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As marcas surrealistas
no cinema de David Lynch*
Renee Magrite
o
REVISTA OLHAR . ANO 03 . N 5-6 . JAN-DEZ/01 2
imagem estivesse na mente de André Breton tradicional, da linearidade, da continuidade
quando ele defendia que só era "possível (...) de espaço e tempo, e apresentando temas
haver beleza convulsiva mediante a como o desejo, o acaso e o mistério.
afirmação da afinidade recíproca existente A estética surrealista continuou
entre o objecto considerado em movimento influenciando artistas mesmo depois do fim
e esse mesmo objecto uma vez em repouso do movimento organizado, como podemos
(...) como complemento ilustrativo deste observar no cinema de David Lynch.
texto, a fotografia de uma locomotiva Algumas características surrealistas revistas
velocíssima, entregue, durante anos e anos, e atualizadas por Lynch que tentamos
ao delírio de uma floresta virgem". explicitar em nossa pesquisa são:
Os sur realistas buscavam - A beleza convulsiva, decorrente
representar uma realidade sensível, do encontro de realidades distintas (e muitas
trabalhando com formas da natureza ou vezes conflitantes, conforme o pensamento
mesmo fabricadas, mas sempre pensando tradicional) num mesmo espaço e tempo;
em deslocar e embaralhar os sentidos usuais
das coisas. Assim, eles conseguiam atingir os - O amor louco, mola propulsora da
estados misteriosos e obscuros da vida e da arte, em que, geralmente, a mulher
(sur)realidade. representa, substitui o objeto do desejo
indecifrável e imprevisível;
A relação entre o surrealismo e o
cinema foi imediata pois, para os surrealistas, - O humor negro, com o qual
o cinema mostrava-se como um meio buscava-se criticar e destruir as bases
perfeito de expressar todos aqueles valores institucionalizadas da sociedade, como a
eleitos como fundamentais ao movimento. Igreja, a Família e o Estado. No
Os filmes surrealistas lançaram as bases de caso de Lynch, vale ressaltar
uma narrativa que não obedecia a lógica da que ele também promove o
narrativa clássica, cultivando as rupturas, o ataque ao jogo das aparências
onírico, as imagens mentais, as visões da sociedade norte-americana e
provocantes, a atração do e pelo mistério. O aos mitos e aos clichês do
discurso cinematográfico possibilitava cinema hollywoodiano (que
imitar a articulação dos sonhos, a lógica de veio tor nar-se uma das
uma experiência que era, parafraseando instituições principais de seu
Freud, o “preenchimento do desejo” por país), realizando até mesmo um
excelência. O material cinematográfico “metacinema”, ou no mínimo, Esse Obscuro Objeto do Desejo - Buñuel
apresentava exclusiva afinidade com o um cinema repleto de citações,
material trabalhado pelo inconsciente, um cinema de paródia por excelência, aliás,
justamente o que os surrealistas queriam um fator típico da cena cultural em que
expressar e, entre os principais filmes vivemos;
surrealistas, figuram o já citado Um cão - O acaso objetivo, tanto na
andaluz e A idade de ouro, de 1930, também de concepção filosófica e temática das obras,
Buñuel, isso sem falar nos curtas de Man Ray como na intervenção no próprio decorrer da
e nas primeiras obras de René Clair. elaboração dos filmes, o que lhes possibilita
Um cão andaluz tornou-se uma novos rumos estéticos;
referência sobre a relação entre surrealismo - Junto com o acaso, e até um pouco
e cinema. Os espanhóis Buñuel e Dalí como decorrência, uma valorização grande
tiveram a idéia de realizar um filme juntos. A do mistério, impulsionador das descobertas
obra nasceu de dois sonhos: Buñuel sonhou surrealistas e que, em Lynch, tende-se mais
com uma nuvem cortando a lua e Dalí para o suspense e para uma ambientação de
sonhou com uma mão cheia de formigas caráter noir e até próxima do expres-
(estas eram um motivo extremamente sionismo;
comum nas obras do pintor espanhol). - Aliado ao acaso e ao mistério, o
Assim, começaram a trabalhar o roteiro de mundo onírico, em que os sonhos fazem
uma forma nada habitual, cuja premissa parte do real, acabando assim com os limites
básica era, segundo Buñuel, “não aceitar e com as barreiras que separam sonho e
nenhuma idéia, nenhuma imagem que realidade;
pudesse dar lugar a uma explicação racional, - A não continuidade do espaço e
psicológica ou cultural. Abrir todas as portas do tempo, o uso de faux raccords e de elipses, a
ao irracional”. Só incluir as imagens que não linearidade;
tocassem profundamente a psique humana. - A recorrência de elementos
O filme virou um marco na história do bizarros, que tendem ao grotesco, como
cinema, cultivando a quebra da narrativa partes decepadas do corpo humano, insetos,
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orelha humana em fase de decomposição, Dalí. Talvez o exemplo mais claro dessa
repleta de formigas, as quais também questão seja Coração selvagem.
aparecem na citada fotografia feita por Lynch trabalha sempre com
Lynch em 1991, bem como em seu auto- contrastes e contrapontos sonoros e
retrato. imagéticos. Em Veludo azul, ele monta um
Em Veludo azul, Lynch conseguiu complexo jogo (que será ainda mais intenso
construir uma trama que contém, ao mesmo em A estrada perdida) entre o diegético e o
tempo, elementos típicos do cinema noir e extradiegético para reforçar os contrastes do
dos filmes policiais de Hollywood e filme, e o uso das músicas é exemplar.
