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RAWLS
Hugo de Brito Machado Segundo*
1. Introdução
John Rawls exerceu e ainda exerce grande influência no âmbito da Teoria do Direito e
da Teoria Política, inicialmente nos países anglófonos, e, em seguida, em muitos outros, por
haver proposto uma teoria da justiça de cunho substancial e normativo que veicula
importantes críticas ao utilitarismo.1 Substancial, porque preconiza não apenas formas ou
procedimentos a serem adotados na construção das instituições de uma sociedade, mas indica
*
Advogado. Mestre em Direito pela UFC. Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza
(Unifor). Membro do ICET – Instituto Cearense de Estudos Tributários. Professor de Processo Tributário da pós-
graduação da Unifor. Professor da Faculdade Christus, e da Faculdade Farias Brito.
1
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008, passim.
1
os resultados a que devem conduzir. E normativa, porque não se limita a descrever as
instituições tal como são, preconizando, ao revés, como devem ser.
Um dos autores que talvez esteja nessa zona intermédia, de críticos que acolhem
parcialmente as idéias de Rawls, é Amartya Sen, economista indiano laureado com o premio
Nobel de economia em 1998. No presente texto, serão examinadas algumas idéias de Sen,
naquilo em que podem ser consideradas como o acolhimento ou o aperfeiçoamento do
pensamento de John Rawls.
Não é o propósito deste artigo oferecer uma síntese ou uma resenha do pensamento de
John Rawls. Entretanto, para que se compreenda como algumas idéias de Amartya Sen
convergem com o pensamento rawlsiano, às vezes o aperfeiçoando, é importante que se
conheça um pouco das premissas sobre as quais se funda o TJ.
Para que se saiba se uma sociedade é justa, Rawls propõe a idéia de um contrato
social, hipotético, que seria firmado pelos membros da sociedade em uma posição original.
Nessa posição original, os membros da sociedade não teriam conhecimento das posições que
ocupariam na sociedade a ser constituída, ou das habilidades e das preferências que teriam,
2
RAWLS, 2008, p. 8.
2
encobertos por um “véu de ignorância” destinado a fazer com que suas escolhas fossem o
mais imparciais e objetivas possíveis.3
Rawls considera que, em tal posição original, pessoas racionais não escolheriam
organizar a sociedade a partir de idéias utilitaristas, vale dizer, não organizariam a sociedade
com a preocupação ou o propósito de maximizar a felicidade ou a satisfação dos prazeres de
um maior número de pessoas. Neste ponto, TJ faz forte e bem fundada crítica ao utilitarismo,
que, segundo ali se demonstra, pode conduzir a resultados absurdos.
O maior defeito do utilitarismo, como se aponta em TJ, é que, para quem o adota, não
há, em princípio “por que os ganhos maiores de alguns não possam compensar as perdas
menores de outros; ou, o que é mais importante, por que a violação da liberdade de poucos
não possa ser justificada pelo bem maior compartilhado por muitos.”6 Assim, se, para trazer
uma maior felicidade para um grande número de pessoas, for necessário tornar infeliz ou
mesmo sacrificar inteiramente um pequeno número, isso seria legítimo, fazendo com que o
utilitarismo, em princípio atraente, torne-se doutrina perigosa e atentatória à dignidade
humana. Por essa razão, “um homem racional não aceitarua uma estrutura básica só porque
eleva ao máximo a soma algébrica de vantagens, fossem quais fossem as conseqüências
permanentes dessa estrutura sobre seus próprios direitos e interesses fundamentais.”7
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais
liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades
para as outras pessoas.
3
RAWLS, 2008, p. 14.
4
RAWLS, 2008, p. 30.
5
RAWLS, 2008, p. 33.
6
RAWLS, 2008, p. 32.
7
RAWLS, 2008, p. 17.
3
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo
que tanto (a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleçam em benefício de
todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos.8
8
RAWLS, 2008, p. 73.
9
RAWLS, 2008, p. 77.
10
RAWLS, 2008, p. 74.
