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AMANDA OLIVEIRA RABELO

A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DO IESK DE CAMPO GRANDE/RJ

Rio de Janeiro
2004
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 1

AMANDA OLIVEIRA RABELO

A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DO IESK DE CAMPO GRANDE/RJ

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em


Memória Social da UNIRIO, como requisito para
obtenção do título de Mestre, orientado pelo professor
Dr. Miguel Angel de Barrenechea

Rio de Janeiro
2004
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 2

RABELO, Amanda Oliveira. A memória das normalistas do IESK de campo grande/RJ. 124f.
Dissertação de Mestrado – Mestrado em Memória Social e Documento, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.

R114 Rabelo, Amanda Oliveira


A memória das normalistas do IESK de Campo Grande /RJ./Amanda Oliveira
Rabelo. – Rio de Janeiro, 2004.
124 f.

Orientador: Miguel Angel de Barrenechea.


Dissertação apresentada para obtenção do grau Mestre em Memória Social e
Documento, 2004.

1. Instituto Sarah Kubitschek (RJ) – aspectos sociais. 2. Professores de ensino


de primeiro grau – formação – aspectos sociais. I. Barrenechea, Miguel
Angel. II. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003 -).
Centro de Ciências Humanas. Mestrado em Memória Social e Documento.
III. Título

CDD 370.710981
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 3

AMANDA OLIVEIRA RABELO

A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DO IESK DE CAMPO GRANDE/RJ

Avaliado por :

Prof. (a) Célia Frazão Soares Linhares

Prof. (a) Jô Gondar

Prof. (a) Miguel Angel de Barrenechea

Data: 06/ 04 / 2004

Rio de Janeiro
2004
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 4

DEDICATÓRIA

A MEU NOIVO QUE APOIOU TODO O


MEU ESFORÇO PARA REALIZAR ESSE
TRABALHO.
AOS MEUS PAIS QUE ME AJUDARAM
DURANTE MINHA VIDA.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 5

AGRADECIMENTOS

AO MEU ORIENTADOR.
AOS ENTREVISTADOS QUE TIVERAM
BOA VONTADE AO CEDER OS
DEPOIMENTOS.
AOS PROFESSORES DO MESTRADO E DA
GRADUAÇÃO.
AOS AMIGOS QUE ME APOIARAM NOS
ESTUDOS E NA DISSERTAÇÃO, COMO
MARIA AMÉLIA E ELISÂNGELA.
E A TODOS AQUELES QUE CONTRI-
BUÍRAM COM ESTA DISSERTAÇÃO.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 6

Da mesma forma que há um modo masculino de ver e


conceber o mundo, entre as mulheres existe o que se
pode nomear de uma “visão feminizante do mundo”, ou
seja, um modo peculiar de enxergar, de conceber o
mundo e suas relações, que é produto da internalização
e da consolidação de valores, hábitos, crenças, modos
de pensar e de ser, a que cada mulher está sujeita, e que
constitui um trabalho que é processado durante toda a
nossa existência. (...) Esses modos de ser e de viver são
peças que compõem as histórias de vida destas
mulheres, professoras alunas e que, seguramente, têm
muitos traços em comum com outras histórias de vida
de outras mulheres, alunas ou professoras. (...)
influências variadas tiveram e ainda têm lugar. Família
e escola são os espaços onde se educa e se constrói a
mulher e, mais adiante, a professora.

Catani
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 7

RESUMO

Este trabalho tenciona analisar a memória das normalistas do Instituto Sarah Kubitschek (IESK) a
partir das influências de seu local de formação e moradia. Pretende-se, com isso, elucidar como
se deu tanto a motivação de sua escolha profissional quanto à constituição de sua singularidade.
Indagar-se-á a geração da memória das normalistas do IESK visando esclarecer os processos de
subjetivação que contribuíram para a construção social dessas professoras, enquanto
profissionais. A metodologia escolhida nessa investigação é a captação de narrativas orais de
algumas normalistas, visando detectar os motivos pelos quais elas escolheram sua profissão e
optaram especificamente pela referida instituição. Na fase inicial dessa pesquisa, foi possível
constatar os principais motivos para a escolha da profissão. Com destaque para a possibilidade de
uma inserção rápida no mercado de trabalho e a feminização da profissão do professor,
estimulada pelas instituições e pela sociedade. Tais motivos permitem explicar como as
memórias das normalistas associadas às instituições e aos espaços pelos quais elas passaram
levam à produção de subjetividades, mas também instauram a possibilidade de se criar uma
existência singular.
PALAVRAS-CHAVE: Memória; espaço; formação de professores; gênero; subjetivação;
singularização.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 8

ABSTRACT

This work intends to analyse the memory of the IESK normal school students, mainly about the
influences of their place of studies and residence. It intends too, with this, to clarify the reasons
not only of the motivation of their professional choice but also the constitution of their
singularity. It will quest the memory’s generation of the IESK’s students, trying to clarify the
processes of “subjectivation” that contributed to the social construction of those teachers, while
professionals. The methodology chosen in this investigation is the capitation of oral narrations of
some students, intending to detect the reasons why they choose their professions and this
institution. At the beginning of this research was possible to find the mains reasons to their
professional choice. Detaching the possibility of a faster insertion in the work market and
“feminilization” of the teacher profession, stimulated by the institutions and the society. These
reasons allow explain how student’s memory associated to institutions and spaces from where
they have passed take to subjectivities’ productions, but also to install the possibility of create a
single existence.
KEY- WORDS: Memory; space; teachers’ formation.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 9

SUMÁRIO

Sumário _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 9

Lista de Ilustrações _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 10

Introdução _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 12

1 As influências do espaço do IESK na memória das normalistas:


entre a tranqüilidade e o “feudo”_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 19

1.1 A influência do espaço na formação da memória _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 19

1.2 Localização de Campo Grande e o IESK _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 26

1.3 O “grande campo” que se fecha _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 37

2 O gênero e a profissão docente: impactos na memória das normalistas do IESK _ _ _ p. 50

2.1 Professor: Uma profissão historicamente feminina _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 53

2.2 Histórico da mulher na educação _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 58

2.3 A escolha profissional influenciada pela memória social _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 68

2.3.1 A escolha baseada em modelos sociais _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 69

2.4 Professora versus professor: as considerações das normalistas sobre o professor


homem, um corpo estranho na profissão docente _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 81

2.5 Escolha por gosto_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 88

3 Memória e subjetividade:

a construção da singularidade das professoras formadas pelo IESK_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 90

3.1 Identidade e Subjetividade _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 94

3.2 As mudanças na sociedade interferem no campo pesquisado? _ _ _ _ _ _ _ _ p. 100

3.3 Uma possibilidade de deriva: a singularidade _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 105

3.4 Uma nova “professoralidade”_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 108


A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 10

Conclusão _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 115

Referências Bibliográficas_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 121

Anexo: Roteiro das Entrevistas _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 125


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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Entrada do IESK _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Capa

Figura 2 – Campo Grande_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 27

Figura 3 – Placa de inauguração do IESK _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 30

Figura 4 – Rampa do IESK _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 34

Figura 5 – Conversas _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 46

Figura 6 – Sala de aula do IESK _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 53

Figura 7 – Uniforme das normalistas _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 79

Figura 8 – Produzindo mural _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 81

Figura 9 – Conversas e discursos_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ p. 112


A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 12

Introdução

Quanto ao motivo que me impulsionou foi muito


simples. Para alguns, espero, esse motivo poderá ser
suficiente por ele mesmo. É a curiosidade — em todo
caso, a única espécie de curiosidade que vale a pena ser
praticada com um pouco de obstinação: não aquela que
procura assimilar o que convém conhecer, mas a que
permite separar-se de si mesmo. [...] de que maneira e
até onde seria possível pensar diferentemente em vez
de legitimar o que já se sabe? (Foucault).

Minha vida, assim como esta dissertação, é marcada pela ferocidade da curiosidade.
Porém, essa curiosidade não é só a busca pelo legitimado na sociedade e pelo que é
convencionado que devemos conhecer. Sempre questionei a educação existente, já que achava
que ela não instigava o indivíduo a um pensamento crítico.

Abro aqui um espaço para refletir sobre minha memória. Vale ressaltar que essa é a
memória que tenho hoje, que me faz pensar sobre o passado e reformulá-lo de forma diferente.
Pois, diante do que já vivi e das experiências que passei, não posso mais ver meu passado como o
via antigamente.

Minha memória se torna importante para situar os questionamentos oferecidos neste


trabalho dissertativo, tendo em vista que nada surge por acaso: as curiosidades aparecem em um
contexto e depois se tornam memória.

Meu interesse pelas discussões envolvendo o processo educativo começa desde cedo,
em meio ao ambiente familiar. Minha mãe, depois de terminar a graduação em Agronomia, passa
a se sentir atraída vivamente por educação, indo cursar Pedagogia com o sonho de abrir uma
escola que atendesse à população sem se limitar a reproduzir o currículo tradicional. Assim, ela
cria, em 1986, uma escola experimental baseada em Freinet, cuja proposta pedagógica consistia
em desenvolver uma educação que não somente ensinasse conteúdos obrigatórios, mas que
ensinasse a viver e questionar o mundo, e que isso também pudesse ser desfrutado por seus
filhos.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 13

O novo currículo, ao contrário dos demais, buscava relacionar intimamente


conteúdos, práticas e reflexões. Porém, não teve boa aceitação pela comunidade nem pelos
professores, forçando a mudança de rumo na filosofia da escola. Fato doloroso que procuro até
hoje entender.

Participei de toda a trajetória dessa escola. No exercício da função de secretária


escolar por cerca de dois anos continuei tentando compreender como e por que retrocedemos
desse projeto educativo inicial a um ensino que passou a priorizar os livros didáticos e seus
procedimentos educacionais tradicionais. Nesse contexto, observei a queda do ideal de minha
mãe frente às imposições dos pais de alunos do bairro de Campo Grande.

Havia uma ausência de valorização da reflexão que se expressava no desejo de


incorporar o legitimado, almejando os saberes impostos pela sociedade.

A partir dessa experiência, pude perceber também a forma como a maioria das
professoras da 1a à 4a séries (em sua maior parte normalistas do Instituto Sarah Kubitschek que
estagiavam no colégio) escolhiam sua profissão: principalmente pela afetividade e por gostarem
de crianças, coisa que elas designavam como “atributos femininos”.
Isso me incomodava, porque, sendo mulher, não reconhecia que tais atributos fossem
os mais importantes da condição feminina. Dessa forma, passei a não querer ser “professora de
criança”. Cursei o antigo 2o grau (formação geral) com a intenção de prestar vestibular para
informática, tendo em vista que o mundo vasto dos computadores me instigava.
Inscrevi-me para Informática em quase todas as faculdades do Rio de Janeiro. Como,
na época, a UNIRIO não tinha esse curso, escolhi, com o incentivo da minha mãe, Pedagogia.
Se passasse, queria me aprofundar na área de administração escolar, para (quem
sabe?) continuar o trabalho de minha mãe, embora estivesse um pouco desanimada com os rumos
que a escola dela tinha tomado.
A escola da minha infância se rendeu ao mercado, à lógica de sobrevivência,
chegando a ampliar seu quadro até o Ensino Médio, que eu cursei lá. Após essa mudança de rumo
em sua filosofia de ensino, ela continuou funcionando, apesar das dificuldades financeiras.
Mesmo assim, acabou fechando após doze anos de existência.
Na mesma época em que começava a acontecer o processo de fechamento da escola,
consegui ingressar no curso de Pedagogia. Curso estigmatizado por não dar grande retorno
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financeiro ou por ser “destinado socialmente” ao público feminino e/ou proveniente das classes
menos favorecidas.
Questões sobre essa estigmatização da profissão inquietavam-me. Por que havia
profissões que eram escolhidas fundamentalmente por mulheres e outras preferencialmente por
homens?
Entrei na faculdade em 1997 e descobri que não teria a habilitação que desejava, de
administração escolar, mas de magistério para 2o grau e, talvez,1 de magistério da 1a à 4a séries.
Mas, na faculdade aprendi a gostar da educação como um todo, a questionar a educação vigente e
a querer mostrar aos professores uma nova forma de percebê-la.
Diante de tantos questionamentos surgiu a oportunidade de ser bolsista de Iniciação
Científica na pesquisa “A (Re) invenção da Escola Pública: a sexualidade e a formação
continuada dos jovens professores”.
Comecei, então, a questionar os padrões de sexualidade vigentes e a forma com que
estes eram vistos na escola e, também, a educação sexual oferecida pelas escolas e veiculada
pelos professores que, a meu ver, não davam conta dos questionamentos levantados pelos
alunos.2 Deste modo, dei início à compreensão do jogo de poderes e saberes que envolvem a
sexualidade em nossa sociedade, e analisei como esse mesmo jogo se repete na vida escolar,
trazendo a disciplinação dos corpos e das mentes em um movimento de negação do prazer de
ensinar e aprender, como aponta Foucault em suas obras.
Passei a estudar também os saberes docentes e as crenças pedagógicas dos
professores e como apurar a atuação desses sujeitos em uma escola excludente e disciplinadora.
Essa foi uma das questões da minha monografia de pós-graduação em “docência do ensino
superior”, realizada também na UNIRIO.3
Depois de refletir sobre a sexualidade na nossa sociedade, a questão da escolha
profissional docente voltou ao meu foco de interesse. Pois, ao admitir que a sexualidade passa por
toda uma rede de discursos e de processos de disciplinação, a escolha da profissão também sofria
essas influências.
Estabeleci um recorte específico: o local em que eu vivo e vivi toda minha vida. O
bairro que me suscitou tantas questões sobre a educação, que tem somente um instituto público

1
Na época, o currículo estava em reformulação.
2
Nota retirada para não identificar o autor.
3
Nota retirada para não identificar o autor.
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de formação de professores e que forma grande quantidade de mulheres para o mercado de


trabalho docente.
Esse questionamento se torna crucial para meu ingresso no Mestrado de Memória
Social e para a elaboração dos problemas levantados nesta dissertação, principalmente por
responder às seguintes questões:
• De que forma a memória das normalistas do Instituto Sarah Kubitschek (IESK) e a sua
escolha profissional acabam sendo influenciadas pela sociedade em que elas estão
inseridas?
• O local onde a normalista vive condiciona suas escolhas, sua subjetividade, sua memória?
• A escolha das normalistas é condicionada por representações que vinculam o ensino à
condição feminina, a supostos determinismos biológicos. É possível superar essas
representações e escolher de forma mais livre?

Visando analisar os impactos na memória dessas normalistas não só no momento em


que estudaram no IESK, mas também, numa fase posterior, antes mesmo do exercício da
docência, busco neste estudo refletir sobre a escolha profissional e a importância da instituição de
ensino para as estudantes/professoras.

Um fato que percebo é que seu local de formação possui características específicas,
em virtude da região em que está situado — o bairro de Campo Grande. Esse lugar ainda mantém
tradições, concepções e valores de uma sociedade fechada4, podendo condicionar a construção da
identidade5 do grupo de docentes selecionado. Isto é, procuro analisar como um fenômeno
espacial específico — a inserção das normalistas no âmbito sócio-cultural de Campo Grande —
pode ter influências na memória e na identidade das normalistas.

A escolha por estudar a influência do espaço na constituição da memória das


normalistas está relacionada, principalmente, ao fato de elas estudarem na única escola pública
de formação de professores da região oeste da cidade do Rio de Janeiro, o que as torna difusoras
dos costumes locais.

4
Campo Grande tem características fechadas, exaltadas pelos entrevistados e percebidas no dia a dia das pessoas da
localidade, isto é, elas possuem vínculo forte com a região e têm muitas dificuldades para sair do bairro, não só pela
distância do centro de Rio de Janeiro, mas pelos hábitos que ressaltam a tradição local e a sua cultura.
5
O conceito de identidade tradicionalmente alude a uma característica essencial e permanente de um objeto ou do
homem. Essa noção de identidade fixa está sendo problematizada no campo das ciências sociais. Assim, os
indivíduos e os grupos poderiam ter identidades mutáveis, contraditórias. Analisarei essa questão no capítulo 3.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 16

Entretanto, ressalto que, conforme assinala Nilda Alves (2000), não é só na escola
que se ensina e se aprende, mas em outros grupos locais em que o estudante está inserido.
Conseqüentemente, não é somente no âmbito escolar onde a memória é produzida. O fato de o
homem ser social permite que ele aprenda em todos os tempos e espaços. Portanto, pude perceber
que as estudantes não só aprendem no IESK, mas em toda a região em que convivem, com todos
os grupos locais com que têm contato.

Para descobrir os meandros da memória e das reminiscências dessas normalistas foi


preciso entrevistar algumas delas e autoridades do IESK. Com isso, pretendia perceber nas suas
narrativas como a memória poderia produzir subjetividade6 e quais as influências que elas
receberam durante a sua vida para optar pelo caminho do magistério.

Neste estudo não pretendo fazer uma análise estatística das influências da sociedade
sobre a memória das normalistas. Sendo assim, entrevistei cinco normalistas egressas do IESK
para analisar como a memória e a subjetividade dessas ex-alunas sofreram influências e como as
suas falas foram condicionadas por outros fatores sociais.

É importante verificar como o percurso histórico de feminização7 da profissão do


professor acabou por criar todo um discurso social e também processos de subjetivação8 que
levam as professoras do IESK a serem influenciadas em suas vidas e escolhas e a naturalizar o
magistério como profissão “adequada” ao gênero feminino.

Esses mecanismos perpassam os comentários e imposições familiares e a necessidade


de uma inserção mais rápida no mercado de trabalho, identificada como uma das únicas
possibilidades de ofício e empregabilidade na região de Campo Grande, cujos critérios se limitam
ao nível de escolaridade do ensino médio e a uma remuneração acima de um salário mínimo.

6
Subjetividade é um modo de conceber o mundo que é produzida por mecanismos sociais, não é um atributo
individual, nem mesmo inventado, mas a maneira com que cada indivíduo recebe as interpelações do social e se
submete ou não a elas. Esse termo será analisado no capítulo 3.
7
Uso o termo feminização para denominar o aumento das mulheres no magistério e suas conseqüências nas
representações sobre a docência, enquanto profissão feminina por excelência. Para entender melhor o termo ver
páginas 54-55.
8
Os processos de subjetivação são as tentativas do poder de criar uma subjetividade determinada nos indivíduos da
sociedade. No poder disciplinar, analisado por Foucault principalmente no livro Vigiar e Punir (1989) e Microfísica
do Poder (1979), esse processo tenta moldar identidades fixas, para que as pessoas sejam melhor controladas.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 17

Pretendo analisar a constituição da memória enquanto formadora de identidade ou de


singularidade9 das estudantes do curso normal do IESK que colaram grau no ano de 2001,
estudando as influências desse espaço específico e da sociedade que o cerca.

A escolha das normalistas formadas foi feita primeiramente nos arquivos do IESK.
Lá, os dados foram anotados para um posterior contato telefônico, no qual era verificada a
disponibilidade da ex-aluna do IESK para conceder uma entrevista.

Optei por realizar entrevistas abertas com docentes moradoras de Campo Grande e
adjacências, egressas do primeiro ano de formação do século XXI no IESK. Esse recorte abrange
professoras formadas há pouco tempo, que são iniciantes em suas atividades profissionais, que
ainda estão repensando sua escolha profissional e que continuam, de alguma maneira, ligadas à
sua história de formação e vida comunitária no IESK, de modo que os impactos em sua prática
escolar cotidiana ainda se fazem notar de forma intensa.

Essas professoras estão em um processo de reconhecimento da profissão, uma vez que


devem lidar de modo mais profundo com a afirmação de sua escolha profissional, que é, muitas
vezes, colocada em dúvida diante das contínuas dificuldades que apareceram/aparecerão no
dinamismo social e que geram sempre novas políticas educacionais.10

Essa análise será realizada a partir de estudos sobre a memória das professoras
egressas do IESK e que ainda estão ligadas às características locais: onde grupos de encontro se
formaram/formam, estabelecendo vínculos e relações, marcados por valores e costumes próprios
da localidade em questão.11

Almejo desvendar, no contato com as recém formadas normalistas, os processos de


subjetivação que contribuíram para a construção da memória do “ser professora”, nos meandros
de sua escolha profissional.

A dissertação se divide em 3 eixos básicos:


9
Singularidade é a forma de receber as influências do poder e ter a capacidade de, a partir delas, criar o novo: o
singular, não se submetendo ao processo de subjetivação que nos interpela a adotar uma identidade fixa. Assim,
singularidade é uma forma de se produzir uma subjetividade diferente, um outro olhar a partir das injunções sociais.
10
Uma política educacional relevante para essa afirmação profissional é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (9394/96) que institui, a partir do ano de 2007, a educação superior como formação mínima para a
profissão de professor; isso exige uma reflexão e reavaliação de sua condição como professora, pois as docentes
deveriam cursar uma Instituição Superior de Educação para continuar no magistério. Porém, há um parecer do
Conselho Nacional da Educação que diz que não será mais obrigatório que se curse o ensino superior para
permanecer na carreira docente.
11
A questão do espaço e da localidade de Campo Grande será aprofundada no Capítulo 1 desta dissertação.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 18

• Inicialmente, analisarei, com o auxílio de autores como Fentress e Wickham, Nora e


Halbwachs, entre outros, como o espaço do IESK tem sido importante para a divulgação
da cultura local. O conceito de cultura é aqui entendido, conforme a interpretação de
Geertz (1978, p. 103), como um sistema de concepções herdadas, expressas em forma
simbólica, por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu
conhecimento e suas atividades em relação à vida.

• Também estudarei os aspectos históricos que mostram a relação da profissão docente com
a questão de gênero, fato que é nitidamente percebido nos arquivos do IESK, onde se
constata a ínfima proporção de estudantes homens que passam pela instituição. As
pesquisas sobre a historia da feminização do magistério serão úteis, nesse ponto, para
relacionarmos como essa profissionalização chega até o IESK e a Campo Grande. O
esclarecimento desse aspecto nos levará aos textos de Arce, Cavalcante e Cruz, Freitas,
Linhares, entre outros.

• Por fim, pretendo analisar, com o aporte de Foucault, Guattari, Hall, Gondar e outros
autores, como a memória e as influências sociais têm condicionado os processos de
subjetivação, ou seja, parto da hipótese de que o processo de escolha da profissão de
professora resulta na adoção de uma identidade fixa. Nesse ponto, analiso também se
pode haver uma resistência a essa memória coletiva ligada às injunções do poder e se é
possível uma memória que crie o novo (o singular) a partir do social, sem meramente
reproduzi-lo.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 19

1 As influências do espaço do IESK na memória das normalistas: entre a


tranqüilidade e o “feudo”

Quando um grupo está inserido numa parte do espaço,


ele a transforma à sua imagem, ao mesmo tempo em
que se sujeita e se adapta às coisas materiais que a ele
resistem (Maurice Halbwachs).

1.1 A influência do espaço na formação da memória

Este capítulo tem como objetivo analisar se a memória das normalistas do Instituto de
Educação Sarah Kubitschek (IESK) se encontra influenciada por seu local de convívio e pelo
espaço compreendido pelo bairro de Campo Grande. É importante esclarecer o quanto essa
localidade influencia na geração dos valores e nos hábitos das normalistas e se esse grupo,
conforme a tese de Halbwachs (1990) aludida na epígrafe, está inserido de tal maneira que é
adaptado à região em questão, modificando e sendo modificado por ela.

O homem sempre tenta modificar o local em que vive para torná-lo mais adequado às
suas necessidades. Entretanto, neste capítulo viso analisar como os homens encontram-se
marcados pela localidade e pela comunidade em que estão inseridos.

Todavia, antes de analisar algumas das influências de Campo Grande sobre a


memória das normalistas, torna-se necessário esclarecer, inicialmente, o que estou entendendo
como memória. “Memória” é um termo com várias acepções. Para elucidá-las, podemos recorrer
primeiramente ao dicionário:

s.f. faculdade de reter idéias ou noções adequadas; lembrança; reminiscência;


anel comemorativo; monumento comemorativo; fama; celebridade; [...]
dissertação literária ou científica; pl. narrações históricas escritas por
testemunhas presenciais; autobiografia; comentários (LUFT, 1993, p. 425).

Várias definições são oferecidas pelo dicionário: a questão do ato de lembrar e


memorizar; os aportes que podem nos fazer recordar ou exaltar algum fato ou acontecimento,
como um monumento; o que foi “escrito” por alguém que presenciou um fato da história ou que
narra a sua história; os comentários; até mesmo esta dissertação, enfim, tudo isso seria memória.

Cabe ressaltar aqui que não considero a memória restrita a nenhum desses aspectos
enumerados, muito pelo contrário, a memória não é algo limitado somente aos escritos e aos
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 20

apoios à lembrança. A memória está presente em todos os grupos e nos indivíduos, mesmo que as
recordações não sejam iguais aos escritos da história. A memória engloba, de acordo com
Wehling & Wehling,

todas as representações coletivas do passado, da qual seriam espécies as


“memórias” da tradição oral, do “erudito de aldeia”, do culto à pátria ou à
região e dos fabricantes de ideologias em geral. À história estaria reservado o
papel, mais restrito, do conhecimento teórico-metodológico do mesmo objeto,
com seu produto, a historiografia (1997, p.23).

Isto não quer dizer que a memória seja subjetiva, não científica, e a história objetiva,
científica12, mas que elas são diferentes. A memória atenderia aos objetivos de uma sedimentação
social que a história não compreenderia, pois esta se preocuparia com o conhecimento teórico
obedecendo a metodologias pré-estabelecidas. Entretanto, a memória seria responsável pela
lembrança e pelos costumes de uma comunidade ou sociedade. A memória aparece “quando as
mesmas lembranças, vividas ou transmitidas, ressurgem de forma repetida, sendo apresentadas
como específicas da comunidade” (Wehling & Wehling, 1997, p.15).

A memória, assim como o próprio grupo que a produz, é influenciada por diversos
fatores que não são centrais para a história, cujos objetivos são teóricos e não vivenciais. Um
desses fatores é o espaço, conforme a descrição de Wehling & Wehling:

O espaço é condição sine qua non da memória e um referencial na história. Se


Halbwachs podia afirmar que “não há memória coletiva que não se desenvolva
num quadro espacial”, sem o qual ela desapareceria, o conhecimento histórico,
de há muito superado o determinismo geográfico, admite o espaço como um
referencial entre outros, sem dar-lhe a preeminência na análise e explicação
(1997, p. 19-20).

Para indagar a importância do espaço na construção da memória pode-se lembrar as


afirmações de Halbwachs. Para ele, a memória é interpretada como um fator coletivo,
diferentemente da visão que predominou durante “dois e meio milênios de tradição ocidental”,
em que, de acordo com Wehling & Wehling (1997, p. 11),

a memória foi concebida como algo obviamente individual. Seria sempre


entendida como uma faculdade, a de reter e recordar acontecimentos passados, à
qual corresponderia uma função psíquica, reprodutora de um estado consciente
do passado do sujeito.

12
Para ver essa distinção entre memória e história ver Wehling & Wehling (1997).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 21

A partir de Halbwachs (1990), a memória passou a ser analisada como um fato


13
social que é influenciado pelos fatores coletivos, pois ela seria sempre perpassada por dados que
se originam fora do indivíduo e que lhe servem de guia. Essa memória, influenciada pelo
coletivo, estaria presente até mesmo no sonho. A memória coletiva condiciona todas as
lembranças, assim o indivíduo acreditaria ser o exclusivo autor de uma reminiscência que, na
verdade, surge em função de um processo social.

A questão da memória social ou coletiva envolveu importantes discussões teóricas,


haja vista as críticas de Fentress e Wickham (1992, p. 7) às teses de Halbwachs. Segundo essas
críticas, ele teria se preocupado demais com a dimensão coletiva da memória e acabou por
desprezar o aspecto individual da recordação. Dessa forma, eles cunham o termo memória social,
no qual é contemplada a participação do indivíduo na gestação da memória.14

Fentress e Wickham (idem) nos remetem a uma memória que não é estritamente do
sujeito e nem somente coletiva, pois não devemos negar ao indivíduo um certo grau de
autonomia na produção de sua própria memória. Eles propõem um equilíbrio entre a memória
individual e a social.

Mesmo diante dessas críticas, Halbwachs (1990) se tornou um importante teórico


para interpretarmos a questão da memória e, principalmente, da sua ligação com o espaço. Ele
assinala que as imagens espaciais desempenham um papel importante na memória coletiva e nos
costumes de um grupo, pois o lugar recebe a marca do grupo e vice-versa: o grupo é influenciado
pelo lugar.

Um grupo não passa por um lugar sem deixar nele seus indícios e o lugar, por sua
vez, também estabelece suas demarcações na memória do grupo. Da mesma forma que um grupo
se sujeita e se adapta às coisas materiais que a ele resistem, também transforma o espaço à sua
imagem. Portanto, os termos espaciais são importantes para esclarecer a memória coletiva e as
escolhas que são feitas por determinado grupo.

Halbwachs aponta que o espaço e a disposição dos objetos desse espaço são como
elos que vinculam a nossa memória aos diversos grupos a que pertencemos. Os objetos, na sua
13
Ele dá continuidade à postura de seu professor Durkheim, que defendeu a especificidade das representações
individuais e coletivas através da memória, afirmando o caráter simbólico da memória individual, como traço de um
complexo social mais amplo (cf. Representações individuais e representações coletivas).
14
Não estará em foco essa discussão, mas trataremos de memória coletiva quando utilizar os conceitos de Halbwachs
e de memória social quando aludir a Fentress e Wickham.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 22

disposição habitual, são duráveis e, dessa forma, tendem a nos trazer uma sensação de
estabilidade e continuidade, um sentimento de pertença a um determinado grupo ou sociedade.
Nossa memória se fixa sobre eles para a geração das lembranças. Halbwachs esclarece a
importância do espaço na configuração da memória coletiva:

não há memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial. Ora, o
espaço é uma realidade que dura [...] É sobre o espaço, sobre o nosso espaço
[...] que devemos voltar nossa atenção; é sobre ele que nosso pensamento deve
se fixar, para que reapareça esta ou aquela categoria de lembranças (1990, p.
143).

A estabilidade do alojamento e de seu aspecto interior impõem ao próprio grupo


a imagem apaziguante de sua continuidade (idem, p.132).

Na disposição dos objetos que estão no nosso entorno percebemos e encontramos


marcas de nossas relações familiares, pessoais, sociais, as quais influenciam nossa memória,
exprimindo características comuns a muitos homens. A partir de nosso lar, passando pela nossa
rua e pelo bairro, até o espaço maior da cidade, encontramos uma rede de relações sociais que
marcam a memória coletiva. O espaço é estável, ele demora a mudar, e isso traz ao grupo a
sensação de continuidade, que seus hábitos e sua memória têm consistência, estabilidade.

Assim como os objetos e sua disposição influenciam na nossa memória, os grupos


ligados a determinado espaço imprimem, por sua vez, suas características no espaço urbano. O
grupo está apegado aos costumes e ritmos inscritos nas ruas, nas escolas e nos lugares de
trabalho:

O lugar ocupado por um grupo não é como um quadro negro sobre o qual
escrevemos, depois apagamos os números e figuras. [...] todas as ações do
grupo podem se traduzir em termos espaciais, e o lugar ocupado por ele é
somente a reunião de todos os termos. Cada aspecto, cada detalhe desse lugar
em si mesmo tem um sentido que é inteligível apenas para os membros do
grupo, porque todas as partes do espaço que ele ocupou correspondem a outro
tanto de aspectos diferentes da estrutura e da vida de sua sociedade, ao menos,
naquilo que havia nele de mais estável (HALBWACHS, 1990, p. 133).

