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Rio de Janeiro
2004
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 1
Rio de Janeiro
2004
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 2
RABELO, Amanda Oliveira. A memória das normalistas do IESK de campo grande/RJ. 124f.
Dissertação de Mestrado – Mestrado em Memória Social e Documento, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
CDD 370.710981
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 3
Avaliado por :
Rio de Janeiro
2004
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 4
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
AO MEU ORIENTADOR.
AOS ENTREVISTADOS QUE TIVERAM
BOA VONTADE AO CEDER OS
DEPOIMENTOS.
AOS PROFESSORES DO MESTRADO E DA
GRADUAÇÃO.
AOS AMIGOS QUE ME APOIARAM NOS
ESTUDOS E NA DISSERTAÇÃO, COMO
MARIA AMÉLIA E ELISÂNGELA.
E A TODOS AQUELES QUE CONTRI-
BUÍRAM COM ESTA DISSERTAÇÃO.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 6
Catani
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 7
RESUMO
Este trabalho tenciona analisar a memória das normalistas do Instituto Sarah Kubitschek (IESK) a
partir das influências de seu local de formação e moradia. Pretende-se, com isso, elucidar como
se deu tanto a motivação de sua escolha profissional quanto à constituição de sua singularidade.
Indagar-se-á a geração da memória das normalistas do IESK visando esclarecer os processos de
subjetivação que contribuíram para a construção social dessas professoras, enquanto
profissionais. A metodologia escolhida nessa investigação é a captação de narrativas orais de
algumas normalistas, visando detectar os motivos pelos quais elas escolheram sua profissão e
optaram especificamente pela referida instituição. Na fase inicial dessa pesquisa, foi possível
constatar os principais motivos para a escolha da profissão. Com destaque para a possibilidade de
uma inserção rápida no mercado de trabalho e a feminização da profissão do professor,
estimulada pelas instituições e pela sociedade. Tais motivos permitem explicar como as
memórias das normalistas associadas às instituições e aos espaços pelos quais elas passaram
levam à produção de subjetividades, mas também instauram a possibilidade de se criar uma
existência singular.
PALAVRAS-CHAVE: Memória; espaço; formação de professores; gênero; subjetivação;
singularização.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 8
ABSTRACT
This work intends to analyse the memory of the IESK normal school students, mainly about the
influences of their place of studies and residence. It intends too, with this, to clarify the reasons
not only of the motivation of their professional choice but also the constitution of their
singularity. It will quest the memory’s generation of the IESK’s students, trying to clarify the
processes of “subjectivation” that contributed to the social construction of those teachers, while
professionals. The methodology chosen in this investigation is the capitation of oral narrations of
some students, intending to detect the reasons why they choose their professions and this
institution. At the beginning of this research was possible to find the mains reasons to their
professional choice. Detaching the possibility of a faster insertion in the work market and
“feminilization” of the teacher profession, stimulated by the institutions and the society. These
reasons allow explain how student’s memory associated to institutions and spaces from where
they have passed take to subjectivities’ productions, but also to install the possibility of create a
single existence.
KEY- WORDS: Memory; space; teachers’ formation.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 9
SUMÁRIO
Sumário _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 9
Lista de Ilustrações _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 10
Introdução _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 12
3 Memória e subjetividade:
Conclusão _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 115
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 5 – Conversas _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 46
Introdução
Minha vida, assim como esta dissertação, é marcada pela ferocidade da curiosidade.
Porém, essa curiosidade não é só a busca pelo legitimado na sociedade e pelo que é
convencionado que devemos conhecer. Sempre questionei a educação existente, já que achava
que ela não instigava o indivíduo a um pensamento crítico.
Abro aqui um espaço para refletir sobre minha memória. Vale ressaltar que essa é a
memória que tenho hoje, que me faz pensar sobre o passado e reformulá-lo de forma diferente.
Pois, diante do que já vivi e das experiências que passei, não posso mais ver meu passado como o
via antigamente.
Meu interesse pelas discussões envolvendo o processo educativo começa desde cedo,
em meio ao ambiente familiar. Minha mãe, depois de terminar a graduação em Agronomia, passa
a se sentir atraída vivamente por educação, indo cursar Pedagogia com o sonho de abrir uma
escola que atendesse à população sem se limitar a reproduzir o currículo tradicional. Assim, ela
cria, em 1986, uma escola experimental baseada em Freinet, cuja proposta pedagógica consistia
em desenvolver uma educação que não somente ensinasse conteúdos obrigatórios, mas que
ensinasse a viver e questionar o mundo, e que isso também pudesse ser desfrutado por seus
filhos.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 13
A partir dessa experiência, pude perceber também a forma como a maioria das
professoras da 1a à 4a séries (em sua maior parte normalistas do Instituto Sarah Kubitschek que
estagiavam no colégio) escolhiam sua profissão: principalmente pela afetividade e por gostarem
de crianças, coisa que elas designavam como “atributos femininos”.
Isso me incomodava, porque, sendo mulher, não reconhecia que tais atributos fossem
os mais importantes da condição feminina. Dessa forma, passei a não querer ser “professora de
criança”. Cursei o antigo 2o grau (formação geral) com a intenção de prestar vestibular para
informática, tendo em vista que o mundo vasto dos computadores me instigava.
Inscrevi-me para Informática em quase todas as faculdades do Rio de Janeiro. Como,
na época, a UNIRIO não tinha esse curso, escolhi, com o incentivo da minha mãe, Pedagogia.
Se passasse, queria me aprofundar na área de administração escolar, para (quem
sabe?) continuar o trabalho de minha mãe, embora estivesse um pouco desanimada com os rumos
que a escola dela tinha tomado.
A escola da minha infância se rendeu ao mercado, à lógica de sobrevivência,
chegando a ampliar seu quadro até o Ensino Médio, que eu cursei lá. Após essa mudança de rumo
em sua filosofia de ensino, ela continuou funcionando, apesar das dificuldades financeiras.
Mesmo assim, acabou fechando após doze anos de existência.
Na mesma época em que começava a acontecer o processo de fechamento da escola,
consegui ingressar no curso de Pedagogia. Curso estigmatizado por não dar grande retorno
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 14
financeiro ou por ser “destinado socialmente” ao público feminino e/ou proveniente das classes
menos favorecidas.
Questões sobre essa estigmatização da profissão inquietavam-me. Por que havia
profissões que eram escolhidas fundamentalmente por mulheres e outras preferencialmente por
homens?
Entrei na faculdade em 1997 e descobri que não teria a habilitação que desejava, de
administração escolar, mas de magistério para 2o grau e, talvez,1 de magistério da 1a à 4a séries.
Mas, na faculdade aprendi a gostar da educação como um todo, a questionar a educação vigente e
a querer mostrar aos professores uma nova forma de percebê-la.
Diante de tantos questionamentos surgiu a oportunidade de ser bolsista de Iniciação
Científica na pesquisa “A (Re) invenção da Escola Pública: a sexualidade e a formação
continuada dos jovens professores”.
Comecei, então, a questionar os padrões de sexualidade vigentes e a forma com que
estes eram vistos na escola e, também, a educação sexual oferecida pelas escolas e veiculada
pelos professores que, a meu ver, não davam conta dos questionamentos levantados pelos
alunos.2 Deste modo, dei início à compreensão do jogo de poderes e saberes que envolvem a
sexualidade em nossa sociedade, e analisei como esse mesmo jogo se repete na vida escolar,
trazendo a disciplinação dos corpos e das mentes em um movimento de negação do prazer de
ensinar e aprender, como aponta Foucault em suas obras.
Passei a estudar também os saberes docentes e as crenças pedagógicas dos
professores e como apurar a atuação desses sujeitos em uma escola excludente e disciplinadora.
Essa foi uma das questões da minha monografia de pós-graduação em “docência do ensino
superior”, realizada também na UNIRIO.3
Depois de refletir sobre a sexualidade na nossa sociedade, a questão da escolha
profissional docente voltou ao meu foco de interesse. Pois, ao admitir que a sexualidade passa por
toda uma rede de discursos e de processos de disciplinação, a escolha da profissão também sofria
essas influências.
Estabeleci um recorte específico: o local em que eu vivo e vivi toda minha vida. O
bairro que me suscitou tantas questões sobre a educação, que tem somente um instituto público
1
Na época, o currículo estava em reformulação.
2
Nota retirada para não identificar o autor.
3
Nota retirada para não identificar o autor.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 15
Um fato que percebo é que seu local de formação possui características específicas,
em virtude da região em que está situado — o bairro de Campo Grande. Esse lugar ainda mantém
tradições, concepções e valores de uma sociedade fechada4, podendo condicionar a construção da
identidade5 do grupo de docentes selecionado. Isto é, procuro analisar como um fenômeno
espacial específico — a inserção das normalistas no âmbito sócio-cultural de Campo Grande —
pode ter influências na memória e na identidade das normalistas.
4
Campo Grande tem características fechadas, exaltadas pelos entrevistados e percebidas no dia a dia das pessoas da
localidade, isto é, elas possuem vínculo forte com a região e têm muitas dificuldades para sair do bairro, não só pela
distância do centro de Rio de Janeiro, mas pelos hábitos que ressaltam a tradição local e a sua cultura.
5
O conceito de identidade tradicionalmente alude a uma característica essencial e permanente de um objeto ou do
homem. Essa noção de identidade fixa está sendo problematizada no campo das ciências sociais. Assim, os
indivíduos e os grupos poderiam ter identidades mutáveis, contraditórias. Analisarei essa questão no capítulo 3.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 16
Entretanto, ressalto que, conforme assinala Nilda Alves (2000), não é só na escola
que se ensina e se aprende, mas em outros grupos locais em que o estudante está inserido.
Conseqüentemente, não é somente no âmbito escolar onde a memória é produzida. O fato de o
homem ser social permite que ele aprenda em todos os tempos e espaços. Portanto, pude perceber
que as estudantes não só aprendem no IESK, mas em toda a região em que convivem, com todos
os grupos locais com que têm contato.
Neste estudo não pretendo fazer uma análise estatística das influências da sociedade
sobre a memória das normalistas. Sendo assim, entrevistei cinco normalistas egressas do IESK
para analisar como a memória e a subjetividade dessas ex-alunas sofreram influências e como as
suas falas foram condicionadas por outros fatores sociais.
6
Subjetividade é um modo de conceber o mundo que é produzida por mecanismos sociais, não é um atributo
individual, nem mesmo inventado, mas a maneira com que cada indivíduo recebe as interpelações do social e se
submete ou não a elas. Esse termo será analisado no capítulo 3.
7
Uso o termo feminização para denominar o aumento das mulheres no magistério e suas conseqüências nas
representações sobre a docência, enquanto profissão feminina por excelência. Para entender melhor o termo ver
páginas 54-55.
8
Os processos de subjetivação são as tentativas do poder de criar uma subjetividade determinada nos indivíduos da
sociedade. No poder disciplinar, analisado por Foucault principalmente no livro Vigiar e Punir (1989) e Microfísica
do Poder (1979), esse processo tenta moldar identidades fixas, para que as pessoas sejam melhor controladas.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 17
A escolha das normalistas formadas foi feita primeiramente nos arquivos do IESK.
Lá, os dados foram anotados para um posterior contato telefônico, no qual era verificada a
disponibilidade da ex-aluna do IESK para conceder uma entrevista.
Optei por realizar entrevistas abertas com docentes moradoras de Campo Grande e
adjacências, egressas do primeiro ano de formação do século XXI no IESK. Esse recorte abrange
professoras formadas há pouco tempo, que são iniciantes em suas atividades profissionais, que
ainda estão repensando sua escolha profissional e que continuam, de alguma maneira, ligadas à
sua história de formação e vida comunitária no IESK, de modo que os impactos em sua prática
escolar cotidiana ainda se fazem notar de forma intensa.
Essa análise será realizada a partir de estudos sobre a memória das professoras
egressas do IESK e que ainda estão ligadas às características locais: onde grupos de encontro se
formaram/formam, estabelecendo vínculos e relações, marcados por valores e costumes próprios
da localidade em questão.11
• Também estudarei os aspectos históricos que mostram a relação da profissão docente com
a questão de gênero, fato que é nitidamente percebido nos arquivos do IESK, onde se
constata a ínfima proporção de estudantes homens que passam pela instituição. As
pesquisas sobre a historia da feminização do magistério serão úteis, nesse ponto, para
relacionarmos como essa profissionalização chega até o IESK e a Campo Grande. O
esclarecimento desse aspecto nos levará aos textos de Arce, Cavalcante e Cruz, Freitas,
Linhares, entre outros.
• Por fim, pretendo analisar, com o aporte de Foucault, Guattari, Hall, Gondar e outros
autores, como a memória e as influências sociais têm condicionado os processos de
subjetivação, ou seja, parto da hipótese de que o processo de escolha da profissão de
professora resulta na adoção de uma identidade fixa. Nesse ponto, analiso também se
pode haver uma resistência a essa memória coletiva ligada às injunções do poder e se é
possível uma memória que crie o novo (o singular) a partir do social, sem meramente
reproduzi-lo.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 19
Este capítulo tem como objetivo analisar se a memória das normalistas do Instituto de
Educação Sarah Kubitschek (IESK) se encontra influenciada por seu local de convívio e pelo
espaço compreendido pelo bairro de Campo Grande. É importante esclarecer o quanto essa
localidade influencia na geração dos valores e nos hábitos das normalistas e se esse grupo,
conforme a tese de Halbwachs (1990) aludida na epígrafe, está inserido de tal maneira que é
adaptado à região em questão, modificando e sendo modificado por ela.
O homem sempre tenta modificar o local em que vive para torná-lo mais adequado às
suas necessidades. Entretanto, neste capítulo viso analisar como os homens encontram-se
marcados pela localidade e pela comunidade em que estão inseridos.
Cabe ressaltar aqui que não considero a memória restrita a nenhum desses aspectos
enumerados, muito pelo contrário, a memória não é algo limitado somente aos escritos e aos
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 20
apoios à lembrança. A memória está presente em todos os grupos e nos indivíduos, mesmo que as
recordações não sejam iguais aos escritos da história. A memória engloba, de acordo com
Wehling & Wehling,
Isto não quer dizer que a memória seja subjetiva, não científica, e a história objetiva,
científica12, mas que elas são diferentes. A memória atenderia aos objetivos de uma sedimentação
social que a história não compreenderia, pois esta se preocuparia com o conhecimento teórico
obedecendo a metodologias pré-estabelecidas. Entretanto, a memória seria responsável pela
lembrança e pelos costumes de uma comunidade ou sociedade. A memória aparece “quando as
mesmas lembranças, vividas ou transmitidas, ressurgem de forma repetida, sendo apresentadas
como específicas da comunidade” (Wehling & Wehling, 1997, p.15).
A memória, assim como o próprio grupo que a produz, é influenciada por diversos
fatores que não são centrais para a história, cujos objetivos são teóricos e não vivenciais. Um
desses fatores é o espaço, conforme a descrição de Wehling & Wehling:
12
Para ver essa distinção entre memória e história ver Wehling & Wehling (1997).
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Fentress e Wickham (idem) nos remetem a uma memória que não é estritamente do
sujeito e nem somente coletiva, pois não devemos negar ao indivíduo um certo grau de
autonomia na produção de sua própria memória. Eles propõem um equilíbrio entre a memória
individual e a social.
Um grupo não passa por um lugar sem deixar nele seus indícios e o lugar, por sua
vez, também estabelece suas demarcações na memória do grupo. Da mesma forma que um grupo
se sujeita e se adapta às coisas materiais que a ele resistem, também transforma o espaço à sua
imagem. Portanto, os termos espaciais são importantes para esclarecer a memória coletiva e as
escolhas que são feitas por determinado grupo.
Halbwachs aponta que o espaço e a disposição dos objetos desse espaço são como
elos que vinculam a nossa memória aos diversos grupos a que pertencemos. Os objetos, na sua
13
Ele dá continuidade à postura de seu professor Durkheim, que defendeu a especificidade das representações
individuais e coletivas através da memória, afirmando o caráter simbólico da memória individual, como traço de um
complexo social mais amplo (cf. Representações individuais e representações coletivas).
14
Não estará em foco essa discussão, mas trataremos de memória coletiva quando utilizar os conceitos de Halbwachs
e de memória social quando aludir a Fentress e Wickham.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 22
disposição habitual, são duráveis e, dessa forma, tendem a nos trazer uma sensação de
estabilidade e continuidade, um sentimento de pertença a um determinado grupo ou sociedade.
Nossa memória se fixa sobre eles para a geração das lembranças. Halbwachs esclarece a
importância do espaço na configuração da memória coletiva:
não há memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial. Ora, o
espaço é uma realidade que dura [...] É sobre o espaço, sobre o nosso espaço
[...] que devemos voltar nossa atenção; é sobre ele que nosso pensamento deve
se fixar, para que reapareça esta ou aquela categoria de lembranças (1990, p.