4
3. Amartya Sen e a crítica ao utilitarismo
São muitos os aspectos do pensamento de Rawls que podem ser abordados a partir dos
escritos de Amartya Sen. Neste texto, contudo, optou-se, em face de corte epistemológico, por
examinar apenas os apontados no item anterior, em relação aos quais há grande semelhança,
mas alguma diferença, entre as idéias de um e de outro.
Deve-se registrar que não se está aqui a dizer que Sen seja mero discípulo de Rawls,
que estaria a reproduzir e, eventualmente, aprimorar as idéias do mestre. As idéias de Sen,
ligadas a uma transformação ética da racionalidade econômica,11 parecem calcadas em
fundamentos anteriores à própria teoria de Rawls, oriundos de Adam Smith, como se percebe
de seus escritos mais antigos. De qualquer modo, a coincidência das idéias de ambos é
perceptível, e, além disso, Sen chega a mencionar expressamente, ora para aderir, ora para
criticar ou aperfeiçoar, as idéias de Rawls.
A primeira e mais perceptível interseção entre os dois autores aqui examinados reside
na crítica que fazem ao utilitarismo. Assim como Rawls, Sen critica essa corrente,
basicamente, por considerá-la um meio inadequado para a construção de instituições justas.
Isso tanto porque a felicidade, o prazer ou a satisfação não são mensuráveis, como porque,
ainda que o fossem, não seriam critério adequado para a realização de uma justiça
distributiva.
Merece transcrição, a esse respeito, a síntese que Sen elabora dos defeitos e
deficiências de uma abordagem utilitarista:
11
Confira-se, a esse respeito: PEDRAJAS, “La transformación ética de la racionalidad económica en Amartya
Sen. Una recuperación de Adam Smith”. In: Quaderns de filosofia y ciència, 36, 2006, pp. 105-117.
5
influenciado por condicionamento mental e atividades adaptativas.12
12
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000, p. 81.
13
RAWLS, 2008, p. 31.
14
RAWLS, 2008, p. 32-34.
15
GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls – um breve manual de filosofia política.
Tradução de Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 9.
16
SEN, 2000, p. 82.
6
adicional de Sen às objeções já feitas por Rawls,17 existem outros aspectos a serem
considerados. Estão, todos, ligados ao conceito e ao valor dado à liberdade, e serão
examinados no item seguinte.
Para Rawls, como visto, o aspecto a ser aferido, na determinação das desigualdades, e
nas políticas destinadas à sua redução, não é o bem-estar, o prazer ou a felicidade,como
preconizam as teorias utilitaristas, mas a detenção de bens primários, assim entendidos
aquelas
coisas que se presume que um indivíduo racional deseje, não importando o que mais
ele deseje. Sejam quais forem as minúcias dos planos racionais de um indivíduo,
presume-se que há várias coisas que ele preferiria ter mais a ter menos. Com uma
quantidade maior desses bens, em geral é possível prever um maior êxito na
realização das próprias intenções e na promoção dos próprios objetivos, sejam quais
forem esses objetivos.18
Entre os economistas, por igual, é comum a riqueza de uma sociedade, ou, mais
especificamente, o seu grau de desenvolvimento, ser medido a partir da renda per capita, ou
da renda auferida por cada cidadão, ou por cada família. Países subdesenvolvidos, nesse
contexto, são aqueles nos quais a renda dos indivíduos é baixa, e sobretudo distribuída de
forma fortemente desigual.
17
Rawls e Dworkin (DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. Traduçaõ de Jussara Simões. São Paulo: Martins
Fontes, 2005, p. 5 e ss.) desferiram importantes golpes no utilitarismo, mas a crítica mais contundente e
completa parece ter sido a de Amartya Sen, que destaca, além dos defeitos apontados pelos primeiros, a
possibilidade de adaptação do ser humano às adversidades como um complicador adicional de se tomar o “bem-
estar” ou a “felicidade” como critério para uma justiça distributiva. Nesse sentido: GARGARELLA, 2008, p.
66-68.
18
RAWLS, 2008, p. 111.
