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RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOS

DOSTOIEVSKI

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W)
I, cl.)
F. M. DOSTOJEVSKI
Por V. C. Peroy, artista russo (retrato de 1872)
COLEQµ0 FOCOS CRUZADOS
50
DOSTOIEVSKI
RECORDA OES DA
CASA DOS MORTOS
ROMANCE
O
Traduvao de
RACHEL DE QUEIROZ
Xilogravuras de
OSVALDO COELDI
Prefacio de
BRITO BROCA
Capa de SANTA ROSA
1945
'Livraria JOSÒ OLYMPIO Editora
Ouvidor, 110, Rio - Gusmões. 104, S. Paulo
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Deste livro foram tirados, para- bibli¢filos. cento e cinquenta
exemplares em papel Bouffant extra, creme, em grande for-
mato, numerados de 1 a 150.
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NOTAS SOBRE
"RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS"
Poi& BRITO BROCA
A id ia de Dostoievski condenado por crime pol¡tico ao mais
duro degredo na Si-beria, tem levado o p£blico pouco infotrmado
sobre a vida do escritor a imagin -lo um revolucionario. . o erro
em que vinha incorrendo muita gente, entre n¢s, antes da vulgari-
za ão de biografias do romancista e do incremento dos estudos dos-
toievskianos de alguns cmos para c , no Brasil. Dostoievski nunca
foi revolucionario no sentido pol¡tico e social, e sua obra, nesse plano,
meMo a de um reacionario e conformista. Somente no terreno
literario, art¡stico, ou mais propriamente psicol¢gico, podemos consi-
der -lo revolucionario. Nesse, terrewo,, im, Dosfoievski revolucio-
nou o conceito de romance indo de encontro ... psicologia cl ssica, e
abrindo caminho para os abismos do inco-nciente, onde mergulharia,
mais tarde, Preud, como um escafandro. O romancista russo iniciou
a descida aos infernos a que se refere um dos bi¢grafos do sabio
vienense.
Mas quais foram, na realidade, as circunstancias que levaram
Dostoievski ... pris"o? Uma injusti a, podemos dizer. O romancis-
ta na-da fez que merecesse t"o duro castigo - a punicõo tremenda
infligida aos implicados na pseudo-consPira ão Petradevski., Veja-
mos a historia. Petrachevski era um funciovario do MNister¡o do
Interior, descontente com o regime - a tirania (Ia tzar Nicolau 1,
que sempre nos aiparece com as cores mais negras, embora tantos
historiadores tenham procurado ateviM-la , eXPUcando-a em face
das wndi õe:, especial¡ssimas da vida russa. O inicia do governr,1
do Izar foi, como se. sabe, as,~ina?,7(lo pela insurrei ão dos "decem-
bristas" - um movimento de nobres, exigindo reformas pol¡ticas e
sociais. Os conspiradores pagaram a audacia na forca, e no exilio.
Mas o ambiente ficou, carregado e o esp¡rito do tzar tern¡veIm ente
prevenido. Ali s, o descontentamento continuou em ebul~Põo sub-
terranea, principalmente entre a pequena burguesia e os intelectuais.
Petrachevski era dos que achavam que havia muita coisa errada,
ou antes, tudo estava errado, embora não possuisse id ia n¡tida e
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definida do que Seria preciso fazer para modificar aquilo. COM
menor nitidez ainda se esbo avam as id ias no esp¡rito dos intelec-
tua£. A Europa vivia em plena efervescencia rom ntica, em pleno
s~ libertario, o por toda parte surgiam as exalta ões m¡sticw do
sooWlinno ut¢pico. ' Os intelectuais russos liam, como tanta gente,
pourier, Saint-Simon, os romances socializantes de George Sand
e im&ginavam as maneiras de aplicar aquelas teorias na Russia -
na Russia, esse mundo diferente, isolado do resto da Europa. De
que maneira concretizar tais principios numa realiza ão pr tica e
positiva? Era o que winguem sabia, mesmo porque os russos ainda
~ que fazer a "revolu ão francesa", vencer essa grande etapa,
para chegar aos ideais de Fourier e Saint-Simon. Na Russia ainda
havia servos, como no apogeu do feudalismo, e sem a medida prelimi-
nar de abolir a servidõo nada seria possivel. Eis um dos problemas
capitais que se discutiam em casa de Pe,trachevski. Discussão sem
consequencia, sem nenhum inicio de a ão, mesmo porque os interlo-
cutores div rgiam em seus pontos de vista. O destino de Dostoievski
levou-o a frequentar essas reuniks. Como intelectual, pensava tarn-
bem na sorte da Santa Russia, na miseria do povo e na arrogancia-
dos nobres. Lera os utopistas, admirava enormemente George Sand
e perdia-se em confabula ões. Bastariam essas cireunstaneias para
fazer dele um revolucionario? Certamente não. Havia em Dos-
toievski o anseio de harmonia e (le justi a comum. a quase todos os
intelectuais. Por que tanta gente a gemer na servidão? Por que
tanta dor, tanta queixa? Ah! era preciso suprimir esses males! E
as palavras de Cristo a ecoarem em seu cora ão: "Amai-vos uns
aos outros". Teria isso alguma coisa com a id ia de pegar em armas,
rebelar-se contra o poder, derrubar o tzar? Não. Dostoievski tem
confian a no tzar e acha que do proprio soberano devem partir as
medidas reformadoras. No fundo, o que o exalto, o iJeal de um
mundo perfeito. Temperamento nervoso, tem, entretanto, os seus
instantes de arrebatamento. Imvreca, contra os abusos da nobreza, a
intolerancia do clero, fala em revolta. Não nos esque amos de que
se trata de um epil tico. Seria absurdo Julg -lo por essas expan-
sJes passageiras. Dostoievski est longe de ser uma das figuras prin-
cipais,nas reuniões de Petralchev W: h outros que falam e se excedem
mais do que ele, embora tão ivocuos quanto o romancista., no terreno
pr tico. A fatalidade leva-o ai distinguir., entre todos, o £nico pe-
rigoso - o estranho Spechnev, com o qual se liga em -intima caniara-
dagem. Spechnev o tipo d( conspirador vato: vasceu para isso r
parece prelibar a volupia do martirio. Acabar w forca, ele bem o
sabe, e todos os seus passos o encaminham, dia a dia, para esse desti,
no inevitavel. Dostoievski sofre a influe?~eia irresistivel do compa-
nheiro, do anjo mau. Talvez houvesse uma inten ão literaria -nessa
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aproxima U. O roma"tai veria em gpechnev um bom tipo~ um
estranho exemPlar humano. E a propria maneira de referir-se ao
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companheiro, chamando-o Mefist¢feles, trai literatura.
Descontente com aquelas reuniões, onde muito se discutia, sem
cuidar de agir, Speehnev pensa numa conspira ão mais efioiente,
para a qual seduz Dostoievski. Essa conspira ão, na verdade, tam-
bem não chegou a efetivar-se, mas a, influencia de Spec nev teria con-
tribuido_para que o romancista tomasse atitudes mais exaltadas na
casa de Pet~evski.
Enquato isso, a Terceira Sec ão trabalhava. Certo Antonelli,
espião estipendiado pela policia, tomava parte nas reuniões, fazendo
detalhados relatorios de tudo que presenciava. Por maior que fosse
o seu empenho, entretanto, não conseguia reunir provas capazes de
comprometer Petrachevski e. os amigos. Era preciso esperar, ter
paciencia. A&3 poucos a realidade da eonspira jo havia de concre-
tizar-,se. As expansões iam-se tornando cada vez mais graves. E
num banquete em homenagem a Fourier, no qual, ali s, Dostoievski
não tomou parte, o ¡mpeto subversivo do pequeno grupo alinge o
limite almejado por Antonelli. O chefe de policia Orlof alarma-se
com, o rei atorio. Aqueles jovens palradores, que pareciam inofensi-
vos, transformam-se, de um momento para outro, em perigosos rebel-
des aos olhos das autoridades. A lembran a do movimento "Decem-
brista" continuava bem viva no esp¡rito de todos; urgia abafar a
intentona com a maior rapidez pdssivel. Da¡ o resultado que o
leitor j conhece: a prisão de Petrachevski e dos companheiros,
inclusive Dostoievski e o seu ir~ Andr . O romancista estava
dormindo, quando a policia chegou, e ficou duplamente espantado,
porque não contava com aquilo. Que fizera para ser preso? Con-
versara, discutira entre os amigos. Mas o aparato da escolta indicava
a g , ravidade do caso. Bem depressa lhe fugiram as esperan as de
que as coisas se esclarecessem rapidamente, sem maiores misequen-
cia3. Era um conspirador perigoso e assim o tratava a polida,
encerrando-o na fortaleza Pedro e Paulo, onde deveria aguardar o
desenvolvimento do processo. As acusa ões contra ele estavam longe,
porem, de ser convimentes. Ter frequentado reuniões onde se ala-
cavam o absolutismo e a Igreja ortodoxa; ter assistido ... leitura de
uma -novela dissolvente, mesmo sob o regime de Nicolau, I, não
bastavam para justificar uma condena ão, se as autoridades não
e,stivessem, empenhadasno prop¢sito de condenar de qualquer forma.
DoistUevski submetido a interrogatorios capciosos, fazem tudo
Para arrancar-lhe respostas comprometedoras e o romancista resiste
de tal maneira que chega a 4i-itar os membros da comissão de i*-
qu rito. Nega de p s firmes qualquer intuito subversivo, repele as
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id ias socialistas e protesta sua$ convic ões de patriota. ---Nãoimpor-
ta: ora preciso condenar. E, a condena ão -vem finalmente. Uma
segunda junta de inqu ritd, composta de membros oiv¡s e militares,
profere a mais rigorosa senten a: deporta ão e fuzilamento. O ve-
redictum sobe a nova instancia, ficando a pena para todos reduzida
a trabalhos for ados. O tzar limita a, senten a de -Dostoievski a
quatro anos, devendo o romancista, depois, ser transferido para o
ex rcito, como simples pra a de pr .
Mas a puni ão ainda ia revestir-se de um detalhe diab¢lico:
os criminosos deviam ser conduzidos para o posto de fue¡lamento,
e^ se tivessem sido condenados ... morte, viria o padre, diriam a
£ltima vontade, todo o aparato sinistro da praxe, e quando houves-
sem experimentado, em seu indescritivel horror, essa sensa ão terrivel,
ouviriam a leitura da v rdadeira senten a: o tzar, na sua infinita
misericordia, transformava a pena de morte em exilio na Si-beria.
A comedia foi desempenhada ...s maravilhas. Os - condenados não
duvidaram um s¢ momento de que iriam morrer. Dostoievski nunca
mais esquecer essa hora tremenda: de olhos vendados esperava, a
morte. Como podia ser aquilo? Sentia-se forte, jovem, ViSUe e
sete anos ardentes de vida, em perfeita mude, a vida dorrendo no
seu sangue e, de repente, a mortel Ah! como não soubera defen-
der-se melhor contra ela? como não cuidara de apegar-se ... existencia?
S¢ agora, naquele instante supremo, compreendia o que poderia
fazer na vida. O mundo seria seu! Que for a extraiordinaria e
nunca pressentida lhe palpitava nas arterias1 No entanfo. a morte,
al¡ a dois passos, implacavel, irremovivel, irremediavel. Ouvia car-
regarem os fuz¡s. A morte, coisa estranha, inconcebivel. Dois se-
gundos ainda, um apenas. E o tiro não vem... Em lugar disso
arrancam-lhe a venda dos olhos e o romancista, ao lado dos outros
companheiros, ouve a leitura (Ta verdadeira senten a. Depois da
sensa ão da morte, a sensa ão da vida qualquer coisa de demasiado
forte para a capacidade nervosa de um ser humano. Dostoievski
exulta de alegria - uma alegria hist rica e- quase tr gica. No fundo,
compreende que j outro homem, algo de si mesmo j morreu.
Agora, s¢ lhe resta o caminho: "a Casa dos Mortos". A escolta est
a postos. Na noite gelad..., de um luar nevado, essas tristes noites da
Bussia, os conjurados vão partir para a Siberia.
Quatro anos num presidio perdido nas solidões das estepes, entre
oriminosos vulgares, condenados de toda esvecie. o inferno.
mais do que o inferno - a morte. Urgia dar testemunho ao
mundo dessa dura, d s
sa terrivel experiencia. E da¡ as Rf,,corda ões
da Casa dos Mortos, publicadas em 1863, livro que inicia a segunda
fase da obro de Dostoievski, ou ales, a sua grande fase, aquela em
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que atinge as fronteiras da ge alidade. Logo depois de sair da


prisão, inspirando-s __ tentimental pessoal, Dostoievski es-
creve Humilhados e Ofendidos. O romance foi depr ciado pelos
cr¡ficos e o proprio autor lhe reconheceu defeitos graves, embora
hoje a obra não nos pare a tão fraca assim e muita gente chegue mes-
mo a admir -la sem reserva. Mas talvez Dostoievski sentisse a impos-
sibilidade de produzir um grande romance, enq uanto não contasse ...
humanidade o que vivera e assistira na "Casados Mortos". Esteera
um livro que precisava ser escrito quanto antes, uma esPecie de
catar-se, de depura ão. Saira do c rcere rodeado de fantasmas e
tinha que libert -los de qualquer maneira. Mais tarde, ele definir
o romancista como um individuo que se livra dos seus fantasn~as.
Entretanto, como conseguir essa liberta ão? Escrever a obra, con-
tarado toda a verdade., não lhe seria dificil; mas devia public -la,
divulgar pelo mundo a verdade terrivel, e aqu¡ teria que esbarrar
nas restri ões rigorosas do censura tzarista. Naquela poca a pro-
priq palavra Siberia era um voc bulo tab£ - diz Melchior de Vog .
Em"li,nguagem jur¡dica usava-se at de um eufemismo pitoresco para
não se falar em Siberia: o reu era condenado ... deporta ão "em lu-
gar muito distante". Urgia, pois, vencer tamanha barreira por meio
de um artificio, de uma transposi ão engenhosa. Antes de tudo,
não dar ao livro o carater de memorias e não falar em condenados
pol¡ticos. Tratar-se-ia de um romance, onde as cenas, os episodios,
tremendamente ver¡dicos, podiam correr por conta da fantasia do
autor. Nenhuma acusa ão direta; tudo transposto para o terreno do
ficcionismo. Afim de tarnar a situa ão mais romanesca - segundo
a praxe de mistifica ões literarias muito em voga na poca -
Dostoievski informaria ao p£blico de que estava simplesmente di~
tWgando o manuscrito de um tal Alexandr Petrovitch Goriantchikov,
`tex-nobre, proprietario na Russia, condenado a trabalhos for ados
da segundo categoria por haver assassinado a mulher". Crime
passional/ Excelente tipo de criminoso para o caso. Goriantchikov
contaria todos os horrores, como personagem de romance, tendo,
apesar de tudo, o cuidado de observar que aludia a uma poca bem
distante. Atualmente j não devia dar-se o mesmo. A adminis-
tra ão decerto fora substituida. Relatava, portanto, costumes de
outros tempos - esclarecia, com toda a cautela - coisas h . muito
abolidas. Depois, a obra não evidenciaria nenhum intuito revolu-
~rio. O autor mostrava a atrocidade do castigo, mas não o
JWgava, injusto. Se para uns era excessiva a disciplina, havia
muita gente m que a merecia. Enfim, essa pintura do c rcere em
cores t¡lo vivas devia incutir no esp¡rito do povo maior horror ao
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crime. Gra as a semelhante subterfugio, o livro p"de aparecer. Um
funcionario da Censura - informa-nos Troyat - ainda quis objetar,
impondo modifica ões no texto. A Dire ão Central contentou-se
com a omissão de algumas expressões obcenas. A obra apareceu,
alcan ando, de pronto, um xito formidavel. Toda a Bussia vibrou
de emo ão ante aquelas p gi nas dantescas, pois o j~aralelo com o
inferno de Da-nti se tornou Nevitavel.
A caminho da Siberia, numa das etapas da jornada, Dostoievski
o seus companheiros, j . de cabe a raspada, recebem a visita das
'esposas de alguns decembristas, mulheresWnobres, que, abdicando o
lu--o e, a comodidade, haviam acompanhado os maridos ao degredo.
procuram elas confortar aqueles novos condenados pol¡ticos, exor-
tando-os a suportar, com resigna ão ristã, os sofrimentos que os
esperavam. E dão a cada um deles um Evangelho, o £nico livro,
ali s cuja leitura era permitida na, prisão. O cristianismo de Dos-
toievski j se havia manifestado antes do degredo, mas s¢`no c rcere,
na medita ão constante dos vers¡culos do 7_7,vangelho, esse sentimento
o absorve, por completo.. dando-lhe uma visão diferento dos homens
o do mundo. Andr Gide lembra o efeito radicalmente oposto que
produziu o mesmo livro no esp¡rito de Nietzsche. O autor de Hu-
mano, demasiado humano rebela-se contra Cristo e, para vingar-se
Dele escreve o Assim falava Ziratustra, no mesmo tom evang lico e
messi nico. Dostoievski con forma-se admiravelmente aos ensinamen-
tos de Cristo, descobrindo neles o verdadeiro segredo da Vido. A
dor, as humilha ões, a ii·quidade do castigo, a prisão - tudo se
reveste de um novo sentido aos olhos do condenado. Como rebelar-
se? Como culpar os hoinens? Como desesperar-se? Pois se o cas-
tigo lhe parece agora fndispensa-vel, util, precioso. Que seria da
sua existencia, sem essa terrivel prova ão? A vaidade, o orgulho,
a euforia de, uma existencia tranquila haviam de embotar-lhe a
alma. E bem mesquinha lhe pareceria esta, sem a condena ão da
dor. J quando fora ele preso.. embora não prevendo o arremate
do processo, dissera, em carta ao irmão que, afinal de contas, era
melhor assim. os dias lhe corriam mon¢tonos, preferia o choque, o
traumat¡smo. Sua tendencia cristã ansiava pelo estado ag"nico, que
a condena ão levaria ao paroxis,~. Depois, aquela sev a õo irolvi-
davel e terrificante da morte a, dois passos. Passara o perigo. A
-vida *continuaria, mas o fermento da morte fi~ia para sempre na
alma de quem j a defrontara, uma vez. '0 Evangelho trouxe a
solu ão para esse conflito. Na morte encontra-se o caminho da
ressurrei ão, o proprio segreclo da vida. Se o grão morre - diz a
G
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par bola de Cristo - ent nasce o trigo. Dostoievski confessa
que, no c rcere, *sentia ...s ãfzes o cora ão bater com for a ante o
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pressentimento da liberdi te murmurava consigo onesmo: "A li-


