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UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO

Centro de Filosofia e Ciências Humanas

GUILHERME CARAMEL MARQUES

ASPECTOS CULTURAIS DA TRADUÇÃO BÍBLICA NO


BRASIL:
UM ESTUDO COMPARATIVO DO NÔVO TESTAMENTO/EDIÇÃO
CATEQUÉTICA POPULAR E JOÃO FERREIRA DE ALMEIDA

Bauru
2007
ii

UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO


Centro de Filosofia e Ciências Humanas

GUILHERME CARAMEL MARQUES

ASPECTOS CULTURAIS DA TRADUÇÃO BÍBLICA NO


BRASIL:
UM ESTUDO COMPARATIVO DO NÔVO TESTAMENTO/EDIÇÃO
CATEQUÉTICA POPULAR E JOÃO FERREIRA DE ALMEIDA

Monografia apresentada ao Centro de Filosofia e


Ciências Humanas da Universidade do Sagrado
Coração como parte dos requisitos para obtenção
do título de bacharel em Tradutor, sob orientação
do Prof. Ms. Antônio Walter Ribeiro de Barros
Junior

Bauru
2007
iii

Dedico este trabalho aos meus pais

Josias e Marlene e à minha irmã

Déborah.
iv

Agradecimentos

Agradeço primeiramente a Deus, fonte de esperança, alívio e salvação, em quem encontro


força a qualquer momento para todas as situações.

Aos meus pais, Josias e Marlene, e a minha irmã, Déborah, pelo apoio incondicional em todos
os momentos da composição deste trabalho, pelo incentivo e luta durante todos esses anos
para que eu concluísse o Ensino Superior.

À minha namorada, Cristiane, por entender os meus objetivos ao escrever esse projeto e pelo
apoio constante sempre que precisei.

Agradeço também ao meu orientador, Prof. Ms. Antônio Walter Ribeiro de Barros Júnior, por
todas as leituras e pelo direcionamento do trabalho que fez que o mesmo se tornasse bastante
enriquecido. Sua visão muito colaborou para que esse trabalho se tornasse realidade.

E, por fim, um agradecimento singelo ao Luis Martini, Tinho (Benedito), Wendel Pinheiro e
Prof. Jorge Fabbro; as professoras Marileide Esqueda e Patrícia Belam pelo apoio neste ano;
aos amigos e colegas por estarem ao meu lado diariamente, sempre me dando palavras de
conforto e ânimo.

Obrigado a todos, cada qual contribuiu com a diferença para o desenvolvimento e conclusão
deste projeto.
v

“A tradução (...) Trabalho penoso, extenuante,


irritante, desesperador. Trabalho que enriquece,
é necessário aos homens, exige abnegação,
escrúpulos, honestidade, modéstia (...) E,
naturalmente, talento.”
Elsa Triolet
vi

Resumo

Escrita por diferentes autores, a Bíblia apresenta uma seqüência de histórias e ensinamentos
que formam a base das religiões cristãs atuais. Todo livro tem uma história única e deve ser
lido sob seu próprio contexto histórico, gênero literário e intenção do autor. Buscando analisar
o papel do tradutor dos textos bíblicos e as nuances de seu trabalho, este trabalho objetiva
traçar de uma maneira mais pontual a história da bíblia e suas traduções ao longo dos anos, a
nível mundial e, posteriormente, no Brasil, além de analisar quatro excertos bíblicos distintos
crítico-comparativamente, nos aspectos semântico-discursivo, estilístico e cultural
apresentados no Novo Testamento. Esta pesquisa é de caráter exploratório-documental e
utiliza a técnica de descrição histórica e bibliográfica, fazendo uma análise crítico-
comparativa de quatro excertos de livros do Novo Testamento bíblia e apontando e discutindo
pontos semelhantes e divergentes nas traduções das edições católicas das bíblias Nôvo
Testamento e Bíblia Sagrada: Edição Catequética Popular. Este trabalho encontra justificativa
no fato de que contribui para a discussão a respeito do trabalho da tradução bíblica e da
existência de mudanças no texto bíblico ao longo dos anos.

Palavras-chaves: Tradução Bíblica; Edições Católicas, Mudanças No Texto Bíblico.


vii

Abstract

Written by different authors, the Bible presents a sequence of histories and teachings that form
the base of the current Christian religions. Each book has its own history and must be read on
the background of its proper historical context, literary genre, intention of the author, etc.
(KONINGS, 1998). Wanting to analyze the role of the translator of the Biblical texts and the
nuances of his work, this work aims to trace the history of the Bible and its translations over
the years in a world-wide level and later in Brazil, besides a critical-comparative analysis of
four distinct Biblical excerpts, in the semantic-discursive, stylistic and cultural aspects
presented in the New Testament. This research has an exploratory-documentary character and
uses the historical description technique, making a critical-comparative analysis of four
excerpts of book of the New Testament, pointing and arguing similar and divergent points in
the translations of Catholic bible editions Nôvo Testamento and Bíblia Sagrada: Edição
Catequética Popular. This work contributes for the discussion concerning the work of the
Biblical translation and the existence of changes in the Biblical text over the years.

Key Words: Biblical translation; Catholic Editions; Biblical Text Changes.


viii

Lista de Anexos
ix

Lista de Tabelas

Tabela 1. Divisões dos livros da bíblia hebraica. Adaptada de Alter (1997, p. 24)............19
Tabela 2. Itens para checagem de existência nas edições publicadas pela editora Ave-
Maria. 67
x

Sumário
I INTRODUÇÃO............................................................................................................... ...........11
1 A história da Bíblia e sua composição..................................................................... .................15
1.1 O Velho Testamento........................................................................................................17
1.1.1 O Pentateuco........................................................................................................... .....20
1.1.2 Os Livros Históricos........................................................................ ............................22
1.1.3 Os Livros Poéticos............................................................................... ........................26
1.1.4 Os Livros Proféticos............................................................................................ .........27
1.2 O Novo Testamento.........................................................................................................30
1.2.1 Os Evangelhos................................................................................. ............................31
1.2.2 O Livro Histórico........................................................................................ .................32
1.2.3 As Epístolas............................................................................................................ ......33
1.2.4 O Livro Profético............................................................................. ............................34
1.3. Setenta e três livros em apenas um................................................................................35
2 Tradução (bíblica) e cultura........................................................................... ..........................37
2.1 Tradução e recepção.......................................................................................................41
2.2 Tradução e cultura: uma relação...................................................................................44
3 A tradição da tradução bíblica............................................................................. .....................48
3.1. Textos anteriores ao nascimento de Cristo....................................................................49
3.1.1 Septuaginta (c. 280 a.C.)................................................................ .............................49
3.1.2 Targuns (últimos séculos a.C.)..................................................................... ................52
3.2. Textos posteriores ao nascimento de Cristo..................................................................52
3.2.1 Áquila (c. 125 a 150)................................................................................................... .54
3.2.2 Vetus Latina ou Ítala (sec. II)............................................................................ ...........54
3.2.3 Peshitta (séc. II e III)........................................................................... ........................55
3.2.4 Vulgata Latina (Jerônimo: 391-405)......................................................................... ...55
3.2.5 Tradução de John Wycliff (c. 1330-1384)............................................. .......................57
3.2.6 Tradução de Lutero (N.T.: 1522; Bíblia completa: 1534)............................................57
3.2.7 Tradução de William Tyndale (N.T.: 1526).............................................. ....................59
3.2.8 Bíblia de Genebra (N.T.: 1557; Bíblia completa: 1560)..............................................61
3.2.9 Versão do Rei Tiago (1611)........................................................................... ...............62
3.2.10 Versão de João Ferreira de Almeida (N.T.: 1681; Bíblia completa: 1753)................62
4 MUDANÇAS AO LONGO DOS ANOS: uma análise da bíblia católica comparada a versão
de João ferreira de almeida............................................................................... ...........................64
4.1 Diferenças internas e externas.......................................................................................66
4.1.1 Nôvo Testamento (1969)............................................................................................... 68
4.1.2 Bíblia Sagrada: Edição Catequética Popular (2007)..................................................69
4.2 Análises dos excertos......................................................................................................70
4.2.1 Apresentação bíblica de Deus........................................................................... ...........71
4.2.2 Apresentação bíblica de Jesus.......................................................... ...........................73
4.2.3 Concessão da benção divina............................................................................. ...........74
4.2.4 Submissão da mulher............................................................................... ....................76
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................. ......79
REFERÊNCIAS....................................................................................................................... ....81
11

I INTRODUÇÃO

Paz, vida, solidariedade, direitos humanos, morte, dor, solidão. Temas como esses
são exaustivamente abordados e abarrotam estantes, bibliotecas, livrarias. Em especial, um
único livro aborda todos essas temas e muitos outros mais. Um livro cheio de histórias, de
conselhos, de orientações específicas para pessoas específicas e também para povos em geral.
A Bíblia Sagrada, base da fé cristã, ainda hoje é o livro mais procurado e o mais vendido. O
cristianismo, baseado exclusivamente nos escritos bíblicos, tem nesse livro sua fonte de
crenças desde os tempos antigos. Motivo de grandes guerras, de mortes ao longo da Idade
Média, os ensinamentos bíblicos são sagrados para os cristãos. A Bíblia Sagrada é fonte de
conhecimento e salvação para todo aquele que a lê e compreende seus ensinamentos e, acima
de tudo, os segue.
Com textos escritos antes e depois do nascimento de Jesus, a bíblia contém uma
diversidade de histórias e períodos históricos. Escrita por diferentes autores, a Bíblia contém
mensagens distintas e que muitas vezes, causam dificuldades de compreensão por parte do
leitor. Ao ler, o leitor fica com a impressão de o autor estar falando sobre acontecimentos do
seu tempo, as vezes acontecimentos do tempo do leitor e, isso causa uma confusão no
entendimento da mensagem. Konings (1998, p. 11) diz que a bíblia

Contém uma diversidade de escritos autônomos. Cada livro tem sua


própria história e deve ser lido sobre o fundo de seu próprio contexto
histórico, gênero literário, intenção do autor, etc. Mas a Bíblia também
deve ser considerada na sua unidade, para se compreender por que e em
que sentido essa biblioteca foi constituída e assumida por determinados
grupos religiosos.”

O entendimento dos assuntos que a bíblia trata até hoje geram polêmica. Ao defender
suas crenças, diferentes religiões que usam a bíblia como fonte de crença alegam ter a correta
compreensão e que as outras religiões é que estão erradas. Até mesmo o formato e conteúdo
da bíblia diferem entre as religiões. Algumas apresentam a bíblia com 66 livros, outras com
73. Essas diferenças fazem da bíblia um livro tão estudado e, conseqüentemente, tão
traduzido.
Essas diferenças também influem na recepção que o leitor tem ao estudar os textos
bíblicos. Ao estudar os textos bíblicos, existem características que influenciam essa leitura e
12

devem ser consideradas. A relação do tempo histórico em que foi escrito e o atual é um
motivo de diferença que influencia a leitura. As condições sociais de autor e leitor também.
Por ter sido escrita por bastantes autores, a bíblia apresenta várias visões de um mesmo povo
por pessoas que pertenciam a camadas e grupos diferentes. A forma como foram escritos os
livros também difere. Autores que eram camponeses, médicos, pescadores, tudo isso
influencia a forma de escrita dos livros da bíblia e, ao traduzi-la, o tradutor deve considerar
cada livro como um original diferente e, na medida do possível, respeitar as características
individuais de cada um dos autores. Nesse sentido, esse trabalho também se baseará na
estética da recepção de Hans Robert Jauss.
Além de fatores como esses, a leitura que o tradutor faz do texto original também
influencia a sua tradução. Ao ler o texto, o tradutor tira suas impressões e elas ficam marcadas
na sua tradução. O processo da tradução não é mecânico, logo, é influenciado por
características do tradutor. Sua visão do texto fica implícita ao realizar o processo de tradução.
A expressão cultural que o texto original propõe passa pelas mãos do tradutor e cabe a este
adapta-los ou não conforme a necessidade do texto. Ao usar essa adaptação, o tradutor coloca
também sua cultura e, assim, a obra traduzida passa a conter também a visão do tradutor. Esse
processo de adaptação, de leitura do texto, coloca o tradutor numa posição bastante
importante, pois cabe a ele trazer a mensagem de um original para o leitor (ou inúmeros
leitores) que espera ansiosamente por conhecer o que o texto traz de informações novas.
Ao tratar dessa questão relacionada à cultura, a bíblia tem um ponto importante: a
língua. Por não conter apenas uma língua, mas três (hebraico, aramaico e grego), sua tradução
também teve momentos diferentes. Escritos em hebraico, os livros do Velho Testamento
foram traduzidos posteriormente para o aramaico e para o grego. Após essas traduções,
inúmeras outras foram feitas para variadas línguas, o que levou a questão da fidelidade ao
original. Teria sido perdido durante essas traduções o conteúdo original? Ao se traduzir a
bíblia de uma língua para outra, a consulta aos originais deveria ser feita? Ao se traduzir de
uma língua para outra, perdem-se características importantes? Existem ainda os originais para
serem consultados? Perguntas como essas passeiam pelo pensamento dos leitores e dão base
para vários estudos acerca da tradução bíblica.
O trabalho do tradutor bíblico passa a ser extremamente importante, pois a fé dos
cristãos depende em muito da sua tradução. Essa responsabilidade leva o tradutor a realizar
seu trabalho com extrema cautela e prestando contas ao leitor que busca inspiração para sua
vida dentro dos escritos bíblicos. O caráter de responsabilidade do tradutor em relação ao
conteúdo de sua tradução é e deve ser encarado e o desafio da tradução aceito.
13

Nesse sentido, o objetivo desse trabalho é traçar de uma maneira mais pontual a
história da bíblia e suas traduções ao longo dos anos, a nível mundial e, posteriormente, no
Brasil. Os autores que fundamentarão este estudo serão Kermode e Alter (1997), Konings
(1998), Bassnet (2003), Villela (1997; 2004) e Zimmer (sem data). Kermode e Alter tratam
sobre a literatura original da Bíblia (Antigo e Novo Testamento), além de mostrá-la através de
fatos históricos essenciais ao entendimento das formas como a Bíblia foi escrita; Konings
apresenta a formação da Bíblia através dos séculos, discorrendo sobre o contexto geográfico e
cultural, as línguas nas quais foi escrita e outras questões contextuais. Bassnet apresenta uma
visão mais teórica da tradução, expondo os bastidores do trabalho de tradução. Villela propõe
uma reflexão sobre a tradução da Bíblia no que se refere às teorias de tradução e às suas
conseqüências para o texto bíblico e as polêmicas entre sagrado e profano no contexto da
tradução bíblica, e Zimmer traz dados e fatos históricos imprescindíveis ao estudo da história
da tradução da Bíblia.
Para tanto, exemplificaremos essas mudanças culturais na tradução de textos do
Novo Testamento, publicado pela Editora Ave-Maria em 1969, que é de origem católica, com
uma tradução atual (2007) também publicada pela mesma editora. Somado a isso, será
analisada uma tradução não católica (tradução de João Ferreira de Almeida) de 1860 com uma
tradução de 2005. Por existirem várias publicações e reedições das Bíblias, devido ao fato dos
cristãos basearem-se estritamente nas palavras dos textos bíblicos, o trabalho pretende mostrar
as mudanças que aconteceram nas quatro edições, em especial nas duas católicas. Serão
contempladas as características tanto externa como internas e os projetos de tradução.
Deste modo, este trabalho objetiva responder às seguintes perguntas de pesquisa:
Quais as diferenças internas e externas entre a versão Nôvo Testamento de 1969 e a versão
Bíblia Sagrada: Edição Catequética Popular de 2007? Como foram traduzidos os excertos de
Judas 25, João 6,69, I João 4,10 e I Coríntios 14,34-35 de ambas as versões? No que se
assemelham e diferem? Quais as divergências lexicais estilísticas e discursivas entre ambos?
A pesquisa é de cunho exploratório-documental e bibliográfica. A técnica utilizada é
a de descrição histórica, sendo que será feita uma análise crítico-comparativa de 4 excertos de
alguns livros da bíblia. Além disso, os dados bibliográficos, quanto à edição das traduções
bíblicas brasileiras e sua trajetória, serão coletados de duas formas: primeiramente, será
realizada uma busca na rede mundial de computadores em relação aos dados de edição; em
segundo lugar, serão coletadas as datas, junto à própria Bíblia e sua ficha catalográfica, os
dados de edição e textos originais que serviram como base. E, em terceiro lugar, serão
coletados os dados de formatação das bíblias traduzidas no Brasil: verificando se as mesmas
14

trazem introdução, prefácio, posfácio e notas de rodapé. Assim acreditamos que este estudo
proporcionará o entendimento sobre o papel da cultural e do contexto na leitura e no ato da
tradução.
15

1 A HISTÓRIA DA BÍBLIA E SUA COMPOSIÇÃO

Para uma melhor compreensão da análise das mudanças que as Bíblias católicas
sofreram ao longo dos anos é necessária uma volta ao passado, uma retomada histórica dos
caminhos que a Bíblia tomou ao longo dos anos (ao ser escrita, ao ser reunida em 66 livros,
etc.), um conhecimento dos livros que a compõe, para assim entender o processo das
mudanças.
Por ser composta de 66 livros diferentes, com alguns autores escrevendo até mais de
um livro, a Bíblia tem em si uma carga histórica bastante vasta. E essa história tem como
centro um povo específico, escolhido por YHWH1. Este povo, Israel, é o povo que YHWH
“toma” para si e, através dos relatos bíblicos, é colocado como persongem central das
histórias. Os grandes heróis, os grandes pensadores, os grandes vilões, todos têm uma
característica em comum: pertencer a esse povo ou ter sua história cruzada com a história do
povo de Israel. O cenário central bíblico é a chamado “Terra de Israel”, conhecida na
historiografia contemporânea como a Palestina. É nesse cenário em que acontecem as grandes
batalhas, os grandes desastres e as grandes promessas. As histórias desse povo são narradas
através de toda a Bíblia, a qual é dividida em duas partes distintas: Velho Testamento e Novo
Testamento. Dos 66 livros que compõe toda a Bíblia cristã, 39 estão presentes no Antigo
Testamento e 27 no Novo Testamento.
Os livros do Antigo Testamento referem-se às histórias acontecidas anteriormente ao
nascimento de Jesus Cristo, iniciadas no livro chamado Gênesis e terminadas com o livro
chamado Malaquias. Deste último livro passamos automaticamente ao nascimento de Jesus
Cristo, descrito no primeiro livro do Novo Testamento, chamado Evangelho segundo São
Mateus. Os livros do Novo Testamento apresentam a história da vida de Jesus Cristo, a
continuação da divulgação de seu evangelho através de seus discípulos e, logo após, através
dos apóstolos. O Novo Testamento tem seu fim com o livro do Apocalipse de São João,
composto especialmente de mensagens proféticas em relação ao futuro do povo escolhido por
YHWH (no Novo Testamento, não mais o povo de Israel, mas os chamados “gentios” –
goyim).
Mas o uso dos termos Velho, Novo e Testamento não é algo simples. Estes termos
não são usados sem uma razão, pois contêm em si uma mensagem implícita. Johan Konings
(1998, p. 12) afirma que “o termo ‘testamento’ não siginifica um legado deixado por alguém,
1
Segundo a tradição judaica, YHWH é a terceira pessoa do imperfeito no singular do verbo ser. Esta teoria tem
como base o Capítulo 3, versículo 14, do livro de Êxodo, constituindo a base do monoteísmo judaico-cristão.
16

mas a ‘aliança atestada’ entre Deus e o povo (berît)”. Essa aliança (testamento) para o
judaísmo tem como significado a aliança selada entre o povo de Israel e YHWH por
intermédio de Moisés. Essa aliança, segundo a compreensão cristã, foi renovada por Jesus
Cristo. Robert Alter (1997, p. 23), em relação a esses termos, cita que “o uso comum na
cultura ocidental, seguindo a tradição cristã, os chama de Velho Testamento, nome originário
da suposição de que o Antigo requer complementação do Novo ou é, na realidade,
ultrapassado pelo Novo”. Além destes termos, “o próprio termo Bíblia (do grego ta biblia – os
livros) é mais uma classificação vaga do que um título” (op. cit., p. 24).
Essa idealização de que o Velho Testamento necessitava ser complementado pelo
Novo em nenhum momento agradou aos judeus. Robert Alter (op. cit., p. 23-24), ainda em
relação a esse assunto, afirma que

Os judeus coletivamente rejeitaram o termo por tudo o que ele implica e,


em termos de história literária, por certo nada autoriza imaginar que os
antigos escritores hebreus compuseram suas histórias, poemas, leis e
listas genealógicas com a idéia de que estavam fornecendo o prelúdio a
um outro conjunto de textos a ser escrito em outra língua, séculos mais
tarde.

Em relação a esses dois testamentos, as bíblias católica e cristã divergem entre si em


relação à escolha e a ordem dos livros que compõem o seu cânon. A Bíblia católica apresenta
7 livros a mais que a Bíblia cristã (entenda-se aqui cristã protestante). Esses 7 livros (Tobias,
Judite, 1.º e 2.º Macabeus, Livro da Sabedoria, Eclesiástico e Baruc) são chamados
deuterocanônicos (recusados pelos cristãos). Esse número desigual de livros entre uma versão
e outra gera pôlemica. Konings (1998, p. 13) afirma que

Já antes de Cristo existiam duas versões da Bíblia do Antigo Testamento:


a original, em língua hebraica, e a tradução grega, para os judeus de
língua grega. A tradução grega incluía alguns livros e partes a mais que o
original hebraico. [...] no fim do século I d.C., excluíram definitivamente
os cristãos de suas sinagogas, os rabinos judeus decidiram aceitar
somente os livros que constavam no original hebraico; adotaram assim o
chamado ‘cânon restrito’, enquanto os cristãos continuavam com o
‘cânon amplo’ do Antigo Testamento”.