7
um fim, que é o exercício da liberdade.19
Além disso, à palavra liberdade Sen dá sentido bastante amplo, de sorte a abarcar não
apenas a chamada liberdade negativa, decorrente da ausência de obstáculos que impeçam o
sujeito que a detém de fazer o que pode desejar fazer, mas também a liberdade positiva,
inerente à existência de meios para que as pessoas desenvolvam suas aptidões da forma que
desejarem. A liberdade consiste, para ele, na existência de meios para que o indivíduo
desenvolva suas capacidades (functionings), abrangendo assim não só as liberdades de
locomoção, de expressão e de mercado, mas o direito à vida, à integridade física, à saúde
etc.20 Considera-se ser importante que todos tenham condições de exercer a liberdade, por
preencherem as condições necessárias para fazerem escolhas.21
É o que observa Gargarela, ao registrar que, para Sen, a proposta de Rawls (e também
de Dworkin)
Amartya Sen parece, nesse ponto, realmente ter encontrado solução mais adequada.
Não adota, como os utilitaristas, o problemático conceito de prazer ou de bem estar, que pode
ser considerado um fim importante mas é de impossível determinação, além de eventualmente
19
"Como observou Aristóteles logo no início da Ética a Nicômaco (em sintonia com a conversa que Maitreyee e
Yajnavalkya tiveram a mil quilômetros dali), 'a riqueza evidentemente não é o bem que estamos buscando, sendo
ela meramente útil e em proveito de alguma outra coisa.'" (SEN, 2000, p. 28)
20
Os conceitos de liberdade positiva e negativa (palavras não usadas por Sen, embora dê ao conceito de
liberdade sentido que as abrange) podem ser examinados em DWORKIN, Ronald. “Pornografia, feminismo y
libertad”. Traducción de María Pía Lara. In: Debate feminista. Marzo de 1994, Vol. 9 Issue 5, p. 92. Por outras
palavras, pode-se dizer que no sentido negativo, a liberdade pressupõe “a ausência de coerção externa, quer
dizer, o poder arbitrário do Estado, e, no sentido positivo, a liberdade implica a possibilidade de escolher entre os
diversos modos de conduta.” (FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do estado. Tradução de Marlene
Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 172). Os conceitos de liberdade em sentido negativo e em
sentido positivo são acolhidos em linhas gerais pelo chamado liberalismo igualitário, que diz preocupar-se “com
o Estado tanto em seus abusos (em suas ações violadoras de direitos) quanto em seu mau uso (entendendo desse
modo as omissões do Estado no fornecimento de certos bens.” (GARGARELLA, 2008, p. 215)
21
No mesmo sentido: HOLMES, Stephen. SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights – why liberty depends on
taxes. New York: W.W Norton & Company. 1999, p. 35 e 36.
22
GARGARELLA, 2008, p. XXI.
23
GARGARELLA, 2008, p. 73.
8
conduzir a resultados inaceitáveis. Mas, por outro lado, não se concentra em elementos que
são apenas instrumentos ou meios, como os recursos, os bens primários ou a renda dos
indivíduos. O mais importante, que é o fim para o qual recursos, bens primários e renda se
prestam como instrumentos, é realmente a liberdade.24
Além de permitir, com maior acuidade, a medição dos defeitos de uma sociedade,25 a
proposta de Sen permite que se conciliem liberdade e igualdade, que deixam de ser vistos
como conceitos contrários (a promoção de um implicaria sempre o desprestígio do outro), e
passam a ser fundamentadamente tratados como complementares.
Realmente, a igualdade deixa de ser vista como uma supressão da liberdade, inclusive
da liberdade de ser diferente, pois existe “uma diferença entre 'pajear' as escolhas de um
indivíduo e criar mais oportunidades de escolha e decisões substantivas para as pessoas, que
então poderão agir de modo responsável sustentando-se nessa base.”26
Isso conduz ao último aspecto que se havia destacado para exame neste texto, que é
aquele relacionado à primazia absoluta que Rawls atribui à liberdade. Para ele, como
apontado no item anterior, os indivíduos jamais poderiam abdicar de sua liberdade, para com
isso serem beneficiadas com uma posição econômica melhor, que reduza a situação de
desigualdade em que se encontram. Em suas palavras,
24
SEN, 2000, p. 52.
