Um Artista da Fome
e A Construcaéo
Franz Kafka
Titulo original:
Ein Hungerkunstler / Der Bau
Tradugao:
Modesto CaroneIndice
Primeira Dor
Uma Mulherzinha
Um Artista da Fome
Josefina, a Cantora ou O Povo dos Camundongos
AConstrugao
Nota sobre os textos ea tradugéo — Modesto Carone
12
20
34
61Primeira dor
Um artista do trapézio — como se sabe, esta arte que se pratica no
alto da cépula dos grandes teatros de variedades é uma das mais dificeis
entre todas as acessiveis aos homens — tinha organizado sua vida de tal
maneira, primeiro pelo esforgo de perfei¢ao, mais tarde pelo habito que se
tornou tiranico, que enquanto trabalhava na mesma empresa permanecia
dia e noite no trapézio. Todas as suas necessidades, aliés bem infimas,
eram atendidas por criados que se revezavam, vigiavam embaixo e
faziam subir e descer, em recipientes construfdos especificamente para
esses fins, tudo 0 que era preciso 14 em cima.
Esse modo de viver nao causava aos outros dificuldades especiais;
era apenas um pouco incémodo que durante os demais nimeros do
programa ele ficasse 14 no alto, o que nao se podia ocultar: apesar de,
nesses momentos, na maioria das vezes se conservar quieto, de quando
em quando um olhar do piblico se desviava para ele. Mas os directores 0
perdoavam por isso porque era um artista extraordinario e insubstituivel.
Além do que, admitia-se com naturalidade que ele nao vivia assim por
capricho e que sé podia preservar a perfeigéo da sua arte mantendo-se em
exercicio constante audivel, era de mais a mais, ali no alto e quando nas
épocas mais quentes do ano eram abertas as janelas laterais em toda a
extensdo da céipula e junto com o ar fresco o sol entrava poderoso no
espago crepuscular, entéo era até bonito 14 em cima.
Sem divida seu convivio humano estava reduzido; s6 uma vez ou
outra um colega de acrobacia subia até ele pela escada de corda; entao os
dois se sentavam no trapézio, inclinavam-se A esquerda e direita sobre
as cordas de sustentagio ¢ proseavam. Ou entéo os operarios que
consertavam o teto trocavam algumas palavras com ele através de uma
janela aberta; ou 0 bombeiro, examinava a iluminagao de emergéncia na
galeria superior ¢ Ihe gritava algo respeitoso, mas pouco inteligivel. De
resto o siléncio 0 cercava; algumas vezes um funcionario qualquer, que
porventura errava a tarde pelo teatro vazio, erguia o olhar para a altura
— que quase fugia a vista — onde o artista do trapézio, sem poder
adivinhar que alguém o observava, exercia sua arte ou descansava.
O trapezista teria assim podido, viver tranquiilamente, nao fossem
as inevitaveis viagens de lugar em lugar que Ihe eram extremamente
molestas. E verdade que o empresdrio, providenciava para que ele ficasse
a salvo de qualquer prolongamento desnecessdrio desses sofrimentos:
para as viagens nas cidades usavam-se automéveis de corrida com os