Muito tempo depois disso, os cristãos (protestantes) adotaram a maneira judaica


quanto ao conteúdo e ordem dos livros do Antigo Testamento. Os cristãos católicos optaram
por utilizar uma ordem dos livros semelhante a dos primeiros cristãos. Com isso, esses livros
17

que não são encontrados nas bíblias cristãs-protestantes são chamados de deuterocanônicos,
pois foram “canonizados num momento posterior”.
Para uma melhor compreensão dessa divisão e dos livros que compõe a Bíblia, é
necessário tratarmos de ambos separadamente. Primeiramente, uma visão acerca dos livros do
Velho Testamento e, após isso, uma visão do Novo Testamento.

1.1 O Velho Testamento

Apesar da diferença do número de livros que apresentam, tanto a Bíblia católica


quanto a protestante apresentam 35 livros iguais. Esses livros, que em sua grande maioria
foram escritos no idioma do povo de Israel da época, o hebraico, apresentam algumas partes
escritas em aramaico, língua que, segundo Konings (1998), era a língua administrativa do
império persa e ainda falada no tempo de Cristo. Os versículos de Daniel 2,4b-7,28 e Esdras
4,8;6,18;7,12-26, por exemplo, foram escritos em aramaico.
A Bíblia hebraica ainda tem em si uma característica que todas as bíblias posteriores
herdaram: refusão de textos dentro de seu conteúdo completo. Alter (1997, p. 26) afirma que
“a Bíblia hebraica, porque com tanta freqüência articula seus significados refundindo textos
dentro de seu próprio corpus, já se encaminha para ser uma obra integrada, com toda a sua
diversidade antológica”. Existem retomadas de leis antigas, presentes nos primeiros livros
(Pentateuco), cumprimento de acontecimentos previstos pelos profetas do Antigo Testamento
durante a extensão do Novo Testamento.
Um exemplo interessante é a retomada que o livro de Rute faz do livro de Gênesis.
Quando Booz encontra Rute em seu campo, posteriormente a ela se prostrar diante dele após
sua oferta de proteção e também de hospitalidade, ela a louva com as palavras: “Booz
respondeu: Fiquei sabendo de tudo o que você fez por sua sogra, depois que você perdeu o
marido. Você deixou pai e mãe, abandonou sua terra natal e veio viver no meio de um povo
que você não conhecia” (Rute 2, 11)2. Aqui existe uma forte lembrança das palavras de
YHWH a Abraão, presentes no livro de Gênesis, onde YHWH diz a Abraão: “Javé disse a
Abraão: Saia de sua terra, do meio de seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que
eu lhe mostrarei” (Gênesis 12,1)3. Tanto em Gênesis como em Rute, as palavras terra-lugar de
nascimento e pai estão presentes nos dois textos, indicando que Booz cita algo já dito por

2
Bíblia Sagrada: Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 2000.
3
Idem.
18

outro personagem bíblico (que pertenceu ao mesmo povo que ele). Mas essas retomadas
presentes não seriam possíveis se um dos livros não fosse integrante do cânon bíblico.
Além de fazer retomadas a textos anteriores, o Antigo Testamento apresenta alguns
problemas de conteúdo geral. Pode-se tomar como exemplo o caso de Gênesis 1 e Gênesis 2-
3, além do caso de Gênesis 12 e Gênesis 20. No primeiro caso, a história da criação do mundo
juntamente com a criação do homem é colocada de duas formas de seqüência. Gênesis 1
mostra a criação do mundo na seqüência: Luz – Firmamento entre águas – Divisão de terra e
mar – Natureza – Sol e lua – Peixes e aves – Animais domésticos e ferozes – Homem e
mulher. Ao contrário de Gênesis 1, o capítulo 2 apresenta a criação com o homem sendo o
primeiro a ser criado e depois o restante. Essa narrativa de uma mesma história, porém, com
diferenças, mostra em dois capítulos narrativas concorrentes de um mesmo fato.
Já nos capítulos 12 e 20 de Gênesis apresentam-se ao leitor duas narrativas da
história de Abraão em que este corre risco de morte por ser esposo de Sara. No capítulo 12
Abraão teme morrer e apresenta Sara como sua irmã ao Faraó. O Faraó coloca Sara sobre suas
posses e trata muito bem a Abraão, enchendo-lhe de presentes. Mesmo assim, o Faraó é
castigado por YHWH com doenças. Sara então é devolvida a Abraão e ele tem permissão de
sair do Egito com sua mulher. No capítulo 20, novamente Abraão apresenta Sara ao rei de
Gerar, Abimalec. O rei manda raptar Sara. É castigado por YHWH. Sara novamente é
devolvida a Abraão.
Além disso, a autoria de Moisés é questionada devido a um outro problema de
conteúdo geral. Konings trata muito bem desse aspecto em seu livro A Bíblia nas suas origens
e hoje dizendo que

[...] muitas leis e situações mencionadas no Pentateuco não correspondem


ao tempo de Moisés, quando hebreus vivam como nômades no deserto, e
sim, ao período em que os israelitas já estavam assentados como
agricultores na Terra Prometida. (KONINGS, op. cit., p. 76)

Mesmo tratando-se de um problema de conteúdo geral, o fato de Moisés escrever


sobre fatos posteriores a seu tempo, não se pode discordar de que a visão que o Pentateuco
proporciona do início da história do mundo e do povo é grandiosa, além de que consegue
fazer uma maravilhosa transição para a historiografia profética do período das tribos e do
reinado de Israel. Essa transição, feita no livro de Deuteronômio, não deixa um vazio ao
leitor, pois o início do livro de Josué já teve uma prévia apresentada nos capítulos finais de
Deuteronômio.
19

A formação do cânon bíblico, mais especificamente do Antigo Testamento


proporciona um conhecimento por parte do leitor desde a criação do mundo até os tempos dos
profetas, antecipando o nascimento de Jesus Cristo. A estrutura desse cânon tem por objetivo
dar essa visão histórica geral para que os acontecimentos do Novo Testamento tenham uam
base já prevista e/ou profetizada.
O cânon do Antigo Testamento nem sempre foi da forma como conhecemos hoje.
Sabemos que essa divisão foi formada no século V a.C., nos dias de Esdras e Neemias, mas
antes desse período possuía uma estrutura diferente. A Bíblia hebraica seguia uma estrutura
diferente da utilizada hoje, sendo desiginada pelos judeus como Tanakh. De acordo com Alter
(1997), a palavra Tanakh era “um acrônimo para Torah (Pentateuco), Neviim (profetas
anteriores e posteriores) e Ketuvim (Coletânea de Escritos ou Tudo o Mais)” (op. cit., p. 24). A
Bíblia hebraica então apresentava uma divisão em 3 grandes partes:

Nome Significado Descrição


Torah Pentateuco Compreendem os cinco
primeiros livros: Gênesis,
Êxodo, Levítico, Números e
Deuteronômio.
Neviim Profetas anteriores e São divididos em anteriores:
posteriores Josué, Juízes, Samuel e
Reis; e posteriores: Isaías,
Jeremias, Ezequiel e os doze
profetas menores.
Ketuvim Coletânea de Escritos ou São subdivididos em livros
Tudo o Mais poéticos: Salmos,
Provérbios e Jó; rolos:
Cântico dos Cânticos, Rute,
Lamentações, Eclesiastes e
Ester; e outros livros:
Daniel, Esdras e Neemias
juntos, e Crônicas.
Tabela 1. Divisões dos livros da bíblia hebraica. Adaptada de Alter (1997, p. 24)
20

Para melhor entender o Antigo Testamento como um todo, uma visão um pouco mais
detalhada dos livros que fazem parte dele é de grande interesse. E essa visão será dividida em
4 tópicos: Pentateuco, Livros Históricos, Livros Poéticos e Livros Proféticos.

1.1.1 O Pentateuco

O Pentateuco (cinco livros), também conhecido como Torah, que significa lei,
apresenta os cinco livros de Moisés. A visão apresentada por esses livros inicia-se com a
criação do mundo por YHWH, desde a separação entre terra e água até a criação do homem a
sua imagem e semelhança. Esse início do mundo e a continuação da raça humana são
apresentados no primeiro livro dos 5: o Gênesis. O livro transmite uma verdade religiosa ao
longo de seus 50 capítulos:

Deus escolhe um povo para veículo de fé e vivência religiosa autênticas.


Não é um compêndio de história. Narra as vivências religiosas dos
patriarcas, não com recitação fria e distante de episódios passados, mas
como meditação contemplativa de uma experiência que se repete e
atualiza4.

O Pentateuco apresenta em seu conteúdo uma série de histórias e leis relacionadas ao


povo de Israel. Leis essas que, ao longo da história, foram sendo reformuladas, adaptadas,
mas nunca esquecidas. Todas essas leis que o Pentateuco apresenta têm como base a liberdade
concedida por YHWH aos israelitas do povo egípcio, que sinaliza o início da formação real do
povo de Israel. Através dessa libertação os israelitas são chamados de povo (povo de Israel,
povo de YHWH).
As leis apresentadas no Pentateuco são diretas ao povo de Israel em todas as etapas de
sua história. Em momento algum as leis são utilizadas para fins errados, apenas para melhorar
o convívio com YHWH e a relação com o próximo. Essa lei, apresentada no Monte Sinai por
YHWH a Moisés é simbolizada por duas tábuas, contendo os Dez Mandamentos. As leis
visam trazer libertação do povo como um todo e criação de uma sociedade justa, que ande
segundo os princípios de YHWH.

4
Retirado de Bíblia Sagrada: traduzida das Línguas Originais com uso crítico de todas as fontes antigas pelos
Missionários Capuchinho. Lisboa: Stampley, [s.d].
21

A questão das alianças de YHWH com os patriarcas também é um aspecto interessante


do Velho Testamento, em especial no Pentateuco. As alianças de YHWH com Moisés, com
Abraão e também com José são essenciais para o desenvolvimento da história de Israel
enquanto povo. Na destruição da terra através do dilúvio, na preservação da espécie e
aumento dela e no cuidado através de sonhos fazem com que o início do povo de Israel seja
marcado por sonhos, crenças de um futuro melhor e dedicação a YHWH. O livro de Êxodo,
em particular, apresenta a aliança dos homens com YHWH através das tábuas da lei. Através
dessas leis, a sociedade de Israel seria livre e protegida. Através do cumprimento dessas leis, o
povo de Israel poderia acreditar que sempre se veria diante de demonstrações materiais do
poder de YHWH (José), como no dilúvio (Noé) e no aumento da geração (Abraão) e
demonstração de amor e cuidado (Moisés).
Em um determinado momento da história, o controle sobre o povo começa a fugir de
Moisés, e chega a hora de serem eleitos novos juízes para julgarem porções pequenas do
grande povo. Através de Moisés, o povo chega a tão sonhada terra de Canaã, e cabe a Moisés
transformar um grande número de pessoas fugitivas em um povo com características próprias,
dono de uma cultura diferente de todas as culturas dos povos ao seu redor. Sobre Moisés e seu
papel no Pentateuco, Alter (1997) diz que Moisés

É o mediador da Aliança Sagrada entre Javé e seu povo, o chefe


carismático do povo hebreu em sua marcha de escravidão do Egito até a
aliança no Monte Sinai. Embora tendo exercido todas estas funções, a
atuação de Moisés não se limitava a nenhuma delas. Mas na função de
legislador, ele se destacava, como o atestam, unanimente todas as
tradições do Pentateuco. (op. cit., 42-43)

O terceiro livro, Levítico, é apresentado como o livro das leis do antigo povo de
Israel. Mas por trás da apresentação monótona das leis, o livro traz ao leitor o ideal proposto
ao povo: o de prestar culto ao YHWH que os havia libertado do Egito através de sacrifícios,
comunhão e reconhecimento de seus dons. O livro apresenta uma quantidade de leis relativas
a esse ideal. A passagem pelo deserto traz ao povo o entendimento da necessidade de crença
na fonte de esperança (YHWH). A passagem pelo deserto se faz necessária para que o povo
possa entender as leis e aceitá-las de coração aberto. David Damrosch (apud ALTER;
KERMODE, 1997, p. 90) diz que “em sua apresentação da Lei dentro dessa visão do
potencial redentor do exílio, o Levítico é o próprio âmago da narrativa do Pentateuco”.
Um grande recenseamento é apresentado no livro de Números (quarto do
Pentateuco), além de duas partes interessantes na caminhada do povo de Israel rumo a Terra
22

Prometida. James S. Ackermanm (apud ALTER; KERMODE, 1997, p. 91) diz que “o livro
dos Números narra a partida de Israel do Monte Sinai e sua jornada no Deserto por uma
geração inteira até alcançar a fronteira da Terra Prometida”. Em um determinando momento
da história (narrado no capítulo 16), os líderes mostram-se sujeitos a fraquezas e desânimos,
assim como o povo já havia mostrado, mesmo sendo eles os mais importantes dentro de todo
o povo. Em um outro momento, a história interessante de uma jumenta que adquiri a
capacidade da fala. Mesmo sendo um estrangeiro, Balaão passa pela experiência de tornar-se
um profeta de Israel. Essa parte mostra a necessidade de um profeta de YHWH dentro do
povo. Uma conexão direta com YHWH através de um homem, mesmo YHWH habitando
dentro de seu povo no Santuário.
O último livro do Pentateuco, o Deuteronômio, mostra ao leitor uma reapresentação
da Lei de YHWH, agora mostrada em sentido da vida do povo na Terra Prometida. A idéia
central do livro mostra uma opção ao povo como um todo: seguir as ordens de YHWH ou não
seguir. Se o povo decide seguir a YHWH, se o povo for fiel à aliança feita com YHWH, o
povo será feliz e próspero. Se a decisão for a de quebrar essa aliança, de não seguir mais a
YHWH, então isso acarretará desgraças e eles poderão até perder a terra. O livro também
apresenta uma divisão do povo. Aqueles que agora entrariam na Terra Prometida não eram
mais aqueles a quem YHWH havia feito a promessa. Eram uma nova geração, pois aquela
primeira havia perdido o direito. Moisés mesmo era um deles. Apenas pode vislumbrar a
Terra, mas não possuí-la. Robert Polzin (apud ALTER; KERMODE, 1997, p. 105) diz que “o
Deuteronômio oferece uma visão geral da história inteira de Israel, que será em breve
recontada com detalhes de Josué a II Reis”.
Por ser dado a Moisés o crédito da escrita do Pentateuco, o quinto livro encerra-se
com a morte de Moisés. O povo então adentra a Terra Prometida. Moisés conduz o povo do
Egito as portas do local, mas, por desobediência anterior, não recebe o privilégio de possuir a
terra. Ao se encerrar o Pentateuco, a Bíblia traz ao leitor o início dos livros históricos,
relativos ao povo ou a personagens do povo de Israel.

1.1.2 Os Livros Históricos

Os Livros Históricos apresentam a história do povo de Israel desde a entrada na Terra


Prometida sobre o comando de Josué até quase a época do exílio em Babilônia. É composto
23

pelos livros de Josué, Juízes, Rute, I e II Samuel, I e II Reis, I e II Crônicas, Esdras, Neemias,
Ester. Nas bíblias católicas existe o acréscimo dos livros de Tobias, Judite, I Macabeus e II
Macabeus. A apresentação dos livros não segue uma ordem totalmente cronológica, mas uma
interpretação de fatos relacionados à fé dos personagens.
Uma ordem cronológica é seguida pelos livros de Josué, Juízes, I e II Samuel e I e II
Reis. Os livros I e II Crônicas, Esdras e Neemias referem-se ao tempo de pós-exílio
babilônico. Por fim, os livros de Rute, Tobias, Judite, Ester, I e II Macabeus referem-se a
narrativas particulares.
Josué, o primeiro dos Livros Históricos, apresenta a narrativa da conquista da Terra
Prometida. Em nenhum momento o povo obtém a terra de forma fácil. Essa conquista torna-se
um processo longo e ao mesmo tempo lento, muitas vezes deixando de ser pacífico para
tornar-se violento. Segundo a Introdução da Bíblia Sagrada: Edição Pastoral5, “o livro de
Josué constitui, portanto, um insuperável tratado sobre a graça de Deus, que é a base da vida e
da história”. A promessa feita por YHWH durante o período do Pentateuco agora começa a
tornar-se realidade para a geração de Josué, geração seguinte àquela que havia sido libertada
do cativeiro egípcio. David M. Gunn (apud ALTER; KERMODE, 1997, p. 115) afirma que o
livro de Josué

[...] retoma a história – uma história que vai de Gênesis a II Reis – onde o
Deuteronômio para: o povo deixou o Egito, a terra do cativeiro,
atravessou o Mar Vermelho, recebeu a lei de YHWH no Sinai, atravessou
o deserto, tomou posse da terra a leste do Jordão (Núm. 32) e agora está
prestes a receber o restante da promessa.

Uma semelhança interessante com o livro Deuteronômio é que ambos terminam com
a morte de seus escritores. Se o Pentateuco termina com a morte de Moisés, o livro de Josué
termina com a breve despedida de Josué ao povo e a narração de sua morte. E é com a sua
morte que entra em cena a necessidade do povo de uma liderança feita por meio de juízes.
A morte de Josué, a divisão do povo em tribos e o crescimento do povo como um
todo fazem surgir os juízes entre o povo. As tribos são governadas por juízes vitalícios, que
em determinados momentos da história dão lugar a um único juíz que comanda toda a nação.
Em especial o destaque para Débora e Barac, Gideão e Sansão. O ponto de interesse na leitura
do livro de Juízes é uma seqüência de fatos que se assemelham muito. Na história dos 4 juízes
já citados, essa seqüência é idêntica.

5
Bíblia Sagrada: Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 2000. p. 241. 41ª impressão.
24

Nessa seqüência, o povo começa a praticar pecado e abandonar (e/ou esquecer)


YHWH. Logo após, passa por um período de castigos, pois está servindo a ídolos e está
novamente sem liberdade. Após passar por essas duas etapas, começam a passar por um
processo de conversão, onde, no limite do sofrimento, começam a voltar a lembrar de YHWH
e a buscá-lo. Por fim, entram na última etapa, a etapa da graça, na qual YHWH escuta seus
clamores e os liberta do opressores através dos 4 grandes juízes citados anteriormente. Nas
histórias dos 4 grandes juízes, essa seqüência se repete de uma forma muito clara. É
necessário passar por um período de intenso sofrimento para que o povo de Israel volte a ser
governado inteiramente por YHWH.
Diferentemente dos outros povos, Israel não era um povo ainda monárquico. Mas essa
diferença tem seu fim nos livros de I e II Samuel. A transição do período dos juízes é feita por
Samuel, ora um grande juíz, ora um profeta de Deus. Cabe a ele escolher (sob orientação de
YHWH) o primeiro monarca de Israel. Nos dois livros, apresentam-se as histórias dos
primeiros dois monarcas de Israel: Saul e Davi. A Bíblia Sagrada: Edição Pastoral (2000, p.
301) cita que “I Samuel oferece, portanto, uma visão crítica da autoridade política. Mostra que
Deus é o único rei sobre seu povo. Para ser legítimo, o rei humano deve ser representante de
Deus, isto é, servir a Deus através do serviço ao povo”. Saul, primeiro rei de Israel, decide
seguir um caminho diferente do proposto por YHWH, Saul tem um reinado conturbado e
coloca fim a sua vida se jogando sobre um espada. Com a morte de Saul, o livro de I Samuel
tem seu fim.
A figura de Davi é o centro do livro de II Samuel. Mesmo que a morte de Samuel
acontece no capítulo 25 de I Samuel, a narrativa continua. O segundo livro apresenta o
reinado de Davi sobre Israel. De maneira diferente, Davi escolhe reinar de acordo com os
princípios de YHWH, seguindo todas as ordens deixadas por ele. Davi torna-se um modelo de
autoridade política que desenvolve (e prega) a justiça. Davi traz ao povo o sentimento de
esperar o Messias que os iria reunir novamente. Joel Rosenberg (apud ALTER; KERMODE,
1997, p. 156), ao falar de ambos os livros de Samuel, diz que

Samuel é, assim, um trabalho de crítica nacional. Ele reconhece que


Israel não teria sobrevivido, política ou culturalmente, sem a presença de
uma casa real dinástica. Mas torna tanto a casa como seus súditos
responsáveis por padrões firmes de justiça profética – não aos padrões de
profetas de culto ou exáticos profissionais, mas de líderes proféticos
moralmente íntegros na tradição de Moisés, Josué, Débora, Gideão e
Samuel.
25

Os livros de I e II Reis dão continuidade à história da monarquia de Israel. Depois da


morte do sucessor de Davi, Salomão, o reino se divide em dois: o reino de Israel, que tem
como sede a cidade de Samaria, e o reino de Judá, que tem como sede a cidade de Jerusalém.
Ambos os livros tratam de um mesmo tema: se os reis são fiéis a Deus, o povo recebe bençãos
e tem prosperidade; se os reis são infiéis, o povo recebe maldições, chegam à ruína e são
levados ao exílio (II Reis 17). Mais uma vez, o tema central dos livros anteriores é colocado: a
presença do povo na Terra Prometida só é possível se existe fidelidade a YHWH; a partir do
momento em que o povo se esquece dEle, começam a sofrer as conseqüências. Ainda nesses
dois livros, dois temas são apresentados: o Templo e o profetismo. O Templo como local de
reunião de todo o povo e encontro com YHWH. Os profetas como mensageiros diretos de
YHWH e responsáveis por manter a consciência do povo voltada aos princípios de YHWH,
para que o povo não o esqueça e não seja castigado.
Ambos os livros de Crônicas (I e II Crônicas) tem como tema principal o templo e os
sacerdotes e levitas que dentro dele exercem suas funções respectivas. Apresentam em
especial o papel dos levitas dentro do povo, tanto nas linhas genealógicas quanto na narrativa.
A Bíblia Sagrada: Edição Pastoral afirma que “os livros das Crônicas, portanto, oferecem
uma versão da história que reivindica e justifica a função do levita na liderança da
comunidade judaica”. Os levitas são apresentados como aqueles que relembram o povo da
aliança anteriormente feita com YHWH e, dessa forma, necessariamente detentores de uma
posição privilegiada entre o povo. Nessa narrativa, apenas o Reino do Israel é citado. Nos
livros de Esdras e Neemias, o tema central é a organização da comunidade, formada após o
exílio na Babilônia. Juntos, possuindo 23 capítulos, abrangem três unidades narrativas
distintas, com um personagem central em casa uma delas. Shemaryahu Talmon (apud ALTER;
KERMODE, 1997, p. 384) cita que “os primeiros seis capítulos tratam da etapa inicial de
repatriação, sob a liderança do descendente davídico Zorobabel e do sumo sacerdote Josué
(538-515 a.C.); (...) os quatro capítulos seguintes referem-se a Esdras, sumo-sacerdote e
escriba que, segundo o relato, chefiou o retorno de outro contingente de judeus no sétimo ano
do rei persa Artachshast (...)”. Os outros treze capítulos relatam a história de Neemias.
Os outros seis livros não se encaixam nessa narrativa anterior ao exílio e também após
o mesmo. Tobias, Ester, Rute e Judite podem ser considerados romances, por colocarem
histórias ao leitor, histórias de situações típicas dos judeus. Servem de modelo para uma
análise profunda de certos momentos e/ou situações enfrentadas pela monarquia e pelo povo.
Por fim, os livros I e II Macabeus referem-se ao sentido religioso da resistência judaica
através do uso da crônica. Segundo a Bíblia Sagrada: Edição Pastoral, ambos os livros de
26

Macabeus apresentam “estilo de crônica elogiosa sobre os heróis da fé, mostrando as bases
para uma reflexão sobre o martírio”.