25
O que nem sempre acontece quando se tomam renda, bens primários ou recursos como parâmetro de medição.
Exemplificando, “[m]esmo uma pessoa muito rica que seja impedida de se expressar livremente ou de participar
de debates e decisões públicas está sendo privada de algo que ela tem motivos para valorizar.” (SEN, 2000, p.
53)
26
SEN, 2000, p. 322. O relevante não é saber se as pessoas estão efetivamente nas mesmas posições, mas se têm
liberdade (em sentido positivo e negativo) para estar na posição que desejam (Cf., v.g., GARGARELLA, 2008,
p. 76).
27
SEN, 2000, p. 337.
9
pareçam dispostas a abrir mão de certos direitos políticos quando a compensação
econômica for significativa. É esse o tipo de permuta que os dois princípios
proíbem: sua disposição em uma ordem serial exclui intercâmbios entre liberdades
fundamentias e ganhos econômicos sociais, a não ser em circunstâncias extremas.28
Para Rawls, portanto, não é possível que, em nome de uma maior igualdade, ou de
uma melhoria na situação econômica de um maior número de indivíduos, estes tenham
suprimida a sua liberdade.
Com isso, Sen termina por corrigir ou aprimorar deficiência de Uma teoria da justiça,
que tem precisão matemática admirável em relação à descrição da distribuição de bens em
uma sociedade justa, mas não indica os meios necessários para que essa distribuição seja
obtida. Ao afirmar que deve haver uma distribuição eqüitativa das liberdades (em sentido
28
RAWLS, 2008, p. 76.
29
NOZICK, Robert. Anarchy, state and utopia. Oxford: Blackwell, 1974, passim.
30
SEN, 2000, p. 217.
31
SEN, 2000, p. 175.
10
amplo), conceito para o qual é necessária a existência de direitos políticos (democracia),
liberdades (liberdade de expressão, de mercado, de iniciativa etc.) e direitos sociais
(educação, saúde, etc.), conceitos todos interrelacionados e interdependentes, eis que cada um
é necessário à maior promoção dos demais,32 Sen não só afasta o suposto antagonismo entre
liberdade e igualdade, mas indica meios para se obter um incremento das liberdades:
investimentos públicos em educação, proteção dos direitos políticos e das liberdades públicas,
transparência do poder público etc.
5. Conclusões
Diante do que foi examinado neste trabalho, podem ser sintetizadas as seguintes
conclusões:
a) Amartya Sen, tal como Rawls, constrói teoria em torno de como a sociedade deve
ser organizada que rejeita o utilitarismo. Ambos consideram que, além das dificuldades
inerentes à determinação do que satisfaz cada indivíduo, agravado pela capacidade de
adaptação e de acondicionamento humanos, o utilitarismo tem o efeito perigoso de permitir
que a satisfação da maioria seja invocada como justificativa para o sacrifício de uma minoria;
11
realizado quando o primeiro é assegurado na maior intensidade e ao maior número de pessoas
possível.
Referências
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. Traduçaõ de Jussara Simões. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do estado. Tradução de Marlene Holzhausen.
São Paulo: Martins Fontes, 2006.
GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls – um breve manual de
filosofia política. Tradução de Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
HOLMES, Stephen. SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights – why liberty depends on taxes.
New York: W.W Norton & Company. 1999.
NOZICK, Robert. Anarchy, state and utopia. Oxford: Blackwell, 1974.
PEDRAJAS, “La transformación ética de la racionalidad económica en Amartya Sen. Una
recuperación de Adam Smith”. In: Quaderns de filosofia y ciència, 36, 2006, pp. 105-117.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins
Fontes, 2008.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Mota. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
____________. “The possibility of social choice.” In: American Economic Review 89 (July
1999).
VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional.
São Paulo: Martins Fontes, 2008.
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