berdado'- a ressurrei ão dos mortos]" Entretanto, bem depressa
se acalmava. Era preciso aprender a amar o sofrimento, a compra-
zer-se na dor - aprender a "morrer". Sem isso, jamais poderia
alcan ar a gra a da ressurrei ão. No Evangelho de. São João, Cristo
anuncia a Nicodemus: " - Em verdade vos digo que aquele que
não nascer novamente, não ver a meu Pai". Dostoievski aceita a
tdmorte" para nwcer novamente. L a Biblia e procura fazer com
que os companheiras a le~am..
Mas trata-se de uma injusti a - qirão os que apreciam o dra-
ma do romancista, de fora -, de um castigo iniquo; Dostoievski
não chegou a conspirar, não tinha nenhum plano de revolu ão. Co-
ma deixar de rebelar-se contra essa senten a absurdo? Ante tais
palavras o romancista responder , da mesma maneira por que res-
pondeu, mais tarde, a um amigo: "Não; a senten a foi justa e o
povo nos t" condenado; eu o sent¡, l na prisão. Depois - quem
sabe? - talvez tudo isso fosse designio do Alt¡ssimo, para que eu
aprendesse o essencial, sem o que não podemos viver, se-não nos de-
vorarmos uns aos outros.- e para que eu levasse o essencial aos meus
semelhantes, tornando-os melhores, ainda que em, pequeno n£mero.
S¢ isto justificaria minha ida ... prisão."
Como ge v , o Evangelho baniu do esp¡rito de Dostoievski a
*id ia de injusti a. O verdadeiro cristão nunca julgar iv justo nem
protestar contra o sofrimento, que lhe vem trazer a purifica ão ne-
cessaria: o essencial. No conceito cristão, o homem veio ... terra para
explar~ os seus pecados - são "os degredados filhos de Eva, neste
vale de l grimas" - e cumprir tanto melhor o seu destino, quanto
mais completa for a expia ão. Interessante, porem, ser notar como
Dostoievski estabelece -no plano social e pol¡tico uma correspondencia
direta para a necessidade do castigo. Pelos designios cio Alt¡ssimo,
afim de encontrar o essencial, teria ido para o c rcere; mas est
certo, ao mesmo tempo, de que o povo o condenaria. Reconhece-se
culpado perante Deus o perante, o povo. Pois se, no c rcere, encon-
trou a verdade cristã, encontrou igualmente o povo russo no que
este tem de essencial, na sua predestina ão m¡stica. Em carto a
Maikov, em 1855, ele diz: "A infelicidade me ensinou muita coisa;
a experiencia teve grande influencia sobre mim e gra as a ela me
Mio cada vez mais rUSSO. a confissão da sua eslavofUia. Como
se sabe, Dostoievski foi uma c?" maiores figuras da 'mentalidade
estav¢fila, que considerava os russos completamente diferentes dos
europeus, com fim destino Proprio, alheio aos imperativos da cultura
ocidental. E antevia um glorioso futuro para a Russia, na medida
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I
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em que esta se preservasse de influxos estranhos. "Possui-mos uma
superioridade sobre os senhores - dizia ao Visconde de Melchior
de Vog _: gue os outros povos não nos compreendem, enquanto
n¢s os compreendemos a todos". Na prisão, em contato direto com
a a¡ma popular, Dostoievski sente o quanto o russo se distancia dos
ocidentais o as gra as que lhe estão reservadas se ele se mantiver fiel
a si mesmo. Pois bem, aquelas id ias de conspira ão, de rebeldia,
bafejada por doutrinas europ ias, sem consultar as verdadeiras as-
pira ões da Santa Russia, lhe parecem criminosas e bem dignas de
c¡astigo. Pecara contra Deus e contra a Buss¡a. O povo o conde-
n¡u-ia - estava.certo disso. O romancista identif a a natureza das
dum culpas, pou sua conotenci . a cristã se conf und om o sentimento
eslav¢filo. Por esse motivo, ainda, em lugar de ~Oar odio ao tzar
,Yicolau I, que o fizera condenar inocente, chega a louv -lo mais
tarde, com entusiasmo. Não recebia de Deus o tzar o poder absoluto
para governar os russos?. E o povo não se habituara a cham -lo
de "Paizinho"?
1 , Aqu¡ nos tenta uma, interpreta ão freudiana - aventura em que
%U nos abalan amos, afiInde evitarmos mais um abuso de psican lise
Uteraria. Limitamo-nos a alguns pontos de ref erencia. Para) Freud,
o crime muitas vezes a resultante de um sentimento de culpa
inconciente: o individuo, sente a necessi...ade de puni ão e o ¡mico
meio de obt -la - quando não consegue sublimar o complexo ou
dar-lhe um outro derivativo - violar as leis. Em Dostoievski, a
especie de alivio que ele experimenta, logo ao ver-se encerrado no
calabou o, e o reconhecimento de uma falta, que na realidade não
cometeu, podem ser atribuidos igualmente ...quela no ão inconciente
de culpa, cuja origem seria encontrada.. talvez na infancia, nos
traumas morais do romancista.' Os conflitos cristão e eslav¢filo
t~se-iam, então, as demonstra ões de, um drama inconciente, que
s¢ a psican lise lograria desvendar. L mbremos a particularidade
do tzar representar para o povo russo qualquer coisa de semelhante
ao super-ego do esquema freudiano. a personifica ão do pai, o
"Paizinho". As conspira ões tomariam, pois, na Russia, mais do
que em qualquer outro lugar, certo carater de parricidio, entron-
c~do-se no, famoso conflito do complexo de dipo. Estas indica-
Oes vdo, porem, aqu¡ apenas a t¡tulo de curiosidade. Dostoievski
de h muito que vem sendo assunto de psican lise e o proprio Freud
Prefaciou o livro de Ana Grigorievna sobre o marido.
Das Recorda ões da Casa dos Mortos sairam, por assim dizer,
os maiores romances de, Dostoievski, nos quais se debate, angustiosa-
O
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mente, o problema do bem o do m . al, da culpa e do resgate. Crime e
Castigo chega quase a ser um corolario das Recorda ões. Antece-
dendo Nietzsche e tornando-se deste verdadeiro precursor, Dosto~e-
vski pretendeu fazer de Raskoz',nikov um super-homem,. capaz de
sobrepor-se ao bem e ao mal, ao imperativo da moral humarsa. Mas,
depois de cometido o delito, a conciencia cristã do estudante reage
e ele não sossega enquanto não confessa a culpa, que o levaria,
o omo ao romancista, ao degredo da Siberia. Nos Demonios e nos
Irmãos Karamazov, o escritor continua a reconstruir as experiencias
da prisão: são livros de criminosos e pecadores. Os problemas t m
sempre um aspecto moral e outro psicol¢gico, sendo que ambos se
conjugam, com efeitos rev¡procos. O aspecto moral se apresenta da
seguinte maneira: o homem precisa sofrer para resgatar suas culpas.
E o lado psicol¢gico com estas interroga ões angustiantes: Mas em
que consiste a culpa? Num ato dp maldade? Que a maldade?
Que sabemos dos nosos sentimentos? O amor leva a monstruosi-
dades. - O homem bom, s¢ experimenta muitas vezes impulsos maus.
E quanta inocencia podemos encontrar num pecador! Um senti-
inewto bom possue, frequentem ente, o seit reverso mau. Na l¢gica des-
concertante da alma humana 2 e 2 nem sempre são quatro. E ainda
aqu¡ teria sido a "Casa dos Morto0 a grande escola de Dostoievski.
Não vira ele como as almas de algumas bestas-feras, de bandidos
inveterados, imprevistamente se expandiam com tal riqueza de sen-
timento e cordialidade, com uma compreensão tão viva dos sofrimen-
tos alheios e dos proprios, que pareciam feitos de ternura e purezal
E não percebera, por outro lado, como um homem f ino ,, culto ...s
vezes desconcertava pela barbarie, por um cinismo verdadeiramente
repugnante? Sim, foi a prisão que inspirou ao romancista as bases
do seu sistema psicol¢gico; al¡, no trato com os criminosos, aprendera
ele que 2 e 2 nem sempre são quatro. "Dostoievski, a ~mica pessoa,
que me ensinou alguma coisa em psicologiall' - dissera Nietzsche.
pes da Casa dos Mortos
Q~ando Dostoievski Publicou as Recorda
ainda repercutia na Europa a profunda impressão causada pelo
livro de Silvio Pellico: Minhas Prisões. E não faltou quem com-
parasse a obra do romancista russo a esta £ltima. De fa`to, alem de
constituirem ambos memorias de criminosos pol¡ticos, refletem uma
atitude semelhante: a aceita ão cristã da dor. Silvio Pellicd foi,
como se sabe, um poeta italiano, que conspirou contra o jugo aus-
triaco, filiando-se ... sociedade secreta dos "Carbonari", depois de j
ter manifestado os anseios de liberdade em verso, na imprensa e em
pe as teatrais. Detido em outubro de 1831, esteve primeiramente
1
#
a
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~f
XV111 XIX -
na famosa prisão "Piumbi", de Veneza, de onde o transportargm
para a fortaleza de Spielberg, na Moravia. Nove anos sofreu as
agruras do c rcere, sendo afinal indultado em 1840. Narrando seu
martirio, Silvio Pellico não se revolta nem se desespera; longe de
acusar os algozes, sua alma se ~fesmancha em perdão e conformidade.
Eis como explica ele o livro: "Teria es.~rito estas memorias pelo sim-
ples prazer de falar de mim mesmo? Desejo que assim vão seja;
e na medida em que podemos julgar os -nossos proprios atos, parece-
me que fui levado pela melhor das inten ões: a de contribuir para o
alivid de alguns infelizes com a narrativa dos males que sofr¡ e das
consola ões que, por minha experiencia, reconhec¡ ser possivel iar
no ¡nfortunio - a de afirmar que, no meio dos meus tormentos Ço
achei a humanidade tão injusta, tão indigna de indulgencia, tão , s-
provida de nobreza moral, como costumamos represent -la -a. de
exortar os cora ões nobre~ a amar sempre e nunca odiar; não ter odio
irreco,nciliavel sendo pela mentira, covardia e toda especie de avil-
tamento - a de repetir uma verdade, proclamada h muito tempo,
mas sempre esquecida: de que a religião e a filosofia recomendam;
uma e outra, a vontade en rgica e o julgament~ imparcial, pois
sem estas duas condi ões, não poder haver nem Justi a, nem dig-
nidade, nem principios certos".
Tamb m Silvio Pellico, como Dostoievski, lia a Biblia',n-ã prisão,
haurindo nas suas p ginas o conforto para todas as penas. Entre-
tanto, apesar dessas semelhan as, a d¡stancia que sepaTa os dois
livros bem grande. Silvio Pellico não passa de um escritor secun-
dario. O que interessa em Mei Prigiorti principalmente o assunto
- assunto humano, palpitante, emocionante por natureza, capaz de
falar sempre ao cora ão dos homens. Nas Recorda ões da Casa dos
MorItos, pelo contrario, h a descoberta de um mundo por um esp¡rito
verdadeiramente genial. A obra contem em si muitos romances.
Não basta o interesse do assunto: o talento - a genialidade, se qui-
serem - evidencia-se na maneira pela qual o tema foi explorado,
pelos efeitos extraordinarios que Dostoievski dele conseguiu tirar.
. Dois decenios, mais ou menos, depois do aparecimento das Re-
corda~ da Casa dos Mortos, dava entrada na prisão do Reading,
na Inglaterra, um escritor cujas pe as tinham encantado o p£blico
londrino, o artista requintado de Dor¡an Gray - Oscar Wilde. A
porta, fechou-se, e l ficou, nas suas vestes de for ado, sob uma rude
dis&iplina, o aristocr tico frequentador dos salões e do "hall" dos
hot is de luxo; o sibarita, habituado a vinhos finos e a perfumes
raro$, 40 Nbo de dois anos de tr gica reclusão, toma ele da pena
ot,
para escrever uma carta ao amigo niam q
prolonga por muitas, p ginas, vindo a form
intitulado De Profundis. Tambem o prision
#
acentos de agonia na voz e tambem ele tra
da "Casa dos Mortos". Wilde teria lido
nas do De Profundis h um comovente esfor
O poeta declara que quando sair do c rcere
Francisco de Assis. Onde estiverem a dor
e o lutO al¡ estar ele
para consolar'e chorar com os aflitds. Refere-se, num transporte
~tico, ao prazer da renuncia - essencia do Cristianisnjto - falando
do sacrificio de uma maneira que faz lembrar a "religião do sofri-
mento", preconizada, por Dosto.ievski. Alguns dos pensamentos mais
belos sobre Cristo, n¢s o encontramos nessa longa e pungente ep¡s-
tola a Lord Douglas.
Entretanto, depois de deixar a prisão, o poeta não pode rea-
lizar os seus. altos'projetos de vida espiritual. Falta-lhe inteiramente
ú voca ão cristã. Antes, parecera desejar o c rcere; esquivara-se
ú (odas as insinua ões de fuga; no fundo, ningu m duvidara de
que ele quisera ser condenado; de que procurara o castigo. Re-
conhecia-se culpado e o c rcere, seri . a a £nica solu ão para a angustia
inco,ncUnte que torturava o homem, aparentemente tranquilo e
seguro de si mesmo: o vitorioso "rei da vida". Mas depois do casti-
go, o sofrimento awiquila-o, arrasa-0, e o poeta, apesar das elevadas
aspira ões, não consegue reconstruir a existencia em bases cristãs.
Porque era visceralmetite um pagão, um romano da decadencia, como
ele proprio confessara a Frank Harris. A ¡ndole pagã não encontra,
geralmente, beleza nem sublimidade no sofrimento e por meio da
dor jamais poder engrandecer-se. Em U~gar de assemelhar-se a
São Francisco de Assis, o ]Vilde de post-c rcere torna-s apenas
um b bado, mal arranjado, pedindo dinheiro emprestado aos ami-
gos. Para ele, a liberdade não fora, conto para Dostoievski - ¡ndole
profundamente cristã - a ressurrei ão dos mortos. Bem expressivo,
portanto, nos parece o t¡tulo da sua dram tica mensagem do Rea-
ding: "De Profundis". Quando as portas do c rcere se fecharam,
Wilde ficou d(,finitivamente sepultado.
O cristão v , parem, na dor, o ponto mais alto da existencia.
Nunca DoPtoievski sitbiu tanto, como no momento em que o encer-
raram na prisão. Em £ltima a~7i¢lise, quem ai figitrou contu r u
foi a propria humanidade. Pois os grilhões hão de cair por terra,
as grades hão de romper-se, e o prisioneiro, aureolado de luz, numa
miraculosa ascensão, ultrapassarã os kwiros da cidadela (aquele mu-
#

- XX -
ro- a que se refere o her¢i da Voz Subterr anea), para atingir a supre-
t~a revela ão do Misterio.
"Em verdade em verdade vos digo que aquele que não nascer
de novo não ver a meu Pai".
Rio de Janeiro, julho ae -1945.
#1
N. -No que se refere ... conspira ão Petrachevski,
fomos obrigados a restringir-nos ...s informa ões
do conhecido livro de Troyat e ao "Dostoiewsky
- Sa vie et son oeuvre", de Serge Persky.
i&
N1
3
i
O
I
IV,*
I ntrodugio
a nas remotas regiões da Siberia, por entre a este-
pe, as montanhas e as florestas impenetraveis, encon-
fra-se aqui e alem um povoado. Mal t m umas duas mil
almas, constando cada um apenas de feias casinho , Ias de
madeira e duas igrejas, uma no centro, outra no cerniferio.
Parecem mais um simples arruado dos arrabaldes de Moscou,
que uma cidade. Em geral, e bem sortida de ispiravniks,
assessores, e demais funcionarios subalternos (1). Por mais
fria que seja a Siberia, o servi o publico sempre nos aquece
bem, no seu rega o. Os habitantes são almas sing~las e
bem intencionadas, seus costumes são patriarcais, consagra-
dos por seculos de tradi ão. Os funcionarios que, com
razão, representam realmente a nobreza local, ou são si-
berianos da gema, ou russos que, na maioria, vem direta-
mente das capitais, a+saidos pelos altos vencimentos, pelas
generosas ajudas de custo para despesas de viagem, ou por
belas perspectivas de futuro. Entre esses éltimos, os mais
espertos, os que sabem resolver o problema da vida, agra-
dam-se da terra e nela se fixam definitivamente. Depressa
#

conseguem fortuna e posi ão. Mas os outros, os esfouva-


dos que nada entendem do enigma da exis+encia, moem-se
de nostalgia, e vivem a perguntar, desde a chegada: "Que
diabo vim fazer na Siberia?" E cumprem com impaciencia
(1) A policia distrital era entregue a um capitão-ispravnik eleito pela no
breza.
Esse magistrado presidia o tribunal da policia rural, o qual se ccmpunha
de dois cam-
poneses nomeados pelo poder central e dois assessores. eleitos pela nobre
za.
(N. de H. M.)
#

2 DOST~111EVSKI RECORDA õES DA


CASA DOS MORTOS 3
os +r s anos obrigaforios do servi o, pedem remo ao e reiri-
fegram os peria+es dizendo da Soiberia c¢bras e lagartos.
Todos laboram em erro. Pois, excUndo-se mesmo as van-
fagens que traz ... carreira funcional, e a Siberia, por todios
os respeitos, a +erra da promissão. O clima e magnifico.
La se enconfram comerciantes riqu¡ssimos, no+aveis pela hos-
pi+alidade; as raparigas são coradas como rosas e honestas
como vesfais. A ca a corre pe~as ruas e vem s,9 atirar aos
pes'do ca ad6r. O champanhe e bebido em abundancia, o
caviar e delicioso, 9 trigo, em cerfas. zonas, d colheitas de
quinze por um ... Em resumo, a +erra e de uma feracidade
assombrosa, mas carece que a saibam explorar. E os si-
barianos sabem explora-ia.
Numa dessas cidadezinhas alegnes que se bastam a si pro-
prias e cuja amavel popula ão me deixou na lembran a uma
recorda 5o enfernecida, +Favei amizade com um ex-fidalgo
e pomechfchik (2) russo, Alexandr Petrovi+ch Goriantchi-
kov, condenado aos trabalhos for ados de segunda catego-
ria (3) em puni ão ao assassinato da sua esposa. Finda a
pena, depois de dez anos de presidio, instalara-se discrefa
e placidamenfe na cidade de K ... (4). Oficialmente. deveria
residir numa das comunas suburbanas, mas que em K. ele
ganhava a vida como mestre-escola. Professores dessa casta
não são raros na Siberia, e ninguem os menospreza. Ensi-
nam principalmente a lingua francesa, indispensavel a quem
fem ambi ões sociais, - e sem eles,*ninquem, naqueles fins
de mundo, poderia ter do franc s a menor no So. A pri-
meira vez em que me avis+ei,com Alexandr Pefrovi+ch, foi
em casa de um fchinivnik (5) lvan Ivani+ch Gvosdikov, ve-
(2) Proprietario rural. (N. de R. Q)
(3Y Quer dizer, "trabalhos for ados numa fortaleza". Edificava-se então na
Siberia uma linha de fortins destinados a prevenir os levantes, sempre po
ssiveis, pro-
v~ pelas questões raciais. A primeira categoria, a mais dura, eram os "trab
alhos
de minas" e a terceira, os "trabalhos de usina". Os trabalhos for ados, em
geral, in-
cluiam a pena de exilio perpetuo na Siberia. (N. de H. M.)
(4) Provavelmente Kuznetsk, na provincia de Akrnolinsk, onde em fevereir
o de
1857 Dostoievski contraiu o seu primeiro casamento, com Maria Dmitrievna
issaiev.
(N. de H. M.)
(5) Funcionario p£blico, (N. de R. Q. 1
4 .
lho burocrata honrado e bospifaleiro, pai de cinco filhas que
sugeriam lindas esperan as. Alexandr Petrovitch ia 16 qua-
fro vezes por semana, dar li ões as raparigas a razão de
trinta copeques de prata (6) por hora. Seu aspecto ex+e-
rior me interessou. Era um homenzinho fra'nzino, +errivel-
menfe palido e magro, mas ainda mo o, e vestido sempre
#

com esmero, a moda europeia. Quando a gente lhe falava,


ele nos fixava com um olhar de fixidez exfraordinaria, e
acompanhava com escrupulosa cortesia cada uma das pala-
vras que se lhe cl~ia, como se lhe propusessemos um enigma
ou quisessemos vi'~"~ar seus segredos. Respondia depois com
algumas frases rapidas e claras, tão ponderadas, +ão cir-
cunspecfas, que a gente imediatamente se sentia mal, e não
desejava senao acabar a conversa.
Logo que pude, interroguei Ivan lvanitch.a respeito do
homem. Soube que Gorianfchikov vivia de modo irrepre-
ensivel. sem isso ele não lhe confiaria a educa ão das
filhas, mas muitissimo re+raido. lns+ruidissimo, lendo
muito, fugia do convivio social, e falava tão pouco, espon-
taneamente, que ninguem conseguia travar com ele uma pa-
lesfra demorada. Alguns o supunham louco - porem não
viam nisso um defeito grave. Os magnatas da cidade, na
sua maioria, o viam com bons olhos. O homem lhes pres-
fava, as vezes, servi os importantes, redigindo peti ões, por
exemplo. Suspeitavam-no de pertencer a uma familia de
relevo, de alta posi ão, talvez, mas sabia-se +ambem que,
depois da deporta ão, corfara +odas as rela ões com os
seus - em resumo, prejudicara-so muito. Todo O mundo,
ali is, lhe conhecia a historia: logo no primeiro ano do casa-
menfo, mafara a -esposa, levado pelo ciume, depois enfre-
gara-se voluntariamenfe ... justi a - o que lhe proporcionara
as circunsfancias atenuantes. Em geral esses crimes s io en-
carados como desgra as, e os seus autores despertam pie-
(6) O rublo-prata valia quatro vezes mais que o rublo-papel. Salvo indic
a ões
em contrario, as referencias a rublos, neste romance, serão sempre a rublos
-prata.
Como se sabe, 9 ~~j~!q tem cem copeques. (N, de H. M.)
#

l
4
O
DOSTOIEVSKI
dade. Entretanto, este exc ntrico se enterrava no seu janto,.
e dele não saia senão para dar aulas.
A principio não lhe ~ediquei aten ão espe ial; mas,
sabe Deus por que, pouco a pouco fui me interessando por
aquela enigm tica criatura. NSo consegui faz -lo pales+rar.
Respondia direito as minhas interpela 6es, parecia ate con-
siderar um dever faz -lo, porem sua maneira de replicar me
provocava um constrangimento +ão intenso que eu não ou-
sava repetir as perguntas, vendo-lhe o rosto carregado de
fadiga e -sofrimento. Numa linda noite de verão, lembro-me
ainda, saimos juntos da casa de Ivan Ivani+ch. Convidei-o
repentinamente a vir a minha casa fumar um cigarro. Não
consigo reproduzir o pavor que se pintou nos seus olhos. Des-
concertado, balbuciou algumas palavras sem nexo, e de su-
bi+o, com . os olhos tumidos de odio, p"s-se a correr na- dira-
ão oposta. Fiquei imovel, at"nito. Desde então, sempre
que me encontrava, ele me olhava de r-eves, medroso. Mas
eu não me satisfiz com isso: havia algo que me impelia para
Gorianfchikov, e um m s depois, sem pretexto plausivel,
dirigi-me a sua casa. Confesso que esse gesto era insensa-
+o e pouco delicado. Ele morava no extremo da cidade,
em casa de uma velha cuja filha, uma pobre fisica, lhe dera
uma netinha bastarda, garota de uns dez anos, risonha e
mimosa. No momento em que entrei no quarto de Ala-
xandr Pefrovi+ch, ele, sentado junto a pequena, lhe ensinava
a ler. Avisfando-me, per+urbou-se como se eu o houves-
se apanhado em flagrante delito, levantou-se precipitada-
mente, e fitou am mim os olhos assustados. Afinal, sen-
famo-nos. Seu olhar, figo sobre o meu, me interrogava com
insis+encia, como se farejasse em mim as piores inten ões
secretas. Adivinhei que sua desconfian a chegava quase a
loucura. Encarava-me com hostilidade tão evidente, Elue
quase me perguntava: "Sera que não +e vais embora?" Falei
da nossa cidadezinha, das novidades: e ele mal me respondia,
esbo ando um sorriso irritado. Depressa descobri que igno-
rava os acontecimentos mais no+orios, e, mesmo, que nenhum
deles o interessava. Falei-lhe depois do nosso pais, das suas
O
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
5
#

necessidades: ele me escutava sem replicar, com o mesmo


olhar de fixidez +ão estranha, que acabei lamentando ter
iniciado a conversa. Mas quase consegui fira-lo do seu torpor
quando lhe ofereci, ainda infac+os, os livros e revistas que
acabara de receber no correio. Lan ou-lhes um olhar avido.
porem imediatamente se conteve, e os necusou, alegando falta
de tempo. Despedi-me afinal, e, ao sair, senti-me aliviado
dum peso insupor+avel. Parecia-me vergonhoso, parecia-me
absurdo, ir atormentar um bom-em cujo principal cuidado era
se manter o mais possivel afastado do convivio social. Mas
a tolice estava feita. Eu observara que ele possuia muito
poucos livros: então não era verdade que lesse muito. Duas
vezes, entretanto, passando de carro, muito +arde, defronfe
as suas janelas, avistei luz acesa. Que faria ele assim acor-
dado ate madrugada? Escreveria? e se o fazia, que cousas
escreveria?
Fui obrigado a me ausentar durante alguns meses
uns +r s. Quando voltei, no rigor do inverno, soube que Ale-
xancir Pe+rovitch morrera durante o outono, em absoluta so-
lidão, sem nem uma vez ter consultado o medico. Ja o ha-
viam -esquecido quase completamente. Seu alojamento ficara
vago. Fui sem tardar visitar a senhoria, e a interroguei acerca
dos afazeres do defunto., Dei-lhe uma moeda de vinte cope-
ques, e ela me entregou em troca uma cesta cheia de papeis,
confassando-me, contudo. que ia des+ruira dois daqueles ca-
dernos. Era uma velha taciturna, Mal encarada. que nada
me confdu de novo sobre o finado loca+ario. Segundo ela,
o homem não se ocupava nunca em quase nada, e levava
meses sem - tocar num livro ou numa pena. Passava noites
inteiras a andar pelo quarto, mergulhado nas suas cismas,
falando sozinho. Adorava a garotinha, Kafia - principal-
mente depois que lhe soubera o nome. Todos os anos, no
dia de santa Kaferina, mandava dizer uma missa por alma
de uma pessoa que usara esse nome. Não tolerava visitas,
não saia senao para dar aulas, -e ate a velha olhava com maus
olhos, quando, uma vez por semana, ela lhe vinha arrumar um
pouco o quarto-, durante os tr s anos em que fora seu inqui-
#