1.1.3 Os Livros Poéticos

Os Livros Poéticos, também chamados de Sapienciais, apresentam ao leitor a


sabedoria e espiritualidade do povo de Israel. A essa sabedoria não se deve conotar um
acúmulo de conhecimento ou excesso de inteligência, mas sim o uso do bom senso e do
discernimento perante situações que exigem decisões importantes. Nestes livros, o leitor pode
encontrar exemplos vividos pelos personagens e utilizá-los posteriormente em sua própria
vida. Os problemas do cotidiano do povo israelita trazem lições importantes que são expostas
ao longo dos conteúdos dos Livros Poéticos.
Provérbios e Eclesiático são dois livros que apresentam a sabedoria popular em forma
de coleção de frases e sentenças curtas que trazem saídas para diferentes situações enfrentadas
por qualquer tipo de pessoa. James G. Williams (apud ALTER, 1997, p. 288) afirma que “o
papel que os provérbios e máximas desempenham na retificação de situações sociais e
sustentação de decretos legais estão intimamente relacionado ao que foi revelado em algumas
teorias modernas do eu; essas teorias oferecem certos dados sobre a função da sabedoria”. Os
provérbios são originados na experiência de vida do povo e relatados a gerações posteriores
através de breves frases que contém esse conhecimento. Além disso, contém a verdade de
YHWH, pois esse conhecimento adquirido pelo povo é fruto da experiência de vida através de
uma vida ligada a YHWH.
Os livros de Jó, Eclesiastes e Sabedoria apresentam um foco mais específico sobre os
problemas da vida. Tratam de temas que despertam interesse do ser humanos, temas esses que
são discutidos até mesmo nos dias atuais. O sentido da vida, a morte, o bem e o mal, a justiça,
esses temas são abordados de uma maneira mais profunda por esses três livros. Em especial,
destaca-se o livro de Jó, por sua forma de escrita (poesia) e pela discussão que trás ao longo
de seus 42 capítulos. Ao discutir o problema do bem e do mal em relação ao ser humano, o
sofrimento físico e psicológico causado por essa diferença entre bem e mal, o livro discute de
uma forma bastante interessante a relação entre YHWH e o homem. Através da história deste
personagem, YHWH é mostrado de uma forma mais amorosa em relação ao homem, sendo
que essa forma mais amorosa se dá quando existe a disponibilidade de caminhar juntamente
27

com o ser humano e com ele crescer social e materialmente. Nos três livros, de formas
diferentes, essa relação YHWH-ser humano é apresentada.
O livro chamado Cântico dos Cânticos trata do amor humano fazendo uma relação
com o amor de YHWH por ser povo, revelando o amor de YHWH pela humanidade. Ao falar
do amor humano, o livro apresenta o amor de YHWH. Francis Landu (apud ALTER, 1997, p.
341) diz que “mais centralmente, o Cântico é um reflexo da história do Jardim do Éden,
usando as mesmas imagens de jardim e árvore, substituindo a dissociação traumática do
homem e animais por sua integração metafórica. Através dele vislumbramos, tardiamente,
pela graça da poesia, a possibilidade do paraíso”. O livro ainda utiliza-se de menções
constantes a elementos da natureza.
Por fim, o livro de Salmos apresenta a espiritualidade de Israel através de orações.
Dentro das orações, diversas situações da vida humana são abordadas. YHWH mais uma vez
é apresentado através da experiência cotidiana e a necessidade de uma relação íntima com Ele
torna-se imprescindível. Os salmos são poesias (forma mais apropriada para expressar os
sentimentos diante da realidade da vida. Robert Alter (1997, p. 278-279), ao falar sobre o
livro de Salmos, afirma que “o Livro dos Salmos reflete certas preocupações temáticas
específicas e recorrentes. Estas não são, como se poderia pensar de início, coextensivas com o
gênero salmódico, mas, pelo contrário, tendem a cruzar-se nos diferentes gêneros”.
Preocupações com a morte, com a salvação, com os problemas da vida, essas preocupações
são tratadas ao longo da extensão do livro de Salmos.

1.1.4 Os Livros Proféticos

Após uma pausa a respeito da história de Israel feita pelos livros poéticos, a história é
retomada pelos Livros Proféticos. O tema central destes livros é o desejo de YHWH de que
seu povo alcance grandes conquistas e faça mudanças. Através de seus profetas YHWH fala
ao seu povo em diferentes épocas sobre presente e futuro. A mensagem destes profetas carrega
duas vertentes: a exigência imediata de conversão e o anúncio de esperança. A conversão feita
no presente acarreta em esperança futura. Os profetas, de maneiras diferentes e em épocas
diferentes, procuram levar o povo a um relacionamento íntimo comYHWH. Em especial,
destacam-se Isaías, Jeremias e Ezequiel, Jonas e Davi.
28

O livro de Isaías pode ser dividido em 3 partes para facililitar seu entendimento. Do
capítulo 1 ao 39, o livro apresenta a santidade de YHWH como tema central, utilizando
oráculos diversos (capítulos 1-12), oráculos contra pagãos (capítulos 13-23), conclusões dos
oráculos anteriores (capítulos 14-27), profecias de Isaías (capítulos 28-35), e uma seção
narrativa com poemas inseridos (capítulos 36-39); a segunda parte apresenta a situação
histórica do exílio, antecipando o retorno do povo. Apresenta uma mensagem de esperança e
consolação (capítulos 40-55); a terceira parte retoma o mesmo tema da segunda, mas introduz
oráculos sobre julgamentos. Além disso, procura estimular a comunidade formada após o
exílio. O papel de Isaías como profeta é destacado por Luis Alonso Schökel (apud ALTER,
1997, p. 193), ao dizer que “um grande inimigo da esperança é a nostalgia: o sonho de um
passado dourado, que nunca deve voltar. Dedicando tempo excessivo ao passado, o povo não
vê o presente nem o futuro. O profeta denuncia essa nostalgia paralisante e, contra o ensino
tradicional sobre a recordação (Salmos 78:5-7), ousadamente os instrui: ‘Não fiqueis a
lembrar coisas passadas” (Salmos 43:18), para que eles possam compreender o advento de um
futuro novo. Essa mudança de visão é possível por Isaías.
Os livros de Jeremias e Ezequiel são livros distintos, nos quais a atuação dos dois
profetas se dá na transição de Israel para o exílio. O profeta Jeremias pertence ao mundo
camponês. Sua atuação extende-se por quatro períodos distintos: durante os reinados de
Josias, Joaquim e Sedecias, além da posterioridade da queda de Jerusalém. Jeremias traz uma
visão camponesa sobre a situação do país. Já Ezequiel tem sua atuação durante o período de
exílio na Babilônia. Assim como aconteceu no passado, cabe a ele trazer luz a mente do povo
ao pregar uma conversão completa a YHWH para que o povo possa voltar a ser livre. A
atuação destes dois profetas, mesmo em períodos distintos, porém em seqüência, tentam
elucidar o povo da antiga aliança feita antes mesmo de conquistarem a Terra Prometida.
Apesar de aparecer entre os Profetas Menores, o livro de Jonas apresenta-se com
diferenças marcantes, principalmente no que tange a obra literária. James S. Ackrman (apud
ALTER, 1997, p. 251) diz que “enquanto os Profetas Maiores e Menores são essencialmente
coleções de oráculos, Jonas reconta as aventuras de um profeta que luta contra sua missão
divina”. A história desse profeta, marcada por narrativas grandiosas (Jonas é engolido por um
grande peixe e passa três dias em seu ventre, por exemplo), o livro aponta para a conversão de
uma cidade incrivelmente pecaminosa, deixando explícita a mensagem de que todos têm uma
chance de conversão aos princípios de YHWH.
O livro de Daniel (um dos maiores profetas do Antigo Testamento, talvez o maior
deles) apresenta uma característica que o diferencia de todos os outros: o profetismo
29

apocalíptico. O profeta não apenas trazia mensagens sobre o povo de Israel, mas sobre o
futuro do mundo. O livro pode ser dividido em duas partes distintas: a primeira (capítulos 1-6)
traz as histórias de Daniel e seus amigos durante o domínio persa; a segunda trata sobre o
futuro, em especial os acontecimentos anteriores ao estabelecimento do reino de Deus. A
preocupação com o futuro traz ao presente a necessidade de fidelidade e perseverança nas
promessas feitas por YHWH. Além do profetismo apocalíptico, o livro de Daniel traz uma
“diversidade lingüística e literária (...) [que] revela uma estrutura composta. As partes de
abertura e encerramento (1:1-2:4a e 8-12), em hebraico, emolduram uma porção em aramaico
que é, ela própria, um composto (2:4b-6:28 e 7:1-28)”6.
Os outros livros que compõem os Livros Proféticos (Lamentações, Baruc, Oséias,
Joel, Amós, Obadias, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias)
vão retomar o ideal de que o povo necessita dedicar-se (converter-se) inteiramente a YHWH,
sem nenhum tipo de reserva. Cada um a seu estilo, os profetas tentam trazer o povo de volta
aos caminhos de Deus, mas de uma maneira completa, não apenas algumas pessoas. Como
exemplo, Miquéias, profeta que de origem camponesa, utiliza-se de uma linguagem franca e
concreta, começa denunciando os erros que o povo comete e termina trazendo mensagens de
esperança e também promessas. Já o profeta Malaquias (o último livro do Velho Testamento
leva seu nome) utiliza-se do formato perguntas e respostas para fazer o povo rever sua fé e
com isso mudar sua forma de ver a religião. Traz a mensagem de que YHWH não se esquece
dos justos e, portanto, o povo precisa tornar-se justo para que Deus não se esqueça dele.
O livro do profeta Malaquias encerra o Velho Testamento. Após este livro, iniciam-se
os livros que compõe o Novo Testamento. É perceptível que a mensagem contida no Velho
Testamento gira sempre em torno da conversão completa do povo a YHWH (de geração em
geração, pois sempre aparecem personagens pregando essa mensagem ao povo). Tanto na
formação do povo de Israel como em toda a sua história, a presneça de YHWH é constante e
sempre necessária. Por mais longe que o povo esteja dEle, a necessidade faz com que eles
tornem a procurá-lo, mesmo que muitas vezes seja necessário alguém relembrá-los que Ele
exista. Após isso, a história continua com o nascimento de Jesus Cristo e seu ministério. O
Velho Testamento encerra-se e dá lugar ao Novo Testamento.

6
TALMON, Shemaryahu. Daniel. In: KERMODE, Frank; ALTER, Robert (Org.). Guia literário da Bíblia.
Tradução Raul Fiker. Revisão de tradução Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1997. (Prismas)
30

1.2 O Novo Testamento

Diferente do Velho Testamento, tanto bíblias católicas quanto protestantes possuem o


mesmo número de livros que compõem o Novo Testamento. O tema central é Jesus Cristo.
Uma característica interessante é que ele não é composto totalmente por livros, mas também
por cartas, sendo que 21 dos 27 livros do Novo Testamento são cartas. Por ter em mãos os
escritos do Antigo Testamento, tanto Jesus Cristo (em seus discursos) quanto seus discípulos e
apóstolos utilizam bastantes referências a passagens do Velho Testamento. Frank Kermode
(1997, p. 403) afirma que “o Antigo Testamento, portanto, molda as narrativas do Novo, que
não pode ser plenamente entendido sem referência a seu predecessor sagrado”. Através dos
livros do Novo Testamento é possível perceber que Jesus Cristo veio estabelecer a aliança
definitiva entre Deus e os homens.
Em nenhum momento os livros do Novo Testamento prentendem ser considerados
como biografias de Jesus Cristo. Foram escritos unicamente com o objetivo de propagar as
aos outros as mensagens de Cristo através das eras. Além disso, o pensamento de que o Novo
Testamento foi escrito em função de tomar o lugar do Velho Testamento é incorreto. Kermode
(op. cit., p. 644) cita que

[...] nem Paulo nem os evangelistas escreviam com o objetivo de


acrescentar algo a Bíblia existente; na verdade, o único livro do Novo
Testamento que reivindica esse status inspirado é o Apocalipse, com sua
ameaça de danação contra qualquer um que presumivelmente lhe fizer
acréscimos.

Os livros do Novo Testamento apresentam primeiramente a história da vida de Jesus


Cristo (Evangelhos), relatando sobre sua igreja (Atos), apresenta as 21 cartas (Epístolas) e
termina com um livro profético (Apocalipse). Todas as histórias e relatos estão voltados para
Jesus Cristo e seu ministério. Em nenhum momento o Velho Testamento é descartado ou
esquecido. Sobre isso, Kermode (op. cit., p. 407) cita ainda que “ao considerar tais questões,
lembremos, mais uma vez, que a Bíblia dos autores do Novo Testamento era a Bíblia hebraica
(e suas traduções e paráfrases gregas e aramaicas). Sobre esse texto fundador foi sobreposto
um forte kerygma oral, a proclamação cristã, mas as escrituras, o fundamento escrito, eram
especialmente importantes para os evangelistas escritores”. Uma visão mais detalhada dos
livros do Novo Testamento ajuda bastante na compreensão do tema central.
31

1.2.1 Os Evangelhos

Os quatro evangelhos apresentam a vida de Jesus Cristo e seu ministério. Os quatro


evangelhos apresentam diferenças entre seus conteúdos, pois apresentam as formas de cada
discípulo ver e relatar os acontecimentos. Muitas histórias se repetem, apresentando adição de
informações e/ou também subtração. Mas o tema principal dos quatro livros é a vida e o
ministério de Jesus Cristo.
Jesus Cristo é apresentado como Emanuel (que significa Deus Conosco) e o
significado do nome é a mensagem principal do Evangelho segundo São Mateus. Para o autor,
as promessas apresentadas pelos profetas no Velho Testamento têm seu cumprimento com o
nascimento e a vida de Jesus Cristo. Tudo o que um dia havia sido fonte de esperança para o
povo de Israel agora tornava-se realidade na pessoa de Jesus Cristo. A presença de Jesus
Cristo na vida diária é o ponto forte do livro. O leitor é convidado a uma reflexão sobre o
papel de Jesus Cristo em sua vida. Kermode (apud ALTER; KERMODE, 1997, p. 417) diz
que “o Evangelho de Mateus é muito mais longo que o de Marcos e acrescenta ao registro
muita coisa referente ao ensinamento de Jesus, além de uma história da Natividade totalmente
ausente de Marcos e significativamente diversa da de Lucas”. Diferente dos outros
evangelistas, Mateus aproxima Jesus Cristo da vida diária dos leitores através de uma atenção
especial dada aos seus ensinamentos durante seu ministério.
No Evangelho segundo São Marcos, o autor tem a intenção de mostrar ao leitor quem
é Jesus Cristo. Este é apresentado através da prática de seu ministério, entrando em conflito
com o sentimento do povo de que deveria exercer dominação sobre aqueles que os
dominavam. Toda a prática do ministério de Jesus é apresentada como o anúncio e a
concretização da vinda do Reino de YHWH. O autor trabalha os relatos para mostrar que o
leitor também precisa tornar-se um discípulo. Sobre o estilo usado pelo autor do Evangelho,
John Drury (apud ALTER; KERMODE, 1997, p. 438) afirma que “Marcos usava técnicas
narrativas comuns a todos os praticantes do ofício, mas o esboço de seu texto e a força de suas
crenças apocalípticas combinam-se para tornar o uso que delas faz invulgarmente (para nós)
diagramático.
Apesar de os quatro evangelhos apresentarem o mesmo Jesus Cristo, Lucas é, dentre
os quatro, o que apresenta a forma mais humana de Cristo. Com relação explícita com o livro
de Atos dos Apóstolos (que segundo estudiosos também recebe a autoria de Lucas), o
32

Evangelho segundo São Lucas apresenta o caminho de Jesus Cristo que entra para a história,
caminho esse que inicia o processo de libertação do pecado e começa a escrever uma nova
história para a raça humana. John Drury (apud ALTER; KERMODE, 1997, p. 547), ao falar
sobre essa relação, cita que “o fim do Evangelho é também um começo. Do mesmo modo que
os dois primeiros capítulos gravitam na direção de Jerusalém, centripetamente, de agora em
diante as novas serão espalhadas a partir de Jerusalém, centrifugamente”. Os discípulos que
começam a pregar a partir de Jerusalém são os mesmos que começam a fundar a igreja de
Cristo em Atos do Apóstolos. O ponto central do Evangelho de Lucas se dá na morte de Jesus
Cristo, ponto crucial para a libertação dos homens. A obediência total e confiante a YHWH
traz a morte, mas através dela o ser humano obtém libertação. Jesus Cristo, através de sua
morte, traz libertação, e YHWH, através da ressurreição de Cristo, legitima seu ministério na
terra.
O último dos evangelhos, o Evangelho segundo São João, é o que apresenta mais
diferenças. O autor não se detém nos milagres e nas palavras de Jesus Cristo. O evangelho de
João tem por meta despertar no leitor a fé em Jesus Cristo. João colocado Cristo como o
centro, mostrando que aqueles que o aceitam como Salvador, também aceitam a salvação que
ocorre por meio dele; aqueles que rejeitam a salvação, ao mesmo tempo rejeitam a Cristo.
Sobre o Evangelho de João, Frank Kermode (apud ALTER; KERMODE, 1997, p. 486) afirma
que “o engenho narrativo de João tem as virtudes da economia, complexidade e profundidade.
Está empenhado em tornar sua narrativa coerente, ao fazê-lo, sempre trata de seu propósito
mais profundo, que é a representação do eterno em relação ao transitório, das manifestações
do ser em um mundo de vir-a-ser”. O leitor é convidado a fazer um julgamento de seus atos e
repensar suas atitudes. Jesus Cristo é ao mesmo tempo aquele que ama e que julga, a
revelação do amor de YHWH pela humanidade. O ponto central do evangelho é a narrativa da
paixão de Cristo.
Ao encerrar-se o Evangelho segundo São João, encerram-se também as narrativas da
vida e do ministério de Cristo. Inicia-se então a caminhada dos fiéis pelo mundo, através da
fundação da igreja de Cristo. E isso é o que vai ser narrado desde Atos dos Apóstolos até o
Apocalipse.

1.2.2 O Livro Histórico


33

Escrito pelo mesmo autor do Evangelho segundo São Lucas, o livro de Atos dos
Apóstolos apresenta conexões diretas com o evangelho de Lucas. O Evangelho de Lucas
apresenta o caminho de Cristo na terra; o livro de Atos apresenta o caminho da igreja de
Cristo na terra. Ambos os caminhos apontam para a salvação da raça humana. É no livro de
Atos que o Espiríto Santo atua e traz a formação da igreja de Cristo, de forma organizada e
crescente. James M. Robinson (apud ALTER; KERMODE, 1997, p. 509) afirma que “Atos
usa a narrativa para apresentar uma doutrina ainda mais abstrata do que a missão dos gentios e
o governo da Igreja: a verdade cristã é verdade revelada nem sempre prontamente inteligível
mesmo para os cristãos”. O livro de Atos apresenta ao leitor o surgimento e as dificuldades
encontradas pela igreja primitiva. O desejo e a iniciativa da divulgação da mensagem de
Cristo a todos as partes do mundo. Após essa narrativa, a Bíblia apresenta as cartas dos
apóstolos a igrejas e pessoas específicas, que dão nome aos livros-cartas posteriores ao livro
de Atos.

1.2.3 As Epístolas

Os livros-cartas seguintes ao livros de Atos dos Apóstolos dividem-se em Epístolas


Paulinas e Universais. As Epístolas Paulinas correspondem as cartas de Paulo aos Romanos, I
e II Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, I e II Tessalonicenses, I e II Timóteo,
Tito, Filemon e Hebreus. Já as Epístolas Universais correspondem as cartas de Tiago, I e II
Pedro, I, II e III João e Judas.
As Epístolas Paulinas tem uma divisão entre si. Existe uma concordância geral de que
das quatorze epístolas, sete delas são autênticas, quatro são pseudônimas e três são
controversas. Michael Goulder (apud ALTER; KERMODE, 1997, p. 515) apresenta a
seguinte divisão:

As autênticas são: I Tessalonicenses, I Coríntios, Gálatas, II Coríntios,


Romanos, Filemon e Filipenses, provavelmente nessa ordem. As
pseudônimas (ao mesno em sua forma presente) são I e II Timóteo, Tito e
Hebreus; II Tessalonicenses, Colossenses e Efésios são controversas,
principalmente a última.