143).
O lugar ocupado por um grupo não é como um quadro negro sobre o qual
escrevemos, depois apagamos os números e figuras. [...] todas as ações do
grupo podem se traduzir em termos espaciais, e o lugar ocupado por ele é
somente a reunião de todos os termos. Cada aspecto, cada detalhe desse lugar
em si mesmo tem um sentido que é inteligível apenas para os membros do
grupo, porque todas as partes do espaço que ele ocupou correspondem a outro
tanto de aspectos diferentes da estrutura e da vida de sua sociedade, ao menos,
naquilo que havia nele de mais estável (HALBWACHS, 1990, p. 133).
partir desse momento não será exatamente o mesmo grupo, nem a mesma
memória coletiva (HALBWACHS, 1990, p. 133).
Para não esquecer seus valores e seus costumes, diante das constantes mudanças da
sociedade atual, o grupo institui, de acordo com Nora (1993), “lugares de memória”.15 Esse
conceito alude aos locais onde é possível reter e cultuar uma memória ligada aos costumes da
sociedade, com o objetivo de não perdê-la.
Porém, o autor esclarece que se se fala “tanto de memória [é] porque ela não existe
mais [...] Há locais de memória porque não há mais meios de memória” (1993, p. 7). Ou seja,
numa sociedade mais orgânica e estável não haveria a necessidade de “lugares de memória”. Os
locais de convívio de um grupo já seriam suficientes para cultivar sua lembrança.
Augé afirma que o lugar se insere nos costumes das pessoas de uma localidade e
possibilita uma estabilidade mínima, uma feição comum, a coesão vital e afetiva de um grupo: “o
lugar é necessariamente histórico a partir do momento em que conjugando identidade e relação,
ele se define por uma estabilidade mínima” (2001, p. 53).
Dessa forma, o espaço não é entendido somente como o ambiente físico. Para
Guattari, há numerosos espaços, tantos quantas possibilidades de simbolização e enunciação por
15
Termo utilizado por Nora (1993) para explicar que todos os espaços que servem para preservar a memória do
grupo, os lugares em que este viveu e deixou suas marcas, são lugares de memória e não só os lugares, a princípio,
designados para esse fim (como museus, bibliotecas etc.).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 24
parte dos corpos, dos sujeitos, da sociedade. Ou seja, as ruas, as construções, os bairros das
cidades, são instigadores de sentidos, de trocas; nada neles é estático; tudo se recicla, se re-
significa.
Quando um grupo toma suas decisões e escolhas em um contexto delimitado que lhe
concerne16, e enquanto este grupo continua em contato com seu âmbito de encontros e vivências,
os costumes, as escolhas e os valores desse lugar influenciam sua memória e evitam o
esquecimento17 de seus hábitos.
Este padrão reflete com toda a evidência as estruturas das rotinas cotidianas ao
ar livre; mas o espaço geográfico da comunidade é por sua vez socializado
segundo esta mesma via, conferindo-lhe às suas associações passadas um
significado que faz sentido para os seus habitantes, em contraposição às
geografias mais anônimas que o rodeiam: espaço e tempo firmam-se na
construção da identidade comunitária (1992, p. 141).
16
Como, por exemplo, no caso das normalistas entrevistadas nessa pesquisa, tendo em vista que elas estão muito
envolvidas pela localidade que as cerca e pelos grupos que elas integram nesse local.
17
O esquecimento, conforme Fentress e Wickham (1992, p. 57), também faz parte da memória, ele não é totalmente
apartado em nenhum momento. O esquecimento acontece normalmente: “A nossa memória exprime a ligação do
nosso espírito ao nosso corpo e do nosso corpo com o mundo social e natural que nos rodeia. No entanto, esta
continuidade é também fonte de esquecimento normal”.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 25
Apesar de não haver um consenso entre os autores estudados, todos eles permitem
concluir que o espaço é um dos fatores mais importantes para a rememoração e para a ligação da
memória aos grupos e à sociedade. A partir do espaço, a pessoa pode ter uma sensação de
pertencimento a um local e a um grupo e, dessa forma, sua memória está interligada aos mesmos.
Também não há um consenso acerca da fundação do bairro, uns dizem que as datas
mais prováveis seriam 1808, 1907 ou o dia 2 de dezembro de 1878, com a inauguração da estação
(SANTIAGO, 2004). Para outros19, a fundação oficial ocorreu por cerca de 1673, com a fundação
da paróquia Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande.
A região surge a partir da fundação do Rio de Janeiro por Estácio de Sá, quando
dividiu a Região Oeste da cidade, onde coube aos Jesuítas uma grande área (incluindo onde hoje
é localizado o bairro de Campo Grande), formando-se latifúndios que ficaram conhecidos como
"fazenda dos Jesuítas". Após a expulsão dos Jesuítas (a partir 1759), essas terras foram divididas
em Sesmarias, onde se cultivava produtos agrícolas. Surgem, então as Freguesias, com destaque
para São Salvador do Mundo de Guaratiba, Santo Antônio de Jacutinga e Nossa Senhora do
18
http://www.guiacamp.com.br/main.php?secao=16
19
Como descrito no site http://www.guiacamp.com.br/main.php?secao=16
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 27
Rua Coronel Agostinho), onde até hoje há um comércio muito amplo que exerce atração sobre
outras regiões. Campo Grande hoje conta hoje também com indústrias e ainda tem
estabelecimentos que se dedicam a agricultura e pecuária.
O grande comércio e uma rede de serviços, além dos baixos preços de imóveis, tudo
isto possibilitou um crescimento muito grande do bairro, que hoje contém grande número de
loteamentos, com maioria de casas. É uma região que tem tido um crescimento populacional
muito grande (contém 297.494 pessoas residentes, de acordo com os dados da Prefeitura de
2000), porém, apesar de ter a maior concentração de escolas do Rio de Janeiro, muitas
entrevistadas ainda reclamavam de falta de vagas no ensino médio da região.
Desta forma, ainda repercute na população a imagem de que é uma região rural,
tranqüila, onde a vizinhança mantém vínculos cordiais no seu dia-a-dia e luta por tornar Campo
Grande um local sempre acolhedor, mesmo com o crescimento de um grande comércio e de
mudanças que impõem o ritmo dos avanços urbanos. Podemos perceber essas mudanças no texto
do site Portal de Campo Grande22:
Hoje, como ontem, Campo Grande é uma verdadeira capital. “Capital Rural do
Distrito Federal”, é como chamava a localidade até bem pouco tempo. A verdade,
porém, é que Campo Grande embora localizada na denominada “Zona Rural" do antigo
Distrito Federal, nada ou quase nada apresenta de rural, levando-se em conta a precisa
acepção do vocábulo [...] Tudo faz de Campo Grande um centro importante, sequioso
de agigantar-se, de brilhar, não pela iniciativa de uns poucos, mas pelo trabalho
conjugado e harmonioso de muitos. Mudada a capital para muito longe, claro é que
Campo Grande desperte para atender a sua vocação. Desde centro de peculiaridades
expressivas, de vida própria, de finalidades múltiplas em todos os domínios, há de
21
http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas/mostra_sintese.php?area=144
22
A descrição aqui feita encontra-se registrada no site www.pcg.com.br.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 29
partir a glória radiosa capaz de unir todas as energias da Região e dar a esta porção de
terra Guanabarina, um lugar que lhe cabe pelo seu passado e pelo seu presente. Todos
lutam em torno de um ideal comum de fazer que os legítimos interesses sejam sempre
respeitados, que se proclamem os direitos que a destinação se afirme e se realize.
Ninguém falte ao chamado. Um com sua enxada, outro com o cinzel, com a pena,
aquele com o cajado, mas todos com os braços, com cérebros, para trabalharem e
vencerem, a fim de serem dignos da terra promissora e bela que herdaram onde todo
esforço vale um cântico de primavera, profundo, acolhedor (os grifos são meus).
Esse texto demonstra o ufanismo de muitos dos moradores que consideram Campo
Grande como o lugar onde a “glória radiosa” seria “capaz de unir todas as energias da Região” e
no qual todos deveriam se unir para entoar, nesse âmbito privilegiado, “um cântico de primavera,
profundo, acolhedor”. Esse tipo de discurso não é unânime na região23, mas está presente na
maioria das pessoas que adotaram Campo Grande como o seu local de permanência e não
somente de moradia.
No site Guia Camp percebemos que este pensamento pode ser proveniente de muitos
anos atrás pois: “O ponto alto da produtividade no bairro se deu pela década de 1930, e os
problemas enfrentados pela população eram encobertos, de forma consciente, pelo orgulho
bairrista de uma região de sucesso agrícola”.
Eu acho que Campo Grande é um bairro tranqüilo [...] Eu não sinto muita segurança,
porque ninguém tá seguro, acho que no mundo todo, hoje em dia a gente vive muito
inseguro. É um bairro tranqüilo que tem muitos laços de amizade, eu percebo muito
isso. Os meus vizinhos se conhecem, então, eu acho que isso ajuda muito na
convivência (normalista Joyce).24
Apesar de ser um bairro com costumes rurais, em uma região com muitas casas e
chácaras, hoje ele tem poucas atividades agrárias, reservadas apenas a alguns sub-bairros. Sua
ocupação e urbanização ocorreram através da criação de vários conjuntos habitacionais, surgindo,
assim, os sub-bairros que se distanciaram do agrícola.
23
Veremos, mais adiante, que há outros enfoques sobre esse local.
24
Entrevista realizada na residência da entrevistada no dia 15/03/2003, todos os outros depoimentos da normalista
Joyce referem-se a essa mesma entrevista.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 30
Isso tem favorecido o crescimento urbano que traz, aos poucos, uma pequena
insegurança às pessoas da localidade, porém essa insegurança não altera essencialmente a
percepção, testemunhada pelas entrevistadas, de que o bairro é tranqüilo, calmo e bom para
morar. Dessa forma, o sentimento de segurança ainda predomina na população, podendo-se
deixar as crianças brincando nas pracinhas e nas ruas e ficar conversando com os vizinhos
descontraidamente sobre as atividades e o dia-a-dia da região.
25
Entrevista realizada em minha residência, no dia 21/12/2002; todos os outros depoimentos da normalista Aracele
referem-se a essa mesma entrevista.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 31
A fachada do colégio é limitada por um alto muro branco, com um pequeno portão
que dá acesso ao prédio central e a um portão de ferro que permite somente a entrada de pessoas
devidamente identificadas. O IESK possui uma arquitetura moderna, diferente da arquitetura
clássica encontrada em outros Institutos de Educação do Rio de Janeiro, até mesmo porque o
prédio foi construído na década de 1970, conforme aparece acima na Figura 2, e não nas décadas
de 1920 ou 1930, como outros Institutos de Educação mais antigos.
Apesar de o prédio atual ter sido construído há menos de 40 anos, o IESK começou a
funcionar no final dos anos 1950, porém era chamado nessa época de Instituto de Educação
Campo Grande, nome que foi mudado para homenagear a esposa do presidente Juscelino
Kubitschek. O instituto funcionou em um local onde, depois de sua saída, se estabeleceu um
barracão de laranjas e, atualmente, funciona uma agência bancária, ou seja, em uma estrutura
precária.
Os Cursos Normais eram altamente valorizados, fato que pode ser percebido na
grandeza arquitetônica dos prédios da maioria dos Institutos de Educação do Rio de Janeiro. Esse
não era o caso do IESK, porém mesmo sem contar com um prédio imponente esse Instituto
também era valorizado socialmente como os outros Institutos de Formação de Professores.
Naquela época, mesmo sem dispor de um prédio mais estruturado para suas
atividades, ele já formava as professoras da região e já era valorizado. Existiam cursos
preparatórios para a prova de seleção que era muito rigorosa, pois quem conseguisse ser aprovado
já tinha emprego garantido: os alunos que chegavam à 3a série já começavam a lecionar,
passavam a ser funcionários públicos do Estado da Guanabara. Uma professora do IESK comenta
isso no seu depoimento:
Esses e outros fatores geravam prestígio social para os cursos normais. O IESK tinha
ainda um estímulo importante para as pessoas que almejavam cursar a instituição e para as
pessoas do seu entorno, que era a contratação imediata dos seus formandos como funcionários
públicos, e os bons salários que recebiam, conforme foi ressaltado no depoimento citado acima
pela professora do IESK.
O IESK, por estar longe do centro da cidade, oferecia, além dos aludidos benefícios,
algumas dificuldades: as professoras formadas pelo IESK trabalhavam tanto nas proximidades do
mesmo (Campo Grande, Santa Cruz etc.) quanto nos lugares mais distantes do Centro do Rio de
Janeiro (na época, Guanabara). Como conseqüência, eram as últimas a receberem seu pagamento
e tinham que esperar o carro pagador sentadas na “sarjeta”.
Hoje os professores não têm de esperar o carro pagador chegar, devido a facilidade do
pagamento bancário. Porém, esse salário perdeu o seu poder aquisitivo. Assim, as dificuldades da
região provocadas pela distância que eram, na época, compensadas pelo bom salário que a
26
Entrevista realizada no dia 17/02/2002 no IESK, todos os outros depoimentos de uma professora do IESK referem-
se a essa mesma entrevista, pois só foi entrevistada essa professora do IESK, que conforme sua solicitação não será
identificada neste trabalho.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 33
profissão proporcionava, hoje se tornam quase um “fardo” a ser carregado, pois não existe
nenhuma compensação. Parafraseando a expressão daquela professora, hoje vemos o processo
contrário: os professores não esperam o salário na sarjeta, porém esse mesmo salário os coloca,
praticamente, “na sarjeta”.
Mesmo com essas dificuldades, a repercussão que teve o critério rigoroso de seleção,
que existia até há pouco tempo, e a antiga valorização das (os) estudantes do IESK, tanto pelo
emprego garantido, quanto pela remuneração, acabaram por tornar o IESK uma instituição
considerada tradicional e de excelência, na região oeste do Rio de Janeiro.
Hoje, muitos associam uma certa decadência no ensino do IESK à falta da seleção,
pois agora entram alunos com menos conhecimentos e com menos ideais de seguir a carreira
docente. O depoimento da normalista Anne nos mostra essa opinião corrente:
Essa seleção é mencionada, em diversos depoimentos, como um fator que fazia com
que as pessoas que se inscrevessem tivessem maior vontade de serem professoras, pois quem se
prepararia para uma prova tão difícil se não almejasse seguir a carreira docente? Ou mesmo,
27
Uso o termo no masculino e no feminino porque mesmo constituindo uma minoria, há alguns homens na
instituição, e a regra da gramática da Língua Portuguesa nos impõe que se um termo se referir a um grupo, onde
houver algum elemento masculino o gênero da palavra correspondente será masculino. No entanto, cabe observar,
que essa regra pode ser interpretada como uma exaltação do masculino sobre o feminino na nossa sociedade.
28
A última prova de seleção para ingresso no IESK foi em 1997.
29
Entrevista realizada em 29/03/2003 na residência da entrevistada; todos os outros depoimentos da normalista Anne
referem-se a essa mesma entrevista.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 34
quem não se contagiaria com o alvoroço de ser aprovado em tal concurso e, dessa forma, passaria
a exaltar a profissão também?
Entretanto, ao longo do tempo, o IESK foi perdendo a sua fama de instituição com
um ensino de excelência. Quando foi suprimida a seleção no ingresso dos alunos, as exigências
de entrada no IESK diminuíram concomitantemente, o que fez decair o nível dos novos
estudantes. Aliás, muitos começaram a entrar no Sarah Kubitschek simplesmente para satisfazer
o desejo dos seus pais, ou mesmo pela falta de outras escolas na redondeza.
Eu pensei, assim que eu entrei que o Sarah fosse mais organizado. E organização lá não
tinha nenhuma, nenhuma mesmo, veio a ter mais ou menos quando eu estava no terceiro
ano que veio ter uma organização melhor (normalista Bárbara).31
Essa mudança trouxe uma certa “nostalgia da escola normal do passado”. Isso pode
ser percebido no relato da normalista Anne, na página 31, cuja mãe foi formada pelo IESK nos
seus “áureos” tempos, que reclama que ela não teria tido a mesma sorte, “tendo que agarrar tudo
que ela visse pela frente”.
A nostalgia de uma escola melhor no passado é explicada por Linhares (1997, p. 195)
pelo fato de a escola do passado atender melhor às pessoas que tinham um maior poder aquisitivo
e, dessa forma, a “sua eficiência estava colocada no ensino-aprendizagem com um foco de
excludência generalizado às camadas pobres de nossa sociedade”.