6
DOSTOIEVSKI
lino quase nunca lhe dirigira a palavra. Perguntei a'Kafia se
tinha saudades do professor. A pequena me olhou sem
responder, depois, voltando-se para a parede, pos-se a chorar.
Assim, pois, apesar de tudo, aquele homem conseguira fazer-
se amarl
Apanhei os pap is e passei um dia inteiro em casa, Orde-
nando-os. Tres quartas partes deles eram rascunhos sem
imporfancia, temas de aula corrigidos. Enfim, descobri um
caderno volumoso, coberto por uma calilrafia fina; estava,
porem, inacabado, abandonado decerto por seu autor: era a
narrativa dos seus dez anos de presidio. Nessa narrativa
incompleta se intercalavam fragmentos estranhos, recorda ões
abominaveis evocadas desordenadamente, convulsivamente,
como num desabafo. Li-a, reli-N, e chequei quase a conclusão
de que havia sido redigida numa crise de loucura. Mas as
notas sobre o presidio, aquelas "Cenas da Casa dos Mortos"
como o proprio Alexandr Petrovi+ch as inti+ula em certo
trecho do seu manuscrito, não me pareceram falhas de infe-
resse. O mundo dos decaidos, mundo absolutamente novo,
at hoje impenetravel, a estranheza de certos fatos, algumas
observa ões bizarras, cativaram-me a aten ão e a curiosi-
dade. Todavia, talvez eu me engane quanto ao valor da
obra. Publico, pois, aqui, algurir capi~ulos dessa narrativa:
o publico julgar6.. .
9
PRIMEIRA PARTE
#

a
10.
C~'
II
A casa dos mortos
onosso presidio ficava nos limites da fortaleza, iun+o
ao baluar~e. Quando, afraves das fendas da pali-
ada, procuravamos avistar o mundo, en+reviamos
apenas uma -nesga estreita de c u e um alto barranco de
ferra, invadido pelo mafo alfo, noite e dia percorrido pelas
sentinelas. E n6s pensavamos locio que não adiantava passa-
r-em-se os dias: veriamos sempre, olhando por aquelas fendas,
a mesma muralha, o mesmo soldado. a mesma nesga de ceu,
- não o c u da fortaleza, mas um oufro,-um ceu mais lon-
gincluo, um c u livre.
- Imaginai um vasto patio de duzenfos passos de compri-
menfo e cento e cinquenta de largura, com a forma dum
hex6gono irregular. Uma pali ada feita de altos moirões,
profundamente encravados no solo, forfemenfe ligados um
ao outro, e falhados em penfa - rodeava por todos os lados
3
#

lo
DOSTOIEVSKI
o nosso presidio. Num dos lados da pali ada um portão,
sempre fechado, sempre guardado por uma sentinela, não
se abre sendo a vista -de uma ordem afim de dar passaqem
aos presidiarios que vão para o trabalho.
' Alem desse portão, havia o mundo luminciso da liber-
dade. E, de dentro, aquele mundo nos parecia como u m
conto de fadas, como uma miragem. O nosso mundo noda
tinha de analogo com esse outro! eram leis, costumes, habUs
carafer¡sticos, uma casa morta-viva, uma vida a parte c~
homens a parte. E e esse recanto qu desejo, desc.rever.
Quando se -penetra no recinto, distinguem-se Ia diversas
,consfru 6es.- Dos dois lados do grande patic, se erguem
amplas- constru ões de madeira de um s6'andar. ~ão s
casernas. L6 vivem os for ados, separados em c~ate orias.
1 9 ---
No fundo do patio seeleva uma edifica ão do mesmo genero,
a cozinha, dividida em duas pe as, e, mais afr6s, um barra¡-
cão que, sob o mesmo feto, abriga a adega, a despensa
e o celeiro. O centro do pafio forma uma especie de pra a
ampla, nua e plana. Os de+en+os Ia se reunem para a chama-'
da, pela manhã, ao meio-dia e a +arde, e, ...s vezes, af '
ex+emporaneamen+e quando os soldados da guarda são des-~-,
confiados ou gostam de fazer contas. Entre as cons+ru õe~s',
e a pali ada ainda ha um espa o consideravel. Nesse frech' '
e que, nas horas de descanso, alguns defentos sombrios, poucO,
sociaveis, vão passear, e, longe de todos os olhos, mergulham
nos seus pensamentos. Quando eu os encontrava no decorrer
dessas passeios, gostava de lhes perscrutar os rostos som-
brios e estigmatizados, a lhes imaginar as preocupa ões. Um
deles passava o seu tempo livre a contar as estacas da cerca
Eram quinhen+as, contudo ele as conhecia de cor. Cada uma
das estacas lhe significava um dia. Descontava uma di ria-
mente e, assim, contando as que restavam, podia com um
olhar calcular o tempo que ainda passaria -nos +rabalh¢s.
Quando terminava um dos lados do hexagono, nao escondia
a sua alegria, res+ava-lhe ainda mais de um ano de espera:
mas o presidio e uma boa escola de paciencia. Assisti ce~
vez um presidiario, !iber+o ap¢s vinte anos de pena, despe-
#

O
4
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
13
dir-se dos colegas. Alguns ainda lhe recordavam a chegada,
quando jovem, descuidoso, não se preocupava com o crime
nem com o castigo. E ei-lo que partia agora com a cabe a
grisalha, um rosto sombrio e triste de velho. Passou silen-
ciosamente por nossos seis alojamentos: quando penetrava
em cada um deles, murmurava uma ora ão diante do icone;
depois, fazia uma reverencia profunda, ate a cintura, diante
dos de+en+os, pedindo-lhes que não guardassem de si, uma
lembran a rtia. Lembro-me +ambem de um preso, um cam-
pon s siberiano, que fora abastado. Uma tarde, chamaram-
no a porta. Seis meses antes ele soubera, magoado, que
sua mulher +ornara a casar. Agora, era ela propria que o
mandava chamar para lhe dar*uma esmola. Conversaram
dois minutos, , rebentaram em pranto, e despediram-se para
sempre. Ainda lhe veio o rosto quando voltou ... caserna ...
Sim, realmente o presidio uma boa escola de pac¡encia.
Quando chegava o crepusculo, fechavam-nos, todos, nas
nossas casernas. E nunca me deixou de ser penoso sair do
patic, para o alojamento. Candeias de sebo espalhavam uma
luz ba a pela sala comprida, baixa, sa+urada dum odor
nauseabundo. Não consigo compreender, hoje em dia, como
pude passar, ali, dez anos. Na especie de tarimba que ser--
via de leito comum a trinta de nos, todo o meu dominio se
reduzia ao espa o de +res fabuas.
Quero crer que naquela sala toda variedade de cr¡mes
se achava representada. A maior parte dos deten+os se
co npunha de condenados civis. Esses individuos, privados
para sempre dos seus direitos de cidadão, membros ampu-
+ados da sociedade, tinham o rosto marcado com. ferro em
brasa, estigma eterno do reprobo. Demoravam de oito a
dez anos no presidio, depois eram mandados na qualidade
de colonos pqra qualquer recanto esquecido da Siberia.
Havia +am bem 'criminosos vindos do ex rcito; mas, segundo
o costume das "companhias correcionais", esses conservavam
os seus direitos civis. Condenados por um lapso de tempo
bastante curto, uma vez cumprida a pena, reintegravam o
seu posto num batalhão siberiano. Muitos dentre eles não
4
11
#

DOSTOIEVSKI
tardavam a reaparecer, apos novo crime grave - mas
por vinte anos, dessa vez. Formavam a se ão dos "reinci-
dentes", que fambem não eram privados dos seus direitos
civ¡s.
No inverrro. ~echavam-nos muito cedo: passavam-se pelo
menos quatro horas antes que todos dormissemos. E, af
então, quantos gritos, quantas risadas, quanto palavrão! o
retidir das grilhefas, o cheiro imundo, a fun~arada espessa, as
cabe as raspadas, as caras marcadas com ferro em brasa, as
roupas em farrapos, tudo nessumava vergonha, infamial. . :
A1 o home`rn tem a vida bem rija! "Um ser que se habi-
tua a tudo" e, segundo o reio, a melhor defini ão que se
possa dar do homem.
Nosso presidic, reunia uma media de duzentos e cin-
quenfa defenfos: uns chegavam, outros sa¡am, outros mor-
riam. Quanta gente havia Ia! Cada provincia, cada re-
gião da Russia, creio bem que tinha ali o seu representante.
Viam-se af alguns nativos das montanhas do C6ucaso.
Eram todos classificados de acordo com a gravidade e a
dura ão da pena. Havia, enfim, uma ultima se ão, bas-
tante numerosa, a dos veteranos do crime, na maioria mili-
+ares ... Era chamada a "se ão especial". Para 16 envia-
vam criminosos de toda a Russia. Ignorando o limite da
sua pena, consideravam-se a si proprios condenados ... pri-
são perpetua. Segundo a lei deveriam fornecer um fraba-
lho duplo ou friplice. Eram mantidos no presidio, enquanto
esperavam a organiza ãc, de trabalhos for ados particular-
mente penosos. "Voc s es+So aqui por algum tempo, di-
ziam les aos outros presidiarios; nos estamos para a vida
infeira". Segundo ouvi dizer, essa se ão foi suprimida:
teriam mandado embora todos os datidos civis, conservando
apenas os militares. Mudan a de administra ão, C 16gico.
O que descrevo, portanto, são cousas de outrora, praticas
abolidas, fatos ia h6 muito esquecidos.
Sim, ia h6 muito tempo. Tudo isso hoje me parece
um sonho. Recordo minha chegada ao presidio. Era -uma
tarde de dezembro: a noite ia cair, os presidiarios volta-
a
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
15
vam da tarefa diaria, preparavam-se para a chamada. Um
sub-of¡c¡al de-grandes bigodes abriu-m a porta daquela es-
tranha moradia onde eu deveria passar tantos anos, suportar
emo ões de tal ordem, que seria incalwz de compreend -las
se as não experimentasse. Por exemplo, não poderia conce-
#

ber nunca o tormento espantoso de não la*er ficar so - um


minuto que fosse - durante os dez anos em que estive preso.
No trabalho - uma escolta - na prisão,---a companhia
de duzentos outros presos - e nem uma vez a solidão! E,
de qualquer modo, tinha que me afazer a isso!
Havia Ia assassinos ocasionais e matadores de profissão,
malandros e capitães de bandidos. Havia gatunos, batedo-
res de carteira, vagabundos, cavaleiros de inclus+ria e viga-
ristas- Havia +ambem alguns deles que nos deixavam per-
plexos.- por que estariam ali? Contudo cada um tinha a
sua historia, hisforia tão perturbada e confusa quanto o ama-
nhecer apOs uma noite de bebedeira. Alias, eles pouco fa-
lavam do passado, não gostavam de o narrar, procuravam
ate nao o rememorar . Jamais. Conheci entre os presidia-
rios alguns assassinos, tão satisfeitos, +ão descuidosos, que,
nunca, (pode~~se-ia apostar com seguran a) a ~conciencia
os atormentara um s0 instante. Mas havia tambem outros
de rosto sombrio, quase sempre mudos. Em resumo, quase
ninguem falava sobre a vida pre+eri+a, e a curiosidade não
pertencia nem aos costumes, nem as regras da casa. Toda-
via, de tempos em tempos, um defen+o que queria desabafar
confiava um segredo qualquer a um vizinho, que o ouvia fria-
mente, de cara fechada. Ninguem, ali, poderia causares-
11
panfo a n¡nguem. "N6s ca sabemos ler e escrever 1 diziam
os presos com uma especie de c¡nica satisfa ão.
Lembro-mo que um dia um bandido, bebedo (arranja-se
bebida algumas vezes, no presidio) se pos a contar como as-
sassinara um garoto de cinco anos: seduzira-o com um brin-
quedo, depois levara-o para um galpão e Ia o degolara. A
caserna inteira, qXe a principio rira das suas pilherias, soltou
um brado, e o homem foi obrigado a calar a boca: aquele
brado un nime não era um sintoma de indigna ão. Significava
#

16 DOSTOIEVSKI
RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS 17
apenas que não se devia falar "naquilo", que falar "naquilo"
era inadmissivel. Devo observar, ali s, que aquela genfe
de nada. Viviam apenas peICS
aparencias. Mas muitas
(4 vezes, com esparifosa
rapidez, a cara mais insolenfe cedia
tinha alguma instru ão, no sentido literal da palavra. Pelo lugar
a uma expressão de chapada covardia. Havia por
menos a mefade dentre eles sabia ler e escrever. E onde, 1
6 homens naturalmente forfes; eram Simples e sem rodeios.
na Russia, em qualquer agrupamento popular, se enconfrarão Por
em, coisa estranha, alguns davam mosfras de umaikidade
.duzentos e cinquenfa individuos metade dos quais saiba ler q
uase doentia. A gloriola, a exferioridade, tinham prio-
e escrever? Soube, depois, que alguem concluiu, segundo r
idade sobre tudo. A maioria deles era apavorantemente
esses dados, Jue a instru ão perde os homens. Erro grave, perve
rtida. As calunias, os mexericos, não* paravam nun-
creio eu. V preciso procurar em oufra causa as razões desse ca:
aquilo era um inferno, uma verdadeira reprodu ão do
desvio moral. Com efeito, a insfru ao provoca a presun ao t rta
ro. Ninguem, enfrefanfo, ousaria insurgir-se contra as
no povo; mas isso, no meu entender, não um defeito, e regra
s e habifos consagrados. Alguns espirifos de forma ao
abunda em focla parfe. especial tinham dificu
ldades em se submeter, contudo subme-
Disfinguiam-se as se oes pelos +raios. Em uma das fia
m-se. Chegavam-nos ¡ndividuos, que, dominados pela vai-
se ões metade do casaco era pardo escuro- e a oufra cin- dade,
haviam ultrapassado todos os limifes, e perpetrado os
za, enquanto as cal as tinham uma perna cinza e a o ra
seus crimes como que
involunfariamen+e, como num delirio,
pardo escuro. Um dia, durante o frabalho, uma 'rapariga, c
omo numa embriaguez. Mas n¢s depre~sa os domavamos, -
vendedora de kalafch (1) aproximou-se dos defenfos, olhou- d
omavamos ate aqueles que tinham sido o ferror de cidades e
os longamenfe, e p"s-se a rir: aldeias. Olhando em fo
rno de si, o "novato" depressa com-
- Ai, como e feio! exclamava. Não tinham pano pre
endia que não caira em lugar propicio a surpresas, e não
que chegasse para a roupa deles - nem do prefo, nem d
emorava a adotar o tom comum. Esse tom se caraferi-
do pardo! zava por uma dignidade
estranha e especialissima, que ne-
Oufros usavam um casaco de 13 cinzenfa, com mangas n
hum dos habitantes do presidio poderia abandonar. Dir-
pardas. Tambem as cabe as eram raspadas de maneiras se-
ia que a situa ão de presidiario representava um titulo,
diversas: em alguns a metade do cranio raspado ia de alfo e
, at mesmo, um fifulo de honra! Nenhum sinal de vergo-
a baixo, em outros, ia de traves. nha ou arrependimento.
No+ava-se en+refanfo um simula-
Ao primeiro olhar descobria-se uma infensa semelhan- c
ro de docilidade, - mais ou menos oficial, - cerfo
a entre os membros daquela esfranha famiia. As per-
raciocinio franquilo. "Somos
condenados, não soubemos
sonalidades mais salientes, as mais originais, os que domi- -
viver em liberdade; agora, femos que nos arrasfar atrav s
navam, mau grado seu - procuravam, esbafer-se, adaptar- d
a "rua verde" (2), femos que ficar -em fila para a chamada.
se ao diapasão do presidio. Salvo alguns individuos 'cuja Que
m não deu ouvidos ao pai e a mãe acaba obedecendo
inesgofavel alegria granjeava o desprezo geral, todos a
o rufar do fambor. Quem não aprendeu a bordar com
os presos eram sombrios, ariscos, invejosos, presun osos, fio
de ouro, acaba quebrando pedra." Tudo isso se dizia
fanfarrões,. suscepfiveis e exfremamenfe formalisfas. Para e s
e repetia muifas vezes, como maximas, como anexins,
eles, a suprema qualidade consistia em não se espantarem m
as nunca em tom serio Eram apenas palavras. Have-
ria um £nico presidiar
io que reconhecesse a propria delin-
(1) Pãozinho de trigo em forma de cadeado. Os kalatchi de Moscou são
:11
afamados. V. p g. 46. (N. de H. MJ (2) A explica ão dess
a expressão vem ... p s. 257. (N. de R. Q-) i
11
i;
#
711
. 41
DOSTOIEVSKI
quencia? Se alguem de fora se atrevesse a censurar a um
preso os seus delitos. ou o injuriasse (cousa aliU rara no ca-
rafer russo) receberia insultos sem fim. E que mestres eram
os presidiarios erri materia de insultos e invectivasi Injuria-
vam requinfa da mente, sutilmente, arfisficamente. Levavam
o insulto ate a ciencia, aplicavam-se em descobrir palaffiw
menos ofensivas pela forma que pela id ia, pelo sentido, pelo
espiri+o-, era perfeito como um veneno! E as rixas perpetuas
desenvolviam consfantemenfe essa cienc¡a. Como +raba-
lhavam sob o azorrague, focla aquela gente era pregui osa
e depravada'. Se não o eram anteriormente, depressa o fi-
cavam. Reunidos ali, confra a vonfade, continuavam sem-
pre estranhos uns aos outros.
"O diabo gastou +r s pares de lapfi (3) para nos frazer
aqu¡", diziam referindo-se a si proprios; por isso a calunia,
a infriga, os mexericos, a inveja, o odio, ocupavam o primeiro
plano naquela vida condenada. A mais intrigante das co-
madres de suburbio não feria a labia de alguns daqueles ban-
didos.
Encontravam-se entre eles, repito-o, ~ximas de boa ferri-
pera, de uma intrepidez a toda prova, habituados a dobrar
os outros diante de si. Esses gozavam da uma estima espon-
fanea; e por seu lado, embora muito ufanos da sua gloria,
esfor avam-se por não molesfar ninguem, por jamais se lan-
arem em brigas inufeis, portavam-se com absoluta dignida-
de, eram quase sempre corda+os e obedientes as ordens, -
não por principio, ou por conciencia do dever, mas por uma
especie de tratado, do qual reconheciam as vantagens re-
ciprocas. E a administra ão, com esses, sabia ser pruden-
te. Lembro-me que um dos nossos colegas, homem valente,
com fendencias de fera, foi chamado um dia para o verga-
lho. Era no verão, na hora do descanso. Como chefe he-
diafo do presidio, o maior compareceu ao corpo da guai---da,
que ficava junfo ... porta de entrada, afim de assistir ... pu-
ni i'o. Esse maior era para os detidos um enfe fatal: con-
(3) E~O de alPargatas feitas em geral de corti a de b tula. (N. de PI QJ
RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS
19
seguia faz -lOs fremer diante de si. Sua severidade raiava
a extravagancia,' e ele "se afira,^ a genfe", segundo a ex-
pressão dos presos. -0 seu maior recurso para causar ter-
ror era o olhar de lince, ao qual nada se podia escon-
#

der. Aquele'homem via ate mesmo sem olhar. Mal en-


frava no presidio ia sabia o que se estava passando no ex-
fremo oposfo do recinfo. Os presos o chamavam Mito
olhos". E seu sistema de nada adiantava, pois aqueles pro-
cessos diabolicos serviam apenas para fornar os homens ain-
da mais furiosos. Se não houvesse acima dele um gover-
nador condescendente, razoavel, que lhe moderava os im-
pulsos selvagens, o maior feria provocado grandes desgra-
a s. Nem compreendo mesmo como que pode chegar
são e salvo ao fim da carreira; e verdade que s0 foi refor-
mado depois-de passar por um julgamento (4).
O preso ficou l¡vido quando o chamaram. o Em geral
oferecia corajosamente o dorso as varas; aturava o castigo
sem dizer palavra, depois erguia-se como se nada aconfece-
ra, igual a um filosofo que encara friamente a sua. pouca
sorfe. E, aliU, com ele, tomavam-se precau ões. Mas, da-
quela vez, o homem se julgava no seu direito. Ficou l¡vido,
pois, e sem que os soldados da escolta o percebessem, feve
tempo de enfiar na manga um +rinchefe de sapateiro, muito
afiado. As facas e outros insfrumenfos cortantes nos eram
proibidos. Não relaxavam a esse respeito, davam buscas fre-
quenfes, imprevisfas, minuciosas: e os delinquentes incorriam
is. 1
em puni ões crue . porem, dific¡limo apanhar o que um
ladrão infenfou esconder; 'a despeito das buscas, as facas e
outros insfrumen+os indispensaveis não. desapareciam. E os
que eram confiscados, imediatamente se viam subsfifuidos.
Os fidos todos correram ao patio, de cora ão ba-
fendo, para olhar a cena. Cada um sabia que, daquela vez,
Petrov não tencionava se deitar sob as varas, e que chegara
(4) Dostoievski copiou esses tipos da vida real. O norne do maior era K
rivtsoy;
o governador era o general Grave. (N. de H. M.)
O
#

RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS


20
DOSTOIEVSKI
a derradeira hora do maior. Mas no ultimo momento, o
maior subiu ao carro e foi embora, encarregando da execu-
ão da pena outro oficial. "Foi Deus que o salvou", excla-
maram os defenfos. Quanfo a Petrov, suportou passivamen-
te os a oites. Seu furor abrandara com a partida do ho-
mem. O defento man+em-se humilde e obedien+e ate certo
limite, porem esse limite não deve ser ultrapassado. Não
h6 nada mais curioso que os seus subilos arrancos de irrita~
ão, de rea ão. Dado individuo, que durante anos placida-
mente suportou os castigos mais atrozes, se enfurecg de re-
pente por uma ninharia, por uma bagatela, por um nada.
Um estranho pode consider -lo doido, - e realmente mui-
+os assim o julgam.
Ja disse que durante os meus anos de presidio jamais
constatei entre os meus companheiros o menor remorso, o
menor r~e de conciencia; no seu foro intimo, a maioria
deles considerava que agira bem. Isso e um fato. Eviden-
temente, a vaidade, os maus exemplos, as bravatas, o res-
peito humano, devem, nesse caso, ser levados em conside-
ra ão. Mas, por outro lado. quem se pode gabar de ha-
ver sondado essas almas decaidas, de ter descoberto no
seu misterio o que fica escondido ao universo inteiro? De
qualquer forma, porem, no decorrer de tantos anos, eu de-
vera ter surpreendido em alguns daqueles cora aes um indicio
qualquer de sofrimento, de desespero. E, positivamente, na-
da descobri. claro que não se devem fazer julgamentos
de -acordo com id ias preconcebidas, e decerto a filosofia
do crime e mais completa do que se imagina. O presidio,
os trabalhos for ados, não melhoram o criminoso; apenas o
castigam, e garantem a sociedade contra os atentados que
ele ainda poderia cometer. O presidio, os trabalhos for a-
dos, desenvolvem no criminoso apenas o odio, a sede dos
prazeres proibidos, e uma +errivel indiferen a espiritual.
Por outro lado, estou convencido de que o famoso sistema
celular consegue atingir apenas um resultado enganador, apa-
rente. Suga a seiva vital do individuo, enerva-lhe a alma, en-
fraquece-o, assusfa-o, e depois nos apresenta como um mo-
O
21
.delo de negenera ão, de arrependimento, O que e apenas uma
mumia ressequida e meio louca.
claro qu i delinquente rebelado contra a sociedade
#

a odeia; considera quase sempre que e ele quem +em razão


e ela que erra. O castigo que lhe impuseram permite-lhe
alias considerar-se absolvido, quite para com os homens.
Pode-se afinal encarar a cousa sob um ngulo que da azo
quase a inocentar o culpado. Entretanto, todo o mundo re-
conhecera qua, em toda parte, desde o inicio das eras, e sob
qualquer legisla ão, houve crimes que sempre foram consi-
derados crimes, e que serão olhados como tais, enquanto
o homem for homem. E so no presidio ouv¡ contar com
uma risada infarifil, irresistivelmente alegre, as a ões mais-
espantosas, mais desnaturadas, as fa anhas mais monstruosas,
mais infames. Certo parricida, especialmente, jamais me
saira da lembran a. De origem fidalga e antigo funciona-
rio publico, exercera junto ao pai sexagenario o papel de fi-
lho prodigo. Seu procedimento era +ao desregrado, suas
dividas +ao escandalosas, que o pai, mais de uma vez, teve
que o conter e censurar. Mas o velho possuia uma gra*,
uma casa, e o filho o suspe^va de guardar economias:
matou-o. O crime so foi descoberto um mes depois. Du-
c
ranfe todo esse mes, o criminoso (que alias avisara as au-
toridades da desapari~ão do vielho) entregou-se a mais de-
senfreada orgia. Enfim, na sua ausencia, a policia desco-
briu o corpo coberto de fabuas, num canal de esgoto que
atravessava o pa+io em toda a sua extensão. O cad;sver
estava vestido, preparado; a cabe a encanecida, degolada,
fora colocada no seu lugar, sobre o +ronco, e sob ela o assas-
sino pusera um travesseiro. O rapaz não confessou, foi de-
gradado, privado dos seus t¡tulos de nobreza, condenado a
vinte anos de trabalhos" for ados. Durante todo o tempo
em que o conheci nunca o vi senão em excelente disposi ão
d-- espirifo, jovialissimo. Sem ser um tolo, era a criatura mais
estouvada, mais leviana, mais descuidosa deste mundo. Nun-
ca observei nele nenhum tra o especial de crueldade. Os
defen+os o desprezavam, não pelo crime, no qual ele não
1 1
J
I
#

