condição para a chamada acumulação primitiva e também para a fase manufatureira do capital, de um modo geral. São exemplos dessa legislação os estatutos dos aprendizes e dos trabalhadores que puniam a quem pagasse salários acima da tarifa legal estabelecida, além de medidas que proibiam a organização política dos trabalhadores (Marx, 2001). Outro exemplo dessa legislação foi a que se promulgou como assistência pública, nos moldes da lei dos pobres (1834), cujo recrutamento ao trabalho forçado implicava na perda dos direitos civis e econômicos.

    Dessa breve exposição acerca dos antecedentes ou, se quisermos plagiar Marx, da pré-história da questão social, é fundamental reter o seguinte: nada no processo que a originou pode ser classificado como natural. Todos os fenômenos que comparecem em sua gênese e reprodução têm causalidades sociais, embora tenham sido aparentemente naturalizados no curso dos acontecimentos.

    1.2 O modo de produção especificamente capitalista e a gênese da questão social

    O capitalismo chega ao século XIX com sua forma histórica baseada na grande indústria que opera o trânsito da subsunção formal à subsunção real do trabalho ao capital.

    Ao progredir a produção capitalista, desenvolve-se uma classe trabalhadora que por educação, tradição e costume, aceita as exigências daquele modo de produção como leis naturais evidentes. A organização do processo de produção capitalista, em seu pleno desenvolvimento, quebra toda a resistência; a produção contínua de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da procura de trabalho e, portanto, o salário em harmonia com as necessidades de expansão do capital e a coação surda das relações econômicas consolida o domínio do capitalista sobre o trabalhador. Ainda se empregará a violência direta, à margem das leis econômicas, mas doravante apenas em caráter excepcional. (Marx, 2001, p. 851)

    O tear e a máquina a vapor constituem a base técnica da Primeira Revolução Industrial, que se estende até meados do século XIX. Para Hobsbawm (2005), entre 1815 e 1840, a maior expressão dessa revolução no berço do capitalismo mundial, a Inglaterra, ficou praticamente restrita à indústria têxtil, pois embora presente em outros ramos produtivos seu impacto foi, do ponto de vista comparativo, bastante reduzido. Várias razões justificam esse fato, sendo as mais importantes o volume bem maior de trabalhadores empregado na indústria têxtil e o peso econômico desta na economia inglesa.

    Já nesse período é visível o processo acentuado de pauperização da classe trabalhadora na Inglaterra e fora dela. Veja-se, por exemplo, a descrição que se segue e traz dados da realidade norte-americana (apud Huberman, 1976, p. 127)

    Casas superlotadas, sujas e em mau estado, roupas esfarrapadas e reclamações frequentes sobre a comida insatisfatória, tanto na qualidade como na quantidade caracterizam os lares pesquisados.

    Crianças de menos de 16 anos trabalhavam em 96 das 129 famílias estudadas. Metade delas tinha menos de 12 anos. Trinta e quatro tinham 8 anos e menos, e doze tinham menos de cinco anos.

    Era comum o emprego de mulheres e crianças nas fábricas. No caso inglês, mais da metade dos trabalhadores dos engenhos de algodão entre 1834 e 1847 era de mulheres e crianças também do sexo feminino. Para ilustrar as circunstâncias em que isso comumente ocorria, transcrevo o depoimento chocante de uma criança de 11 anos que consta do relatório de uma Comissão do Parlamento Inglês em 1833 (apud Huberman, 1976, p. 191-192).

    Sempre nos batiam se adormecíamos. O capataz costumava pegar uma corda da grossura do meu polegar, dobrá-la e dar-lhe nós […] Eu costumava ir para a fábrica um pouco antes das 6, por vezes às 5, e trabalhar até 9 da noite. Trabalhei toda a noite certa vez, nós escolhíamos isso. Queríamos ter algum dinheiro para gastar. Havíamos trabalhado desde as 6 da manhã do dia anterior. Continuamos trabalhando até as 9 da noite seguinte. […] Meu irmão faz o turno comigo. Ele tem 7 anos.