A nostalgia, nesse caso, vem unida ao conceito de “tradição”, que usualmente alude
aos hábitos inveterados, antigos, transmitidos de geração em geração.32 Porém, atualmente,
muitas pessoas a têm exaltado excessivamente, se apegando a ela e, com um sentimento de
nostalgia, querendo que ela seja valorizada. Outras enaltecem demais os avanços tecnológicos,
desmerecendo tudo que vem do passado. Linhares (1997) propõe que não abandonemos o
passado, mas que precisamos contextualizá-lo, não esquecendo dos conflitos sociais que a
evocada tradição muitas vezes deixa de lado.
Esse termo é muitas vezes vinculado ao passado de “glória” das instituições públicas,
que, na época, não eram acessíveis às classes populares: “Uma face da tradição educacional
brasileira retrata sua preferência pelos ricos, pelos poderosos, pelas classes dirigentes. Esta
imagem tem sido divulgada como sendo a da tradição da escola no Brasil” (Linhares, 1997, p.11).
31
Entrevista realizada em 13/03/2003 na residência da entrevistada, todos os outros depoimentos da normalista
Bárbara referem-se a essa mesma entrevista.
32
Ver Luft (1993), Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 36
Isso acontece por vários motivos, como, por exemplo, pelo fato de a origem social do
candidato não ser a mesma que é almejada e pressuposta pela escola (a hipótese escolar é de que
o aluno está bem nutrido, tem uma família que pode ajudá-lo e apoiá-lo financeiramente e
emocionalmente). Dessa forma, sua maneira de conhecer o mundo, sua memória social, também
não é valorizada, ficando mais difícil sua ligação com o conhecimento escolar (por exemplo, para
um aluno que nunca viu ou nunca ouviu falar de uma zebra, fica difícil fazer uma redação sobre
uma zebra).
Não quero dizer que a tradição seja desnecessária, pois a memória precisa de uma
certa tradição para amparar suas lembranças e a cultura da sociedade. O que questiono é que as
recordações das normalistas não podem estar vinculadas somente a essa tradição passada, pois
assim a memória seria somente nostálgica, tirando-lhe a possibilidade de ser criadora. Para que
haja fluidez, a tradição pode ser modificada aos poucos, sem ser abolida nem entrar em
decadência, pois, ao modificar-se, ela pode atender melhor às necessidades do grupo.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 37
Neste momento de minha análise quero destacar a importância singular que essa
reflexão tem para mim. Friso que sou campograndense. Assim, minha memória está intimamente
ligada ao lugar em que vivo desde que nasci: Campo Grande. E, de algum modo, o apego ao local
influencia todos os que vivem nessa região. Porém, meu círculo de contatos não se restringe a
esse bairro, tenho familiares e amigos que moram em outros locais do Rio de Janeiro e em outros
estados brasileiros. Por causa disso, não concentrei as minhas atividades somente neste bairro.
Isso aconteceu com muitas de minhas colegas de infância e adolescência que nunca
tinham conhecido a região Sul e o Centro do Rio de Janeiro. Era tão raro que o fizessem que
quando as freqüentavam diziam que tinham “viajado”. A utilização do termo “viajar” não deixa
de ser adequada, pois o fato de Campo Grande ser um bairro muito extenso, torna as visitas a
outros bairros uma verdadeira “viagem”, até mesmo para os bairros mais próximos.
Diferentemente, por exemplo, da região Sul do Rio de Janeiro, em que pode-se ir de um bairro
para o outro com muita rapidez (dependendo somente do trânsito). Mas, além disso, a noção de
viagem frisa a distância não só física, mas simbólica de Campo Grande com relação a outros
lugares do Rio de Janeiro. Sair do bairro é uma verdadeira aventura, um deslocamento que
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 38
implica não só uma mudança espacial, mas entrar em contato com outra “paisagem” humana:
outros valores, outros colegas, outras memórias.
Mafessoli (2001, p. 29) analisa a viagem como uma aventura que pode ser desejada
ou sofrida, pois relativizaria o peso do instituído:
Essa situação tem importância para a questão estudada, já que o IESK torna-se um
lugar de memória, em que as características específicas desse âmbito mostram uma localidade
fechada em torno de si mesma, onde as pessoas costumam transitar somente nesse bairro e se
relacionar com outras pessoas apenas nesse espaço. O grande comércio, os diversos serviços e a
capacidade de encontrar o necessário para viver contribuem para que isso aconteça.
Isto é, a maioria das normalistas desse Instituto desenvolve todas as suas atividades
profissionais, sociais e familiares quase que exclusivamente em Campo Grande, com poucos
contatos com outros locais do Rio de Janeiro. E isso gera uma forma de pensamento específico.
Neste sentido, Halbwachs esclarece que “quando um grupo humano vive muito tempo em um
lugar adaptado a seus hábitos, não somente os seus movimentos, mas também seus pensamentos
se regulam pela sucessão das imagens que lhe representam os objetos exteriores” (1990, p. 136).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 39
Por que as normalistas concentram suas atividades em Campo Grande? Esse fato
pode ser explicado pela dificuldade encontrada para sair da região de Campo Grande e ter contato
com outras regiões. Isso pode ser percebido nas palavras da normalista Rafaela, quando indagada
se já tinha ido ao teatro:
Não. Eu tenho até curiosidade, porque eu acho até interessante. Mas os teatros
que apresentam peças [...] que estimulem os jovens e os adultos também a
verem, são muito longe [...] Lá em Ipanema, Leblon, aí, é muito difícil.
Essa dificuldade é causada pelo desconforto dos transportes da região e pelo alto
custo financeiro que esse deslocamento ocasiona, ou seja, se locomover de Campo Grande para
se divertir em outro lugar torna-se cansativo e caro. Dessa forma, é mais fácil se divertir na
região.
Nem todas as normalistas optam por não sair de Campo Grande, algumas se deslocam
para conhecer e se divertir em outros locais. Mas, mesmo as que freqüentam outros bairros
reconhecem que a comunidade campograndense se fecha em si mesma e usa, às vezes, como
justificativa da falta de ligação com outras localidades, a grande distância que as separa delas.
Podemos perceber isso quando uma normalista comenta que vai aos museus, enquanto seus
colegas da faculdade não vão: “Eu vejo que é muito complicado, às vezes, eu falo pro pessoal da
minha turma que é tão perto daqui, e é tão barato, porque têm inscrições que [...] são gratuitas, e
as pessoas não se interessam mesmo” (normalista Joyce).
Desse modo, as relações sociais acontecem de forma intensa na região: nas igrejas,
nos espaços de diversões — shopping, praia, festas, danceterias e clubes — e nas próprias
instituições de estudo, tanto no início da escolaridade quanto na etapa de formação profissional.
Esses encontros são importantes para preservar os laços comunitários e sua memória. Se eles
deixam de acontecer o grupo pode até mesmo cessar de funcionar como tal. Isso é esclarecido por
33
Entrevista realizada no IESK no dia 31/10/2002 com o diretor do Ensino Médio de Formação de Professores do
IESK, todos os outros depoimentos do diretor do IESK referem-se a essa mesma entrevista.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 40
Fentress e Wickham: “A transmissão da tradição é quebrada por qualquer vicissitude local [...] Se
comemorar for funcionalmente relevante para a construção da identidade local, a sua
sobrevivência está claramente menos assegurada se a sua relevância diminuir” (1992, p. 126).
Apesar da modificação urbana ser cada vez mais acentuada, Campo Grande ainda
guarda características de zona rural que influenciam a memória da comunidade. Essas
peculiaridades são evidenciadas, por exemplo, no fato das crianças brincarem livres nas ruas, dos
adultos conversarem nos portões, das festas de rua serem valorizadas e partilhadas coletivamente,
entre outras situações vivenciadas pela comunidade.
Nota-se, também, que os espaços de diversão da região são distintos dos de outros
locais, por exemplo:
As pessoas de Campo Grande acabam por não apreciar os valores culturais da região
Sul e o Centro do Rio de Janeiro, muitas delas nunca foram ou não freqüentaram teatros e
museus. Talvez isso se dê pela distância, mas será que é só por isso? As diversões existentes na
região aparecem como satisfatórias e não é necessário se ater a outras maneiras de lazer. A
aderência ao lugar fala mais alto que a possibilidade de conhecer outras alternativas.
Embora muitas pessoas saiam de Campo Grande, na maioria das vezes para trabalhar,
elas não tomam o novo lugar como próprio, pois suas diversões, valores e parâmetros continuam
a depender do seu bairro de origem.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 41
O contato permanente com a região acaba por ressaltar os valores sociais tradicionais
da população, como o machismo,34 que persiste com muita força na região, principalmente nos
comentários dos moradores. Mas, fica mais claro no fato de haver grande quantidade de mulheres
que são donas de casa e que não estudam e nem trabalham fora.
O machismo é um dos fatores que acabam por influenciar a escolha profissional das
normalistas na região, pois conforme uma concepção corriqueira da população “mulher não pode
fazer outras coisas”, já que outras profissões são mal vistas, não seriam dignas de mulheres
“decentes”.
Essas peculiaridades e suas repercussões nos moradores de Campo Grande não são
percebidas por todos. Nas entrevistas com representantes do IESK, percebi que o morador de
outra região tem maior facilidade para reparar as peculiaridades do bairro. Verifiquei isso quando
uma professora do IESK, que é campograndense, disse que o IESK não é permeado pelas
questões locais, e, em contraponto, o diretor, que reside em outro bairro, manifesta uma visão
divergente ao afirmar que os valores de Campo Grande influenciam sim, na formação no
Instituto.
O diretor do IESK alude ao baixo nível cultural das famílias como uma das razões
pelas quais a escolha da instituição se dá na região, pois essa falta de valorização da “cultura”, ou
do conhecimento, faz com que os pais coloquem os filhos na escola só “para não dar problema
em casa”:
34
A questão do machismo será aprofundada no capítulo 2.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 42
Então, essa cultura, você pode ver inclusive nos estudos sociológicos. É uma
cultura do tipo de quando você tem menos cultura, quando você tem menos
acesso às informações, isso tudo depõe muito para a família, que não liga muito
para cultura. Então, a normalista está numa escola para estar numa escola. Têm
famílias que chegam aqui: “o meu filho está aqui para não dar problema em
casa”.
[...]“lá em baixo” como se diz aqui, [...] a maioria dos alunos que freqüentam
[...] escolas públicas [por exemplo em] — Vila Isabel, Tijuca, Laranjeiras —
[estão próximos a] bibliotecas públicas, e os professores fazem questão que os
alunos vão [...], [existem] projetos, que os alunos são retirados de sala de aula
durante um dia, dois dias, para visitarem museus, [...] até para visitarem peças
de teatro. Então, o IESK estar localizado em Campo Grande, [...] [causa] a
dificuldade de se levar qualquer turma [...] de ônibus, pois não se consegue, é
uma escola pública, nós não temos verbas para isso. Então não existem teatros
que funcionem durante o dia todo, não existem salas de cultura, não existem
salas de música, [...] tudo isso favorece para que os alunos de lá, das regiões,
tenham acesso a isso (os grifos são meus).
Essa expressão transmite a sensação de que lá em baixo haveria uma altitude menor
em relação a Campo Grande, o que não é verdade, pois o mesmo também está no nível do mar,
ou seja, não é localizado em nenhuma serra e fica ao lado da região das praias de Guaratiba.
Com isso, nota-se que o termo lá em baixo não tem um sentido geográfico, mas que
está presente no imaginário popular e que vem passando de geração a geração, tanto que ninguém
sabe quando ele surgiu. Porém, baixo, neste caso, não tem um sentido hierárquico, opondo-se
àquilo que estaria no alto. Basicamente, alude à distância, ao afastamento, talvez a um abismo
entre grupos sociais, como veremos a seguir.
Campo Grande é comparado, inclusive, por muitas pessoas da região — e pelo diretor
do IESK, conforme assinalo abaixo — com um feudo, pois seria fechado em torno de si mesmo e
as pessoas “não sairiam dali para nada”. O diretor também alude ao período feudal, como se as
pessoas estivessem vivendo dentro de uma fortaleza:
Eu tenho um colega, professor de geografia, que sempre diz que Campo Grande
é um “feudo”, tudo porque ainda tem algumas coisas que existem em cidade de
interior, que infelizmente, ou que felizmente estão acabando, então todo mundo
se conhece [...] Então eu acho que Campo Grande fica reduzido assim a um
feudo, porque nada sai daqui, tem alunos de 3o ano, com 19, 20 anos, que não
conheciam e não conhecem o centro da cidade, e é a cidade deles, Campo
Grande não é uma cidade. Tem professoras que se formaram no Sarah
Kubitschek, fizeram faculdades em Campo Grande, e que não saem de Campo
Grande. Então eu acho isso, [...] por um lado bom, porque ficou dentro da sua
comunidade, [...] mas ruim, pelo lado de você não conhecer a realidade que
existe em relação à cidade. Tem professores que eu conheço, professores que
nunca foram a um teatro, isso é inconcebível, qualquer que seja a área do
professor, seja biologia, química. [...] e o brasileiro por ser indolente, por morar
aqui em Campo Grande, [...] ele jamais vai sair daqui pra ir um sábado a noite
num teatro em Ipanema, jamais vai sair daqui para assistir uma peça no Teatro
Municipal. Então isso favorece a que Campo Grande seja um feudo, porque
depois as pessoas dentro daquela fortaleza que as pessoas não saem dali. Né,
como no período feudal, em Campo Grande acontece muito isso (os grifos são
meus).
35
Ver, por exemplo, VICENTINO, Cláudio. História Geral: Volume Único — 2 Grau. São Paulo: Scipione, 2002.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 44
A comparação, feita pelo diretor do IESK, de Campo Grande com um feudo vai além
das fronteiras espaciais difíceis de se transpor, pois é perceptível que, apesar de não existir um
senhor feudal, também há muita dificuldade de mobilidade social na região.
Esse ambiente fechado em torno de si mesmo propicia que exista uma “maneira de
ser” campograndense. Isso é percebido até mesmo em outros bairros. Um exemplo disso está
presente na narrativa de uma das normalistas que nota que quando vai a Barra da Tijuca (bairro
que fica a mais ou menos cinqüenta minutos de Campo Grande) as pessoas percebem que ela não
é de lá “pela sua maneira de falar e agir”.36 A “fortaleza”37 acaba se fechando ainda mais por essa
sensação de não pertencimento a outro lugar, de estranhamento dos campograndenses, no trato
com outros habitantes do Rio.
Talvez as pessoas do outro local nem estejam percebendo essas diferenças, talvez seja
a normalista que não se sente acolhida naquele bairro. Ou mesmo as outras pessoas possam
36
Depoimento da normalista Anne que não foi gravado.
37
Conceito que foi usado pelo diretor do IESK em sua narrativa citada acima.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 45
perceber algo diferente no visitante, mas não necessariamente ligam essa diferença ao
pertencimento a outra localidade.
Porém, algo é certo: essa normalista não se sente incluída no bairro que visita. Esse
outro local lhe é estranho e seus hábitos não são os mesmos, por isso ela prefere permanecer no
seu lugar de origem, que acaba por trazer-lhe uma afetividade e um relacionamento diferente com
as outras pessoas; relacionamento este que é mais aberto e menos discreto.
Talvez essa diferença de relacionamento aconteça pelo fato de seus moradores terem
menor poder aquisitivo e encontrarem-se em um bairro pobre, pois, conforme Guattari, o espaço
constitui uma forma de subjetivação que muda de um espaço para outro, e que é diferente em um
bairro pobre:
Foucault (1989, p. 212) também nos mostra que “é surpreendente ver como o
problema dos espaços levou tanto tempo para aparecer como problema sócio-político. [...] A
fixação espacial é uma forma econômico-política que deve ser detalhadamente estudada”. A
divisão e a disposição do espaço influenciam a conduta das pessoas, assim como condicionam os
grupos a estabelecerem determinadas relações de poder. Ou seja, a fixação espacial subjetiva as
pessoas e interfere nas configurações sócio-políticas.
Figura 5 - Conversas
O grupo seria o elemento preservador dessa “fortaleza”, pois seu interesse está no seu
entorno e, assim, tentaria defendê-lo. Nesse ponto, a leitura de Halbwachs (1950, p.135) é
esclarecedora:
Assim, não somente casas e muralhas persistem através dos séculos, mas toda a
parte do grupo que está, sem cessar, em contato com elas, e que confunde sua
vida e a dessas coisas, permanece impassível, porque não se interessa a não ser
por aquilo que se passa, na realidade, fora de seu círculo mais próximo e além
de seu horizonte mais imediato.
38
Ver página 41.