DOS TO I EV.SK I
falava nunca, mas por sua leviandade, por sua falta de com-
posfura. Na ' palestra, aconfecia-lhe- referir-se ao pai. Uma
vez, falando-me do robusto f¡sico heredifario da familia, dia-
se: "Cito como exemplo o aufor dos meus dias, que ate
ao fim jamais se queixou de uma doen a". Uma insensibili-
dade fão bestial parece quase impossivel. Chega a ser um
fen"meno. Ja não e um crime, e uma falha org nica, uma
monsfruosidade f¡sica e moral ainda não classificada pela
ciencia. Eu não podia, e 16gico, acredifar na culpabilidade da-
o~ mas algumas pessoas da sua provincia, que de-
quele mo
viam esfar a par dos fatos, confaram-me a hisforia corri mi-
nucias tã'o precisas que era misfer que eu me rendesse ...
evidencia. Os defenfos uma vez ouviram-no grifar em so-
nhos: "Segura, segura! A cabe a, corfa-lhe a cabe a!"
Quase foclos sonhavam e divagavam duranfe o. sono:'
e o que mais frequentemente se ouvia, então, eram pragas,
gritos em calão, referencias a facas e machados.
"Somos criafuras malfrafaclas, diziam eles; esfamos es-
magados por dentro, e por isso que grifamos de noite.*
Os trabalhos for ados não eram uma ocupa a . O, mas
uma penifencia. Depois dEr cumprir o n£mero de horas fi-
xado pela lei, os defenfos voltavam para o presidio. Odia-
vam as suas farefas. Sem os afazeres pessoais aos quais
se dedica com focla a alma, com todo o esp¡rito, o for ado
não resistiria. Como, realmenfe, arrancadas ... sociedade e
a uma exisfencia normal, criaturas forfemente propensas a vi-
ver, desejosas de viver, poderiam se portar normalmente,
nafuralmenfe, com boa vontade e bom humor?
Basfaria a ociosidade para desenvolver neles os instintos
viciosos dos quais não tinham conciencia antes. Sern fra-
balhos, sem leis, sem nada que lhe perten a especialmente,
o homem não e mais ele proprio, avilfa-se, iorna-se um ani-
mal. E eis por que, levado por suas capacidades nafurais
e por um confuso senfimenfo de conserva ão, cada for ado
tinha um oficio. Duranfe o verão, os trabalhos preenchiam
inteiramente, os longos -dias, e as noites curtas mal nos deixa-
veim %mpo para dormir. Ne inverno, porem, o regulamento
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
23
prescrevia o infernamento dos detidos logo ao cair do sol.
Que se haveria de fazer durante aquelas tediosas e infer-
minaveis noites? `Apesar, pois, da regulamento, cada ca-
serna se transformava numa vasfa oficina. Verdade que o
trabalho pessoal não era inferdito; mas proibiam-nos seve-
ramenfe a exisfencia de quaisquer ufensilios, o que fornava
#

impossivel focla ocupa ão. Então, trabalhava-se escondido,


e em certos casos, ampropria adminisfra "o fazia vista grossa.
Muitos de n6s chegavam ao presidio sem a menor no ão
dum oficio, todavia aprendiam com os outros, e quando soava
a hora da liberdade, iam embora providos dum bom ganha-*
pão. Tinhamos Ia sapateiros, marceneieos, carpinteiros, gra-
vadores, dourador3s. E ate mesmo cerfo judeu, lsai Bumch-
+ein, descobriu a maneira de ser simulfaneamente ourives e
usurario. Todos procuravam ganhar alguns copeques. Vi-
nham encomendas da cidade. O dinheiro e~m si j representa
liberdade; mas para o homem r almenfe privado da liberda-
de, o dinheiro fica com o valor elevado ao decuplo. Basta
a gente poder filin+ar as moedas no bolso, e, mesmo q4c-;"n'ao
as possa dispender, senfe-se consola,4,j pela metade. E con-
seque-se de qualquer modo gastar o dinheiro - principalmen-
fe porque o fruto proibido nos parece sempre duas vezes
mais saboroso! Ate no presidio e possivel conseguir bebida.
Oslcachimbos eram rigorosamente proibidos, contudo todo
o mundo fumava. O dinheiro e o fu,mo salvavam os presos
do escorbu+o e de outras doen as: o trabalho os salvava do
crime: wm ele, se entreclevorariam, como aranhas fechadas
num frasco. Todavia, proibiam-se o trabalho e o dinheiro!
Frequenfemen+e, duran+e a noite, era realizada de chofre uma
busca e levavam-se todos os objetos interdifos. Por melhor
escondido que estivesse o dinheiro, caia algumas vezes nas
mãos dos guardas. iE, em parte por essa razão. em vez de
economizar nos nos. apressavamos a beber. Dai o consumo
d vodca. Depois de cada busca, alem da confisca ão dos
seus bens, o culpado sofria uma puni ão exemplar. Mas, de
cada vez, preenchia-se imedia+amenfe, o claro, in+roduziam-se
novamente objetos. e a vida refornava o seu curto. A admi-
O
'i
#

24 DO ST O 1 E VS K 11 RECORDA õES DA
CASA DOS MORTOS
nistra ão não o ignorava. e os defen+os, por seu lado, não
murmuravam contra a puni ão, - embora uma vida daquelas
se pudesse assemelhar a que se leva nas faldas do Vesuvio.
Aqueles que não tinham oficio, entregavam-se a ocupa-
ões muit¡ssimo originais. Alguns, por exemplo, comerciavarril
e- trocavam cousas que, fora dali, não ocorreria a ninguem
traficar com elas, nem mesmo lhes emprestar a minima valia.
O presidio, porem, era tão pobre quão industrioso. O mais fri-
fimo dos trapos tinha o seu pre o e encontrava uso. A mi-
,seria dava ao dinheiro um valor muito diverso do que ele
tem 16 fora. Um trabalho enorme e dificil pagava-se com
uma ou duas moedas de cobre. Outros faziam empr stimos
com vencimento semanal. O detenfo prodigo ou arruinado
levava o seu derradeiro objeto ac, usurario, que lhe empres-
fava sob penhor alguns copeques a juros monstruosos. Se
o cliente não resgatava o objeto na data marcada, via-o ven-
1
dido sem piedade. A usura florescia a fa, ponto que se
empenhavam ate mesmo os objetos sujeitos ... inspe ão: roupa
branca marcada, botas e outros pertences que a administra-
ão poderia reclamar a qualquer momento. Mas, por oca-
sião desses emprestimos, a cousa assumia, as vezes, um as-
pecto imprevisto (não +ão imprevisto, alias). Assim que
recebia o dinheiro, o "cliente" ia procurar o sub-c,ficial que
era o mais accessivel dos dirigentes da prisão, e lhe denunciava
a penhora de objetos de uniforme. E o sub-c,ficial, sem
recorrer sequer a administra ão, tomava do prestamista os
objetos empenhados. Cousa curiosa: nesses casos não surgia
nenhuma briga. O usurario devolvia em silencio o que lhe
~reclarriavam, como quem esperava por aquilo! Talvez reco-
nhecesse no ¡ntimo que no lugar do "cliente" agiria da mesma
forma. E se depois julgava necessario praguejar, fazia-o sem
acrimonia, por simples descargo de conciencia.
Em geral, os presos roubavam tremendamente entre si.
Quase todos guardavam num bau, fechado a cadeado, os
objetos que lhes dava a administra ão. Esses cofres eram
tolerados, mas não ofereciam garantia alguma. Não e
dificil imaginar que artistas do roubo se encontravam entre
nos! Um companheiro, que me era- sinceramente afei oado
(conto-o com toda a singeleza) roub u-me uma Biblia, o u ri Ico
1
objeto cujo uso me fora autorizado. E confessou-me o roubo
no proprio dia em que o cometeu, não por arrependimento,
mas por do, ao me ver procurar dernoradamente o livro. Ou-
tros exerciam a profissão de botequineiro, e rapidamente
enriqueciam. Mais adiante falarei acerca desse comercio
especial e bastantd' curioso. Como finhamos no presidio
#

varios condenados r~or ~ontrabando, não ha razão para que


se admire a entrada 16 de vodca a despeito das buscas e da
vigilancia. O &on+rabando e um crime ... parte. O in+eres-
se - quem o ha de crer? - desempenha nesse caso apenas
um papel secundario. O contrabandista trabalha por vicio,
por voca ão. um poeta ao seu modo. Arri---r~P tudo,
afronta os piores perigos, gasta astucia, engenho, agiliincriveis: alguma
s vezes suas a ões parecE~m at inspiradas.
,e
E' uma paixão-tão forte quanto a,do *jogo. Conheci um
for ado de estatura colossal, porem +ão manso, tão sossega-
do, +ão bem humorado, que sua estada entre n¢s parecia
um enigma. Nunca - mas nunca - durante todo o seu
periodo de prisão, teve uma briga qualquer, com ninguem.
Era originario da fronteira ocidental, fora deportado como
contrabandista, e, claro, não podia se coibir de exercer o
trafico secreto de vodca. Quan+os castigos sofreu por isso,
e~ que pavor tinha ele dos a oitesl Continuava, todavia,,
no oficio, apesar do lucro irrisorio, pois so quem enriquecia
era o dono das bebidas. O pobre rapaz amava a arte pela
arte. Chorão como uma mulher, jurava a todos os deuses,
depois de cada fustiga ão, que *jamais +ornaria ao vicio.
·s vezes mantinha o juramento um m s inteiro, depois dei-
xava-se cair em tenta ão ... E gra as a individuos da sua
especie, a aguardente não nos faltava jamais, no presidio.
Os defen+os tinham ainda outra renda que, sem os enri-
quecer, não era menos regular e benefica: refiro-me ...s es-
molas. As nossas "altas classes sociais" não fazem a menor
id ia dos cuidados com que os comercian+es, os pequerios-
4
#

DOSTOIEVSKI
burgueses e a plebe em geral cerc~m os "desgra ados", como
eles dizem. A esmola se faz de modo continuo, quase sempre
sob a forma de pães ou kalafchi, e, mais raramente, em
moedas de pequeno valor. Se não fossem essas esmolas,
certos lSresos. especialmente os que ainda estão dependentes
de julgamento e que sofrem regime mais severo que os con-
denados, dificilmente poderiam viver. A esmola se divide
religiosamente Crifre os detentos. Se não ha bastante para
todos, corta-se um kalafch em partes iguais, as vezes em
seis peda os, mas cada um ganha o seu quinhão. 8
Lembro-me bem da primeira esmola que recebi. Foi
pouco ap6s minha chegada. Eu vinha do trabalho da manhã,
com um £nico srldado de escolta. Caminhavam ao meu
encontro uma mulher com a filhinha - menina de dez anos,
linda como um'anjo-, ia eu as vira antes. A mãe era viuva
de um rapaz, um soldado, que, depois de ser submetido a
conselho de guerra, morrera no hospital. no pavilhão dos
defen+os, onde eu proprio estava em tratamento. Mãe e
filha lhe tinham vindo dizer adeus, ambas chorando amargas
lagrimas. Quando me avistou, a garotinha ficou rubra, e
a pro
murmurou algumas palavras ' mãe, a mulher se deteve,
curou no cesto um quarto de copeque e deu a moeda a
crian a, que correu para mim ...
- Toma, "desgra ado", recebe este cobre por amor
# de Nosso 'Senhor, gritou ela, enfiando-me a moeda na mão.
Recebi o dinheiro; e a pequena, satisfeita, voltou para
junto da mãe. Durante muito tempo conservei a moedinha.
Primeiras impressões
primeiro mes e, de. modo geral, o inicio da minha vida
o de p risioneiro desenham-se vivamente ante a minha
imagina ão: mas os anos seguintes deixaram-me ape-
nas retorda ões confusas. Algumas lembran as ate se fun-
diram, desbotaram, e nSo guardei delas senão uma id ia ge-
ral de peso, de uniformidade, de sufoca ão. Isso, alias, e
um fen"meno absolutamente normal.
O que me impressionou logo que entrei nessa vida, foi,
lembro-me bem, não poder descobrir nela nada de extraor-
dinario, ou melhor, nada de inesperado. Tudo aquilo pare-
cia ia me haver desfilado ante o espirifo, quando, de caminho
para a Siberia, eu me esfor ava por adivinhar a sorte que
me aguardava. Mas, logo apos, um abismo de fatos mais
que surpreendentes, mais que monstruosos, a cada passo mo
foi defendo. Depois de viver longos anos no presidio, aca-
bei por compreender todo o elemento imprevisto daquela
i
#

I
Biblioteca,Pr
iblica "Artkur Vian
LJ ~ia~n
#

28' DOSTOIEVSKI

exisfencia, todavia nem por isso deixei de me espantar ante


ele. Devo confessar que esse espanto me acompanhou du-
ranfe todo o per¡odo de prisão; nunca me pude afazer aque-
le cenario.
Entrando no pres¡dio, a minha primeira impressão foi
principalmente de horror, contudo - cousa estranha! - a
vida me pareceu muito mais facil do que eu a imaginara du-
rante a viagem. Embora usassem a grilhefa aos p s, os
detenfos circulavam livremen+e, praguejavam, cantavam, fra-
balhavam por conta propria, fumavam cachimbo*, alguns ate
u bebiam vodca e ' noite
(esses em muito pequeno n'mero) a
jogavam cartas. Quanto aos trabalhos, pareceram-me muito
menos duros, muito menos "trabalhos for ados" do que seria
de pensar; so muito +empo depois compreendi o verdadeiro
carafer desses trabalhos, menos penosos por sua dureza e con-
finuidade que pelo fato de serem "impostos", obrigatorios,
cumpridos sob o azorraque.
inegavel que o nosso mujique labuta muito mais que
um for ado: em alguns per¡odos do ano, sobretudo no verão,
e obrigado a trabalhar em serões que lhe +ornam a noite
inteira. Mas esfor a-se por sua conta, no seu interesse, e
por isso se sente imcomparavelmen+e menos fatigado do que
o for ado, que realiza uma tarefa que lhe e imposta, absolu-
tamente improdutiva para si.
Ja me ocorreu uma vez que, se se procurasse aniquilar,
esmagar, castigar um homem da maneira mais implacavel, se
se quisesse fazer com que ante esse castigo o pior dos faci-
noras trem-esse antecipadamente - bastaria dar ao seu +ra-
balho um cara+er de inteiro absurdo, de absoluta inutilidade.
Os trabalhos for ados atuais, por mais despidos da interesse
que sejam para os condenados, pelo menos não são inteira-
mente desprovidos dum sentido. O for ado-operario fabri-
c~ tijolos, cava o solo, faz argamassa, edifica; e nessas tarefas
ha um pensamento, ha um fito. Algumas vezes, ate, ele se
interessa por sua obra, procura reali -la melhor, mais habil-
mente. Mas se o empregarem, por exemplo, a carregar a
aqua dum tonel para um outro, e do segundo para o primeiro,
t
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
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ou a esmagar areia, ou a transportar +erra daqu Ia Pa ra al 1, e
devolve-ia depois ao sitio primitivo, - creio que o cabo de
poucos dias ele se enforcara, ou cometera mil desatinos, afim
da merecer a morte e escapar aquele rebaixamento, aquela
#

vergonha, aquele tormento. Alias, essa especie de castigo


significando apenas tortura e vingan a, seria insensata, por-
que ultrapassaria o seu fim. Contudo, qualquer trabalho
.a
obrigaforio contem a sua parte de tortura, de absurdo, de
humilha ão, e e esse o~ motivo que +orna os trabalhos for ados
irricom pa ravel mente mais penosos que os outros.
Alias, como chequei ao pres¡dio no mes de dezembro,
4
não pude formar nenhuma ideia das tarefas de ver5o, cinco
v.ezes mais pesadas que s de inverno. M~ inverno, na nossa
fortaleza, havia muito pouco trabalho regulamen+ar. Os pre-
sos iam para as margens d~ lrtych, deffioiir velhas barca as
do governo-, trabalhavam nas oficinas, varriam dos edif¡cios
a neve amontoadja pelas ventanias, que-imavam e moiam
alabastro, etc.. . . Os dias eram curtos, a labuta terminava
lego, todos nos volfavamos cedo ao pres¡dio, onde ficar¡amos
quase a-toa, sa não fora o trabalho pessoal que cada um ar-
ranjava para si. Mas apenas um ter o dos presos se entre-
gava a uma ocupa ão regular; os outros vagabundeavam,
andavam pelos alojamentos, brigavam, mexericavam, embria-
gavam-se, caso dispusessem de um pouco de dinheiro. A
noite arriscavam no baralho ate a camisa do corpo: tudo
por +edio, por ociosidade, para matar o tempo. Compre-
endi, depois, que alem da priva ão da liberdade e da imposi-
5o do trabalho, o de+en+o ainda sofre de um outro supl¡cio
mais penoso: a cohabi+a ão obriga+oria. A vida em comum
exist,e decerto em outros lugares, porem os companheiros do
pres¡dio em geral não seriam ~-f olhidos como +ais por ninguem.
e tenho certeza de que todos os presos, inconcien+ernenfe
embora, sofriam com aquela promiscuidade.
A comida me pareceu +ambem muito +cleravel. Os
presos me garantiram que não se fornece comida +ão boa
#

DOSTOIEVSKI
nas "companhias correcionais" (1) da Russia Europ ia, coisa
em que não posso opinar, porque não as conhe o. Ali6s,
muitos tinham dinheiro para obter comida ao seu gosto. A
carne nos custava dois copeques por libra, e durante o verão
tris copeques. Os que tinham dinheiro podiam pois comprgr
carne. A maioria, entretanto, comia do rancho. Quando os
for ados elogiavam a comida, referiam-se ao pão, e nota-
vam -safisfei Ds que nos davam pães inteiros, e nSo por peso,
cortados em peda os. O racionamento individual os apa-
vorava: teria deixado pelo menos um ter o deles famintos,
enquanto o fornecimento em bloco fazia com que chegasse 11
para todos. Nosso pão era afamado ate na cidade-, a+ribuia-
se o seu sabor a feliz constru ão dos fornos. ~#sopa, ao
conf rario, - a f radicional sopa de couve azeda, - nao era
bem reputada. Cozinhavam-na num caldeirão, engrossav~m-
na de leve com centeio, o que nã*o a impedia de ser muitor
rala, e, sobretudo, nos dias de trabalho, deixar a barriga a
roncar de vazia. Na minha opinião, o mais repelente cle tudo
ora o numero inconcebivel de baratas que nadavam nela:
mas os defenfos não se importavam.
Nos tr s primeiros dias não fui ao trabalho-, deixavam
que todos os recem-vindos descansassem da viagem. Entre-
tanto, fogo ao dia'seguinfe da chegada, fizeram-me sair da
fortaleza para me porem os grilhões. Os que eu trazia não
eram os regulamentares: "soavam fino", segundo a expressão
dos defen+os, e apareciam sobre a roupa. O modelo usa-
do, afim de permitir o trabalho, não se compunha de argo-
las, mas de quatro hastes de ferro da grossura de um dedo,
mantidas juntas por quatro aneis: deviam ser usadas sob as
cal as. No anel do meio enfiava-se uma corrente que por
sua vez se afivelava a cintura, sobre a camisa.
Recordo bem minha primeira manhã no presidio. No
corpo da guarda, junto ao por+So, o tambor rufava a alvorada,
(1) Trata-se das "companhias correcionais civis", cri.-d3s em 1825 segun
de
o modelo das companhias correcionais militares. Mandavam-se para elas os
indivi-
duos condenados ... deporta ão por crimes relativamente de pequena gravidade,
bem como
os membros das classes privilegiadas, condenados por crimes at mesmo capit
ais. Os
d@fentos, submetidos ... disciplina militar, eram utilizados em diversos
trabalhos de uti-
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
31
e dez minutos depois o oficial de dia abria as casernas. Des-
pertamos. A luz debil de uma candeia, os presos se ergueram,
tiritantes de frio. A maioria es+ava taciturna e mal humo-
rada. Bocejavam, espregui avam-se, franziam a +esta mar-
cada pelo ferro. Uns se benziam, outros brigavam. O aba-
#

famenfo era abominavel. No momento em que se abriu a


porta, o ar frio do inverno entrou em borbotões, formando
nuvens de vapor Ia dentro. Os homens se reuniram em*forno
dos baldes de agua-, cada um por sua vez +ornava a caneca,
bochechava, molhava o rosto e as mãos. A agua fora posta
ali desde a vespera pelo parachmili: (2), titulo dado ao preso
escolhidoãen+re os outros para o servi o do alojamento. Dis-
pensado do trabalho externo, ele cuidava do asseio da sala,
lavava e esfregava o chão e as tarimbas, trazia e levava a
cuba. mantinha a agua limpa nos baldes - de manhã para
o asseio corporal, de noite para beber.
- Não empurra, cara de macaco! rosnava um preso
magro, +rigueiro,-melanc61ico, com estranhas pro+uberancias
no cranio raspado,' empurrando um outro for ado de pe-
quena es+a+u;a. en+roncado, rijo, de cara vermelha e jovial.
- Para que esse berreiro? Alugaste o lugar? Desin-
fe+a daqui, obelisco! Ora vejam o ...
E o palavrão que dizia provocava o seu efeito: os outros
rebentavam em gargalhadas. Era justamente o que queria
o corado trocista, que, evidentemente, desempenhava na ca-
serna o papel de bufão. O preso alto o encarava com des-
pre(~,c, profundo:
- Cara de vaca!
Decerto engordaste Com O Pão
branco daqu ! No Natal ' has de parir pelo menos uma duzia
de leitões, heim?
lidade p£blica (pavimenta ão de ruas, canaliza ão, constru ão de pontes, etc.), sem
nenhuma remunera ão.
De acordo com um regulamento de 1845, a condena ão ...s companhias correcion
ais
veio a ser -a mais grave medida coercitiva para os individuos condenados
aos castigos
corporais, paralelamente ... deporta ão para a Siberia para os membros das cl
asses
privilegiadas. (N. de H. M.)
(2) Limpador de privadas (N. de R. Q)
#