Podemos destacar das Epístolas Paulinas a carta aos Hebreus. A carta apresneta Jesus
Cristo como aquele que supera a instituição cultual do Antigo Testamento. Jesus é colocado
34

como aquele que substitui o formato de cultos feitos no Antigo Testamento. Não mais eram
necessários os sacrifícios de animais no pátio do templo, pois Jesus, o Cordeiro de Deus, que
tira o pecado do mundo, já havia vindo ao mundo e garantido a salvação. Os sacrifícios não
mais asseguravam perdão e comunham com YHWH. Assim sendo, Jesus Cristo torna-se,
segundo a carta de Hebreus, o único mediador entre YHWH e os homens.
As Epístolas Paulinas tendem a trazer mensagens diretas aos problemas enfrentados
por carta a um dos destinatários. Cartas de reprovação, cartas de recomendações, cartas de
ânimo e perseverança. Já as Epístolas Universais são cartas e discursos dos próprios autores.
Trazem mensagens como as de Paulo aos respectivos destinatários. Em especial, a Carta da
São Judas, que segundo a Bíblia Sagrada: Edição Pastoral é “um discurso violento, mas, ao
mesmo tempo, estranho e surpreendente; muitos particulares aí acenados são desconhecidos
totalmente por nós”. A carta tem como tema principal a necessidade da defesa da fé com todas
as forças e da denúncia do misticismo imoral. Além disso, o autor ataca, em determinada parte
da carta, alguns grupos que pretendiam possuir uma forma particular de conhecimento. Uma
carta dura, porém, com uma mensagem de esperança e de fortalecimento.
Após as cartas-livros, a Bíblia apresenta seu último livro. Diferente de todos os
outros do Novo Testamento, com algumas semelhanças com o livro de Daniel (Velho
Testamento), o Apocalipse é o único livro que compõe a parte profética do Novo Testamento.

1.2.4 O Livro Profético

O último dos livros da Bíblia, o Apocalipse (também chamado de Revelação),


apresenta profecias para o futuro da igreja, desde a igreja primitiva até a atual. O autor (São
João) utiliza imagens, símbolos, figuras e números misteriosos, o que torna a compreensão
das mensagens proféticas bastante complicada. Bernard McGinn (apud ALTER; KERMODE,
1997, p. 564) cita que

milhões de cristãos fundamentalistas lêem o Apocalipse de um modo


sumamente literal, como um plano detalhado da crise vindoura, ao passo
que os teólogos da libertação e outros procuram ali uma mensagem
política, mesmo que menos literalmente profética.
35

Cabe ao leitor fazer seu estudo detalhado dos símbolos e buscar respostas dentro da
própria Bíblia.
O livro foi escrito em um momento difícil para os cristãos, pois encontravam-se
perseguidos pelo poder imperial romano. O livro tem por objetivo fortalecer e advertir os
cristãos sobre os perigos das diferentes épocas. O livro traz mensagens de esperança e
fortalecimento. João mostra que a vinda do Reino de YHWH e seu julgamento são
imprescindíveis, ficando a cargo dos cristãos se fortalecerem na fé, testemunharem aos outros
sobre a mensagem de Jesus Cristo e se prepararem para sua volta.

1.3. Setenta e três livros em apenas um

Como já foi dito, a Bíblia dos judeus do Novo Testamento constituía-se em livros do
Velho Testamento. A Bíblia judaica, menor que a Bíblia cristã, não contém os escritos cristãos.
Após os livros, que hoje conhecemos como Novo Testamento, terem sido escritos, era
necessário reunir todos os livros inspirados em um só. A essa reunião deu-se o nome de
Bíblia, plural da palavra grega bíblion (livro). Reis (2002, p. 65), afirma

no final do século IV, quando Teodósio declarou o cristianismo como a


religião oficial do Império Romano, encomendou cinqüenta cópias novas
de manuscritos bíblicos para serem usadas nas igrejas de Constantinopla
em substituição aos livros cristãos existentes, que estavam muito gastos.
Acredita-se que essa foi a primeira vez que o Antigo e o Novo
Testamento foram reunidos em um único volume, a Bíblia.

A bíblia protestante reúne 66 livros; a católica reúne 73 livros. Os livros bíblicos são
divididos em capítulos e subdivididos em versículos. Segundo Konings (1998, p. 16), “a
divisão em capítulos data da Idade Média (Stephan Langton, 1228), e a divisão em versículos,
do início da modernidade (Robert Estienne, 1559)”. De uma edição da bíblia para outra,
diferenças existem na numeração de versículos e capítulos. Isso acontece também porque
essas divisões não correspondem sempre ao sentido do texto.

Além da divisão entre capítulos e versículos, a bíblia apresenta alguns subsídios que
auxiliam a leitura e o estudo. As bíblias católicas contêm introduções e notas explicativas,
diferentemente da protestante que apenas contém notas que remetem a outros textos dentro da
36

própria bíblia. Além disso, as bíblias católicas e protestantes trazem um apêndice com mapas,
índices de assuntos e temas, concordância, vocabulário ou glossário, calendário, moedas e
medidas. A quantidade de informações dentro dos apêndices varia de edição para edição.

As traduções também variam, pois variam os públicos leitores da Bíblia. Muitas


traduções popularizam a linguagem bíblica, já outras procuram rebuscar o seu linguajar para
ajudar e agradar a estudiosos. A questão das traduções e sua história será tratada no próximo
capítulo.
37

2 TRADUÇÃO (BÍBLICA) E CULTURA

Partindo do princípio de que toda tradução é um ato de recriação, a tradução da bíblia,


livro mais traduzido da atualidade, não pode deixar de ser considerada uma recriação por
parte do tradutor. O trabalho do tradutor bíblico é por si só um trabalho de recriação. Ao
transpor uma mensagem milenar de uma língua para outra, o tradutor cria uma nova obra,
voltada especificamente para uma nova cultura, para uma visão de mundo diferente daquela
em que foram escritos os livros que compõe a bíblia.

A tradução não se resume apenas a trazer a mensagem de uma língua para outra
através de textos, sejam estes literários, jornalísticos, científicos, entre outros. Ao realizar seu
trabalho, o tradutor tem em mente seu público-alvo, a reação que sua tradução causará nas
pessoas que a utilizarem, e, portanto, seu trabalho passa a ser não apenas o de transposição de
uma língua para outra, mas também o de adequar a mensagem. E esse trabalho de adequação
da mensagem é o que torna o trabalho do tradutor uma tarefa de recriação.

A tradução pode ser vista como uma recriação de significados que não se perdem
frente ao original, mas que são usados em caráter de restituição pelo tradutor, pois este deve
buscar dar a seu texto forma e corpo pertinentes aos que irão utilizar seu trabalho. Diana
Junkes (2007) diz que

o importante do ato de tradução é que é uma operação feita no intervalo;


o traduzir não diz respeito nem ao original nem ao traduzido, mas se
concretiza na tradução ao tomar emprestado ora do texto-cultura de
origem, ora do texto-cultura de chegada aspectos, signos, significados e
significantes, revelando a técnica do autor traduzido e, também a do
tradutor.

O trabalho toma então, a partir desse pensamento, um caráter de desconstrução e


recriação, pois as possibilidades que o tradutor tem a mão permitem-lhe uma gama grandiosa
de novas construções utilizando tanto original como público-alvo. O tradutor deve então fazer
em seu trabalho uma transposição da mensagem da língua fonte (LF), a língua do original,
para que essa mensagem possa se adequar aos padrões da língua de chegada (LF), a língua da
tradução. Susan Bassnett (2003), teórica da tradução, defende em sua obra Estudos de
Tradução a transposição criativa em relação ao processo de tradução dizendo que
38

apenas a transposição criativa é possível: seja a transposição


intralingüística (de uma forma poética para outra), seja a transposição
interlingüística (de uma língua para outra), ou, finalmente, a transposição
intersemiótica (de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte
verbal para a música, dança, cinema ou pintura (p. 38).

A transposição de uma mensagem entre LP e LF é um trabalho bastante exigente ao


tradutor, pois ele trabalha com dois pólos distintos. O tradutor tem em suas mãos mensagens
implícitas que não estão explícitas em primeira instância ao leitor. A cultura é um exemplo
perfeito disso. Ao trabalhar com línguas diferentes, o tradutor trabalha em seus textos,
principalmente nos textos literários, culturas diferentes. Lotman e Uspensky (1978) dizem que
“uma língua não pode existir se não estiver inserida no contexto de uma cultura e uma cultura
não pode existir se não tiver no seu centro a estrutura de uma língua natural”. Todas as línguas
existentes carregam em si marcas da cultura de onde provêem e, assim sendo, qualquer texto
literário a ser traduzido contém implícita uma carga cultural. Bassnett (2003) afirma ainda
que “a língua natural é, assim, o coração do corpo da cultura”. Cultura e língua andam juntas
e entrelaçadas e, ao tradutor, resta o trabalho de trabalhá-lhas de uma maneira que agrade
tanto a usuários da LF quanto usuários da LC. Ao trabalhar os aspectos culturais contidos nos
textos literários, o tradutor se depara com um problema já apontado por Roman Jakobson: “se
bem que as mensagens [recodificadas] sirvam de interpretações adequadas de unidades de
código ou mensagens, não se obtém normalmente completa equivalência através da tradução”
(BASSNET, 2003, p. 37).

A equivalência que o tradutor busca em sua tradução muitas vezes não é obtida,
porque a transposição nem sempre é fácil de ser feita. O trabalho de recriação do tradutor
torna-se então necessário, porém, torna-se alvo de críticas e elogios, dependendo do resultado
final. Ao recriar, o tradutor “transforma” a mensagem original de uma forma que faz com que
ela seja compreendida e aceita entre os usuários da LC, mas que contenha todas as
características essenciais que a LF trazia. E é esse trabalho que gera polêmicas e críticas. O
tradutor tem em mãos a tarefa de trazer a uma comunidade uma mensagem, mas nem sempre
essa mensagem mostra-se perfeita em relação aos traços culturais dessa comunidade e isso
gera uma polêmica: seguir estritamente o que diz o original ou adequá-lo as características da
comunidade. A adequação, que nada mais é do que um processo de transposição criativa, é
39

necessária, mas nem sempre bem aceita. O que leva a essa não aceitação é uma simples
palavra: fidelidade.

Ao pensar o seu trabalho como um processo de recriação, o tradutor se depara com a


base do pensamento daqueles que se utilizam da tradução: a fidelidade ao original. O
pensamento e o desejo de que toda tradução seja estritamente fiel ao original não é de hoje,
mas sim já anda paralela ao trabalho de tradução há alguns milhares de anos. Cícero e
Horácio, teóricos da tradução da Era Romana já trabalhavam com o problema da fidelidade.
Bassnet cita que Cícero chegou a afirmar “Se traduzo palavra por palavra, o resultado soará
estranho, e se levado pela necessidade altero algo na ordem e nas palavras, parecerá que me
afastei da função de tradutor”.

A questão da fidelidade sempre esteve presente na vida do tradutor, e principalmente


quando se referiu em especial à tradução de textos bíblicos. Por se tratarem de textos
especiais, com maior destaque no campo religioso, a questão da fidelidade sempre trouxe
opiniões diversas. O tradutor deve ser fiel apenas ao original? Deve ser fiel ao leitor? Deve ser
fiel aos dois?

Werner Kaschel, autor de um dos capítulos do livro I must speak to you plainly fala
sobre essa questão da tradução da Bíblia em relação à fidelidade. Ao tratar deste tema, ele
destaca três pontos interessantes e que devem ser considerados ao discurtir-se a tradução de
textos sagrados, como os da Bíblia. Ele fala em especial da tradução destes textos para uma
linguagem menos erudita, com uma característica bastante popular. Ele afirma em seu texto
que

uma tradução de linguagem comum deve ser clara. Clara para quem? Às
pessoas comuns para quem é preparada, isto é, as pessoas que têm pouco
ou nenhum conhecimento das Escrituras. Toda tradução da Bíblia tem
que ser fiel primeiramente aos textos originais no hebraico, no aramaico e
no grego. Qualquer tradução em linguagem comum, conseqüentemente,
deve aderir a este princípio, que é seguido pelo mais importante seguinte,
a saber, fidelidade ao leitor. Isto significa que esta tradução é orientada
pelo receptor. O significado dos originais tem que ser comunicado em um
nível de linguagem adequado à capacidade do receptor de compreendê-la.
O estilo vem em terceiro lugar (KASCHEL, 2004, p. 112 – minha
tradução)7.

7
“A common language translation has to be clear. Clear to whom? To the common people for whom it is
prepared, that is, people who have little if any knowledge of the Scriptures. Any translation of the Bible has to be
faithful first to the original texts in Hebrew, Aramaic and Greek. Any common language translation, therefore,
has to adhere to this principle, which is followed by the next most important one, namely, fidelity to the reader.
This means that this translation is receptor-oriented. The meaning of the originals has to be communicated at a
level of language suited to the receptor’s capacity of understanding it. Style comes third.”
40

Para que uma tradução bíblica seja digna de confiança, precisa primeiro ser fiel aos
seus textos originais. Os originais dão o tom da fidelidade da tradução. Além disso, o tradutor
deve considerar o leitor, o nível de conhecimento que este possui e, conseqüentemente, o seu
nível de entendimento dos textos bíblicos. Se o leitor do texto bíblico não possui um nível de
escolaridade bom, o entendimento das mensagens do texto bíblico fica prejudicado. O texto
bíblico é um texto diferenciado de muitos outros. O seu conteúdo traz dificuldades de
entendimento aos tradutores. Mas não apenas aos tradutores. Muitos teólogos e estudiosos,
aos utilizarem certos textos bíblicos, se deparam com problemas de difícil solução. Um
exemplo é o tempo verbal chamado profético perfeito. Esse tempo verbal é utilizado
principalmente quando os profetas estão falando sobre profecias. Omanson (2004) cita em seu
livro que

em muitas partes do mundo os tradutores possuem pouco ou nenhum


conhecimento da gramática hebraica e tem um conhecimento limitado da
histórica israelita, então, eles costumam falhar em reconhecer a função
retórica do perfeito profético.

Muitas das profecias não são datadas e é simplesmente impossível saber em alguns
casos a que o profeta estava se referindo: um acontecimento do futuro ou a algo que já havia
acontecido. Esse é um exemplo da dificuldade que o tradutor bíblico enfrenta até hoje. O
tradutor bíblico, com ou sem dificuldades, ao longo da história desempenhou funções com seu
trabalho que estavam além de sua designação. Com a expansão do cristianismo, a tradução
adquiriu uma nova função: espalhar a palavra de Deus. Bassnet (2007) cita que

uma religião tão baseada num texto como é o cristianismo propiciou aos
tradutores uma missão que abarcava critérios tanto estéticos quanto
doutrinários. A história da tradução da Bíblia representa,
consequentemente, um microcosmo da história da cultura ocidental
(BASSNET, 2003, p. 83-84).

Sendo o cristianismo uma religião baseada essencialmente nos textos bíblicos, o


tradutor tinha em suas mãos o dever de traduzir e continuar ou extinguir crenças sobre
determinados assuntos contidos na bíblia e, de acordo com seu trabalho, faria com que novas
crenças aparecessem nas religiões (ou na religião) que utilizasse sua tradução. Com isso, a
recepção de sua tradução nas comunidades religiosas era algo consideravelmente importante
ao tradutor. O tradutor leva em consideração que sua tradução só será entendida no momento
41

em que o horizonte do seu texto puder se sobrepor ao horizonte do leitor. Um texto


contextualizado a realidade histórica é mais fácil de ser entendido pelo leitor do que um texto
totalmente descontextualizado. A bíblia, apesar de ter sido escrita há muitos séculos atrás,
continua despertando o interesse de seus leitores, o que há torna uma obra literária eterna.
Todavia, a recepção da bíblia hoje não é a mesma recepção de séculos atrás.

Com o Renascimento dos sécs. XV e XVI (que pregava o retorno aos


clássicos gregos) e o Iluminismo do séc. XVIII (que cultuava a deusa-
Razão), sobretudo com os avanços tecnológicos dos séc. XIX e XX que
permitiram à ciência estudar importantes documentos bíblicos como os
descobertos em uma caverna próximo ao mar Morto em 1950, além de
poder analisar comparativamente fatos históricos, objetos e relatos dos
tempos bíblicos, o entendimento da Bíblia ganhou novo alcance.8

O tradutor deve levar em consideração que seu trabalho não tem mais a mesma
aceitação que tinha na Idade Média. Atualmente, existe um estudo maior do conteúdo da
bíblia e uma busca maior aos textos antigos para uma comparação dos significados. Não se
acredita mais no que se diz sem uma consulta profunda na bíblia a respeito do tema tratado. A
comparação de traduções antigas com as atuais se dá constantemente. O número de traduções
que são lançadas faz com que essa comparação seja feita também dentro das igrejas, já que
num público determinado, o número de versões diferentes da bíblia se torna grande e as
mensagens contidas podem ser entendidas de modos diferentes de acordo com a leitura de
cada tradução.

2.1 Tradução e recepção

A questão da recepção é tratada pela Estética da Recepção de Hans Robert Jauss, da


Escola de Constança na Alemanha. A recepção que o texto literário terá e o que isso tem de
valor tanto para o escritor como para o leitor é o que trata essa Estética. A respeito dela,
Gumbrecht (1998) diz que

Interessa à Estética da Recepção o confronto entre a construção do autor


e as reconstruções do leitor. Atenta para os significados e seus locais de
8
Capítulo III: A recepção do Discurso. Disponível em: <http://webmail.faac.unesp.br/~pcampos/t6.htm>.
Acesso em: 17 out. 2007.
42

construção, suas interpretações, observando as diferenças heurísticas à


luz de mediações históricas e sociais. Faz-se necessário ainda avaliar o
conceito de texto, que para a recepção normativa, encontra-se voltado
para um modelo de leitura ideal, enquanto que, para a leitura descritiva,
ou heurística, necessita flexibilidade.9

A construção do autor de um determinado texto irá gerar novas construções nos


leitores. As interpretações são diferentes. Interessa a Estética da Recepção o local da
construção do texto, pois o ambiente e época em que foi feito são incorporadas. Essas
características são pessoais do autor e ficam presentes em sua obra. O leitor dessa obra tira
novas conclusões porque tem suas próprias características e são elas que vão ajuda-lo a
compreender e a formar sua idéia sobre o texto. Mas a sua percepção não será a mesma do
autor, porque sua experiência e vivência não são as mesmas.
Como exemplo claro, uma obra sobre o carnaval, escrita por um autor brasileiro que
vive no Rio de Janeiro, não terá o mesmo entendimento por parte dos leitores chineses que
adquirirem a obra traduzida. As impressões e idéias do ator sobre o carnaval carioca são
diferentes das impressões dos leitores chineses a respeito do carnaval. Portanto, o local da
construção do texto e as interpretações do mesmo são bastante importantes, tanto para a
Estética da Recepção como para o tradutor, que vai se usar do estudo dessa Estética para fazer
seu trabalho. A composição da obra original de determinado autor irá depender do tradutor
para que seja entendida como se espera em outros locais por leitores que adquiram a obra.
Ainda sobre a Estética da Recepção, Cristina Martinho ([s.d]) afirma que

A Estética da Recepção considera a literatura um sistema que se define


por produção, recepção e comunicação, tecendo uma relação dialética
entre autor, obra e leitor. Não revitaliza a noção de produção e
representação, bases da estética tradicional. Destaca que o ato de leitura
tem uma perspectiva dupla na dinâmica da relação obra - a projeção desta
obra pelo leitor de uma determinada sociedade. Interessa-se pelas
condições sócio-históricas que formularam as diversas interpretações que
o texto ficcional recebeu, e assinala que o discurso literário é o resultado
de um processo de recepção ao mover a pluralidade destas estruturas de
sentidos historicamente mediadas.10

9
GUMBRECHT, Hans Ulric. As Conseqüências da Estética da Recepção: Um Início Postergado. In: Corpo e
Forma. Rio de Janeiro: UERJ, 1998. Disponível em: <http://www.uesc.br/icer/resenhas/alineresenhagumbrec
ht.htm>. Acesso em: 17 out. 2007.
10
MARTINHO, C. M. T. Frankenstein e a estética da recepção. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/v
iiicnlf/anais/caderno12-10.html>. Acesso em: 17 out. 2007.
43

A produção dos textos que compõe a bíblia, a recepção que estes textos têm e como
são comunicados, isso tudo importa a Estética da Recepção. Por terem sido escritos em
diferentes épocas da história, os livros da bíblia tiveram produções diferenciadas. Inicia-se por
conter diferentes línguas e acima de tudo, diferentes autores. É perceptível que os livros da
bíblia não são todos iguais e nem devem ser traduzidos todos da mesma forma. A poesia do
livro de Salmos, escrita por Davi no período de reinado de Israel, não é a mesma forma com
que escreve Lucas, médico, autor dos livros de Atos e do Evangelho de Lucas. Paulo, autor de
diversas epístolas, homem que havia estudado com os melhores mestres do povo de Israel,
escreve totalmente diferente dos profetas do Antigo Testamento. Cada livro, escrito em épocas
diferentes, tem suas características textuais específicas, únicas. Traduzi-los de uma forma
única e compacta, igual a todos, é descaracterizá-los.
A recepção do conteúdo desses livros também é importante. A mensagem de cada
livro deve ser passada. Um leitor que trabalha diretamente com questões religiosas trabalhará
melhor com as passagens teológicas da bíblia, diferente de um leitor acostumado a trabalhar
com leis, que irá entender melhor as leis do povo de Israel e o que elas trariam de benefícios e
prejuízos ao povo de Israel. Para um leitor que tem um grau maior de instrução, o
entendimento da bíblia torna-se mais fácil. Procura pesquisar sobre o que está escrito,
comparar com escritos que tenham o mesmo tema, que sejam da mesma época. Um leitor com
pouca instrução, ao ler sozinho, encontrará muitas vezes dificuldade de entender por não ter
uma carga cultural e de conhecimento adequadas ao texto apresentado na bíblia. Uma bíblia
de linguagem rebuscada e trabalhada é bem recepcionada no meio daqueles que a estudam e
tem um conhecimento maior de linguagem, história, em resumo, dos aspectos característicos a
bíblia. Para o leitor mais simples, uma bíblia mais popularizada, menos trabalhada e de fácil e
rápido entendimento, é interessante, pois lhe proporciona o conhecimento das mensagens
bíblicas sem ter problemas de compreensão.
A respeito dessa tradução mais popularizada para leitores mais simples, Villela
(2004) afirma que

Lembremos que essas “traduções populares da Bíblia” seguem a teoria da


tradução dinâmica, defendida por Eugene Nida, segundo a qual o
importante na tradução do texto bíblico é a compreensão por parte de
seus receptores: se para tanto for necessário fazer atualizações da
linguagem ou mesmo das metáforas utilizadas na narrativa bíblica, isso
não significará infidelidade aos seus originais. (p. 166)
44

Se Nida defende que a compreensão dos leitores é o que importa, Konings (1998)
tem uma visão diferente em relação à teoria da tradução dinâmica. As atualizações da
linguagem ou mesmo o uso das metáforas são vistas por Konings como uma forma
empobrecer a tradução. Konings afirma que

a simplificação lingüística, às vezes, empobrece a tradução. Na hora do


estudo aprofundado, estas traduções apresentam o inconveniente de não
deixar transparecer a estrutura e o colorido da língua original,
escondendo particularidades inerentes, como os jogos de palavras, os
efeitos retóricos do texto original, etc. (p. 22)

A simplificação lingüística traz problemas como os apresentados por Konings. Um


estudo mais profundo a respeito do conteúdo lingüístico dos livros da bíblia se torna mais
difícil se a bíblia escolhida for uma que utilize uma linguagem mais popularizada. As
construções são modificadas e/ou adaptadas a linguagem do público que fará uso dessa bíblia
e nem sempre esse público tem uma linguagem que ofereça oportunidade de aprofundamento
dentro do estudo da bíblia. Ainda sobre esse assunto, Villela (1997) afirma que

A tradução, nesta perspectiva, deve revelar ao máximo a forma e o


conteúdo da mensagem original, reproduzindo elementos formais como:
as unidades gramaticais, a consistência na linguagem utilizada e os
significados nos termos do contexto original. (p. 50)

Assim sendo, Villela e Konings diferem de Nida no que diz respeito à popularização
do conteúdo da tradução, em especial da tradução bíblica. Além do aspecto da popularização
dos textos bíblicos que tem relação com a Estética da Recepção, outro fator importante ao
tradutor são as relações da tradução com a cultura. A cultura está intimamente ligada ao
processo de tradução. Mas para entender essa ligação entre cultura e tradução é necessário
entender o que é cultura.