39
Antigamente existiam a FEUC e a Faculdade Moacir Sreder Bastos, hoje existem várias como Estácio de Sá,
Univercidade, Bezerra de Araújo, entre outras.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 47
O diretor assinala que as alunas não teriam projetos claros para seu futuro, e que, por
isso, a dificuldade de percorrer uma grande distância para cursar uma faculdade pública faz as
mesmas desistirem:
Esse fato pode ser interpretado também de outra forma. Muitas normalistas optam por
não se distanciar do seu espaço de convivência, até mesmo pelas dificuldades, pelo perigo e pelo
alto custo que essa locomoção para uma universidade pública acarretaria. Então, preferem
simplesmente continuar seus estudos em Campo Grande.
Esta reflexão me leva à conclusão de que o espaço de convivência pode ser vivido de
uma forma uniformizadora ou libertadora. Conforme nos demonstra Guattari (1992, p. 158):
O alcance dos espaços construídos vai então bem além de suas estruturas visíveis e
funcionais. São essencialmente máquinas, máquinas de sentido, de sensação, máquinas
abstratas funcionando como o “companheiro” anteriormente evocado, máquinas
portadoras de universos incorporais que não são, todavia, universais, mas que podem
trabalhar tanto no sentido de um esmagamento uniformizador quanto no de uma re-
singularização liberadora da subjetividade individual e coletiva.
40
O GP (Ginásio Público) e o Miécimo são dois dos poucos colégios públicos de ensino médio da região.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 48
Podemos, dessa forma, analisar o espaço fechado de Campo Grande, onde se insere o
IESK, como condicionante de uma intensa relação com o local, porém essa relação não deveria
ser limitadora de um conhecimento e de um contato com outras formas de agir, como vem
acontecendo de uma forma geral. A formação de professores deve ser mais ampla e aberta ao
conhecimento de costumes e de culturas gerais, contudo, os limites geográficos de distância da
região de Campo Grande têm restringido o contato com outras manifestações culturais.
Entretanto, posso perceber que a exaltação das manifestações culturais da localidade possibilita
um maior relacionamento entre seus moradores, cuja memória social traduz uma presença
marcante dos valores locais. Dessa forma, há uma forte vinculação dos costumes e valores das
normalistas do IESK com seus ambientes de trabalho, diversão e convivência.
Assim, também essas lembranças coletivas podem ter uma influencia positiva sobre a
prática pedagógica das normalistas, futuras professoras da região, pois conhecendo o cotidiano da
localidade, elas podem relacionar-se de forma mais profunda com o contexto de vida dos seus
futuros alunos, sendo, assim, recriadoras dessa memória local.
Halbwachs (1990), como já apontei, afirma que o lugar deixa suas marcas no grupo e
vice-versa. Levando em conta essa afirmativa, podemos inferir que as normalistas tiveram suas
escolhas influenciadas pelo espaço em que vivem, ou seja, pelo fato de a memória local
incentivar a carreira de professores como uma das profissões mais acessíveis da região. As
estudantes seguiram essa tendência e, continuando na localidade, ajudaram e ajudam a recriar
mais uma vez essa memória e o sentimento de unidade do grupo local.
analisar, no próximo capítulo, como uma visão tradicional do papel feminino pode ter impacto
nas normalistas formadas no IESK.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 50
A sociedade em que vivemos nos impele a ter um trabalho para que possamos nos
sentir cidadãos dignos de viver nela. O trecho da música acima corrobora a idéia de que para
termos “dignidade”, “valor”, “identidade”, enfim, para nos afirmarmos enquanto pessoa é
necessário exercer uma profissão. Muitas vezes aceitando um salário “miserável” e, até mesmo,
um subemprego, se não houver alternativa.
Para que uma memória se configure, se delimite, coloca-se, antes de mais nada,
o problema da escolha (seja ela consciente ou inconsciente): entre tantos
estímulos diferenciados que nos chegam do mundo, alguns serão investidos a
ponto de se tornarem traços mnêmicos, ao mesmo tempo em que outros serão
segregados, esquecidos sem que jamais se tenham convertido em memória.
A escolha de uma profissão não é somente pessoal, ela está permeada sempre pela
memória do indivíduo, que implica uma opção que pode ser baseada no orgulho próprio, mas
depende de condicionamentos sociais mais profundos. Essa escolha, ou orgulho, leva ao
esquecimento de outras influências possíveis, pois ela é afetada pelo poder político que é
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 52
exercido sobre o sujeito. Gondar (2000, p. 37) nos mostra que essa análise deve tentar sempre
esclarecer outros fatores:
41
Menos de 10% dos alunos são do sexo masculino, pois, geralmente, há menos de 5 alunos homens nas listagens
das turmas que têm cerca de 40 alunos.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 54
Esse fato diz respeito a uma questão fundamental nesta dissertação: qual a memória
que determina a opção profissional pelo magistério?
Para ter uma visão mais geral da instituição estudada procurei essa resposta
inicialmente nas explicações das autoridades do IESK, que estão em contato constante com os
alunos e freqüentemente conversam com eles sobre o motivo das suas escolhas. A resposta dos
mesmos, com relação ao fato da maioria dos estudantes do IESK serem do sexo feminino, remete
a um fator histórico, algo que influenciou a sociedade brasileira em geral e que não acontece
somente no IESK, mas na carreira docente como um todo. Podemos verificar isso na fala de uma
professora do IESK:
Quando começou a profissão de professora, pela lei era só para mulher [...] veja
que no Instituto de Educação da Mariz e Barros só tinha mulheres. Tanto é que
a profissão de professora tem uma regalia: o professor pode faltar 3 dias com
atestado médico; você sabe o que que eram esses 3 dias? [...]. Eram os três dias
de menstruação. Homem não menstrua que eu saiba! [...] Então, [...] as leis que
existiam pra beneficiar o profissional daquela época eram eminentemente
femininas, 3 dias para a menstruação.[...] [Assim], a sociedade que fez isso
colocou um rótulo que eram masculinas a área militar, de engenharia... Você vê
que a engenharia era só para homem, matemática eram só professores homens.
Então eram coisas assim separadas: masculino e feminino. [...] [hoje] a lei
continua com 3 dias, e os homens tiram também os 3 dias.
Uma atividade que necessita de uma lei que ampare a mulher nos seus dias de
menstruação é uma função dirigida, obviamente, ao feminino, uma profissão que, por lei, tornou-
se específica da mulher. Essa lei existe para o magistério público estadual do Rio de Janeiro. O
professor tem três dias nos quais pode faltar com amparo médico, para isso, ele precisa apenas
entregar um atestado: não necessita ir a uma biometria médica ou passar por uma avaliação que
prove que ele realmente tem algum problema. Hoje essa lei não contempla especificamente à
menstruação, porém, no passado, esse atestado era dado fundamentalmente para justificar a
ausência nos dias de menstruação, conforme a entrevistada.
• Nos comentários explícitos a respeito da profissão “digna” que ela deve escolher.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 55
• Através da pressão que muitos pais exercem para que a filha estude para ser professora,
pois, apesar da desvalorização salarial, essa ainda é uma profissão almejada pelos pais,
principalmente os das classes desfavorecidas que vislumbram poucas opções laborais para
os seus filhos.
O que há, em relação à escolha da profissão — para este mister, como para
tantos outros — é o resultado da formação social. Idéias, hábitos mentais,
longamente firmados desde a infância; tradições da família; bom ou mau
conceito local de determinado trabalho; influência direta muitas vezes dos
nossos primeiros mestres que tomamos como modelo; modificações de
melhoria econômica da profissão — tudo isso pode agir isoladamente ou em
conjunto, num dado momento.
Também é importante observar o fator econômico na escolha da profissão docente,
muito presente em Campo Grande, como é detectado e ressaltado pela direção do IESK. A
maioria dos estudantes da instituição não tem mais boas condições financeiras como ocorria
antes, com os alunos dos chamados “anos dourados da educação”, das décadas de 1940 e 1950
(MARTINS, 1996).
Outrora, ainda havia a possibilidade dos ganhos serem maiores, pois o marido da
professora, por estar bem situado financeiramente, podia sustentá-la. Quando o marido não
sustentava a casa e dependia financeiramente da mulher professora, era mal visto pela sociedade,
sendo chamado de “chupim”. Termo que era usado para denegrir o homem que não se ajustava ao
papel social esperado: sustentar financeiramente a casa e a esposa. Esse termo pejorativo, apesar
de ter caído no desuso, existe até hoje. Nos dicionários é usado para definir o “marido de
professora que vive às custas dela”.42
A professora, hoje, precisa conciliar a tarefa doméstica com o trabalho docente, que
em muitos casos são exercidos em jornadas duplas e, até mesmo, triplas. Esse é um fato que
sempre esteve presente na história da educação e que vem se aprofundando com o decorrer do
tempo, consolidando o perfil de “profissão feminina” do magistério. A memória das normalistas
42
Ver, por exemplo, o “Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa” de autoria de Luft (1993).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 56
do IESK está marcada por esta “feminização” do magistério; memória esta que condiciona a
sociedade em geral e acaba por influenciar sua escolha profissional.
Ou seja, a femilização proporciona uma feminização que modifica a visão que se tem
de determinada profissão na sociedade. Mudanças no significado, no valor e no status que a
mesma tem na concepção das pessoas dessa época. Isso acaba provocando uma transformação na
remuneração e no prestígio dessa profissão e também uma influência na memória social. Assim, a
docência é lembrada como uma atividade desvalorizada, realizada por pessoas pouco capacitadas,
já que são qualificadas apenas por serem mulheres, com condições naturais para cuidarem das
crianças.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 57
No Brasil, essa caracterização da mulher como educadora dos filhos não se deu de
forma imediata. Na colonização, os portugueses vieram para o Brasil trazendo seus modelos de
43
Esses termos são hoje muito contestados por postularem uma explicação supostamente “natural” para que a mulher
aceite a profissão do magistério como sua vocação e sacerdócio. Dessa maneira, ela não pode questionar nem refletir
sobre sua condição profissional.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 59
O paternalismo exigia que a mulher restringisse sua atuação à esfera privada de sua
casa, e sua ação pública se limitava a participar das atividades da igreja. O impacto dessa
restrição levou a mulher a se recolher ao âmbito doméstico, à condição de mera reprodutora,
tornando-se apenas um objeto de domínio masculino.
A mulher não precisava ter boa formação, bastava-lhe aprender as primeiras letras e
os cálculos aritméticos básicos para assegurar as tarefas do lar. Numa visão muito peculiar a
mulher era apresentada como tentação permanente que deveria ser “domada” para tornar-se uma
boa mãe e para que não desviasse o homem do caminho correto (FREITAS, 2000). Esse
pensamento era baseado na explicação bíblica da primeira mulher, Eva, ter incentivado o
primeiro homem, Adão, ao pecado e, por isso, os dois teriam sido expulsos do paraíso. Mello e
Leite (2000, p. 38-39) nos mostram como houve uma tentativa de controlar essa mulher
“pecadora”:
Aqui é possível inquirir: mas os homens não tentam também registrar suas
lembranças? Sim, mas no decorrer da história os registros masculinos eram feitos muito mais
para marcar as datas de guerras, acontecimentos, descobertas, do que para falar de seus prazeres e
angústias. Isso pôde ter acontecido porque a memória está atrelada às vivências de cada indivíduo
e os homens, no passado, estavam muito mais direcionados para seus trabalhos do que para uma
auto-análise ou reflexão de sua vida sentimental.
De acordo com Catani (1997, p. 44) a mulher apresenta uma memória diferente da
dos homens e isso se dá não por ela pertencer a um dos gêneros: não é o fator biológico que
especifica o tipo de memória, mas as experiências e trajetórias de vida de cada sexo. Ou seja, o
fato de a mulher ser subjugada ao âmbito doméstico acaba fazendo com ela tenha mais tempo
para refletir sobre suas vivências e, assim, possa tentar registrar, com detalhes, seus momentos de
prazer, ativando sua memória.
A memória sempre constitui um tesouro. [...] pela sua importância foi disputada
e controlada politicamente, tanto em sua forma oral como sob a forma escrita,
monumental e ritual. [...] Não é por outra razão que vamos encontrar ainda na
Idade Média tentativas de controle da memória e de suas expressões.
Encontramos, por exemplo, medidas administrativas de algumas
municipalidades, que vincularam a si os jograis e jogralesas, para controlar a
comunicação e a difusão de seus relatos. Quantos deles foram punidos — até
com a morte — pelo exercício de uma memória convincente que era percebida
como mais ameaçadora, pelas possíveis conexões com o prazer sexual [...] A
velha suspeita já, registrada na Grécia, no diálogo a que é exposto Tirésias
quando indagado sobre a ordem superior de prazer que as mulheres poderiam
ter. Parece voltar ao medievo a suspeita de que a memória potente das mulheres
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 61
A memória era perigosa e mais ainda se viesse da mulher que era submissa ao
homem. A memória era perseguida, pois pressentia-se nela um perigo, nela se manifestava a
liberdade de pensamento tão temida pela igreja e pelo poder:
Não se poderia deixar que a memória fosse compartilhada, pois assim ela seria
construída coletivamente e teria ainda mais força contra as instituições estabelecidas. Então,
deveria ser extirpada antes de se difundir. A memória seria perigosa e, dessa forma, quem a
tivesse possuiria um grande trunfo em suas “mãos”, pois a memória é um instrumento de poder.
Assim, deixar que a mulher recriasse sua memória “solta”, ou mesmo trabalhando,
era considerado um perigo para sua integridade e para a integridade de sua família, e do homem
que sobre ela detinha o poder, pois a traição era temida. E, portanto, a mulher era subjugada à
superioridade ativa do homem, que devia controlá-la, afastando essa tentação.
(2001, p. 24). É essa moral que perpassa a Antigüidade e que molda a moral Moderna, tendo
importantes influências na memória social.
Mesmo quando a mulher entra no mercado de trabalho, essa noção de controle está
implícita nas atividades que ela exerce. Podemos perceber isso na afirmação de Bruschini e
Amado (1988, p. 6): “De uma forma velada, o controle da sexualidade feminina justificaria, daí
por diante, que mulheres trabalhassem com crianças, num ambiente não exposto aos perigos do
mundo e protegido do contato com estranhos — especialmente os do sexo oposto.”
Até a independência do Brasil não existia educação popular, mas depois dela o
ensino, pelo menos nos termos da lei, se tornou gratuito e público, inclusive para mulheres. Isso
aconteceu a partir da primeira lei do ensino (datada de 1827) que deu direito à mulher de se
instruir (porém com conteúdos diferenciados dos ministrados aos homens) e que admitiu somente
o ingresso de meninas na escola primária (BRUSCHINI e AMADO, 1988).
• sentença de separação, para se avaliar o motivo que gerou a separação, no caso da mulher
separada;
• vestuário “decente”;
• a mulher só poderia exercer o magistério publico com 25 anos, salvo se ensinasse na casa
dos pais e estes forem de reconhecida moralidade. Ou seja, todos poderiam realizar o
curso de formação a partir dos 18 anos, mas havia uma diferenciação na hora de entrar no
mercado de trabalho (MARTINS, 1996).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 63
Essa valorização da moral tinha como objetivo tornar o ensino das mulheres voltado
não à instrução, entendida como formação intelectual, mas como uma tentativa adicional de
disciplinar sua conduta. Isso fica claro na análise de Catani (1997, p. 28):
[...] a ênfase do ensino feminino [era] nas boas maneiras, nas técnicas, na
aceitação da vigilância, na aparência, na formação moralista. Coisa adequada
quando o ensino fundamental se destinava às classes populares, pois o que
estava em jogo não era difundir as perigosas luzes do saber, mas disciplinar as
condutas e refrear a curiosidade.
Nessa época, o currículo do estudo feminino era diferenciado do masculino: as moças
se dedicavam à costura, ao bordado e à cozinha, enquanto os homens estudavam geometria. As
mulheres professoras eram isentas de ensinar geometria, mas essa matéria era critério para
estabelecer níveis de salário, portanto, reforçava-se com isso a diferença salarial. Assim, as
mulheres tinham direito à instrução, mas essa instrução acentuava também a discriminação sexual
(FREITAS, 2000). Contudo, apesar do estudo passar a ser um direito garantido por lei, a maioria
das mulheres não tinha acesso à instrução, com exceção daquelas que pertenciam às elites e às
classes ascendentes, pois a segregação da mulher continuava presente na sociedade.
único trabalho considerado digno para elas, e que podia ser atrelado às tarefas domésticas. A sua
instrução deveria ser “aproveitada” pelo marido e pelos filhos, portanto, teria que estar atrelada às
atividades do lar, conforme assinala Almeida (1996, p. 73), dizendo que a mulher deveria ser
instruída:
[...] de forma que o lar e o bem-estar do marido e dos filhos fossem beneficiados
por essa instrução.[...] Assim as mulheres poderiam e deveriam ser educadas e
instruídas, era importante que exercessem uma profissão — o magistério — e
colaborassem na formação de diretrizes básicas da escolarização manter-se-iam
sob a liderança masculina.