32
DOSTOIEVSKI
- E tu, que ra a de passaro pensas que es? gritava de
repenfe o oufro, ia rubro.
- Isso mesmo, não sou uma leitoa como fu, sou um
passaro.
- Que qualidade de p6ssaro?
- Isso comigo.
t-- Não, dize, anda, que passaro?
E se devoravam com os olhos. O vermelhac, esperava
a resposfa, de punhos fechados, como pronto para a luta, Eu
estava cer+o de que eles se iriam agarrar: e aquele* espe-
faculo novo me a ulava a curiosidade. Soube depois que
essas cenas, inteiramente inocentes, eram *representadas para
cliverfin¡en+o geral. Quasi nunca passavam de palavras. Mas
tudo aquiio era caraferisfico e refletia a mer~+alidade da
prisão.
O preso alfo manfinha-se sossegado e majestoso. Sabia
que o olhavam: e sua resposfa seria sua deshonra ou sua
gloria. Devia susfenfar o que dissera, mostrar que era real-
menfe um passaro. Lan ou um olhar de vies ao adversario,
e com inexprimivel desdem, fifando-o por cima do ombro,
como a um insefo, len+amenfe, sigri ificaf iva mente, articulou:
- Pois sou um kagan (3).
Uma gargalhada re+umbanfe acolheu essa afirma ão.
- O que es e um malandro, e não um kagan, gague-
jou o vermelha o, que, senfindo-se vencido, atingira o grai,
mais alto do furor.
Quando, porem, a coisa come ava a ficar seria, trata-
ram de amansar os adversarios.
- Que foi que deu neles? grifaram.
- Seria melhor que voces brigassem a murro, e não
com a lingua! falou alguem Ia do seu canto.
---Segura os dois, senão se agarram! observou um
oufro. Cada qual mais valente: so brigam de sete contra
um!
(3) Não h nenhum P ssaro com esse nome. A palavra kagan, entre alguns
povos orientais, significa chefe, pr¡ncipe, e entre outros grupos de siberi
anos significa
. raposa". Para o for ado, que escutou a palavra sem a entender bem, o kaga
n
sipificari@ decerto um w superior, um p ssaro das alturas. (N, de 11. M.)
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
33
- Sim, são uns anjinhos: um esta aqui por causa de
uma libra de pão, e o outro bebeu o soro do leite de uma
velha e por isso me+eram-lhe o knufl
#

- J chega! bradou o invalido que exercia as fun oes


de vigilante e dormia num canto, numa farimba especial.
- Agua, meus filhos! O "Nevalido" (4) Petrovi+ch 16
acordou! Bom dia, meu irmãozinho "Nev61ido" PefrQvi+chi
- Se eu fosse +eu irmão nos bebiamos juntos! rosnou
,o invalido, estirando as mangas do capote.
Preparavamo-nos para a chamada. O sol nascia. Os
dãenfos se aglomeravam na cozinha. Ja pronfos para o
+rabalho,.com ocapofe, os gorros de duas cores, esperavam
,junto ao pão que um dos cozinheiros dividia. Esses cozi-
nheiros, eleitos enfre os presos a razão de dois por cozinha,
eram encarregados da guarda da Unica faca que servia para
cortar o pão e a carne. Alguns for ados tinham diarife de
si uma caneca de kvass (5). Esfarelavam o p3o ali dentro,
e depressa o enguliam. O barulho era insupor+avel, mas
nos cantos a conversa era discreta, sossegada.
- Paizinho Antoni+ch, pão e sal, saude! exclamou um
preso jovem cumprimentando um for ado +ris+onho e des-
denfado.
- Bom dia, se não estas de +ro a! respondeu o velhote
sem erguer os olhos, continuando a mastigar o pão com as
gerigivas.
- Imagina, Anfoni+ch, e eu que pensava que tu tinhas
morrido! Deveras!
- Ainda não. Vai na frente, me mostrar o caminho!
Sen+ei-me perto deles. A minha direita conversavam
dois outros presos, sossegados, procurando ambos manter um
ar de dignidacl_e. C -
- Eu te garanto que não me hão de roubar, dizia um.
mais facil ser eu quem roube aos outros.
- Pois +ambem e bom que ninguem meta as mãos no
que e meu, senão a coisa engrossa!
(4) Deturpa ão de "inv lido". (N. de R. Q)
(5) CebiOR fermentada, feita de pão preto e malte. (N. de H. M.)
4
- 'lo
1
#

34 DOSTOIEVSKI
- Então e assim? Tu es diferente de nos? Sossega *
Não passamos de gales ... e nada mais. Ela e que te ha
de embrulhar. sem nem dizer muito obrigada ... Da mim
fambem, meu filho, ela surripiou quatro copeques. Apare-
ceu aqu¡ outro dia. Mas onde haveria cle meter-me com
ela? Pensei num adjutorio de Fedka, o carrasco, ele ainda
tinha a mesma casa no suburbio, - a casa que comprou de
Salomonka. aquele judeu piolhento que se enforcou ...
- Eu sei. Era bo+equineiro aqui ha fr s anos aftas;
n6s o chamavamos "Grichka-bodega-escura". Eu sei.
- Não, não sabes. O "bode ga-,escu ra " era outro.
- Que outro! Estas louco, rapaz. Posso +e apresen-
+ar fantos testemunhos quanto queiras.
- Podes +razer! De onde e que vens? Sera que sabes
quem sou eu?
- Quem, fu? Não e para me ciabar, mas ia +e dei
umas boas sovas. Ora, quem es +u!
- J me deste sovas, fu? Ainda esta para nascer
aquele que me ha de dar uma sova, estas ouvindo? E aque-
le que me sovou ia esta enterrado!
- Ora, ma peste te mate!
- E.a lepra que +e roa!
- Vai atras dum turco que +e meta o sabre!
E choviam os insultos.
- Basta, basfa! que berreiro e esse! gritavam ao neclor.
Voc s não sabiam viver soltos, e agora estão satisfeitos, por-
que aqui +em pão fresco! Basta!
Separaram-nos rapidamente. Os insultos, os desafo-
ros, toleram-se de bom grado, porque servem de distra ão
para o auditorio. Quanto as rixas, so são autorizadas em
casos excepcionais. As vias de fato podem ser denuri-cia-
das ao maior, que vem pessoalmente fazer um inqueri+o: o
inqu rito significa aborrecimentos para todos, e deve por-
tanto ser evitado. Alias, quase sempre os adversarios fro-
cem desaforos por distra ão, por amor ... arte. Frequante-
mente o sangue lhes sobe a cabe a, ficam'furiosos, e a gente
pense que se v-ao agarrar, mas não: assim que a raiva de
O
I
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
35
um e outro atinge certo diapasão, separam-se. Tudo isso,
a principio, me provocou uma extraordinaria, surpresa. Foi
#

de proposito que citei este exemplo de palestra habitual,


enfre os for ados. Não compreendia que alguem pudesse
trocar insultos por prazer, encontrar nesse mister um encan-
to, um deleite, um divertimento. Não se deve esquecer
tambem. a parte que cabe a vaidade: o colecionador de
pragas sobe na estima geral-, um pouco mais, e e aplaudido
como ator.
a
Logo ' primeira +arde notei que me fitavam de vi s,
apanhei mesmo alguns olhares sinisfros. Por outro lado, des-
confiando que eu trazia dinheiro, alguns defentos me ron-
davam. Ofereceram-me logo os seus servi os, ensinaram-me
a carregar os ferros novos, ob+iveram-me - mediante di-
nheiro, e claro - um bau com cadeado, para arrumar nele
o meu enxoval de presidiario e a pouca roupa branca que
trouxera. Mas logo no dia seguinte roubaram-me tudo e
gastaram o produto em bebida.
Um dos meus* assaltantes +ornou-se mais +arde precio-
sissimo para mim, erribora continuasse sempre a furtar o que
era meu, sempre que a ocasião lhe parecia adequada. ~Co-
metia o roubo sem o menor acanhamento, como por obri-
ga ão; e eu não lhe podia guardar rancor.
Entre outras cousas, aqueles colegas servi ais me infor-
maram de que a gente poderia ter o seu cha: seria pois
ato ufil, para mim, a compra de uma chaleira. E, esperan-
do a compra, poderiam me alugar uma. Recomendaram-me
tambem um cozinheiro que mediante trinta copeques por
mes me prepararia as refei ões, se eu quisesse comer 'P'
pa rte ... ~Orrio era de esperar, pediram-me dinheiro em-
pres+a_ _~ogo no primeiro dia, cada um deles renovou os
empresfimos duas e +r s vezes.
Os ex-fidalgos são em geral muito mal vistos no pre-
sidio. Embora +enham perdido os direitos civis e sejam ali
iguais a todos os outros, os for ados se recusam a encara-los
como companheiros. Ali s, nSo decorre isso de nenkurn pre-
#

DOSTOIEVSKI
conceito, mas de uma opinião inafa. Aos seus olhos confi-
nuamos sempre a ser fidalgos, o que não os impede de gozar
a nossa queda: "Agora acabou! Ainda ontem Piofr an-
dava brilhando em Moscou! agora. Piotr force a corda que
vai usar no pesco o!" e outras cousas classe jaez.
Gozavam os nossos sofrimentos; entretanto, faziamos
tudo para os esconder deles. Era principalmente nos pri-
meiros tempos que lhes atra¡amos as zombarias, porque, como
a nossa for a nSo era igual a deles, não os pod¡amos equiva-
ler no frabalho. dific¡limo obter a confian a do povo, so-
brefudo daquela qualidade de gente do povo, e lhes conquis-
far a afei ão.
Tinhamos no presidio varios fidalgos. Para come ar,
cinco polacos, dos quais falarei mais tarde. Os de+entos os
detestavam ainda mais que aos nobres russos. Os polacos
(refiro-m,e aos condenados polificos) tratavam os colegas de
prisão com uma delicadeza meticulosa, exagerada, altiva;
não podiam dissimular a repugnancia que a sua convivencia
lhes inspirava.
Os for ados compreendiam isso muito bem e lhes pa-
gavam na mesma moeda.
Precisei passar quase dois anos no presidio para con-
seguir a boa vonfa& de alguns presos. Contudo, no fim
da pena, a maioria deles gostava de mim e me considenQva
um "bom sujeito".
Excluindo-se a minha pessoa, a fidalguia russa tinha no
presidio quatro representantes. Em primeiro lugar, um su-
jeifo crapuloso, medonhamenfe corrompido, espião e de-
lafor de oficio, de quem eu ia ouvira falar antes da minha
chegada e com o qual cortei rela 8es logo no primeiro dia.
O segundo _era o parricida de quem ia falei. O ferceirb
chamava-se Akim Akimi+ch. Raramente tenho visto um ori-
ginal daqueles: ficara para sempre gravado na minha lem-
bran a. Era um homenzarrSo ossudo, de espirito fraco, ig-
norancia crassa, mefoclico e preso a regra como um alemão.
Os presos o ridicularizavam, mas alguns evitavam irrita-lo,
temendo-lhe o genio briquen+o. Desde o inicio nivelara-
kECORDAC ES DA CASA DOS MORTOS
se com os outros, rixando-se, agarrando-se ate com eles.
Era de uma honestidade fp-nomenal, e, assim que constatava
uma injusti a, voava a corrigi-ia, e muitas vezes se imiscuia
ern negocios que absolutamente não eram da sua confa. Sua
ingenuidade era prodigiosa; por exemplo: quando brigava
com os defen+os, censurava-lhes as ladroagens e os conci-
fava ao arrependimento. Fora alferes no exercito do C iu-
caso. Fizemos amizade logo no primeiro dia e ele imedia-
#

famente me confou a sua his+oria. Come ara a vida Ja


mesmo no Caucaso, como sulo-oficial volun+ario num regi-
men+o de linha; esperara durante muito tempo a promo ão a
oficial, mas afinal mandaram-no como comandante para um
velho forfim. Um principe +ribufario dos arredores incen-
diou esse for+im, e fenfou um ataque noturno, sem nenhum
xito ali s. Akim AkiMi+ch, por as+ucia, fingiu que não
sabia quem fora o autor do ataque. O caso foi a+ribuido
aos dissidentes; um m s depois Akim Akimi+ch convidou o
principe para uma visifa de cordialidade. E o principe
compareceu, sem des~onfiar de nada. Akim Akimi+ch formou
sua guarni ão em linha de batalha e confundiu publicamente
o visitante, lan ando-lhe em rosto a sua felonia. Explicou-
lhe miudamente a conduta que doravan+e deveria ter como
1 a
pr ncipe fribufario, e depois, ' guisa de conclusão. . . fu-
zilou-o. E no fim de tudo, mandou um relaforio circunstan-
ci;" o aos seus chefes. Foi a conselho de guerra; condena-
do a morte, teve a pena comutada para trabalhos for ados
de segunda categoria, e foi mandado passar doze anos na
Siberia ... Reconhecia que a sua conduta fora ilegal, ga-
ranflu-me ate que sabia disso antes de mandar fuzilar o prin-
cipe; nSo ignorava que o principe deveria ser julgado se-
gundo a praxe; contudo, não conseguia compreender em
que consistia o seu crime.
- Mas veja, o principe tinha incendiado o meu forfim!
Na sua opinião, eu ainda deveria dizer muito obrigado, heiri?
respondia ele a +JJas as minhas obje ;-5es.
Os for ados, por mais que zombassem de Akim Aki-
mi+ch e o chamassem de louco, tinham em alta confa o seu
#

DOSTOIEVSKI
to de ordem e as suas prendas. Akim Akimi+ch sabia
os oficios: era marceneiro, sapateiro, pintor dou-
serralheiro; e todas aquelas artes aprendera-as no
io. Auto-clidata nato, bas+ava-lhe ver um objeto para
ifar. Confeccionava fambem uma enorme variedade
ixas, cestos, lanternas, brinquedos, e os vendia na cida-
Isso lhe rendia algum dinheiro que ale empregava ime-
mente na aquisi ão de roupa branca ou de um traves-
mais macio. Conseguira ate mesmo fabricar para si
olchão dobradi o. Como ocupava o mesmo alojamen-
e eu, ajudou-me muito durante os primeiros meses da
deten ão.
Antes de sairem da fortaleza para o local do trabalho,
esos formavam dois a dois diante do corpo da guarda.
infe, e a cauda da forma ão colocavam-se os soldados
scolta, de armas embaladas. Aparecia então um ofi-
e engenharia, condutor dos trabalhos, e alguns sapade-
esignados como moni+ores. O condutor contava os
s, depois os mandava em pelotões para os locais de-
dos. 1
Juntamente com outros, destinaram-me a oficina de en-
aria, constru ão baixa, toda de pedra, situada no meio
grande patio atulhado por uma infinidade de`ma+eriais.
-w ali uma forja, tendas de marceneiro, de serralheiro,
s+rador, e+c_ . , 'Akim Akimi+ch trabalhava no enverni-
into; esquentava o oleo, moia as tintas, e pintava mesas
ros moveis de cor de nogueira.
Enquanto esperava as minhas novas grilhe+as, comuniquei-
s minhas recentes impress6es.
- Sim, e verdade, confirmou: eles não gostam dos
es, principalmente quando s3o condenados -pol¡ticos: so
l+a come-los vivos. facil de compreender. Para co-
r, voc s e eles nada + rn de comum. Em segundo
prifes de virem para ca eram todos pobres servos ou
es soldados. Julgue por si se podem gostar de nobres.
- sou eu que lhe digo, - a vida e dura, mas nas
anhias correcionais da Russia europeia e bem pior. Os
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
39
e v m de Ia para c acham que passaram do inferno para
c u. E não e que o trabalho seja mais penoso. Parece
que Ia a primeira categoria não tem uma cline ão estrita-
n+e militar: tratam os presos de modo muito diverso daqu¡;
*deportados podem at ter a sua casinha; não vi com meus
os, porem foi o que me disseram. Não raspam a cabe a,
#

o obrigam a uniforme, todavia, acho ate bom que os


esos tenham a cabe a raspada e usem uniforme: a ordem
melhor, e e mais agradavel a vista. Mas e isso justa-
men+e o que desagrada a esses camaradas. E. +ambem,
,que bandos de vagabundos! Circassianos, raskoiniki, (6)
,bons cristãos ortodoxos que deixaram na aldeia mulher e
ilhos, judeus, boemios, a Deus sabe quem mais, obrigados
os a viver bem uns com os outros, a comer na mesma ga-
a, a 'dormir na mesma tarimba! E que liberdade! - O
1. comer da gente, e preciso enguli-lo ...s escondidas, cada
vin+enn e guardado no fundo das botas; não precisa dizer
,mais: presidio e presidio ... E quer a gente queira quer não,
acaba meio louco.
Aquilo eu ia sabia. Era principalmente a respeito do
nosso maior que eu queria interrogar Mim Akimi+ch. Ele
não me dissimulou nada e a impress3o que me ficou não foi
absolutamente agradavel.
Tive que passar dois anos sob as ordens desse individuo,
e tudo que no primeiro dia me disse Akim Akimi+ch se re-
velou exato, - com a diferen a apenas de que a sensa So
direta sempre ultrapassa a impressão provocada por uma
simples narrativa. Era um homem apavorante, sobretudo
gra as a autoridade absoluta que exercia sobre duzentas
pessoas: porque ele, em si, não era senão desordenado e
mau. Considerava os de+en+os como seus inimigos nafu-
rais: era esse o seu primeiro e principal engano.
Sua pouca capacidade, suas proprias qualidades se
desviavam e tomavam uma dire ão ma. Violento, impulsi-
vo, cruel, precipifava-se como8~,,ima bomba na fortaleza, ate
(6) Welhos crentes". O "Raskol" foi um cisma provocado pelo patriarca Ni
kon
que em 1666 corrigiu os livros sagrados. (N. de R. Q)
#

46
bos'ro I E vs I( I
Mesmo alta noite. e se observava algum preso dor
lado esquerdo punia-o no dia seguinteMindo do
gundo as minhas ordens, deve
pela manhã. /'Se-
Era odiado e temido com -se dormir do lado direito111
melha a e enfarruscada O pe onha. Tinha um
Todos sab* a cara ver
ioguefe nas mãos do se * iam que O maior era um
neste mundo era O cac u ordenan a, Fedka. Seu unico
queceu quando o anima horrinho Tresorka (7) e
izinho caiu dmor
fam, como quase enlou-
depois se se tratasse dum doente. Solu a va ~ co
de lhe haver dado -filho. , Expulsou um
uma surra, segundo o s r;
eu
n
vete
- Mas sabendo, Por infermedio de Fedka
pres;d;o um curandeiro que sempre se sa- , que havia
ridou cham6-10 inconfinenfi. ia muito bem,
- Salva-ol grifava ele.
bro de dinheiro! Cura
O homem um lf o Meu Iresorka e eu te
'fo bom veferinarim u~ [que s;beriano 'asfufo, inteligente. . e
visita , O, contou ma r
a casa do m - is fa de aos com
ajor, - ali s Panheiros
quando o caso estava 16 o fez muito mais
u- Olhei Para Tresorka, quase esquecido.
ma almofada clue estava no sof ~ em cima
muito alva, vi irpediafamenfe que sofr-
inflama ão e seria preciso sangi-6_lo, para o salvar
sei tambem: ta
lei: E se eu fracasso e o cão rebenta?';
"Excelencia, mandou-me chamar muito tarde.
m Ou anteontem eu ainda
Pem mais jeif¢.tv o Poderia salvar; o
assim, f;'Ou-se Tresorka.
nforam-me fambem, c
quisera m Om muitos Pormenores que um
#

atar o maior.
)-se que - O pre-
J h Muitos anos' n
sse homem dava mostras de uma submissão exemplar.
r debil Iamais dir;g~a a Palavra a i
menfal. ninguem, Passava
S
Ma
Pen
fa
8
o
abia ler e escrever, e levara o ano
a ler a B'b"a, ia e noite.
rmia di
M, erguia-se No meio da noite, quando
Stufa, abria acendia uma vela
O 1;vro.'e lia af- inst lava-se
e O amanhece' a
inuti,0 russo da Pala~ra francesa Um dia de-
"Tr sor" (tesoro).
(N. de R. Q.)
P rem agora
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
Ir r
41
clarou ao sub-oficial de guarda que se recusava a ir para o
trabalho. Avisaram o maior, que se enfureceu e correu ao
alojamento. O preso lhe atirou um tijolo, que ia tinha con-
sigo, com essa inten ão. Mas errou. Agarraram-no, jul-
garam-no, a oifaram-no. Passou-se tudo com grande rapi-
dez. Tres dias depois o desgra ado falecia no hosp~ital.
Antes de morrer, declarou que não queria mal a ninguem,
que tinha apenas procurado o marfirio.. Não pertencia en-
tretanfo a nenhuma seita dissidente. E nunca mais sua lem-
bran a foi evodada sem certa como ao respeitosa.
Enquanto me punham as novas grilhe+as as vendedoras
de kalafch entraram em fila, na oficina. Havia entre elas
ate criancinhas; enquanto eram pequenas vinham mercar os
kalafchi que as mães faziam. Depois de crescidas, continua-
vam a vir, mas sem mercadoria. Entre as vendedoras, havia
+ambem mulheres casadas. O kalafã valia dois copeques e
#

quase todos os presos compravam deles.