O grupo adere com intensidade à sua localidade. Perder esse local ou as


características do mesmo seria perder os valores e costumes e, até mesmo, suprimir a memória
coletiva do grupo. Assim,

um acontecimento realmente grave sempre causa uma mudança nas relações do


grupo com o lugar, seja porque modifique o grupo em sua extensão, por
exemplo, uma morte ou um casamento, seja porque modifique o lugar [...] A
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 23

partir desse momento não será exatamente o mesmo grupo, nem a mesma
memória coletiva (HALBWACHS, 1990, p. 133).

Ou seja, para um grupo, determinado acontecimento pode levar a uma reorganização


espacial. Por exemplo, o casamento de algum dos seus integrantes faria a família se reorganizar
na sua casa ou poderia provocar alguma modificação nos seus locais de convívio.

Para não esquecer seus valores e seus costumes, diante das constantes mudanças da
sociedade atual, o grupo institui, de acordo com Nora (1993), “lugares de memória”.15 Esse
conceito alude aos locais onde é possível reter e cultuar uma memória ligada aos costumes da
sociedade, com o objetivo de não perdê-la.

Porém, o autor esclarece que se se fala “tanto de memória [é] porque ela não existe
mais [...] Há locais de memória porque não há mais meios de memória” (1993, p. 7). Ou seja,
numa sociedade mais orgânica e estável não haveria a necessidade de “lugares de memória”. Os
locais de convívio de um grupo já seriam suficientes para cultivar sua lembrança.

Na atualidade, há uma tentativa de conter a perda dos costumes e das memórias


locais. Por isso, na sociedade contemporânea, caracterizada pela vertigem e pela aceleração,
acaba tornando necessário instituir “lugares de memória”, para evitar a supressão das lembranças
coletivas.

Augé afirma que o lugar se insere nos costumes das pessoas de uma localidade e
possibilita uma estabilidade mínima, uma feição comum, a coesão vital e afetiva de um grupo: “o
lugar é necessariamente histórico a partir do momento em que conjugando identidade e relação,
ele se define por uma estabilidade mínima” (2001, p. 53).

Guattari (1992) compreende o espaço como um âmbito vivido — de convicções,


valores, sentimentos, crenças etc. — em contínua mudança e partilhado pelos integrantes de uma
comunidade. Na sua ótica, o espaço é múltiplo e inconstante, não pode ser vinculado a
identidades fixas, mas a perspectivas variáveis. Pois, se o espaço é vivido, ele não tem uma
identidade estável, ele varia de acordo com seus integrantes.

Dessa forma, o espaço não é entendido somente como o ambiente físico. Para
Guattari, há numerosos espaços, tantos quantas possibilidades de simbolização e enunciação por

15
Termo utilizado por Nora (1993) para explicar que todos os espaços que servem para preservar a memória do
grupo, os lugares em que este viveu e deixou suas marcas, são lugares de memória e não só os lugares, a princípio,
designados para esse fim (como museus, bibliotecas etc.).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 24

parte dos corpos, dos sujeitos, da sociedade. Ou seja, as ruas, as construções, os bairros das
cidades, são instigadores de sentidos, de trocas; nada neles é estático; tudo se recicla, se re-
significa.

Quando um grupo toma suas decisões e escolhas em um contexto delimitado que lhe
concerne16, e enquanto este grupo continua em contato com seu âmbito de encontros e vivências,
os costumes, as escolhas e os valores desse lugar influenciam sua memória e evitam o
esquecimento17 de seus hábitos.

Para Fentress e Wickham (1992), a memória é uma busca ativa do significado.


Assim, a memória social pode não perder uma informação específica, mas ignorá-la
intencionalmente. Se, em certas situações, a memória parece frágil e volátil, é porque ela depende
do contexto. Enquanto permanecemos nesse contexto, estamos rodeados de pistas que a avivam.

Se a memória, noutras ocasiões, parece, pelo contrário, estável e tenaz, é porque


dispomos de meios para libertarmos da dependência em relação ao contexto. Fixar qualquer
lembrança significa, portanto, conceitualizá-la e codificá-la através de elaborações subjetivas,
permitindo-nos reter a recordação, independentemente das alterações no âmbito externo.

Assim, Fentress e Wickham afirmam uma relativa autonomia do sujeito na recriação


da memória, porém relacionam a recordação ao espaço, já que todas as memórias são localizadas
no espaço, tanto na cidade, quando no campo, tanto por uma classe social, quanto pelas outras.

Os autores assinalam que o aspecto espacial influencia na construção da identidade


comunitária e demonstram que o mesmo deve ser socializado para ter sentido para os habitantes
do local:

Este padrão reflete com toda a evidência as estruturas das rotinas cotidianas ao
ar livre; mas o espaço geográfico da comunidade é por sua vez socializado
segundo esta mesma via, conferindo-lhe às suas associações passadas um
significado que faz sentido para os seus habitantes, em contraposição às
geografias mais anônimas que o rodeiam: espaço e tempo firmam-se na
construção da identidade comunitária (1992, p. 141).

16
Como, por exemplo, no caso das normalistas entrevistadas nessa pesquisa, tendo em vista que elas estão muito
envolvidas pela localidade que as cerca e pelos grupos que elas integram nesse local.
17
O esquecimento, conforme Fentress e Wickham (1992, p. 57), também faz parte da memória, ele não é totalmente
apartado em nenhum momento. O esquecimento acontece normalmente: “A nossa memória exprime a ligação do
nosso espírito ao nosso corpo e do nosso corpo com o mundo social e natural que nos rodeia. No entanto, esta
continuidade é também fonte de esquecimento normal”.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 25

Apesar de não haver um consenso entre os autores estudados, todos eles permitem
concluir que o espaço é um dos fatores mais importantes para a rememoração e para a ligação da
memória aos grupos e à sociedade. A partir do espaço, a pessoa pode ter uma sensação de
pertencimento a um local e a um grupo e, dessa forma, sua memória está interligada aos mesmos.

Conforme essas ponderações, tentarei esclarecer se o Instituto de Educação Sarah


Kubitschek, foco dessa pesquisa, teve grande influência na construção da memória das
normalistas que por ele passaram, não só por terem estudado nele, mas por também fazerem parte
do bairro e da comunidade em que o mesmo está inserido.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 26

1.2 Localização de Campo Grande e o IESK

O Instituto de Educação Sarah Kubitschek é um colégio de formação de professores,


e o fato de se encontrar localizado em Campo Grande — um dos bairros mais distantes do Centro
do Rio de Janeiro — contribui para que tenha algumas características, como analisarei a seguir.

A tentativa de esclarecer a singularidade dessa instituição de ensino no processo de


construção de memória foi um dos motivos da escolha do IESK como lugar para o
desenvolvimento da minha pesquisa. Percebo (como moradora de Campo Grande) que a
localidade mantém hábitos peculiares da região e fecha-se em torno de si mesma. Isso se reflete,
particularmente, no meu objeto de investigação: as normalistas do IESK.

Campo Grande é um bairro da cidade do Rio de Janeiro, e fica próximo de Bangu,


Santa Cruz e Guaratiba, a, aproximadamente, 60 quilômetros do Centro da Cidade. Não é muito
difundida a origem do seu nome, porém quem conhece a localidade compreende o motivo dessa
denominação, pois o bairro possui uma dimensão enorme — 119,12 km2 — o que acabou
levando à criação de vários sub-bairros. De acordo com Jesus (2004), nas décadas de 20 e 30 era
chamado de Citrolândia, devido ao fato de se cultivar laranjas em sítios e fazendas da região. Mas
o atual nome teria surgido posteriormente à edificação da capela Nossa Senhora do Desterro, em
1673, situada num vasto campo. O site Guia Camp18 explica o nome pelo bairro ser “Um campo
largo, extenso, imponente”.

Também não há um consenso acerca da fundação do bairro, uns dizem que as datas
mais prováveis seriam 1808, 1907 ou o dia 2 de dezembro de 1878, com a inauguração da estação
(SANTIAGO, 2004). Para outros19, a fundação oficial ocorreu por cerca de 1673, com a fundação
da paróquia Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande.

A região surge a partir da fundação do Rio de Janeiro por Estácio de Sá, quando
dividiu a Região Oeste da cidade, onde coube aos Jesuítas uma grande área (incluindo onde hoje
é localizado o bairro de Campo Grande), formando-se latifúndios que ficaram conhecidos como
"fazenda dos Jesuítas". Após a expulsão dos Jesuítas (a partir 1759), essas terras foram divididas
em Sesmarias, onde se cultivava produtos agrícolas. Surgem, então as Freguesias, com destaque
para São Salvador do Mundo de Guaratiba, Santo Antônio de Jacutinga e Nossa Senhora do

18
http://www.guiacamp.com.br/main.php?secao=16
19
Como descrito no site http://www.guiacamp.com.br/main.php?secao=16
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 27

Desterro de Campo Grande. Até a abolição da escravatura, as fazendas prosperavam (incluindo-


se nos ciclos da cana-de-açúcar e do café).

Porém, o apogeu da região de Campo Grande se deu com a produção de laranjas.


Esse ciclo de prosperidade se deu aproximadamente da metade da década de 1920 até a metade
da década de 1950, tornando-se conhecido internacionalmente como produtor da fruta. Este ciclo
declinou com a segunda guerra mundial, quando ficou difícil de escoar a produção, com falta de
compradores, o que fez com que as laranjas apodrecessem nos pés e uma praga assolasse a
região. Assim, com a desvalorização e fracasso, as terras foram vendidas a preços baixos durante
a década de 1950.

Figura 2 — Campo Grande


No momento da fundação da cidade do Rio de Janeiro, os índios Pinciguabas
habitavam as terras da região, sendo, portanto, os primeiros habitantes de que se tem notícia20.
Após a divisão das terras dos Jesuítas Campo Grande foi doado pela Coroa a Barcelo Domingos.
Porém, somente a partir da inauguração da Estação Campo Grande da Estrada de Ferro Central
do Brasil em 1878 é que Campo Grande pôde crescer e quando seus habitantes, da área rural,
tiveram a possibilidade de escoar sua produção e cobrir longas distâncias.

Outro incentivo ao crescimento foi a concessão em 1894 para os bondes que


transportariam até a estação de ferro, estes eram inicialmente movidos a burro, porém
modernizados com a concessão feita em 1915 para a substituição para 48 quilômetros de linhas
elétricas para o bonde que funcionou até 1967. Com a chegada dos trens os comerciantes
também aproveitaram e se instalaram, na Rua Augusto Vasconcelos e depois no atual calçadão (a
20
http://www.guiacamp.com.br/main.php?secao=16
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 28

Rua Coronel Agostinho), onde até hoje há um comércio muito amplo que exerce atração sobre
outras regiões. Campo Grande hoje conta hoje também com indústrias e ainda tem
estabelecimentos que se dedicam a agricultura e pecuária.

O grande comércio e uma rede de serviços, além dos baixos preços de imóveis, tudo
isto possibilitou um crescimento muito grande do bairro, que hoje contém grande número de
loteamentos, com maioria de casas. É uma região que tem tido um crescimento populacional
muito grande (contém 297.494 pessoas residentes, de acordo com os dados da Prefeitura de
2000), porém, apesar de ter a maior concentração de escolas do Rio de Janeiro, muitas
entrevistadas ainda reclamavam de falta de vagas no ensino médio da região.

Campo Grande envolve uma questão campal, já que se encontra afastado do


perímetro urbano. Assim, o nome do bairro retrata tanto sua condição rural quanto sua vasta
extensão. O bairro, que era uma região altamente rural, atualmente vê diminuir as atividades
rurais que eram predominantes até o início do século passado. Porém, de acordo com os dados de
2003 da prefeitura do Rio de Janeiro21 Campo Grande ainda tem 26,87% de áreas naturais e
73,13% de áreas urbanizadas e/ou alteradas, sendo que só 29,08% são de áreas urbanas
realmente, pois tem uma área urbana não consolidada de 4,25%, Campo Antrópico de 39,47% e
soloexposto e área de mineração de 0,23%. Ou seja, ainda contém traços rurais, principalmente se
encontrando em uma grande metrópole.

Desta forma, ainda repercute na população a imagem de que é uma região rural,
tranqüila, onde a vizinhança mantém vínculos cordiais no seu dia-a-dia e luta por tornar Campo
Grande um local sempre acolhedor, mesmo com o crescimento de um grande comércio e de
mudanças que impõem o ritmo dos avanços urbanos. Podemos perceber essas mudanças no texto
do site Portal de Campo Grande22:

Hoje, como ontem, Campo Grande é uma verdadeira capital. “Capital Rural do
Distrito Federal”, é como chamava a localidade até bem pouco tempo. A verdade,
porém, é que Campo Grande embora localizada na denominada “Zona Rural" do antigo
Distrito Federal, nada ou quase nada apresenta de rural, levando-se em conta a precisa
acepção do vocábulo [...] Tudo faz de Campo Grande um centro importante, sequioso
de agigantar-se, de brilhar, não pela iniciativa de uns poucos, mas pelo trabalho
conjugado e harmonioso de muitos. Mudada a capital para muito longe, claro é que
Campo Grande desperte para atender a sua vocação. Desde centro de peculiaridades
expressivas, de vida própria, de finalidades múltiplas em todos os domínios, há de

21
http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas/mostra_sintese.php?area=144
22
A descrição aqui feita encontra-se registrada no site www.pcg.com.br.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 29

partir a glória radiosa capaz de unir todas as energias da Região e dar a esta porção de
terra Guanabarina, um lugar que lhe cabe pelo seu passado e pelo seu presente. Todos
lutam em torno de um ideal comum de fazer que os legítimos interesses sejam sempre
respeitados, que se proclamem os direitos que a destinação se afirme e se realize.
Ninguém falte ao chamado. Um com sua enxada, outro com o cinzel, com a pena,
aquele com o cajado, mas todos com os braços, com cérebros, para trabalharem e
vencerem, a fim de serem dignos da terra promissora e bela que herdaram onde todo
esforço vale um cântico de primavera, profundo, acolhedor (os grifos são meus).

Esse texto demonstra o ufanismo de muitos dos moradores que consideram Campo
Grande como o lugar onde a “glória radiosa” seria “capaz de unir todas as energias da Região” e
no qual todos deveriam se unir para entoar, nesse âmbito privilegiado, “um cântico de primavera,
profundo, acolhedor”. Esse tipo de discurso não é unânime na região23, mas está presente na
maioria das pessoas que adotaram Campo Grande como o seu local de permanência e não
somente de moradia.

No site Guia Camp percebemos que este pensamento pode ser proveniente de muitos
anos atrás pois: “O ponto alto da produtividade no bairro se deu pela década de 1930, e os
problemas enfrentados pela população eram encobertos, de forma consciente, pelo orgulho
bairrista de uma região de sucesso agrícola”.

A maioria dos entrevistados exalta a tranqüilidade e segurança do bairro como seu


maior atrativo. O povo conserva-se muito ligado ao local. Dessa forma, grande parte dos
moradores se conhece e se une para manter sempre a tranqüilidade do bairro, principalmente para
evitar a insegurança que assola todo o município do Rio de Janeiro. Podemos perceber isso nas
ponderações de uma normalista do IESK:

Eu acho que Campo Grande é um bairro tranqüilo [...] Eu não sinto muita segurança,
porque ninguém tá seguro, acho que no mundo todo, hoje em dia a gente vive muito
inseguro. É um bairro tranqüilo que tem muitos laços de amizade, eu percebo muito
isso. Os meus vizinhos se conhecem, então, eu acho que isso ajuda muito na
convivência (normalista Joyce).24

Apesar de ser um bairro com costumes rurais, em uma região com muitas casas e
chácaras, hoje ele tem poucas atividades agrárias, reservadas apenas a alguns sub-bairros. Sua
ocupação e urbanização ocorreram através da criação de vários conjuntos habitacionais, surgindo,
assim, os sub-bairros que se distanciaram do agrícola.

23
Veremos, mais adiante, que há outros enfoques sobre esse local.
24
Entrevista realizada na residência da entrevistada no dia 15/03/2003, todos os outros depoimentos da normalista
Joyce referem-se a essa mesma entrevista.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 30

O comércio de Campo Grande é auto-suficiente, exercendo atração sobre outras


regiões. O setor industrial também está progredindo. Campo Grande possui um Distrito Industrial
localizado no quilômetro 43 da Avenida Brasil. O bairro também é valorizado por seus
moradores por preencher as diversas necessidades da população, como aparece no relato da
normalista Aracele25: “Bom pra morar. Calmo. Têm várias [...] coisas perto: mercado, shopping,
padaria, tudo perto, não precisa ir para outros lugares”.

Isso tem favorecido o crescimento urbano que traz, aos poucos, uma pequena
insegurança às pessoas da localidade, porém essa insegurança não altera essencialmente a
percepção, testemunhada pelas entrevistadas, de que o bairro é tranqüilo, calmo e bom para
morar. Dessa forma, o sentimento de segurança ainda predomina na população, podendo-se
deixar as crianças brincando nas pracinhas e nas ruas e ficar conversando com os vizinhos
descontraidamente sobre as atividades e o dia-a-dia da região.

O IESK se localiza próximo ao Centro de Campo Grande. As suas acomodações


físicas são muito boas. Ele possui um prédio principal de três andares com salas de aula, teatro,
biblioteca, entre outras dependências. No térreo se encontra um grande pátio e as salas da
administração. Há outros dois prédios para os colégios de Educação Infantil e 1a a 4a séries do
Ensino Fundamental, em que as normalistas fazem o estágio docente (porém não há vagas para
todas as estudantes). Existe também um estacionamento, um ginásio de esportes e uma piscina na
parte externa dos prédios.

Figura 3 — Placa de inauguração do IESK

25
Entrevista realizada em minha residência, no dia 21/12/2002; todos os outros depoimentos da normalista Aracele
referem-se a essa mesma entrevista.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 31

A fachada do colégio é limitada por um alto muro branco, com um pequeno portão
que dá acesso ao prédio central e a um portão de ferro que permite somente a entrada de pessoas
devidamente identificadas. O IESK possui uma arquitetura moderna, diferente da arquitetura
clássica encontrada em outros Institutos de Educação do Rio de Janeiro, até mesmo porque o
prédio foi construído na década de 1970, conforme aparece acima na Figura 2, e não nas décadas
de 1920 ou 1930, como outros Institutos de Educação mais antigos.

Apesar de o prédio atual ter sido construído há menos de 40 anos, o IESK começou a
funcionar no final dos anos 1950, porém era chamado nessa época de Instituto de Educação
Campo Grande, nome que foi mudado para homenagear a esposa do presidente Juscelino
Kubitschek. O instituto funcionou em um local onde, depois de sua saída, se estabeleceu um
barracão de laranjas e, atualmente, funciona uma agência bancária, ou seja, em uma estrutura
precária.

Os Cursos Normais eram altamente valorizados, fato que pode ser percebido na
grandeza arquitetônica dos prédios da maioria dos Institutos de Educação do Rio de Janeiro. Esse
não era o caso do IESK, porém mesmo sem contar com um prédio imponente esse Instituto
também era valorizado socialmente como os outros Institutos de Formação de Professores.

Naquela época, mesmo sem dispor de um prédio mais estruturado para suas
atividades, ele já formava as professoras da região e já era valorizado. Existiam cursos
preparatórios para a prova de seleção que era muito rigorosa, pois quem conseguisse ser aprovado
já tinha emprego garantido: os alunos que chegavam à 3a série já começavam a lecionar,
passavam a ser funcionários públicos do Estado da Guanabara. Uma professora do IESK comenta
isso no seu depoimento:

Eu já trabalhava no último ano. Na 3a série eu já tinha minha turma, todo mundo


tinha, já com uma responsabilidade. Como aqui era Estado da Guanabara, nós já
éramos funcionárias do Estado, que na época era Estado da Guanabara [...]
Então, já peguei uma turma que era minha, só que tinha o apoio de uma
professora de didática. Ela visitava, toda semana ela estava indo lá, mas nós
tínhamos a nossa turma, nós éramos empregadas do governo, já recebíamos e
tínhamos uma responsabilidade da turma [...] Recebíamos bem, ficávamos
sentadas na sarjeta, como eu peguei uma escola que já acabou, em Santa Cruz,
era a última, que o carro pagador saía do Centro do Rio e vinha pagando, vinha
subindo, que era a Guanabara, o último posto era Santa Cruz, e então era a
Escola Artur das Chagas, nós éramos umas das últimas a receber, sentadinhas
já de noite, na sarjeta no dia do pagamento, sem assalto, sem nada, sem medo,
porque não se tinha banco. E a gente ficava ali, recebíamos aquelas moedas na
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 32

rua, aquele pacote que era o pagamento, e podíamos comprar apartamento,


carro etc. etc... com aquele dinheiro, hoje a gente não pode comprar nem um
sofá (os grifos são meus).26

A imponência dos prédios dos cursos normais, a valorização do salário docente e os


estímulos aos professores que existiam outrora são detalhados por Linhares (1997, p. 187) no seu
livro A Escola e seus profissionais — tradições e contradições:

Os edifícios públicos onde funcionavam os “Cursos Normais” guardavam as


marcas arquitetônicas do requinte e da importância. Os salários eram
apreciáveis, de tal forma que ensejavam que a linguagem popular situasse
figuras como o “marido da professora” [...] O corpo discente, por sua vez,
dispunha no Estado da Guanabara de estímulos especiais, como contratos
profissionais imediatos aos concluintes que obtivessem as primeiras colocações.

Esses e outros fatores geravam prestígio social para os cursos normais. O IESK tinha
ainda um estímulo importante para as pessoas que almejavam cursar a instituição e para as
pessoas do seu entorno, que era a contratação imediata dos seus formandos como funcionários
públicos, e os bons salários que recebiam, conforme foi ressaltado no depoimento citado acima
pela professora do IESK.

O IESK, por estar longe do centro da cidade, oferecia, além dos aludidos benefícios,
algumas dificuldades: as professoras formadas pelo IESK trabalhavam tanto nas proximidades do
mesmo (Campo Grande, Santa Cruz etc.) quanto nos lugares mais distantes do Centro do Rio de
Janeiro (na época, Guanabara). Como conseqüência, eram as últimas a receberem seu pagamento
e tinham que esperar o carro pagador sentadas na “sarjeta”.

Essa observação se torna curiosa, pois o fato de as professoras esperarem sentadas na


“sarjeta”, que é um termo utilizado pela linguagem popular para representar marginalidade ou
pobreza, na verdade não significava isso para aquelas docentes: apesar de serem as últimas a
receber, no início da noite, o salário delas tinha mais valor. Assim, mesmo sentadas na sarjeta,
não “estavam na sarjeta”.

Hoje os professores não têm de esperar o carro pagador chegar, devido a facilidade do
pagamento bancário. Porém, esse salário perdeu o seu poder aquisitivo. Assim, as dificuldades da
região provocadas pela distância que eram, na época, compensadas pelo bom salário que a

26
Entrevista realizada no dia 17/02/2002 no IESK, todos os outros depoimentos de uma professora do IESK referem-
se a essa mesma entrevista, pois só foi entrevistada essa professora do IESK, que conforme sua solicitação não será
identificada neste trabalho.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 33

profissão proporcionava, hoje se tornam quase um “fardo” a ser carregado, pois não existe
nenhuma compensação. Parafraseando a expressão daquela professora, hoje vemos o processo
contrário: os professores não esperam o salário na sarjeta, porém esse mesmo salário os coloca,
praticamente, “na sarjeta”.

Mesmo com essas dificuldades, a repercussão que teve o critério rigoroso de seleção,
que existia até há pouco tempo, e a antiga valorização das (os) estudantes do IESK, tanto pelo
emprego garantido, quanto pela remuneração, acabaram por tornar o IESK uma instituição
considerada tradicional e de excelência, na região oeste do Rio de Janeiro.

Um dos motivos de manutenção da excelência do Instituto pode ser atribuído à


rigorosa seleção das (os) candidatas (os),27 que praticamente determinava uma distinção social,
não permitindo que as pessoas menos favorecidas economicamente ingressassem no IESK, uma
vez que as mesmas não dispunham de dinheiro para pagar os cursos preparatórios (pré-normal) e,
portanto, não tinham a mesma bagagem cultural e social dos ingressantes.

Hoje, muitos associam uma certa decadência no ensino do IESK à falta da seleção,
pois agora entram alunos com menos conhecimentos e com menos ideais de seguir a carreira
docente. O depoimento da normalista Anne nos mostra essa opinião corrente:

Porque antigamente tinha-se prova pra entrar lá dentro, só entrava no Sarah


quem tinha realmente conhecimento das coisas e hoje em dia não, qualquer um
entra lá dentro e tem gente que vai pra lá só pra ter um diploma e que não vai
seguir carreira, entendeu? De uns seis anos pra cá,28 se não me engano, acabou
a prova pra entrar lá, então por isso que de dez anos pra cá que o Sarah caiu
legal, porque era uma excelente escola assim em termo de ensino era muito
bom, você saía de lá que tinha o antigo... esqueci o nome... o adicional que hoje
não existe mais. E você saía de lá pronta pra dar aula e hoje em dia não, você
tem que agarrar tudo que você vê pela frente.29

Essa seleção é mencionada, em diversos depoimentos, como um fator que fazia com
que as pessoas que se inscrevessem tivessem maior vontade de serem professoras, pois quem se
prepararia para uma prova tão difícil se não almejasse seguir a carreira docente? Ou mesmo,

27
Uso o termo no masculino e no feminino porque mesmo constituindo uma minoria, há alguns homens na
instituição, e a regra da gramática da Língua Portuguesa nos impõe que se um termo se referir a um grupo, onde
houver algum elemento masculino o gênero da palavra correspondente será masculino. No entanto, cabe observar,
que essa regra pode ser interpretada como uma exaltação do masculino sobre o feminino na nossa sociedade.
28
A última prova de seleção para ingresso no IESK foi em 1997.
29
Entrevista realizada em 29/03/2003 na residência da entrevistada; todos os outros depoimentos da normalista Anne
referem-se a essa mesma entrevista.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 34

quem não se contagiaria com o alvoroço de ser aprovado em tal concurso e, dessa forma, passaria
a exaltar a profissão também?

A certeza de um emprego garantido e bem remunerado, que propiciava a conciliação


com as atividades domésticas e oferecia um ensino de qualidade, levou o IESK a ser um dos mais
disputados colégios públicos de Campo Grande.

Entretanto, ao longo do tempo, o IESK foi perdendo a sua fama de instituição com
um ensino de excelência. Quando foi suprimida a seleção no ingresso dos alunos, as exigências
de entrada no IESK diminuíram concomitantemente, o que fez decair o nível dos novos
estudantes. Aliás, muitos começaram a entrar no Sarah Kubitschek simplesmente para satisfazer
o desejo dos seus pais, ou mesmo pela falta de outras escolas na redondeza.

Eu imaginava um colégio [...] super rígido. E eu gosto desses negócios que


sejam assim, você tem que fazer, você tem que cumprir [...] Então eu entrei lá.
Ah, eu fiquei toda empolgada quando eu comprei o uniforme, eu achava que ia
ser as mil maravilhas, de você chegar lá, professor exigente, apto a dar a
matéria, pronto para te explicar, e as pessoas, os alunos, pronto para aprender,
mesmo porque só entrava ali quem queria. Então como o Sarah, não sei porque
[...] passou a não ter aquela seleção para poder entrar lá. Então todo mundo
passou a ir pra lá, então começou a superlotar (normalista Rafaela).30

Figura 4 — Rampa do IESK


As disciplinas e regras que outrora eram impostas às normalistas entraram em
decadência e depredações foram cometidas no prédio, conforme vemos na figura acima.
Atualmente, esse fato pode ser percebido na impressão que as normalistas têm do IESK, depois
de começar seus cursos. Isso fica claro, por exemplo, no relato a seguir:
30
Entrevista realizada em 18/12/2002 na residência da entrevistada, todos os outros depoimentos da normalista
Rafaela referem-se a essa mesma entrevista.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 35

Eu pensei, assim que eu entrei que o Sarah fosse mais organizado. E organização lá não
tinha nenhuma, nenhuma mesmo, veio a ter mais ou menos quando eu estava no terceiro
ano que veio ter uma organização melhor (normalista Bárbara).31

Essa modificação no cumprimento das regras e na organização do IESK pode ter


acontecido até mesmo porque muitas das novas normalistas que ingressavam não queriam ser
professoras. As normalistas não compactuavam com as normas impostas. Então, não se viam
obrigadas a agir de acordo com os preceitos rígidos que sempre foram cobrados nessa instituição.
Normas estas que estão na origem da denominação “Escola Normal”, que foi trazida da França, e
que denotava a preocupação com a aceitação formal de obrigações pré-determinadas (Linhares,
1997, p. 184).

Essa mudança trouxe uma certa “nostalgia da escola normal do passado”. Isso pode
ser percebido no relato da normalista Anne, na página 31, cuja mãe foi formada pelo IESK nos
seus “áureos” tempos, que reclama que ela não teria tido a mesma sorte, “tendo que agarrar tudo
que ela visse pela frente”.

A nostalgia de uma escola melhor no passado é explicada por Linhares (1997, p. 195)
pelo fato de a escola do passado atender melhor às pessoas que tinham um maior poder aquisitivo
e, dessa forma, a “sua eficiência estava colocada no ensino-aprendizagem com um foco de
excludência generalizado às camadas pobres de nossa sociedade”.

A nostalgia, nesse caso, vem unida ao conceito de “tradição”, que usualmente alude
aos hábitos inveterados, antigos, transmitidos de geração em geração.32 Porém, atualmente,
muitas pessoas a têm exaltado excessivamente, se apegando a ela e, com um sentimento de
nostalgia, querendo que ela seja valorizada. Outras enaltecem demais os avanços tecnológicos,
desmerecendo tudo que vem do passado. Linhares (1997) propõe que não abandonemos o
passado, mas que precisamos contextualizá-lo, não esquecendo dos conflitos sociais que a
evocada tradição muitas vezes deixa de lado.

Esse termo é muitas vezes vinculado ao passado de “glória” das instituições públicas,
que, na época, não eram acessíveis às classes populares: “Uma face da tradição educacional
brasileira retrata sua preferência pelos ricos, pelos poderosos, pelas classes dirigentes. Esta
imagem tem sido divulgada como sendo a da tradição da escola no Brasil” (Linhares, 1997, p.11).

31
Entrevista realizada em 13/03/2003 na residência da entrevistada, todos os outros depoimentos da normalista
Bárbara referem-se a essa mesma entrevista.
32
Ver Luft (1993), Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 36

Com o trecho acima pode-se perceber que o desejo da “tradição” institucional


esconde, na maioria das vezes, uma exclusão das classes menos favorecidas e isso também ocorre
na “decadência” da escola, quando começa o ingresso em massa nas escolas públicas,
principalmente, como já havia dito, quando a seleção na sua admissão foi suprimida.

Essa decadência acaba acontecendo porque os meios educacionais não estão


organizados e prontos para a entrada da classe popular na escola, assim os ingressantes dessa
classe também não estão preparados para se inserir no sistema educacional.

Isso acontece por vários motivos, como, por exemplo, pelo fato de a origem social do
candidato não ser a mesma que é almejada e pressuposta pela escola (a hipótese escolar é de que
o aluno está bem nutrido, tem uma família que pode ajudá-lo e apoiá-lo financeiramente e
emocionalmente). Dessa forma, sua maneira de conhecer o mundo, sua memória social, também
não é valorizada, ficando mais difícil sua ligação com o conhecimento escolar (por exemplo, para
um aluno que nunca viu ou nunca ouviu falar de uma zebra, fica difícil fazer uma redação sobre
uma zebra).