Todavia, a condução da educação não era exercida pelas mulheres, elas apenas
lecionavam. A estruturação da mesma, os cargos administrativos e de liderança, eram geridos
pelos homens. Dessa forma, havia um grande controle sobre a atuação das professoras, inclusive
sobre sua sexualidade. A escola continuava relegando a mulher a um plano secundário,
perpetuando a submissão existente na sociedade patriarcal.
Isso acontecia também porque quem cursava o normal até a década de 1940 não
podia ter acesso aos cursos superiores. Dessa forma, as mulheres (que já eram maioria nessa área)
dos institutos normais não podiam aumentar seu estudo e, assim, tinham que continuar no
magistério primário. Após essa década abriu-se caminho para cursar alguns cursos de Filosofia, e,
a partir de 1953, passou a se estender a ascensão aos demais cursos superiores.
Após a entrada maciça da mulher no magistério, o homem foi, até mesmo, impedido
de ingressar nos cursos normais. Confirma-se esse fato com o decreto 7941, promulgado em 1943
no Distrito Federal (que na época era a cidade do Rio de Janeiro), que criou uma nova
organização para o Curso Normal, proibindo o ingresso de pessoas do sexo masculino no Curso
Normal do Instituto de Educação do Rio de Janeiro (MARTINS, 1996).
Com isso, a desvalorização da profissão foi aumentando, junto com a justificativa de
que a mulher deveria ter o “dom” para o magistério e, assim, seu salário (que já era pequeno)
poderia ser menor, até porque esse dinheiro não seria para sustentar a família, pois caberia ao
homem essa função.44
44
Uma professora do IESK diz no seu depoimento, que esse ainda é o pensamento atual, já que o homem não pode
atuar nessa profissão porque ganha pouco e a mulher poderia ser professora, pois o seu salário não sustentaria uma
casa, seria só para suas “vaidades”.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 67
Entretanto, por mais que a educação tenha passado por algumas mudanças na prática
escolar, a feminização do magistério continua se perpetuando mais e mais, desvalorizando o
papel da mulher docente ano após ano. E o homem continuou se distanciando das salas de aulas
infantis e optando por trabalhar em outras áreas mais rentáveis, como as disciplinas específicas
(Matemática, História, Geografia, Biologia etc.) ou os cargos de comando na educação.
Além disso, o paternalismo ainda condiciona essa profissão. Podemos perceber isso
no comentário de Costa (1999), quando assinala que o professor é visto, na leitura dos artigos da
revista educacional “Nova Escola”, como o cientista, detentor do saber, e a professora como a
carinhosa, dedicada aos seus alunos e às atividades escolares.
Assim, essa revista e outros textos que circulam na nossa sociedade acabam por
promover a representação45 de que a mulher estaria sempre associada à afetividade, com um
déficit no raciocínio. Já o homem teria o domínio do saber técnico-científico, saber este tão
valorizado em nossa sociedade. As profissões também seriam escolhidas de acordo com essa
diferenciação: as profissões consideradas movidas pela emoção seriam próprias das mulheres e as
ligadas à inteligência seriam patrimônio exclusivo dos homens.
45
A representação é entendida como uma forma discursiva de instituir significados de acordo com critérios de
validade vinculados a relações de poder.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 68
A busca por uma profissão é sempre uma tentativa de unir uma necessidade imposta
pela sociedade (o trabalho) com algo que a torne prazerosa. Esse prazer geralmente é associado a
uma sensação de dever cumprido, a uma ligação emocional com a profissão exercida, ao
reconhecimento dado por outrem da importância do seu trabalho (e de que este foi bem feito) ou
à compensação financeira.
Como vimos, a profissão docente geralmente envolve todo um arcabouço social que
alude a uma “vocação”, a uma missão que deveria ser mais importante do que a própria
compensação financeira e que influencia o docente a pensar que é um “dom” pessoal, que ele
nasceu para isso. Bruschini e Amado (1988, p. 7) analisam a questão:
Isto significa que a sociedade, a cultura como um todo, sinaliza a todo instante
quais são os comportamentos esperados e aprovados para homens e mulheres.
Por meio da mídia, da literatura e até dos brinquedos, mensagens, imagens e
representações complementam o trabalho que consiste em prescrever como as
pessoas de cada sexo devem ser e comportar-se (CATANI, 1997, p. 40).
Os modelos de conduta oferecidos às normalistas no decorrer da sua vida induzem a
sua tomada de decisão profissional. Esses modelos que, conforme a epígrafe, são apresentados de
várias maneiras e a todo instante, acabam por ditar os comportamentos esperados e aprovados
para cada pessoa. As normalistas pesquisadas recebem esses modelos de formas diferentes e
agem sobre eles com reações diversas. Esses modelos e reações são analisados conforme são
invocados pelas normalistas entrevistadas.
Uma das formas que a epígrafe apresenta como maneira de a sociedade levar as
pessoas a terem o comportamento esperado — o brinquedo, ou a brincadeira — aparece no
depoimento de algumas das normalistas, que afirmam que escolheram sua profissão por causa das
brincadeiras infantis que fomentaram nelas o gosto por ensinar:
Desde pequena que eu ficava [...] brincando de escolinha e essa coisa toda
(normalista Anne).
Desde criança eu falava que queria ser professora, brincava muito de escolinha,
brincadeira de criança mesmo, mas depois que eu me formei eu vi que não era
bem isso que eu queria (normalista Bárbara).
Desde pequenininha também eu ensinava meu irmão, esse de 2 anos mais novo
que eu. Então quando eu tava aprendendo, eu tava com 5 aninhos tava cursando
o C.A., ele tava com 3 anos e ele já escrevia o nome dele com 3 anos de idade,
eu ficava ensinando pra ele, aí ficava 1, 2, 3 e meu irmão escrevia o 1, o 2 e o 3.
Então desde pequenininha eu tive esse... de brincar de professora “ah, vamos
brincar de professorinha” “eu sou a professora, vocês vão ser os alunos”, então
eu gostava de ficar escrevendo no quadro e ensinando para as outras crianças, as
minhas colegas que eram da minha idade que viam lá pra casa. Aí eu fui
crescendo e isso apagou da minha cabeça (normalista Rafaela).
Essas brincadeiras de ensinar e outras associadas à maternidade e aos cuidados
domésticos são impostas, imperceptivelmente, ao sexo feminino pelas instituições de nossa
sociedade, principalmente pela família. Porém, a mídia hoje também tem papel fundamental na
incorporação de um estereótipo feminino.
Eu tive essa professora que foi muito legal, [...] nossa! [...] na minha época de
alfabetização então, ela deu aquele choque ali pra gente sentir mesmo o peso. E
[...] a minha turma saiu totalmente alfabetizada no C.A. Então nós sabíamos que
nós tínhamos que ler perfeitamente, então aquilo foi, assim, me estimulando né,
que é tão gostoso você lidar com criança, saber que pode ajudar ela, e depois vê
daqui a uns 6 anos, ela já em cima, e gostando de estudar e progredindo e
pensando no futuro (normalista Rafaela).
No ginásio eu tinha uma professora que eu até me espelhava nela pra fazer
estágio e tal. Eu gostei muito do jeito que ela chamava a gente pra ter aula,
porque minha turma não era uma turma fácil e ela sabia dominar bastante
(normalista Bárbara).
Esse professor se torna um modelo profissional, um “mito”, que as normalistas
pretendem seguir e é um impulso fundamental para a escolha profissional, conforme demonstram
os autores a seguir:
Durante toda a história de vida escolar o aluno tem os mais variados estilos de
“professores”: reais ou virtuais (em livros, filmes, novelas, etc...) [...] Muitos
desses professores tiveram suas presenças apagadas das memórias dos alunos,
foram esquecidos. Outros foram definidores, nortearam caminhos e escolhas
pessoais e profissionais, tornaram-se modelos, mitos, lendas (KENSKI, 1997, p.
94).
Os modelos de professor são veiculados por todos os meios e ambientes de contato
das normalistas e fazem com que as normalistas optem pela carreira docente, se querem ser
aquele professor que nenhum aluno gosta, conforme um filme ou novela que assistiram, ou se
querem ser como aquele professor que se tornou um ídolo para uma classe. Esse poderia estar
presente em um livro, em um filme, ou, até mesmo, na sua sala de aula.
O “papel” dos outros espaços de vida em relação à profissão pode ser muito
diversificado. Os outros espaços de vida, nomeadamente o espaço familiar e o
social, podem ser um “limite”, um “contributo”, um “acessório”, em relação à
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 71
vida profissional. Mas se estes “papéis” podem ter um caracter dominante, pelo
menos em certas etapas da vida, nunca são exclusivos. Não têm um caráter
unidimensional (grifos da autora).
Também podemos entender a importância das várias instituições sociais na escolha da
carreira docente, e nas relações com uma profissão, no relato de uma normalista sobre o
nascimento da sua opção profissional:
Quando eu entrei lá [no IESK] eu ainda não tinha uma certeza do que que eu
queria, eu entrei aí eu comecei a estudar. Aí eu comecei a ver que eu gostava
realmente daquilo. Me interessei pelas coisas. Comecei a fazer estágio. Quer
dizer, aquilo tudo foi despertando em mim uma vontade de ser professora.
Então eu abracei mesmo a profissão, né, e to trabalhando nela até hoje.[...] acho
que lá dentro do Sarah mesmo eu conheci professores muito bons né, aí, quer
dizer, isso te impulsiona você a continuar naquela profissão. Foram os
professores de lá mesmo que me deram apoio e tal, e família, quando eu resolvi
entrar pro Sarah eles gostaram, mas não foi uma coisa imposta por eles não,
escolha minha mesma (normalista Joyce).
A família tem um papel decisivo na definição da opção profissional de um filho, pois
esta serve como exemplo ou indica a carreira que ele deve ou não seguir, impondo, muitas vezes,
uma profissão ou proibindo outra. A profissão não é escolhida somente por fatores pessoais,
próprios do indivíduo, pois sua escolha é permeada por várias influências sociais, que interferem
no sujeito desde o seu nascimento, conforme nos demonstra Fontoura (1995, p. 176-177):
Destaca-se aqui que os fatores interiores, que Fontoura ressalta no trecho citado, são
interpelados pelos incentivos, exemplos, ou mesmo imperativos ou imposições familiares. Ou
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 72
seja, a memória individual é influenciada pela memória social. Os relatos das normalistas
apresentam exemplos dessa interligação:
Minha mãe é professora, duas tias minhas, uma já falecida era professora depois
passou a ser diretora, a outra tia era professora e agora é escritora... [...] meus
pais, eles apoiaram, qualquer profissão, eles sempre falavam vai ser o que você
quer porque você tem que fazer o que você gosta pra você fazer com amor. [...]
Minha mãe fez normal, ela se formou em 75, acho que foi 75 [...] no Sarah
mesmo, só que não era o nome de Sarah, era instituto Campo Grande...
(normalista Anne, os grifos são meus).
[Meus familiares] gostaram [da minha escolha] porque minha tia era professora
e eles assim apreciam muito (normalista Rafaela).
Nesses relatos, percebemos que, apesar da profissão não ser imposta, ela foi
estimulada pelo exemplo e pela aceitação dos familiares, que apoiavam qualquer profissão que
fosse feita com amor. Um exemplo que provavelmente influenciou a escolha da instituição de
ensino também.
Porém, nem todos os relatos mostram uma aceitação pela normalista da escolha que
os familiares queriam que ela fizesse. Algumas normalistas recebem uma imposição dos pais e
parentes para que elas estudem o curso normal, e esse imperativo faz com que elas estudem
contra sua vontade, simplesmente porque essa foi a única opção que lhes restou:
Nem quando pequena, não me interessei por essa profissão não [...] Eu tinha
duas opções, ou estudava no Brizolão46 no Burle Marx na Ilha [de Guaratiba],
ou no Sarah Kubitschek, então eu preferi ir pro Sarah Kubitschek [...] Minha
mãe falava pra ir pra uma coisa técnica, que eu ia ter dificuldade depois de
arrumar uma, ter uma profissão. Para eu ser professora que se eu quisesse, um
dia, de repente, eu estudando eu passaria a gostar. Mas não foi bem assim. Não
me interessou não [...] Porque a opção que a gente tinha era o Sarah. Mas elas
[a tia e a mãe] também acharam... até hoje minha mãe acha que eu tinha que ser
professora. Mas eu não... é porque não me interessa mesmo [...] A minha mãe
gosta da profissão. Mas a mim não interessa. Quero fazer enfermagem [...] A
minha tia é professora [...] do Sarah e de um colégio no Correia47 (normalista
Aracele, os grifos são meus).
A oportunidade de ter um emprego leva a família a incentivar, com veemência, que a
moça estude o ensino médio em um curso profissionalizante, técnico, mesmo que este não tenha
nada a ver com o seu gosto. Podemos perceber esse desinteresse quando a normalista se refere à
46
Brizolões ou CIEPs (Centro Integrado de Educação Pública) são escolas que foram construídas no Rio de Janeiro
no mandato do governador Brizola e que têm uma arquitetura padronizada e diferente das demais.
47
Um sub-bairro de Campo Grande.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 73
docência através da negação: “não me interessei”, “não foi bem assim”, “não me interessou não”.
Ou na imposição da frase “eu tinha que ser professora”.
A minha mãe fala assim “ah, é bom que você só estuda, não se preocupa com o
serviço e o dia que você tiver que trabalhar, você já tá com o teu formado,
porque você vai trabalhar, você já terminou um degrau e você pode trabalhar, aí
se você quiser trabalhar e estudar, vai ser por conta sua, por enquanto eu não
queria que você trabalhasse”. [...] [Ela] sempre me incentivou muito a...procurar
assim, minha mãe fala assim “filha de pobre tem que correr rápido”, então se
tem um curso profissionalizante e um 2o. grau geral, você prefere fazer o quê?
Estudar 3 anos pra fazer uma faculdade, estudar 3 anos básico pra entrar na
faculdade. Ou fazer logo um profissional que você já sai dali com técnico em
alguma coisa, você já tem ali alguma coisa, um material pra trabalhar, pra poder
seguir em frente. A minha mãe sempre me incentivou muito a entrar no Sarah
porque entre os colégios que tinha, o Miécimo da Silva, eu não queria fazer
edificações, eu não queria fazer administração, eu não queria fazer
contabilidade, que não é muito a minha área. Então, como eu já tava pensando
“eu queria ser professora, mas dá pouco dinheiro, eu vou ficar trabalhando,
aturando criança, é muito chato, eu acho que não vale a pena” (normalista
Rafaela, os grifos são meus).
A escolha da profissão, nesse caso, acaba sendo feita pela exclusão dos outros cursos
profissionais ou técnicos. Acabou “sobrando” o curso normal, como a opção menos desagradável,
porém pouco rentável. A fala dessa normalista e a frase, citada anteriormente, da normalista
Aracele de que “a opção que a gente tinha era o Sarah” confirmam a tese que, como lembram
Bruschini e Amado (1988), o magistério ainda é um “gueto” feminino, principalmente em regiões
menos desenvolvidas, como pode ser considerado o bairro de Campo Grande.
Além disso, o magistério ainda é uma formação profissional que é feita no ensino
médio, ou seja, consegue-se formar e ter uma profissão antes de cursar uma faculdade e, como a
normalista afirma que “filha de pobre tem que correr rápido”, a família incentiva que se tenha
uma profissão o mais breve possível.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 74
Mesmo que o salário dos docentes não seja bom, a necessidade financeira torna a
profissionalização um ato urgente. No relato acima, a normalista quer dizer que o estudo para o
aluno menos favorecido deveria estar sempre vinculado à inserção imediata no mercado de
trabalho e, dessa forma, à sobrevivência e não ao gosto pelos estudos ou pela profissão.
Essa ligação entre estudo e algo feito sem prazer pode ser percebida em outro trecho
da narrativa de Rafaela, que mostra que o estudo (ou a leitura) não obedece o critério do gosto,
mas resulta de imposição: “vou fazer português-inglês, porque eu não gosto de literatura, eu não
gosto de ler muito, assim com freqüência, não gosto de livro, eu leio por obrigação e me dedico”.