Reparei num dos for ados, marceneiro de profissSo, ia
grisalho, mas de cara rubicunda, que pilheriava com as ven-
dedoras. Antes da entrada delas, amarrara ao pesco o um
len o encarnado. Uma mulherona gorda, com a cara toda
picada de bexigas, foi sentar no seu banco; e se travou en-
fre, eles a seguinte conve'rsa:
- Por que voc não foi on+em? perguntou o homem
.com um sorriso fatuo.
- Fui sim; e levei o bolo! retrucou ela, despachada.
- Precisaram da gente; se não fo~se isso, estariamos
todos 16! Mas anteontem, voc s correram todas ...
- Quem foi?
- Quem? A Mariachka, a Kavrochka, a Tchekunda,
a Dyugrocheva¡a ... (8)
- Escute, perguntei a Akim Akimi+ich, sera pos,~ivel
que. . .9
Acontece, sim, respondeu-me Akim baixando modes-
famenfe os olhos, porque era pudicissimo.
1 (8) Tchekunda: "E' barato" - Nugrochevaia: "Dois groches~'. (N. de R.
Q)
O0"
#

42 DOSTOIEVSKI
Aquilo acontecia realmente, mas de raro em ra~o e
com. imensas dificuldades. De modo geral, havia mais apre-
ciadoros da bebida que dessa outra diversão, -apesar da
dureza daquela vida. Para conseguir algum dos presos apro-
ximar-se de uma mulher, precisava escolher o momento, o
local, marcar o encontro, conseguir ficar sO, ~ cousa que
era particularmente difici) - subornar os vigilantes, - cousa
mais dificil ainda, - em suma, gastar um dinheiro realmente
insentafo. Apesar disso, aconteceu-me mais tarde teste-
munhar cenas de amor. Lembro-me de certa vez, no verão,
em que nos esfavamos num galpão as margens do Irfych,
queimando um forno de tijolos. Os vigilantes- eram bons
rppazes. Logo mais apareceram duas "souffieuses" como as
chamavam os de+enfo"s.
- Por que vieram tão tarde? Estavam com os Zver-
kovi? pergun+ou-lhes o preso. Ja as esperava ha muito tempo.
-~- Eu? Nunca. Mais demora uma gralha numa ar-
vore do que eu com eles, replicou jovialmente a rapariga.
Era a Tchekunda, - a virago mais horrenda deste
mundo. Trazia consigo a sua amiga Dvugrochevaia. ~_ssa,
então, desafiava qualquer pintura.
- J faz tempo que a gente não se v , continuou o
galã', dirigindo-se a Dvugrochevaia. Voc anda magrinha.
- isso. Dantes eu era gordo+a, hoje parece que
enguli uma agulha!
- ~E anda sempre correndo atras dos,soldados?
- Qual! Isso e lingua comprida de alguem! mas a
verdade e que ainda que a gente fique sem um fio de seu,
não h6 orrio um soldado!
- Deixem de pensar em soldados, e venham com a
genfe... Nos pelo menos temos dinheiro. . .
Para completar o quadro, e preciso imaginar o galã
com a cabe a raspada, a libr" de duas cores, a grilhefa aos
p¢s, sentinela a vista.
Despedi-ma de Akim Ak'¡m¡fch, e sabendo que poderia
. voltar, pedi um vigilante a fui embvra. Era a hore do re-
IPA
#
I
If
1 ~ (
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
45
gresso. Os farefeiros 550 os que vão em primeiro lugar.
£nica maneira de tirar servi o dum for ado e lhe impor um
farefa. Mesmo quando pesada demais, eles a termina
duas vezes mais depressa do que se labutasse sem defen
a+6 ao soar do tambor. Finda a tarefa, o preso volta par
a caserna, e ninguem mais cuida em lha por empecilhos.
Não se jantava em grupo: quem chegava primeiro to
mava lugar a vontade. Alias, a cozinha não comportaria +11
dos ao mesmo tempo. Provei a sopa mas, por falta de
habito, nao a pude engolir e esperei o cha. Senfamo-nos ...
ponta da mesa. Eu tinha comigo um companheiro - ex-
fidalgo tambem (9).
Os defenfos entravam o saiam. Havia muito lugar,
faltando nda tantos. Cinco presos formavam um grupo
sep rado. O cozinheiro lhes serviu duas tigelas de sopa e
pos na mesa um frigideira cheia de peixe frito. Decerfo
estavam se banqueteando, em comemora ão de qualquer
aniversario. Olhavam-nos de vies. Um dos polacos chegou
e veio se sentar ao nosso lado.
- Eu não estava Ia, mas sei de tudo! exclamou um
preso alto, penetrando na cozinha a olhando em c¡rculo
todos os homens presentes.
Cinquenfa anos mais ou menos, magro, MUSCUloso, tinha
uma cara ao mesmo tempo astuta e jovial. O labio inferior,
pesado, pendente, dava-lhe ao rosto uma expressão muito
comica.
- Saude, bom proveito! Saude aos mo os de Kursk!
continuou ele, senfando-se perto dos convivas. Pão e sal!
Recebam bem o h6spede!
- Não somos de Kursk, rapaz.
- Então são de Tambov?
- Nerri de Tambov- Não arranjas nada aqui, mano
Se queres pedir esmola, corre afras dum rica o.
(9) S. F. Durov, condenado ao mesmo tempo que Dostoievski, e com quem o
ro-
as "Recorda ões" e -s¢ faz duas ou tr s alusões ... sua Pessoa
Z-ndceistarrandousbriugado durante toda a sua estada no presidio. Não o nom
eia nunca
(N. de H. M.)
#

#
46 DOSTOIEVSKI (r
- Hoje*, mano velho, na minha barriga, Ivan Taskun e
Maria lkofichna andam ...s furras!(1 O) Onde acharei esse rica o!
- L esta Gazine, que cheio dos cobres! Vai a+ras
1
dele!
- Gazine? Esta de farra hoje, maninho, est , b bedo
como um porco - bebeu o sortimento todo!
- Deve ter uns vinte rublos, observou outro. Todo o
mundo sabe que um botequim não e mau negocio.
- Então não me querem mesmo? TenhobtIue comer
por conta da casa?
- Sim, cai fora. Vai pedir cha aos harines na outra
mesa.
- Que barines? Não ha bar¡ne nenhum aqu¡. Agora
são iguais a gente, resmungou um outro gal , que esfava
sentado longe. a ainda não dera pal#vra.
- Bem queria eu fornar ch ! Mas não sou homem
para pedir - tenho vergonha na cara! declarou o preso do
bei o grosso, olhando-nos com a cara bonachona.
- Se quer cha, com todo gosto lhe ofere o, falei eu.
Quer?
- Se quero? Pois não! - E aproximou-se de nos.
- Eh! Em casa dele +ornava sopa sem colher, e agora
bebe cha com os barines1 continuou o pneso resmungão.
- Sera que ning*uem aqu¡ toma cha? perguntei. Mas
ele não achou que me devia responder.
- Kala+chil olha os ka10chil! quero um fambem!
Um jovem de+enfo enfrava realmente com um rosario
de kallOchi, ~que ia vendendo pelo alojamento. A vendedora
lhe dava de gra a um em cada dez, para lhe pagar o tra.
balho, e com isso ele jantava.
- Kala+chi, kalafchi quentinhos! gritava o rapaz enfra.f-
do na cozinha. Quem quer kalafchi, lindos kalafchi de
Moscou? Eu bem que os comeria, mas preciso dos cobres.
Vamos, hos, s6 me resta um! Quem feve mãe?
Esse apelo ao amor maferno provocou risadas, e lhe
compraram alguns kalafchi.
(10) Alegoria popular, que significa fwc (N. de R. Q)
O
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
4~
- Escutem, rapazes, falou ele. Gazine es+repou-se!
Est b bedo como uma vaca - 'so falta aparecer mesfre
"Oifo olhos" ...
#

- O melhor e esconder Gazine. Mas est mesmo


chumbado?
- Esta e furioso.
- Então precisa duns tapas ...
- De quem estão falando? indaguei do poiaco sen-
+ado ao meu lado.
- De Gazine, um preso que vende bebidas. Quando
junfa uns cobres, embriaga-se e fica uma fera. Sem bebida,
e quieto; porem quando esfa b bedo, mostra o que e: atira-
se aos outros, de faca na mão. E, então, o aquietam.
, Como?
- Uns dez dos outros se afiram a ele, esmurram-no
af que fique desacordado - quase morto. Depois o es-
tiram na tarimba, coberto com o capote.
- Mas não correm risco de o matar?
- Sim, e outro qualquer levaria o diabo - ele não.
forte como um +ouro. Mais forte que os outros todos:
quando for amanhã de manhã levanta-se como se não hou-
vesse nada.
- Diga por favor, perguntei ainda ao polaco. Aqueles
ali comem em separado e eu esfou bebendo cha simples.
E entretanto, parece que me invejam o cha. Por que?
- Oh! nSo* e por causa do cha, explicou o polaco; e
o barine que eles hosfilizam. Tem raiva dos harines por-
que não parecem com eles. Qualquer um ficaria contente
em o ofender, irritar, humilhar. Vai ver o diabo por aqu¡!
Pode crer, a vida aqui e dura, e muitissimo mais dura para
,nos do que para os outros. preciso muito boa vontade
para se acostumar. Vai ter muitos aborrecimentos, sofrer
mai de um insulto, porque toma cha e n8o come na game-
Ia, - embora muitos presos comam a parte e tomem cha;
mas eles podem, nos, não.
Dizendo isso, deixou-me. Alguns minutos &~pois suas
predi 6,es se realizaram.
#

O
lu
A,
VF
IL ~ v . 1-101 -
Primeiras impressões
(continua ão)
1 11~ L?
A ssim que M-cki (o Polaco) acabava de sair, Gazine, in-
feiramente b bedo, irrompeu na cozinha.
Em pleno dia de trabalho, durante o qual deveriam
todos estar cumprindo as suas tarefas, com um chefe se-
vero que poderia aparecer a qualquer instante, com um
sub-c,ficial de servi o, e os invalidos, e todo o pessoal da
vigilancia, a entrada daquele ebr¡o punha em choque com-
pletc, as id ias que eu houvera formado sobre a vida no
presidio. Alias, fiquei muito tempo sem conseguir explica-
ão para fatos desse g nero, que me pareciam de inicio
verdadeiros enigmas.
J6 contei que cada um dos for ados tinha a sua ocupa-
ão pessoal. Isso representa uma exigencia nafuralissima da
vida na prisão; ademais, fa-lo ganhar dinheiro, e o de+ento
preza tanto o dinheiro quanto a liberdade; sente uJ consolo
i
I
#

dentro do bolso: fica Pouco


em fazer retinir algumas moedas
inquieto, desanirgado, quando 1não tem
... vontade, triste, ~O
dinheiro nem meios de o obter. Entretanto, embora o di-
um ~esouro inapreciavel. o seu feliz pos
nheiro represente
suidor não o conserva nunca consigo. Em primeiro lugar.
como o esconder, de, modo que não seja nem roubado nem
confiscado? o maior, mal descobria algum peculio, nas suas
buscas repentinas, dele se apossava imedia+amente. Talvez
o empregasse no melhoramento da ra ão: mas +omava-0.
Corri mais frequencia, porem, era o dinheiro roubado. Seria
imposs¡vel ter confian a em alquem. Des~obrimos afinal um
m todo de o guardar sem perigo: entregava moIo a um velho
que. pertencia a confraria de VietI a, hoje refugiada entre os
mujiques de Starodubov ti). E não posso deixar de dizer
algumas palavras a respeito desse velho, embora sais um
pouco do meu assunto.
Era um homenzinho encanecido, de uns sessenta anos.
Despertou intensamente a minha curiosidade, logo ... che-
gada, porque diferia em tudo dos outros presos. Seu olhar
tinha uma expressão +ão meiga, +ão calma, que eu contem-
plava sempre com um prazer especial aqueles olhos claros,
luminosos, aureolados de pequenas rugas. Conversavamos fre-
quentemeriM, e raras vezes tenho encontrado tanta bondade,
tanta mansidão! Cometera, entretanto, um crime grav¡ssi-
mo. Iinham-se registrado, entre os seus companheiros de
cren a, varias deser ões; o governo -estimulava bastante os
tr nsfugas e tudo fazia para obter novas conversões. O
nosso velho e alguns outros fanaficos do seu grupo resolve-
ram "manfer a verdadeira fe", como diziam. Quando se
quis edificar uma igreja ortodoxa, eles a incendiaram. Preso
como um dos insfigadores do crime, foi o velho mandado
(1) No fim do s culo XVII, Vietka, burgo situado então no territorio polon s e
que hoje faz parte da provincia russa de Mohilov, constituiu durante meio
s cuio o prin-
cipal refuSio dos "ritualistas", ou adversarios das reformas lit¢rgicas pre
conizadas pelo
patriarca Nikon. Durante a guerra de sucessão da Polonia (1734) as tropas r
ussas des-
truiram esse refugio; e Starodubov, situado na provincia de Tchernigov, l
he herdou a
influencia. (N. de H. MA
Os dissCentes de Starodubov eram chamados, raskoiniki, ou "velhos crente
s".
(N. de R. QJ
D`GSTOIEVSKI
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
(t
I
#

si
para os trabalhos for ados na Siber¡a. Era um comerciante
abastado, e tinha mulher e filhos. Abandonara tudo para
tomar o caminho do exilio. - achando, na sua cegueira,
que estava sofrendo pela f . Vivendo junto a ele, a gente
meditava, involun+ariamente: qual a razão por que aquele
homem resignado, +imido como uma crian a, pudera , revol-
Interpelei-o varias vezes a respeito da sua "f ' - e Ele
far-se? as as r pli-
nao abandonava uma linha das suas convic ões. m de. Con-
cas que dava não traiam jamais a minima animosida
tudo, queimara uma igreja e não o negava, pois aos seus
olhos aquele ato, aquele limarfirio", constauiam uma honra.
vão o sondei, em vão o in+erro-
uma gloria. Entretanto, em
quek nunca descobr¡ nele o menor tra o de orgulho ou de
vaidade. Tinhamos entre n¢s outros "velhos crentes", sibe-
rianos na maioria, bastante instruidos, bons dialeficos a sua
maneira, extremamente aferrados ao texto sagrado, porem
intolerantes, cheios de astucia e presun ão. Nosso velho não
os imitava em nada. Versado nas Escrituras mais que qual-
quer um deles, fugia no entanto as controversias . Tinha o
genio extremamente comunicativo, estava sempre alegre, ria
frequentemente - não com a gargalhada grosseira e cinica
dos for ados, - mas com um riso manso e claro que corres-
pondia bem a sua cabe a grisalha, e no qual se sentia uma
grande e ingenua simplicidade. Posso enganar-me, todavia
me parece que a gente pode conhecer um homem pelo seu
riso, e que, se ao 'primeiro encontro um desconhecido ri ante
nos de uma maneira agradavel, sua alma e boa. O nosso ve-
lho gozava dum respeito un nime, do qual absolutamente não
/I ~11
se orj~lhava. Os for ados, que o chamavam avo , não o
ofendiam jamais. E isso explicava em parte a influencia por
ele exercida sobre os-seus correl igiona rios. Entretanto, apesar
do esfoicismo real com que suportava os trabalhos for ados,
uma tristeza crescia dentro dele, tristeza profunda, incura-
vei, que dissimulava o melhor que podia. Nos dois ocupava-
mos o mesmo alojamento. Uma noite, pelas fres horas, es-
cutei alquem chorar baixinho. O pobre coitado, sentado
I
#

52 DOSTOIEVSKI
junfo ao fogareiro, naquele . mesmo lugar ocupado outrora
pelo leifor da Biblia que quisera matar o maior, lia ora ões
I.S
num caderno manuscrito. , Solu ava, e de tempos em tem-
pos dizia: "Senhor, não me abandones! Senhor, da-me for-
as! Meus filhos, meus filhinhos, nunca mais os +ornarei a
ver!" Não posso exprimir o do que aquela cena me causou.
Foi pois a esse velho que pouco a pouco os for ados
iam enfregando o seu dinheiro. ~Embora fossem todos la-
drões, cada um tinha a certeza de que, com o "av"", podia
ficar sossegado. Sabia-se que ele dispunha dum esconde-
rijo num lugar onde ninguem o descobriria. Mais +arde, o
velho confiou o seu segredo a alguns dos polacos e a mim:
numa das estacas da pali ada havia um no na madeira, que
parecia estar solidamente ligado ao +ronco, mas podia ser
retirado, o que descobria um oco bastante profundo; ele Ia
depunha o dinheiro, e depois recolocava o no de modo fão
perfeito que ninguem jamais desconfiou de nada.
Mas afas+ei-me do meu assunto. Tinhamos ficado nisto:
por que o dinheiro demora +ão pouco tempo no bolso dum
for ado? que não s0 lhe e dificil conserva-lo, como o pre-
s¡dio provoca uma tristeza +ão grande! O for ado, por sua
propria natureza, fem umabsede fão grande de liberdade e
por sua posi ão social e fão descuidoso, +ão desordenado,
que lhe vem naturalmente a id ia de ao menos uma vez dar
alegria ao cora ão, afogar todo o desgosto em barulho e
musica, afim de esquecer, um minufo talvez, a sua desgra a
abominavel! Nada mais estranho que ver alguns deles a
frabalhar meses e meses sem uma folga, com o fito ¢nico
de dispender num so dia todo o lucro obtido; depois disso,
novamente se curvam, novamente se encarn¡ am na labuta,
af a proxima bambochafa.
Muitos deles gosfavam de usar roupa vistosa, mais ou
menos exquisifa, cal as pretas de fantasia, cafe+ãs cur+os
... moda siberiana. Tambem esfavarri muito em moda cami-
sas de chifa e cinfurões com fivelas de cobre. Os presos
se enfeitavam aos domingos, exibiam-se em todo o esplen-
dor atrav s do alojamen+o. Chegava a ser infantil a safis-
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
fa ão que sentiam com o seu fraio novo. Alias, em muitos
aspectos, não passavam os gales de crian as grandes. Falar
verdade, todos aqueles ouropeis rapidamente desapareciam;
algumas vezes naquela mesma noife o seu proprie+ario os er~-
penhava ou vendia por quase nada. Sempre havia, alias,
pretexto para festas: ou porque era dia santo, ou porque
era aquele o dia onornastico de um dos defenfos. O ani-
versariante, assim que acordava, acendia uma vela defronte
#

ao icone, e fazia as suas ora ões: depois endorningava-se, en-


comendava uma refei ão, - carne, peixe, e pratos a moda
siberiana, - e os devorava como um bicho esfomeado, -em
geral sO, pois raramente convidava um amigo para lhe par-
filhar o festim. Então aparecia -o vodca. O for ado
bebia como um odre, e andava pelas casernas, titubeando,
trope ando, mas altivo por mostrar a todos que "esfava de
farrcV - pois aquilo lhe era uma garantia da estima geral.
O povo russo sente uma esfranha simpatia pelo b bedo, po-
rem, no presidio, essa simpatia chegava ate ao respeito: os
paus-dagua pertenciam a uma especie de aristocracia. Assim
que se sentia alegre, o for ado exigia musica. Havia entre
nos um polaco, condenado por deser ão - um crapula, a
bem dizer, mas que possuia um violino e tocava. Como
não tinha nenhuma profissão, o seu unico recurso consistia
em se alugar a um aniversariante e tocar para ele alegres
musicas dansan+es. Essa fun ão o obrigava a acompanhar
o seu ebrio patrão de alojamento em alojamento, arranhan-
do a rabeca com quanfa for a tinha. Muitas vezes o rosto
lhe traduzia o +edio, o desespero, o cansa o, mas ao escutar
o grifo "Toca, diabo, ganha o teu dinheiro!" fazia o que
podia, a manobrar o arco. O fes+eiro sabia muito que se
por ajaso ficasse por demais ruidoso, feria quem cuidasse
de Si- , dei+a-lo-iam, escond -lo-iam mal aparecesse um chefe,
uilo seria feito com absoluto desinteresse. ' Por seu l¡ado,
os sub-c,ficiais e os invalidos que zelavam pela ordem inferna,
poderiam ficar sossegados: o b bedo n3o provocaria ne-
nhuma complica ão, pois todo o seu' alojamento feria nele
os olhos.
1i
#

54 DOSTOIEVSKI
Ao menor barulho, a menor revolta, tinham meios de o
fazer calar, ou simplesmente o amarravam. Por essa razão
os sub-c,ficiais fechavam os olhos: sabiam muito bem que se
não tolerassem o vodca ali dentro, as cousas andariam muito
piores. Mas como o obtinham os presos?
O vodca era comprado dentro do propric, presidio, a
defentos apelidados "bofequineiros" e cujos negocios ca-
minhavam muito bem, embora os nossos beberrões fossem
em pequeno numero: aquelas orgias custavam caro e nos
finhamos grande dificuldade em obter dinheiro. O comarcio
de vodca se iniciava, desenvolvia-se e se concluia de, maneira
realmente original. Vejamos um defento sem profissão defi-
nida, e pouco dado ao trabalho (havia desses) mas desejoso e
impaciente por enriquecer. Como possue alguns copeques,
resolve comerciar com aguardente, -.empresa bastante au-
daciosa. Grande e o risco: pode paga-lo na "rua verde", e
ao mesmo tempo ver dinheiro e mercadoria confiscados. En-
fr,efanto, o botequineiro não hesita. A principio. não dis-
pondo senão de alguns cobres, ele propric, introduz o vodca,
do qual, O 10giCO, so se desfaz com grande lucro. Repete a
experiencia segunda. terceira vez; se não e apanhado, em
breve possue um peculic, que lhe permite dar expansão ao
negocio. Torna-se negociante, capitalista; tem agentes e
auxiliares; arrisca-se muito menos e enriquece muito mais ...
São os auxiliares que se expõem no seu lugar.
Ha sempre no presidio alguns loucos que o jogo ou os
excessos arruinaram de todo, gente sem oficio, lamentavel,
esfarrapada, mas de certa maneira dotados de 'audacia e
energia. Essas criaturas não possuem senão uma cousa: as
costas, e aquilo ainda pode ter uma utilidade. O desgra ado
resolve porfanfo lan ar mão desse ultimo capital: enfende-se
com um bofequineiro, propõe-se a lhe con+rabandear vodca.
E todo bofequineiro rico utiliza muitos empregados dessa es-
pecie. Tem, na cidade, rela ões com um individuo qual-
quer, um soldado, um artesão, uma meretriz, que, mediante
comissão relativamente elevada, compra num bofequim a
aguardentis do rimim r~dedor, e vai depo;s escond -la
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
55
perto do local onde trabalham os for ados. Esse inferme
diario, come a sempre provando a qualidade da mercadoria:
e substitue implacavelmente por agua pura a por ão consu-
mida nessa prova. Os seus fregueses não podem ter ex¡
gencias: devem se dar por felizas em arranjar vodca, seja qual
for. O fornecedor v então a chegada dos carregadores
indicados pelo bo+equineiro. Essas trazem consigo algumas
#

tripas de boi que foram antecipadamente lavadas e cheias de


agua, para ficarem frescas e macias. Depois que o vodca
e mudado de recipieriM, os carregadores enrolam as +ripas
em redor do corpo - nos lugares mais secretos em que e pos-
sivel af6-las. a¡ que se mostra toda a asfucia, toda a ha
bilidade do contrabandista. Sua honra esta em jogo.
preciso enganar vigilantes e sentinelas: e ele os engana. Um
bom contrabandista sempre se arranja de modo que o sol
dado da escolta (em geral um recruta) de nada desconfie.
claro que, para come ar, o for ado estuda bem a psico
logia do soldado; leva farribem, em confa a hora e o local
da sua tarefa. Se, por exemplo, e foguis+a na olaria, trepa
no for= quem e que vai enxergar o que ele esta fazendo?
Quando volta ao presidio, fraz sempre na mão uma moeda
de quinze ou vinte copeques, para ado ar os possiveis ri
gores do cabo da guarda que esta ao portão, e e encarre
gado de examinar os presos que reforriam do +rabalho, antes
que Nem entrada no recinto da fortaleza. O portador de
vodca espera que não lhe inflijam a vergonha de apalpa-lo
minuciosamente em certos lugares - mas acontece, as
vezes, que um cabo mais insistente va direto aqueles ditos
lugares e descubra o contrabando. Resta então uma derra
deira esperan a ao desgra ado: as escondidas do soldado
da escolta, enfia na mão do cabo a moeda que trazia
consigo. Essa manobra quase sempre lhe permite penetrar
sa . o a salvo no presidio. Algumas vezes, porem, o negocio
acaba mal: ele então +em que contar com o seu Ultimo capital
- isto 6. as costas. Faz-se um relaforio ao maior. a oifa-se
impiedosamonfr, o capitel, e confisca-se o corpo de de';+o.
I
#