Apesar dos problemas decorrentes da aparente “decadência” não só do IESK, mas de


todo o sistema educacional público, o Instituto de Educação Sarah Kubitschek ainda é uma das
instituições educacionais públicas mais procuradas e exaltadas em Campo Grande e nas
redondezas, até mesmo pelo esforço constante das autoridades do IESK para mantê-lo como
centro educacional de respeito e excelência na região, voltando sua preocupação para que os
ingressantes na escola desejem realmente exercer a profissão de magistério para a qual o instituto
prepara.

Não quero dizer que a tradição seja desnecessária, pois a memória precisa de uma
certa tradição para amparar suas lembranças e a cultura da sociedade. O que questiono é que as
recordações das normalistas não podem estar vinculadas somente a essa tradição passada, pois
assim a memória seria somente nostálgica, tirando-lhe a possibilidade de ser criadora. Para que
haja fluidez, a tradição pode ser modificada aos poucos, sem ser abolida nem entrar em
decadência, pois, ao modificar-se, ela pode atender melhor às necessidades do grupo.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 37

1.3 O “grande campo” que se fecha

O espaço é sempre marcado por nossa individualidade e pelos grupos a que


pertencemos, assim ele lembra a maneira de ser dos que viveram nele. Uma localidade tem um
sentido específico para uma coletividade, e, às vezes, pode não ser compreendida por outros
grupos, pois o lugar ampara os costumes de uma determinada coletividade e ela tenta, por isso,
preservá-los.

Para Nora, “a memória pendura-se em lugares, como a história em acontecimentos”


(1993, p. 25). Isto é, nossa memória apóia-se nos espaços que habitamos, no contexto em que
vivemos, portanto, todos os locais a ela relacionados são apoio para a lembrança, tornando-se
verdadeiros “lugares de memória”.

Neste momento de minha análise quero destacar a importância singular que essa
reflexão tem para mim. Friso que sou campograndense. Assim, minha memória está intimamente
ligada ao lugar em que vivo desde que nasci: Campo Grande. E, de algum modo, o apego ao local
influencia todos os que vivem nessa região. Porém, meu círculo de contatos não se restringe a
esse bairro, tenho familiares e amigos que moram em outros locais do Rio de Janeiro e em outros
estados brasileiros. Por causa disso, não concentrei as minhas atividades somente neste bairro.

No entanto, essa não é a situação da maioria dos moradores da localidade: a grande


distância do centro do Rio de Janeiro, a capacidade desse bairro de ter as suas necessidades
supridas por seu vasto comércio e a possibilidade de existirem numerosos espaços de contato
entre as pessoas, acabam por dificultar a saída dos moradores para conhecer e escolher outros
bairros, seja para sua diversão, seja para atividades em geral.

Isso aconteceu com muitas de minhas colegas de infância e adolescência que nunca
tinham conhecido a região Sul e o Centro do Rio de Janeiro. Era tão raro que o fizessem que
quando as freqüentavam diziam que tinham “viajado”. A utilização do termo “viajar” não deixa
de ser adequada, pois o fato de Campo Grande ser um bairro muito extenso, torna as visitas a
outros bairros uma verdadeira “viagem”, até mesmo para os bairros mais próximos.
Diferentemente, por exemplo, da região Sul do Rio de Janeiro, em que pode-se ir de um bairro
para o outro com muita rapidez (dependendo somente do trânsito). Mas, além disso, a noção de
viagem frisa a distância não só física, mas simbólica de Campo Grande com relação a outros
lugares do Rio de Janeiro. Sair do bairro é uma verdadeira aventura, um deslocamento que
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 38

implica não só uma mudança espacial, mas entrar em contato com outra “paisagem” humana:
outros valores, outros colegas, outras memórias.

Mafessoli (2001, p. 29) analisa a viagem como uma aventura que pode ser desejada
ou sofrida, pois relativizaria o peso do instituído:

Essa mobilidade é feita das migrações diárias: as do trabalho ou as do consumo.


São também as migrações sazonais: do turismo e das viagens, sobre as quais é
possível prever um importante desenvolvimento. É ainda a mobilidade social ou
os deslocamentos maciços de populações induzidas pelas disparidades
econômicas. Tudo isso é muito vulgar, mas contém em si uma importante dose
de aventura. Aventura que pode ser desejada, assumida ou sofrida, isso não é
problema. Pode ser compreendida como a modulação contemporânea desse
desejo do outro lugar que, regularmente, invade as massas e os indivíduos.

Dessa maneira, podemos analisar que o fato de os moradores de Campo Grande


utilizarem o termo viajar para sair de seu bairro significa que eles estão afastando do instituído,
das suas obrigações e estão participando de um outro mundo, onde está presente a aventura e o
encontro com outras culturas, estão participando da mobilidade exaltada por Mafessoli (2001, p.
93): “O frenesi das viagens a partir daí é um modo disfarçado de viver a mobilidade”. Isso não
significa que os moradores não gostem ou queiram deixar Campo Grande, mas que eles percebem
o bairro como diferente e sair dele representa uma forma de desafio que coloca em xeque seus
hábitos.

Essa situação tem importância para a questão estudada, já que o IESK torna-se um
lugar de memória, em que as características específicas desse âmbito mostram uma localidade
fechada em torno de si mesma, onde as pessoas costumam transitar somente nesse bairro e se
relacionar com outras pessoas apenas nesse espaço. O grande comércio, os diversos serviços e a
capacidade de encontrar o necessário para viver contribuem para que isso aconteça.

Isto é, a maioria das normalistas desse Instituto desenvolve todas as suas atividades
profissionais, sociais e familiares quase que exclusivamente em Campo Grande, com poucos
contatos com outros locais do Rio de Janeiro. E isso gera uma forma de pensamento específico.
Neste sentido, Halbwachs esclarece que “quando um grupo humano vive muito tempo em um
lugar adaptado a seus hábitos, não somente os seus movimentos, mas também seus pensamentos
se regulam pela sucessão das imagens que lhe representam os objetos exteriores” (1990, p. 136).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 39

As entrevistas evidenciaram a importância do espaço na configuração do pensamento:


33
o diretor exaltou, quando foi entrevistado, que o fato do IESK estar inserido em uma
comunidade fechada como Campo Grande lhe oferecia características distintas de outros locais,
principalmente no que diz respeito aos motivos de escolha profissional e ao perfil cultural dos
alunos.

Por que as normalistas concentram suas atividades em Campo Grande? Esse fato
pode ser explicado pela dificuldade encontrada para sair da região de Campo Grande e ter contato
com outras regiões. Isso pode ser percebido nas palavras da normalista Rafaela, quando indagada
se já tinha ido ao teatro:

Não. Eu tenho até curiosidade, porque eu acho até interessante. Mas os teatros
que apresentam peças [...] que estimulem os jovens e os adultos também a
verem, são muito longe [...] Lá em Ipanema, Leblon, aí, é muito difícil.

Essa dificuldade é causada pelo desconforto dos transportes da região e pelo alto
custo financeiro que esse deslocamento ocasiona, ou seja, se locomover de Campo Grande para
se divertir em outro lugar torna-se cansativo e caro. Dessa forma, é mais fácil se divertir na
região.

Nem todas as normalistas optam por não sair de Campo Grande, algumas se deslocam
para conhecer e se divertir em outros locais. Mas, mesmo as que freqüentam outros bairros
reconhecem que a comunidade campograndense se fecha em si mesma e usa, às vezes, como
justificativa da falta de ligação com outras localidades, a grande distância que as separa delas.
Podemos perceber isso quando uma normalista comenta que vai aos museus, enquanto seus
colegas da faculdade não vão: “Eu vejo que é muito complicado, às vezes, eu falo pro pessoal da
minha turma que é tão perto daqui, e é tão barato, porque têm inscrições que [...] são gratuitas, e
as pessoas não se interessam mesmo” (normalista Joyce).

Desse modo, as relações sociais acontecem de forma intensa na região: nas igrejas,
nos espaços de diversões — shopping, praia, festas, danceterias e clubes — e nas próprias
instituições de estudo, tanto no início da escolaridade quanto na etapa de formação profissional.
Esses encontros são importantes para preservar os laços comunitários e sua memória. Se eles
deixam de acontecer o grupo pode até mesmo cessar de funcionar como tal. Isso é esclarecido por

33
Entrevista realizada no IESK no dia 31/10/2002 com o diretor do Ensino Médio de Formação de Professores do
IESK, todos os outros depoimentos do diretor do IESK referem-se a essa mesma entrevista.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 40

Fentress e Wickham: “A transmissão da tradição é quebrada por qualquer vicissitude local [...] Se
comemorar for funcionalmente relevante para a construção da identidade local, a sua
sobrevivência está claramente menos assegurada se a sua relevância diminuir” (1992, p. 126).

Apesar da modificação urbana ser cada vez mais acentuada, Campo Grande ainda
guarda características de zona rural que influenciam a memória da comunidade. Essas
peculiaridades são evidenciadas, por exemplo, no fato das crianças brincarem livres nas ruas, dos
adultos conversarem nos portões, das festas de rua serem valorizadas e partilhadas coletivamente,
entre outras situações vivenciadas pela comunidade.

Nota-se, também, que os espaços de diversão da região são distintos dos de outros
locais, por exemplo:

• A rua se torna um dos principais locais de encontro, onde acontecem


conversas, brincadeiras, festas. Isto se evidencia em diversos eventos: carnaval, festa
junina, festival de pipa, entre outros.

• O shopping se torna diferente, pois deixa de ser um lugar de passagem e de


consumismo para constituir-se em um local de encontros: as praças de alimentação estão
constantemente lotadas, tendo suas mesas disputadas, porém com pouquíssimo consumo
alimentício no local. As lojas não são a única atração. Os vários grupos se encontram nas
praças de alimentação para paquerar e conversar e o consumo fica em segundo plano,
tendo em vista que quase não ocorre.

• Na região, os lugares mais freqüentes de encontro são festas, promovidas


nas ruas ou em salões.

As pessoas de Campo Grande acabam por não apreciar os valores culturais da região
Sul e o Centro do Rio de Janeiro, muitas delas nunca foram ou não freqüentaram teatros e
museus. Talvez isso se dê pela distância, mas será que é só por isso? As diversões existentes na
região aparecem como satisfatórias e não é necessário se ater a outras maneiras de lazer. A
aderência ao lugar fala mais alto que a possibilidade de conhecer outras alternativas.

Embora muitas pessoas saiam de Campo Grande, na maioria das vezes para trabalhar,
elas não tomam o novo lugar como próprio, pois suas diversões, valores e parâmetros continuam
a depender do seu bairro de origem.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 41

O contato permanente com a região acaba por ressaltar os valores sociais tradicionais
da população, como o machismo,34 que persiste com muita força na região, principalmente nos
comentários dos moradores. Mas, fica mais claro no fato de haver grande quantidade de mulheres
que são donas de casa e que não estudam e nem trabalham fora.

O machismo é um dos fatores que acabam por influenciar a escolha profissional das
normalistas na região, pois conforme uma concepção corriqueira da população “mulher não pode
fazer outras coisas”, já que outras profissões são mal vistas, não seriam dignas de mulheres
“decentes”.

A necessidade de encontrar boas escolas públicas e próximas também instiga, por


vontade própria ou da família, as normalistas a procurarem o instituto, pois Campo Grande não
tem muitas escolas de ensino médio, não restando outras opções, além do IESK. Todavia, o
incentivo familiar se torna maior porque esse instituto oferece uma profissão que é considerada
“digna” para a mulher.

O IESK se insere nesse espaço como a única possibilidade pública de formação de


professores. Porém, ele não se estabelece na comunidade como uma instituição com
funcionamento diferente das existentes em outras regiões do Rio de Janeiro, ou seja, não tem um
currículo oficial diferente destas. Mas, por se inserir numa região marcada por peculiaridades
bem definidas, ele acaba condicionando profundamente a memória dos alunos e dos professores.

Essas peculiaridades e suas repercussões nos moradores de Campo Grande não são
percebidas por todos. Nas entrevistas com representantes do IESK, percebi que o morador de
outra região tem maior facilidade para reparar as peculiaridades do bairro. Verifiquei isso quando
uma professora do IESK, que é campograndense, disse que o IESK não é permeado pelas
questões locais, e, em contraponto, o diretor, que reside em outro bairro, manifesta uma visão
divergente ao afirmar que os valores de Campo Grande influenciam sim, na formação no
Instituto.

O diretor do IESK alude ao baixo nível cultural das famílias como uma das razões
pelas quais a escolha da instituição se dá na região, pois essa falta de valorização da “cultura”, ou
do conhecimento, faz com que os pais coloquem os filhos na escola só “para não dar problema
em casa”:

34
A questão do machismo será aprofundada no capítulo 2.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 42

Então, essa cultura, você pode ver inclusive nos estudos sociológicos. É uma
cultura do tipo de quando você tem menos cultura, quando você tem menos
acesso às informações, isso tudo depõe muito para a família, que não liga muito
para cultura. Então, a normalista está numa escola para estar numa escola. Têm
famílias que chegam aqui: “o meu filho está aqui para não dar problema em
casa”.

A distância entre Campo Grande e o Centro/Zona Sul do Rio de Janeiro (denominado


por muitas pessoas da região como “lá em baixo”), dificulta o acesso a outras modalidades da
cultura (como teatros, bibliotecas, museus etc.). A dificuldade de acesso, e conseqüente adesão
aos hábitos locais (brincadeiras na rua quando criança; festas na rua quando adolescente e adulta,
entre outros) aparece claramente na fala das primeiras entrevistadas e também no relato do diretor
mencionado:

[...]“lá em baixo” como se diz aqui, [...] a maioria dos alunos que freqüentam
[...] escolas públicas [por exemplo em] — Vila Isabel, Tijuca, Laranjeiras —
[estão próximos a] bibliotecas públicas, e os professores fazem questão que os
alunos vão [...], [existem] projetos, que os alunos são retirados de sala de aula
durante um dia, dois dias, para visitarem museus, [...] até para visitarem peças
de teatro. Então, o IESK estar localizado em Campo Grande, [...] [causa] a
dificuldade de se levar qualquer turma [...] de ônibus, pois não se consegue, é
uma escola pública, nós não temos verbas para isso. Então não existem teatros
que funcionem durante o dia todo, não existem salas de cultura, não existem
salas de música, [...] tudo isso favorece para que os alunos de lá, das regiões,
tenham acesso a isso (os grifos são meus).

O termo lá em baixo, apesar de ser utilizado também em outras localidades afastadas


do Centro do Rio de Janeiro, demonstra como a região se torna distante não só espacialmente,
mas também no imaginário da população campograndense. É uma expressão que já pertence à
memória local, pois é amplamente utilizada, na comunidade, quando se alude ao Centro do Rio
de Janeiro. Um dado significativo, que aparece nas entrevistas, é que ninguém sabe o porquê da
origem desse termo. Esse termo é um chavão que frisa a distância — física e representativa —
entre o bairro e o resto da cidade.

A separação de Campo Grande de outras localidades do Rio de Janeiro fica nítida


nesse conceito amplamente utilizado no local para denominar a zona Sul e o Centro da cidade.
Nesse termo estão presentes tanto a convicção de que essas regiões são distantes do local onde
moram, quanto a crença de que é uma área diferente, existindo uma espécie de fronteira invisível,
que separa o bairro do restante do município.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 43

Essa expressão transmite a sensação de que lá em baixo haveria uma altitude menor
em relação a Campo Grande, o que não é verdade, pois o mesmo também está no nível do mar,
ou seja, não é localizado em nenhuma serra e fica ao lado da região das praias de Guaratiba.

Com isso, nota-se que o termo lá em baixo não tem um sentido geográfico, mas que
está presente no imaginário popular e que vem passando de geração a geração, tanto que ninguém
sabe quando ele surgiu. Porém, baixo, neste caso, não tem um sentido hierárquico, opondo-se
àquilo que estaria no alto. Basicamente, alude à distância, ao afastamento, talvez a um abismo
entre grupos sociais, como veremos a seguir.

Campo Grande é comparado, inclusive, por muitas pessoas da região — e pelo diretor
do IESK, conforme assinalo abaixo — com um feudo, pois seria fechado em torno de si mesmo e
as pessoas “não sairiam dali para nada”. O diretor também alude ao período feudal, como se as
pessoas estivessem vivendo dentro de uma fortaleza:

Eu tenho um colega, professor de geografia, que sempre diz que Campo Grande
é um “feudo”, tudo porque ainda tem algumas coisas que existem em cidade de
interior, que infelizmente, ou que felizmente estão acabando, então todo mundo
se conhece [...] Então eu acho que Campo Grande fica reduzido assim a um
feudo, porque nada sai daqui, tem alunos de 3o ano, com 19, 20 anos, que não
conheciam e não conhecem o centro da cidade, e é a cidade deles, Campo
Grande não é uma cidade. Tem professoras que se formaram no Sarah
Kubitschek, fizeram faculdades em Campo Grande, e que não saem de Campo
Grande. Então eu acho isso, [...] por um lado bom, porque ficou dentro da sua
comunidade, [...] mas ruim, pelo lado de você não conhecer a realidade que
existe em relação à cidade. Tem professores que eu conheço, professores que
nunca foram a um teatro, isso é inconcebível, qualquer que seja a área do
professor, seja biologia, química. [...] e o brasileiro por ser indolente, por morar
aqui em Campo Grande, [...] ele jamais vai sair daqui pra ir um sábado a noite
num teatro em Ipanema, jamais vai sair daqui para assistir uma peça no Teatro
Municipal. Então isso favorece a que Campo Grande seja um feudo, porque
depois as pessoas dentro daquela fortaleza que as pessoas não saem dali. Né,
como no período feudal, em Campo Grande acontece muito isso (os grifos são
meus).

Conta-nos a História mais convencional presente em muitos livros didáticos35 que os


feudos foram criados na Idade Média com o objetivo de “defender” seus moradores dos ataques
dos bárbaros. Dessa forma, uma região era toda cercada e tinha pouquíssimo contato com outras
áreas. Dentro do feudo, o senhor feudal era o detentor da propriedade e os outros trabalhavam e

35
Ver, por exemplo, VICENTINO, Cláudio. História Geral: Volume Único — 2 Grau. São Paulo: Scipione, 2002.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 44

obedeciam a esse senhor, tendo em contrapartida o “direito” de plantar em um pequeno pedaço


de terra para sua subsistência.

Para Mafessoli, o bárbaro é indesejável porque ele “vem perturbar a quietude do


sedentário. Potencialmente, representa ele o deflagrar, numa palavra, o advento do imprevisível”
(2001, p. 43). Ele é inconveniente à lógica de cada um ter o seu território único e estável, ele é
indesejável ao controle das pessoas enquanto trabalhadoras e detentora de hábitos, enquanto
fechadas no seu próprio mundo: “(...) o território individualista se torna uma prisão. Em lugar de
servir de base para uma possível partida torna-se lugar de fechamento” (p. 82).

É possível observar que as “muralhas” invisíveis da “fortaleza”, que cercam Campo


Grande, impregnam o imaginário da população que acaba por viver, estudar (ensino fundamental,
médio e superior) e se divertir somente na localidade, como acontecia nos antigos feudos.

Há uma “limitação” na locomoção das pessoas de Campo Grande para outras


localidades, o que dificulta o acesso às manifestações culturais não existentes na região e
contribuiu para que “nada saía dali”. Esse “nada” poderia aludir tanto às pessoas quanto ao
pensamento e aos hábitos locais.

A comparação, feita pelo diretor do IESK, de Campo Grande com um feudo vai além
das fronteiras espaciais difíceis de se transpor, pois é perceptível que, apesar de não existir um
senhor feudal, também há muita dificuldade de mobilidade social na região.

Esse ambiente fechado em torno de si mesmo propicia que exista uma “maneira de
ser” campograndense. Isso é percebido até mesmo em outros bairros. Um exemplo disso está
presente na narrativa de uma das normalistas que nota que quando vai a Barra da Tijuca (bairro
que fica a mais ou menos cinqüenta minutos de Campo Grande) as pessoas percebem que ela não
é de lá “pela sua maneira de falar e agir”.36 A “fortaleza”37 acaba se fechando ainda mais por essa
sensação de não pertencimento a outro lugar, de estranhamento dos campograndenses, no trato
com outros habitantes do Rio.

Talvez as pessoas do outro local nem estejam percebendo essas diferenças, talvez seja
a normalista que não se sente acolhida naquele bairro. Ou mesmo as outras pessoas possam

36
Depoimento da normalista Anne que não foi gravado.
37
Conceito que foi usado pelo diretor do IESK em sua narrativa citada acima.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 45

perceber algo diferente no visitante, mas não necessariamente ligam essa diferença ao
pertencimento a outra localidade.

Porém, algo é certo: essa normalista não se sente incluída no bairro que visita. Esse
outro local lhe é estranho e seus hábitos não são os mesmos, por isso ela prefere permanecer no
seu lugar de origem, que acaba por trazer-lhe uma afetividade e um relacionamento diferente com
as outras pessoas; relacionamento este que é mais aberto e menos discreto.

Talvez essa diferença de relacionamento aconteça pelo fato de seus moradores terem
menor poder aquisitivo e encontrarem-se em um bairro pobre, pois, conforme Guattari, o espaço
constitui uma forma de subjetivação que muda de um espaço para outro, e que é diferente em um
bairro pobre:

Quer tenhamos consciência ou não, o espaço construído nos interpela de


diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, funcional, afetivo... Os edifícios
e construções de todos os tipos são máquinas enunciadoras. Elas produzem uma
subjetivação parcial que se aglomera com outros agenciamentos de
subjetivação. Um bairro pobre ou uma favela fornecem-nos um outro discurso e
manipulam em nós outros impulsos cognitivos e afetivos (GUATTARI, 1992, p.
157-158).

Guattari esclarece que a disposição do espaço de diferentes formas (edifícios, bairros


pobres, favelas, entre outras) produz uma subjetivação que afeta nossa maneira de agir, de
apreender os fatos que nos cercam e a nossa própria maneira de manifestar afeto pelos outros e
pelo nosso espaço de contato. Assim, podemos analisar que a disposição de cada bairro ou
localidade favoreceria um tipo de relação entre seus moradores.

Foucault (1989, p. 212) também nos mostra que “é surpreendente ver como o
problema dos espaços levou tanto tempo para aparecer como problema sócio-político. [...] A
fixação espacial é uma forma econômico-política que deve ser detalhadamente estudada”. A
divisão e a disposição do espaço influenciam a conduta das pessoas, assim como condicionam os
grupos a estabelecerem determinadas relações de poder. Ou seja, a fixação espacial subjetiva as
pessoas e interfere nas configurações sócio-políticas.

Considero que o fato de Campo Grande ser um bairro fechado — um “feudo”,


conforme as palavras do diretor, faz com que seus moradores fiquem alheios aos hábitos e
valores de outros locais. E, dessa forma, eles vivem atentos somente nos seus afazeres, conversas
e costumes (na figura abaixo, uma cena cotidiana das conversas no IESK).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 46

Figura 5 - Conversas
O grupo seria o elemento preservador dessa “fortaleza”, pois seu interesse está no seu
entorno e, assim, tentaria defendê-lo. Nesse ponto, a leitura de Halbwachs (1950, p.135) é
esclarecedora:

Assim, não somente casas e muralhas persistem através dos séculos, mas toda a
parte do grupo que está, sem cessar, em contato com elas, e que confunde sua
vida e a dessas coisas, permanece impassível, porque não se interessa a não ser
por aquilo que se passa, na realidade, fora de seu círculo mais próximo e além
de seu horizonte mais imediato.

A afirmação do diretor do ensino normal do IESK de que “nada sai de Campo


Grande”38 é corroborada, de alguma forma, pelas palavras de muitas das normalistas
entrevistadas, até mesmo pelas integrantes das famílias mais instruídas, que dizem que nem
tentaram ingressar nas universidades federais. Geralmente, justificam essa desistência pelo medo
de fracassar, mas, principalmente, pela distância e dificuldade de se locomover para a
universidade, em caso de aprovação. Dessa forma, preferiram cursar o nível superior em Campo
Grande, em alguma das muitas faculdades particulares ali existentes.

As faculdades privadas estão se proliferando pelo Rio de Janeiro, principalmente em


Campo Grande. Elas aproveitam a distância para atrair os alunos que não podem ir a outra região
para estudar. O aumento de cursos superiores na localidade é considerável: há pouco tempo em
Campo Grande havia duas faculdades, agora já existem mais de cinco.39

38
Ver página 41.
39
Antigamente existiam a FEUC e a Faculdade Moacir Sreder Bastos, hoje existem várias como Estácio de Sá,
Univercidade, Bezerra de Araújo, entre outras.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 47

O diretor assinala que as alunas não teriam projetos claros para seu futuro, e que, por
isso, a dificuldade de percorrer uma grande distância para cursar uma faculdade pública faz as
mesmas desistirem:

Porque na verdade elas não [têm] um objetivo, um futuro na vida. Se você


perguntar às alunas “o que você vai querer, o que você vai ser na vida?” São
raras aquelas que dizem “vou fazer uma faculdade, vou fazer isso, vou
prosseguir nos meus estudos”. Então eu acho que a vida educacional, a vida
estudantil dos alunos, até de todo Campo Grande, vamos generalizar, termina
depois que acaba o ensino médio. Porque Campo Grande, voltando ao feudo,
não tem nenhuma universidade pública, na zona oeste não tem nenhuma
universidade pública. Então os alunos têm que sair do Sarah Kubitschek, sair do
Miécimo, sair do GP,40 e aí se tiverem vontade, ou galgarem [...] às
universidades públicas, UERJ, UFRJ, que ficam distantes daqui. São raros
aqueles alunos meus que [...] estudam na UERJ, na UFRJ. Portanto se limitam a
fazer [faculdades particulares aqui da região]. Você está vendo aí que a
propagação de faculdades particulares por aqui é enorme, por que? Porque vão
pegar esses alunos que não têm condições, eu acho que até condições de
conteúdos até teriam. Mas não têm condição de fazerem o vestibular para se
habilitarem a uma faculdade pública. Então, eles ficam em Campo Grande
(diretor do IESK).

Esse fato pode ser interpretado também de outra forma. Muitas normalistas optam por
não se distanciar do seu espaço de convivência, até mesmo pelas dificuldades, pelo perigo e pelo
alto custo que essa locomoção para uma universidade pública acarretaria. Então, preferem
simplesmente continuar seus estudos em Campo Grande.

Resumindo o já assinalado, afirmo que a ligação entre memória e espaço é muito


forte, principalmente no caso das professoras entrevistadas, que ainda estão influenciadas pelo
contexto campograndense e cuja memória condiciona a sua prática profissional. Esse forte
vínculo me permite realizar uma reflexão relacionada com sua escolha profissional e os diversos
desdobramentos dessa escolha.

Esta reflexão me leva à conclusão de que o espaço de convivência pode ser vivido de
uma forma uniformizadora ou libertadora. Conforme nos demonstra Guattari (1992, p. 158):

O alcance dos espaços construídos vai então bem além de suas estruturas visíveis e
funcionais. São essencialmente máquinas, máquinas de sentido, de sensação, máquinas
abstratas funcionando como o “companheiro” anteriormente evocado, máquinas
portadoras de universos incorporais que não são, todavia, universais, mas que podem
trabalhar tanto no sentido de um esmagamento uniformizador quanto no de uma re-
singularização liberadora da subjetividade individual e coletiva.

40
O GP (Ginásio Público) e o Miécimo são dois dos poucos colégios públicos de ensino médio da região.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 48

Podemos, dessa forma, analisar o espaço fechado de Campo Grande, onde se insere o
IESK, como condicionante de uma intensa relação com o local, porém essa relação não deveria
ser limitadora de um conhecimento e de um contato com outras formas de agir, como vem
acontecendo de uma forma geral. A formação de professores deve ser mais ampla e aberta ao
conhecimento de costumes e de culturas gerais, contudo, os limites geográficos de distância da
região de Campo Grande têm restringido o contato com outras manifestações culturais.
Entretanto, posso perceber que a exaltação das manifestações culturais da localidade possibilita
um maior relacionamento entre seus moradores, cuja memória social traduz uma presença
marcante dos valores locais. Dessa forma, há uma forte vinculação dos costumes e valores das
normalistas do IESK com seus ambientes de trabalho, diversão e convivência.

Assim, também essas lembranças coletivas podem ter uma influencia positiva sobre a
prática pedagógica das normalistas, futuras professoras da região, pois conhecendo o cotidiano da
localidade, elas podem relacionar-se de forma mais profunda com o contexto de vida dos seus
futuros alunos, sendo, assim, recriadoras dessa memória local.

Halbwachs (1990), como já apontei, afirma que o lugar deixa suas marcas no grupo e
vice-versa. Levando em conta essa afirmativa, podemos inferir que as normalistas tiveram suas
escolhas influenciadas pelo espaço em que vivem, ou seja, pelo fato de a memória local
incentivar a carreira de professores como uma das profissões mais acessíveis da região. As
estudantes seguiram essa tendência e, continuando na localidade, ajudaram e ajudam a recriar
mais uma vez essa memória e o sentimento de unidade do grupo local.

Em resumo, analisei ao longo deste capítulo, como a memória das normalistas do


IESK de Campo Grande é influenciada por esse espaço de convívio. Suas lembranças e seus
costumes estão marcados por um lugar muito peculiar, muito diferenciado de outros lugares do
Rio de Janeiro. A memória campograndense influencia de forma clara as normalistas do IESK na
sua trajetória profissional, na sua formação, no seu perfil docente, nos seus valores. Essa
memória está marcada por um ritmo calmo, tranqüilo, em que as relações de vizinhança e o
dialogo cotidiano são cultuados; esse ritmo é muito diferenciado do agito vivido nos outros
bairros do Rio; por outra parte, esse lugar distante do centro parece tornar-se um “feudo”, um
lugar fechado a outras influências. Desse modo, as normalistas recriariam uma memória que
bloqueia outras necessidades, tornando-se restrita e limitada. Neste ponto, será importante
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 49

analisar, no próximo capítulo, como uma visão tradicional do papel feminino pode ter impacto
nas normalistas formadas no IESK.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 50

2 O gênero e a profissão docente: impactos na memória das normalistas do


IESK

Sem trabalho eu não sou nada


Não tenho dignidade
Não sinto o meu valor
Não tenho identidade
Mas o que eu quero é só um emprego
E um salário miserável
Eu tenho o meu ofício
Que me cansa de verdade
(Renato Russo — Música de Trabalho)

A sociedade em que vivemos nos impele a ter um trabalho para que possamos nos
sentir cidadãos dignos de viver nela. O trecho da música acima corrobora a idéia de que para
termos “dignidade”, “valor”, “identidade”, enfim, para nos afirmarmos enquanto pessoa é
necessário exercer uma profissão. Muitas vezes aceitando um salário “miserável” e, até mesmo,
um subemprego, se não houver alternativa.