2.2 Tradução e cultura: uma relação

Mona Baker (1999), autora de um dos capítulos da obra Tradução e


Multidisciplinaridade, afirma em seu texto que existem duas formas de se pensar a cultura. E
sobre essas duas formas ela diz que
45

Tradicionalmente, há duas maneiras de se pensar a cultura. A primeira vê


como resultado de um processo evolutivo, que parte de um estado de
selvageria para chegar ao auge da civilização. Trata-se de uma visão
elitista, que privilegia, por exemplo, a civilização ocidental, em
detrimento da hindu ou chinesa – e, mais recentemente, a literatura
erudita em oposição a manifestações artísticas populares, como as
novelas de televisão ou a música de Bob Dylan. A segunda é vertente
menos elitista, mais pluralista e vê a cultura como o modo de vida de um
povo. Essa foi a visão que acabou por preponderar na antropologia e na
teoria social, e que deu origem a estudos culturais como disciplina
independente. É uma visão que enfatiza o pluralismo e a diferença, e que
usa os estudos de campo como uma metodologia de pesquisa sobre vários
aspectos de uma determinada cultura, seja de forma empírica ou histórica.
(BAKER apud MATINS, 1999, p. 18)

Ao se pensar a cultura como o modo de vida de um povo, uma forma hereditária de


manifestação, percebe-se que a cultura é um ciclo, pois passa de geração para geração. Em
cada nova etapa (geração), ela pode modificar algum ponto da história, mas nunca perde o
valor deixado pelos ancestrais. Mas, além disso, uma das principais características da cultura
é a adaptação. As pessoas mudam de ambiente, mudam seu estilo de vida, mudam seus
hábitos cotidianos, passam a fazer parte da nova cultura. As pessoas se adaptam a novas
culturas e vivem dependente delas. Para serem aceitas na sociedade, precisam se adaptar a
cultura da sociedade e, assim, mostra-se que cultura e sociedade têm uma relação direta, pois
ambas necessitam-se mutuamente para uma perfeita compreensão.
Os elementos que a sociedade utiliza fazem parte de sua cultura e, àqueles que
querem se adaptar a essa sociedade, é necessário utilizar esses elementos. Essa adaptação se
faz necessária para existir uma aceitação dentro da sociedade. Uma mesma cultura é criada
para os membros de sua sociedade, mas não se pode afirmar que isso ocorre na vida em
sociedade. Talvez devido à existência da divisão das classes sociais, de acordo com a
aquisição material, o que cria classes diferentes. A partir disso, a sociedade conhece um
fenômeno chamado ideologia. A ideologia passa a ser o resultado da imposição dos
dominantes (em relação à cultura) para toda a sociedade, como se todas as classes devessem
ter a mesma cultura, mesmo vivendo em situações sociais diferentes.
A tradução tem relação direta com a cultura. A cultura está implícita nos textos e cabe
a tradução transportar as características culturais do texto original para um novo texto, a
tradução. A tradução transporta as ideologias de um texto para outro. Transporta idéias e
ideais de um povo para outro, fazendo com que o povo que recebe a tradução também receba
essas idéias e as aceite ou as deixe de lado. O texto literário, diferente de textos técnicos e
46

científicos, carrega uma carga muito grande da cultura do autor e cabe ao tradutor passar essas
informações ao leitor. Lya Wyler (2003) afirma que

Por definição, a tradução entre povos é a reescritura em língua nacional


de um texto em língua estrangeira. Toda reescritura, seja qual for a
intenção que lhe dê origem, reflete uma certa ideologia e uma poética,
cuja função é levar o receptor a reagir de uma dada maneira. E é isto que
confere a tradução de pensamentos, palavras e imagens a característica de
instrumento de manipulação a serviço de um dado poder. (p. 11)

No caso da tradução bíblica, a tradução propicia ao leitor o contato direto com as


ideologias dos cristãos. Isso se percebe facilmente ao se analisar as religiões que utilizam a
bíblia como instrumento de evangelização. Por mais que existam diferenças entre elas,
existem pontos iguais em suas crenças e, muitas vezes, pontos iguais que apenas são
levemente alterados de uma religião para outra. A tradução bíblica evoca ao tradutor a tarefa
de propiciar ao leitor o conhecimento do cristianismo, suas ideologias, a cultura da época. E
para que isso aconteça, cabe ao tradutor a fidelidade ao texto original, para que estas
características não se percam no tempo.
A fidelidade a essas características também impõe uma regra geral de não se usar a
adaptação, já que esta pode trazer diferenças do original. Se esta regra é usada no ato da
tradução, a popularização começa a se tornar difícil. Sem adaptação não se consegue chegar a
popularização. A popularização atesta para a perde de elementos essenciais, muitas vezes
presentes no vocabulário, e estes elementos tornam a tradução distante do original. Konings
(1998) diz que

À primeira vista não se percebe a utilidade das traduções para conhecer o


texto original. Mas estas traduções, sobretudo anteriores ao séc. IV,
atestam às vezes leituras originais que se perderam nos textos gregos
“recenseados” no decorrer do séc. IV. Pois se as recensões corrigiam os
erros, às vezes “corrigiram” também o que eram mesmo o texto original!
(p. 189)

Ao ser fiel, o tradutor passa o texto como ele está, seja ele escrito de forma errada ou
não. A partir do momento em que existem mudanças no estilo, conteúdo, vocabulário, etc., um
novo texto se forma desviando-se das características do original. Se os livros bíblicos foram
escritos por pessoas do povo para o povo, a linguagem utilizada nem sempre foi a mais culta.
Assim sendo, as diferenças dos livros e de duas características literárias também devem ser
marcantes. Se todos os livros forem traduzidos da mesma forma seguindo-se as mesmas
47

regras gerais, deixam de existir as diferenças entre os autores e suas épocas e passa a existir
uma compilação geral de modo igual por parte do tradutor.
A fidelidade aos originais, as características implícitas e explícitas sempre permearam
o trabalho desses tradutores e ainda hoje estão presentes no trabalho da tradução bíblica.
Objetivando trazer fluência ao texto, entendimento de todos os leitores, buscando mostrar a
essência de cada texto, o trabalho do tradutor sempre foi movido pelo sentimento de se tornar
invisível, uma ponte entre os originais hebraicos, aramaicos e gregos e as línguas que agora
têm traduções. A respeito disso, Wyler (2003) afirma que

quanto mais fluente, mais invisível ele se torna e tanto mais visível a
personalidade ou intenção do autor estrangeiro, enfim, sua essência –
algo supostamente imune às limitações impostas pela língua, biografia e
história. (p. 15)

A tradução da bíblia sempre objetivou levar a mensagem com todas as características aos
seus leitores. Em momentos diferentes, feita por homens diferentes, o trabalho da tradução
buscou trazer a mensagem de Cristo a todas as pessoas, independente de classe social ou raça.
A meta sempre foi levar a mensagem a qualquer pessoa, no máximo de línguas diferentes
possível. Na história, alguns tradutores como Lutero, Tyndale, São Jerônimo e outros se
destacaram por produzir grandes traduções e através delas trazer benefícios para as sociedades
onde viviam. No próximo capítulo, falaremos mais detalhadamente sobre esses tradutores e as
grandes traduções bíblicas da história.
48

3 A TRADIÇÃO DA TRADUÇÃO BÍBLICA

Os judeus da época de Jesus, e até alguns de algumas gerações anteriores, usavam


como base de seus estudos teológicos os escritos que hoje são conhecidos como Velho
Testamento. Mas os judeus daquela época não estavam todos concentrados em um mesmo
lugar. Já não eram mais um reino único e indestrutível. Agora eram um povo dividido em dois
reinos distintos. Saíram também dos reinos e procuraram novos locais para habitar. Havia a
necessidade de levar a mensagem dos profetas aos judeus de outros países. Mas levar essa
mensagem agora implicava em passar o conteúdo da língua hebraica para uma nova língua: o
grego, língua falada pelos judeus que habitavam o Egito. Assim, uma tradução do Velho
Testamento era o que deveria ser feito. Iniciava-se a tradição da tradução bíblica.
Essa tradição passa por dois momentos distintos. O primeiro deles, anterior ao
nascimento de Jesus Cristo, traz a tradução da Bíblia (Velho Testamento) de judeus para
judeus. O segundo momento, posterior ao nascimento de Cristo, traz a tradução do Velho e
Novo Testamentos para outros povos e outras línguas, e essa tradição estende-se até o
presente momento.
Essa tradição trouxe características importantes para momentos específicos da
história do mundo. A formação de línguas (como exemplo, a tradução de Lutero da bíblia e a
língua alemã), a perseguição aos tradutores e eventualmente, com as suas mortes, a
disseminação da bíblia (Tyndale e sua morte na fogueira). A tradição da tradução bíblica
favoreceu mudanças sociais em vários locais onde aconteceram traduções. E para entender
essas mudanças é necessário o conhecimento destas traduções acontecidas ao longo dos
séculos.
Este capítulo toma como base Jean Delisle e Judith Woodsworth, especialmente ao
falar sobre as traduções de Lutero e Tyndale e as suas relações com a língua de seus
respectivos países. O trabalho de Kênia I. A. Tillvitz ajuda a conceber uma visão geral das
traduções da bíblia ao longo dos séculos e, como base geral de dados históricos e
cronológicos, o dvd do Rev. Rudi Zimmer, que traz informações importantes e curiosidades
acerca das traduções bíblicas no mundo.
49

3.1. Textos anteriores ao nascimento de Cristo

Os escritos dos autores do Velho Testamento, que na época de Cristo eram os autores
de toda a Bíblia, formavam a base para a fé daqueles que faziam parte do povo de Israel e
Judá. Escritos no idioma de ambos os povos, o hebraico, os textos eram utilizados no templo
durante os cultos religiosos. Mas com as grandes conquistas dos gregos, em um determinado
momento, a língua grega torna-se a língua oficial administrativa, cultural e comercial. Os
judeus dentro e fora da palestina começaram então a utilizar o grego como a língua falada no
cotidiano. Principalmente em Alexandria, no Egito, a utilização do grego como língua oficial
se tornou forte. Era necessária então a tradução dos escritos do Velho Testamento do hebraico
para o grego. Além disso, a língua falada não era mais o hebraico, e sim o aramaico. Traduzir
os escritos para a língua falada pelo povo era necessário nos dois casos. Tomava forma então
à tradição da tradução bíblica anterior ao nascimento de Cristo.

3.1.1 Septuaginta (c. 280 a.C.)

A Septuaginta, tradução dos livros do Velho Testamento para o grego, tem início em
Alexandria, no Egito. Após as grandes conquistas de Alexandre, o Grande e a disseminação
da cultura grega para o mundo, os judeus começaram a utilizar-se da língua grega, deixando
de lado a língua hebraica.

“Os judeus que viviam fora da Palestina, principalmente, em grande


número no Egito, não entendiam mais o hebraico, que era a língua dos
judeus, e falavam o grego, que era a língua universal naquele momento, e
então começou a surgir aquela que é conhecida como a tradução da
Septuaginta (c. 280 a.C.). Uma tradução feita por judeus para judeus.”
(ZIMMER, [s.d.])

Os judeus espalhados por outras partes do mundo teriam a oportunidade do contato


com a palavra de YHWH através da tradução dos livros do Velho Testamento. Essa tradução
adquiriu rapidamente uma grande importância. Traduzida de judeus para judeus, a
Septuaginta tinha uma divulgação maior do que a versão hebraica, já que agora a língua mais
falada era o grego, e não o hebraico. Jean Delisle e Judith Woodsworth (1995), ao falarem
sobre a história da tradução da Septuaginta, dizem que
50

“A primeira tradução escrita importante da Bíblia hebraica foi a versão


grega conhecida como Septuaginta, comumente designada LXX (70 em
algarismos romanos). Acredita-se que essa versão foi encomendada por
Ptolomeu Filadelfus (Ptolomeu II) (308-246 a.C.), rei do Egito, por
iniciativa do seu bibliotecário Demétrio de Falera (falecido em 280 a.C.),
com o objetivo de enriquecer a célebre biblioteca de Alexandria.” (p.
172-173)

A história desta tradução apresenta algumas lendas interessantes, na qual existe uma
atribuição da tradução a 70 sábios, todos encarregados de traduzir para colocar na Biblioteca
de Alexandria uma versão em grego da bíblia dos hebreus. Uma das lendas atribui aos sábios
a capacidade de ter traduzido a bíblia em 70 dias e, ao serem comparadas as traduções, todas
estavam exatamente iguais. Assim sendo, a tradução seria extremamente fiel e correta, além
de proporcionar ao leitor a sensação de estar lendo exatamente o que estava escrito nos
originais. Outra lenda credita aos sábios a inspiração divina para realizar sua tradução. Ao
serem separados, os sábios traduziram os escritos exatamente iguais. Sobre essa lenda, Delisle
& Woodsworth dizem que

“Embora a tradução pretendesse ser um esforço coletivo, uma outra lenda


afirma que os tradutores tinham alojamentos separados e não podiam
comunicar-se uns com os outros; contudo, produziram versões idênticas,
prova de que agiam sob inspiração divina.” (op. cit., p. 173)

Mas esta história apresenta outras versões. Uma delas diz que os sábios não traduziram
todos os livros de uma só vez. Foram traduzidos apenas alguns livros numa primeira
oportunidade, sendo que os outros foram sendo adicionados depois. Baseado em Konings
(1998), Cazetta Jhúnior (2006) cita que

“Primeiramente, traduziu-se a Torá de Moisés (ou Pentateuco), que são os


livros do Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio; anos
depois foram se acrescentando os livros sapienciais, poéticos e históricos.
Com isso, o povo judeu, fora da Terra Santa poderia, então, praticar sua
fé, mas em língua grega.” (p. 18)

Mas apesar das diferentes versões para o processo de tradução da Septuaginta, a


abertura que esta tradução deu para a divulgação da palavra de YHWH a outros povos foi
bastante importante. Agora os relatos e mensagens não ficariam mais resumidas aos cultos e
tradições orais do povo judeu, mas poderia tomar novas proporções geográficas. Delisle &
51

Woodsworth (1995), com uma versão diferente para o processo de tradução da Septuaginta,
dizem que

“Vertida em épocas diferentes, por diferentes tradutores com


conhecimento variável do hebraico e do grego, a Septuaginta tem uma
qualidade irregular. Contudo, seu valor foi inestimável: tornou a Bíblia
acessível, servindo como um texto autorizado do Velho Testamento para
o cristianismo primitivo; foi a base das outras versões antigas da Bíblia
(para o etíope, copta, eslavônio, etc.) e preservou os textos apócrifos não
incluídos no cânon judaico.” (p. 174)

Além de base para outras versões da bíblia antiga, a Septuaginta foi a bíblia utilizada
por cristãos primitivos como Paulo, Estevão, Barnabé, entre outros. E tem seu período de
popularidade até a tradução da Vulgata por São Jerônimo. Popularidade essa que lhe concede
o título de original, sendo base para traduções posteriores. Após os escritos hebraicos, é a
Septuaginta que tem status de original. A dificuldade de ter os originais para efetuar a
tradução credita à Septuaginta e às bíblias posteriores esse encargo de originais. Essa
popularidade que a Septuaginta obtém é comentada por Delisle & Woodsworth (op. cit., p.
170), na qual os autores comparam os feitos da Septuaginta com os feitos de bíblias
posteriores a ela, dizendo que

“Paradoxalmente, as traduções feitas em épocas de transição cultural


adquiriram, às vezes, status original, impedindo o acesso aos textos-
fontes em que tinham origem. Esse foi o caso da Septuaginta em língua
grega (c. 250-130 a.C.), que substituiu a Bíblia hebraica e mais tarde
tornou-se o Velho Testamento da Bíblia cristã até o surgimento da
Vulgata. Da mesma forma, a King James Bible, ou Versão Autorizada
(1611), tornou-se o texto fonte para subseqüentes traduções protestantes
em muitas línguas não-européias.”

Ao ser traduzida, a Septuaginta sofreu modificações quanto à ordem de seus livros.


Contendo mais livros do que a bíblia hebraica (os livros deuterocanônicos), a ordem dos
livros foi organizada pelos continuadores dos 70 sábios. Sua organização foi feita a partir da
cronologia e conteúdo dos livros. Os livros deuterocanônicos foram também colocados junto
com os canônicos adequando-se a regra da cronologia e conteúdo.
Além de ser instrumento de divulgação da mensagem de YHWH pelo mundo, a
Septuaginta é peça-chave para as traduções modernas da bíblia. Foi base de fé para os judeus
da época de Cristo, base da tradução e comparação da Vulgata de São Jerônimo. O intuito de
trazer a mensagem para os judeus distantes também trouxe o trabalho da tradução bíblica para
52

o mundo. Através da Septuaginta, a mensagem de YHWH começou a ser traduzida para


outras línguas e povos.

3.1.2 Targuns (últimos séculos a.C.)

Além da tradução do hebraico para o grego, os judeus também traduziram os escritos


do Velho Testamento para o aramaico, língua falada pelo povo judeu. Na época, o hebraico
era usado nos cultos do templo, mas não no cotidiano dos judeus que ainda habitavam a Terra
Prometida do Antigo Testamento. Tanto a Septuaginta como os Targuns foram traduções feitas
no intuito de levar a mensagem do templo para a língua do povo. Zimmer ([s.d]) afirma que
os Targuns

São extremamente livres na tradução, parafrásticos. [...] Quando o


tradutor, naquela tradução oral, não entendia bem, ele simplificava, dizia
o que entendia, e as vezes até dizia a sua opinião porque não concordava
com o texto bíblico.

A tradução trouxe vários comentários, citações e notas explicativas. Além disso,


adotou a forma livre como forma de tradução. A tradução livre repleta de explicações e
auxílios ao conteúdo acabou não sendo tão bem aceita, e acabou em desuso. Diferente da
Septuaginta, que se tornou base para traduções posteriores, os Targuns acabaram não sendo
vistos com bons olhos e sendo levados ao desuso por parte dos leitores.

3.2. Textos posteriores ao nascimento de Cristo

Após o nascimento de Cristo, os judeus ainda utilizavam a Septuaginta como fonte


de leitura e estudos. Mas novas traduções começaram a ser feitas, com intuito de adequar as
mensagens de YHWH às necessidades locais. Formas de levar às pessoas simples e sem
instrução as mensagens bíblicas era uma dessas necessidades. Novas traduções começaram a
ser feitas a nível local para que essas necessidades pudessem ser atendidas, sem ter que
esperar por traduções que buscassem atender a todas as necessidades de um modo geral.
53

Em determinado momento da história, o cristianismo ganha posição de destaque, ao


receber o título de religião oficial do império romano. As perseguições aos cristãos cessam e
as idéias e crenças começam a ser espalhados por todo o território de Roma. Em 323 d.C., o
imperador Constantino, recém-convertido ao cristianismo, faz cessar a perseguição aos judeus
e começa a fazer a transição da igreja para torná-la parte ativa do sistema político. A Igreja
como parte do Estado começa a trazer uma mistura entre paganismo e cristianismo.
Os cristãos, até então divididos em pequenos grupos localizados em várias partes do
território romano, tinham uma forma de adoração e pregação até certo ponto modesta, se
comparada com a religião pagã romana. Não era uma religião grandiosa, não tinham grandes
templos (como já haviam possuído no passado, a citar como exemplo o templo de Salomão),
tinham apenas a motivação da divulgação do evangelho de Cristo. Desde a morte de Cristo,
essa divulgação foi aumentando e se propagando para diferentes pontos do império romano, o
que começou a causar certo desconforto aos imperadores romanos. Obter a confiança e ter os
cristãos como aliados era um objetivo que interessava ao imperador Flavius Valerius
Constantinus (285-337 d.C.), pois lhe daria maior poder sobre os povos que dominava.
A incessante perseguição aos cristãos apenas trazia força para a divulgação do
cristianismo e isso era algo que preocupava Constantino. Após a morte de seu pai,
Constantino assumiu o poder em 306 d.C., e começou a mudar a política em relação aos
cristãos. Em vez de persegui-los, começou a divulgar o cristianismo. Através da promoção do
cristianismo, Constantino tinha por objetivo uma unidade religiosa em seu império. Ao
divulgar o cristianismo, Constantino fazia com que os pequenos grupos de cristãos espalhados
por seu império se aliassem a ele e ele controlasse religiosamente todo o seu império.
Mas essa aliança não apenas favorecia aos cristãos (com a divulgação de sua
mensagem), mas também a Constantino, que aos poucos foi implantando novas crenças
dentro das crenças já existentes dos cristãos. Um exemplo foi a implantação do culto pagão ao
“Sol Invictus”, culto que ele presidia pois era o sumo-sacerdote da religião pagã romana. A
partir dessa influência, Constantino governa absoluto. A criação de uma religião unificada do
império era também o nascimento de uma nova igreja, que utilizava ritos de igrejas diferentes.
Roberto Junior (1997) cita que

O Concílio de Nicéia, na Ásia Menor, presidido por Constantino era


composto pelos Bispos que eram nomeados pelo Imperador e por outros
que eram nomeados por Líderes Religiosos das diversas comunidades.
Tal Concílio consagrou oficialmente a designação "Católica" aplicada à
54

Igreja organizada por Constantino: "Creio na igreja una, santa, católica e


apostólica".11

Ao tornar-se religião oficial do império, o cristianismo começou a sofrer desvios de


sua originalidade. Práticas pagãs foram assimiladas, foram criados novos ritos, rezas, formas
de adoração. Nascia uma religião forte que servia ao império romano, um império unido e
sem disseminações. E a bíblia, instrumento de estudo dos cristãos também sofre alterações. As
traduções posteriores ao nascimento de Cristo foram influenciadas por esse nascimento de
uma nova igreja no império romano.