56
DOSTOIEVSKI
Nesses casos, o contrabandista assume 'toda a responsabili-
dade e evita cuidadosamente denunciar o botequineiro, não
que receie ficar deshorirado pela dela ão; mas simplesmente
porque aquela dela ão de nada lhe servir . Sera fustigado
do mesmo modo e seu unico consolo sera ver o negociante
apanhar ao seu lado. E, afinal de contas, ainda precisa do
patrão, embora, segundo os usos e o contrato previamente
feito, não fenha-o carregador direito a indeniz 3 1
pelos a oites recebidos.
A 1:'
-,, o a guma
Issima.
as, as aeia Ses são no presidio ~cousa comuni *
O delator não e objeto de nenhum desprezo, não provoca
nenhuma indigna ão, ninguem o evita, pelo contrario, e ate
uma amizade procurada. Se alguem tentasse mostrar aos
for ados quanta vilania ha numa dela ão, eles decerto não o,
compreenderiam. Aquele ex-fidalgo, s6rdido e viciado, com
quem rompi rela ões desde o primeiro dia, era amigo de
Fedka, a ordenan a do maior. Servia-lhe de espião e Fedka
contava ao comandante tudo o que o outro lhe comunicava.
Ninguern ignorava -esse fato. nunca entretanto um dos presos
cuidou em castigar esse canalha, nem mesmo em lhe fazer a
menor censura.
Mas eis-me de novo afastado do meu assunto. Quando a
aguardente infroduzida sem trope os, o negociante se apo-
dera das +ripas cheias, paga os contrabandistas e p6e-se a
fazer c lculos. Considerando que a mercadoria lhe sai
muito cara, acha justo aumentar um pouco os seus futuros
lucros, acrescenta rido-lhe mais uma boa por ão de agua.
Depois de tudo pronto, espera, --rifão, a freguesia. No do-
mingo seguinte, ...s vezes mais cedo, o cliente se apresenta
sob a forma dum detenfo que trabalhou varios meses como
um boi de canga e reuniu vinfem por vinfem o dinheiro ne-
cessario aos seus prazeres. J h muito tempo, durante o
sono, durante o trabalho, o miseravel pensa, encantado, na-
quele dia. A id ia da festa em perspectiva o ampara afra-
ves da dureza da sua vida. Enfim, acaba de luzir a aurora
da data festiva, e como o dinheiro junto nSo foi roubado nem
confiscado'. enfrega-o ao bofequineiro. O negociante lhe
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
#

57
serve o vodca, do mais puro que e POssivel, - isto e, batiza-
do apenas duas vezes; mas ... medida que se esvazia a garrafa,
vai enchendo-a com agua. Nessas condi 6es, como a dosa
e paga cinco ou seis vezes mais cara do que nos botequins
de verdade, e facil de conceber quanto e preciso beber,
quanto dinheiro mister gastar, para chegar a embriaguez.
Entretanto, dada a falta de h bito e a abstinencia anterior,
o for ado se embebeda muito depressa, mas, em geral, con-
finua a.beber ate não ter mais um real consigo. Então,
como o bofequineiro tambem exerce a usura, o aniversariante
empenha toda a roupa; em primeiro lugar a sua linda blusa
nova, depois os trapos velhos, enfim os objetos que recebeu
do governo. Bebido afinal o derradeiro farrapo, o "espon-
ja" se deita, e quando no dia seguinte se levantar com a
inevifavel ressaca, pedira -em vão ao botequineiro que lhe
arranje uma gota de vodca para lhe corrigir o mal-estar.
Então, tristemente, +era que suportar os seus inc"modos, e
voltara inconfinen+i ao trabalho. "E de novo vai se matar
durante meses, com vivas saudades daquele dia feliz. Pouco
a pouco no entanto se reanimara, esperara outro dia seme-
lhante, ainda longinquo, talvez, mas que acabara afinal por
nascer.
Quanto ao bofequineiro, depois de fazer fortuna - al-
gumas dezenas de rublos - prepara uma ultima provisão
de vodca - sem batismo, dessa vez - porque e destinada
a si proprio. Basta de negocios, agora +em direito de se di-
verfir. E come a então a fes+an a, bebida, comida e mUsica.
'Ele +em dinheiro, pode comprar a aquiescencia das autorida-
des subalternas. A festa dura, as vezes, alguns dias. Note-se
que a provisão de vodca depressa e esgotada; ele, então, vai
procurar os colegas, que ia o esperavam, e continua a beber
enquanto tiver uma moeda no bolso. A despeito da vigilanc¡a
dos defen+os, acontece as vezes que um dos bebedos caia
sob os olhos do maior ou dum oficial: levam-no então ao
corpo da guarda, confiscam-lhe o dinheiro, se ainda traz al-
gum consigo, e, finalmerte, passam-no pelas varas. Ele sofre
6
I
#

58 DOSTOIEVSKI
o castigo, ergue-se, sacode-se, volta a caserna a dentro de
poucos dias reforna o seu oficio de bofequineiro. Encon-
fram-se, as vezes, enfre esses dissipadores, quero dizer, enfre
os ricos, alguns apreciadores do belo sexo. Por um bom cli-
nheif o galã em perspectiva corrompe o soldado da escolta,
e ambos, em vez de se encaminharem ao trabalho, tomam
as escondidas por um carreiro isolado. La, nalgum cantinho
sossegado, nos fins da cidade, então a festa e grossa e os
copeques correm sem conta. O dinheiro de um pneso não
mais sujo do que o de outro qualquer homem, alias, o sol-
dado da escolta e +ambem um candidato aos trabalhos for-
ados. Com o dinheiro tudo se arranja, e essas sortidas são
em geral mar¡ficias secretas. preciso, entretanto, confes-
sar que custam caro e são raras. Os amantes do belo sexo
+em outros necursos menos dispendiosos.
No inicio do meu tempo de presidio, um jovem cle+enfo
muito simpatico, chamado Siro+kine, me desper+qu particular-
menfe a curiosidade: parecia enigmafico a muitos respeitos.
A beleza do seu rosto me impressionara. Não devia fer
mais de vinte e fres anos. Como fazia parte da se ão es-
pecial, tinha que ser considerado um criminoso da pior es-
peci.e. Calmo, delicado, falava pouco e raramente sorria.
Tinha os olhos azues, fei ões regulares, a pele alva, e os ca-
belos dum louro acinzen+ado. A cabe a meio raspada não
o afeiava, tão bonito -era o homem. Não tinha nenhuma
profissSo, porem quase sempre dispunha de dinheiro, em pe-
quenas quantidades. Insigne pela pregui a, Sirofkine não se
preocupava com os +raios; mas se, por acaso, alguem lhe dava
de presenfe uma blusa varmelha, por exemplo, o rapaz nao
escondia o seu prazer, e ia se exibir por todo o alojarnen+o.
Não bebia, não jogava, não brigava quase nunca. Passeava,
as vezes, por +r is das barracas, com as mãos nos bolsos,
franquila a pensativamente. Em que pensaria? Se o cha-
mavam, se lhe faziam uma pergunta, respondia logo com uma
especie de deferencia pouco comum ali; e o fazia com ai-
gurna's palavras rapidas, sem tagarelice inufil, fixando na
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS 59 i
1
gente o olhar de uma crian a de dez anos. Se t¡nha algum
dinheiro, não adquiria nada ufil; não mandava remendar o
casaco, nao comprava botas novas: comprava kalOchi ou pão
doce, que devorava como um garotinho. E os outros for-
ados lhe diziam: "Ei, Sirofkine! coitadinho do orfão de
Kazan!" (2)
Nas horas de folga, aquele desocupado solifario vaguea-
va duma caserna a outra, enfre os companheiros entregues
#

aos seus oficios particulares. Quando qualquer um lhe atirava


uma zombaria, e faziam muita tro a dei-e, Sirofkine dava meia
volfa sem responder e tocava para outro alojamento; as
vezes, quando a pilheria era por demais feriria, ele corava.
E eu perguntava a mim propric, que crime feria cometido
aquele mo o pacifico e simples. Durante uma das minhas
estadas no hospifal, tive Sirofkine como vizinho de leito. E,
certa ocasiSo, ele se animou, contou como haviam feito de
si um soldado, como sua mãe o acompanhara chorando, os
formenfos que sofrera no batalhão. Nunca se p"de habi-
fuar a vida de quartel por causa da rispidez dos chefes,
sempre desconfenfes com os seus servi os.
E depois? perguntei. Que foi que +e trouxe aqu¡?
E para a se ão especial, ainda por cima ... Ah, Siroffine,
Sirofkine!
- verdade, Alexancir Pe+rovi+ch, passei apenas um
ano no batalhão. E estou aqui porque matei Grigori Pe-
frovi+ch, meu capitão.
- Esfou ouvindo, Siro+kine, contudo não acredifo no que
dizes. Então e mesmo verdade que mataste um homem?
- verdade, Alexandr Pe+rovi+ch;,eu ia nSo podia mais.
- Mas todos os outros recrufas se acostumam.
claro que o come o e dificil, porem a gente se habitua e
acaba sendo um bom soldado. Tua mÇe foi que +e es+ra-
gou: criou-f com pão de 16 e doce de leite a+ aos dezoito
anos.
(2) Siroffine deriva de sirota, orfão. A expressão "orfão de Kazan", que tem
uma origem hist¢rica, designa ordinariamente os falsos pobres. (N. de '. 1.
1v1 )
i
#

'60 DOSTOIEVSKI
- verdade que minha mãe gostava muito de mim
Quando fui ser soldado, ela caiu de cama, e segundo me con-
+aram, nunca mais se levantou ... E eu não podia mais. O
capitão finha-me +ornado odio, casfigava-me o tempo lodo.
E porque? Eu obedecia ' a quem me mandava, cuidava do meu
o tinha vicios, porque, va
servi o, não bebia, nã ia bem, Ale
xandir Petrovi+ch, e muito ruim um homem +tr vicios. Todo
o mundoera malvado e eu não linha ninquem com quem desa-
bafar meus desgostos. As vezes metia-me num canto para
chorar a vontade. Um dia, finham-me posto de sentinela,
junto ao dep6sifo de armas. Soprava um vento de outono e
a noite estava tão escura que não se enxergava dois dedos
diante dos olhos. Ah, que agonia me apertou o cora ão,
que agonia! De repente, +irei a baioneta da arma, deifei-a
ao meu lado, descalcei a bofina do pe direito, e apertei, o
gatilho com o dedo grande. Mas o tiro falhou! Examinei
o fuzil, pus carga nova de polvora. a'Iei+ei a pederneira, e
novamente encosfei o cano ao peito. Que houve, outra
vez? A polvora queimou. porem o tiro não saiu ... Calcei a
bola, ajustei de novo a baioneta, e continuei a dar guarda,
calado. Foi nesse momento que me resolvi a acabar: mil vezas
a Siberia que aquela vida desgra ada! Depois de meia hora
o capitão que fazia a ronda caiu-me em cima: "En+ão, e
assim que se faz sentinela?" Pequei o fuzil e enterrei nele a
baioneta ale ao punho. Recebi por isso quatro mil a oites
e me mandaram para a se ão especial ...
Não estava mentindo. Mas por que o haviam mandado
para a se ão especial? Em geral esse crime provoca um cas-
ligo menos severo. Entre os quinze individuos que formavam
aquela sec ão, Sirofkine era o unico de bela aparencia. Sal-
vo duas ou tr s caras mais ou menos +oleraveis, os outros
todos davam medo de olhar: orelhas compridas, cabanas,
fei ões medonhas, roupa em desordem. Havia, entre eles,
algumas cabe as brancas. Se as circunstanciais o permiti-
rem, falarei detidamente sobre essas homens.
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS 61 i
,P
Sirotkine era grande amigo de Gazine, o qual no inicio
deste capitulo vimos entrar cambaleando na cozinha, com
o fim £nico, pelo que parecia, de destruir as id ias que eu
anteriormente formara acerca do presidio.
Aquele horrendo individuo provocava em todos uma im-
pressão de angustia e pavor. Sempre me pareceu impossivel
encontrar criatura mais feroz, mais abominavel. Vi em To-
boisk o bandido Kameniev, cujos crimes são celebres. Vi de-
#

pois o desertor Sokolov, medonho matador lambem. Mas


nem um nem outro ma inspirou +amanha repugnancia como
Gazine. Parecia-me, ...s vezes, que estava ... frente de uma
aranha enorme, gigantesca, do +amanho dum homem. Era.
um +artaro cuja for a monstruosa ultrapassava a de lodos
os outros for ados. Estatura acima de mediana, com mus-
culos de Hercules, cabe a disforme, desmesurada, caminhava
com as costas arredondadas em corcunda e os olhos no chão.
Corriam estranhas hisf6rias a seu respeito: sabia-se que vinha
do exercito. mas alguns de+en+os pretendiam, com ou sem l
razão que ele se evadira de Nertchinsk (3) ' deportado para 'i
a Siberia mais de uma vez, conseguira fugir e trocar de nome,
para acabar finalmen+a na nossa se ão especial. Contava-
se lambem que ele se divertia outrora em massacrar crian- il
cinhas: arrastava-as para um lugar propicio, aformentava-as,
martirizava-as, e depois de lhes gozar amplamente o pavor,
o panico, ma+ava-as lentamente, deliberada mente, saborean-
do o seu prazer. Tudo isso talvez fossem apenas contos de
carochinhas, engendrados pela desagradaval impressão que
Gazine provocava em todos nos, mas aquelas inven ões se ca- 1
savam bem com os seus modos, com a sua cara. Entretanto,
quando ele não estava b bedo, portava-se de maneira muito
razoavel. Imperturbavel sempre, sem procurar brigas com
n¡nguem, evitando disputas, parecia desprezar os companhei-
ros e se considerar muito acima deles. Pouco loquaz, ou
(3) Cidade da Transbaikalia, dentro da região mineira para onde eram depor
ta-
dos os for ados da primeira categoria. (N. de H. M.)
I
#

DOSTOIEVSKI
antes, intencionalmente taciturno. Seus movimentos eram
lentos, +ranquilos, determinados: os olhos traiam intelig ncia
e astucia exf raordina rias, e o rosto, o sorriso, tinham uma ex-
pressão uniformemente arrogante, escarninha, cruel. Era um
dos mais ricos bofequineiros do presidio-, contudo, duas vezes
por ano bebia a larga e mostrava a luz do sol a bestialidade
da sua natureza. Quanto mais se embriagava, mais assaltava
os outros com zombarias mortifican+es, sabiamente calculadas,
e que pareciam preparadas com grande antecedencia. Che-
gando- ao paroxismo da embriaguez, ficava furioso, apanhava
uma faca e se atirava aos deten+os. Conhecendo-lhe a for a
prodigiosa, eles fugiam dele e se escondiam, pois Gazine ata-
cava todos que lhe calam nas mãos. Mas depressa conse-
guiam meios , de o dominar. Uma dezena de homens se pre-
cipifava sobre ele, moia-o de pancadas no peito, no ven-
tre, por sobre o cora ão, no es+âmago: não se poderia ima-
ginar cousa mais cruel. E isso ate que ele ficasse desacor-
dado. Era tratamento que mataria qualquer outro que não
fosse Gazine, mas com ele não havia esse risco. Depois da
pancadaria, enrolavam-no na sua pele de carneiro, e o deita-
vam na tarimba. "Deixa esse malandro cozinhar agora o v , odca
que bebeu!" No dia seguinte, com efeito, ele se levantava
quase curado, e ia para o trabalho, com a cara fechada, em
silencio. Cada vez que Gazine se divertia, todos sabiam co-
mo o seu dia iria terminar. Ele fambem o sabia, contudo se
embriagava da mesma maneira. Alguns anos se passaram
assim; afinal, regisfrou-se uma mudan a em Gazine: queixava-
se de toda especie de doen as, emagrecia visivelmente, fre-
quenfava cada dia mais o hospital . . . "Esta dando baixa!"
diziam dele os defentos.
No dia de minha chegada, Gazine entrou na cozinha
enquanto eu ainda estava Ia, seguido pelo s6rdido polaco
ra.boquista que os b bedos contratavam para lhos completar
.os Prazerps. Defeve-se no meio da pe a, e encarou em
silencio todos que 16 se encontravam. Avistando-me por
fim junto ao meu camarada, fixou em n6s'um olhar escarninho,
#

RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS


AW
.i
65
cruel, e com o sorriso satisfeito de alguem que preparou uma
boa pilheria, aproximou-se a cambalear da nossa mesa.
- Sera ousadia perguntar se os seus rendimentos lhes
permitem beber cha, aqui?
Troquei um olhar com o meu vizinho; compreendernos
ambos que seria melhor ficarmos em silencio. A prime¡ra
contradi ão o furor do ebrio se desencadearia.
- Então t m dinheiro? continuou ele. T m uns bons
cobres, heiri? Mas, digam uma cousa, foi para tomar cha-
zinhos que vieram para a Siberia? Respondam-me, seus fi-
lhos da ...
I
Vendo-nos resolvidos a não lhe dar resposta, a não lhe
prestar nenhuma aten ão, ele ficou rubro e p"s-se a tremer
de furia. Descobriu ao seu lado, num canto, uma pesada
tabua na qual arrumavam os peda os de pão destinados ...
nossa comida. Tinha +amanho suficiente para conter as ra-
ões de metade dos presos: naquele momento estava vazia.
Gazina agarrou-a com as duas mãos, brandindo-a sobre as
nossas cabe as. Mais um instante e nos quebraria o cranjo.
Uma morte, ou tentativa de mor+e. provocava sempre os
maiores aborrecimentos: inqueri+os, buscas, severidade redo-
brada. Por isso tinham os detenfos o maximo interesse e
cuidado em evitar +ais excessos. Entretanto, nenhum se me-
xeu! Nem uma voz se elevou para nos defend2r: nem um
rito se ergueu contra Gazinei O oclio de todos contra os
harinesera +ão intenso, que se alegravam ao v -los em perigo.
Mas a cousa assumiu um aspecto inesperado: no momento
em que Gazine ia abater a +abua, alguem gritou da porta:
- Gazinei roubaram o +eu vodca!
O +ar+aro deixou cair a +abua no chão, e se precipitou
como um louco para fora da cozinha.
- Foi Deus que salvou aqueles dois! disseram entre si
os outros: e durante muito tempo ainda repetiram a afirma ão.
Nunca pude saber se o roubo do vodca foi real, ou se
o simularam para nos salvar.
I
#

66 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA


CASA DOS MORTOS 67
Nessa noite, anfes do fechamento das casernas, fui pas-
sear ao longo dos muros, dentro da escuridão crepuscular.
Uma pesada tristeza me esmagava a alma, uma frisfeza tão
.grande que durante toda a minha estada no presidio, jamais
sen-ri outra igual. O primeiro dia de in+ernamenfo e par-
ficularmenfe doloroso de suportar, seja numa prisão, num quar-
fel ou num pres¡dio. Mas. se bem me lembro, eu ia ruminava
um problema que me atormentou sem descanso durante todo
o per¡odo da minha reclusão, problema que ainda hoje me
parece em parte insoluvel, - isto e, a desigualdade do cas-
tigo para crimes similares. Porque, na verdade, nenhum cri-
me e inteiramente semelhante a outro. Velamos por exem-
plo dois assassinatos: pesaram-se todas as circuns+ancias e
se infligiu aos dois culpados um castigo quase id nfico, ape-
sar das diferen as muito sensiveis que existem enfre am-
bos. Um deles, profagonista de uma lenda que corre enfre
os for ados, matou a-toa, por um nada, por uma cebola:
emboscado na estrada, assassinou um pobre-diabo que passa-
va, e não lhe enconfrou nos bolsos senão uma m¡sera cebola.
"Ai, paizinho, tu me mandaste chamar! matei um cristão e
e so achei com ele uma cebola!" - "Idiota! lhe diz o demo-
nio, uma cebola vale um copeque; cem almas sSo cem ce-
bolas! E cem cebolas s3o um rublo!" ( assim que reza a tal
lenda). O outro mafou um libertino fir nico para salvar a
honra da sua noiva, da sua irmã, da sua filha. Um terceiro,
servo fugitivo, meio morto de fome, falvez, matou um dos
policiais atirados em bando a sua persegui ão; matou para
defender a liberdade e a vida. Aquele outro, por simples
divertimento, degola criancinhas, e goza um prazer intenso
ao lhes sentir o sangue +epido correr nas mãos; da-lhe prazer
o pavor delas, da-lhe prazer a sua derradeira convulsão da
pombinhos sacrificados! Entretanto, uns e outros são pu-
nidos com a mesma pena. Ha realmenfe uma variante na in-
+ensidade do castigo - mas essa variante e muito precaria
em rela ão ... diversidade na mesma especie de crimes. Tan-
tos quantos forem os caracteres, tantas serão as diferen as.
Hão de me objetar que seria dificil aplainar essas diferen as,
que elas representam um enigma quase tão insoluvel como
a quadrafura do circulo. Pois concordemos com essa desi-
gualdade, passemos a examinar outra desigualdade: a das
consequencias do castigo. Um dos condenados se consome,
derrefe-se como uma vela; outro, não desconfiara nunca que
houvsse no mundo vida tão divertida, grupo tão agrada-
vel deespl nclidos carriaraclas; porque, no presidio, ate gente
com esses sentimentos se enconfra. Outro defen+o, homem
cultivado, presa dos remorsos de uma conciencia requinfacla,
torturado por sofrimentos morais diante dos quais emo.ali-
dece qualquer outro castigo, inflige ao seu crime um jul-
#

gamen+o muito mais implacavel do que aquele com o qual a


mais severa das leis o poderia punir. E o outro ao seu lado, nem
por um segundo, durante toda a pena, se preocupara com o
crime cometido: acha mesmo que agiu com a raz3o. Alguns
chegam ate a executar um crime unicamente para terem aber-
tas as portas do presidio, e se desembara arem assim c19
uma exisfencia muito pior. Em liberdade, o desgra ado vi-
via talvez na mais torpe miseria, não comia nunca o suficiente
para matar a fome, trabalhava ...s ordens de um patrão da ma-
drugada a noite. No presidio, o labor e menos pesado, o
pão mais abundante e de m-elhor qualidade, come-se carne
aos domingos -e dias de festa, recebem-se esmolas, pode-se
ganhar alguns cobres. E que companheiros! Gente esperfa,
habilidosa, que sabe tudo. Com efeito, um desses desgra-
ados a que aludo, encara os coLegas com admira ão respei-
fosa; nunca viu gente igual, considera-os a nata da humani-
dade! ... Concebe-se, pois, qua se imponha o mesmo casf*,go
a pessoas tão diferentes? Mas que adianfa nos preocupar-
mos com ptoblemas sem solu ão! O tambor esta rufando, e
preciso entrar no alojamenfo.
I
#

IV
Primeiras impressões
(continua ão)
t
come ou-se a ultima chamada, depois da qual se aferrolha-
ram as casernas, cada uma com um cadeado especial,
e os presos ficaram trancados aos grupos, at o arria-
nhecer.
A chamada era feita por um sub-oficial e dois soldados.
Algumas vezes o oficial da guarda a assistia, e os for ados
se enfileiravam então no pat¡o. Mas, em geral, o controle
era realizado sem nenhuma cerimonia, nos alojamentos. E
assim sucedeu na primeira noite depois da minha chegada.
Os encarregados da contagem muita vez se enganavam nos
n£meros: e logo que sa¡am, tinham de voltar para nova
chamada. Nessa noite, tendo afinal os pobres vigilantes afin-
gido o numero preciso, fecharam definifivamente a caserna.
#