A necessidade de trabalhar decorre de pressões sociais que estão inscritas no poder


vigente. Esse poder, de acordo com Foucault (1979), não provém de um só lugar e é exercido
sobre o indivíduo a todo o momento no intuito de discipliná-lo e torná-lo útil, isto é, produtivo. O
poder controla a memória e acaba por constituir o eu, como esclarece Gondar (2000, p. 37):

[...] a memória é um instrumento de poder — o que implica admitir que não há


poder político sem controle da memória e do arquivo [...]. Política que não se
reduz à dimensão do Estado, mas que abrange todas as dimensões onde se
verifica um embate entre forças, um jogo de poder — incluindo aí a própria
constituição do “eu” [...]. (grifo da autora)
A memória enquanto instrumento de poder tenta constituir o indivíduo para controlá-
lo, isso pode incluir a opção pela profissão que vai seguir, que pode ser definida socialmente. Na
busca por encontrar uma forma de afirmação na sociedade, de constituir o “eu”, quem tem um
baixo poder aquisitivo acaba saindo em desvantagem, pois precisa entrar o mais cedo possível no
mercado de trabalho. Além disso, na maioria das vezes, não tem uma família que possa sustentá-
lo por muito tempo. Uma das maneiras de antecipar a entrada no mercado de trabalho é através
dos cursos de nível médio profissionalizante, como o de formação de professores.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 51

Nesse contexto, existe a possibilidade de escolha de várias atividades, como médico,


professor, advogado, faxineiro, pedreiro, engenheiro, entre outros. Porém, algo que chama a
atenção é o fato de algumas delas serem procuradas, em sua maioria, por mulheres e outras por
homens. Nas profissões que historicamente foram destinadas ao “gênero” feminino, a função de
professor é a que mais envolve um direcionamento histórico, uma memória e um arcabouço de
justificativas “naturalistas” que invocam diferenças biológicas para dizer que é “natural” que a
mulher opte por essa profissão (BRUSCHINI e AMADO, 1988, p. 7).

É necessário esclarecer que o termo gênero, assinalado no parágrafo acima, se refere


aos papéis sociais atribuídos ao homem e à mulher e não à distinção sexual do macho e da fêmea.
A esse respeito, Yannoulas (2001, p. 70) afirma:

A palavra sexo provém do latim sexus e refere-se à condição orgânica


(anatômico-fiosiológica) que distingue o macho da fêmea [...] A categoria
gênero provém do latim genus e refere-se ao código de conduta que rege a
organização social das relações entre homens e mulheres. Em outras palavras, o
gênero é o modo como as culturas interpretam e organizam a diferença sexual
entre homens e mulheres. (grifos da autora)
Dessa forma, quando utilizo o termo gênero não estou falando apenas das diferenças
biológicas entre o sexo masculino e o feminino. Mas pretendo analisar o aspecto social da
questão: por que a sociedade diferencia as atividades de homens e mulheres e como essa divisão
pode gerar uma memória a respeito de um ofício ou profissão?

Portanto, neste capítulo pretendo analisar os meandros da escolha da carreira docente,


assim como a memória envolvida nessa opção e os motivos que a influenciam. A memória
encaminha sempre para uma escolha, que leva ao esquecimento de outros estímulos que não
foram escolhidos, conforme assinala Gondar (2000, p. 36):

Para que uma memória se configure, se delimite, coloca-se, antes de mais nada,
o problema da escolha (seja ela consciente ou inconsciente): entre tantos
estímulos diferenciados que nos chegam do mundo, alguns serão investidos a
ponto de se tornarem traços mnêmicos, ao mesmo tempo em que outros serão
segregados, esquecidos sem que jamais se tenham convertido em memória.
A escolha de uma profissão não é somente pessoal, ela está permeada sempre pela
memória do indivíduo, que implica uma opção que pode ser baseada no orgulho próprio, mas
depende de condicionamentos sociais mais profundos. Essa escolha, ou orgulho, leva ao
esquecimento de outras influências possíveis, pois ela é afetada pelo poder político que é
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 52

exercido sobre o sujeito. Gondar (2000, p. 37) nos mostra que essa análise deve tentar sempre
esclarecer outros fatores:

Não basta supor que a memória dá forma e conteúdo à identidade de um “eu”,


de um grupo, sociedade ou nação. Pois admitir a relação de forças entre
memória e esquecimento implica admitir o quanto essa grande abstração
chamada “identidade” é ficcional, o quanto ela implica numa escolha política —
ou “orgulhosa” —, o quanto ela se deve aos nossos interesses práticos. Não
podemos falar de memória, articulando-a à identidade, sem inseri-la num
afrontamento de forças e sem levarmos em conta que a memória é, antes de
mais nada, um instrumento de poder.
É essa análise das forças que se afrontam na formação da escolha e da memória das
normalistas que pretendo discutir neste capítulo; análise esta que abordará tanto o contexto
histórico geral que levou a profissão docente a ser considerada uma função feminina por
excelência quanto às narrativas das normalistas entrevistadas. Pretendo, com isso, desenvolver
um estudo específico sobre os relatos das normalistas no intuito de averiguar quais foram as
forças e os interesses que as levaram a optar pelo magistério.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 53

2.1 Professor: Uma profissão historicamente feminina

Desde que os seres humanos nascem, a masculinidade e a feminilidade são


marcas que identificam cada sexo e são impostas à psique da criança. Toda a
vasta gama de elementos que constituem a nossa cultura atuam no
desenvolvimento da consciência social de meninas e de meninos. Tanto para
homens, quanto para as mulheres, modos de ser e de estar no mundo são,
portanto, construções históricas e culturais.[...] não há apenas um conceito, mas
houve e há vários conceitos de gênero, ao longo da história, em diferentes
culturas e até mesmo em uma dada sociedade, no mesmo momento histórico
(CATANI, 1997, p. 39).
A epígrafe acima leva à conclusão de que os “modos de ser” de homens e mulheres
dependem de todo um arcabouço social, cultural e histórico que faz com que a masculinidade e a
feminilidade marquem cada pessoa de um determinado local, em um dado momento. Essas
“marcas” — conforme assinala Catani — repercutem em todas as atividades e em todos os
espaços sociais em que a pessoa interage. Dessa forma, tais condicionamentos podem interferir
também nas escolhas que esse indivíduo terá que fazer durante a sua vida. Uma decisão essencial,
na nossa sociedade, é a opção profissional, sendo que alguns trabalhos são realizados em sua
maioria por homens e outros por mulheres.

A quantidade de mulheres que escolhe a profissão do magistério é muito maior que a


dos homens que têm optado pela docência. Isso acontece no IESK, por exemplo, onde a
proporção de homens que ingressam nesse Instituto é muito pequena comparada à quantidade de
mulheres.41 Isso fica claro no IESK, por exemplo, na Figura 5 abaixo.

Figura 6 — Sala de aula do IESK

41
Menos de 10% dos alunos são do sexo masculino, pois, geralmente, há menos de 5 alunos homens nas listagens
das turmas que têm cerca de 40 alunos.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 54

Esse fato diz respeito a uma questão fundamental nesta dissertação: qual a memória
que determina a opção profissional pelo magistério?

Para ter uma visão mais geral da instituição estudada procurei essa resposta
inicialmente nas explicações das autoridades do IESK, que estão em contato constante com os
alunos e freqüentemente conversam com eles sobre o motivo das suas escolhas. A resposta dos
mesmos, com relação ao fato da maioria dos estudantes do IESK serem do sexo feminino, remete
a um fator histórico, algo que influenciou a sociedade brasileira em geral e que não acontece
somente no IESK, mas na carreira docente como um todo. Podemos verificar isso na fala de uma
professora do IESK:

Quando começou a profissão de professora, pela lei era só para mulher [...] veja
que no Instituto de Educação da Mariz e Barros só tinha mulheres. Tanto é que
a profissão de professora tem uma regalia: o professor pode faltar 3 dias com
atestado médico; você sabe o que que eram esses 3 dias? [...]. Eram os três dias
de menstruação. Homem não menstrua que eu saiba! [...] Então, [...] as leis que
existiam pra beneficiar o profissional daquela época eram eminentemente
femininas, 3 dias para a menstruação.[...] [Assim], a sociedade que fez isso
colocou um rótulo que eram masculinas a área militar, de engenharia... Você vê
que a engenharia era só para homem, matemática eram só professores homens.
Então eram coisas assim separadas: masculino e feminino. [...] [hoje] a lei
continua com 3 dias, e os homens tiram também os 3 dias.
Uma atividade que necessita de uma lei que ampare a mulher nos seus dias de
menstruação é uma função dirigida, obviamente, ao feminino, uma profissão que, por lei, tornou-
se específica da mulher. Essa lei existe para o magistério público estadual do Rio de Janeiro. O
professor tem três dias nos quais pode faltar com amparo médico, para isso, ele precisa apenas
entregar um atestado: não necessita ir a uma biometria médica ou passar por uma avaliação que
prove que ele realmente tem algum problema. Hoje essa lei não contempla especificamente à
menstruação, porém, no passado, esse atestado era dado fundamentalmente para justificar a
ausência nos dias de menstruação, conforme a entrevistada.

Na legitimação da docência como profissão eminentemente “feminina”, as


instituições da sociedade têm papel importante. Principalmente a família, a escola e a igreja, que
muitas vezes limitam a escolha, impondo forçosamente a opção pela carreira docente, sem outras
alternativas para a mulher. Assim, as instituições sociais encaminham a mulher para a profissão
docente de várias maneiras:

• Nos comentários explícitos a respeito da profissão “digna” que ela deve escolher.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 55

• Implicitamente, nos valores e costumes que a condicionam individualmente e permeiam a


sociedade em que ela vive.

• Através da pressão que muitos pais exercem para que a filha estude para ser professora,
pois, apesar da desvalorização salarial, essa ainda é uma profissão almejada pelos pais,
principalmente os das classes desfavorecidas que vislumbram poucas opções laborais para
os seus filhos.

Neste ponto, Lourenço Filho (2001, p. 17) assinala:

O que há, em relação à escolha da profissão — para este mister, como para
tantos outros — é o resultado da formação social. Idéias, hábitos mentais,
longamente firmados desde a infância; tradições da família; bom ou mau
conceito local de determinado trabalho; influência direta muitas vezes dos
nossos primeiros mestres que tomamos como modelo; modificações de
melhoria econômica da profissão — tudo isso pode agir isoladamente ou em
conjunto, num dado momento.
Também é importante observar o fator econômico na escolha da profissão docente,
muito presente em Campo Grande, como é detectado e ressaltado pela direção do IESK. A
maioria dos estudantes da instituição não tem mais boas condições financeiras como ocorria
antes, com os alunos dos chamados “anos dourados da educação”, das décadas de 1940 e 1950
(MARTINS, 1996).

Outrora, ainda havia a possibilidade dos ganhos serem maiores, pois o marido da
professora, por estar bem situado financeiramente, podia sustentá-la. Quando o marido não
sustentava a casa e dependia financeiramente da mulher professora, era mal visto pela sociedade,
sendo chamado de “chupim”. Termo que era usado para denegrir o homem que não se ajustava ao
papel social esperado: sustentar financeiramente a casa e a esposa. Esse termo pejorativo, apesar
de ter caído no desuso, existe até hoje. Nos dicionários é usado para definir o “marido de
professora que vive às custas dela”.42

A professora, hoje, precisa conciliar a tarefa doméstica com o trabalho docente, que
em muitos casos são exercidos em jornadas duplas e, até mesmo, triplas. Esse é um fato que
sempre esteve presente na história da educação e que vem se aprofundando com o decorrer do
tempo, consolidando o perfil de “profissão feminina” do magistério. A memória das normalistas

42
Ver, por exemplo, o “Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa” de autoria de Luft (1993).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 56

do IESK está marcada por esta “feminização” do magistério; memória esta que condiciona a
sociedade em geral e acaba por influenciar sua escolha profissional.

É importante esclarecer essa noção que estamos empregando, pois os termos


feminização e feminilização geram diferentes interpretações. O conceito “feminização do
magistério” é utilizado por Almeida (1998) para se referir à expansão da mão-de-obra feminina
em escolas, nos sistemas educacionais, na freqüência à Escola Normal e nos traços culturais que
favoreceram o exercício do magistério pelas mulheres.

Tambara (1998) emprega o termo “feminilização” identificando a relação que se faz


entre a “natureza feminil” e a prática docente no ensino primário, num movimento de colagem
das características feminís, próprias do sexo feminino, ao magistério.

Yannoullas (2001, p. 74) dá um sentido diferenciado às duas palavras, associando


feminilização ao aumento quantitativo de mulheres em uma profissão e feminização às
transformações qualitativas que esse aumento quantitativo provoca na sociedade:

Significado quantitativo ou feminilização: refere-se ao aumento do peso relativo


do sexo feminino, na composição de uma profissão ou ocupação, sua
mensuração e análise realizam-se por meio de dados estatísticos.
Significado qualitativo ou feminização: alude às transformações de significado e
valor social de uma profissão ou ocupação, originadas a partir da feminilização
e vinculadas à concepção de gênero predominante em uma época; seu impacto é
avaliado por meio da análise do discurso.
Presume-se que exista uma relação intensa entre o acesso maciço de mulheres a uma
profissão ou ocupação (feminilização) e sua transformação qualitativa (feminização). À medida
que aumenta a presença feminina, diminuem as remunerações, a ocupação passa a ser
considerada pouco qualificada e decai o prestigio social da profissão.

Ou seja, a femilização proporciona uma feminização que modifica a visão que se tem
de determinada profissão na sociedade. Mudanças no significado, no valor e no status que a
mesma tem na concepção das pessoas dessa época. Isso acaba provocando uma transformação na
remuneração e no prestígio dessa profissão e também uma influência na memória social. Assim, a
docência é lembrada como uma atividade desvalorizada, realizada por pessoas pouco capacitadas,
já que são qualificadas apenas por serem mulheres, com condições naturais para cuidarem das
crianças.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 57

Não há dúvida que a feminização ocorreu no magistério, pois, não é só o aspecto


quantitativo das mulheres que aumentou nos âmbitos educacionais, mas também a concepção da
profissão docente na sociedade que está sempre associada às características femininas e, por isso,
está sendo cada vez mais desvalorizada. É importante perguntar desde quando a feminização do
magistério tem acontecido. Como a divisão de gênero influencia na escolha pela carreira docente
nas normalistas do IESK? Para responder essas perguntas e chegarmos a entender os fatos que
levam, na atualidade, a essa condição, realizo, na próxima seção, um breve histórico do papel da
mulher na educação.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 58

2.2 Histórico da mulher na educação

A escola, como um espaço social que foi se tornando, historicamente, nas


sociedades urbanas ocidentais, um locus privilegiado para a formação de
meninos e meninas, homens e mulheres é, ela própria, um espaço generificado,
isto é, um espaço atravessado pelas representações de gênero. Em nosso país,
como em vários outros, esse espaço foi, à princípio, marcadamente masculino
(LOURO, 1997, p. 77).
Ressalto, de acordo com a epígrafe acima, que a educação, durante longo tempo, era
função estritamente masculina, os alunos eram do sexo masculino e o ensino era exercido
principalmente por religiosos (por padres, como os jesuítas) e por homens que estudavam e eram
contratados como tutores pelas pessoas com melhores condições financeiras.

Mas, após a Revolução Francesa, com a ascensão da burguesia, a mulher é chamada a


assumir o seu “papel social” na educação dos filhos. Porém, não é a sua entrada no magistério
que permitiu que as separações e discriminações efetuadas com base nas relações de gênero não
estivessem presentes na escola. Elas já estavam arraigadas na instituição escolar e mudar as
relações excludentes de gênero não dependia somente da aceitação da mulher como docente.

Como conseqüência da abertura do magistério às mulheres, desqualifica-se e


desvaloriza-se a mulher através do discurso da falsa igualdade dos gêneros, limitando suas
qualidades profissionais, invocando um papel feminino, um suposto “dom” de um
comportamento emocional e moral. Esse dom era considerado inadequado para outras funções do
âmbito público. A mulher, assim, fica restrita à esfera privada, pelo simples fato de ter nascido
mulher e poder gerar a vida (ARCE, 2001).

A associação da atividade de magistério a um “dom” ou a uma “vocação”43 feminina


baseia-se em explicações que relacionam o fato de a mulher gerar em seu ventre um bebê com a
“conseqüente função materna” de cuidar de crianças; função esta que seria ligada à feminilidade,
à tarefa de educar e socializar os indivíduos durante a infância. Dessa forma, a mulher deveria
seguir seu “dom” ou “vocação” para a docência.

No Brasil, essa caracterização da mulher como educadora dos filhos não se deu de
forma imediata. Na colonização, os portugueses vieram para o Brasil trazendo seus modelos de

43
Esses termos são hoje muito contestados por postularem uma explicação supostamente “natural” para que a mulher
aceite a profissão do magistério como sua vocação e sacerdócio. Dessa maneira, ela não pode questionar nem refletir
sobre sua condição profissional.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 59

comportamento e dominação: “O domínio econômico se exerceu na predominância do dominante


sobre o dominado, na subjugação do despossuído ante o possuidor, o que, com força política,
terminou por originar grandes distorções em nossa cultura” (CAVALCANTE & CRUZ, 2000,
p.84).

Esse domínio era patriarcal, típico na cultura ocidental judaico-cristã, e foi


aperfeiçoado durante anos pelo sistema capitalista em ascensão. A sociedade patriarcal
determinava que as mulheres fossem subjugadas pelos homens: pelo pai, pelo marido e pelas
regras elaboradas por estes (FREITAS, 2000).

O paternalismo exigia que a mulher restringisse sua atuação à esfera privada de sua
casa, e sua ação pública se limitava a participar das atividades da igreja. O impacto dessa
restrição levou a mulher a se recolher ao âmbito doméstico, à condição de mera reprodutora,
tornando-se apenas um objeto de domínio masculino.

Vários poemas da época ilustravam essa limitação da mulher ao papel doméstico,


como se pode notar nos versos de Gregório de Matos: “Para parecer mulher que poupa, não se
descuide em remendar-lhe a roupa, irá poucas vezes à janela, mas as mais que puder irá à panela;
ponha-se na almofada até o jantar, e tanto há de coser como há de assar” (Obra poética, vol.2, p.
1261-2).

A mulher não precisava ter boa formação, bastava-lhe aprender as primeiras letras e
os cálculos aritméticos básicos para assegurar as tarefas do lar. Numa visão muito peculiar a
mulher era apresentada como tentação permanente que deveria ser “domada” para tornar-se uma
boa mãe e para que não desviasse o homem do caminho correto (FREITAS, 2000). Esse
pensamento era baseado na explicação bíblica da primeira mulher, Eva, ter incentivado o
primeiro homem, Adão, ao pecado e, por isso, os dois teriam sido expulsos do paraíso. Mello e
Leite (2000, p. 38-39) nos mostram como houve uma tentativa de controlar essa mulher
“pecadora”:

Assim, alicerçada nos postulados científicos aristotélicos de “incompletude


feminina”, a Igreja Católica estabeleceu um “modelo de cristandade ocidental”
permanente, no qual consolidou uma postura valorativa da mãe, ou seja, da
mulher enquanto elemento procriador em constante analogia com Maria que
aceitou “docilmente” sua missão. Em um pólo oposto estaria Eva, cuja criação
oriunda da costela de Adão já denotava uma relação de inferioridade intrínseca
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 60

— era “a pecadora” — cuja sedução maligna desviou o homem do caminho


correto e extirpou do paraíso o destino de toda a humanidade.

A concepção de que a mulher é motivo de “tentação” estava presente na memória das


mulheres de outrora. Memória que tenta se recriar nos objetos, nos vestígios, nas lembranças que
essas mulheres guardavam para rememoração de prazeres e bem querenças que ficaram em
algum lugar do passado (CATANI, 1997, p. 43). Elas realizavam várias tentativas de registrar, e
de divulgar em diários, agendas etc., essa memória, no decorrer de suas vidas.

Aqui é possível inquirir: mas os homens não tentam também registrar suas
lembranças? Sim, mas no decorrer da história os registros masculinos eram feitos muito mais
para marcar as datas de guerras, acontecimentos, descobertas, do que para falar de seus prazeres e
angústias. Isso pôde ter acontecido porque a memória está atrelada às vivências de cada indivíduo
e os homens, no passado, estavam muito mais direcionados para seus trabalhos do que para uma
auto-análise ou reflexão de sua vida sentimental.

De acordo com Catani (1997, p. 44) a mulher apresenta uma memória diferente da
dos homens e isso se dá não por ela pertencer a um dos gêneros: não é o fator biológico que
especifica o tipo de memória, mas as experiências e trajetórias de vida de cada sexo. Ou seja, o
fato de a mulher ser subjugada ao âmbito doméstico acaba fazendo com ela tenha mais tempo
para refletir sobre suas vivências e, assim, possa tentar registrar, com detalhes, seus momentos de
prazer, ativando sua memória.

Linhares (1997, p. 125-126) assinala que a memória é um “tesouro” disputado há


tempos pelo poder e, por isso, a mulher muitas vezes era penalizada e controlada, pois se
considerava que ela tinha uma intensa capacidade de lembrar, devido a influências “demoníacas”:

A memória sempre constitui um tesouro. [...] pela sua importância foi disputada
e controlada politicamente, tanto em sua forma oral como sob a forma escrita,
monumental e ritual. [...] Não é por outra razão que vamos encontrar ainda na
Idade Média tentativas de controle da memória e de suas expressões.
Encontramos, por exemplo, medidas administrativas de algumas
municipalidades, que vincularam a si os jograis e jogralesas, para controlar a
comunicação e a difusão de seus relatos. Quantos deles foram punidos — até
com a morte — pelo exercício de uma memória convincente que era percebida
como mais ameaçadora, pelas possíveis conexões com o prazer sexual [...] A
velha suspeita já, registrada na Grécia, no diálogo a que é exposto Tirésias
quando indagado sobre a ordem superior de prazer que as mulheres poderiam
ter. Parece voltar ao medievo a suspeita de que a memória potente das mulheres
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 61

se explicaria por pactos secretos com o demônio que só a fogueira poderia


aplacar...

A fogueira era o castigo aplicado às mulheres (principalmente) porque teriam uma


memória potente, e convincente, ligada muitas vezes com o prazer que era considerado perigoso.
O prazer, que era associado com a memória das mulheres, deveria ser controlado. Neste sentido,
Foucault nos mostra que, desde a antiguidade, várias práticas foram desenvolvidas em torno do
ato sexual “No final das contas, vimos que o ato sexual parece ter sido considerado desde há
muito tempo como perigoso, difícil de ser dominado e custoso; a medida exata de sua prática
possível e sua inserção num regime atento foram exigidas desde há muito tempo” (1985, p. 233).

A memória era perigosa e mais ainda se viesse da mulher que era submissa ao
homem. A memória era perseguida, pois pressentia-se nela um perigo, nela se manifestava a
liberdade de pensamento tão temida pela igreja e pelo poder:

A Inquisição farejava os pontos nodais da liberdade do pensamento e,


certamente, ainda que isto não fosse assim formulado, já a memória era
pressentida como essa argamassa organizativa que vai configurando
experiências e aprendizagens, absorvendo e se apropriando do patrimônio
cultural, construído coletivamente e sempre em negociação com as memórias
individuais. Memória que se fortalece à medida que é compartilhada, narrada
(LINHARES, 1997, p. 126).

Não se poderia deixar que a memória fosse compartilhada, pois assim ela seria
construída coletivamente e teria ainda mais força contra as instituições estabelecidas. Então,
deveria ser extirpada antes de se difundir. A memória seria perigosa e, dessa forma, quem a
tivesse possuiria um grande trunfo em suas “mãos”, pois a memória é um instrumento de poder.

Assim, deixar que a mulher recriasse sua memória “solta”, ou mesmo trabalhando,
era considerado um perigo para sua integridade e para a integridade de sua família, e do homem
que sobre ela detinha o poder, pois a traição era temida. E, portanto, a mulher era subjugada à
superioridade ativa do homem, que devia controlá-la, afastando essa tentação.

Desde a Antigüidade, a mulher deveria ser controlada e submetida à moral dos


homens. Para essa moral, ela era posse de um homem, tornando-se apenas um objeto no domínio
masculino, conforme nos diz Foucault: “Trata-se de uma moral dos homens [...].
Conseqüentemente, moral viril, onde as mulheres só aparecem a título de objetos ou no máximo
como parceiras às quais convém formar, educar e vigiar, quando as têm sob seu poder [...]”
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 62

(2001, p. 24). É essa moral que perpassa a Antigüidade e que molda a moral Moderna, tendo
importantes influências na memória social.

Mesmo quando a mulher entra no mercado de trabalho, essa noção de controle está
implícita nas atividades que ela exerce. Podemos perceber isso na afirmação de Bruschini e
Amado (1988, p. 6): “De uma forma velada, o controle da sexualidade feminina justificaria, daí
por diante, que mulheres trabalhassem com crianças, num ambiente não exposto aos perigos do
mundo e protegido do contato com estranhos — especialmente os do sexo oposto.”

Assim, é através do magistério, considerado um trabalho feminino, por excelência,


que a mulher brasileira pôde abrir caminho ao exercício profissional.

Até a independência do Brasil não existia educação popular, mas depois dela o
ensino, pelo menos nos termos da lei, se tornou gratuito e público, inclusive para mulheres. Isso
aconteceu a partir da primeira lei do ensino (datada de 1827) que deu direito à mulher de se
instruir (porém com conteúdos diferenciados dos ministrados aos homens) e que admitiu somente
o ingresso de meninas na escola primária (BRUSCHINI e AMADO, 1988).

A partir daí a formação de professoras do sexo feminino se fez necessária, pois os


tutores deveriam ser do mesmo sexo que seus alunos. O primeiro curso de ensino normal das
Américas surgiu, então, na cidade de Niterói (RJ), em 1835, e tinha no seu estatuto alguns pré-
requisitos para quem quisesse cursá-lo: a “boa morigeração [idoneidade moral] e ter idade
superior a 18 anos” (MARTINS, 1996, p. 70). Porém, às mulheres eram requisitadas condições
diferenciadas que atestassem ainda mais a sua ética e seus bons costumes, como:

• certidão de casamento, se casada;

• certidão de óbito do cônjuge, se viúva;

• sentença de separação, para se avaliar o motivo que gerou a separação, no caso da mulher
separada;

• vestuário “decente”;

• a mulher só poderia exercer o magistério publico com 25 anos, salvo se ensinasse na casa
dos pais e estes forem de reconhecida moralidade. Ou seja, todos poderiam realizar o
curso de formação a partir dos 18 anos, mas havia uma diferenciação na hora de entrar no
mercado de trabalho (MARTINS, 1996).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 63

Essa valorização da moral tinha como objetivo tornar o ensino das mulheres voltado
não à instrução, entendida como formação intelectual, mas como uma tentativa adicional de
disciplinar sua conduta. Isso fica claro na análise de Catani (1997, p. 28):

[...] a ênfase do ensino feminino [era] nas boas maneiras, nas técnicas, na
aceitação da vigilância, na aparência, na formação moralista. Coisa adequada
quando o ensino fundamental se destinava às classes populares, pois o que
estava em jogo não era difundir as perigosas luzes do saber, mas disciplinar as
condutas e refrear a curiosidade.
Nessa época, o currículo do estudo feminino era diferenciado do masculino: as moças
se dedicavam à costura, ao bordado e à cozinha, enquanto os homens estudavam geometria. As
mulheres professoras eram isentas de ensinar geometria, mas essa matéria era critério para
estabelecer níveis de salário, portanto, reforçava-se com isso a diferença salarial. Assim, as
mulheres tinham direito à instrução, mas essa instrução acentuava também a discriminação sexual
(FREITAS, 2000). Contudo, apesar do estudo passar a ser um direito garantido por lei, a maioria
das mulheres não tinha acesso à instrução, com exceção daquelas que pertenciam às elites e às
classes ascendentes, pois a segregação da mulher continuava presente na sociedade.

A profissionalização feminina foi incentivada pelo processo de industrialização e pelo


surgimento de uma nova forma de mão-de-obra: os assalariados. O progresso se evidenciava nas
cidades, nas classes dominantes e médias, e também nos centros urbanos que começavam a se
industrializar: as repercussões sociais do capitalismo atingiam o Brasil.

A educação aliava-se ao desejo de modernização das classes dominantes, pela


necessidade que a produção tinha de contar com trabalhadores especializados. Deste modo,
cresceram as pressões exigindo educação, e, com elas, primeiramente começou a expandir-se o
número de professores masculinos, simultaneamente acentuou-se a admissão de mulheres na
Escola Normal, que era o único lugar em que elas podiam prosseguir os estudos.

Porém, houve também um objetivo político na ampliação da participação feminina no


magistério: as mulheres ganhavam menos e, para que se pudesse expandir o ensino para todos,
era necessário que o governo gastasse menos com os professores. Os homens não aceitariam um
salário menor, então era necessário que a mulher assumisse esse posto, não pelo salário, mas por
sua suposta “vocação” natural para essa profissão. Catani (1997, p. 28-29) mostra como esse
pensamento era justificado:

Para que a escolarização se democratizasse era preciso que o professor custasse


A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 64

pouco: o homem, que procura ter reconhecido o investimento na formação, tem


consciência de seu preço e se vê com direito à autonomia — procura espaços
ainda não desvalorizados pelo feminino. Por outro lado, não se podia exortar as
professoras a serem ignorantes, mas se podia dizer que o saber não era tudo nem
o principal. Exaltar qualidades como abnegação, dedicação, altruísmo e espírito
de sacrifício e pagar pouco: não foi por coincidência que este discurso foi
dirigido às mulheres.
Com a República, essas pressões impulsionaram ainda mais a necessidade de
ampliação das oportunidades educacionais. Os líderes republicanos consideravam o magistério
uma profissão feminina por excelência, pois estavam influenciados pelas teorias positivistas e
burguesas, que julgavam que a mulher estava “naturalmente” dotada da capacidade para cuidar
das crianças.

Esse pensamento estava aliado à necessidade de formação de professores, tendo em


vista que os homens tentavam buscar vantagens financeiras em outras áreas. Dessa forma, as
mulheres, sobretudo a partir da segunda década do século XX, começaram a abraçar o magistério,
principalmente as que provinham de uma situação financeira precária (como as órfãs que tinham
que trabalhar) e as de classe média. Almeida (1996, p. 74) esclarece como isso aconteceu em São
Paulo, mostrando também as justificativas dessa inserção da mulher no magistério:

Quando inaugurou-se em São Paulo a seção feminina da Escola Normal,


segundo alguns historiadores, esta foi primeiramente destinada às jovens de
poucos recursos e às órfãs sem dote, às quais era interdito os sonhos de um bom
casamento, dado que este apoiava-se necessariamente em bases econômicas.
Sendo difícil casar-se, precisavam essas moças, para não ser um peso para a
sociedade, conseguir um meio de subsistência proporcionado por uma profissão
digna, de acordo com o ideal feminino e que não atentasse contra os costumes
herdados dos portugueses de aprisionar a mulher no lar e só valorizá-la como
esposa e mãe. Portanto, ser professora representava um prolongamento das
funções domésticas e instruir e educar crianças, sob o mascaramento da missão
e da vocação inerentes às mulheres, significava uma maneira aceitável de
sobrevivência, na qual a conotação negativa com o trabalho remunerado
feminino esvaía-se perante a nobreza do magistério.
No entanto, mesmo no início do século XX, permanecia a distinção na formação de
homens e mulheres. A mulher ainda não era educada para um desempenho profissional, só era
preparada para as atividades domésticas. Porém, aos poucos foi acontecendo a transição da
educação doméstica para uma formação profissional, pois surgiu a necessidade de incorporar a
mulher ao projeto educacional da nação.