    Essa questão tinha uma explicação: além de oferecerem menor resistência à disciplina própria dos novos processos de trabalho, mulheres e crianças eram úteis também às necessidades crescentes de superexploração da força de trabalho como forma de superar as pequenas crises que resultavam na queda da taxa de lucro. Segundo Hobsbawm, a partir de 1815, as vantagens de produtividade começam a diminuir com a sua universalização, dada a lógica concorrencial predominante entre os inúmeros capitais nesse momento histórico, provocando constantes quedas de preço. Para conter essa queda na taxa de lucros era preciso reduzir os custos.

    E de todos os custos, os salários […] eram os mais comprimíveis. Eles podiam ser comprimidos pela simples diminuição, pela substituição de trabalhadores qualificados, mais caros [predominantemente do sexo masculino por mulheres e crianças], e pela competição da máquina com a mão de obra. (Hobsbawm, 2005, p. 68)

    Desse modo, em face das crescentes necessidades de valorização do capital não apenas a mão de obra infantil e feminina, mas todos os trabalhadores eram submetidos a extensas jornadas de trabalho. O maquinário era um investimento importante, mas apresentava uma tendência à rápida obsolescência devido à velocidade das novas invenções, além do que ele apenas transfere valor quando é operado pelo trabalhador. Por isso, a premissa dos capitalistas era fazer as máquinas funcionarem diuturnamente, impondo uma jornada média de 16 horas aos operários, em diferentes turnos de trabalho. Associava-se a essas condições de trabalho a intensidade e o ritmo cada vez mais ditado pelas máquinas, sob rígida supervisão dos capatazes, conforme já afirmado antes. Os fiandeiros de uma fábrica próxima de Manchester, [por exemplo,] trabalhavam 14 horas por dia numa temperatura de 26 °C a 29 °C, sem terem permissão de mandar buscar água para beber (Huberman, 1976, p. 190). Muito curta era, em consequência, a vida desses trabalhadores que tinham sua energia vital rapidamente consumida pelas fábricas através das extensas jornadas de trabalho.

    A experiência mostra geralmente ao capitalista que existe uma população excedente em relação às necessidades momentâneas do capital de expandir o valor. Essa superpopulação, entretanto, se compõe de gerações humanas atrofiadas, de vida curta, revezando-se rapidamente, por assim dizer, prematuramente colhidas. (Marx, 2001, p. 310-311)

    Esse paradoxo deve ser sublinhado exatamente pelo despropósito que significa ter altas taxas de mortalidade por exaustão de trabalho quando as condições materiais do progresso científico colocam, pela primeira vez na história da humanidade, a possibilidade de diminuir o tempo de trabalho socialmente necessário e, ao mesmo tempo, aumentar o volume da produção.

    A concentração da produção, reunindo os trabalhadores na linha de montagem das fábricas e intensificando a divisão social do trabalho, leva à concentração da população operária que, residindo nos seus arredores, vai incrementar o processo de urbanização. Era flagrante a ausência de investimentos em infraestrutura urbana, o desprezo pelas condições de vida operária, significativos níveis de morbidade, mortalidade da população infantil e adulta, habitações em locais insalubres, doenças, fome, baixos salários.

    As cidades e as áreas industriais cresciam rapidamente, sem planejamento ou supervisão, e os serviços mais elementares da vida da cidade fracassavam na tentativa de manter o mesmo passo: a limpeza das ruas, o fornecimento de água, os serviços sanitários, para não mencionarmos as condições habitacionais da classe trabalhadora […] cortiços onde se misturavam o frio e a imundice, ou os extensos complexos de aldeias industriais de pequena escala. […] O desenvolvimento urbano foi um gigantesco processo de segregação de classes, que empurrava os novos trabalhadores pobres para as grandes concentrações de miséria alijadas dos centros de governo e dos negócios, e das novas áreas residenciais da burguesia. A consequência mais patente dessa deterioração urbana foi o reaparecimento das grandes epidemias de doenças contagiosas (principalmente transmitidas pela água), notadamente a cólera. […] Só depois de 1848 quando as novas epidemias nascidas nos cortiços começaram a matar também

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