Os percalços da vida das normalistas as levam para uma escolha que, geralmente de
início, não parece interessante, mas que, às vezes, precisa ser descoberta, com ajuda de exemplos,
que comumente se atrelam a conceitos de carinho, família e gosto:
Acabou que na 8a. série eu decidi: “mãe, eu vou entrar no Sarah, porque a minha
tia é professora, ela gosta muito. E nisso eu havia visitado a escola que minha
tia trabalha, minha tia falou assim “Rafaela, qualquer coisa você vai lá”. Aí eu
fui, no Artur Bernardes na época, ela dava aula pra uma turminha, eu assisti a
aula dela, eu fui lá, vi as crianças. Porque é gostoso também você ver o carinho
que as crianças pegam pelo professor, por mais que seja um ano só. No início
do ano elas ficam lá emburradas: “Ah, professora muito chata, isso e aquilo”,
mas depois elas vão assim “a professora é legal, eu gosto dela” aí elas começam
a demonstrar o carinho por você. Ai eu acabei decidindo entrar pro Sarah
mesmo porque era o que eu queria e seria melhor que eu estudar o segundo grau
geral, estudar química, física, biologia... tudo e, de repente, como a
concorrência está tão grande para universidade federal, eu não passar, eu ia, de
qualquer jeito, eu teria que entrar num cursinho preparatório pra poder entrar
na faculdade, aí não ia adiantar. Ia ser a mesma coisa [...] nadar, nadar e nadar e
morrer na praia (normalista Rafaela, os grifos são meus).
É importante refletir aqui sobre a ligação habitual que se estabelece entre o magistério
e o “amor”, pois ela, às vezes, significa um disfarce para que a professora não lute por melhores
condições de trabalho e de salário, conforme nos atentam Bruchini e Amado (1988, p. 11):
Vários dos trabalhos analisados referem-se aos efeitos da lei sobre o antigo
curso normal [5692/71], agora “magistério a nível de 2o. grau”. Tais efeitos
teriam sido negativos, trazendo para este curso mais e mais alunos e alunas não
interessados em se tornar professores/as: teriam feito esta opção para “escapar”
de disciplinas presentes nos demais currículos do 2o. grau, ou porque era
considerada a alternativa “mais fácil” para obter o certificado de conclusão do
2o. grau. Tratava-se freqüentemente dos estudantes menos bem preparados, e
provenientes em grande parte dos estratos mais baixos (grifos das autoras).
Essa relação também pode ser percebida através de outro relato que mostra que o
Normal não é considerado um curso destinado às pessoas inteligentes, às pessoas que podem
escolher outros cursos mais concorridos (como os das faculdades públicas). Dessa forma, quem
estuda para o magistério pode ser até mesmo discriminado pelos colegas, como aponta Rafaela:
do magistério às classes mais baixas, conforme demonstrei. Lembro que as órfãs, inicialmente,
eram as principais destinatárias das escolas normais. Isso acabou influenciando no salário que, no
decorrer do tempo, diminuiu cada vez mais.
Além de o acesso ser mais fácil, há a possibilidade dos formados acumularem vários
empregos, pois a atividade do professor de disciplinas (Português, Matemática, História etc.) não
tem uma carga horária extensa e pré-definida. Ele é disposto por horas-aulas, ou seja, o professor
pode trabalhar em vários colégios, cada um com uma quantidade de tempos e, assim, ganhar
mais, ou realizar outras atividades conjuntamente com o exercício da profissão docente.
É uma área gostosa, trabalhar com criança e tudo. Mas eu não quero ficar muito
restrita à criança não, eu quero progredir, dar aula pra jovens também
(normalista Rafaela).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 77
Eu tenho vontade de mais tarde, depois de fazer biologia tudo direitinho, tentar
fazer direito que é uma coisa que eu gosto, de impor né, a gente sempre gosta
de impor alguma coisa e o meu pai tem bastante coisa assim pra cuidar e aí eu
cuidaria apesar de ser uma coisa difícil eu tinha vontade de fazer. [não fugiria
da profissão] tentaria fazer as duas coisas [direito e professora de biologia].
[Meu pai] tem imóveis essas coisas assim e têm dois advogados que cuidam pra
ele, só que ele paga né, e aí no caso seria uma despesa a menos, e eu cuidando,
pagaria pra mim (normalista Anne, os grifos são meus).
Com relação à narrativa citada da aluna Anne, outro aspecto que pode ser analisado é
a importância atribuída ao fator “imposição”, ou ainda, ao exercício de um poder. A normalista
relata que a capacidade de impor uma decisão é um atrativo do curso de direito. Porém, pode ser
também um dos motivos de sua escolha pelo magistério, pois este é, muitas vezes, associado à
autoridade que um professor pode ter sobre os alunos ou sobre o conhecimento. A autoridade e o
saber geram poder e, já que ela não tem o salário que gostaria, esse “posto de comando” pode ser
tido como uma compensação almejada.
Meus outros familiares sem ser pai e mãe falaram que era loucura [a escolha
profissional dela] porque é uma profissão que não paga bem e várias coisas né
que eles falam, que não tem valor e por aí afora, mas os colegas nem... ficaram
falando “vai ser professora, vai estudar no Sarah” que o Sarah é muito mal visto
e só isso (normalista Anne).
Um outro referencial negativo que interfere e se introduz nas representações da
sociedade sobre a escolha do magistério é a comparação, na maioria das vezes depreciativa, da
normalista com a bagunça e a sedução, entre outros preconceitos contra o feminino que são
divulgados com freqüência. O discurso de uma normalista nos revela como acontece essa
repercussão no IESK:
como objeto de desejo masculino, um fetiche que Nelson Rodrigues mostra em vários de seus
livros — como, por exemplo, Perdoa-me por me traíres, Asfalto Selvagem e Engraçadinha —,
refletindo o imaginário masculino de que a normalista é a mulher que está sempre disposta a
realizar todo o tipo de desejo. Esse pensamento remetia ao uniforme que elas usavam, que na
época era até bem recatado (comparado com o de hoje), pois a extensão da saia ia até os joelhos e
a blusa era de manga longa. Mas, mesmo assim, era tido como provocativo aos olhos masculinos:
Ela teria o quê? Digamos uns quinze, dezesseis (ou catorze). No seu uniforme
colegial, meias soquete, saia azul, blusinha creme, tinha um olhar atrevido, um
jeito livre e ousado de erguer a cabeça e projetar o perfil e, ao mesmo tempo,
uma boca que parecia sempre prestes a beijar (Nelson Rodrigues,
Engraçadinha, apud MAGALHÃES, 1995).
O biografo de Nelson Rodrigues, Ruy Castro, diz para Magalhães (O Dia,8/6/95) que
o fascínio dos brasileiros pela roupa azul e branca ficou mais explícito a partir dos anos de 1940.
Isso pode ter acontecido, pois nessa época muitas mulheres cursavam o curso normal que estava
nos seus anos dourados (MARTINS, 1996) e tinha suas vagas ampliadas. Porém, essa associação
das normalistas com mulheres “atrevidas” tem sua origem há muito tempo.
Por outra parte, o uniforme também teria outro sentido: seria o indicador visível, ou o
símbolo, para a normalista, de seu sucesso nos estudos e conseqüentemente, na vida profissional,
conforme percebemos no trecho abaixo retirado de uma revista do Instituto de Educação do Rio
de Janeiro:
A você, nova coleguinha que, durante anos anteriores ao do seu ingresso neste
educandário, seguia com olhos admirados as normalistas que se cruzavam nas
ruas, achando que ficaria muito bem dentro daquele uniforme... a você que ao
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 79
A memória social registra esses preconceitos sobre a profissão docente, mas também
pode influenciar uma tentativa de mudança dessa memória submetida ao poder. Captar a história
profissional e social das ex-estudantes formadas no século XXI nessa escola se torna relevante
para que não se perca no tempo tal fonte de conhecimentos e investigações, e para registrar a
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 80
2.4 Professora versus professor: as considerações das normalistas sobre o professor homem,
um “corpo estranho” na profissão docente
Porque se você pensar bem, vamos lá pra sociedade machista. Na verdade o que
um garoto, hoje sai um garoto daqui com 18 anos, e aí ele vai dar aula pra turma
de 1a. a 4a, vai alfabetizar? Porque isso na índole do brasileiro machista, quer
dizer, isso não cabe, não é... não faz parte do homem: alfabetizar, dar aula pra
menininho [...] E eu tenho, aqui no Sarah Kubitschek, eu consegui formar pelo
menos 3 alunos que já estão dando aula no município, isso eu sei. Claro, alunos
que estão se dando bem, gostam da profissão, independente[...] da preferência
sexual ou não; estão dando aula e estão gostando disso, outros alunos até saíram
daqui pra fazer uma faculdade. Mas, com certeza, por exemplo, esses alunos
que entraram, que eu disse que agora só precisa ter voz e telefone, [...] alunos
homens que aqui entraram, vieram justamente pela quantidade de alunas que
estão aqui. Então aqui, como eu digo, é muito fácil ter namorada né, tá certo,
pra cada aluno tem pelo menos 200 alunas [...] A maioria dos alunos que aqui
formam, evidentemente não são pra ser professores, é pra ter um diploma, um
certificado de conclusão, de 2o. grau, do ensino médio (Diretor do IESK, os
grifos são meus).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 82
O relato seguinte nos demonstra como eles são mal vistos pela sociedade:
[Os homens não querem entrar no magistério] Por preconceito também né. E
como professor está ganhando pouco, como ainda se tem na cabeça que quem
tem que sustentar a família é o homem, ele não pode sustentar a família com o
salário atual que o professor ganha, então ele corre para outra coisa, ele prefere
ser camelô, porque ele ganha muito mais do que sendo professor [...] [O
preconceito] existe, porque eles acham que eles têm desvio de conduta, que
acham que quem estuda aqui tem desvio de conduta, tanto é que a gente nota
que quando o Sarah está desfilando, a gente ouve assim, agora pouco né, mas
assim “viadinho, viadinho!” [...] Com a necessidade, e com a desvalorização
[...] financeira, ta entrando todo mundo, educador ou não. E, no início entravam
mais — isso realmente foi constatado, que não sou eu que estou falando — [...]
os homens com os comportamentos assim mais delicados, foi isso que inclusive
que criou esse “clichê” de que o homem que está aqui é “delicado” (professora
do IESK, os grifos são meus).
Na verdade, conforme a entrevistada mostra, os homens se distanciam do magistério
porque ganhariam pouco. Receber um baixo salário não seria admitido para um homem (pois ele
tem que sustentar uma família), seria, até mesmo, uma desonra. Dessa forma, a discriminação
seria ocasionada também por esse fator. Porém, não posso negar que alguns dos homens que
escolheram ou que escolhem o curso normal são homossexuais, assim como acontece em várias
profissões. No relato acima nos é dito que antigamente era muito mais comum, porém não há
como saber se isso é verdade, ou se isso acontecia pelo fato de o preconceito ser maior, o que
fazia com que o homem heterossexual não escolhesse de forma alguma tal profissão. Para uma
sociedade “machista”, não é adequado ao homem o exercício dessa profissão, quem pensasse em
escolhê-la certamente logo desistirá dela pelo preconceito existente, até mesmo pela influência
48
Conforme assinala o diretor.
49
Não entrevistei alunos homens porque de início me interessava a memória das mulheres e das autoridades do IESK
sobre a feminização do magistério e a visão e as escolhas profissionais femininas. Porém, provavelmente farei uma
análise do lugar do homem no magistério em um outro trabalho.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 83
cerceadora de diversas instituições (família, igreja etc.). A opção pela docência aconteceria se o
homem gostasse tanto da profissão que pretendesse, através dela, lutar contra o preconceito.
O jogo do qual o homossexual participa, desde cedo e às vezes por toda sua
vida, foi construído pelo exercício dos poderes e aplicado, ao longo do tempo,
pelas instituições. Suas regras estão balizadas por várias formas violentas de
repressão, agressão, clausura, exclusão, abandono, perseguição, silêncio que
sabemos existir e que muitas vezes, de alguma forma ou de outra, já
experimentamos. Na sociedade pós-industrial, outra regra foi adicionada às
demais, e consiste na absorção, mito da integração e inserção, a título de
integração dos grupos minoritários como exercício de controle sobre eles.
Na fala da professora do IESK, percebemos que os rótulos atribuídos aos docentes
masculinos são baseados em:
• Uma suposta análise científica que diria que esses estudantes são “doentes” ou com
“desvio de conduta”.
• Ou mesmo na tentativa de não aludir a sua escolha sexual, como no fato de a entrevistada
não saber como chamar os homossexuais e acaba por descrevê-los como “delicados”.
Durante muito tempo o paternalismo, que é o berço da concepção machista que ainda
permeia na nossa sociedade (principalmente nas localidades menos envolvidas com os grandes
centros urbanos), gerou todo esse ideário de que a mulher teria a vocação para criar e educar
crianças, conceito que continua, na maioria das vezes, presente nos discursos das normalistas
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 84
entrevistadas, como é possível notar tanto nas suas opiniões quanto na sua compreensão do modo
como a sociedade vê a participação do homem na educação:
[...] é muito difícil encontrar homem né, que quer ser professor realmente e que
começa fazendo normal, que muitos fazem tipo o técnico né e não pensam em
ser professor e quando chega na faculdade e tem que [...] dar aula lá na frente,
tem que fazer seminário é que eles vão ver que têm jeito pra coisa, e que vão
ser. Mas é muito difícil o homem chegar, fazer o normal todo direitinho e ir pra
estágio e ensinar criança a fazer o be-a-bá [...] eu tinha professores homens na
oitava, de quinta a oitava e tinha bastante, tinha uns quatro [...] Isso acontece
por causa do machismo que até hoje ainda existe essa bobeira, o preconceito
[...] porque na minha família não tem ninguém que é professor, só professora
(normalista Anne).
Na fala dessa normalista podemos perceber que o homem, mesmo que tenha
condições para dar aula, pode não escolher cursar o normal por causa do preconceito que está
associado a ele. Assim, ele prefere fazer essa escolha na faculdade, para dar aulas da 5a série em
diante.
Nas entrevistas com as autoridades do IESK, fica claro que há diferenças no que
determina o ingresso ao magistério; mais exatamente, diferenças ligadas a questões de gênero: há
uma disparidade nos motivos pelos quais a mulher e o homem optam pelo magistério.
A professora entrevistada, uma das primeiras alunas do IESK, adota a docência quase
como se fosse uma atividade “natural” da mulher, atrelada à religiosidade e incentivada pelos
colegas da igreja, por seu dom de ensinar, apesar de a família preferir que ela fosse dona de casa:
[...] eu desde pequena freqüento a igreja Batista, então lá a gente lida muito em
aprender e ensinar, e eu vendo os meus professores da igreja e a convivência ali
com a dedicação, e também naquela época o que se apresentava para a mulher
era só ser professora. Na sociedade daquela época só podia ser professora ou
dona de casa, então foi nesse momento que escolhi (professora do IESK).
Dessa forma, mesmo que não seja de uma forma consciente, ela reafirma que o papel
da professora é exercer a educação como um sacerdócio, uma função religiosa. Essa concepção
há muito tempo tem sido divulgada nas representações sociais, assim nos esclarece Costa (1999,
p. 4):
Já o diretor afirma que fez opção pelo magistério depois de cursar a Faculdade de
Engenharia, pois percebeu que gostava realmente da atividade de ensino. Essa escolha foi
motivada também pela sua convicção política de tentar mudar alguma coisa através da docência.
[Ser professora é] Uma coisa meio de mãe assim, que eu acho que as mulheres
têm muito isso, de carinho, de atenção, eu acho que o professor ele tem muito
disso também, de cuidar, de estar guiando, de educar, então eu acho que pode
ter alguma ligação sim. É porque são poucos os meninos que tem lá [no IESK] e
os meninos [...] eles eram bons professores, mas era muito difícil aparecer
meninos pra lá, até porque rola todo um preconceito “ah, professora de 1a a 4a e
tal”, é um pouco complicado. Eu acho que pras mulheres isso, sei lá, tem uma
ligação mais forte. [Isso acontece] talvez sim pelo preconceito e pela falta de
ligação do homem com crianças assim, coisas de educar, porque alguns
meninos que tinham lá eles tinham vontade de dar aula, mas não pra criancinha
pequena, mais pra... estavam lá mais pra ter uma noção de conhecer mais as
crianças pra quando pegar eles mais tarde ter uma noção de como que foi aquela
criança. O que se passou na vida deles até aquela etapa. Eles tinham muito essa
visão (normalista Joyce).
Outra normalista demonstra que a mulher professora é associada com a mãe, com o
conforto do lar, assim a criança se “abriria mais”, ou seja estaria mais disposta ao diálogo e a
falar de seus sentimentos. Já o homem teria mais relação com o pai que seria “brigão e chato”:
Fica mais difícil [pra criança lidar com um homem], porque sei lá, eu não sei se
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 86
é porque o professor não tem aquele contato direto, o homem não tem aquele
contato direto com a criança, acho que a mulher demonstra mais assim, dá
mais tipo uma essência pra criança se juntar mais, pra se sentir em casa,
confortável e chegar pro professor e falar. Acho que o homem é, é muito
difícil, a criança fica mais travada “ah, é homem parece o meu pai”, é estranho.