O magistério era o caminho possível para a maioria das mulheres brasileiras,


principalmente para aquelas das camadas médias da população, pois, até os anos de 1930, era o
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 65

único trabalho considerado digno para elas, e que podia ser atrelado às tarefas domésticas. A sua
instrução deveria ser “aproveitada” pelo marido e pelos filhos, portanto, teria que estar atrelada às
atividades do lar, conforme assinala Almeida (1996, p. 73), dizendo que a mulher deveria ser
instruída:

[...] de forma que o lar e o bem-estar do marido e dos filhos fossem beneficiados
por essa instrução.[...] Assim as mulheres poderiam e deveriam ser educadas e
instruídas, era importante que exercessem uma profissão — o magistério — e
colaborassem na formação de diretrizes básicas da escolarização manter-se-iam
sob a liderança masculina.
Todavia, a condução da educação não era exercida pelas mulheres, elas apenas
lecionavam. A estruturação da mesma, os cargos administrativos e de liderança, eram geridos
pelos homens. Dessa forma, havia um grande controle sobre a atuação das professoras, inclusive
sobre sua sexualidade. A escola continuava relegando a mulher a um plano secundário,
perpetuando a submissão existente na sociedade patriarcal.

Os homens que se dedicavam à educação apresentavam facilidades de promoção na


carreira do magistério e no sistema educacional em geral. Já as mulheres tinham uma ascensão
profissional muito difícil, o que as fazia continuar na carreira de professora primária por longo
tempo.

Isso acontecia também porque quem cursava o normal até a década de 1940 não
podia ter acesso aos cursos superiores. Dessa forma, as mulheres (que já eram maioria nessa área)
dos institutos normais não podiam aumentar seu estudo e, assim, tinham que continuar no
magistério primário. Após essa década abriu-se caminho para cursar alguns cursos de Filosofia, e,
a partir de 1953, passou a se estender a ascensão aos demais cursos superiores.

Mas, como já estava consolidada a tendência de as mulheres se dedicarem à docência,


houve um prolongamento dessa tradição ao magistério secundário. As mulheres acabavam por
optar por cursos de licenciatura não apenas menos rigorosos na sua admissão mas também mais
baratos, o que as levava a procurar as faculdades particulares, cujo custo reduzido de instalação
lhes permitia se expandir de forma maior do que os outros cursos superiores (BRUSCHINI e
AMADO, 1988).

Os homens tinham privilégios na área educacional, pois eram considerados como


melhores “líderes” e freqüentemente ascendiam a outros cargos (como direção, inspeção, funções
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 66

técnicas e administrativas, professores da Escola Normal), abandonando o “espaço feminino” da


sala de aula (DEMARTINI e ANTUNES, 1993).

Os sistemas de gerenciamento e os procedimentos controladores (como programa


curricular e outros) iam se aperfeiçoando, e as professoras absorviam a ideologia do
profissionalismo, que as tornava cada vez menos responsáveis por métodos e técnicas, limitando-
se a serem simples aplicadoras do que lhes era imposto através de livros didáticos, programas etc.

A concepção tradicionalista de educação vigente na escola almejava tanto instaurar


um processo pedagógico modernizador quanto criar mentes dóceis, disciplinadas para possibilitar
a aceitação da ideologia capitalista. Os valores eram os predominantes na Europa. Os professores,
em suas práticas, veiculavam esses valores, distanciando a educação da realidade dos alunos.

Demartini e Antunes (1993) lembram que as circunstâncias que determinaram o


processo de feminização do magistério foram marcadas por atitudes preconceituosas como
diferenças salariais, curriculares e o conceito de “vocação”, induzindo as mulheres à escolha de
profissões menos valorizadas socialmente frente às profissões masculinas.

Esse processo que começou na colonização, com a desvalorização e subjugação


feminina, continuou na Independência, frisando a diferenciação da educação por gênero, e se
perpetuou na República com a inserção das mulheres nas salas de aulas infantis sob o comando
dos homens, e permaneceu dessa forma durante o restante do século XX.

Após a entrada maciça da mulher no magistério, o homem foi, até mesmo, impedido
de ingressar nos cursos normais. Confirma-se esse fato com o decreto 7941, promulgado em 1943
no Distrito Federal (que na época era a cidade do Rio de Janeiro), que criou uma nova
organização para o Curso Normal, proibindo o ingresso de pessoas do sexo masculino no Curso
Normal do Instituto de Educação do Rio de Janeiro (MARTINS, 1996).
Com isso, a desvalorização da profissão foi aumentando, junto com a justificativa de
que a mulher deveria ter o “dom” para o magistério e, assim, seu salário (que já era pequeno)
poderia ser menor, até porque esse dinheiro não seria para sustentar a família, pois caberia ao
homem essa função.44

44
Uma professora do IESK diz no seu depoimento, que esse ainda é o pensamento atual, já que o homem não pode
atuar nessa profissão porque ganha pouco e a mulher poderia ser professora, pois o seu salário não sustentaria uma
casa, seria só para suas “vaidades”.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 67

Entretanto, por mais que a educação tenha passado por algumas mudanças na prática
escolar, a feminização do magistério continua se perpetuando mais e mais, desvalorizando o
papel da mulher docente ano após ano. E o homem continuou se distanciando das salas de aulas
infantis e optando por trabalhar em outras áreas mais rentáveis, como as disciplinas específicas
(Matemática, História, Geografia, Biologia etc.) ou os cargos de comando na educação.

Além disso, o paternalismo ainda condiciona essa profissão. Podemos perceber isso
no comentário de Costa (1999), quando assinala que o professor é visto, na leitura dos artigos da
revista educacional “Nova Escola”, como o cientista, detentor do saber, e a professora como a
carinhosa, dedicada aos seus alunos e às atividades escolares.

Assim, essa revista e outros textos que circulam na nossa sociedade acabam por
promover a representação45 de que a mulher estaria sempre associada à afetividade, com um
déficit no raciocínio. Já o homem teria o domínio do saber técnico-científico, saber este tão
valorizado em nossa sociedade. As profissões também seriam escolhidas de acordo com essa
diferenciação: as profissões consideradas movidas pela emoção seriam próprias das mulheres e as
ligadas à inteligência seriam patrimônio exclusivo dos homens.

As normalistas entrevistadas acabam sendo influenciadas por receber essas


representações e agem de acordo com elas. Os meandros da escolha profissional das normalistas,
as influências que as mesmas sofreram, a visão dos atributos que a mulher teria para o magistério
e da diferenciação com o homem que escolheria a profissão mais tarde (na faculdade), são
questões que foram destacadas pelas normalistas em suas falas e que serão analisadas no próximo
item.

45
A representação é entendida como uma forma discursiva de instituir significados de acordo com critérios de
validade vinculados a relações de poder.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 68

2.3 A escolha profissional e sua relação com a memória social

A busca por uma profissão é sempre uma tentativa de unir uma necessidade imposta
pela sociedade (o trabalho) com algo que a torne prazerosa. Esse prazer geralmente é associado a
uma sensação de dever cumprido, a uma ligação emocional com a profissão exercida, ao
reconhecimento dado por outrem da importância do seu trabalho (e de que este foi bem feito) ou
à compensação financeira.

Como vimos, a profissão docente geralmente envolve todo um arcabouço social que
alude a uma “vocação”, a uma missão que deveria ser mais importante do que a própria
compensação financeira e que influencia o docente a pensar que é um “dom” pessoal, que ele
nasceu para isso. Bruschini e Amado (1988, p. 7) analisam a questão:

Embora o encargo da mulher com a socialização infantil seja fruto da divisão


sexual do trabalho, diferenças biológicas são invocadas para justificar esse fato
como “natural”. Daí a considerá-lo uma vocação é apenas um pequeno passo.
Historicamente, o conceito de vocação foi aceito e expresso pelos próprios
educadores e educadoras, que argumentavam que, como a escolha da carreira
devia ser adequada à natureza feminina, atividades requerendo sentimento,
dedicação, minúcia e paciência deveriam ser preferidas. Ligado à idéia de que
as pessoas têm aptidões e tendências inatas para certas ocupações, o conceito de
vocação foi um dos mecanismos mais eficientes para induzir as mulheres a
escolher as profissões menos valorizadas socialmente. Influenciadas por essa
ideologia, as mulheres desejam e escolhem essas ocupações, acreditando que o
fazem por vocação; não é uma escolha em que se avaliam as possibilidades
concretas de sucesso pessoal e profissional na carreira.
O questionamento dessa suposta vocação “inata” da mulher para a profissão docente
faz surgir algumas questões: Será que a mulher nasce para ensinar? Ou é a sociedade que desde
cedo incute brincadeiras e atividades que são consideradas por ela como femininas por natureza
(as domésticas e maternais) e que acabam por serem associadas ao ensino e, dessa forma, a uma
suposta “vocação” feminina?

Pretendo analisar os motivos de escolha profissional apresentados pelas normalistas


entrevistadas para mostrar a relação deles com as opções pessoais — que estão sempre associadas
à memória social. Nessa memória, a profissão docente, a maternidade, a natureza feminil ficam
vinculadas intimamente. Diversas representações, desde o nascimento, reforçam esse elo.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 69

2.3.1 A escolha baseada em modelos sociais

Isto significa que a sociedade, a cultura como um todo, sinaliza a todo instante
quais são os comportamentos esperados e aprovados para homens e mulheres.
Por meio da mídia, da literatura e até dos brinquedos, mensagens, imagens e
representações complementam o trabalho que consiste em prescrever como as
pessoas de cada sexo devem ser e comportar-se (CATANI, 1997, p. 40).
Os modelos de conduta oferecidos às normalistas no decorrer da sua vida induzem a
sua tomada de decisão profissional. Esses modelos que, conforme a epígrafe, são apresentados de
várias maneiras e a todo instante, acabam por ditar os comportamentos esperados e aprovados
para cada pessoa. As normalistas pesquisadas recebem esses modelos de formas diferentes e
agem sobre eles com reações diversas. Esses modelos e reações são analisados conforme são
invocados pelas normalistas entrevistadas.

Uma das formas que a epígrafe apresenta como maneira de a sociedade levar as
pessoas a terem o comportamento esperado — o brinquedo, ou a brincadeira — aparece no
depoimento de algumas das normalistas, que afirmam que escolheram sua profissão por causa das
brincadeiras infantis que fomentaram nelas o gosto por ensinar:

Desde pequena que eu ficava [...] brincando de escolinha e essa coisa toda
(normalista Anne).

Desde criança eu falava que queria ser professora, brincava muito de escolinha,
brincadeira de criança mesmo, mas depois que eu me formei eu vi que não era
bem isso que eu queria (normalista Bárbara).

Desde pequenininha também eu ensinava meu irmão, esse de 2 anos mais novo
que eu. Então quando eu tava aprendendo, eu tava com 5 aninhos tava cursando
o C.A., ele tava com 3 anos e ele já escrevia o nome dele com 3 anos de idade,
eu ficava ensinando pra ele, aí ficava 1, 2, 3 e meu irmão escrevia o 1, o 2 e o 3.
Então desde pequenininha eu tive esse... de brincar de professora “ah, vamos
brincar de professorinha” “eu sou a professora, vocês vão ser os alunos”, então
eu gostava de ficar escrevendo no quadro e ensinando para as outras crianças, as
minhas colegas que eram da minha idade que viam lá pra casa. Aí eu fui
crescendo e isso apagou da minha cabeça (normalista Rafaela).
Essas brincadeiras de ensinar e outras associadas à maternidade e aos cuidados
domésticos são impostas, imperceptivelmente, ao sexo feminino pelas instituições de nossa
sociedade, principalmente pela família. Porém, a mídia hoje também tem papel fundamental na
incorporação de um estereótipo feminino.

A influência de um professor, que serve como exemplo de profissional e de carreira a


seguir, também se faz presente no relato de muitas normalistas:
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 70

Eu tive essa professora que foi muito legal, [...] nossa! [...] na minha época de
alfabetização então, ela deu aquele choque ali pra gente sentir mesmo o peso. E
[...] a minha turma saiu totalmente alfabetizada no C.A. Então nós sabíamos que
nós tínhamos que ler perfeitamente, então aquilo foi, assim, me estimulando né,
que é tão gostoso você lidar com criança, saber que pode ajudar ela, e depois vê
daqui a uns 6 anos, ela já em cima, e gostando de estudar e progredindo e
pensando no futuro (normalista Rafaela).

No ginásio eu tinha uma professora que eu até me espelhava nela pra fazer
estágio e tal. Eu gostei muito do jeito que ela chamava a gente pra ter aula,
porque minha turma não era uma turma fácil e ela sabia dominar bastante
(normalista Bárbara).
Esse professor se torna um modelo profissional, um “mito”, que as normalistas
pretendem seguir e é um impulso fundamental para a escolha profissional, conforme demonstram
os autores a seguir:

Uma característica comum do ambiente sociocultural colhida nas narrativas dos


professores é o aparecimento de um professor preferido que influenciou, de
modo significativo, a pessoa enquanto jovem aluno. [...] tais pessoas fornecem
um “modelo funcional” e, para além disso, influenciaram provavelmente a visão
subseqüente da pedagogia desejável, e bem assim, possivelmente, a escolha do
próprio curso. (GOODSON, 1995, p. 72).

Durante toda a história de vida escolar o aluno tem os mais variados estilos de
“professores”: reais ou virtuais (em livros, filmes, novelas, etc...) [...] Muitos
desses professores tiveram suas presenças apagadas das memórias dos alunos,
foram esquecidos. Outros foram definidores, nortearam caminhos e escolhas
pessoais e profissionais, tornaram-se modelos, mitos, lendas (KENSKI, 1997, p.
94).
Os modelos de professor são veiculados por todos os meios e ambientes de contato
das normalistas e fazem com que as normalistas optem pela carreira docente, se querem ser
aquele professor que nenhum aluno gosta, conforme um filme ou novela que assistiram, ou se
querem ser como aquele professor que se tornou um ídolo para uma classe. Esse poderia estar
presente em um livro, em um filme, ou, até mesmo, na sua sala de aula.

Todas as instituições sociais que se expandem nos espaços onde as normalistas


desenvolvem suas atividades interferem na escolha da profissão. Essa interferência pode se dar
em várias etapas da vida e de uma forma diferente. Por exemplo, a família tem a capacidade de
influenciar em um momento, mas a percepção de um modelo de profissional pode ser mais
importante em outra situação. Essa importância é esclarecida por Moita (1995, p. 138):

O “papel” dos outros espaços de vida em relação à profissão pode ser muito
diversificado. Os outros espaços de vida, nomeadamente o espaço familiar e o
social, podem ser um “limite”, um “contributo”, um “acessório”, em relação à
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 71

vida profissional. Mas se estes “papéis” podem ter um caracter dominante, pelo
menos em certas etapas da vida, nunca são exclusivos. Não têm um caráter
unidimensional (grifos da autora).
Também podemos entender a importância das várias instituições sociais na escolha da
carreira docente, e nas relações com uma profissão, no relato de uma normalista sobre o
nascimento da sua opção profissional:

Quando eu entrei lá [no IESK] eu ainda não tinha uma certeza do que que eu
queria, eu entrei aí eu comecei a estudar. Aí eu comecei a ver que eu gostava
realmente daquilo. Me interessei pelas coisas. Comecei a fazer estágio. Quer
dizer, aquilo tudo foi despertando em mim uma vontade de ser professora.
Então eu abracei mesmo a profissão, né, e to trabalhando nela até hoje.[...] acho
que lá dentro do Sarah mesmo eu conheci professores muito bons né, aí, quer
dizer, isso te impulsiona você a continuar naquela profissão. Foram os
professores de lá mesmo que me deram apoio e tal, e família, quando eu resolvi
entrar pro Sarah eles gostaram, mas não foi uma coisa imposta por eles não,
escolha minha mesma (normalista Joyce).
A família tem um papel decisivo na definição da opção profissional de um filho, pois
esta serve como exemplo ou indica a carreira que ele deve ou não seguir, impondo, muitas vezes,
uma profissão ou proibindo outra. A profissão não é escolhida somente por fatores pessoais,
próprios do indivíduo, pois sua escolha é permeada por várias influências sociais, que interferem
no sujeito desde o seu nascimento, conforme nos demonstra Fontoura (1995, p. 176-177):

O que é que levará, por exemplo, a mulher a ser professora? Situar-se-á a


escolha ao nível da missão, do amor pelas crianças, da conciliação possível
entre a vida familiar e a vida profissional ou ao nível do “desejo” de ensinar? E
que significará este desejo de ensinar? Será que tem o mesmo significado para
a professora “mãe de família” para a professora “militante” ou para a
“feminista”? [...] Neste desejo de ensinar há fatores conscientes e inconscientes
responsáveis por uma dualidade permanente. Para lá dos imperativos
institucionais ou familiares há imperativos interiores responsáveis por um
“contínuo em movimento” e conseqüentemente por realizações sucessivas
sempre parcelares e incompletas (grifos da autora).
As indagações feitas por Fontoura sobre o que levará a mulher a ser professora
coincidem, de alguma forma, com as questões levantadas pelas normalistas do IESK. Com
exceção da junção do trabalho com as atividades domésticas, até mesmo porque esse discurso há
um tempo vem deixando de ter validade, pois muitas professoras têm jornada dupla, conciliada
com os estudos. Elas não têm tempo para as atividades domésticas, sendo estas um “fardo”, pois
acabam sendo impostas às mulheres, mesmo que estas não disponham de tempo para realizá-las.

Destaca-se aqui que os fatores interiores, que Fontoura ressalta no trecho citado, são
interpelados pelos incentivos, exemplos, ou mesmo imperativos ou imposições familiares. Ou
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 72

seja, a memória individual é influenciada pela memória social. Os relatos das normalistas
apresentam exemplos dessa interligação:

Minha mãe é professora, duas tias minhas, uma já falecida era professora depois
passou a ser diretora, a outra tia era professora e agora é escritora... [...] meus
pais, eles apoiaram, qualquer profissão, eles sempre falavam vai ser o que você
quer porque você tem que fazer o que você gosta pra você fazer com amor. [...]

Minha mãe fez normal, ela se formou em 75, acho que foi 75 [...] no Sarah
mesmo, só que não era o nome de Sarah, era instituto Campo Grande...
(normalista Anne, os grifos são meus).

[Meus familiares] gostaram [da minha escolha] porque minha tia era professora
e eles assim apreciam muito (normalista Rafaela).
Nesses relatos, percebemos que, apesar da profissão não ser imposta, ela foi
estimulada pelo exemplo e pela aceitação dos familiares, que apoiavam qualquer profissão que
fosse feita com amor. Um exemplo que provavelmente influenciou a escolha da instituição de
ensino também.

Porém, nem todos os relatos mostram uma aceitação pela normalista da escolha que
os familiares queriam que ela fizesse. Algumas normalistas recebem uma imposição dos pais e
parentes para que elas estudem o curso normal, e esse imperativo faz com que elas estudem
contra sua vontade, simplesmente porque essa foi a única opção que lhes restou:

Nem quando pequena, não me interessei por essa profissão não [...] Eu tinha
duas opções, ou estudava no Brizolão46 no Burle Marx na Ilha [de Guaratiba],
ou no Sarah Kubitschek, então eu preferi ir pro Sarah Kubitschek [...] Minha
mãe falava pra ir pra uma coisa técnica, que eu ia ter dificuldade depois de
arrumar uma, ter uma profissão. Para eu ser professora que se eu quisesse, um
dia, de repente, eu estudando eu passaria a gostar. Mas não foi bem assim. Não
me interessou não [...] Porque a opção que a gente tinha era o Sarah. Mas elas
[a tia e a mãe] também acharam... até hoje minha mãe acha que eu tinha que ser
professora. Mas eu não... é porque não me interessa mesmo [...] A minha mãe
gosta da profissão. Mas a mim não interessa. Quero fazer enfermagem [...] A
minha tia é professora [...] do Sarah e de um colégio no Correia47 (normalista
Aracele, os grifos são meus).
A oportunidade de ter um emprego leva a família a incentivar, com veemência, que a
moça estude o ensino médio em um curso profissionalizante, técnico, mesmo que este não tenha
nada a ver com o seu gosto. Podemos perceber esse desinteresse quando a normalista se refere à

46
Brizolões ou CIEPs (Centro Integrado de Educação Pública) são escolas que foram construídas no Rio de Janeiro
no mandato do governador Brizola e que têm uma arquitetura padronizada e diferente das demais.
47
Um sub-bairro de Campo Grande.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 73

docência através da negação: “não me interessei”, “não foi bem assim”, “não me interessou não”.
Ou na imposição da frase “eu tinha que ser professora”.

A normalista acaba por aceitar a interferência da família na sua escolha profissional,


mas essa aceitação, muitas vezes, não se dá de forma agradável. A narrativa de uma normalista de
que suas colegas iriam para o estágio “forçadas” demonstra como, muitas vezes, essa escolha era
sofrida para muitas alunas. Algumas entrevistadas afirmaram que a maioria da sua turma não
queria seguir a carreira docente.

A opção profissional condicionada pela questão financeira é assinalada por outra


normalista, conforme aparece na fala a seguir:

A minha mãe fala assim “ah, é bom que você só estuda, não se preocupa com o
serviço e o dia que você tiver que trabalhar, você já tá com o teu formado,
porque você vai trabalhar, você já terminou um degrau e você pode trabalhar, aí
se você quiser trabalhar e estudar, vai ser por conta sua, por enquanto eu não
queria que você trabalhasse”. [...] [Ela] sempre me incentivou muito a...procurar
assim, minha mãe fala assim “filha de pobre tem que correr rápido”, então se
tem um curso profissionalizante e um 2o. grau geral, você prefere fazer o quê?
Estudar 3 anos pra fazer uma faculdade, estudar 3 anos básico pra entrar na
faculdade. Ou fazer logo um profissional que você já sai dali com técnico em
alguma coisa, você já tem ali alguma coisa, um material pra trabalhar, pra poder
seguir em frente. A minha mãe sempre me incentivou muito a entrar no Sarah
porque entre os colégios que tinha, o Miécimo da Silva, eu não queria fazer
edificações, eu não queria fazer administração, eu não queria fazer
contabilidade, que não é muito a minha área. Então, como eu já tava pensando
“eu queria ser professora, mas dá pouco dinheiro, eu vou ficar trabalhando,
aturando criança, é muito chato, eu acho que não vale a pena” (normalista
Rafaela, os grifos são meus).
A escolha da profissão, nesse caso, acaba sendo feita pela exclusão dos outros cursos
profissionais ou técnicos. Acabou “sobrando” o curso normal, como a opção menos desagradável,
porém pouco rentável. A fala dessa normalista e a frase, citada anteriormente, da normalista
Aracele de que “a opção que a gente tinha era o Sarah” confirmam a tese que, como lembram
Bruschini e Amado (1988), o magistério ainda é um “gueto” feminino, principalmente em regiões
menos desenvolvidas, como pode ser considerado o bairro de Campo Grande.

Além disso, o magistério ainda é uma formação profissional que é feita no ensino
médio, ou seja, consegue-se formar e ter uma profissão antes de cursar uma faculdade e, como a
normalista afirma que “filha de pobre tem que correr rápido”, a família incentiva que se tenha
uma profissão o mais breve possível.
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Mesmo que o salário dos docentes não seja bom, a necessidade financeira torna a
profissionalização um ato urgente. No relato acima, a normalista quer dizer que o estudo para o
aluno menos favorecido deveria estar sempre vinculado à inserção imediata no mercado de
trabalho e, dessa forma, à sobrevivência e não ao gosto pelos estudos ou pela profissão.

Essa ligação entre estudo e algo feito sem prazer pode ser percebida em outro trecho
da narrativa de Rafaela, que mostra que o estudo (ou a leitura) não obedece o critério do gosto,
mas resulta de imposição: “vou fazer português-inglês, porque eu não gosto de literatura, eu não
gosto de ler muito, assim com freqüência, não gosto de livro, eu leio por obrigação e me dedico”.

A dificuldade financeira também leva à escolha da instituição pública. Às vezes,


independente de que esta ofereça à profissionalização desejada, pois o IESK é público, próximo e
acessível para a maioria das alunas. A normalista Bárbara relata isso, quando fala sobre o motivo
da sua escolha profissional: “eu gostava da profissão e no caso era o único colégio que não tinha
grandes custos por ser estadual, então realmente era [necessário] correr pra lá”.

Os percalços da vida das normalistas as levam para uma escolha que, geralmente de
início, não parece interessante, mas que, às vezes, precisa ser descoberta, com ajuda de exemplos,
que comumente se atrelam a conceitos de carinho, família e gosto:

Acabou que na 8a. série eu decidi: “mãe, eu vou entrar no Sarah, porque a minha
tia é professora, ela gosta muito. E nisso eu havia visitado a escola que minha
tia trabalha, minha tia falou assim “Rafaela, qualquer coisa você vai lá”. Aí eu
fui, no Artur Bernardes na época, ela dava aula pra uma turminha, eu assisti a
aula dela, eu fui lá, vi as crianças. Porque é gostoso também você ver o carinho
que as crianças pegam pelo professor, por mais que seja um ano só. No início
do ano elas ficam lá emburradas: “Ah, professora muito chata, isso e aquilo”,
mas depois elas vão assim “a professora é legal, eu gosto dela” aí elas começam
a demonstrar o carinho por você. Ai eu acabei decidindo entrar pro Sarah
mesmo porque era o que eu queria e seria melhor que eu estudar o segundo grau
geral, estudar química, física, biologia... tudo e, de repente, como a
concorrência está tão grande para universidade federal, eu não passar, eu ia, de
qualquer jeito, eu teria que entrar num cursinho preparatório pra poder entrar
na faculdade, aí não ia adiantar. Ia ser a mesma coisa [...] nadar, nadar e nadar e
morrer na praia (normalista Rafaela, os grifos são meus).
É importante refletir aqui sobre a ligação habitual que se estabelece entre o magistério
e o “amor”, pois ela, às vezes, significa um disfarce para que a professora não lute por melhores
condições de trabalho e de salário, conforme nos atentam Bruchini e Amado (1988, p. 11):

Ao se dar conta de que o magistério não é uma vocação ou um “chamado”, ao


qual se atende por ser mulher; ao perceber que o magistério é uma profissão que
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exige sólida formação pedagógica, esforço, dedicação e competência e espírito


de classe, mas à qual, em contrapartida são devidas boas condições de trabalho
e remuneração compatível, somente então a professora poderá agir como
profissional, buscando o aprimoramento de sua formação, reivindicando
melhores condições de trabalho, enfrentando a relação com os alunos com afeto,
mas sem o disfarce do amor e pleiteando salários mais justos, através de sua
participação em seu órgão de classe.
No discurso da normalista Rafaela fica claro porque a escolha profissional feminina
pela docência é motivada também pelo fato desse ser um curso considerado mais fácil, com
menos cobrança nas disciplinas. Bruschini e Amado (1988, p. 9) confirmam isso:

Vários dos trabalhos analisados referem-se aos efeitos da lei sobre o antigo
curso normal [5692/71], agora “magistério a nível de 2o. grau”. Tais efeitos
teriam sido negativos, trazendo para este curso mais e mais alunos e alunas não
interessados em se tornar professores/as: teriam feito esta opção para “escapar”
de disciplinas presentes nos demais currículos do 2o. grau, ou porque era
considerada a alternativa “mais fácil” para obter o certificado de conclusão do
2o. grau. Tratava-se freqüentemente dos estudantes menos bem preparados, e
provenientes em grande parte dos estratos mais baixos (grifos das autoras).
Essa relação também pode ser percebida através de outro relato que mostra que o
Normal não é considerado um curso destinado às pessoas inteligentes, às pessoas que podem
escolher outros cursos mais concorridos (como os das faculdades públicas). Dessa forma, quem
estuda para o magistério pode ser até mesmo discriminado pelos colegas, como aponta Rafaela:

Os meus colegas que estudavam comigo na 8a série falaram assim “Rafaela,


você é maluca!” [...], sempre fui muito inteligente, muito ligada com os [...]
meninos, eles sempre andaram junto comigo, e eles sempre foram muito
inteligentes e eu também ficava ali em cima deles, discutindo, estudando junto,
e eles agora estão [em faculdades públicas]. [Eles diziam] “Rafaela, você ta
fazendo particular, porque você não tenta a pública?” Eu falei assim “Não, é
muito difícil”. Aí ele falou “cara, você é maluca ter estudado no Sarah”.
Essa discriminação pode ser associada ao fato de a professora mulher ser considerada
em todos os meios como desprovida de inteligência: seu atributo principal consistiria apenas no
afeto. Por isso, a profissão nas mulheres decorreria dos seus “dons maternais” e não da sua
capacidade de aprendizagem:

O campo profissional do magistério de 1º e 2º graus, maciçamente povoado por


mulheres, tem sido pródigo na fabricação de representações que capturam as
professoras em uma certa “ordem do coração”, historicamente oposta à “ordem
da razão”, e que tem contribuído para fortalecer as associações entre gênero
feminino e déficits de raciocínio (Costa, 1999, p. 6, grifos da autora).
O fato de o curso normal ser considerado mais fácil, pois precisa de “pouca
inteligência” para se cursar, e, até de menor qualidade, foi um dos fatores que atrelou a profissão
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do magistério às classes mais baixas, conforme demonstrei. Lembro que as órfãs, inicialmente,
eram as principais destinatárias das escolas normais. Isso acabou influenciando no salário que, no
decorrer do tempo, diminuiu cada vez mais.

A baixa remuneração leva a maioria das professoras a desejar fazer um curso de


licenciatura, é possível tomar como exemplo as faculdades que estão sendo cursadas pelas
entrevistadas (Letras, História, Biologia), pois esses cursos além de perpetuarem a profissão do
magistério, são mais baratos em faculdades particulares e mais fáceis de se obter aprovação no
concurso do vestibular.

Além de o acesso ser mais fácil, há a possibilidade dos formados acumularem vários
empregos, pois a atividade do professor de disciplinas (Português, Matemática, História etc.) não
tem uma carga horária extensa e pré-definida. Ele é disposto por horas-aulas, ou seja, o professor
pode trabalhar em vários colégios, cada um com uma quantidade de tempos e, assim, ganhar
mais, ou realizar outras atividades conjuntamente com o exercício da profissão docente.

A iniciativa de cursar uma licenciatura, ou até de uma faculdade de Pedagogia,


também se dá pela exigência imposta pela nova LDB, que dispõe, em um dos seus artigos, que a
formação mínima para se dar aula, a partir de 2006, seria o nível superior. Esse discurso
demonstra a necessidade de se cursar uma faculdade: “eu estou fazendo porque tanto vai ser
importante pra até 2006 eu estar com curso superior, pra não ser tipo rasgado o meu diploma, não
servir pra nada” (normalista Rafaela).

Cabe ressaltar que em 30/07/03 um parecer do conselho nacional estabeleceu que o


Curso Normal, de nível médio, era o curso aceitável para formação dos professores de educação
infantil e da 1a a 4a séries. Dessa forma, deixou para os professores a opção de ingressarem em
cursos de nível superior, porém esse ingresso acabará sendo cobrado (como já está sendo feito)
pelo mercado de trabalho.

As normalistas demonstram os atrativos de conseguir uma licenciatura e deixar de ser


professor de criança para tornar-se professor de jovens. Essa mudança aparece como se fosse um
progresso, que possibilitaria até mesmo conciliar profissões:

É uma área gostosa, trabalhar com criança e tudo. Mas eu não quero ficar muito
restrita à criança não, eu quero progredir, dar aula pra jovens também
(normalista Rafaela).
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Eu tenho vontade de mais tarde, depois de fazer biologia tudo direitinho, tentar
fazer direito que é uma coisa que eu gosto, de impor né, a gente sempre gosta
de impor alguma coisa e o meu pai tem bastante coisa assim pra cuidar e aí eu
cuidaria apesar de ser uma coisa difícil eu tinha vontade de fazer. [não fugiria
da profissão] tentaria fazer as duas coisas [direito e professora de biologia].
[Meu pai] tem imóveis essas coisas assim e têm dois advogados que cuidam pra
ele, só que ele paga né, e aí no caso seria uma despesa a menos, e eu cuidando,
pagaria pra mim (normalista Anne, os grifos são meus).
Com relação à narrativa citada da aluna Anne, outro aspecto que pode ser analisado é
a importância atribuída ao fator “imposição”, ou ainda, ao exercício de um poder. A normalista
relata que a capacidade de impor uma decisão é um atrativo do curso de direito. Porém, pode ser
também um dos motivos de sua escolha pelo magistério, pois este é, muitas vezes, associado à
autoridade que um professor pode ter sobre os alunos ou sobre o conhecimento. A autoridade e o
saber geram poder e, já que ela não tem o salário que gostaria, esse “posto de comando” pode ser
tido como uma compensação almejada.