apresenta características marcantes Geralmente, extradiegética, elas tornam-se
revisionistas da estética surrealista no diegéticas em momentos chaves do filme
cinema, como o jogo com o mistério, com o como, por exemplo, quando Dorothy canta
acaso, o amor louco, a mulher como o centro Blue Velvet na boate, atiçando a libido de
do desejo que nunca é inteiramente Frank e de Jeffrey; na casa de Ben (vivido por
compreendido, além de trazer uma crítica Dean Stockwell), quando ele coloca um
mordaz, feroz à hipocrisia e aos valores de disco no aparelho e dubla a canção; e na cena
uma sociedade que tem como pilares a em que Frank e seu bando espancam Jeffrey
Igreja, a Família, o Estado, enfim, tudo que ao som de uma música pop/rock,
inibe o desejo e a vontade humana. Se em O transmitida no rádio do carro de Frank.
homem elefante, Lynch abaixava o véu de um Aliás, a cena na casa de Ben é
ser deformado para mostrar a bondade exemplar da construção contrastes/con-
humana ali existente, aqui ele explicita a trapontos que Lynch realiza. O personagem
podridão e a sujeira que está por trás do belo Ben é um homossexual sensível, bem
veludo azul que cobre a tela. feminino, o oposto total de Frank, que é
Depois de achar a orelha decepada, durão, viril. Porém, Ben também é violento
Jeffrey a leva para o detetive local, mas decide como Frank e este mostra-se sensibilizado
investigar o fato por conta própria, com a ao escutar a música pop/romântica que
ajuda da filha do detetive, Sandy (Laura aquele dubla. Facetas opostas compondo o
Dern). Eles se apaixonam, mas ele também ser humano. Isso é evidenciado quando essa
se envolve com a cantora Dorothy Valens, a música (“açucarada”) é usada como fundo
Mulher de Azul, depois de invadir seu musical na cena em que sabemos que Jeffrey
apartamento e ficar espiando-a de dentro de vai ser espancado, como de fato acontece. A
um armário, momento em que ele também música não corresponde à atmosfera da
vê Frank Both (Dennis Hopper), um sádico, ação, ou melhor, o que a música
viciado em gás hélio, estuprando Dorothy diz/transmite e o que se passa nas imagens
mordendo um pedaço de veludo azul. Frank são visões e sensações opostas, até mesmo
havia seqüestrado o marido e o filho de contraditórias.
Dorothy e obrigava-a a fazer sexo violento. Como nessa seqüência, em todo o
Mas, ao mesmo tempo que ela mostra ódio e filme a música e o som não servem apenas
repúdio, também deixa transparecer um para confirmar o que as imagens já mostram:
certo prazer no ato. Ao se envolver com eles estão a serviço da criação da atmosfera
Dorothy, Jeffrey mergulha em sua investigação misteriosa da narrativa e, muitas vezes,
e descobre um mundo perverso, perigoso, podem vir a negar ou a se contrapor às
que se escondia nas entranhas de Lumberton: imagens.
um mundo de drogas, prostituição, policiais Outro contraste existente no filme
corruptos e violência. Ao final, ele consegue está no uso das cores. Observando-as nos
matar Frank, libertar o filho de Dorothy e ficar planos iniciais e em relação aos créditos que
com Sandy, num desconcertante happy end. os antecedem, percebemos que, apesar do
Vale dizer que, na obra de Lynch, filme se passar na pequena cidade de
várias vezes nos deparamos com histórias de Lumberton, sua história vai ao encontro da
amor, com enredos sobre relacionamentos crítica social e refere-se à toda sociedade
humanos. No entanto, ao contrário da norte-americana O veludo azul sob os
maioria dos filmes sobre casais apaixonados, créditos estende-se por todo campo de
em que o encontro carnal mal acontece e a imagem, cobrindo toda a tela, ele
estética lacrimogênea se sobressai, em seus movimentando-se como se fosse uma
filmes, o amor é acompanhado pelo prazer bandeira sendo mexida pelo vento. No plano
físico, do orgasmo, sempre próximo dos de abertura, a câmera focaliza o céu azul,
elementos escatológicos, numa arte em que desce e focaliza rosas vermelhas com uma
o gozo e o excremento parecem estar cerca branca por trás, que se movimentam
sempre em comunhão, como na plástica de da mesma forma que o veludo. Essas cores
1977 - Eraserhead
1980 - The Elephant Man (O homem elefante) *
1984 - Dune (Duna) *
1986 - Blue Velvet (Veludo azul) *
1989 - Wild at Heart (Coração selvagem) *
1992 - Twin Peaks - Fire Walk with Me (Twin Peaks - os últimos dias de Laura Palmer) *
1997 - Lost Highway (A estrada perdida) *
1999 - The Straight Story (A história real)*
2001 - Mulholland Drive (Cidade dos Sonhos)*
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**Rogério Ferraraz é jornalista, formado pela Unesp/Bauru, Mestre em Multimeios pela Unicamp, e doutorando em
Comunicação e Semiótica na PUC/SP.
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