Eu acho, assim, que a criança sempre tem aquela imagem assim, a mãe é a boa,
e o pai é o chato que briga, não é? Então eu acho que a professora tem mais
condições de lidar com criança, da criança explicar às vezes porque ta triste,
porque tem crianças que são muito choronas, que são complexadas em casa, tem
algum problema que afeta, então ela vive chorando, eu acho que é mais fácil ela
se abrir com uma professora do que com um professor (Normalista Rafaela, os
grifos são meus)
Conforme demonstrei essa associação da professora com a mãe e com o dom para
cuidar de crianças impera na sociedade há algum tempo e continua permeando as escolhas
profissionais e a memória dos professores.
A maioria [dos homens] foi pro comércio. Esses dias mesmo eu desci Campo
Grande e tinha um colega meu trabalhando numa farmácia, que estudou lá
também, e esse menino eu acho que não merecia uma farmácia, porque ele
também era muito inteligente, gostava muito da matéria, ele sempre sentou lá na
frente, mas não sei porque, às vezes é sorte que não ajuda [...] Eu acho que se
torna mais difícil prum homem porque ainda mais por ele ser novo, por ele só
ter cursado o Sarah, então as escolas particulares elas exigem (...) quem tenha
mais curso, e também depende da entrevista [...] É, mais por ele ser menino e
ser jovem, então, eles já vêem assim. Ah! Jovem hoje em dia não quer nada
[...]. Então acho que não é apto a [...] aplicar tudo que a escola exige. Eu acho
que pra mulher seria mais fácil (normalista Rafaela, os grifos são meus).
Mas esse pensamento de que o homem jovem é mais irresponsável é outro discurso
presente na sociedade e que pode acabar atingindo o homem e fazendo-o optar por outra área que
não lhe exija tanto estudo e dedicação. Uma normalista declarou que não há preconceito e que o
mercado de trabalho do magistério está mais aberto aos homens: “Acho que não existe
preconceito, porque tem tantos professores homens, acho que [...] hoje está bem aberto pra
professor e professora” (Normalista Bárbara).
Concordo com a opinião de que o mercado está mais aberto, pois há pouco tempo era
raro o homem que estudava no curso normal e que dava aula para criança. Porém, o preconceito
ainda está presente, apesar de não estar tão declarado e fixo como antigamente.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 87
Todas essas considerações mostram ainda que para muitas normalistas o magistério é
uma função feminina, porém isso não é um pensamento criado somente por elas, é uma
concepção que está na memória da sociedade em que elas vivem e que, de uma forma ou de
outra, acabam por influenciá-las, pois incute que o magistério é uma “profissão” que precisa que
o professor tenha cuidado, carinho e atenção, atributos que socialmente não são estimulados e,
muito menos, considerados inerentes ao homem.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 88
Vale ressaltar aqui que não questiono a opção profissional por “gosto”, pois, na
verdade, se me perguntarem porque sou professora, uma das respostas que eu daria seria a que
“eu gosto da profissão”, porém isso é diferente de achar que tenho uma vocação para essa
profissão ou um dom que nasceu comigo. Tenho consciência de que não são os fatores
biológicos, muito menos, exclusivamente pessoais, que levam uma pessoa a fazer escolhas na sua
vida, principalmente a opção profissional.
Almeida também considera que a profissão, apesar de ter sido desvalorizada com a
entrada das mulheres no magistério, continua a ser escolhida por mulheres que, apesar de tudo,
gostam da profissão, têm amor por ela. E não é esse fato que interfere nos preconceitos sobre o
magistério, pois gostar da profissão não impede de lutar para melhorar as condições de exercê-la:
[...] se por um lado educar e ensinar é uma profissão, por outro lado, não há
melhor meio de ensino e aprendizagem do que aquele que é exercido de um ser
humano para outro, isso também é um ato de amor. E indo mais além, gostar
desse trabalho, acreditar na educação e nela investir como indivíduo também se
configura como um ato de paixão, a paixão pelo possível [...] Talvez resida aí a
extrema ambigüidade do ato de ensinar e da presença das mulheres no
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 89
É necessário que a subjetivação que a sociedade exerce sobre a mulher não seja maior
do que seus impulsos pessoais e a vontade de lutar por ideais. Afinal, não há coisa melhor do que
fazer do seu ofício um prazer e um modo de batalhar pelo que se deseja.
É bom destacar que a memória coletiva não nos lembra que a docência foi profissão
masculina, e isso faz com que se ache natural a feminização do magistério. Assim, a memória
forma uma escolha inerente nas mulheres pelo magistério, conforme vimos nos relatos das
normalistas. A memória coletiva deve ser vista não só pelo vínculo com o poder, com seus
processos de subjetivação que tentam constituir o indivíduo para controlá-lo, e pela manutenção
da tradição que quer conservar cada um “no seu local”. Se a memória leva a esquecer as opções
que não foram efetuadas e a demarcar as eleitas, é preciso que as alternativas segregadas da
memória sejam lembradas ou que as escolhidas sejam objeto de uma maior reflexão, baseada na
luta pela formação de uma memória não subjetivada ou singularizada.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 90
Neste estudo é necessário escutar o que o outro pensa, conhecer suas idéias, seus
valores, sua singularidade e sua memória. Ouvir uma narrativa oral representa tanto compreender
o passado quanto testemunhar o presente, pois ambos se tornam alvo de reflexão no momento de
sua narração. Ou seja, quando alguém narra um fato acontecido o faz a partir de seu ponto de
vista atual. Assim, o presente também está imbricado nos acontecimentos passados que a pessoa
viveu e influenciou na sua tomada de atitudes. As teses de Pollak (1992) e de Lozano (1996)
elucidam que a oralidade50, enquanto fonte para pesquisas e estudos, permite historiografar o
tempo presente e obter conhecimentos dos processos histórico-sociais. Essa forma de pesquisa
sofre várias influências interdisciplinares, pois a oralidade não traz somente o ponto de vista
histórico, mas psicológico, social, coletivo etc.
Conforme Benjamim destaca: é preciso não esquecer que “a experiência de que a arte
de narrar está em vias de extinção [...] Uma das causas desse fenômeno é obvia: as ações da
experiência estão em baixa” (1985, p. 197-198). Neste sentido, é preciso dialogar com as
professoras formadas pelo IESK para que suas experiências venham à tona, no ato de relembrar
suas memórias.
A memória forma identidades, pois ela está estritamente vinculada com o poder e a
produção de subjetividades. O poder tenta perfazer o subjetivo para controlar as pessoas, esse
controle pode se dar na tentativa de estabelecer identidade fixas. Assim, Gondar aponta que
(2003, p. 32) “a memória pode ser um instrumento de poder. Todo poder político pretende
controlar a memória, selecionando o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido”. A
lembrança é um modo de constituir o sujeito, então, o poder político deve usar essa memória para
que não estejamos livres para lembrar de tudo o que quisermos, mas estritamente o que lhe é útil.
De acordo com Silva (2000), uma visão tradicional pensaria que identidade é o que se
é e a diferença é o que não se é, porém as duas coisas estão interligadas, pois só se é alguma coisa
porque não se é outras, e só não se é alguma coisa porque algo se é. Ou seja, a identidade e a
diferença são produzidas no contexto de relações culturais e sociais. É a partir do outro, que se
constitui a identidade. O outro é aqui entendido como aquilo que não é, o que se opõe ao próprio,
o negativo. Isto é, o outro é o diferente, de um sujeito ou de um grupo, aquele que se afasta das
características que identificam os últimos. Assim, identidade e diferença são termos relacionais.
O autor analisa que a identidade e a diferença não são naturais, não são inatas, elas
têm que ser produzidas pela linguagem, isto é, elas precisam ser nomeadas. Para se nomear uma
51
Foucault desenvolve a noção de sociedade disciplinar em diversos trabalhos, tais como: Microfísica do Poder
(1979).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 95
identidade,ela deve estabelecer o seu diferente, excluir o que ela não é, impondo e afirmando
aquilo que a caracteriza, que a torna si mesma:
A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua
definição — discursiva e lingüística — está sujeita a vetores de força, a relações
de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas [...] A
afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos
diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso
privilegiado aos bens sociais (SILVA, 2000, p. 81).
Foi esse tipo específico de poder que Foucault chamou de disciplina ou poder
disciplinar. E é importante notar que ela nem é um aparelho, nem uma
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 96
instituição, na medida em que funciona como uma rede que as atravessa sem se
limitar a suas fronteiras. Mas a diferença não é apenas de extensão, mas de
natureza (idem, p. XVII).
Esse poder disciplinar não se caracteriza por oprimir, por dizer não, mas sim por
individualizar as pessoas através de classificações, por isso, as identidades passam a ser sempre
baseadas na exclusão de outras identidades “diferentes”. Podemos perceber na educação, como
em outras áreas, uma valorização do especialista, que é o indivíduo que tem a sua identidade
profissional mais definida e têm maior poder de veicular a “verdade” na sua área.
O poder pretende que os sujeitos sejam úteis, portanto, eles precisam estar
“milimetricamente” controlados e adestrados para a produção na sociedade capitalista. O poder
disciplinar utiliza-se de várias estratégias para o controle das individualidades:
Se a identidade não é inata podem aparecer várias motivações para que ela seja aceita,
podemos perceber isso nos relatos das normalistas que justificam sua escolha profissional pelo
fato de gostarem de crianças, por falta de outra opção, por imposição da família, ou até mesmo há
aquelas que simplesmente abandonam a profissão.
Hall (2000, p. 106) diz que o termo identidade tem sido assolado atualmente por
muitas dificuldades conceituais, dessa forma, ele sugere um outro conceito — o de
“identificação” — para explicar o que seria atualmente a identidade: “a identificação é construída
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 97
De acordo com o autor, para criar nossa identificação somos influenciados pelas
práticas discursivas presentes na nossa sociedade que tentam nos enquadrar, mas também pelos
processos que produzem subjetividades. Subjetividade é o modo de conceber o mundo, não é um
atributo de cada um, não é uma identidade. A subjetividade é um certo modo de sentir, de querer,
de olhar, de perceber as coisas, que é produzida por determinados mecanismos e configura certos
meios sociais.
Ou seja, subjetividade é tudo que faz com que o indivíduo, ou a coletividade, exista,
se auto-afirme e relacione com outros indivíduos ou outras coletividades que também têm sua
subjetividade. Guattari (1992, p. 14) especifica alguns componentes que influenciam na
heterogeneidade da formação das subjetividades: “1. componentes semiológicos significantes que
se manifestam através da família, da educação, do meio ambiente, da religião, da arte, do esporte;
2. elementos fabricados pela indústria da mídia, cinema etc.”, entre outros.
Percebemos, nas falas das entrevistadas, os signos que circulam na sociedade e que
contribuem para a formação de nossa subjetividade através da regulação de comportamentos,
ações, pensamentos, respostas às regras sociais etc. A subjetividade é um conjunto de funções e
atitudes que levam o indivíduo a se reconhecer enquanto sujeito. Segundo Mance (1998):
52
Gilberto Velho (1994) nos remete às sociedades atuais como sociedades fragmentadas, pois estas levariam à
individualização dos sujeitos, colocando a identidade individual como valor básico e deixando os sujeitos
fragmentados, nos diversos grupos que atuam, nos diversos papéis que adotam.
53
O devir é um processo, algo em permanente transformação e que nunca está concluído, é um vir a ser, é um jogo
de forças que possibilita as mudanças.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 100
Contudo, o preconceito54 que afirma que esta seja uma profissão feminina ainda não
decaiu totalmente, ele continua vigente, pois a carreira do magistério tem sido um campo
vinculado cultural e historicamente ao gênero feminino. E a inclusão dos homens no magistério
infantil ainda é muito baixa, principalmente em uma área que vive baseada nas tradições locais.
Atualmente, apesar de perceber que todas as instituições que sustentam a sociedade disciplinar
estão em crise e a questão da identidade também, em Campo Grande, essa tendência ainda não
aparece, pelo menos de maneira clara. O modo que o poder circula em Campo Grande produz
subjetividade de uma forma determinada, nesse sentido, o lugar do homem e da mulher são bem
definidos e lhes são atribuídas funções bem características para cada um deles. É como se Campo
Grande retratasse uma sociedade mais tradicional, que difere da nova maneira social que Hardt
afirma estar assolando o mundo. A narrativa do diretor do IESK nos ajuda a analisar como essa
subjetivação acontece no bairro:
Em Campo Grande, o fato de a mãe ainda ficar em casa educando os filhos transmite
um modelo para a filha, um padrão que é seguido desde a infância, pois a menina deve ajudar na
criação dos irmãos mais novos. O pai, por sua vez, é aquele que sai para trabalhar. Essas
influências criam uma subjetividade na mulher que acaba por considerar “natural” que cabe a ela
cuidar de crianças. Isso faz parte do modelo disciplinar, pois os papéis são bem definidos e fixos.
Não vou afirmar que o sistema disciplinar não está em crise em Campo Grande. Na
realidade, todos os valores hoje em dia estão em transição e, com os meios de comunicação
atuais, é impossível ficar alheio ao que acontece no mundo. Mas, por causa da sua pequena
54
Presente na sociedade e nas narrativas dos entrevistados.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 102
ligação com outros bairros, o mecanismo disciplinar ainda continua vigente nesse “microcosmo”
55
. As famílias ainda pensam que as filhas têm que entrar no IESK e lhes impõe isso.
Nesse espaço disciplinar, a mulher deve ser professora e o homem deve ser técnico.
Curiosamente, o instituto normal e o colégio técnico de Campo Grande ficam próximos um do
outro, mas são colégios distintos. A impressão que se tem é que alguém quis demarcar claramente
dois lugares que não se confundem: aqui é o local de homens e ali o de mulheres.
A instituição não exclui os homens, pois estes podem entrar no IESK. Quem exclui?
É a subjetividade que exclui. Os professores concebem o mundo de uma determinada perspectiva.
Mesmo que a entrada dos homens seja permitida oficialmente, esta vai infringir noções que
permeiam o imaginário coletivo.
Por isso, é preciso tomar cuidado e perceber que não é a inserção de homens em
profissões consideradas historicamente femininas e de mulheres em profissões historicamente
masculinas que vai possibilitar uma reflexão e uma escolha profissional que valorize as
singularidades dos indivíduos. Ao contrário, isso pode até significar maior submissão ao que o
mercado deseja e a depreciação não só do salário feminino, mas também do masculino. Não
podemos acreditar que a entrada do homem no magistério infantil resolveria o problema da
desvalorização da profissão.
55
Como se houvesse uma pequena sociedade ali, um coletivo que vai atribuir lugares definidos ao homem e à
mulher, entre outras subjetivações.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 103
Gondar (2003, p. 37) nos aponta que a resistência contra as sociedades disciplinares
poderia ser feita através de
Se a afirmação das identidades dos explorados era a resistência possível à lógica das
sociedades disciplinares, ela não é factível nas sociedades de controle. A resistência ao Império
seria a criatividade, assim como defende Gondar (2003, p. 40): “A memória não é lugar de
conforto ou de compensação pelas perdas identitárias; ela está sujeita à mudança, e a lógica das
redes não é incompatível — bem ao contrário — com a possibilidade de rememoração criativa.”
Já que foi dito que a lógica presente em Campo Grande ainda é disciplinar, será que
estaríamos sendo contraditórios se disséssemos que a criatividade é a forma de resistência dos
professores? Não seria melhor resistir afirmando uma identidade dos explorados, assegurando
uma identidade das professoras, dizendo que elas são realmente mais emotivas?
56
Ver, por exemplo: História da Sexualidade III: O cuidado de si. (FOUCAULT, 1985) e Resumo dos Cursos do
Collège de France (FOUCAULT, 1997b).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 105
Gondar (2003, p. 34) também analisa como essa possibilidade aparece nas últimas
teses de Foucault58:
57
Uso esse termo com o sentido de desviar do seu curso e fazer provir, originar algo novo. Estar na deriva é como
estar em um espaço paralelo onde é possível recriar realidades, se recriar.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 106
Nas sociedades modernas para que haja produção é preciso que existam indivíduos
com identidades fixas referentes a diferentes funções: indivíduos que sirvam como agentes do
controle (o professor é um deles) e que sejam ao mesmo tempo controlados. A professora do
58
Principalmente no História da Sexualidade II: Uso dos prazeres e também em História da Sexualidade III: O
cuidado de si.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 107
IESK entrevistada desconhece que aquele que exerce o magistério é também um agente de
controle, corroborando ainda mais essa função dominante ao considerar que a profissão necessita
de uma especialização cada vez maior:
o educador não pode ficar para trás, porque suas informações ficarão obsoletas,
o seu ser [...] Ele é um agente, e o agente ele só pode agir se ele tem algum
conteúdo, não porque a lei está obrigando, é porque há necessidade.