3.2.1 Áquila (c. 125 a 150)

Áquila, recém-convertido ao judaísmo, realizou uma tradução da bíblia, que teve


como característica o modo grotesco de apresentar o conteúdo em grego. Áquila achava que a
Septuaginta favorecia a teologia dos hebreus. Assim, buscou fazer uma tradução
extremamente formal, literal e ao pé da letra. Procurou traduzir os mesmos termos
apresentados no hebraico para o grego, para que não existissem diferenças entre um e outro.
Essa apresentação tornou-se grotesca por ser extremamente literal. Foi bastante aceita pelos
judeus da época, mas caiu em desuso tempos depois e apenas alguns fragmentos dessa
tradução sobreviveram.

3.2.2 Vetus Latina ou Ítala (sec. II)

A tradução da bíblia conhecida como Vetus Latina foi uma das tentativas de sanar as
necessidades de congregações de cristãos que possuíam um grau de conhecimento baixo.
Cabia a cada líder religioso adaptar a linguagem da bíblia para a necessidade de sua
comunidade. Rudi Zimmer ([s.d.]) cita que “Eram traduções que cada pastor, bispo da sua
área fazia, para que pudesse atender essa demanda e passar a Palavra para as pessoas
simples”. A Vetus Latina tinha a intenção de utilizar a adaptação como meio de propagação da
bíblia a todo tipo de pessoas, seja de culturas mais ou menos elevadas.

11
Disponível em: < http://br.geocities.com/luizahpbr/Frases-Nticker/nic.html >. Acesso em: 3 out. 2007.
55

Essa tentativa não ficou restrita a um lugar específico, mas “ocorreu em várias partes,
associada à evangelização para passar a fé no Senhor Jesus” (ZIMMER, [s.d.]). A busca pela
evangelização fez com que as traduções tivessem grande propagação. Cada líder religioso
adaptava a mensagem ao seu público, e assim colaborava para propagar o evangelho ao
máximo de pessoas possível.

3.2.3 Peshitta (séc. II e III)

A Peshitta, versão siríaca da bíblia foi uma tentativa de traduzir o Antigo Testamento
para a língua da Síria. O nome da tradução, Peshitta, que significa “simples” ou “comum”, foi
a tentativa de realizar uma tradução em língua popular, de uma forma simples ao
entendimento do leitor. Entretanto, a versão final mostrou-se bastante complexa. Uma das
curiosidades a respeito dessa tradução é o fato dela apresentar apenas 22 livros no Novo
Testamento. Foram excluídos os livros de II Pedro, II e III João, Judas e Apocalipse. Na
intenção de cuidar com o conteúdo da bíblia, esses cinco livros foram deixados de fora do
cânon da Peshitta.

3.2.4 Vulgata Latina (Jerônimo: 391-405)

A partir de 325 d.C., o cânon da Bíblia foi estabelecido. No Concílio de Nicéia,


realizado pelo imperador Constantino, esse cânon foi estabelecido. O Concílio, que teve
importante papel devido ao fim da perseguição aos cristãos, foi convocado por Constantino e
tratou de temas que eram julgados pelo imperador de caráter urgente. Temas como a questão
ariana, a escolha dos evangelhos que figurariam a Bíblia, a celebração da páscoa, o batismo
de hereges e o estatuto dos prisioneiros na perseguição de Licínio, entre outros temas, foram
discutidos e votados pelos bispos presentes. O papa em exercício na época, Silvestre I,
recusou-se a comparecer pessoalmente nas sessões do Concílio, esperando que sua ausência
representasse um protesto contra a convocação do sínodo pelo imperador.
56

O Concílio foi aberto formalmente em 20 de maio de 325 d.C., na estrutura central do


palácio imperial. Um dos temas tratados, a escolha dos evangelhos que figurariam a Bíblia,
fez com que fosse votado o cânon da bíblia que seria usada no império. Os livros que
entraram e os que foram considerados impróprios para entrar foram votados nesse concílio.
Além disso, um importante tema, a divindade de Cristo, também mereceu atenção especial
durante a duração do Concílio. O cânon amplo, com 73 livros, foi votado neste Concílio e
perdura até hoje nas bíblias traduzidas e utilizadas pela Igreja.

A tradução, até então utilizada, era a Septuaginta, e uma nova tradução se fazia
necessária. Anos depois do Concílio de Nicéia uma nova tradução foi feita: a Vulgata Latina.
Depois da Septuaginta, a bíblia usada como referência é a Vulgata Latina. Se a Septuaginta foi
a tradução para a língua mais falada de seu tempo, o grego, a Vulgata também tem o mesmo
intuito, que é a tradução para a língua de comunicação entre locais diferentes, a língua
universal. Essa tradução aconteceu devido a uma preocupação em relação ao uso da bíblia nas
igrejas. Zimmer ([s.d.]) diz que

O bispo Damaso de Roma, ele se sentiu preocupado porque não havia


uma bíblia latina para todas as igrejas. [...] Encomendou de Jerônimo, um
estudioso, para que ele preparasse uma versão, nem que seja uma revisão
de todas elas, para que seja um padrão para a igreja.

A intenção de ter em todas as igrejas uma bíblia igual, com a mesma língua, fez com
que Jerônimo fosse convocado para realizar a tradução dos textos para o latim. Esse processo
de tradução foi um período longo, 15 anos, e envolveu a tradução de textos antigos e revisões
de textos já traduzidos para o latim. Essa tradução evidentemente ficou muito melhor do que
as traduções anteriores para o latim.
A tradução de Jerônimo tornou-se a bíblia oficial da Igreja Católica. “Tornou-se a
Bíblia oficial em 1546, um milênio e 100 anos depois, no Concilio de Trento, já no auge da
Contra-Reforma” (op. cit., [s.d.]). A tradução de São Jerônimo foi adotada como Bíblia oficial
e perdurou até o Concílio Vaticano II (1962-1965), onde foi substituída pela Nova Vulgata,
uma versão com correções no texto de São Jerônimo.
São Jerônimo, tradutor da Vulgata Latina, tem um papel de destaque devido ao seu
trabalho. Deslile & Woodsworth (1995) afirmam que “São Jerônimo (c. 331-c. 420), o santo
patrono dos tradutores, é sem dúvida um dos mais conhecidos de todos os tempos, pelo menos
no Ocidente, tendo se notabilizado pela Vulgata, ou a Bíblia latina padrão” (p. 177). Sua
57

tradução ainda é tida como a primeira a traduzir diretamente do original hebraico para o latim
os livros do Antigo Testamento. Sua bíblia foi a grande bíblia da Idade Média.

3.2.5 Tradução de John Wycliff (c. 1330-1384)

John Wycliff foi o primeiro a traduzir a bíblia para o inglês. Era um estudioso, teólogo
de Oxford. Sua tradução, literal da Vulgata, tinha o intuito de popularizar a leitura da bíblia, já
que apenas o clero tinha acesso a ela. Por ir contra a forma da Igreja de utilizar a bíblia,
Wycliff resolveu traduzi-la para a língua de seu povo, o inglês.
A tradução de Wycliff possibilitaria ao povo uma chance de não mais estar sob os
domínios da Igreja. Zimmer ([s.d.]) afirma que

Ele [Wycliff] se levantou contra as indulgências, contra o domínio do


clero sobre o povo, de que só o clero podia ler a bíblia e interpretá-la para
o povo, ele chegou à conclusão de que a única maneira pela qual o povo
podia se libertar desse domínio era através da palavra de Deus.

E através da tradução de Wycliff, que foi publicada em 1848, esse domínio religioso
podia ser combatido. A população poderia ter acesso aos conteúdos dos livros da bíblia.
Assim, não apenas poderiam aprender na Igreja, mas também em casa.

3.2.6 Tradução de Lutero (N.T.: 1522; Bíblia completa: 1534)

Martinho Lutero, conhecido pelo movimento da Reforma, também é uma das bases da
língua alemã. Graças ao seu trabalho de tradução, muito da língua alemã foi formada. Lutero
leu a bíblia pela primeira vez aos vinte anos de idade. A leitura da bíblia só era permitida a
magistrados, cardeais, reis e papas. Por ser permitida apenas para pessoas de classes muito
altas, a maioria do povo não tinha nenhum tipo de acesso a ela. Após ter contato com a bíblia
e conhecer seu conteúdo, Lutero decide traduzi-la para o alemão. Além disso, decide tornar
públicas suas idéias a respeito do que era pregado pela Igreja. Lutero elabora 95 teses sobre
suas descobertas teológicas e as fixa nos portões do castelo de Wittenberg, em 1517. Lutero
58

tinha o intuito de fazer uma revisão em aspectos da igreja. Cazetta Jhúnior (2006) afirma que
“Ele [Lutero] pretendia abrir um debate para uma avaliação interna da Igreja, pois acreditava
que a mesma precisava ser renovada a partir do Evangelho de Jesus Cristo. Com isso, a Igreja
passa a persegui-lo e o excomunga”.
Lutero pregava a justificação pela fé. Seu pensamento e teses batiam de frente com o
que era pregado pela Igreja. Zimmer ([s.d.]) diz que “Foi estudando, foi interpretando a bíblia
que Lutero veio a convicção de que a salvação é recebida pela fé no salvador Jesus Cristo. E
que a fé não depende de nenhuma obra, mas exclusivamente da graça de Jesus Cristo”. Por
bater de frente com o pensamento da Igreja, e participando da Igreja como monge
agostiniano, Lutero é excomungado.
Depois de ser excomungado, Lutero inicia o trabalho da tradução do latim para o
alemão. Seu trabalho minucioso demora treze anos para ser completado, sendo que Novo e
Velho Testamentos são publicados em datas diferentes. Delisle & Woodsworth (1995) citam
que.

Lutero trabalhou na tradução da Bíblia de 1521 a 1534, em colaboração


com um grupo de estudiosos. Sua tradução para o alemão do Novo
Testamento grego de Erasmo foi publicada em 21 de setembro de 1522, e
a Bíblia completa apareceu em Wittenberg em 1534. A Bíblia de Lutero
foi a primeira Bíblia completa em língua moderna traduzida diretamente
das línguas originais, grego e hebraico. (p. 182)

A tradução de Lutero provocou ainda uma reforma cultural. Graças a seus esforços em
rebuscar o vocabulário utilizado e a sua incessante busca aos textos originais, Lutero traduz
para uma língua alemã compreendida por todos. Lutero não só estudou o latim para fazer a
tradução, mas também o hebraico e o grego. Conhecer as línguas que compunham a bíblia era
de extrema necessidade para Lutero. Além disso, não se concentrou apenas em seus
conhecimentos, mas procurou consultar diferentes profissionais para resolver problemas de
terminologia.
A tradução de Lutero seguia alguns princípios, que mais tarde levaram o resultado
final a ter grande influência até mesmo nos dias atuais. Lutero seguia uma linha de tradução
que lhe inspirava confiança e seguia seu pensamento de como a bíblia deveria ser traduzida.
Delisle & Woodsworth (op. cit.) afirmam que

Em primeiro lugar, ele advogava o retorno às línguas originais da Bíblia:


o hebraico, no Antigo Testamento; e o grego, no Novo Testamento (sem,
contudo, desprezar completamente a Vulgata latina, no caso do Novo
59

Testamento). Outro princípio era a abordagem inovadora, baseada na


influência crescente da filosofia humanista. Embora a Igreja Católica
tivesse proclamado a Vulgata como a versão oficial da Bíblia, Lutero a
rejeitava como um texto autêntico. (p. 59)

O esforço de Lutero em sua tradução não apenas era o de trazer a mensagem da bíblia
de uma forma mais simples, mas de abranger também as classes sociais menores ao
conhecimento das mensagens bíblicas. Através de uma tradução que se mostrasse
compreensível ao povo simples, Lutero conseguiu fazer com que a língua alemã fosse igual a
todos. Zimmer ([s.d.]) diz que “O alemão que as traduções tinham era incompreensível para o
povo simples. Lutero se pôs a traduzir. Inclusive em grande parte criou a língua alemã que se
tornou padrão”.
A influência da tradução de Lutero começou a ser evidenciada depois de sua morte.
As primeiras gramáticas alemãs, publicadas por Valentin Ickelsamer e Fabian Franck, tinham
como base direta a língua alemã utilizada por Lutero em sua tradução. Lutero produziu com
sua tradução um enriquecimento e padronização do léxico alemão, além de desenvolver uma
sintaxe mais equilibrada. Um texto claro, simples e de boa compreensão fizeram com que
Lutero se destacasse no campo estilístico, mostrando as características de um bom texto, todas
utilizadas em sua tradução. Ainda hoje a tradução de Lutero serve de base para traduções e
revisões detalhadas da bíblia.

3.2.7 Tradução de William Tyndale (N.T.: 1526)

Se Lutero teve um papel importante para a formação da língua alemã, Tyndale também teve
esse papel na Inglaterra. Com uma história de vida interessante, proporcionou uma tradução
bastante completa e que foi considerada uma afronta direta ao clero. Sobre a vida de Tyndale,
Delisle & Woodsworth (1995) afirmam que

William Tyndale (c. 1494-1536) nasceu em Gloucestershire, estudou no


Magdalen College de Oxford e foi ordenado em 1519. Cedo foi acusado
de heresia; absolvido, recebeu uma censura por haver assumido atitudes
demagógicas. (p. 44-45)

Por certas atitudes e por ser considerado herege, Tyndale muda-se para o continente
europeu, onde começa um projeto de tradução da bíblia para o inglês. Um dos motivos que o
60

levaram a desenvolver esse projeto no continente europeu foi a falta de apoio por parte do
bispo de Londres. Mudou-se para a Alemanha, onde começou seu projeto e publicou
primeiramente o Novo Testamento. Delisle & Woodsworth (op. cit.) dizem que

Na Alemanha conheceu Lutero, traduziu e publicou o Novo Testamento.


Na Antuérpia publicou seu Pentateuco – os cinco primeiros livros do
Antigo Testamento. Traído por um compatriota, que o denunciou a
agentes de Carlos V, foi estrangulado e queimado na fogueira em 6 de
outubro de 1536, em Vilvorde, perto de Bruxelas. (p. 45)

A atitude de Tyndale foi oposição explícita ao clero. Zimmer ([s.d.]) afirma que
Tyndale “Enfrentou a oposição do clero”. Essa oposição dez com que ele fosse procurado e,
após ser denunciado, sofreu a morte por estrangulamento e ser queimado na fogueira. Além
disso, não apenas sua vida foi tirada, mas também os seus escritos caçados. Zimmer (op. cit.)
diz que “Tentaram queimar a todo custo os escritos de Tyndale, que eram contrabandeados
para a Inglaterra”. Sua tradução, vinda do continente, agora era proibida, e só era possível ser
lida graças ao contrabando. Diferente das outras bíblias, que eram corpulentas e pesadas, a
bíblia de Tyndale era leve e menor, o que a tornava mais prática ao uso.
Tyndale acreditava que era mais fácil trazer as mensagens do hebraico e do grego para
o inglês, pois este refletia a ampla variedade de estilos do Antigo Testamento. Para Tyndale, o
inglês dava mais opções em relação às línguas originais do que o alemão. Sua tradução tinha
como alvo o povo, e nela estavam presentes as suas características pessoas, como a
experiência de pregador e a sensibilidade. Ainda sobre a pessoa de Tyndale e seu trabalho,
Delisle & Woodsworth (1995) citam que

Tyndale foi um lingüista e pesquisador notável, cujo atributo mais


importante era a clareza, derivada do treinamento em lógica e retórica
que tinha recebido em Oxford. Conhecia oito línguas, inclusive grego e
hebraico (o que era excepcional na sua época), tinha experiência como
pregador e sensibilidade para a tradição da escrita em inglês. Traduzia
para a linguagem que o povo falava, não para a língua escrita dos
eruditos. (p. 45-46)

Tyndale tem influência na língua inglesa não pela sua presença no país, mas pelo seu
trabalho lingüístico na tradução da bíblia para o inglês, além de sua importância nas batalhas
políticas, teológicas e ideológicas durante o período da Reforma e posteriormente a ela. Sua
escrita erudita e trabalhada, influenciada por sons, sintaxe e vocabulário de Gloucestershire 12,

12
Cidade natal de Tyndale.
61

lhe conferiram o poder de dar a Inglaterra uma linguagem bíblica própria, assim como Lutero
havia feito na Alemanha.

3.2.8 Bíblia de Genebra (N.T.: 1557; Bíblia completa: 1560)

Depois da tradução de Tyndale, a tradução da Bíblia de Genebra se destaca. Devido à


destruição das bíblias que ocorria na Inglaterra, reformadores foram a Genebra para realizar
ali uma nova tradução da bíblia para o inglês. Essa bíblia contou com a participação de
reformadores calvinistas. Houve a participação do herdeiro de Calvino no processo de
tradução da Bíblia de Genebra. Segundo Zimmer ([s.d.]), a Bíblia de Genebra “Foi a Bíblia de
Shakespeare, a Bíblia de Crowell e seus soldados”. Além disso,

Foi a primeira bíblia inglesa que dividiu o texto em dois ciclos, com
capítulos e versículos em inglês. [...] Foi a primeira bíblia a utilizar o tipo
latino. Antes era escrito em letra gótica. Agora era latina. [...] Foi a
primeira bíblia com itálicos, indicando palavras que não constavam no
original, mas eram necessárias para dar entendimento. (op. cit.)

Uma característica especial desta tradução é que ela foi a primeira a apresentar uma
introdução a todos os livros bíblicos. Uma introdução explicativa do conteúdo de cada livro. A
mensagem essencial do livro, assim como a sua história de forma resumida. Além disso, essas
introduções transpareciam a doutrina evangélica de Calvino. Por ter sido traduzida por
calvinistas, a bíblia apresentava a doutrina de uma forma implícita, mas sem ser utilizada no
texto sagrado, apenas na introdução. Ao ler a introdução antes de ler o livro, primeiramente
era apresentado ao leitor um pouco da doutrina de Calvino, e, após essa introdução, o leitor
tinha acesso ao conteúdo dos livros. Kênia Tillvitz (2006) afirma que

Não há na Bíblia identificação dos tradutores, mas acredita-se que


William Whittingham (editor geral), Miles Coverdale, John Knox,
Christopher Goodman, Anthony Gilby, Thomas Sampson, William Cole,
entre outros, tenham participado desse trabalho.

A Bíblia de Genebra é um diferencial das anteriores e um modelo para as posteriores.


As mudanças nas partes externas e internas do texto fizeram com que as bíblias atuais
seguissem esse modelo. O uso de palavras que não estavam no original, em itálico, para
62

auxiliar a compreensão do leitor fez com que a Bíblia de Genebra ganhasse destaque como
uma das grandes traduções da bíblia.

3.2.9 Versão do Rei Tiago (1611)

Após tornar-se rei de toda a Inglaterra, o rei Tiago, da Escócia, tentou chegar a um
consenso e unificar os povos da Inglaterra. Unificar católicos e anglicanos. Depois de uma
tentativa mal-sucedida através de uma reunião geral, uma idéia que iria unificar os povos
agradou bastante ao rei e foi colocada em prática. “O rei Tiago convocou 50 teólogos e deu
claras instruções para que preparassem uma bíblia que servisse a todas as igrejas, e para que
não tivesse notas, porque são as notas que dividem as igrejas” (ZIMMER, [s.d.]). Através de
um bíblia comum, as diferenças religiosas, em primeira instância, seriam deixadas de lado,
pois todos utilizariam um mesmo texto religioso, e assim as diferenças deixariam de existir.
A tradução não foi buscar diretamente os originais, como foram as anteriores, mas foi
feita uma revisão de traduções inglesas já feitas em vários momentos da história inglesa, e um
texto fluente e fácil foi feito. “Justamente as bíblias de Wycliff e Tyndale foram as que mais
contribuíram para essa tradução. Esses que foram perseguidos e que foram mortos, a sua
tradução agora se tornou bem quista, ela se tornou parte dessa tradução” (op. cit.). As
traduções que outrora levaram seus tradutores a serem considerados hereges e os levou a
morte, agora são utilizadas como base para uma tradução grandiosa. Baseando-se na
linguagem e conteúdo dessas traduções, a Versão do Rei Tiago é uma bíblia sem notas, mas
com um texto fluente e de fácil compreensão.
Zimmer ([s.d]) ainda cita que a bíblia do rei Tiago é uma grandiosa obra da literatura
inglesa ao dizer que a Versão do Rei Tiago “É um dos monumentos da língua inglesa. É
praticamente o mesmo sentido que a tradução de Lutero teve para a Alemanha essa teve para a
Inglaterra e para o mundo inglês também no aspecto da literatura”.

