de mim. A tarde arrefece, sinto-o. Nao de um frio, tal-
vez, que esteja no artefecer, mas na vaga melancolia que
alastra 4 volta em deserto, quando € a hora de entar-
decer. Uma crianga que nao vejo pregou uma estrela
no céu, E amarela, imdvel, contra a cipula do azul. S6
a cauda vibra 4 aragem nos papéis entrancados com um
frémito de brilho preso. Olho-a um instante, imdvel eu
também de altura, quicto de contemplagéo. Mas subita-
mente, é uma grita ensarilhada, estou no largo da aldeia,
os ecos multiplicam-se pela noite. A escola, a fabrica,
porque é que vocé quer a fabrica, seu bardamerda? por-
que s6 a igreja, 6 homens de impiedade, apartai-vos de
mim, malditos, ide para 0 fogo do inferno, vocé o que
quer é que, vocé, eu a ti, meu porco, que é que vens tu
agora, 6 padre Moita — estarao os mortos também? uma
sarrabulhada de insultos, de imprecagSes, porque nao
€ a ideia, o principio, a forca que, sé o impulso cego,
gerado no oculto de nds, as cavernas do édio, seu filho
da, nos esconderijos da maldicao, 0 homem € 0 lobo
do homem, nas fezes, no suor, na lepra de um destino
— meu coracdo. Hé uma estrada de luz, o sol brinca nas
Aguas com a tremulina dos dedos, o horizonte é puro
como um diadema.
Entéo o Arquitecto ergueu um dedo na oscilacao
das sombras, a gritaria calou-se, todo o largo ficou
deserto na noite.
— Porque vocé encontra a escola até nos confins
do tempo. Roma, Grécia, Egipto, até ao limite do hori-
zonte da Suméria. Mesmo o homem das cavernas, como
€ que vocé pode conceber aquela pintura sem alguém
que a ensinasse? Quando chegamos 4 Suméria, topamos
logo com um ensino completissimo. A trés mil anos antes
de Cristo, vocé podia j4 estudar a Botanica, a Zoologia,
a Matematica, a Gramatica. A Gramatica € a consciéncia
da lingua, é 0 comeco da degenerescéncia. Antes de saber-
mos como se diz, sabemos j4 imensas coisas que se dizem.
175Antes de sabermos a gramatica, sabemos jd a gramitica }
sem a saber. E nessa altura aprendiam-se j4 milhentas
coisas.
— Eu, na escola, o que sobretudo aprendi foi a levar
porrada.
— Ora ai esté — e ficou quieto, diante de mim como
para um ajuste de contas. — Levar porrada, diz vocé.
Mas n@o pensou um sé instante que a porrada é a forma
imediata da sacralizacio do saber. O instinto do homem
percebeu-o logo. Nés, os civilizados, é que confundimos
logo tudo. Ha porrada em todas as épocas da Historia.
Vocé encontra a palmatéria e 0 chicote em todos os tem-
pos, em Roma, na Suméria. Hordcio imortalizou o seu
professor, um tal Orbilio, s6 porque lhe dava porrada.
Juvenal e Marcial também disseram. Marcial levou chi-
cotadas, Na Suméria também. E veja vocé: Santo Agos-
tinho lamentou-se de em crianga levar portada na escola.
Vapulabam diz ele. Rezava para nao apanhar, como
crente. Ora bem: um dia foi queixar-se aos pais, ele o
diz. E que é que fizeram os pais? Foram logo tirar satis-
facdes como os nossos paizinhos civilizados? Nao senhor:
riram-se dele — ridebantur. S6 quando Roma comega a
ter os seres delicados, a raca degenerada dos intelectuais,
é que aparece um Quintiliano a insurgir-se contra as sur-
ras. Dar porrada socializa a Ciéncia, como o Cédigo Penal
sacraliza a Lei. E depois vocé esquece que a uniao mais
fntima entre duas pessoas nao € a dos politicos, nem a
dos artistas, nem a dos amantes na cama, nem a dos
pederastas que é maior unigo por serem perseguidos
como os caes: a uniao mais intima € a do carrasco e da
vitima. Como diabo quer vocé que o aluno se sentisse
unido ao mestre, se em vez de lhe arrear lhe fizesse cdce-
gas no umbigo?
— 86 é pena que esse offcio tao sagrado fosse traba-
tho para escravos
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