Mesmo nas licenciaturas, o baixo salário do professorado já está embutido nos


discursos das pessoas da sociedade e, às vezes, torna-se um referencial negativo na escolha
profissional:

Meus outros familiares sem ser pai e mãe falaram que era loucura [a escolha
profissional dela] porque é uma profissão que não paga bem e várias coisas né
que eles falam, que não tem valor e por aí afora, mas os colegas nem... ficaram
falando “vai ser professora, vai estudar no Sarah” que o Sarah é muito mal visto
e só isso (normalista Anne).
Um outro referencial negativo que interfere e se introduz nas representações da
sociedade sobre a escolha do magistério é a comparação, na maioria das vezes depreciativa, da
normalista com a bagunça e a sedução, entre outros preconceitos contra o feminino que são
divulgados com freqüência. O discurso de uma normalista nos revela como acontece essa
repercussão no IESK:

Quando era desfile de 7 de setembro, eu desfilei só uma vez no primeiro ano,


jogavam milho na gente assim, em mim, no ano que eu desfilei não, mas era
assim sempre jogavam milho. [...] Quando tinha frango com farofa [diziam]
que era normalista na praia, [...] tanto é que normalista e essas coisas assim são
vistas como fetiche né, uma bobeira uma coisa que não tem nada a ver com a
outra.
Conforme percebemos no relato, a normalista é comparada com uma “galinha”, em
alusão à gíria aplicada àquela que tem muitos namorados, ou seja, que é volúvel, licenciosa.
Assim, de acordo com Magalhães (Jornal O Dia de 08/06/1995), a normalista também aparece
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como objeto de desejo masculino, um fetiche que Nelson Rodrigues mostra em vários de seus
livros — como, por exemplo, Perdoa-me por me traíres, Asfalto Selvagem e Engraçadinha —,
refletindo o imaginário masculino de que a normalista é a mulher que está sempre disposta a
realizar todo o tipo de desejo. Esse pensamento remetia ao uniforme que elas usavam, que na
época era até bem recatado (comparado com o de hoje), pois a extensão da saia ia até os joelhos e
a blusa era de manga longa. Mas, mesmo assim, era tido como provocativo aos olhos masculinos:

Ela teria o quê? Digamos uns quinze, dezesseis (ou catorze). No seu uniforme
colegial, meias soquete, saia azul, blusinha creme, tinha um olhar atrevido, um
jeito livre e ousado de erguer a cabeça e projetar o perfil e, ao mesmo tempo,
uma boca que parecia sempre prestes a beijar (Nelson Rodrigues,
Engraçadinha, apud MAGALHÃES, 1995).
O biografo de Nelson Rodrigues, Ruy Castro, diz para Magalhães (O Dia,8/6/95) que
o fascínio dos brasileiros pela roupa azul e branca ficou mais explícito a partir dos anos de 1940.
Isso pode ter acontecido, pois nessa época muitas mulheres cursavam o curso normal que estava
nos seus anos dourados (MARTINS, 1996) e tinha suas vagas ampliadas. Porém, essa associação
das normalistas com mulheres “atrevidas” tem sua origem há muito tempo.

A associação das normalistas com as mulheres namoradeiras (que seriam indignas,


imorais) fica patente num trecho do romance A Normalista, de Adolfo Caminha (1998, p.129),
publicado pela primeira vez em 1893, onde um jornalista faz o seguinte comentário sobre as
normalistas: “Hoje não há que fiar em moças, pobres ou ricas. Todas elas sabem mais do que nós
outros. Lêem Zola, estudam anatomia humana e tomam cerveja nos cafés. Então as tais
normalistas, benza-as Deus, são verdadeiras doutoras de borla e capelo em negócios de namoro.”

As normalistas representavam as mulheres que seriam professoras e que iriam entrar


no mercado de trabalho, coisa que antigamente não era admitida pela sociedade como algo
corrente, portanto elas eram mal vistas desde que foi permitido à mulher se preparar para exercer
a atividade docente.

Por outra parte, o uniforme também teria outro sentido: seria o indicador visível, ou o
símbolo, para a normalista, de seu sucesso nos estudos e conseqüentemente, na vida profissional,
conforme percebemos no trecho abaixo retirado de uma revista do Instituto de Educação do Rio
de Janeiro:

A você, nova coleguinha que, durante anos anteriores ao do seu ingresso neste
educandário, seguia com olhos admirados as normalistas que se cruzavam nas
ruas, achando que ficaria muito bem dentro daquele uniforme... a você que ao
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 79

passar lançava olhar respeitoso à fachada do edifício, mirando-o como se fosse


inatingível, é a você mesma, caloura, que dedicamos estas linhas... Você
venceu... mereceu, portanto, a recompensa suprema: tornar-se aluna do instituto
(GUARACIABA, Apud MARTINS, 1996, p. 157).

Figura 7 — Uniforme das Normalistas


O uniforme retratado na figura acima tanto remete à idéia da mulher trabalhadora
quanto envolve um fetiche, tendo em vista que representa o despertar da normalista como objeto
de desejo do homem, e, ao mesmo tempo, como mulher tentadora, perigosa.

As normalistas que escolhem o IESK como instituição educacional não estão


movidas apenas por um motivo (gostar de crianças porque a família quis, entre outros), mas
porque há todo um arcabouço cultural e social que envolve essa escolha, em que as instituições
sociais interferem. Catani (1997, p. 30) nos afirma isso na citação a seguir:

[...] os valores que se construíram e se moldaram no decorrer do tempo foram


assimilados por eles de formas diversas, quer no contato com o meio social mais
abrangente, quer no âmbito dos cursos de magistério. Aqui sabemos que as
leituras, os manuais, as práticas de ensino, cumpriram e continuam cumprindo
papel modelar em sua disseminação.
Posso destacar aqui que essa opção profissional ocorre também pela necessidade de
consumo induzida pela nossa sociedade capitalista, que faz com que o trabalho seja importante
para essas mulheres, já que elas passam a se sentir incluídas no mundo do consumo.

A memória social registra esses preconceitos sobre a profissão docente, mas também
pode influenciar uma tentativa de mudança dessa memória submetida ao poder. Captar a história
profissional e social das ex-estudantes formadas no século XXI nessa escola se torna relevante
para que não se perca no tempo tal fonte de conhecimentos e investigações, e para registrar a
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 80

memória e as reflexões de um grupo de professoras, cujas características pessoais estão


fundamentalmente influenciadas pelo local de formação.
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2.4 Professora versus professor: as considerações das normalistas sobre o professor homem,
um “corpo estranho” na profissão docente

Conforme pode ser visto no decorrer da história o homem tem se distanciado da


educação (a foto abaixo, mostra isso: junto ao funcionário há quatro alunas e apenas um aluno),
principalmente na fase inicial do ensino fundamental. Um fato que ajuda a identificar essa
separação entre profissão masculina e feminina é que a porcentagem de homens no IESK é menor
que 5%.

Figura 8 — Produzindo mural


Existem preconceitos que contribuem para esse número reduzido, pois muitos até são
rotulados como homossexuais por estudarem nesse local. E mesmo entre esses 5% poucos
querem se dedicar ao magistério infantil, conforme mostram os depoimentos que seguem:

Porque se você pensar bem, vamos lá pra sociedade machista. Na verdade o que
um garoto, hoje sai um garoto daqui com 18 anos, e aí ele vai dar aula pra turma
de 1a. a 4a, vai alfabetizar? Porque isso na índole do brasileiro machista, quer
dizer, isso não cabe, não é... não faz parte do homem: alfabetizar, dar aula pra
menininho [...] E eu tenho, aqui no Sarah Kubitschek, eu consegui formar pelo
menos 3 alunos que já estão dando aula no município, isso eu sei. Claro, alunos
que estão se dando bem, gostam da profissão, independente[...] da preferência
sexual ou não; estão dando aula e estão gostando disso, outros alunos até saíram
daqui pra fazer uma faculdade. Mas, com certeza, por exemplo, esses alunos
que entraram, que eu disse que agora só precisa ter voz e telefone, [...] alunos
homens que aqui entraram, vieram justamente pela quantidade de alunas que
estão aqui. Então aqui, como eu digo, é muito fácil ter namorada né, tá certo,
pra cada aluno tem pelo menos 200 alunas [...] A maioria dos alunos que aqui
formam, evidentemente não são pra ser professores, é pra ter um diploma, um
certificado de conclusão, de 2o. grau, do ensino médio (Diretor do IESK, os
grifos são meus).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 82

A partir dessa fala podemos perceber como é o pensamento da nossa sociedade


48
“machista”, na qual não cabe ao homem ensinar às crianças. Os homens que escolhem essa
profissão rompem com esse pensamento, e por romperem são, muitas vezes, rotulados como
homossexuais. Talvez, para fugirem desse rótulo os alunos do IESK o buscam para afirmarem
sua “macheza”, pois estariam entrando nessa instituição não por serem homossexuais, mas para
se aproveitaram da grande quantidade de mulheres que estariam disponíveis para um possível
namoro.49

O relato seguinte nos demonstra como eles são mal vistos pela sociedade:

[Os homens não querem entrar no magistério] Por preconceito também né. E
como professor está ganhando pouco, como ainda se tem na cabeça que quem
tem que sustentar a família é o homem, ele não pode sustentar a família com o
salário atual que o professor ganha, então ele corre para outra coisa, ele prefere
ser camelô, porque ele ganha muito mais do que sendo professor [...] [O
preconceito] existe, porque eles acham que eles têm desvio de conduta, que
acham que quem estuda aqui tem desvio de conduta, tanto é que a gente nota
que quando o Sarah está desfilando, a gente ouve assim, agora pouco né, mas
assim “viadinho, viadinho!” [...] Com a necessidade, e com a desvalorização
[...] financeira, ta entrando todo mundo, educador ou não. E, no início entravam
mais — isso realmente foi constatado, que não sou eu que estou falando — [...]
os homens com os comportamentos assim mais delicados, foi isso que inclusive
que criou esse “clichê” de que o homem que está aqui é “delicado” (professora
do IESK, os grifos são meus).
Na verdade, conforme a entrevistada mostra, os homens se distanciam do magistério
porque ganhariam pouco. Receber um baixo salário não seria admitido para um homem (pois ele
tem que sustentar uma família), seria, até mesmo, uma desonra. Dessa forma, a discriminação
seria ocasionada também por esse fator. Porém, não posso negar que alguns dos homens que
escolheram ou que escolhem o curso normal são homossexuais, assim como acontece em várias
profissões. No relato acima nos é dito que antigamente era muito mais comum, porém não há
como saber se isso é verdade, ou se isso acontecia pelo fato de o preconceito ser maior, o que
fazia com que o homem heterossexual não escolhesse de forma alguma tal profissão. Para uma
sociedade “machista”, não é adequado ao homem o exercício dessa profissão, quem pensasse em
escolhê-la certamente logo desistirá dela pelo preconceito existente, até mesmo pela influência

48
Conforme assinala o diretor.
49
Não entrevistei alunos homens porque de início me interessava a memória das mulheres e das autoridades do IESK
sobre a feminização do magistério e a visão e as escolhas profissionais femininas. Porém, provavelmente farei uma
análise do lugar do homem no magistério em um outro trabalho.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 83

cerceadora de diversas instituições (família, igreja etc.). A opção pela docência aconteceria se o
homem gostasse tanto da profissão que pretendesse, através dela, lutar contra o preconceito.

O homossexual acaba sendo rotulado e desprezado de várias maneiras, conforme nos


assinala Alentejo (2003, p. 1):

O jogo do qual o homossexual participa, desde cedo e às vezes por toda sua
vida, foi construído pelo exercício dos poderes e aplicado, ao longo do tempo,
pelas instituições. Suas regras estão balizadas por várias formas violentas de
repressão, agressão, clausura, exclusão, abandono, perseguição, silêncio que
sabemos existir e que muitas vezes, de alguma forma ou de outra, já
experimentamos. Na sociedade pós-industrial, outra regra foi adicionada às
demais, e consiste na absorção, mito da integração e inserção, a título de
integração dos grupos minoritários como exercício de controle sobre eles.
Na fala da professora do IESK, percebemos que os rótulos atribuídos aos docentes
masculinos são baseados em:

• Uma suposta análise científica que diria que esses estudantes são “doentes” ou com
“desvio de conduta”.

• Na discriminação e menosprezo (“viadinho”).

• No silêncio das normalistas entrevistadas que não citaram o homossexualismo masculino,


ao falarem dos homens na instituição.

• Ou mesmo na tentativa de não aludir a sua escolha sexual, como no fato de a entrevistada
não saber como chamar os homossexuais e acaba por descrevê-los como “delicados”.

São poucos os alunos homens no IESK, o salário da profissão é baixo, porém os


rótulos ofensivos aos estudantes da instituição são muitos. Assim, a profissão do magistério
infantil, principalmente, não atrai a entrada dos homens e, dessa forma, continua sendo uma
profissão eminentemente feminina. Porém, esse ideário perpassa não só o imaginário masculino,
mas provém também das próprias normalistas. Estas têm sua memória condicionada pela crença
de que a mulher é que tem o dom para exercer o magistério, pois o homem não seria apto para
cuidar de crianças.

Durante muito tempo o paternalismo, que é o berço da concepção machista que ainda
permeia na nossa sociedade (principalmente nas localidades menos envolvidas com os grandes
centros urbanos), gerou todo esse ideário de que a mulher teria a vocação para criar e educar
crianças, conceito que continua, na maioria das vezes, presente nos discursos das normalistas
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 84

entrevistadas, como é possível notar tanto nas suas opiniões quanto na sua compreensão do modo
como a sociedade vê a participação do homem na educação:

[...] é muito difícil encontrar homem né, que quer ser professor realmente e que
começa fazendo normal, que muitos fazem tipo o técnico né e não pensam em
ser professor e quando chega na faculdade e tem que [...] dar aula lá na frente,
tem que fazer seminário é que eles vão ver que têm jeito pra coisa, e que vão
ser. Mas é muito difícil o homem chegar, fazer o normal todo direitinho e ir pra
estágio e ensinar criança a fazer o be-a-bá [...] eu tinha professores homens na
oitava, de quinta a oitava e tinha bastante, tinha uns quatro [...] Isso acontece
por causa do machismo que até hoje ainda existe essa bobeira, o preconceito
[...] porque na minha família não tem ninguém que é professor, só professora
(normalista Anne).
Na fala dessa normalista podemos perceber que o homem, mesmo que tenha
condições para dar aula, pode não escolher cursar o normal por causa do preconceito que está
associado a ele. Assim, ele prefere fazer essa escolha na faculdade, para dar aulas da 5a série em
diante.

Nas entrevistas com as autoridades do IESK, fica claro que há diferenças no que
determina o ingresso ao magistério; mais exatamente, diferenças ligadas a questões de gênero: há
uma disparidade nos motivos pelos quais a mulher e o homem optam pelo magistério.

A professora entrevistada, uma das primeiras alunas do IESK, adota a docência quase
como se fosse uma atividade “natural” da mulher, atrelada à religiosidade e incentivada pelos
colegas da igreja, por seu dom de ensinar, apesar de a família preferir que ela fosse dona de casa:

[...] eu desde pequena freqüento a igreja Batista, então lá a gente lida muito em
aprender e ensinar, e eu vendo os meus professores da igreja e a convivência ali
com a dedicação, e também naquela época o que se apresentava para a mulher
era só ser professora. Na sociedade daquela época só podia ser professora ou
dona de casa, então foi nesse momento que escolhi (professora do IESK).
Dessa forma, mesmo que não seja de uma forma consciente, ela reafirma que o papel
da professora é exercer a educação como um sacerdócio, uma função religiosa. Essa concepção
há muito tempo tem sido divulgada nas representações sociais, assim nos esclarece Costa (1999,
p. 4):

o trabalho docente esteve historicamente ligado à ação civilizatória — na forma


de catequese — praticada pela igreja, fortalecendo os vínculos entre ação
pedagógica e missão religiosa. Tal tradição aderiu à cultura do magistério, e, à
medida que os quadros docentes foram se laicizando e feminizando,
sedimentou-se uma visão social tendente a associar a docência com vocação,
abnegação, submissão etc.
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Já o diretor afirma que fez opção pelo magistério depois de cursar a Faculdade de
Engenharia, pois percebeu que gostava realmente da atividade de ensino. Essa escolha foi
motivada também pela sua convicção política de tentar mudar alguma coisa através da docência.

Eu fazia a faculdade, a faculdade de engenharia, aí foi cobrado na escola, pra


um grupo de alunos fazer projeto [...] E era para o nosso grupo, [...] eu e outro
amigo, pra fazer todo um projeto industrial de uma fábrica. E aí nós fizemos o
projeto, estudamos bastante e demos a aula, uma aula de quase 2 horas, aí a
surpresa foi que nós fomos aplaudidos. Dois alunos foram aplaudidos pela
professora! Tiramos a nota máxima. A partir daí inclusive os meus colegas,
falaram “você tem toda a tendência pra ser um bom professor”. A partir daí, [...]
não trabalhava nem no magistério, aí me dediquei à carreira, [...] tive que fazer
todo um retrocesso na vida, o que eu gostava mais, qual a matéria que eu
gostava mais. Aí eu descobri que eu gostava mais de português, gostava mais de
linguagem, gostava mais da comunicação. E aí eu fiz o curso de Letras, e eu
acho que foi a atitude mais correta que eu tive [...] Porque eu achava, na minha
visão de educador, [que] só se muda uma sociedade [...] através da educação
(Diretor do IESK).
Novamente o preconceito aparece na narrativa de uma entrevistada, exposta abaixo,
como motivo para o homem não escolher ser professor, pois este é um ofício feminino. Ela
explica que a profissão é associada com a maternidade, com o carinho e o cuidado, e que isso
tudo estaria ligado com a mulher e não com o homem, que não gostaria de lidar com crianças. Os
homens que estudavam no IESK estariam lá para aprender a lidar com crianças, só como um
preparo para educá-los posteriormente quando estes saíssem das séries iniciais:

[Ser professora é] Uma coisa meio de mãe assim, que eu acho que as mulheres
têm muito isso, de carinho, de atenção, eu acho que o professor ele tem muito
disso também, de cuidar, de estar guiando, de educar, então eu acho que pode
ter alguma ligação sim. É porque são poucos os meninos que tem lá [no IESK] e
os meninos [...] eles eram bons professores, mas era muito difícil aparecer
meninos pra lá, até porque rola todo um preconceito “ah, professora de 1a a 4a e
tal”, é um pouco complicado. Eu acho que pras mulheres isso, sei lá, tem uma
ligação mais forte. [Isso acontece] talvez sim pelo preconceito e pela falta de
ligação do homem com crianças assim, coisas de educar, porque alguns
meninos que tinham lá eles tinham vontade de dar aula, mas não pra criancinha
pequena, mais pra... estavam lá mais pra ter uma noção de conhecer mais as
crianças pra quando pegar eles mais tarde ter uma noção de como que foi aquela
criança. O que se passou na vida deles até aquela etapa. Eles tinham muito essa
visão (normalista Joyce).
Outra normalista demonstra que a mulher professora é associada com a mãe, com o
conforto do lar, assim a criança se “abriria mais”, ou seja estaria mais disposta ao diálogo e a
falar de seus sentimentos. Já o homem teria mais relação com o pai que seria “brigão e chato”:

Fica mais difícil [pra criança lidar com um homem], porque sei lá, eu não sei se
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 86

é porque o professor não tem aquele contato direto, o homem não tem aquele
contato direto com a criança, acho que a mulher demonstra mais assim, dá
mais tipo uma essência pra criança se juntar mais, pra se sentir em casa,
confortável e chegar pro professor e falar. Acho que o homem é, é muito
difícil, a criança fica mais travada “ah, é homem parece o meu pai”, é estranho.
Eu acho, assim, que a criança sempre tem aquela imagem assim, a mãe é a boa,
e o pai é o chato que briga, não é? Então eu acho que a professora tem mais
condições de lidar com criança, da criança explicar às vezes porque ta triste,
porque tem crianças que são muito choronas, que são complexadas em casa, tem
algum problema que afeta, então ela vive chorando, eu acho que é mais fácil ela
se abrir com uma professora do que com um professor (Normalista Rafaela, os
grifos são meus)
Conforme demonstrei essa associação da professora com a mãe e com o dom para
cuidar de crianças impera na sociedade há algum tempo e continua permeando as escolhas
profissionais e a memória dos professores.

A normalista também associa a dificuldade de emprego do professor homem com o


fato dele ser novo e ser considerado irresponsável, comparando-o com a mulher que seria mais
equilibrada. Essa dificuldade de emprego para o homem poderia ser um dos motivos para que ele
não escolha o magistério:

A maioria [dos homens] foi pro comércio. Esses dias mesmo eu desci Campo
Grande e tinha um colega meu trabalhando numa farmácia, que estudou lá
também, e esse menino eu acho que não merecia uma farmácia, porque ele
também era muito inteligente, gostava muito da matéria, ele sempre sentou lá na
frente, mas não sei porque, às vezes é sorte que não ajuda [...] Eu acho que se
torna mais difícil prum homem porque ainda mais por ele ser novo, por ele só
ter cursado o Sarah, então as escolas particulares elas exigem (...) quem tenha
mais curso, e também depende da entrevista [...] É, mais por ele ser menino e
ser jovem, então, eles já vêem assim. Ah! Jovem hoje em dia não quer nada
[...]. Então acho que não é apto a [...] aplicar tudo que a escola exige. Eu acho
que pra mulher seria mais fácil (normalista Rafaela, os grifos são meus).
Mas esse pensamento de que o homem jovem é mais irresponsável é outro discurso
presente na sociedade e que pode acabar atingindo o homem e fazendo-o optar por outra área que
não lhe exija tanto estudo e dedicação. Uma normalista declarou que não há preconceito e que o
mercado de trabalho do magistério está mais aberto aos homens: “Acho que não existe
preconceito, porque tem tantos professores homens, acho que [...] hoje está bem aberto pra
professor e professora” (Normalista Bárbara).

Concordo com a opinião de que o mercado está mais aberto, pois há pouco tempo era
raro o homem que estudava no curso normal e que dava aula para criança. Porém, o preconceito
ainda está presente, apesar de não estar tão declarado e fixo como antigamente.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 87

Todas essas considerações mostram ainda que para muitas normalistas o magistério é
uma função feminina, porém isso não é um pensamento criado somente por elas, é uma
concepção que está na memória da sociedade em que elas vivem e que, de uma forma ou de
outra, acabam por influenciá-las, pois incute que o magistério é uma “profissão” que precisa que
o professor tenha cuidado, carinho e atenção, atributos que socialmente não são estimulados e,
muito menos, considerados inerentes ao homem.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 88

2.5 Escolha por gosto

Vale ressaltar aqui que não questiono a opção profissional por “gosto”, pois, na
verdade, se me perguntarem porque sou professora, uma das respostas que eu daria seria a que
“eu gosto da profissão”, porém isso é diferente de achar que tenho uma vocação para essa
profissão ou um dom que nasceu comigo. Tenho consciência de que não são os fatores
biológicos, muito menos, exclusivamente pessoais, que levam uma pessoa a fazer escolhas na sua
vida, principalmente a opção profissional.

A memória coletiva interfere nas preferências individuais. A memória que se tem na


família pode influenciar na escolha de uma profissão, uma pessoa que sirva de modelo pode
servir de incentivo para a opção profissional. Porém, o que destaco aqui é o fato das alternativas
que se apresentam para as mulheres serem poucas e isso é que deve ser questionado, conforme
Yannoulas (2001, p. 75) aponta:

É necessário destacar a legitimidade da escolha das mulheres que,


conscientemente, preferem ser donas de casa ou profissionais em áreas
femininas por tradição, no caso em que a escolha é verdadeira. Dito de outra
forma, quando se baseia no conhecimento de toda a gama de oportunidades e
possibilidades de desenvolvimento pessoal inerentes a uma profissão ou
ocupação. O que se discute é a restrição das possibilidades
oferecidas/percebidas pelas mulheres e não as escolhas baseadas na liberdade
pessoal (grifos da autora).
A autora afirma que não é o estimulo às mulheres para ingressarem em ocupações
tradicionalmente masculinas e de homens em profissões tradicionalmente femininas que levarão a
condições de igualdade no mercado de trabalho. Pois, esse estímulo não consideraria “as
necessidades, saberes e habilidades de cada pessoa, ou os obstáculos culturais que deverão
enfrentar, individualmente [...]” (2001, p. 82).

Almeida também considera que a profissão, apesar de ter sido desvalorizada com a
entrada das mulheres no magistério, continua a ser escolhida por mulheres que, apesar de tudo,
gostam da profissão, têm amor por ela. E não é esse fato que interfere nos preconceitos sobre o
magistério, pois gostar da profissão não impede de lutar para melhorar as condições de exercê-la:

[...] se por um lado educar e ensinar é uma profissão, por outro lado, não há
melhor meio de ensino e aprendizagem do que aquele que é exercido de um ser
humano para outro, isso também é um ato de amor. E indo mais além, gostar
desse trabalho, acreditar na educação e nela investir como indivíduo também se
configura como um ato de paixão, a paixão pelo possível [...] Talvez resida aí a
extrema ambigüidade do ato de ensinar e da presença das mulheres no
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 89

magistério (1998, p. 76).


A “extrema ambigüidade do ato de ensinar” está presente na continuidade da mulher
no magistério e no seu gosto pela profissão, a mulher não deve deixar de ter amor pela profissão,
porém um amor que não seja “cego”, quer dizer, que não a impeça de ver as imposições sociais
para que ela se submeta, que não lute. Investir na educação é lutar pelo possível, pela mudança
dessa educação que cada vez mais quer cada um no seu “devido lugar”, estagnado e obediente.

É necessário que a subjetivação que a sociedade exerce sobre a mulher não seja maior
do que seus impulsos pessoais e a vontade de lutar por ideais. Afinal, não há coisa melhor do que
fazer do seu ofício um prazer e um modo de batalhar pelo que se deseja.

É bom destacar que a memória coletiva não nos lembra que a docência foi profissão
masculina, e isso faz com que se ache natural a feminização do magistério. Assim, a memória
forma uma escolha inerente nas mulheres pelo magistério, conforme vimos nos relatos das
normalistas. A memória coletiva deve ser vista não só pelo vínculo com o poder, com seus
processos de subjetivação que tentam constituir o indivíduo para controlá-lo, e pela manutenção
da tradição que quer conservar cada um “no seu local”. Se a memória leva a esquecer as opções
que não foram efetuadas e a demarcar as eleitas, é preciso que as alternativas segregadas da
memória sejam lembradas ou que as escolhidas sejam objeto de uma maior reflexão, baseada na
luta pela formação de uma memória não subjetivada ou singularizada.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 90

3 Memória e subjetividade: a construção da singularidade das professoras


formadas pelo IESK

Neste estudo é necessário escutar o que o outro pensa, conhecer suas idéias, seus
valores, sua singularidade e sua memória. Ouvir uma narrativa oral representa tanto compreender
o passado quanto testemunhar o presente, pois ambos se tornam alvo de reflexão no momento de
sua narração. Ou seja, quando alguém narra um fato acontecido o faz a partir de seu ponto de
vista atual. Assim, o presente também está imbricado nos acontecimentos passados que a pessoa
viveu e influenciou na sua tomada de atitudes. As teses de Pollak (1992) e de Lozano (1996)
elucidam que a oralidade50, enquanto fonte para pesquisas e estudos, permite historiografar o
tempo presente e obter conhecimentos dos processos histórico-sociais. Essa forma de pesquisa
sofre várias influências interdisciplinares, pois a oralidade não traz somente o ponto de vista
histórico, mas psicológico, social, coletivo etc.

A narrativa possibilita esclarecer processos subjetivos da experiência humana. Tais


processos facilitam o contato com as “pequenas histórias” de indivíduos, grupos e comunidades,
revelando experiências singulares de segmentos muitas vezes esquecidos, como no caso de
idosos, trabalhadores, agricultores, desempregados, religiosos, crianças de rua, domésticas,
aposentados etc. Através desses relatos temos acesso a uma memória popular.

Portanto, empregar o recurso da oralidade, para o esclarecimento das vivências das


professoras formadas no IESK, possibilita que estas transmitam seus modos de ver o mundo e a
sua história pessoal, com todos os seus percalços, acertos e desacertos, certezas e incertezas. Essa
metodologia de análise nos permite extrair das lembranças mais longínquas dos sujeitos
investigados as imagens que marcaram o seu processo de escolha e a sua formação profissional.

Buscando atingir os objetivos dessa investigação por meio dos depoimentos e da


interação com as professoras, é possível refletir sobre a escolha profissional e a relação dessa
profissão com as experiências pessoais e coletivas. Além disso, é possível esclarecer a relação
dessas experiências específicas com o local de vivência e formação das normalistas.
50
Essa modalidade de pesquisa gerou muitos debates entre os historiadores, pois alguns defendiam que o fato de o
pesquisador ter contato com o objeto de pesquisa tiraria o status de objetividade da mesma. Mas não está em foco,
nesta dissertação, aprofundar neste debate.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 91

Entendendo que narrar a própria história de vida é rever experiências, com a


possibilidade de retomá-las; tornando viável, assim, desvelar o processo de recriação dessas
memórias, profundamente marcadas, a meu ver, pelo coletivo.

A reconstituição da memória permite ao narrador realizar reinterpretações de si


próprio, de processos e práticas de ensino. É possível, com isso, recuperar sua experiência através
de uma história singular de vida, pois, conforme esclarece Bosi: “A narração da própria vida é o
testemunho mais eloqüente dos modos que a pessoa tem de lembrar. É a sua memória” (1995, p.
68).

Conforme Benjamim destaca: é preciso não esquecer que “a experiência de que a arte
de narrar está em vias de extinção [...] Uma das causas desse fenômeno é obvia: as ações da
experiência estão em baixa” (1985, p. 197-198). Neste sentido, é preciso dialogar com as
professoras formadas pelo IESK para que suas experiências venham à tona, no ato de relembrar
suas memórias.

A professora demonstra a capacidade de compartilhar com seus pares as experiências


vivenciadas. Não é com os saberes legitimados pelo poder que podemos repensar a formação
docente, mas com a valorização da sabedoria que vem das práticas do cotidiano escolar (por
vezes, tão esquecidas, desvalorizadas e desconsideradas). Neste sentido, Kenski (1997, p. 93)
afirma: “Tradicionalmente o professor é um agente da memória por excelência. Dedica-se à
aquisição do conhecimento (‘memória-saber’) não apenas para seu próprio uso mas para
reelaborá-lo, transformá-lo e adaptá-lo a formas possíveis de serem transmitidas a seus alunos”.

O professor, enquanto agente da memória, tem o papel de difundir o conhecimento.