3.2.10 Versão de João Ferreira de Almeida (N.T.: 1681; Bíblia completa: 1753)
63

João Ferreira de Almeida, o mais conhecido tradutor da bíblia para a língua


portuguesa, conhecedor do hebraico e do grego, iniciou a tradução da bíblia aos 17 anos de
idade. Por perder seus manuscritos, teve que recomeçar todo o processo em 1648. Tomou
como base de seu trabalho algumas traduções da bíblia como a Vulgata latina, a tradução
holandesa e a francesa.
Terminou de traduzir o Novo Testamento em 1676, mas só pode ser impresso em
1681, depois de um longo processo de revisão e impressão. Após conseguir publicar o Novo
Testamento, Ferreira de Almeida iniciou o processo de tradução do Velho Testamento. Mas
não conseguiu terminar essa tradução. Zimmer ([s.d.]) afirma que Ferreira de Almeida “Não
conseguiu terminar a tradução. Ele traduziu até mais ou menos a metade de Ezequiel. A parte
final foi traduzida por Jacobus op den Akker, um missionário holandês”.
Em 1753 foi publicada a primeira bíblia completa em português, em dois volumes.
Posteriormente, em 1819, foi publicada em Londres, pela primeira vez, a bíblia em português
em apenas um volume. Uma revisão foi feita setenta e nove anos depois, em 1898, e foi
publicada com o nome de Revista e Corrigida.
No Brasil, a primeira revisão da Bíblia de Almeida foi realizada sob a coordenação
da Sociedade Bíblica do Brasil, no ano de 1959. Essa revisão, que foi uma revisão no sentido
de trazer a linguagem do português de Portugal para o português do Brasil, recebeu o nome de
Revista e Atualizada. Essa versão foi a primeira revisão brasileira da Bíblia de João Ferreira
de Almeida. Desde então, a Bíblia de João Ferreira de Almeida tem sido a bíblia predileta da
grande maioria de leitores de língua portuguesa.
As traduções brasileiras a partir de João Ferreira de Almeida são muitas. Variam de
acordo com o público que querem atingir. Em especial, a Bíblia da Ave-Maria e Bíblia
Sagrada: Edição Pastoral, destacam-se por uma tradução que mantém os princípios da Igreja e
procuram dar ao leitor mais comodidade ao ler a bíblia, utilizando um vocabulário mais
simples e de fácil entendimento. As questões relacionadas às semelhanças e diferenças destas
traduções e a sua relação com a tradução de João Ferreira de Almeida serão tratadas no
próximo capítulo.
64

4 MUDANÇAS AO LONGO DOS ANOS: UMA ANÁLISE DA


BÍBLIA CATÓLICA COMPARADA A VERSÃO DE JOÃO
FERREIRA DE ALMEIDA

Semelhante a outros países que tiveram na tradução bíblica uma fonte de novos
conhecimentos e também de mudanças culturais e lingüísticas, o Brasil encontrou na tradução
bíblica uma forma de conquista. Em primeira instância, uma conquista portuguesa por meio
dos jesuítas e sua arrancada rumo a pregação para os índios, e depois, uma arrancada cultural
(a tradução primeiramente bíblica agora começa a fazer parte do teatro, entre outras coisas).
Lya Wiler (2003), ao falar sobre a tradução no Brasil em seus primórdios, em
especial sobre a tradução oral, primeira desenvolvida no país, afirma que

O registro que inaugura a história da tradução no país é o mesmo que


coloca o Brasil no mapa das terras “descobertas” pelos navegadores
portugueses. Em carta data de 1.º de maio de 1500, o escrivão da frota
portuguesa, Pero Vaz de Caminha, relata ao rei de Portugal o achamento
de nova terra a leste da linha demarcada pelo Tratado de Tordesilhas.
Descreve com grande detalhe o território, os habitantes, os atos de índios
e portugueses e até mesmo as justificativas desses atos. Caminha
descreve mais: relata que o primeiro ato de tradução realizado entre
portugueses e índios, ao informar que precisaram recorrer à mímica para
se fazer entender. (p. 36)

Se a tradução oral encontrou dificuldades, a tradução escrita encontrou dificuldades


ainda maiores. Resignou-se a ser um exercício acadêmico até a segunda metade do século
XX. Durante esse período, desde o descobrimento, a tradução foi tratada como sendo uma
ocupação temporária da elite intelectual, uma atividade que rendia prazer intelectual. De
acordo com Wyler (op. cit.), a escola democrática, fundada pelo padre Manuel da Nóbrega,
tornou-se um instrumento de segregação do negro, do índio, da mulher e do pobre. Classes
sociais mais baixas não tinham acesso aos locais de ensino e, conseqüentemente, o
analfabetismo de massa tomava grandes proporções.
Outro problema que enfrentado era a falta de impressão de livros no Brasil. Os
poucos que eram impressos vinham de Portugal, o que dificultava o trabalho de combate ao
analfabetismo. Em muitos momentos, as cópias à mão eram um recurso viável e necessário.
Além das cópias, as importações clandestinas de livros também eram um outro meio de obter
livros para o ensino. Wyler (op. cit.) cita que
65

Se nos primeiros anos os jesuítas se viram obrigados a copiar à mão as


cartilhas de ensinar a ler, aos poucos foram reunindo bibliotecas bem
sortidas. Importavam seu conteúdo, legal ou ilegalmente, de Portugal e
Itália, bem como o adquiriam dos funcionários graduados que
regressavam a metrópole. Durante dois séculos, tais bibliotecas
constituíram centros de grande importância para a formação cultural e
intelectual da juventude e manutenção do plurilingüismo natural.

Durante o período colonial, a tradução escrita foi a ocupação missionários


responsáveis pela evangelização dos índios e pelo ensino nos colégios dos jesuítas. Os
missionários eram incumbidos de registrar a língua indígena, organizar os registros em
dicionários e, posteriormente, utiliza-los na comunicação e tradução de obras de religião
(orações, sermões e hinos) para os índios. De acordo com Wyler (op. cit.), acredita-se que a
primeira tradução brasileira foi a Suma da doutrina cristã. Do português para o tupi, anterior a
1577, de autoria do padre João de Azpilcueta Navarro, S. J., conhecido pelo seu talento
lingüístico.
Em relação à tradução da bíblia propriamente dita, a primeira tradução completa para
o português acontece entre 1772 e 1790 pelo padre Antônio Pereira de Figueiredo, baseada na
Vulgata. Todavia, esta versão não é a mais difundida no Brasil. A versão do padre Matos
Soares, de 1932, publicada pela editora Paulinas, também baseada na Vulgata, aparece como a
primeira tradução integral da bíblia no Brasil e, mais difundida do que a versão do padre
Antônio Pereira de Figueiredo.
Da versão do padre Matos Soares, de 1932, para a versão adaptada da tradução
francesa dos Monges de Maredsous (Bélgica), publicada pela editora Ave-Maria, a partir de
1958, passam-se 26 anos. Neste intervalo de tempo, é publicada a Bíblia: Antigo e Novo
Testamento pela Liga de Estudos Bíblicos (LEB), a primeira tradução católica em português
diretamente a partir dos originais hebraicos e gregos. Atualmente esta bíblia vem sendo
publicada em edição popular (A Bíblia Mensagem de Deus, editora Loyola).
Neste capítulo serão analisadas duas versões publicadas pela editora Ave-Maria em
duas datas diferentes. A primeira versão, Nôvo Testamento, publicada no ano de 1969, é
composta apenas do Novo Testamento e contém vários dos itens de auxílio à leitura13 que as
outras bíblias apresentam em suas edições. Devido à dificuldade de acesso a primeira edição
(1958), utilizaremos esta edição que foi a mais próxima a primeira que conseguimos encontrar
(1969 – 3.ª edição). A segunda versão, Bíblia Sagrada: Edição Catequética Popular, é uma
edição do ano corrente a este trabalho (2007), uma tradução integral da bíblia, que também
apresenta vários itens de auxílio à leitura.
13
Índice, Introdução, Notas explicativas, entre outros itens.
66

No intuito de melhorar ainda mais a análise de alguns excertos bíblicos, serão


utilizadas duas versões da tradução de João Ferreira de Almeida, bíblia muito utilizada pelos
várias denominações cristãs. A primeira versão é do ano de 1860, publicada pela Sociedade
Americana da Bíblia, utilizando o português falado em Portugal. A segunda edição, publicada
em 2005 pela editora Geográfica, é uma edição revista e corrigida, na grafia simplificada, em
sua sexta edição.
Ao utilizar as duas versões da tradução de João Ferreira de Almeida, objetiva-se
melhorar ainda mais a análise, provendo não só as mudanças das duas edições católicas, mas
também compará-las com uma tradução bíblica bastante utilizada por outras denominações
religiosas. Com isso, poderá ser visto as mudanças que aconteceram nos textos ao longo dos
anos, o intuito das traduções e das mudanças que elas trouxeram.
Em um primeiro momento, as duas edições católicas (publicadas pela editora Ave-
Maria) serão analisadas nos aspectos de diferenças internas e externas, no que diz respeito ao
aspecto visual de nos itens de auxílio à leitura. Num segundo momento, será feita uma análise
das mudanças lexicais discursivas e estilísticas.

4.1 Diferenças internas e externas

Não são apenas os relatos das histórias do povo de Israel antes do nascimento de
Cristo e o nascimento da igreja de Cristo depois de sua morte que compõe uma bíblia. Como
um livro, a bíblia apresenta muito mais que isso. Todo livro segue um projeto gráfico
específico da editora. Normalmente, livros de uma mesma coleção têm um mesmo projeto
gráfico para que fique fácil para o leitor visualiza-los e saber que são de uma mesma coleção.
Influi no projeto gráfico de uma bíblia a capa, o frontispício (também conhecido como folha-
de-rosto), o prólogo à tradução, a introdução, as notas de rodapé (que podem ser notas do
tradutor ou notas explicativas do texto), a concordância bíblica e o dicionário bíblico. Além
disso, o estilo de letra e a disposição do conteúdo na página são algumas das partes que cabem
ao projeto gráfico.
Com o passar dos anos, os projetos gráficos vão sendo modificados com o intuito de
sempre estarem atualizados e propiciarem ao leitor uma melhor leitura. Letras muito pequenas
ou muito juntas, espaços vagos na página, figuras e tabelas sem explicação, tudo isso torna a
leitura difícil e maçante. E se a leitura é maçante, o livro será deixado de lado muito
67

rapidamente e, na maioria das vezes, deixará de ser utilizado pelo leitor, que buscará uma
leitura mais agradável.
Ao analisar as duas edições publicadas pela editora Ave-Maria, foi-se respeitada uma
seqüência de itens a serem verificados. Logo após, os itens foram sendo minuciosamente
checados em ambas as edições, para que depois fossem transcritos os resultados. A seqüência
de itens verificados foi organizada em uma tabela e, após isso, foram sendo anotados os
resultados. A tabela com a seqüência continha os seguintes itens:

Item Contém Não Contém


Capa
Frontispício
Índice
Prólogo a tradução
Índice alfabético
Índice doutrinal
Introdução
Velho Testamento
Novo Testamento
Notas de rodapé
Concordância bíblica
Dicionário bíblico
Mapas
Moedas e Medidas
Orações
Contracapa
Tabela 2. Itens para checagem de existência nas edições publicadas pela editora Ave-Maria.

Cada um destes itens tem grande influência na leitura. Não são apenas os textos
(Velho e Novo Testamento) que trazem conhecimento ao leitor, mas os demais itens também.
Os demais itens são um auxílio muitas vezes necessários para que se possa compreender o que
está escrito. Notas que fornecem explicações sobre expressões e que indicam textos
relacionados, lista de pesos e medidas usados na bíblia e a equivalência com os pesos e
medidas atuais, além de dicionários, mapas, concordâncias e índices, tudo coopera para que o
entendimento seja completo.
As duas edições publicadas pela editora Ave-Maria diferem-se em vários aspectos
interna e externamente. Mas apresentam também algumas semelhanças que perduraram por
vários anos. Os itens Capa, Frontispício, Índice, Prólogo a Tradução, a primeira página do
Velho Testamento e a primeira do Novo Testamento, além da Contracapa, encontram-se
68

escaneadas na parte dos Anexos. Os dados coletados nas bíblias checados com a utilização da
tabela citada anteriormente mostrando as diferenças e semelhanças entre ambas, além dos
itens que cada uma contém ou não, são comentados a seguir.

4.1.1 Nôvo Testamento (1969)

Diferente da outra edição analisada neste trabalho, a edição de 1969 (3.ª edição
publicada) da editora Ave-Maria conta apenas com o Novo Testamento, como o próprio nome
já indica. A edição tem o formato 12 x 18 cm, contendo apenas 480 páginas, divididas em
Frontispício, Índice, Introdução (que vai da página 7 à página 14) e os livros do Novo
Testamento. A edição não apresenta Prólogo a Tradução, Índice Doutrinal e Índice Alfabético.
Sua capa tem uma identificação bastante interessante, que só pode ser entendida ao colocar
capa e contracapa alinhadas. Ao olhar apenas a capa, a imagem de Cristo carregando uma cruz
traz uma primeira impressão. Mas ao alinhar capa e contracapa, vê-se que a cruz que Jesus
carrega não apenas está sendo por ele carregada, mas por muitas outras pessoas.
A tradução foi feita dos originais hebraico, aramaico e grego, mediante a versão
francesa dos Monges Beneditinos de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíblico de São Paulo.
A primeira tradução no Brasil é datada de 1958. O Nôvo Testamento apresenta ainda notas de
rodapé que auxiliam o entendimento do leitor. Em muitas delas existe uma retomada de
expressões usadas no texto que são explicadas para que o leitor compreenda a utilização da
expressão. Outras notas indicam textos que vão ajudar a entender o contexto e/ou a mensagem
proposta pelo texto bíblico. Apesar de conter estas notas explicativas, a bíblia não apresenta
mais nenhum recurso que auxilie a leitura como Concordância Bíblica, Dicionário Bíblico,
Mapas, Tabela de Moedas e Medidas. Além disso, ao seu final, as Orações que são
costumeiras nas bíblias católicas também não aparecem.
Na parte da Conclusão da Introdução, o leitor tem contato direto com as intenções da
Nôvo Testamento, pois todo o resto da Introdução é destinado a explicar o conteúdo dos livros
do Nôvo Testamento. O leitor, ao ler a Conclusão, percebe que a intenção do Nôvo
Testamento é a de induzir uma leitura que anuncie e dê testemunho da mensagem de Jesus
Cristo.
69

4.1.2 Bíblia Sagrada: Edição Catequética Popular (2007)

Com a primeira edição lançada em 2007, a Bíblia Sagrada: Edição Catequética


Popular apresenta Velho e Novo Testamento, além de um Índice Doutrinal, uma Genealogia
Bíblica, Medidas e Moedas, Orações Diárias do Cristão e Mapas coloridos. Esta edição não
apresenta apenas Concordância Bíblica e Dicionário Bíblico. Todo o seu conteúdo está
dividido em 1600 páginas, no formato 13 x 18cm. Além dos recursos citados anteriormente,
ainda se faz presente um Índice Alfabético dos livros bíblicos, um Prólogo à Tradução que é
datado de 13 de junho de 1959.
Além da Folha de Rosto, dois mapas (Oriente Antigo e Egito e Sinai; Divisão das
Tribos de Israel) e do Índice, esta edição apresenta ainda As grandes datas da Bíblia, Como
Ler a Sagrada Escritura, Como ler as citações, Introdução Geral, Introdução aos Livros do
Antigo Testamento e Introdução aos Livros do Novo Testamento.
A Bíblia Sagrada: Edição Catequética Popular apresenta várias notas explicativas
relacionadas ao contexto dos textos bíblicos. Assim como o Nôvo Testamento, as notas de
rodapé contem o número do capítulo, o número do versículo e as expressões que estão
explicadas aparecem em itálico. Algumas notas que não explicam expressões contêm
passagens relacionadas ao assunto tratado pelo texto.
Tanto o Nôvo Testamento como a Bíblia Sagrada: Edição Catequética Popular
apresentam a mesma Introdução ao Novo Testamento e Conclusão da Introdução, sem
nenhuma mudança nas palavras utilizadas. Com a utilização do mesmo texto de Conclusão,
mostra-se que o objetivo de ambas é o mesmo.
Um fato interessante a ser destacado sobre a Introdução Geral desta Bíblia é o que ela
diz a respeito da autoria dos livros da bíblia em geral e, conseqüentemente, fala diretamente
aos tradutores no que diz respeito ao seu trabalho. Nas páginas 14 e 15, encontra-se escrito
que

Os títulos desses livros lembram por vezes o nome dos seus autores,
outras vezes, o nome dos seus destinatários, ou ainda os assuntos que nele
são tratados. É-nos desconhecido o nome de muitos desses autores;
alguns escritos são produto de uma colaboração ou constituem uma
coleção de textos antigos compilados posteriormente. Os autores bíblicos
viveram em lugares e ambientes diferentes muito diversos: cada um deles
imprimiu na sua obra traços muito característicos de sua personalidade.
Mas como todos escreveram sob a inspiração do Espírito Santo, é Deus
mesmo quem deve ser tido como autor primário de toda a Bíblia.
70

Ao se pensar na bíblia, o tradutor deve imprimir em seu trabalho os traços


característicos de cada um dos autores, não se esquecendo de deixar claro que o autor
primário é Deus, mas mostrando as diferenças que existiram entre os textos devido a
diversidade de autores. Um trabalho cheio de fadiga e preocupação, desprovido de interesses
materiais, a Bíblia Sagrada: Edição Catequética Popular objetiva com sua tradução fazer com
que o leitor tire proveito espiritual de sua leitura para sua vida cristã.
Após uma visão geral sobre os aspectos internos e externos dos projetos gráficos de
cada uma das bíblias, faz-se necessário uma verificação de eventuais mudanças textuais. Para
isso, quatro excertos serão analisados. Os resultados das análises são mostrados a seguir.

4.2 Análises dos excertos

Cada uma das bíblias analisadas neste trabalho teve por objetivo revelar à mensagem
de Cristo em seu ministério ás pessoas que ainda não o conhecem. Demonstrar que através do
sacrifício dele na cruz, existe a garantia de salvação. Não queremos aqui discutir temas
específicos que muitas vezes geram polêmica entre uma denominação e outra, mas mostrar de
uma forma clara que existem diferenças entre traduções (de uma mesma editora e de mesmo
público religioso ou de diferentes editoras e públicos). Foram escolhidos quatro excertos
dentre os 66 livros que compõe as quatro edições analisadas. Foram escolhidos em temas
bíblicos importantes e por apresentarem diferenças de um público religioso para outro.
Como uma das edições publicadas pela editora Ave-Maria contém apenas o Novo
Testamento, trabalhamos as análises apenas com excertos retirados dos livros do Novo
Testamento. Apesar de alguns excertos terem sido pesquisados no Velho Testamento, utilizá-
los neste trabalho iria deixá-lo incompleto, já que uma das bíblias não poderia fazer parte das
análises. Assim, desde Mateus até Apocalipse, quatro excertos foram estudados e analisados.
As análises foram divididas em quatro temas diferentes, onde foram analisadas as
semelhanças e diferenças entre as versões bíblicas. Primeiramente divididos em Diferentes e
Semelhantes, notou-se a necessidade de apresentar divergências estilísticas entre os excertos,
que foi tratado como um terceiro tópico. Cada um dos temas mostra diferenças entre as
traduções dos excertos e também semelhanças, além de uma análise estilística. Em nenhum
momento foi feito um trabalho de melhorar as traduções apresentadas, mas apenas foi feito o
trabalho da análise.
71

Os quatro excertos escolhidos foram divididos nos seguintes temas:

• Apresentação bíblica de Deus – Judas 25


• Apresentação bíblica de Jesus – João 6,69
• Amor a Deus - I João 4,10
• Concessão de benção divina – Apocalipse 22,19
• Submissão da mulher (questão cultural) – I Coríntios 14,34-35

Após terem sido escolhidos os excertos, foram catalogados em uma tabela que
apresenta cada um dos excertos e como eles aparecem nas quatro edições bíblicas. Foram
colocados lado a lado para uma melhor visualização das diferenças e/ou igualdades entre eles.

4.2.1 Apresentação bíblica de Deus

Uma das três pessoas da trindade, Deus é personagem central na bíblia. Intitulando a
si mesmo como Eu Sou, Deus é quem guia o povo de Israel durante toda a sua jornada no
Velho Testamento. Comandante do povo de Israel, é Deus quem os lidera (de formas variadas)
para conquistas e quem os repreende ao ser muitas vezes esquecido. O Todo-Poderosos, o
Alfa e o Ômega, como diz o verso 8 do capítulo 1 de Apocalipse, a figura de Deus teve várias
faces durante as eras.
De acordo com Sarah Carr-Gomm (2004), autora do Dicionário de Símbolos na Arte,
“na imagística da Idade Média tardia, Deus pode ser mostrado como parte da Trindade: ou
como o Pai, criando o mundo; ou na forma de Cristo; ou como o Espírito Santo, numa
Anunciação, representado por feixes de luz ou por uma pomba” (p. 76). Todavia, no
Renascimento a imagem de Deus é representada por uma figura paterna com cabelos e barba
branca. Uma figura que muito se assemelha a esse imagem é a de Zeus na mitologia grega,
divindade suprema e governador dos céus, e de Júpiter na mitologia romana.
A bíblia apresenta inúmeras qualidades relacionadas a imagem de Deus. Uma delas
foi destacada nessa análise, pois existe a omissão de uma qualidade das muitas citadas pelo
verso. O verso fala de Deus e confere a ele qualidades, mas em uma versão das bíblias
analisadas encontrou-se uma característica de Deus que nas outras não foi encontrada. A
característica é alterada nas demais versões por uma palavra que em nenhum momento
72

exprime o sentido desta diferente. Abaixo estão as quatro versões e a forma como apresentam
as características.