Realmente, o agente deve ser especialista da sua área para poder determinar as
verdades e os comportamentos esperados. Mas poderia também questionar esses padrões. Neste
sentido, a subjetividade não seria somente assujeitada (voltada à produção de identidade), mas
relacionada à formação de uma singularidade, como propõem Guattari e Foucault. A
singularidade significa a maneira com que cada indivíduo vai receber essa subjetividade e que vai
produzir ou criar a partir dela. Hall (2000) demonstra que não é necessário somente que existam
leis, regras e modelos para que o indivíduo se subjetive, e sim que hajam respostas por parte do
sujeito e nelas pode estar a resistência e sua possibilidade de instaurar um novo olhar.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 108
Pereira (2000) nos demonstra que a “professoralidade” não é uma escolha feita
seguindo um modelo, mas uma “diferença que o sujeito produz em si”. Essa diferença representa
uma vontade de mudar, representa convicções. A escolha pela docência não pode ser puramente
influenciada por um modelo social59, mas por algo próprio do indivíduo:
59
Que, na nossa sociedade, está muito associada à mulher e seu “dom” da maternidade.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 109
Há também um tom de nostalgia na fala da professora, já que ela relata que o ensino
de antigamente era realmente bom. E qual era o ensino de antigamente? O mais disciplinar e
tradicional possível, onde as crianças não questionavam, somente decoravam. Pode ser que
realmente elas aprendessem mais conteúdos, mas também eram ensinadas a obedecer sem
discutir. Já na narrativa do diretor, percebe-se que a função do professor pode ser a de criar uma
deriva, uma forma de modificar a sociedade, um questionamento, um devir.
Eu fiz várias entrevistas este ano com alunas que não foram indicadas para o
Sarah Kubitschek, e aí eu perguntava “você quer ser professora?” [a resposta
era] “ah, eu adoro criança” [...] [O rapaz diz] “eu quero ser professor porque eu
quero ensinar”, mas nunca um rapaz disse “eu adoro criança, eu gosto de cuidar
de criança”. Então, eu acho que as meninas quando vêm para cá, é porque
gostam de crianças, ou porque gostam mesmo, ou [...] [porque é da] cultura
dessas famílias aqui da periferia, é porque a menina é quem tem que cuidar da
criança.
A mulher toma para si a identidade propagada pela sociedade de que ela tem que ser
professora por gostar de criança, já o homem percebe a profissão como um meio de ensinar algo,
de transmitir conhecimento. Quando o diretor diz que as meninas podem gostar mesmo de
criança, é porque a produção da sua subjetividade a construiu dessa forma.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 111
A identidade feminina acaba sendo desvalorizada por esse lado maternal e emocional.
Assim, o próprio ensino primário também é desvalorizado diante de outras profissões, como a de
advogado, de engenheiro etc. Exclusão que se faz pelo salário (afinal quem trabalha por gosto,
sacerdócio, ou hobby, não precisa de dinheiro), pelo status e até mesmo pela denominação
“carinhosa” que é conferida a essa profissão: a tia.60 O questionamento do rótulo “tia” aparece na
narrativa do diretor, demonstrando como esse termo deprecia a professora e lhe nega a posição de
uma profissional:
Mas, pode ser que a recusa seja uma tentativa de não se submeter às injunções do
poder que tentam colocá-las em uma fôrma identitária, ou seja, como a melhor forma de escapar
60
Sobre a questão da exclusão e do menosprezo que está presente na denominação da professora como tia e na
definição do magistério como dom e sacerdócio feminino ver: Professora Sim, Tia Não (FREIRE, 1994).
61
Que é a profissão mais seguida pelas normalistas formadas que saem da profissão do magistério, tanto por não
quererem exercê-la quanto por não conseguirem emprego como professoras.
62
Não estudei a introdução da mulher na enfermagem, mas essa é uma profissão feminizada há um bom tempo,
talvez por que ela também esteja ligada ao cuidado das pessoas.
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de uma “identidade fixa”. Pois, através dessa recusa, correm o risco de cair em um outro caminho
que não é aquele que as leve ao seu próprio objetivo, à sua singularidade. Esse caminho, na
verdade, pode ser tão subjetivador quanto o outro.
Costa (1999) nos ajuda a analisar como os discursos sobre as professoras fabricam
uma identidade. Porém, é também por meio do discurso que as professoras podem reagir:
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E não na afirmação do discurso alheio ou dominante, pois aceitar esse discurso é aceitar ser dominado por ele.
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O que se deve procurar é uma singularidade, que seria uma busca constante das
docentes com suas opções individuais e escolhas, e que faria cada professora ter o seu modo
singular de ser, ou seja, cada pessoa assumiria sua diferença.
Devemos afirmar que não existe uma diferenciação da professora como mulher
carinhosa e afetuosa, e do professor como homem racional e pesquisador, mas diferenças entre
pessoas. Pessoas que lutam por seus ideais e que querem que a educação tenha seu valor, que não
seja uma missão, e sim uma potencialidade.
Mas será que isso não traria a falta de união entre os professores, pois levaria cada um
a ficar centrado em si mesmo?
Não, pois não proponho que cada um se oponha às regras sociais, à identidade
estática, e procure o seu singular sozinho. Ao contrário, incentivo a singularização a partir da
união e da troca de experiência (conforme a prática de si de que fala Foucault) que está presente
nas narrativas e nos discursos das normalistas e dos professores.
A memória não é estável, ela pode ser alvo de reflexão e modificação. O senso
comum acha que somente recuperamos dados da nossa memória, mas nós também pensamos e
repensamos sobre eles. É esse o papel que as professoras formadas pelo IESK têm que tomar para
si: a re-elaboração das lembranças que nos foram passadas pelo social, pois esses elementos são
importantes, mas não podem ser tomados como únicos.
Não existe memória totalmente individual, pois ela atinge o sujeito na sua expressão
coletiva, a partir de mecanismos sociais. Para reformular a memória recebida da sociedade faz-se
necessário ligá-la à singularidade, a uma reflexão de si mesmo, sendo que essa reformulação só
pode ser feita com a ajuda de seus pares.
O professor pode se unir para repensar coletivamente sua memória social, se abrindo
para uma nova forma de sentir, de querer, de olhar, de perceber as práticas que tentam enquadrá-
lo, identificá-lo, como se fosse uma tarja magnética em que todos são iguais. Proponho uma luta
contra o determinismo do poder, um embate feito em conjunto, afinal se não há memória
totalmente individual, como a memória pode ser modificada se não for pelo coletivo?
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 115
Considerações Finais
Por meio de minha memória, percebo que a docência não é uma escolha de cunho
pessoal, que dependa exclusivamente de cada um. Todas as lembranças, caminhos e atitudes que
tomei foram influenciados pela memória social, ou seja, só pude me tornar quem eu sou devido
às pessoas com que lidei e que me deixaram lembranças, aos obstáculos pelos quais passei e a
forma como os enfrentei.
seu comércio (o que dispensa a ida a outros bairros). Esses atributos induzem a continuidade dos
costumes já conhecidos e a valorização dos divertimentos que o lugar dispõe.
Incomoda-me essa falta de contato com outros bairros e com outros costumes, acho
importante fazer opções e não ficarmos limitados a aceitar o que já está estabelecido. Esse
incômodo aparece também no discurso de uma normalista, porém não é geral. A memória
divulgada pela comunidade exalta somente os hábitos locais.
A memória social dos moradores de Campo Grande está fortemente impregnada dos
valores locais, de seus costumes e espaços de contato. É impossível deixar tudo isso de lado, pois
o social a todo momento nos interpela. Para criar o novo, é preciso deixar de apenas acolher o
que é veiculado. É importante para o professor que ele também se abra ao conhecimento de
valores gerais e que não se restrinja apenas ao seu círculo de ação. Essa postura o habilitará a
incentivar os alunos a questionaram seu contexto de vida e suas memórias.
entanto, também deve proporcionar conhecimento dos vários tipos de costumes para que o
tradicional possa ser questionado e para que surjam outras opções. A memória local é importante,
mas não é a única, tem que ser apreciada, porém não de uma maneira cega e distanciada de todo o
contexto social.
Não é só o bairro que influencia as normalistas, um outro fator importante para que
elas optem pela sua profissão é a feminização do magistério, cuja origem remonta ao interesse de
a classe dominante obter mão-de-obra mais barata e submissa. A entrada feminina no mercado de
trabalho foi sendo socialmente aceita aos poucos, através de justificativas “naturalistas” que
invocam diferenças biológicas para vincular a mulher a essa profissão.
Ou seja, não foi só em Campo Grande que essa memória relaciona a mulher com o
magistério. Paulatinamente, a mulher foi tomando conta do magistério infantil (da 1a à 4a séries),
pois ela é que teria a vocação para tomar conta de crianças e, assim, educá-las. Esse discurso é
internalizado pelas normalistas de diversas maneiras: por instituições como família, igreja e
escola, pelos meios de comunicação e, até mesmo, pelas brincadeiras que elas escolhem.
O percurso de minha escolha profissional envolve estímulos familiares, mas tem algo
de singular, de pessoal, que foi a busca por lutar por uma educação mais crítica, que permitisse
uma consciência da submissão que sofremos. Também não tive professores-modelo que me
motivaram à docência, nem me considerava com o dom para o magistério ou capaz de ser
professora por gostar de crianças. A minha opção pela docência não foi originada de uma
necessidade de emprego, mas de uma vontade de lutar para que a educação se desvinculasse da
sujeição e da formação de identidades fixas que diferenciam os papéis na sociedade.
tendo em vista que as disciplinas não tinham tanta importância, o mais importante era ser mulher
e gostar de crianças. A mulher também poderia aceitar uma baixa remuneração no seu trabalho,
tendo em vista que não almejava sustentar a família, mas sim seus luxos.
O curso normal fica na memória social associado à simplicidade dos estudos, à baixa
remuneração, à feminização, mas também é tido como um curso da mulher devassa, sedutora,
pois esse discurso está associado a uma atividade na qual as mulheres se libertaram e entraram no
mercado de trabalho. Esse movimento não era bem visto socialmente e acabou tomando
proporções depreciativas no imaginário popular (o que perdura até os dias atuais).
O discurso do diretor e da professora do IESK nos mostra que a memória social está
permeada pelo preconceito contra os homens, já que eles aparecem como incapazes para o
magistério ou como homossexuais: um homem que se preze não opta por uma profissão que não
dê para sustentar a família e que lide com aspectos “femininos”. Esse pensamento não somente
contribui para que as mulheres prefiram fazer o curso normal nessa instituição como também, de
acordo com as narrativas das normalistas, faz com que elas percebam o homem como não
possuidor do dom para lidar com crianças e como um renegado do mercado de trabalho.
Deste modo, o magistério é percebido como uma profissão feminina que necessita de
atributos — cuidado, carinho, afeto e atenção — que não são exaltadas nos homens e que, muitas
vezes, lhe são negadas. Assim, faltaria a eles o “dom” feminino da “maternidade” ou do cuidado
com as crianças. Esse pensamento não provém unicamente das normalistas, pois elas recebem
esse discurso da memória social que lhes é transmitida e acabam incorporando-o.
Há uma diferença entre achar que nasceu com “dom” ou com “vocação” para o
magistério e o gostar da profissão. É importante o apreço pela profissão e por crianças. Mas, é
necessário que se faça uma reflexão a respeito da memória que é transmitida à mulher. A escolha
profissional pode ser encarada como a possibilidade de formar uma alternativa singular.
determinada subjetividade. Hoje, apesar da crise que atinge todas as instituições disciplinares e
dos questionamentos sobre a identidade profissional, as estruturas que sustentam o poder
disciplinar ainda não foram suficientemente abaladas, ainda não sofreram “terremotos”
devastadores.
A memória e as escolhas da vida devem ser relacionadas ao amor ao que se faz, pois
nada melhor do que trabalhar com o que se gosta. Deve existir uma paixão que não seja cega, que
possibilite enxergar as determinações sociais. O indivíduo deve lutar por sua oportunidade de
escolha, ressaltando as individualidades, as habilidades de cada um, e também os empecilhos
sociais que poderiam enfrentar. Proponho uma memória da paixão ao invés dessa memória da
submissão que é exaltada pelo poder disciplinar.
Garantir que não existe uma identidade docente única implica resistir: a valorização
profissional não será adquirida pela formulação de uma identidade, ela apenas excluirá outras
formas de ser professor. A proposta é que cada um possa trocar com o outro maneiras de ser e
tentativas que deram certo.
Não há uma fórmula para ser professor. O professor que consegue atingir seus alunos
é aquele que é flexível e que busca novas formas de ensinar, que assume suas individualidades e
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 120
procura um modo singular de ser diferente. Essa diferença não se apresenta na masculinidade
(que estaria associada à racionalidade e à busca do novo) e na feminilidade (que teria o afeto e o
carinho), mas na diferença entre as pessoas que lutam por suas individualidades e pela
valorização da sua profissão.
Essa busca não é feita sozinha. Proponho uma singularização a partir da união e da
troca de experiência, que está presente nas narrativas e nos discursos das normalistas e dos
professores. Sugiro em vez de uma identidade docente, uma “professoralidade” que não se baseia
na memória social que é divulgada sobre o professor, na subjetivação que nos é imposta, mas na
diferença que o sujeito produz em si, algo que venha de dentro do indivíduo. Uma diferença que
tem a pretensão de transformar e de criar ideais.
A professoralidade não faz parte de uma memória coletiva, nem individual, é uma
forma de singularidade, uma maneira de discutir modos de ser e construir uma coletividade em
que não se pretenda que todos sejam iguais, em que não se aceitem estereótipos, pois isso é uma
utopia ensejada pela sociedade disciplinar: os discursos mostram que há outras possibilidades de
ser professor, o que aconteceria se fosse possível o debate e a circulação das memórias das
diferentes experiências de professores (que não são estáticas e homogeneizadas como uma
identidade).
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Anexo
Roteiro de Entrevistas
Alunas
Eixo 1: As normalistas e a relação com o local, como Campo Grande se insere nas suas vidas e
vice-versa
• Local de nascimento
• Local (ou locais) de moradia durante sua vida
• Locais de diversão
• Opinião sobre Campo Grande
• Local de moradia das colegas
Perguntas norteadoras
• Onde você morava enquanto estudava no IESK? Você sempre morou nesse lugar?
Continua morando lá atualmente?
• Quais os lugares você freqüentava para se divertir, encontrar com os amigos, parentes...?
• Quais os aspectos positivos e negativos que caracterizam Campo Grande?
• As suas colegas de classe do IESK moravam aonde?
Perguntas norteadoras
• Em que momento da sua vida você decidiu se tornar professora? Você lembra dos
motivos da escolha?
• O que a sua família e seus amigos acharam da sua escolha? Eles a estimularam a tornar-se
professora?
• A sua condição feminina influenciou nesta escolha? Você acha que a docência está ligada
ao feminino?
• Motivos da escolha pela instituição e visão sobre a mesma antes de estudar nela
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Perguntas norteadoras
• Por que você escolheu estudar no IESK?
• Qual a idéia que você tinha do IESK antes de estudar nele?
• Pelas conversas que você teve com suas colegas de classe, elas tiveram os mesmos
motivos – ou outros – para estudar no IESK?
• Estudavam muitos homens com você? Porque você acha que isso acontece – a quantidade
de professores homens ser grande ou pequena?
• Qual a sua idéia atual do IESK?
Perguntas norteadoras
• Você sabe que a nova LDB escreve que a partir de 2006 só aceitará professores formados
em nível superior. O que isso muda na sua vida profissional, qual será sua atitude com
relação a isso?
• Antes de estudar você trabalhava?
• Você já trabalhou como professora? O que você achou da experiência?
• Você continua ensinando? O que você está achando?
• Você já pretendeu – ou pretende mudar de profissão?
• E as suas colegas de classe, você acha que elas querem continuar na profissão? Porque?
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Autoridades do IESK
• Como o senhor (a) encara, enquanto diretor (professor) do IESK, a formação dos
professores? Quais os seus objetivos fundamentais nessa formação?
• O IESK estar localizado em Campo Grande lhe atribui algumas características com
relação a outras escolas normais, situadas em outros bairros do RJ?
• Na sua opinião, o que leva os estudantes desse instituto a escolher a profissão docente?
• Qual a percentagem aproximada de homens formados pelo IESK? Na sua opinião, porque
acontece essa disparidade?
• Onde mora a maioria dos alunos do IESK?
• Pelas suas informações, os alunos formados pelo IESK continuam trabalhando em CG ou
vão trabalhar em outros locais? Continuam na docência ou optam por outra profissão?