Porém, ele pode re-elaborar o conhecimento e a forma de transmiti-lo aos alunos. Essa é a
sabedoria que vem da troca de experiências. O ato de repensar faz parte da memória. Como
apontam Fentress e Wickham (1992), a memória não é somente um mecanismo de cópia de uma
informação e a capacidade de armazená-la em nossa consciência, ela também se faz pela
experiência de recuperar essa informação e transformá-la em pensamentos novos.

Procuro, através dos relatos das normalistas do IESK, investigar os condicionamentos


que constituem suas realidades sociais e que influenciam a escolha de sua profissão. Halbwachs
(1990) afirma que a memória se cria no âmbito coletivo. A memória do indivíduo depende do seu
relacionamento com seus grupos de convívio e de referência.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 92

No caso específico das normalistas entrevistadas, é possível assinalar que os grupos


sociais em que elas estão inseridas geraram um forte sentimento de identidade, tanto individual
como coletivo. Pollak (1992, p. 204) nos ajuda a esclarecer essa questão quando aponta que a
memória “é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como
coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de
continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si”.

Mas o que significa o conceito de identidade? Como seria construída a subjetividade


da professora?

A memória forma identidades, pois ela está estritamente vinculada com o poder e a
produção de subjetividades. O poder tenta perfazer o subjetivo para controlar as pessoas, esse
controle pode se dar na tentativa de estabelecer identidade fixas. Assim, Gondar aponta que
(2003, p. 32) “a memória pode ser um instrumento de poder. Todo poder político pretende
controlar a memória, selecionando o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido”. A
lembrança é um modo de constituir o sujeito, então, o poder político deve usar essa memória para
que não estejamos livres para lembrar de tudo o que quisermos, mas estritamente o que lhe é útil.

De acordo com Gondar,

[...] ao situar a memória e a subjetividade como sinônimos, Foucault não está


enfatizando qualquer dimensão psicologizante da memória, nem qualquer
tendência idealista da subjetividade. O que ele irá nos mostrar é que não
podemos separar a produção da memória de determinados dispositivos de poder
em diferentes momentos históricos.

Assim, poderíamos pensar a subjetividade e a memória libertas de uma redução à


esfera individual, ou seja, a memória e a subjetividade nunca são pertinentes somente ao sujeito,
mas também produzidas por dispositivos de poder. Isso significa que a memória produz
subjetividades não somente no plano individual, mas a partir de todos os processos de produção
social e material que se valem de discursos para afetar o sujeito, ou seja, ela atinge o sujeito na
sua expressão coletiva, a partir de mecanismos sociais.

Relacionando as leituras de Foucault e Halbwachs, percebe-se o valor do estudo da


memória coletiva. Porém, Foucault vai além de perceber a importância desse estudo, enfatizando
os processos que fazem a memória ser utilizada pelo poder para produzir subjetividades, ou mais
exatamente, para controlar os indivíduos.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 93

Uma forma de tentar compreender a memória é trabalhar com narrativas e oralidade,


no intuito de assinalar como se processa ou como se processou a construção da subjetividade da
professora no âmbito social em que ela vive. Essa análise será feita a seguir, principalmente ao
esclarecermos os termos identidade e subjetividade.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 94

3.1 Identidade e Subjetividade

Ah! Os caminhos estão todos em mim.


Qualquer distância ou direção, ou fim
Pertence-me, sou eu. O resto é a parte
De mim que chamo o mundo exterior.
Mas o caminho deus eis se biparte
Em o que eu sou e o alheio a mim
(Fernando Pessoa, Obra Poética).

Os versos de Fernando Pessoa possibilitam analisar o que significaria o complexo


conceito da identidade. O poeta sente que todos os caminhos estão nele, porém o caminho se
biparte e ele percebe que há algo que não lhe pertence, existe algo alheio. A identidade surge
nessa percepção de que existe algo diferente.

A identidade enquanto contraposição a um diferente é típica da sociedade


disciplinar51 analisada por Foucault. Para ele, a subjetividade surge a partir da disciplina,
entendida como sendo o modo de ordenar os corpos no tempo e no espaço, de distribuir os
lugares, separando, por exemplo, homens de um lado, mulheres de outro. Esse processo vai
construindo uma individualidade e uma identidade nos corpos. A disciplina cria identidade, ela é
um mecanismo de poder.

De acordo com Silva (2000), uma visão tradicional pensaria que identidade é o que se
é e a diferença é o que não se é, porém as duas coisas estão interligadas, pois só se é alguma coisa
porque não se é outras, e só não se é alguma coisa porque algo se é. Ou seja, a identidade e a
diferença são produzidas no contexto de relações culturais e sociais. É a partir do outro, que se
constitui a identidade. O outro é aqui entendido como aquilo que não é, o que se opõe ao próprio,
o negativo. Isto é, o outro é o diferente, de um sujeito ou de um grupo, aquele que se afasta das
características que identificam os últimos. Assim, identidade e diferença são termos relacionais.

O autor analisa que a identidade e a diferença não são naturais, não são inatas, elas
têm que ser produzidas pela linguagem, isto é, elas precisam ser nomeadas. Para se nomear uma

51
Foucault desenvolve a noção de sociedade disciplinar em diversos trabalhos, tais como: Microfísica do Poder
(1979).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 95

identidade,ela deve estabelecer o seu diferente, excluir o que ela não é, impondo e afirmando
aquilo que a caracteriza, que a torna si mesma:

A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua
definição — discursiva e lingüística — está sujeita a vetores de força, a relações
de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas [...] A
afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos
diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso
privilegiado aos bens sociais (SILVA, 2000, p. 81).

Essa divisão em oposições binárias — identidade/diferença, masculino/feminino,


rico/pobre etc. — opera uma classificação em que um dos termos é sempre privilegiado. Sempre
há uma identidade que é apresentada como parâmetro, como positiva, como sendo o modelo a ser
seguido. Por exemplo, no caso do homem ou da mulher na educação, assim como na sociedade
em geral, o homem leva vantagem por ser respeitado já que representa o aspecto racional, que é
valorizado socialmente, e a mulher é colocada como o aspecto emocional, negativo, ou seja,
aquilo que não é valorizado. Costa (1999) considera que essa divisão entre atitudes consideradas
masculinas ou femininas “não seria problemática se destas características não decorresse um
posicionamento diferenciado na política cultural, segundo o qual, os atributos masculinos
correspondem ao pólo privilegiado de uma composição binária dicotômica”.

Partindo da noção de identidade como atrelada à diferença — ou seja, que a


identidade precisa de um outro, um diferente para se contrapor — podemos analisar como as
identidades têm sido formadas nas sociedades disciplinares. Essas, de acordo com Foucault
(1979), são as sociedades que passam a controlar o espaço, o tempo, as atividades e que acabam
por formar individualidades.

As sociedades disciplinares surgem depois da Idade Média, com mudanças que


aconteceram no sistema social, transformações na forma do poder que passa a atuar na sociedade,
nas instituições. Machado nos mostra que Foucault visa estudar justamente esse tipo de poder:

que se expande por toda a sociedade, assumindo as formas mais regionais e


concretas, investindo em instituições, tomando corpo em técnicas de dominação.
Poder este que intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos
indivíduos — o seu corpo — e que se situa ao nível do próprio corpo social, e
não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser
caracterizado como micro-poder ou sub-poder [...] (MACHADO, 1979, p. XII)

Foi esse tipo específico de poder que Foucault chamou de disciplina ou poder
disciplinar. E é importante notar que ela nem é um aparelho, nem uma
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 96

instituição, na medida em que funciona como uma rede que as atravessa sem se
limitar a suas fronteiras. Mas a diferença não é apenas de extensão, mas de
natureza (idem, p. XVII).

Esse poder disciplinar não se caracteriza por oprimir, por dizer não, mas sim por
individualizar as pessoas através de classificações, por isso, as identidades passam a ser sempre
baseadas na exclusão de outras identidades “diferentes”. Podemos perceber na educação, como
em outras áreas, uma valorização do especialista, que é o indivíduo que tem a sua identidade
profissional mais definida e têm maior poder de veicular a “verdade” na sua área.

O poder pretende que os sujeitos sejam úteis, portanto, eles precisam estar
“milimetricamente” controlados e adestrados para a produção na sociedade capitalista. O poder
disciplinar utiliza-se de várias estratégias para o controle das individualidades:

Em primeiro lugar, a disciplina é um tipo de organização do espaço. É uma


técnica de distribuição dos indivíduos através da inserção dos corpos em um
espaço individualizado, classificatório, combinatório [...] (MACHADO, 1979,
p. XVII).

A grande importância estratégica que as relações de poder disciplinares


desempenham nas sociedades modernas depois do século XIX vem justamente
do fato de elas não serem negativas, mas positivas, quando tiramos desses
termos qualquer juízo de valor moral ou político e pensamos unicamente na
tecnologia empregada. É então que surge uma das teses fundamentais da
genealogia: o poder é produtor de individualidade. O indivíduo é uma produção
do poder e do saber (idem, p. XIX).

Se Foucault, como nos mostra Machado, defende que a sociedade capitalista se


caracteriza por ser disciplinar é porque ela promove um tipo de poder que quer fixar identidades,
reduzindo o indivíduo àquilo que ele tem que fazer, à identificação com o seu “papel” ou com seu
“dom”, à aceitação do lugar que ele deve ocupar na sociedade. A identidade é imposta, ou seja,
ninguém nasce com ela.

Se a identidade não é inata podem aparecer várias motivações para que ela seja aceita,
podemos perceber isso nos relatos das normalistas que justificam sua escolha profissional pelo
fato de gostarem de crianças, por falta de outra opção, por imposição da família, ou até mesmo há
aquelas que simplesmente abandonam a profissão.

Hall (2000, p. 106) diz que o termo identidade tem sido assolado atualmente por
muitas dificuldades conceituais, dessa forma, ele sugere um outro conceito — o de
“identificação” — para explicar o que seria atualmente a identidade: “a identificação é construída
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 97

a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que são partilhadas


com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal. É em cima dessa fundação
que ocorre o natural fechamento do grupo em questão”.

A identificação, ou identidade, não seria imutável, pois o indivíduo poderia alterar


sua identidade a partir da aceitação ou negação dos discursos e práticas que a constroem:

Utilizo o termo “identidade” para significar o ponto de encontro, o ponto de


sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos
“interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares
como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos
que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se
pode “falar”. As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições-
de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós (HALL, 2000, p. 111-
112, grifos do autor).

De acordo com o autor, para criar nossa identificação somos influenciados pelas
práticas discursivas presentes na nossa sociedade que tentam nos enquadrar, mas também pelos
processos que produzem subjetividades. Subjetividade é o modo de conceber o mundo, não é um
atributo de cada um, não é uma identidade. A subjetividade é um certo modo de sentir, de querer,
de olhar, de perceber as coisas, que é produzida por determinados mecanismos e configura certos
meios sociais.

No poder disciplinar, a subjetividade se apresenta como identidade, pois ele distribui


hierarquias e diferencia os indivíduos. Em outras relações de poder, a subjetividade é produzida
de maneira diferente, não é sob a forma da identidade.

O poder produz subjetividade, mas quando o poder se exerce sob a forma da


disciplina, ela tenta moldar e tomar para si o que está se transformando. A subjetividade que ele
produz é uma “identidade” que se pretenderia fixa. Entretanto, a todo momento há uma
interpelação da sociedade exigindo que cada indivíduo tenha uma identidade fixa, porém esta não
existe, pois nenhum indivíduo está livre de transformações. É nesse sentido que Guattari (1992,
p. 19) nos mostra que:

No ponto em que nos encontramos, a definição provisória mais englobante que


eu proporia da subjetividade é: o conjunto das condições que torna possível que
instancias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como
território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de
delimitação com uma alteridade ela mesmo subjetiva (grifo do autor).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 98

Ou seja, subjetividade é tudo que faz com que o indivíduo, ou a coletividade, exista,
se auto-afirme e relacione com outros indivíduos ou outras coletividades que também têm sua
subjetividade. Guattari (1992, p. 14) especifica alguns componentes que influenciam na
heterogeneidade da formação das subjetividades: “1. componentes semiológicos significantes que
se manifestam através da família, da educação, do meio ambiente, da religião, da arte, do esporte;
2. elementos fabricados pela indústria da mídia, cinema etc.”, entre outros.

No capítulo anterior, esses componentes foram analisados nas narrativas das


normalistas que falaram sobre as influências que sofreram no processo de sua escolha
profissional. Os principais fatores citados foram a família, a educação, o meio-ambiente, a
religião e a mídia (presentes na exaltação dos brinquedos e brincadeiras ditas femininas e também
pelos discursos veiculados pelos meios de comunicação).

Percebemos, nas falas das entrevistadas, os signos que circulam na sociedade e que
contribuem para a formação de nossa subjetividade através da regulação de comportamentos,
ações, pensamentos, respostas às regras sociais etc. A subjetividade é um conjunto de funções e
atitudes que levam o indivíduo a se reconhecer enquanto sujeito. Segundo Mance (1998):

Não há nenhum processo físico, biológico ou antropológico que não esteja


mediado por signos. Toda cultura, por sua vez, resulta de uma certa
estratificação semiótica ordenadora de comportamentos pessoais e coletivos. As
subjetividades, igualmente, se constituem a partir de processos
antropossemióticos sem os quais nenhum indivíduo poderia reconhecer-se como
sujeito ou agir com autonomia [...] O modo de comer, de vestir, de se reproduzir,
enfim, de realizar todas as atividades necessárias à existência e convivência
humanas é semioticamente organizado. Assim, quando se fala em subjetividade
há que se pensar nesse conjunto de matérias e funções — nesse conjunto das
necessidades orgânicas — e por outro lado nas dimensões da cultura — nos
diversos códigos socialmente ordenadores — que, de algum modo, modelizam o
corpo; neste processo estruturam-se as subjetividades.

A subjetividade modela o corpo, o indivíduo e todas as funções culturais. Pode


parecer exagero que mesmo as necessidades orgânicas sejam estruturadas pela subjetividade, mas
não é. Por exemplo, o indivíduo pode sentir fome, porém a hora e o local em que sua fome
aparece tem ligação com a subjetividade que nele foi produzida. Mas será que essa forma de
subjetivação não está em decadência? Os valores não estão se modificando?
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 99

O processo de fragmentação52 social determinado pela globalização nos faz refletir


sobre os rumos das identidades, na atualidade. Será que essa mudança permitirá a singularidade e
o devir, ou ela significará uma maior exploração das várias identidades existentes?53 É o que
pretendemos examinar a seguir.

52
Gilberto Velho (1994) nos remete às sociedades atuais como sociedades fragmentadas, pois estas levariam à
individualização dos sujeitos, colocando a identidade individual como valor básico e deixando os sujeitos
fragmentados, nos diversos grupos que atuam, nos diversos papéis que adotam.
53
O devir é um processo, algo em permanente transformação e que nunca está concluído, é um vir a ser, é um jogo
de forças que possibilita as mudanças.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 100

3.2 As mudanças na sociedade interferem no campo pesquisado?

A globalização tem sua lógica e as identidades modificadas serão sempre permeadas


por ela. Podemos perceber, nas teses de Hardt (2000), que mesmo com a globalização e a
aceitação das múltiplas identidades isso não significa que as identidades dominadas deixem de
ser excluídas ou que passem a ser valorizadas.

Primeiramente, ele percebe nas análises de Deleuze, Guattari, Foucault e Althusser,


que a subjetividade, na sociedade disciplinar, não é inata: “As subjetividades que interagem no
plano social são substancialmente criadas pela sociedade [...] As práticas materiais oferecidas ao
sujeito no contexto da instituição [...] formam o processo de produção de sua própria
subjetividade” (HARDT, 2000, p. 368).

Para Hardt, não vivemos mais essa formação de subjetividade da sociedade


disciplinar, pois estamos vivendo na sociedade de controle em que os muros das instituições estão
se quebrando e, assim, modificando a produção de subjetividades:

de maneira que a lógica que funcionava outrora principalmente no interior dos


muros institucionais se estende, hoje, a todo campo social [...] A não-definição
do lugar da produção corresponde à indeterminação da forma das subjetividades
produzidas. As instituições sociais de controle no império poderiam, portanto,
ser percebidas em um processo fluído de engendramento e de corrupção da
subjetividade (2000, p. 369).

Hardt e Negri (2001) têm demonstrado que atualmente vivemos no tempo da


formação do poder do Império: que é diferente do poder imperialista, que exaltava a bipolaridade
para se colocar como dominante, superior e, dessa forma, exercer o poder. O poder do Império
quer abarcar todas as “identidades”, sem opô-las, mas simplesmente para incluí-las e torná-las
comercializáveis, servindo ao mercado.

A bipolaridade (as identidades opostas exaltadas pela sociedade disciplinar) tem


diminuído, pois agora o que importa é que se tenha multipolaridades como objetos que podem ser
consumidos. A exclusão deixa de ser importante para abrir-se à inclusão geral. Tudo está
globalizado e inserido mundialmente. Tudo se torna incluído a medida que se submete à lógica
mercadológica. Especificamente, a profissão da professora primária que era uma profissão tida
como feminina, começa a ter seu campo profissional “invadido” também pelo masculino.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 101

Contudo, o preconceito54 que afirma que esta seja uma profissão feminina ainda não
decaiu totalmente, ele continua vigente, pois a carreira do magistério tem sido um campo
vinculado cultural e historicamente ao gênero feminino. E a inclusão dos homens no magistério
infantil ainda é muito baixa, principalmente em uma área que vive baseada nas tradições locais.
Atualmente, apesar de perceber que todas as instituições que sustentam a sociedade disciplinar
estão em crise e a questão da identidade também, em Campo Grande, essa tendência ainda não
aparece, pelo menos de maneira clara. O modo que o poder circula em Campo Grande produz
subjetividade de uma forma determinada, nesse sentido, o lugar do homem e da mulher são bem
definidos e lhes são atribuídas funções bem características para cada um deles. É como se Campo
Grande retratasse uma sociedade mais tradicional, que difere da nova maneira social que Hardt
afirma estar assolando o mundo. A narrativa do diretor do IESK nos ajuda a analisar como essa
subjetivação acontece no bairro:

Feminilidade, primeiro é cultura mesmo [...] é aquele negócio maternal. Então a


mulher eu acho que quando nasce e até por tudo que acontece na vida dela, pela
mãe, porque quem fica com os filhos normalmente é a mãe, quem dá educação
ainda é a mãe, porque o pai sai pra trabalhar. Evidentemente estou falando de
Campo Grande, não é? Não vou falar de outros Estados, falar lá do Centro, em
que o pai e a mãe saem pra trabalhar. Mas aqui em Campo Grande não. Aqui em
Campo Grande acontece muito isso, quem educa é a mãe, então se a mãe
educando, quer dizer, então o filho já tem responsabilidade, a filha mais velha
tem responsabilidade de cuidar da filha mais nova, da filha que vem depois etc.
etc.

Em Campo Grande, o fato de a mãe ainda ficar em casa educando os filhos transmite
um modelo para a filha, um padrão que é seguido desde a infância, pois a menina deve ajudar na
criação dos irmãos mais novos. O pai, por sua vez, é aquele que sai para trabalhar. Essas
influências criam uma subjetividade na mulher que acaba por considerar “natural” que cabe a ela
cuidar de crianças. Isso faz parte do modelo disciplinar, pois os papéis são bem definidos e fixos.

Não vou afirmar que o sistema disciplinar não está em crise em Campo Grande. Na
realidade, todos os valores hoje em dia estão em transição e, com os meios de comunicação
atuais, é impossível ficar alheio ao que acontece no mundo. Mas, por causa da sua pequena

54
Presente na sociedade e nas narrativas dos entrevistados.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 102

ligação com outros bairros, o mecanismo disciplinar ainda continua vigente nesse “microcosmo”
55
. As famílias ainda pensam que as filhas têm que entrar no IESK e lhes impõe isso.

Nesse espaço disciplinar, a mulher deve ser professora e o homem deve ser técnico.
Curiosamente, o instituto normal e o colégio técnico de Campo Grande ficam próximos um do
outro, mas são colégios distintos. A impressão que se tem é que alguém quis demarcar claramente
dois lugares que não se confundem: aqui é o local de homens e ali o de mulheres.

A instituição não exclui os homens, pois estes podem entrar no IESK. Quem exclui?
É a subjetividade que exclui. Os professores concebem o mundo de uma determinada perspectiva.
Mesmo que a entrada dos homens seja permitida oficialmente, esta vai infringir noções que
permeiam o imaginário coletivo.

As representações, discursos e símbolos sobre o trabalho docente são fortemente


estabelecidas a partir das conexões entre magistério e feminilidade, e têm contribuído para situar
a carreira em um desprotegido e discriminado patamar social. Entretanto, o mercado em geral
está mais aberto e aceitando o trabalho feminino. Então, por que ainda existe a distinção social
entre profissão feminina e profissão masculina?

Ao mesmo tempo em que se questiona a distinção de profissões femininas e


masculinas, a lógica do Império é aceitar a formação identitária do homem e da mulher, enquanto
trabalhadores, daí porque o mercado encontra-se aberto a ambos os sexos em todas as profissões.
Não porque isso possa significar um critério igualitário, mas porque é necessário que todos
estejam inseridos, consumindo e sob controle.

Por isso, é preciso tomar cuidado e perceber que não é a inserção de homens em
profissões consideradas historicamente femininas e de mulheres em profissões historicamente
masculinas que vai possibilitar uma reflexão e uma escolha profissional que valorize as
singularidades dos indivíduos. Ao contrário, isso pode até significar maior submissão ao que o
mercado deseja e a depreciação não só do salário feminino, mas também do masculino. Não
podemos acreditar que a entrada do homem no magistério infantil resolveria o problema da
desvalorização da profissão.

55
Como se houvesse uma pequena sociedade ali, um coletivo que vai atribuir lugares definidos ao homem e à
mulher, entre outras subjetivações.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 103

Gondar (2003, p. 37) nos aponta que a resistência contra as sociedades disciplinares
poderia ser feita através de

uma contra-memória, no sentido foucaultiano — [que] pretendeu funcionar


como campo de libertação de outros valores, incorporando as vozes dos grupos
minoritários, compostos pelos marginalizados, explorados e oprimidos. Assim, a
resistência à lógica identitária se apresentou como uma afirmação das diferenças
locais, regionais, sexuais ou étnicas em contraponto a uma identidade genérica e
unitária (os grifos são meus).

Se a afirmação das identidades dos explorados era a resistência possível à lógica das
sociedades disciplinares, ela não é factível nas sociedades de controle. A resistência ao Império
seria a criatividade, assim como defende Gondar (2003, p. 40): “A memória não é lugar de
conforto ou de compensação pelas perdas identitárias; ela está sujeita à mudança, e a lógica das
redes não é incompatível — bem ao contrário — com a possibilidade de rememoração criativa.”

Já que foi dito que a lógica presente em Campo Grande ainda é disciplinar, será que
estaríamos sendo contraditórios se disséssemos que a criatividade é a forma de resistência dos
professores? Não seria melhor resistir afirmando uma identidade dos explorados, assegurando
uma identidade das professoras, dizendo que elas são realmente mais emotivas?

Não, porque Foucault (1985) mesmo já admitia a prática de si como resistência


possível também nas sociedades disciplinares. Portanto, essa não é uma forma contraditória de
resistir, é uma outra possibilidade de opor-se ao assujeitamento do poder.

A prática de si ou cuidado de si se explica, para Foucault (1985, p. 49), em uma arte


da existência em que “nela se encontra dominada pelo princípio segundo o qual é preciso ‘ter
cuidados consigo’; é esse princípio do cuidado de si que fundamenta a sua necessidade, comanda
o seu desenvolvimento e organiza a sua prática”. Essa arte da existência consiste não em se
deixar levar por preceitos pré-estabelecidos, mas em um governo ou uma cultura de si que leve
sempre ao bem-estar geral: da alma, do corpo, das relações sociais. Assim, o cuidado de si não é
um exercício de solidão, mas, de acordo com Foucault (1985, p. 58), uma intensificação das
relações sociais: “Quando, no exercício do cuidado de si, faz-se apelo a um outro, o qual
adivinha-se que possui a aptidão para dirigir e para aconselhar, faz-se uso de um direito; e é um
dever que se realiza quando se proporciona ajuda a um outro ou quando se recebe com gratidão
as lições que ele pode dar”.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 104

Incentivo à busca de uma subjetividade mais pessoal e crítica, às singularidades, ou


práticas de si que levem a uma outra maneira de constituir-se a si mesmo enquanto sujeito moral,
seriam resistências diante das influências sociais (exaltadas por Foucault em seus últimos
livros)56 e poderiam existir mesmo diante de todo o aparato de controle que a sociedade tem
exercido sobre o sujeito.

56
Ver, por exemplo: História da Sexualidade III: O cuidado de si. (FOUCAULT, 1985) e Resumo dos Cursos do
Collège de France (FOUCAULT, 1997b).
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 105

3.3 Uma possibilidade de deriva:57 a singularidade

A subjetividade não é somente a regulação de nossos comportamentos. O sujeito tem


sua liberdade, ele pode interferir nos mesmos códigos que atuam sobre sua subjetividade. A todo
o momento são criados novos modelos e parâmetros para os comportamentos que se deseja, o
sujeito pode intervir problematizando esses parâmetros e não aceitando-os tacitamente.

A produção de subjetividade não é necessariamente singular nem massificada. O


poder quando produz subjetividade não é sob a forma singular, ele produz uma subjetividade
massificada pela identidade. Para haver identidade, esse modelo tem que valer para todos, tem
que homogeneizar. Todo mundo tem que ter uma identidade. Poderíamos dizer, por exemplo, que
uma das identidades ligada à mulher é ser professora. Entretanto, os indivíduos podem se
submeter ou podem resistir ao que é imposto de forma generalizada. Aceitando a subjetividade
produzida pelo poder e se submetendo a ela, as pessoas passam a “acatar” a identidade que lhe é
destinada. Se resistem, elas constroem uma singularidade, ao invés de receber a subjetividade
uniformizadora que o poder disciplinar produz.

Foucault chama essa resistência à subjetivação de estética da existência, e ela resulta


no que ele denomina de práticas de si. Reis (2001, p. 50) esclarece o que significa essa resistência
diante do poder:

Ao tratar do cuidado de si como uma forma de sínteses entre história da


subjetividade e a análise que realiza da governamentalidade, expressa o conceito
como o governo de si por si mesmo, em sua articulação com as relações com os
outros, ou seja, Foucault cria, com a noção, a imagem de uma arte de viver, uma
possibilidade ética e uma estética da existência.

Foucault demonstra que a possibilidade de governar a si mesmo (a prática de si)


implica o desenvolvimento de uma arte de viver. Ou seja, em vez de se adequar a uma norma
universalmente válida, o indivíduo tem a capacidade de desenvolver critérios de cunho estético
que o levem a desenvolver uma existência única e singular, ou seja, uma bela existência.

Gondar (2003, p. 34) também analisa como essa possibilidade aparece nas últimas
teses de Foucault58:

57
Uso esse termo com o sentido de desviar do seu curso e fazer provir, originar algo novo. Estar na deriva é como
estar em um espaço paralelo onde é possível recriar realidades, se recriar.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 106

O eixo principal de sua investigação deixa de ser o poder e torna-se a relação a


si, através do qual ele percebe uma possibilidade de escape ao poder [...]
Foucault descobre que tanto indivíduos como coletivos podem se relacionar com
as regras estabelecidas pelo poder de forma singular, constituindo processos de
criação de si, isto é, processos de subjetivação que escapam àquilo que os
códigos estabeleceram.

As influências do poder atingem a todos no curso de suas vidas de várias maneiras:


conversando, lidando com outras pessoas e com as instituições existentes. O indivíduo pode
receber passivamente essas injunções sociais, não questionando, não se singularizando. Mas,
também pode receber essa estrutura massificada e pensar que pode fazer algo diferente, único, e,
dessa forma, ter a possibilidade de singularização em relação a isso que é massificado pela
sociedade. A partir do que é recebido, pode-se inventar o novo, o inesperado, o singular. Não há
maneira de escapar do que o poder emana, não se pode fingir que a produção de subjetividade
não existe ou que se está fora de um meio social, pois o indivíduo é produzido dentro da
sociedade a que ele pertence. Não é se distanciando do social que pode-se criar o novo, mas
dentro do poder e a partir da subjetivação que ele oferece. Desse modo, há a possibilidade de
criar uma deriva. Essa possibilidade é ressaltada por Mance (1998, p. 4):

Cada indivíduo é determinado pela sociedade em todas as dimensões de sua


subjetividade, mas ao mesmo tempo também é livre, no sentido de que pode
interferir sobre esses códigos culturais. Assim, família, escola, colegas, amigos,
igrejas e, especialmente, as mídias de massa determinam muito a individuação
das subjetividades. Por outra parte, é possível uma intervenção dos sujeitos
sobre esses determinantes desde que desenvolvam a capacidade de
problematizá-los. Em todas essas esferas ocorre o processo educativo através da
formação dos indivíduos em semioses geradoras de interpretantes, de padrões e
referências para os diversos conjuntos de comportamentos e ações pessoais ou
coletivas.
Mesmo que as instituições sociais determinem a individuação das subjetividades, o
sujeito pode problematizar essa determinação. A educação interpela para que tenhamos padrões
de comportamento. Mas podemos questioná-los. Nesse momento podemos perceber como o
papel do professor é importante nesse processo de subjetivação.

Nas sociedades modernas para que haja produção é preciso que existam indivíduos
com identidades fixas referentes a diferentes funções: indivíduos que sirvam como agentes do
controle (o professor é um deles) e que sejam ao mesmo tempo controlados. A professora do

58
Principalmente no História da Sexualidade II: Uso dos prazeres e também em História da Sexualidade III: O
cuidado de si.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 107

IESK entrevistada desconhece que aquele que exerce o magistério é também um agente de
controle, corroborando ainda mais essa função dominante ao considerar que a profissão necessita
de uma especialização cada vez maior:

o educador não pode ficar para trás, porque suas informações ficarão obsoletas,
o seu ser [...] Ele é um agente, e o agente ele só pode agir se ele tem algum
conteúdo, não porque a lei está obrigando, é porque há necessidade.

Realmente, o agente deve ser especialista da sua área para poder determinar as
verdades e os comportamentos esperados. Mas poderia também questionar esses padrões. Neste
sentido, a subjetividade não seria somente assujeitada (voltada à produção de identidade), mas
relacionada à formação de uma singularidade, como propõem Guattari e Foucault. A
singularidade significa a maneira com que cada indivíduo vai receber essa subjetividade e que vai
produzir ou criar a partir dela. Hall (2000) demonstra que não é necessário somente que existam
leis, regras e modelos para que o indivíduo se subjetive, e sim que hajam respostas por parte do
sujeito e nelas pode estar a resistência e sua possibilidade de instaurar um novo olhar.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 108

3. 4 Uma nova “professoralidade”

Pereira (2000) nos demonstra que a “professoralidade” não é uma escolha feita
seguindo um modelo, mas uma “diferença que o sujeito produz em si”. Essa diferença representa
uma vontade de mudar, representa convicções. A escolha pela docência não pode ser puramente
influenciada por um modelo social59, mas por algo próprio do indivíduo:

A professoralidade não é uma identidade que se assume baseada em um modelo,


mas uma diferença que o sujeito produz em si, é um estrato em risco de
desequilíbrio permanente [...] A subjetividade é um conjunto de condições que
perfaz o sujeito, que produz, a identidade é a institucionalização de uma forma
a modelos estereotipados. A sociedade diz que devemos ter uma identidade
estável e dá padrões como formas de homogeneizar o cotidiano [...] A
professoralidade é o jeito, o modo de ser que tenho alimentado, como via
fundamental, tanto para navegar em meu campo individual quanto para colocar-
me dentro da coletividade. Há tempos ela ressoou com mais força, invadiu e eu
pude pressenti-la, com toda sua intensidade. Propositalmente, tenho investido
nela, acompanhando suas transformações e modos de demarcar meus novos
devires (p. 38-40, os grifos são meus).