Judas 2514
Nôvo Testamento Bíblia Sagrada Bíblia Sagrada Bíblia Sagrada
(Ave-Maria, 1969) (Ave-Maria, 2007) (SAB, 1860) (Geográfica, 2005)
Ao Deus ÚNICO, Ao Deus ÚNICO, Ao só SABIO Deos Ao ÚNICO Deus,
Salvador nosso, por Salvador nosso, por nosso Salvador, seja Salvador nosso, por
Jesus Cristo, Jesus Cristo, gloria e magestade, Jesus Cristo, nosso
Senhor nosso, Senhor nosso, força e potencia, Senhor, seja glória e
sejam dadas glória, sejam dadas glória, assim agora como majestade, domínio
magnificência, magnificência, para todo sempre. e poder, antes de
império e poder império e poder Amen. todos os séculos,
desde antes de desde antes de agora e para
todos os tempos, todos os tempos, sempre. Amém.
agora e para agora e para
sempre. Amém. sempre. Amém.

Em três edições a palavra “único” é utilizada. Mas na versão de João Ferreira de


Almeida, de 1860, a palavra “único” não aparece. É utilizada a palavra “sábio” para designar
uma característica de Deus. Se as outras edições fossem utilizar uma palavra que fosse
sinônima da palavra “sábio”, poderiam ter utilizado as palavras “erudito”, “sensato”, e até
mesmo a palavra “prudente”.
Mas neste caso, optou-se por uma palavra que alterava uma palavra com outra
totalmente diferente em sentido. Ao dizer que Deus é único, não se entende que por essa
característica ele seja sábio. As duas palavras conferem a imagem de Deus característica
diferentes por serem palavras diferentes e que exprimem por si sós entendimentos diferentes.
A diferença entre as traduções existe e é um ponto interessante. Utilizar-se de adjetivos a
imagem de Deus é algo constante na bíblia, mas alterá-los pode ser um ponto de problemas.
Nas edições publicadas pela editora Ave-Maria não existem diferenças em nenhum
momento. Ambos os excertos são traduzidos da mesma forma, sem alteração de palavras.
Existe apenas a alteração quando se compara essas duas edições com a edição da tradução de
1860. Curiosamente, a edição de 2005 da tradução de João Ferreira de Almeida também é
diferente da versão do século anterior, seguindo a mesma palavra utilizada pelas edições da
editora Ave-Maria.

14
Algumas partes deste excerto foram destacadas com letras maiúsculas para facilitar a visualização.
73

4.2.2 Apresentação bíblica de Jesus

Jesus tem sua imagem associada à Trindade assim como Deus. Uma imagem de filho
amoroso, que cuida do seu povo, a imagem de Jesus sempre foi à de alguém que muito fez
pelo mundo, ao dar a sua vida, ao fazer milagres. Sua vida forneceu inúmeras narrativas para
pintores, escultores, contadores de história, além de ser à base de vida para todos os seres
humanos. Sua vida é retratada na bíblia pelos quatro Evangelhos, sendo dividida em grandes
partes: Natividade, Batismo e vocação dos discípulos, Ensinamentos, Milagres e Paixão. Em
cada uma das partes de sua vida, Jesus apresenta exemplos práticos de vida.
Mas a despeito disso, a pessoa de Jesus é enaltecida e, em muitos momentos das
histórias bíblicas, adjetivos e características são designadas à imagem de Jesus. Filho de Davi,
Filho do Deus bendito, o Rei, Messias, todos são nomes e características especial e
unicamente dadas a pessoa de Jesus. Mas uma dessas características é destacada no excerto
abaixo. Nele, as quatro edições apresentam três versões diferentes para esta passagem. Nas
quatro edições percebe-se o acréscimo e também a retirada de algumas palavras.

João 6:69
Nôvo Testamento Bíblia Sagrada Bíblia Sagrada Bíblia Sagrada
(Ave-Maria, 1969) (Ave-Maria, 2007) (SAB, 1860) (Geográfica, 2005)
E nós cremos e E nós cremos e E já nósoutros E nós temos crido e
sabemos que TU sabemos que TU erêmos, e conhecido que TU
ÉS O SANTO DE ÉS O SANTO DE conhecêmos que ÉS O CRISTO, O
DEUS! DEUS! TU ES O FILHO DE DEUS.
CHRISTO, O
FILHO DO DEOS
VIVENTE.

Ao conversar com Jesus, Simão Pedro diz que ele e os outros discípulos crêem e
sabem que Jesus é o filho de Deus. Mas existe uma diferença entre as edições apresentadas.
As duas edições da editora Ave-Maria apresentam as mesmas palavras nos dois excertos,
dizendo que Jesus é o “Santo” de Deus. Já as edições da tradução de João Ferreira de Almeida
apresentam diferentes versões para um mesmo excerto bíblico. A versão de 1860 apresenta
Jesus como “o Cristo”, “filho de Deus vivente”. A versão de 2005 apresenta de igual forma
que Jesus é “o Cristo”, mas omite a característica “vivente” que está relacionada à palavra
Deus.
A diferença entre as versões é bastante explícita. Utilizam-se duas formas diferentes
para se falar da pessoa de Jesus e duas formas para se falar sobre a pessoa de Deus. Num
74

primeiro momento, Jesus é apresentado como “Cristo, o filho de Deus”. Num segundo
momento, como o “Santo de Deus”. A diferença gramatical entre as palavras é clara. A
característica de filho de Deus é omitida nas edições da editora Ave-Maria, sendo utilizada em
seu lugar a característica de ser “o santo”. Ao dizer que Jesus é o filho de Deus, entende-se
que Jesus seja como Deus: santo. Assim sendo, o que vai ser somado a imagem de Jesus é o
nome Cristo.
Além disso, apenas o excerto da bíblia de 1860 apresenta a característica “vivente”
relacionada a imagem de Deus. Assim, nas edições da editora Ave-Maria existe uma troca de
expressões que fazem com que se perca um nome designado apenas à pessoa de Jesus e, em
seu lugar, é utilizado uma característica que já está implícita no nome Cristo. Existe ainda a
omissão da palavra vivente, relacionado a imagem de Deus.

4.2.3 Concessão da benção divina

Algo que todo cristão procura diariamente é receber as bênçãos de Deus. Bênçãos
materiais, bênçãos espirituais, bênçãos relacionadas à saúde, a busca por uma ajuda divina é
algo que move cristãos a se relacionarem intimamente com Deus. Um sinônimo para benção é
a palavra graça, muito encontrada na bíblia. São as dádivas, os dons, os favores de Deus, que
todo cristão almeja.
O desejo de habitar nos céus com Jesus faz com que os cristãos sigam as suas leis e
mandamentos. A esperança que todo cristão tem faz com que ele tenha dentro de si uma
vontade muito forte de estar preparado para a volta de Jesus. A volta de Jesus é o
acontecimento mais esperado pelos cristãos. A volta de Jesus traz o fim as dores, aos
problemas, traz nova vida, nova moradia, tudo restaurado. Habitar no céu e desfrutar de tudo
o que lá existe é um sonho que pode tornar-se realidade.
O livro do Apocalipse faz uma advertência aos seus leitores relacionada a benção de
estar no céu. No céu, os filhos de Deus poderão comer da árvore da vida. Mas se na terra
deixarem de lado a advertência dada em Apocalipse, a sua estadia no céu pode se tornar irreal.
Este excerto foi destacado devido à existência de uma advertência e de bênçãos reservadas
aos cristãos. Mas também por apresentar uma diferença entre as versões, que faz toda a
diferença.
75

Apocalipse 22,19
Nôvo Testamento Bíblia Sagrada Bíblia Sagrada Bíblia Sagrada
(Ave-Maria, 1969) (Ave-Maria, 2007) (SAB, 1860) (Geográfica, 2005)
E se alguém dêle E se alguém tirar E se alguém das E, se alguém tirar
tirar qualquer coisa, dele qualquer coisa, palavras do livro quaisquer palavras
Deus lhe tirará a Deus lhe tirará a desta Prophecia do livro desta
sua parte da sua parte da diminuir, Deos lhe profecia, Deus
ÁRVORE DA ÁRVORE DA tirará sua parte do tirará a sua parte da
VIDA e da cidade VIDA e da Cidade LIVRO DA VIDA, ÁRVORE DA
santa, descritas Santa, descritas e da santa cidade, E VIDA, e da cidade
neste livro. neste livro. DAS COUSAS que santa, que estão
neste livro estão escritas neste livro.
escritas.

Ao falar sobre o livro do Apocalipse, o autor fala que não se deve em circunstância
nenhuma haver alterações no que está escrito no livro. Se existir qualquer tipo de alteração,
Deus irá agir contra aquele que tiver feito às alterações. Deus irá retirar duas bênçãos
daqueles que fizerem isto. As bênçãos descritas em Apocalipse 22,19 são tomar parte na
“árvore da vida” e na “santa cidade”. Mas uma das edições apresenta uma benção totalmente
diferente, que implica numa mudança completa de toda a estrutura do excerto. Ao utilizar a
expressão “livro da vida15”, entende-se que ao ser feita alguma alteração, a pessoa tem seu
nom retirado do livro que contém a história de sua vida na terra e, conseqüentemente, ela
deixa de existir, não podendo mais ir ao céu.
Nos excertos que utilizam à expressão “árvore da vida16” fica implícita a idéia de que
a pessoa não estará no céu, pois nem tomara parte da árvore e tampouco estará na cidade
santa. O problema reside na utilização das expressões por parte dos tradutores. Árvore da vida
e Livro da vida são objetos distintos apresentados pelo livro do Apocalipse. Um é um
instrumento de julgamento dos povos. O outro, um instrumento que traz alimento e cura. O
primeiro será utilizado para julgar e permitir acesso ao céu. O segundo, é uma das bênçãos
que Deus concederá àqueles que tiverem sua entrada garantida. Para receber os frutos da
árvore e habitar a cidade santa, primeiramente é necessário ter no livro da vida relatos que
permitam o acesso ao céu.
Além da troca de duas expressões por parte das versões analisadas, existe ainda uma
outra diferença. As edições da editora Ave-Maria e a edição de 2005 da tradução de João

15
O Livro da vida, segundo Apocalipse 20,12, é o livro onde se encontram anotadas todas as obras de todos os
seres humanos, desde seu nascimento até a sua morte, e será utilizado para julgar os povos. Aqueles que não
estiverem com os seus nomes neste livro, não irão entrar no céu (ver Apocalipse 20,15).
16
A Árvore da vida é descrita no livro do Apocalipse como sendo uma árvore que se estende de uma margem a
outra do rio que sai do trono de Deus, produz doze frutos, dando seus frutos de mês em mês, e suas folhas são
cura para os povos (ver Apocalipse 22,2).
76

Ferreira de Almeida utilizam as expressões “descritas neste livro” e “escritas neste livro”. A
versão de 1860 apresenta uma expressão diferente das outras: “e das coisas que neste livro
estão escritas”. Ao ler essa parte, o leitor entende que se existir qualquer alteração no livro,
todas as bênçãos que nele estão escritas (não apenas árvore da vida, livro da vida e cidade
santa) serão perdidas. Uma pequena expressão que faz uma grande diferença no
entendimento.
Interessante pensar que existem diferenças entre as traduções. De uma versão para
outra existe diferença, logo, existe uma mudança no que está escrito no livro. Assim sendo, as
bênçãos podem ser perdidas por quem fez a alteração.

4.2.4 Submissão da mulher

Ao criar homem e mulher a sua imagem, Deus colocava uma rega geral: o homem
não é superior à mulher. Criados semelhantes a Deus, nenhum dos dois teria superioridade
sobre o outro. Exercer qualquer tipo de superioridade um sobre o outro seria uma ofensa
direta ao Criador e, portanto, ficava claro que a palavra de ordem era igualdade. O livro de
Gênesis relata essa relação de igualdade ao falar da criação, mais especificamente no capítulo
1, verso 27.
Mas com o passar dos anos, a mulher tornou submissa ao homem. Nos tempos
bíblicos, o homem exercia o poder total sobre sua casa, sobre seus filhos. Em alguns
momentos, o papel da mulher na sociedade israelita é o de mãe. Não tem direitos sociais,
apenas deveres maternos e do lar. Não é por menos que a bíblia vai contra isso e apresenta
histórias de mulheres que mudaram a história do povo. Pode-se citar aqui Ester, Rute, Débora,
entre muitas outras.
O Novo Testamento apresenta uma igreja que pregava a submissão da mulher ao seu
marido. Admitia-se que a mulher assistisse nas sinagogas, desde que se mantivesse calada,
sem expressar qualquer tipo de opinião ou dúvida. A mulher deveria apresentar obediência ao
seu marido, ser subalterna a ele. Em outras palavras, a mulher deveria agir com servilismo
para com o homem, já que intelectual e socialmente ele era superior a ele e, cabia a ela
demonstrar respeito a isso para que não sofresse nenhuma punição.
77

Ao falar sobre a adoração no templo, o livro de I Coríntios apresenta regras especiais


para as mulheres. Deveriam sujeitar-se a algumas regras, regras que exigiam delas a
submissão.

I Coríntios 14,34-35
Nôvo Testamento Bíblia Sagrada Bíblia Sagrada Bíblia Sagrada
(Ave-Maria, 1969) (Ave-Maria, 2007) (SAB, 1860) (Geográfica, 2005)
COMO EM COMO EM Vossas mulheres As mulheres
TÔDAS AS TODAS AS calem-se nas estejam caladas nas
IGREJAS DOS IGREJAS DOS Igrejas: Porque não igrejas; porque lhes
SANTOS, as SANTOS, as lhes he permitido não é permitido
mulheres estejam mulheres estejam falarem nellas, mas falar; mas estejam
caladas nas caladas nas que estejão SUJEITAS, como
assembléias: não assembléias; não SUJEITAS: como também ordena a
lhes é permitido lhes é permitido também a Lei o diz. lei.
falar, mas devem falar, mas devem E se quizerem E, se querem
estar SUBMISSAS, estar SUBMISSAS, aprender alguma aprender alguma
como também como também cousa, perguntem a coisa, interroguem
ordena a Lei. ordena a lei. seus próprios em casa a seus
Se querem aprender Se querem aprender maridos em casa: próprios maridos;
alguma coisa, alguma coisa, porque COUSA porque é
perguntem-na em perguntem-na em FEIA he falarem as INDECENTE que
casa aos seus casa aos seus mulheres na Igreja. as mulheres falem
maridos: porque é maridos, porque é na igreja.
INCONVENIENTE INCONVENIENTE
para uma mulher para uma mulher
falar na assembléia. falar na assembléia.

O excerto mostra algumas diferenças bastante pertinentes a mudanças culturais ao


longo dos anos. Num primeiro momento, as versões católicas e as versões das traduções de
João Ferreira de Almeida diferem entre si. As versões católicas apresentam a expressão “todas
as igrejas dos santos”, e as versões de João Ferreira de Almeida apresentam apenas a palavra
“igreja”. A expressão “igreja dos santos” resume a ordem que vai se seguir no verso bíblico
apenas aos membros dessa determinada igreja. Já a palavra “igreja” não tem um significado
expandido. Ao falar diretamente a igreja de Corinto, utilizar a expressão “igreja dos santos”
confere uma qualidade especial a esta igreja que a versão de João Ferreira de Almeida não
confere. Os membros de Corinto em uma versão são todos santos, em outra, membros como
os de qualquer outra igreja.
A segunda parte destacada apresenta um uso de palavras diferentes para expressar a
mesma ordem às mulheres: submissão. Não devem falar na igreja. Devem estar submissas aos
seus maridos, pois estes têm o direito a falar na igreja. Cabe a elas manter dentro da igreja o
78

que já fazem fora: serem submissas. Se querem aprender, perguntem aos maridos. Mas não
dentro da igreja, em casa, num local privado. Em público, coloquem-se nos seus lugares.
A última parte destacada mostra uma mudança na linguagem que se adapta ao
período em que a bíblia foi traduzida. Nas edições da Ave-Maria, uma mesma palavra é
utilizada, diferente das edições de João Ferreira de Almeida, onde palavras diferentes são
usadas. As edições católicas (Ave-Maria) utilizam a palavra “inconveniente” para relacionar o
fato de uma mulher falar na igreja. A fala pública de uma mulher é algo inconveniente. O uso
da palavra inconveniente faz com que se utilize um sentido de que a fala da mulher na igreja é
algo impróprio, inadequado, inoportuno. Já o uso da palavra “indecente” denota uma
característica de imoralidade, de depravação, algo indecoroso. Para a versão de 2005 da
tradução de João Ferreira de Almeida, existe uma indecência na fala da mulher na igreja. Não
é apenas algo impróprio, mas indecente. Das versões católicas para as versões de João
Ferreira de Almeida, a fala da mulher na igreja adota um sentimento completamente diferente.
De algo ruim, torna-se totalmente errado, digno de repúdio. A expressão mais amena é a
utilizada pela tradução de 1860, que diz que é “coisa feia” a mulher falar na igreja.
Entre as versões analisadas, nota-se uma diferença muito grande na escolha do
vocabulário e da escolha de expressões. Algumas afetam diretamente o entendimento
teológico. Outras afetam o entendimento lingüístico. Diferenças existem, mas nota-se um
intuito de melhorar a linguagem antiga e deixá-la com um aspecto mais moderno, mais
simples ao entendimento. Só é necessária uma atenção especial para que não se perca de vista
os objetivos e as mensagens dos textos bíblicos.
79

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho, objetivamos mostrar a bíblia como um livro único. Um livro
que contém em si uma gama de informações que regem várias religiões diferentes. Um único
livro capaz de guiar espiritualmente e no cotidiano milhares de pessoas. Mesmo com o passar
dos anos, a bíblia continua sendo o livro que todos procuram ao menos uma vez na vida para
encontrar conforto, paz, segurança, receber conselhos; de uma forma geral, a bíblia atende as
perguntas das pessoas com respostas que parecem ter sido ditas especialmente aos problemas
daquele que a lê.
Em um primeiro momento foi traçado um perfil da bíblia como livro, mostrando seu
conteúdo, mensagens principais, traçando toda a sua história de uma forma resumida, porém,
contendo informações importantes para o entendimento do porque ela se tornou uma obra tão
procurada e, conseqüentemente, tão traduzida. Com uma mensagem simples e clara, a bíblia
mostra um Deus que está sempre disposto a cuidar de seus filhos, que ele mesmo criou, mas
em muitos momentos da história ele fica no esquecimento e, com dor no coração, permite que
seus filhos passem por dificuldades para que se lembrem dele. No Velho Testamento, um povo
que espera o nascimento do filho de Deus e que constantemente deixa Deus de lado para
seguir pelo caminho do paganismo. No Novo Testamento, a formação da igreja de Cristo, que
carrega seu legado aqui na terra, mas que parece cair nos mesmos erros do povo do passado,
deixando Deus de lado e seguindo o caminho do paganismo. Um livro completo, escrito por
diferentes autores em diferentes momentos. Um tesouro literário.
Em um segundo momento mostrou-se o papel que a tradução desenvolve, os desafios
que o trabalho da tradução tem no cotidiano e a relação com a tradução bíblica. Pensando nos
aspectos culturais que vão dar meios e formas de trabalho ao tradutor, além de pensar no
aspecto da recepção da tradução por parte do leitor, objetivou-se esclarecer como estes pontos
têm conexão e como o tradutor deve agir perante esses aspectos. A questão da fidelidade
também foi tratada, pois é algo que está sempre sendo discutido quando se trata do assunto
tradução bíblica. A fidelidade total aos textos bíblicos, as alterações que visam melhorar o
entendimento e/ou a leitura, os aspectos que envolvem a fidelidade.
No terceiro momento, mostrou-se a tradução da bíblia desde os tempos de Jesus até a
tradução de João Ferreira de Almeida para a língua portuguesa. Foram destacadas traduções
que tiveram importância histórica como a Vulgata Latina, de São Jerônimo, que foi
considerada pela Igreja como oficial e foi base para muitas outras traduções. Apenas em 1545-
80

1563, no Concílio de Trento, é que ocorreu uma revisão da Vulgata, surgindo a Nova Vulgata.
Foram destacadas as obras de Lutero, Tyndale e Wycliff, que com seus trabalhos de tradução
não só conseguiram dar ao povo a bíblia em suas línguas, mas também promoveram
mudanças lingüísticas e se tornaram grandes mártires da causa bíblica. De uma forma sucinta,
as grandes traduções bíblicas foram mostradas.
No quarto e último momento, foram analisadas duas bíblias católicas, comparadas
com traduções de João Ferreira de Almeida. Objetivou-se mostrar mudanças feitas e
semelhanças que perduraram ao longo dos anos. A edição do Nôvo Testamento, de 1969, e a
edição da Bíblia Sagrada: Edição Catequética Popular foram as bíblias escolhidas para a
análise. Quatro temas distintos foram analisados através de quatro excertos retirados destas
bíblias. Foram mostradas diferenças e mudanças de uma bíblia para outra. Para auxílio na
análise, foram utilizadas as edições da tradução de João Ferreira de Almeida de 1860 e de
2005. Os excertos foram comparados no intuito de demonstrar que houveram perdas e
mudanças ao longo dos anos, mas que muitas vezes, mesmo com as mudanças, algumas vezes
os significados continuaram os mesmos, algumas vezes não.
Ainda existe muito a ser feito em relação a tradução da Bíblia, tanto no âmbito
católico quanto nos demais âmbitos religiosos. No intuito de melhorar a compreensão, nem
sempre o resultado foi o melhor, ainda existe também muita resistência à popularização da
bíblia. Os desafios à tradução existem e precisam ser enfrentados. Cabe aos tradutores unirem
forças e conhecimento para que esses desafios possam ser transpostos. Com isso, os grandes
beneficiados serão os maiores interessados na tradução da bíblia: os leitores. As mensagens,
conselhos, repreensões, castigos, tudo isso muito interessa ao conhecimento do leitor, e ao
tradutor cabe a missão de fazer com que a leitura seja a mais clara possível, mas sem se
desviar do objetivo original: pregar o evangelho de Cristo. Pregar o evangelho a todos os
reinos do mundo, para que então venha o fim.
81

REFERÊNCIAS

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César Cardoso de Souza revisão da tradução. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
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