Essa “professoralidade” é percebida como uma diferença em si mesma, e é uma


possibilidade de singularidade. Não é uma identidade porque não é fixa e não aceita as
imposições da sociedade de submeter os indivíduos aos padrões homogeneizadores do poder
disciplinar. A “professoralidade” é um processo, e como todo processo não pode fixar-se,
conforme percebemos na análise de Gondar (2003, p. 42) sobre processos e identidade:

Um processo jamais pode fixar-se numa identidade, sob pena de desaparecer


enquanto processo. Mesmo que uma identidade seja pensada como mais móvel
ou mais fluída, ela é algo que pressupõe a existência de fronteiras. Todavia, um
processo não tem fronteiras, ele se espalha como um rizoma [...] são as dobras
da memória que variando segundo diferentes ritmos, constituem uma pluralidade
de modos de subjetivar-se. Assim, mais do que garantir a preservação do que se
passou, a memória pode ser uma aposta no novo.

A professoralidade pode ser analisada como um devir, um porvir. A memória que


tem como potência a criação de algo novo é capaz de levar o docente a desenvolver uma forma
de ser diferente da imposta pela sociedade. Isso não significaria que o professor tem que se
distanciar do seu grupo profissional, mas que ele não deve submeter-se a uma “identidade fixa”
do professor.

59
Que, na nossa sociedade, está muito associada à mulher e seu “dom” da maternidade.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 109

O sentimento de pertencimento a um grupo, às relações sociais existentes nesse


grupo, e, até mesmo, às visões específicas que esse grupo tem do mundo, podem ser percebidas
na fala dos nossos entrevistados, pois é através dela que constatamos o quanto um indivíduo se
acha inserido no conjunto dos professores, como existe uma memória comum. Mas, há duas
visões diferentes sobre a postura dos professores:

Porque eu achava, na minha visão de educador, que só se muda uma sociedade,


através da educação, e nesse país a fase mais importante para mim é a fase lá da
1a a 4a ou até anterior a isso (diretor do IESK).

E nós éramos professoras mesmo, éramos profissionais, nós trabalhávamos com


prazer, o ensino era outra coisa, a gente tinha técnica, dedicação (professora do
IESK).

A visão de educador é, para o diretor, a possibilidade de se mudar a sociedade, já para


a professora entrevistada, é o prazer, a técnica e a dedicação. Por mais que essas visões sejam
distintas, elas são vigentes na coletividade docente. Contudo, elas demonstram a diferença da
valorização da mulher pelos aspectos da produção de subjetividade em que ela deve obedecer,
onde as técnicas levariam à obediência, à aceitação do imposto e à dedicação, ao não
questionamento. O prazer também pode ser visto de duas maneiras: como o gosto pela profissão
simplesmente ou pelo fato desse gosto fazer com que não se questione as dificuldades
encontradas na profissão. O fato de gostar de crianças muitas vezes não permite, por exemplo,
fazer uma greve e deixá-las sem aula.

Há também um tom de nostalgia na fala da professora, já que ela relata que o ensino
de antigamente era realmente bom. E qual era o ensino de antigamente? O mais disciplinar e
tradicional possível, onde as crianças não questionavam, somente decoravam. Pode ser que
realmente elas aprendessem mais conteúdos, mas também eram ensinadas a obedecer sem
discutir. Já na narrativa do diretor, percebe-se que a função do professor pode ser a de criar uma
deriva, uma forma de modificar a sociedade, um questionamento, um devir.

No contexto identitário do poder disciplinar, há um lugar para cada coisa. De acordo


com a argumentação do capítulo 2, no qual abordo a história da feminização do magistério, a
identidade da mulher não era a de professora, mas a de dona de casa. Para a mulher ser
professora, houve uma mudança nessa identidade. Sendo assim, a identidade da mulher-
professora virou um novo modelo aceito pela sociedade.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 110

Essa modificação serviu a determinados interesses: uma nova identidade surgiu


porque o poder precisava que ela surgisse. A tendência de a mulher ingressar no magistério
surgiu depois, de acordo com a necessidade de mão de obra na educação. Antes o magistério era
exercido pelos homens, não tendo assim sentido a ligação do magistério com a maternidade ou a
feminilidade.

A sociedade em geral postula a identidade como necessária, ou como natural,


questiona quem não a tem. A professora “tem” que ter identidade. E qual é a identidade fixa da
professora divulgada ainda hoje pela subjetivação, na sociedade? A mulher que gosta de criança,
que é carinhosa etc. Isso seria a identidade fixa que é imposta. Quem não tem essa identidade é
excluído, é o “outro”. A diferença é vista como negativa e não como uma forma de singularidade,
como outra possibilidade do processo devir-mulher.

Lembremos que nos contextos identitários a oposição é binária, portanto a identidade


dominante passa a se opor ao outro considerado diferente. Sob esse ângulo, podemos refletir na
nossa cultura como a identidade feminina tem sido constantemente a “outra identidade”, uma
identidade “menor ou negativa”, comparada sempre com a masculina que é tida como a
identidade forte, racional e destinada às ações mais valiosas da sociedade.

A identidade feminina é relegada a um plano secundário e fica destinada ao privado,


ao doméstico, ao emocional e à esfera do cuidado maternal, características muitas vezes
associadas ao ensino. Conforme assinala o diretor do IESK:

Eu fiz várias entrevistas este ano com alunas que não foram indicadas para o
Sarah Kubitschek, e aí eu perguntava “você quer ser professora?” [a resposta
era] “ah, eu adoro criança” [...] [O rapaz diz] “eu quero ser professor porque eu
quero ensinar”, mas nunca um rapaz disse “eu adoro criança, eu gosto de cuidar
de criança”. Então, eu acho que as meninas quando vêm para cá, é porque
gostam de crianças, ou porque gostam mesmo, ou [...] [porque é da] cultura
dessas famílias aqui da periferia, é porque a menina é quem tem que cuidar da
criança.

A mulher toma para si a identidade propagada pela sociedade de que ela tem que ser
professora por gostar de criança, já o homem percebe a profissão como um meio de ensinar algo,
de transmitir conhecimento. Quando o diretor diz que as meninas podem gostar mesmo de
criança, é porque a produção da sua subjetividade a construiu dessa forma.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 111

A identidade feminina acaba sendo desvalorizada por esse lado maternal e emocional.
Assim, o próprio ensino primário também é desvalorizado diante de outras profissões, como a de
advogado, de engenheiro etc. Exclusão que se faz pelo salário (afinal quem trabalha por gosto,
sacerdócio, ou hobby, não precisa de dinheiro), pelo status e até mesmo pela denominação
“carinhosa” que é conferida a essa profissão: a tia.60 O questionamento do rótulo “tia” aparece na
narrativa do diretor, demonstrando como esse termo deprecia a professora e lhe nega a posição de
uma profissional:

Na minha época era a professorinha, na minha época era a normalista, e é tudo


no feminino [...] Eu digo para elas sempre, não aceitem que te chamem de tia,
porque você não faz parte da família dela, vocês são educadoras. Então o que
que é chamar de tia? Chamar de tia é porque a professora de 1a a 4a está em
contato todo dia com os alunos e conhece as mães que vão pegar esses alunos na
escola, etc e tal. Então, [...] [as mães dizem] “não, você vai lá” porque o aluno
normalmente não quer estudar, não quer ir pra escola, “não, você vai com a sua
tia, ela vai ser uma tia para você”. Então, familiariza-se tudo, e aí nega-se à
professora de 1a a 4a, normalmente o que realmente ela era: uma professora, uma
educadora. Ela pode ser tudo, menos tia (diretor do IESK).

Questionar a “normalização” de certas identidades hegemônicas pela representação


social e de certos “discursos populares” presentes na memória social sobre as identidades
“minorizadas”, torna possível pensar na produção de singularidades. Fugir da profissão é uma
forma de fugir da massificação identitária. Contudo, estar na profissão e fazer tudo de uma
maneira muito singular conduz ao caminho da resistência, no qual podemos ser mais criativos e
produtivos.

O problema que se coloca na fuga do magistério é que, às vezes, as normalistas


escolhem outras profissões que, a meu ver, são igualmente ou mesmo mais massificadoras.
Quando são vendedoras no comércio61 elas estão praticamente sendo um “objeto de consumo”,
veiculando os objetivos da sociedade capitalista. Quando querem ser enfermeiras, estão adotando
uma outra identidade que há muito tempo é permitida à subjetividade feminina.62

Mas, pode ser que a recusa seja uma tentativa de não se submeter às injunções do
poder que tentam colocá-las em uma fôrma identitária, ou seja, como a melhor forma de escapar

60
Sobre a questão da exclusão e do menosprezo que está presente na denominação da professora como tia e na
definição do magistério como dom e sacerdócio feminino ver: Professora Sim, Tia Não (FREIRE, 1994).
61
Que é a profissão mais seguida pelas normalistas formadas que saem da profissão do magistério, tanto por não
quererem exercê-la quanto por não conseguirem emprego como professoras.
62
Não estudei a introdução da mulher na enfermagem, mas essa é uma profissão feminizada há um bom tempo,
talvez por que ela também esteja ligada ao cuidado das pessoas.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 112

de uma “identidade fixa”. Pois, através dessa recusa, correm o risco de cair em um outro caminho
que não é aquele que as leve ao seu próprio objetivo, à sua singularidade. Esse caminho, na
verdade, pode ser tão subjetivador quanto o outro.

A resistência pode ser exercida pelas professoras na formulação de um discurso


próprio63, pois na utilização do discurso pode-se criar representações novas sobre o magistério
que demonstrem que o mesmo não é um hobby feminino; ele não é só exercido pelo gosto, mas,
também, pela possibilidade de sustentar convicções e tentar mudanças. Modificações que
aparecem em pequenos detalhes e posturas diferenciadas frente ao estabelecido.

Figura 9 — Conversas e discursos


A Figura 9, colocada acima, me faz lembrar essa resistência, pois há uma normalista
conversando com três estudantes do sexo masculino, conversa esta que poderia ser entendida pela
sociedade como uma “perversão”, pois os gêneros devem estar separados. Ela ocorre sem
preocupações e pode vir a proporcionar a criação de novos discursos.

Costa (1999) nos ajuda a analisar como os discursos sobre as professoras fabricam
uma identidade. Porém, é também por meio do discurso que as professoras podem reagir:

[Os discursos e as narrativas] instituem sentido, hierarquizam e articulam


relações específicas, fabricando significados. Tudo que têm sido dito sobre as
professoras, sobre a docência, não apenas “fala sobre”, mas cria, inventa,
institui [...] Quem joga segue regras e é por elas coordenado, não há outra
possibilidade. Quem tem o poder de narrar, de dizer como as coisas são, fabrica
as coisas [...] A única possibilidade seria ingressar na luta pela formulação dos
discursos sobre o magistério [...] É preciso contar, exaustivamente, que

63
E não na afirmação do discurso alheio ou dominante, pois aceitar esse discurso é aceitar ser dominado por ele.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 113

professoras não trabalham apenas para seus alfinetes, que o magistério é


povoado por seres sensíveis, sim, mas não por isso menos preparados para
cumprir seus desígnios na preparação de cidadãos e cidadãs de um mundo que se
deseja mais justo e solidário [...] E, falando como professora, defendo que
precisamos fazer circular as nossas histórias, contadas por nós. Precisamos
ocupar espaços de discurso do nosso jeito, com as nossas vozes, com a nossa
semântica e o nosso léxico. Isso é participar da política cultural da identidade (os
grifos são meus).

Reagiremos com uma memória produtiva e não nostálgica, uma memória da


possibilidade, mostrando que há outras histórias e discursos no magistério. Podemos ser
sensíveis, mas isso não significa menor preparo ou desqualificação. Resistir é afirmar que não
existe uma identidade docente e que nem mesmo devemos buscá-la como muitos postulam. Não é
a formação de uma nova identidade que fará da profissão adquirir status e tornar-se valorizada,
pelo contrário, isso a restringiria novamente a um modelo que passaria a excluir outras
possibilidades de ser professor.

O que se deve procurar é uma singularidade, que seria uma busca constante das
docentes com suas opções individuais e escolhas, e que faria cada professora ter o seu modo
singular de ser, ou seja, cada pessoa assumiria sua diferença.

Devemos afirmar que não existe uma diferenciação da professora como mulher
carinhosa e afetuosa, e do professor como homem racional e pesquisador, mas diferenças entre
pessoas. Pessoas que lutam por seus ideais e que querem que a educação tenha seu valor, que não
seja uma missão, e sim uma potencialidade.

Mas será que isso não traria a falta de união entre os professores, pois levaria cada um
a ficar centrado em si mesmo?

Não, pois não proponho que cada um se oponha às regras sociais, à identidade
estática, e procure o seu singular sozinho. Ao contrário, incentivo a singularização a partir da
união e da troca de experiência (conforme a prática de si de que fala Foucault) que está presente
nas narrativas e nos discursos das normalistas e dos professores.

A “professoralidade” não é uma busca unitária, é um modo de ser para se inserir em


uma coletividade com criticidade, sem aceitar estereótipos. Conforme Costa aponta no último
trecho citado, participar da política cultural da identidade é discutir com seus pares e fazer
circular um novo discurso sobre o magistério: o discurso das diferentes experiências que cada um
tem e que não são estáticas e homogeneizadas como uma identidade.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 114

A memória não é estável, ela pode ser alvo de reflexão e modificação. O senso
comum acha que somente recuperamos dados da nossa memória, mas nós também pensamos e
repensamos sobre eles. É esse o papel que as professoras formadas pelo IESK têm que tomar para
si: a re-elaboração das lembranças que nos foram passadas pelo social, pois esses elementos são
importantes, mas não podem ser tomados como únicos.

O uso da oralidade e da troca de experiências são formas de reformular a memória,


criando uma memória diferente, singular. A memória atrelada ao poder que quer controlar e
limitar os indivíduos a uma identidade fixa não produz um sujeito crítico, que tenha o governo de
si.

Não existe memória totalmente individual, pois ela atinge o sujeito na sua expressão
coletiva, a partir de mecanismos sociais. Para reformular a memória recebida da sociedade faz-se
necessário ligá-la à singularidade, a uma reflexão de si mesmo, sendo que essa reformulação só
pode ser feita com a ajuda de seus pares.

O professor pode se unir para repensar coletivamente sua memória social, se abrindo
para uma nova forma de sentir, de querer, de olhar, de perceber as práticas que tentam enquadrá-
lo, identificá-lo, como se fosse uma tarja magnética em que todos são iguais. Proponho uma luta
contra o determinismo do poder, um embate feito em conjunto, afinal se não há memória
totalmente individual, como a memória pode ser modificada se não for pelo coletivo?
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 115

Considerações Finais

Por meio de minha memória, percebo que a docência não é uma escolha de cunho
pessoal, que dependa exclusivamente de cada um. Todas as lembranças, caminhos e atitudes que
tomei foram influenciados pela memória social, ou seja, só pude me tornar quem eu sou devido
às pessoas com que lidei e que me deixaram lembranças, aos obstáculos pelos quais passei e a
forma como os enfrentei.

Optei pelo magistério refletindo sobre a experiência de minha mãe e questionando a


trajetória de sua escola. A maneira com que encarei a educação, sempre colocando a curiosidade
em primeiro plano, foi movida por um ambiente familiar que possibilitava discussões e
criticidade. Se percebi a docência como uma profissão que permitia lutas (e não só a aceitação de
um “dom” feminino de ser professora e cuidar de crianças) foi porque na memória que recebi, e
que vivi, o papel da mulher não estava restrito a poucas tarefas. Ao contrário, a condição
feminina dispunha de um leque de opções.

A concepção que tenho do processo educativo está indissociavelmente ligada à minha


percepção de mundo, às minhas memórias, ao questionamento da educação vigente e à tentativa
de apresentar aos professores uma nova forma de perceber a educação, não como um local
feminino por excelência, mas como um espaço prioritário de embates sociais que podem
acontecer na veiculação de uma memória ciente das divisões dos papéis e da formação de
identidades fixas, ou seja, de uma memória discutida que vise a criação do singular.

Apesar da esperança em desenvolver uma educação aliada ao questionamento, à


criticidade, percebo o quanto essa memória movida pelo poder tanto quer enquadrar todos nos
seus “devidos lugares” quanto influencia diretamente os professores da sociedade. Assim, ao
buscar entender as narrativas das normalistas formadas, pretendo mostrar como o discurso
individual é permeado pelo social, como ele é movido por relações que se estabelecem com o
meio e com a memória das pessoas.

Primeiramente, elas estão inseridas em um bairro — Campo Grande — que as leva a


deterem suas atividades em um âmbito fechado, seja porque esbarram na distância e na
dificuldade de acesso ao Centro do Rio de Janeiro, seja porque desfrutam da auto-suficiência de
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 116

seu comércio (o que dispensa a ida a outros bairros). Esses atributos induzem a continuidade dos
costumes já conhecidos e a valorização dos divertimentos que o lugar dispõe.

Incomoda-me essa falta de contato com outros bairros e com outros costumes, acho
importante fazer opções e não ficarmos limitados a aceitar o que já está estabelecido. Esse
incômodo aparece também no discurso de uma normalista, porém não é geral. A memória
divulgada pela comunidade exalta somente os hábitos locais.

Esse bairro fechado em si mesmo, que se apresenta como um feudo cercado de


fortalezas, parafraseando um entrevistado, acaba por exaltar as instituições da região, como, por
exemplo, o IESK — enquanto única instituição pública de formação de professores (embora isso
não aconteça com uma intensidade tão grande quanto há poucos anos atrás).

As memórias propagadas nesse espaço restrito ressaltam a valorização da profissão


docente para as mulheres, a exaltação das atividades efetuadas no local, a desmotivação frente às
atividades que são feitas distantes do bairro etc. Por esse motivo, a relação com o bairro tem sido,
de forma geral, limitadora de uma memória mais aberta às escolhas e a um contato com outras
formas de agir.

A memória social dos moradores de Campo Grande está fortemente impregnada dos
valores locais, de seus costumes e espaços de contato. É impossível deixar tudo isso de lado, pois
o social a todo momento nos interpela. Para criar o novo, é preciso deixar de apenas acolher o
que é veiculado. É importante para o professor que ele também se abra ao conhecimento de
valores gerais e que não se restrinja apenas ao seu círculo de ação. Essa postura o habilitará a
incentivar os alunos a questionaram seu contexto de vida e suas memórias.

A influência do lugar sobre as normalistas fica patente no relato das entrevistadas. As


marcas decorrentes do espaço de vivência delas se evidenciam nas suas preferências,
principalmente na profissional — pois a docência é a profissão incentivada pela memória local e
uma das mais acessíveis na região —, e nas opções de vida na localidade, como, por exemplo, no
fato da preferência em não estudar, trabalhar e se divertir em outros bairros. Essas escolhas
demonstram que as normalistas seguiram a tendência incentivada pela memória local e
continuaram perpetuando-a.

Os costumes dominantes são valorizados socialmente e a escola não deve deixá-los


de lado, ela deve relacioná-los com os hábitos locais, sem suprimi-los ou exasperá-los. No
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 117

entanto, também deve proporcionar conhecimento dos vários tipos de costumes para que o
tradicional possa ser questionado e para que surjam outras opções. A memória local é importante,
mas não é a única, tem que ser apreciada, porém não de uma maneira cega e distanciada de todo o
contexto social.

Não é só o bairro que influencia as normalistas, um outro fator importante para que
elas optem pela sua profissão é a feminização do magistério, cuja origem remonta ao interesse de
a classe dominante obter mão-de-obra mais barata e submissa. A entrada feminina no mercado de
trabalho foi sendo socialmente aceita aos poucos, através de justificativas “naturalistas” que
invocam diferenças biológicas para vincular a mulher a essa profissão.

Ou seja, não foi só em Campo Grande que essa memória relaciona a mulher com o
magistério. Paulatinamente, a mulher foi tomando conta do magistério infantil (da 1a à 4a séries),
pois ela é que teria a vocação para tomar conta de crianças e, assim, educá-las. Esse discurso é
internalizado pelas normalistas de diversas maneiras: por instituições como família, igreja e
escola, pelos meios de comunicação e, até mesmo, pelas brincadeiras que elas escolhem.

As narrativas nos mostram que a escolha das normalistas se deve a estímulos


familiares (com base na empregabilidade da profissão ou no fato de que esta seria uma profissão
feminina), ao gosto por crianças, a um “dom” pessoal, à idealização de algum professor que se
torna modelo, à facilidade do curso ou simplesmente à falta de outras oportunidades na região.

O percurso de minha escolha profissional envolve estímulos familiares, mas tem algo
de singular, de pessoal, que foi a busca por lutar por uma educação mais crítica, que permitisse
uma consciência da submissão que sofremos. Também não tive professores-modelo que me
motivaram à docência, nem me considerava com o dom para o magistério ou capaz de ser
professora por gostar de crianças. A minha opção pela docência não foi originada de uma
necessidade de emprego, mas de uma vontade de lutar para que a educação se desvinculasse da
sujeição e da formação de identidades fixas que diferenciam os papéis na sociedade.

A desvalorização do magistério faz com que aconteça a feminização do magistério, já


que o homem não escolhe um curso que lhe dê uma baixa remuneração, atividade incompatível
com a cobrança social de sustentar a família. Assim, as normalistas apresentam uma opção
profissional também baseada no fato de que o curso se tornou menos disputado (pela saída dos
homens) e de acesso mais fácil, além de ter menor exigência “intelectual” durante os estudos,
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 118

tendo em vista que as disciplinas não tinham tanta importância, o mais importante era ser mulher
e gostar de crianças. A mulher também poderia aceitar uma baixa remuneração no seu trabalho,
tendo em vista que não almejava sustentar a família, mas sim seus luxos.

O curso normal fica na memória social associado à simplicidade dos estudos, à baixa
remuneração, à feminização, mas também é tido como um curso da mulher devassa, sedutora,
pois esse discurso está associado a uma atividade na qual as mulheres se libertaram e entraram no
mercado de trabalho. Esse movimento não era bem visto socialmente e acabou tomando
proporções depreciativas no imaginário popular (o que perdura até os dias atuais).

O discurso do diretor e da professora do IESK nos mostra que a memória social está
permeada pelo preconceito contra os homens, já que eles aparecem como incapazes para o
magistério ou como homossexuais: um homem que se preze não opta por uma profissão que não
dê para sustentar a família e que lide com aspectos “femininos”. Esse pensamento não somente
contribui para que as mulheres prefiram fazer o curso normal nessa instituição como também, de
acordo com as narrativas das normalistas, faz com que elas percebam o homem como não
possuidor do dom para lidar com crianças e como um renegado do mercado de trabalho.

Deste modo, o magistério é percebido como uma profissão feminina que necessita de
atributos — cuidado, carinho, afeto e atenção — que não são exaltadas nos homens e que, muitas
vezes, lhe são negadas. Assim, faltaria a eles o “dom” feminino da “maternidade” ou do cuidado
com as crianças. Esse pensamento não provém unicamente das normalistas, pois elas recebem
esse discurso da memória social que lhes é transmitida e acabam incorporando-o.

Há uma diferença entre achar que nasceu com “dom” ou com “vocação” para o
magistério e o gostar da profissão. É importante o apreço pela profissão e por crianças. Mas, é
necessário que se faça uma reflexão a respeito da memória que é transmitida à mulher. A escolha
profissional pode ser encarada como a possibilidade de formar uma alternativa singular.

Os discursos sociais, a família, um professor modelo, entre outros, podem servir de


estímulo para a escolha docente. Porém, a memória veiculada pela sociedade não apresenta
muitas alternativas profissionais e coloca imperativos sobre a mulher, principalmente em uma
localidade que se distancia de outras e que valoriza os valores locais.

O lugar e as funções do homem e da mulher são bem definidos em Campo Grande,


sendo que os valores dessa sociedade tradicional contribuem para a formação de uma
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 119

determinada subjetividade. Hoje, apesar da crise que atinge todas as instituições disciplinares e
dos questionamentos sobre a identidade profissional, as estruturas que sustentam o poder
disciplinar ainda não foram suficientemente abaladas, ainda não sofreram “terremotos”
devastadores.

A memória e as escolhas da vida devem ser relacionadas ao amor ao que se faz, pois
nada melhor do que trabalhar com o que se gosta. Deve existir uma paixão que não seja cega, que
possibilite enxergar as determinações sociais. O indivíduo deve lutar por sua oportunidade de
escolha, ressaltando as individualidades, as habilidades de cada um, e também os empecilhos
sociais que poderiam enfrentar. Proponho uma memória da paixão ao invés dessa memória da
submissão que é exaltada pelo poder disciplinar.

A paixão pelas lembranças e pela possibilidade de mudá-las, quando essas são


limitadoras dos indivíduos, move o “gostar da profissão” e a luta por torná-la não-excludente.
Deve-se evitar a estagnação e a obediência sem questionamento.

A professora pode escapar dessa “memória da submissão” que a impele para o


magistério, ela é capaz de não se submeter aos processos de subjetivação que a interpelam, sem
que precise fugir da profissão para tal (às vezes, a evasão da profissão leva para um caminho de
maior submissão ao poder). Proponho uma memória produtiva e apaixonada, que divulgue nossos
discursos, sentimentos e experiências, e se diferencie de uma memória nostálgica, de um tempo
tradicional que muitas vezes contribuiu para propagar formas de exclusão social.

Divulgar os sentimentos não significa deixar de se preparar e se qualificar para lidar


com a situação educacional, mas analisar os fatos recebidos e que nos incomodam. Pode-se
perceber que o sentimento e o afeto estão presentes nos discursos das normalistas, só que eles
devem ser guiados para a reflexão e não para a aceitação de uma estrutura escolar que espera a
mesmice e a obediência.

Garantir que não existe uma identidade docente única implica resistir: a valorização
profissional não será adquirida pela formulação de uma identidade, ela apenas excluirá outras
formas de ser professor. A proposta é que cada um possa trocar com o outro maneiras de ser e
tentativas que deram certo.

Não há uma fórmula para ser professor. O professor que consegue atingir seus alunos
é aquele que é flexível e que busca novas formas de ensinar, que assume suas individualidades e
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 120

procura um modo singular de ser diferente. Essa diferença não se apresenta na masculinidade
(que estaria associada à racionalidade e à busca do novo) e na feminilidade (que teria o afeto e o
carinho), mas na diferença entre as pessoas que lutam por suas individualidades e pela
valorização da sua profissão.

Essa busca não é feita sozinha. Proponho uma singularização a partir da união e da
troca de experiência, que está presente nas narrativas e nos discursos das normalistas e dos
professores. Sugiro em vez de uma identidade docente, uma “professoralidade” que não se baseia
na memória social que é divulgada sobre o professor, na subjetivação que nos é imposta, mas na
diferença que o sujeito produz em si, algo que venha de dentro do indivíduo. Uma diferença que
tem a pretensão de transformar e de criar ideais.

A professoralidade não faz parte de uma memória coletiva, nem individual, é uma
forma de singularidade, uma maneira de discutir modos de ser e construir uma coletividade em
que não se pretenda que todos sejam iguais, em que não se aceitem estereótipos, pois isso é uma
utopia ensejada pela sociedade disciplinar: os discursos mostram que há outras possibilidades de
ser professor, o que aconteceria se fosse possível o debate e a circulação das memórias das
diferentes experiências de professores (que não são estáticas e homogeneizadas como uma
identidade).

A singularização é um movimento que vai além da subjetivação que a sociedade


exerce e que promove individualidades, vontades pessoais, convicções. Minha memória é
invadida por essa paixão e por esse amor. Singularizar é ter amor pela profissão, um amor aliado
ao prazer, mas, principalmente, à luta por uma educação que seja realmente de todos e para todos,
a uma memória liberta do controle.
A memória das normalistas do IESK de Campo Grande/RJ Amanda Oliveira Rabelo 121

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Anexo

Roteiro de Entrevistas

Alunas

Eixo 1: As normalistas e a relação com o local, como Campo Grande se insere nas suas vidas e
vice-versa

• Local de nascimento
• Local (ou locais) de moradia durante sua vida
• Locais de diversão
• Opinião sobre Campo Grande
• Local de moradia das colegas

Perguntas norteadoras
• Onde você morava enquanto estudava no IESK? Você sempre morou nesse lugar?
Continua morando lá atualmente?
• Quais os lugares você freqüentava para se divertir, encontrar com os amigos, parentes...?
• Quais os aspectos positivos e negativos que caracterizam Campo Grande?
• As suas colegas de classe do IESK moravam aonde?

Eixo 2: Escolha profissional

• Quando escolheu a profissão e porque


• Reação da família e amigos
• A influencia da feminilidade na escolha pela profissão

Perguntas norteadoras
• Em que momento da sua vida você decidiu se tornar professora? Você lembra dos
motivos da escolha?
• O que a sua família e seus amigos acharam da sua escolha? Eles a estimularam a tornar-se
professora?
• A sua condição feminina influenciou nesta escolha? Você acha que a docência está ligada
ao feminino?

Eixo 3: Visão sobre o IESK

• Motivos da escolha pela instituição e visão sobre a mesma antes de estudar nela
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• Motivo de escolha das colegas de classe


• Visão sobre os homens estudando na instituição
• Idéia atual sobre o IESK

Perguntas norteadoras
• Por que você escolheu estudar no IESK?
• Qual a idéia que você tinha do IESK antes de estudar nele?
• Pelas conversas que você teve com suas colegas de classe, elas tiveram os mesmos
motivos – ou outros – para estudar no IESK?
• Estudavam muitos homens com você? Porque você acha que isso acontece – a quantidade
de professores homens ser grande ou pequena?
• Qual a sua idéia atual do IESK?

Eixo 4: A inserção na profissão

• Exigência de nível superior: mudança ou não


• Experiência profissional – comentários e opiniões
• Mudança de profissão

Perguntas norteadoras
• Você sabe que a nova LDB escreve que a partir de 2006 só aceitará professores formados
em nível superior. O que isso muda na sua vida profissional, qual será sua atitude com
relação a isso?
• Antes de estudar você trabalhava?
• Você já trabalhou como professora? O que você achou da experiência?
• Você continua ensinando? O que você está achando?
• Você já pretendeu – ou pretende mudar de profissão?
• E as suas colegas de classe, você acha que elas querem continuar na profissão? Porque?
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Autoridades do IESK

• Poderia me dissertar um pouco sobre os motivos da sua escolha profissional?

• Como o senhor (a) encara, enquanto diretor (professor) do IESK, a formação dos
professores? Quais os seus objetivos fundamentais nessa formação?

• O IESK é diferente das outras escolas normais do Rio de Janeiro? Em que?

• O IESK estar localizado em Campo Grande lhe atribui algumas características com
relação a outras escolas normais, situadas em outros bairros do RJ?

• Na sua opinião, o que leva os estudantes desse instituto a escolher a profissão docente?

• O que leva a maioria dos estudantes do IESK a escolherem esta escola?

• Qual a percentagem aproximada de homens formados pelo IESK? Na sua opinião, porque
acontece essa disparidade?
• Onde mora a maioria dos alunos do IESK?
• Pelas suas informações, os alunos formados pelo IESK continuam trabalhando em CG ou
vão trabalhar em outros locais? Continuam na docência ou optam por outra profissão?

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