70 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA


CASA DOS MORTOS 71
A nossa continha uns trinta for ados, estropiados de cansa o, hom
em vivo: um for ado, seja ele quem for, pode conservar
deitados com bastante aperto nas tarimbas. Ainda era seus sentimentos, se
u desejo de viver, sua sede de vingan a,
mito cedo para dormir. Cada um parecia ter necessidade
todas as suas paixões, junto com a necessidade imperiosa
de uma ocupa ão qualquer. Não ficava conosco outro vi- de as
sa+isf...zer. Noenfanto, repito-o, e errado teme-lo. Um
a
gilante alem do invalido a que ia me refer¡. Cada aloja-
homem não se atira assim +ão rSpida e facilmente
sobre ouL
mento contava tambem com um "moni+or" escolhido pessoal-
o
+ro, com a faca na mão:
esses acidentes s' em raros casos
mente pelo maior, em aten ão a sua boa conduta. As vezes,
se produzem, e deve-se portanto convir que o
perigo e ne-
contudo, esse moni+or cornefla as suas faltas e era a oitado,
nhum. Não me refiro, e claro, senão aos for ados
ia em
demitido, substi+uido. , iExercia o cargo, então, Akim Aki-
cumprimento de pena, entre os quais
muitos se sentem no
k
mitch, que, para grande surpresa minha, ralhava a vontade
presidio como num porto seguro, e estão prontos a
viver
com os presos. Estes, em geral, lhe respondiam com pilhe-
kali em sossego e submissão (tão grande e o
atrativo que pode
rias. Mais prudente que Akim, o "nevalido" não se envolvia
ter uma vida nova); e os proprios turbulentos
depressa são
com coUsa alguma; se chegava a dizer uma palavra, era .3n+es
aquietados pelos companheiros, porque o rriais
audacioso e
por descargo de conciencia. De c¢coras na tarimba, remen-
o mais insolente dos gales se assusta com um nada.
Quanto
dava em silencio umas botinas velhas. Os for sdos não lhe
ao criminoso que ainda não recebeu o seu castigo.
o caso
prestavam a minima aferi ão. outro; este pode muito be
m atacar sem motivo qualquer
Nesse dia fiz um reparo cuja exatidão pude constatar
pessoa, na vespera da fus+iga ão, afim de criar
novo caso
mais +arde. Todos que tratam com os defentos, a come ar
e retardar a hora fatal. A agressão +em uma causa,
um fim:
pelos vigilantes, adotam em rela ão a eles uma atitude falsa:
e preciso fazer com que a sorte derive, de
qualquer maneira.
dão a id ia de que estão se arriscando a receber uma facada,
e o mais rapidamente possivel. Conhe o ali s a
esse respeito
a todo instante e por da ca aquela palha. Os for ados
um caso de psicologia bastante estranha.
se apercebem muito bem do medo que inspiram, o que lhes
Havia na se ão militar um for ado
condenado a dois
a ula as bravatas. Entretanto, o melhor chefe e justamente
anos de presidio sem priva ão dos direitos civis.
Tra+ava-se,
aquele que não os teme, e os presos s¢ se sentem a vontade
de um fanfarrão odioso, um nofabilissimo covarde.
Em ge-
quando despertam confian a. Pode-se ate, por essa manei-
ral a fanfa,rronada e a covardia s¢ raramente se
encontram
ra, lhes conquistar a afei ão! Durante a minha deten ão, a
no soldado russo, sempre tão ocupado que rem para
gabo-
verdade e que raramente um dos chefes enTrou na peni+en-
lices +em tempo. Contudo, quando se descobre algum
#

dessa
ciaria sem escolta, e quando isso acontecia, era de ver-se a
especie, e quase sempre um covarde integral.
Depois de cum-
estupefa ão dos nossos! Ali s, esses visitantes infrepidos
prir pena, Du+ov - assim se chamava
o defen+o - voltou ao
conquistam sempre o respeito dos homens, e se realmente
seu batalhão. - Acon+ecera-lhe o
mesmo que a todos os.seus
uma desgra a devesse acontecer, não seria na sua presen a.
colegas que são mandados a prisão afim de se
corrigirem:
O medo que o gale inspira e universal. Todavia não com-
voltam de 16 infinitamente mais
pervertidos. E, alguns deles,
preendo em que se baseia. Provem decerto da cara do pre-
ap¢s no m ximo umas duas ou +r s semanas de
liberdade,
so, do seu renome de facinora. E depois, toda criatura que
+ornam a ser julgados e s5o devolvidos ao
presidio, mas dessa
visita um presidio sente que aquele mon+ão de gente não
vez va . o para a se ão dos
re;nciden+es, por quinze ou vir+e
esta ali por seu gosto, e que por mais que se +ornem medidas
anos. Assim acon+eceu com Du+ov. Cerca de +res
semarias
de precau ão, ninguern pode transformar em cadaver um
ap¢s sua liberta ão, cometeu um roubo com
violencia, d~)i_i
#

72 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA C


ASA DOS MORTOS 73
esc ndalo, revoltou-se. Condenaram-no a severa puni ão
corporal, cuja perspectiva o apavorou. No ultimo momenfo,
na vespera do dia em que deveria passar sob as chibatas
da sua companhia, o condenado agrediu com uma faca o ofi-
cial da guarda, no instante em que este penetrava na cela
dos defenfos. Dutov decerto compreendia muito bem que
o seu ato lhe agravaria muifissimo c caso. Mas precisava
de qualquer modo adiar por alguns dias, por algumas horas
ao menos, o pavoroso momenfo do castigo. Era- tão covarde
que não chegou sequer a ferir o oficial; apenas fingiu a agres-
são com o unico fifo de perpefrar novo crime, que lhe pro-
porcionaria novo julgamento.
O minufo que precede a execu ão e evidentemente pa-
voroso. Durante os meus anos de presidio tive ocasião -de
ver inumeros condenados na v spera do dia fatal. Em geral
enconfrava-os no hospital, no pavilhão dos presos, onde eu
+ambem ocupava um leito, doente, - cousa que me aconfe-
cia com grande frequencia. Em toda a Russia os prisioneiros
sabem que a compaixão dos m dicos não lhes permite consi-
derar os for ados diferentes dos outros homens, como em
geral faz a maioria das pessoas, exce+uando-se a gente hu-
milde. Nunca um homem do povo censura qualquer cousa
a um for ado: por mais horrendo que seja o seu crime, ele o
perdoa pensando no castigo que aquele homem sofre, e por
causa da sua "desgra a". . . Não e a-+oa que o povo chama
ao crime uma "desgra a" e ao criminoso um "desgra ado".
Essa expressão profundamenfe cara+eristica tem importan-
cia maior precisamente porque e inconciente, instintiva.
Quanfo aos m dicos, representam realmenfe em muitos casos
a providencia dos gales, sobretudo para aqueles que ainda
não receberam o seu castigo, - categoria submetida a um
regime muifo mais tevero. Quando v aproximar-se o dia
em que ser executada a senten a, o condenado frequente-
menfe se declara enfermo, na esperan a de afastar, por qual-
quer pre o, o ferrivel momento. Quando o devolvem da
enfermaria, ele espera com toda a cerfeza receber os a oites
na manhã seguinfe; e por isso manifesfa uma agita ão fre-
menda. Alguns, por amor proprio, procuram escond -la, mas
a jactancia desajeitada que exibem
não engana os companhei-
ros. Todos compreendem o que o agita, e ficam calados por
compaixão. Conheci um jovem soldado, assassino, condenado
ao numero m ximo de a oites. Tão grande era o seu medo,
que resolvera beber uma tampa de gamela cheia de vodca,
onde pusera rape de infusão. Alias, o condenado sempre
bebe bastante aguardente antes da execu ão do castigo.
Obtem vodca com grande antecedencia, mesmo a pre o
exorbitante; privar-se-a do indispensaval durante seis meses,
economizara custe o que custar afim de comprar um quar-
#

filho de aguardente que h de beber quinze minutos antes


da execu ão. Estão convencidos os presos de que o homem
b bedo sente com menos intensidade as pancadas das varas
ou do knuf.- Mas volto a minha hisforia. Engulido o vodca,
* pobre rapaz adoeceu de verdade: leve uma hemorragia
* o transportaram ao hospital quase inanimado: o v"mito
de sangue por tal forma lhe devasfou o peito que a t¡sica
não tardou a se declarar e ele morreu ao cabo de seis meses.
Os m dicos que o trataram nSo souberam nunca qual fora a
causa da sua molesfia.
Ao lado dessa falta de coragem diante do castigo, cri-
confram-se +arribem, devo diz -lo, casos assombrosos de in-
trepidez. Ao escrever isto, penso em certos gestos de atire-
vimenfo vizinhos da insensibilidade, gestos menos raros que
o que se pode supor. Posso cifar especialmente certo
bandoleiro, o famoso deserfor Orlov. Num dia de verão,
espalhou-se o boato de que ele seria castigado a noite, e que
depois da execu ão o levariam ao hospital. Os doentes
1
garantiam que Orlov seria a oitado sem do. Todos se mos-
travam mais ou menos febris, de tal modo que foi com enor-
me curiosidade que fiquei a espera daquela celebridade do
crime. Ja ha muito tempo ouvia contar casos inauditos a
seu respeito. tEsse facinora deespecie rara trucidava friamen-
te velhos e mo os; dotado de exfraordinaria for a de von-
fade, tinha o orgulho e a conciencia dessa for a. Depois de
7
#

74
DOSTOIEVSKI
confessar um grande numero de assassinios, viu-se ele con-
denado aos a oites.
Ja ficara escuro, e ia estavam acesas as candaias quando
o trouxeram quasa desacordado, o rosto livido sob a grenha
espessa, cacheada e negra como pixe. As costas em carne
viva estavam inflamadas, roxas. Durante toda a noite os
companheiros se ocuparam dele, mudando-lhe as, compressas,
virando-o dum lado e de outro, dando-lhe uma po ão, como
se se tratasse dum parente pr¢ximo ou dum benfeitor. No dia
seguinte o homem recuperou toda a lucidez, e deu uma ou
duas voltas pela sala. Aquilo me surpreendeu: ele recebera
duma so vez a metade do castigo, pois o m dico suspendera
a execu ão quando se convencera de que lhe poderia pro-
vocar um desenlace fatal. Entretanto Orlov era de baixa
estatura e seu estado geral fora debiWaclo pela longa deferi-
ão. Como todos os condenados ao a oite, tinha a cara
livida, exhausta, esgotada, e o olhar febril. Contudo, rapi-
damente melhorou; evidentemente a sua alma energica aju-
dava a natureza. Não, aquele homem não era uma criatura
ordinaria. A curiosidade me impeliu a conhec -lo melhor, e
o estudei durante uma sernaria infeira. Posso afirmar que
nunca, em minha vida, ericontrei cara+er de melhor ' t mpera,
mais inflexivel. Avisfei-me em Tobolsk com uma celebridade
da mesma especie, Koneniev, verdadeiro animal feroz; bas-
tava olh -lo e, mesmo sem o conhecer, a gente adivinhava
naquele homem uma criatura monstruosa. Mas na sua es-
+Upida ausencia de alma, senfia-se logo ao primeiro olhar q-je
a maferia dominava ali. Aquele hornem não sentia nada
alem da sede dos apetites fisicos, a sensualidade, a luxuria.
Tenho a certeza de aquele Koreniev, capaz de degolar um
homem sem pestanejar, desmaiaria e tremeria de medo diante
do knuf. Orlov, ao contrario, encarnava a vitoria do espiri+o
sobra a carne: podia dominar-se ate o fim, desprezava todos
os tormentos e todas as puni ões, não temia absolutamente
nada. Emanava de si uma energia sem limites. Senfia-se ne-
le uma sede de vingan a e uma atividade inabalavel para
atingir os seus fins. Seus modos estranhamente altivos, que
#

RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS


I
**%e
i
77
nada tinham de proposital, que lhe eram naturais, me deixa-
ram at"nito. Creio que ninguerri no mundo o poderia in-
fluenciar. Considerava as cousas com a placidez das cria-
turas as quais nada espanta. Admitindo claramente que to-
dos os defentos o respeitassem, nunca entretanto se jactou
ante eles. Todavia, a fatuidade, a gloriola, são naturais em
quase todos os for ados. Era inteligente e de uma estranha
franqueza, embora pouco loquaz. As minhas perguntas res-
pondia sem rodeios que esperava curar-se para sofrer o resto
da pena, e que de inicio receara não a poder suportar.
"Agora, acrescentou com um piscar de olhos, a cousa esta
liquidada. Aquento o resto dos a oites e logo depois man-
dam-me para Ner+chinsk, e em caminho fujo - fujo com toda
certeza! Contanto que minhas costas cicatrizem depressa!"
E durante cinco dias ele esperou com avidez o momento
de partir. Mos+rava-se em geral muito alegre e de muito
bom humor. Tentei levar a conversa para as suas aventuras:
e, embora franzisse um pouco o cenho as minhas perguntas,
ele sempre respondia abertamente. Entretanto, quando des-
cobriu que eu lhe sondava a conciencia para descobrir nela
algum sinal de arrependimento, olhou-me com um ar tão al-
+ivo, de tanto desprezo, que me senti diante dele como um
garoto estUpido com o qual a gente não se da ao trabalho de
discutir. Lia-se no rosto do homem uma especie de compai-
xão por mim. Um minuto mais tarde -ele dava gargalhadas,
de todo o cora ão, sem a menor ironia, e tenho a cerfeza de
que mais de vez, recordando minhas palavras, ha de ter rido
sozinho. Enfim, sem esperar que suas costas estivessem com-
pletamente cicatrizadas, reclamou o resto da pena. Eu +am-
bem tivera alta, nessa data. Saimos juntos da enfermaria,
eu para a caserna, ele para o corpo da guarda, onde ia o
tinham prendido antes. Deixando-me, aper+ou-me a mão. o
que, de sua parte, era um sinal de alta confian a. Creio
que agiu assim porque estava naquele momento muit¡ssimo
satisfeito consigo proprio. Na realidade, deveria necessa-
r¡amenfe me desprezar, encarar-me como uma criatura ven-
#

78 DOSTOIEVSKII
cida, fraca, lamenfavel, inferior a -ele em todos os respeitos.
E logo no dia seguinte recebeu a outra metade da puni ão ...
Depois de fechada, a nossa caserna +ornava imediata-
mente outro aspecto: a de uma verdadeira moradia. S¢
então eu podia ver os defen+os a vontade, como se estives-
sem em casa. De dia os sub-oficiais, os vigilantes, ou qual-
quer outro chefe poderia aparecer de repente; e por essa
razão todo o mundo ficava mais ou rrienos alerta, todo o
mundo vivia num estado de expectativa perp#+ua, numa espe-
cie de inquieta ão latente. Mas, assim e fechavam a
porta, quase todos procuravam o seu lugar e se entregavam
ao trabalho. O alojamento se iluminava de sUbi+o: cada um
tinha a sua vela, presa num casti al. de madeira. Um fazia
bofinas, o outro costurava roupas. O ar confinado ia ficando
sempre mais irrespiravel. Um grupo de jogadores se 'irisfa-
lava num canto, em redor dum tapete desenrolado. Em cada
caserna um de+ento possuia um tapete ralo, uma candeia e
um baralho pavorosamente sebento; -esses utensilios tinham o
nome de maidane (1). O proprie+ario recebia dos jogadores
quinze copeques por noite e isso const¡tuia a sua profissão.
Tinham curso apenas jogos de azar. Cada jogador punha
diante de si uma pilha de moedas de cobre - o confeudo
fofal dos seus bolsos, - e s¢ se levantava depois de perder
tudo ou tudo ganhar. O jogo se prolongava, as vezes, a+6
... madrugada, ate ao propric, instante em que vinham abrir
a caserna. Na ossa, como em todas as outras, havia sempre
pobrefões que tinham bebido ou perdido todas as suas eco-
nomias, - no caso de jamais haverem possuido, econornias.
Eram pobre+ões "nafos". Chamo-os "nafos", e acentuo par-
ficularmen+e a expres...o. Com efeito, no nosso povo, qual-
quer que seja a condi ão ou a situa ão social, sempre houve
e havera esses estranhos individuos que um temperamento
pacifico e indolente destina a uma eterna mendicidade. S5o
eternamente uns pobres-diabos, uns perpetuos esmoleres.
Sempre esmagados, numa especie de apatia, servem de bode
(1) Inferno. (N. de R. Q)
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
79
expiaforio ou de fac-fofum a todos: as vezes a um libertino,
as vezes a um novo-rico, ...s vezes a um ambicioso. Qualquer
esfor o lhes pesa, incomoda, oprime! Parece que.vieram.ao
mundo sob a condi ão de nada come arem por si proprios,
de não terem vontade pessoal, mas viverem para ser o polichi-
nelo, o tifere de alquem. Sua missão no mundo consiste
#

apenas em executar as ordens de alguem. Circuns+anci-9 ne-


nhurria, fortuita que fosse, conseguiria enriquec -los; m¡seros
são, miseros devem morrer. Encontrei dessas individuos não
so na plebe, mas em todas as esferas sociais, nos partidos, nas
associa oes, nos grupos li+erarios. Tinhamos deles em cada
um dos alojamentos, e assim que come ava o rinaidane, logo
um se vinha por a servi o dos jogadores. Nenhum mai-
dane poderia dispensar esses ajudantes. De ordinario eram
contratados para a noite inteira, mediante o ordenado de
cinco copeques. Sua fun ão consistia em ficar de sentinela
durante seis ou sete horas, Ia no escuro da entrada, numa
temperatura de trinta graus abaixo de zero, e escutar qualquer
voz, qualquier passo que soasse no pafio. O maior ou o oficial
da guarda faziam ...s vezes uma ronda, noite alta: chegavam
na ponta dos pesa surpreendiam os jogadores, os trabalhado-
res, as candeias particulares, que alias se avistavam do pro-
prio pa+io. Quando se escutava ranger a chave na fechadura
da porta que dava entrada para o patio, não se tinha tempo
sequer de apagar as lu`Zes e estirar-se na tarimba. Como, po-
rem, o maidane cobrava caro do seu vigia, as incursões dessa
especie eram muit¡ssimo raras. Mesmo no pres¡dio, cinco
copeques constituem um salario infimo e irrisorio; portanto,
nesse caso como em outros, a implacavel dureza dos "pa+roes"
que o pagavam sempre me impressionou. "Recebeste di-
nheiro, faze o teu servi o!" Esse argumento não tolerava
nenhuma contradi ão. Em virtude daqueles sOrdidos co-
bres, o alugador tirava do seu "empregado" tudo o que
podia, - e ainda por cima se considerava como seu benfei-
tor. Qualquer pr6digo, qualquer b bedo que em outras oca-
siões atirava o dinheiro pelas janelas, sempre achava, entre-
i
#

80 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA


CASA DOS MORTOS 81
fanto, que pagava demais aquele escravo. Isso eu o observei
em mais de uma caserna. e em mais de um maidane.
Todos, portanto, se entregavam mais ou menos ao +raba-
lho. Fora os jogadores, apenas uns quatro ou cinco ficavam,
sem fazer nada: deitavam-se imediatamente. Eu ocupava
uma ponta da farimba, perfinho da porta. Do lado oposto,
com a cabe a ao nivel da minha, ficava Akim Akimi+ch. En-
frefinha-se das dez ...s onze em pintar uma lanterna chinesa,
multicor, - encomenda que lhe seria bem paga. Fabricava
lanfernas como um mesfre do oficio, trabalhando metodica-
mente, sem de+en as. Ao acabar, guardava os seuXtensilios
com cuidado, desenrolava o colchão, rezava e deitaIM-se na
cama como um justo. Levava a ordem e a minucia af o pe-
clar¡tismo: como foclos os homens est¢pidos e limitados, de-
ver-se-la supor muito inteligente. Desagradou-me desde o
.primeiro dia, embora me fornecesse. depois material para me-
dita ão: espantava-me ver no presidio um homem que pa-
recia fadado a vencer na vida. Alias, ainda terei opor+uni-
dade de falar em Akim Akimi+ch.
Digamos agora algumas palavras a respeito dos ocupari-
fes da nossa caserna. Como eu deveria passar varios anos
em sua companhia, a curiosidade intensa com que encarava
os meus camaradas e muitissimo compreensivel. Um grupo
de montanheses caucasianos - dois lezghianos, um fchefchen-
ge, e dois f6rfaros do Daqu s+an, - condenados quase foclos
por bandoleirismo, ocupavam a tarimba da esquerda. O
fchefchenge, individuo taciturno e sombrio, quase não falava
com ninguem; atirava sempre olhares de vies, em forno de
si, e fitava os outros com um sorriso mau, venenoso, zombe-
teiro. Um dos lez9hianos, homem velho, de comprido nariz
aquilino, tinha uma aut ntica fisionomia de bandido. Porem
o outro, Nurra, deu-me logo de inicio a mais favoravel, a
mais agradavel das impress6es. Era ainda mo o, de estatura
mediana, mas senhor de for a herculea, muito louro, com
olhos dum azul clarissimo, nariz arrebitado, cara de finland s,
e pernas arqueadas de cavaleiro. Tinha o corpo riscado de
cicatrizes, marcado de golpes de baionafa. No Caucaso,
iembora perfencesse a uma fribu submissa, reunia-se sorrafei-
ramente aos rebeldes, para junfo com eles realizar razias con-
fra os russos. Todos entre nos lhe queriamos bem. Dum genio
sempre igual, era delicado para com todos e trabalhava sem
se queixar. Apesar do seu temperamento sossegado e alegre,
muitas vezes a gente lhe via o nojo pela vida abjeta dos for-
ados: as Jadroeiras, a bebedice, o indignavam ate o furor; a
deshoriesficlade o punha fora de si; mas afastava-se sem pro-
curar briga com ninguem. Durante foclo o periodo em que es-
feve recluso, nunca furtou nada, nem cometeu a m'nima
#

indignidade. Religioso af o fanatismo, rezava com fervor,


observava todos os jejuns que precedem as fesfas maome+a-
nas -e passava noites inteiras em ora ão. Todo o mundo o
estimava, todos lhe prezavam a honestidade: "Nurra e um
leão", diziam os for ados - e o apelido lhe ficou. Conven-
cido de que, depois de liberto, volfaria a sua ferra, no Cau-
caso, ele vivia apenas nessa esperan a je se lha roubassem,
creio que morreria. Aftaiu-me as simpatias desde o pri-
meiro dia: entre as caras malignas, sombrias, sard"nicas dos
outros de+enfos. aquele rosto bondoso e simpa+ico não me
poderia passar despercebido. Eu estava Ia havia uma meia
hora, quando Nurra me veio bater no ombro, rindo com bon-
dade e olhando-me no fundo dos olhos. Não o compreendi
bem a principio, porque ele se exprimia muito mal em russo.
Mas logo depois Nurra +ornou, sorrindo, e de novo me deu
uma palmada amigavel no ombro. Essa mimica se renovou
com frequencia nos +r s primeiros dias, e significava, segundo
o adivinhei então e compreendi mais tarde, que Nurra tinha
do de mim, que sentia a dificuldade que eu feria em me acos-
fumar ao presidio, que me queria testemunhar sua simpatia,
esfimular-me, prornefer-me sua prote ão. Bom e ingenuo
Nurra!
Os +r s f...rfaros de Daguesfan eram irmãos. Dois ia
haviam atingido a idade madura, mas o ferceiro, Ali, tinha
#

82 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA


CASA DOS MORTOS 83
apenas vinte e dois anos e parecia mais mo o ainda. Seu
lugar na tarimba era vizinho ao meu. Encan+ou-me ao pri-
meiro olhar o seu belojosto franco, inteligente, ingenuo, e
agradeci a sorte que mo dera como vizinho imediato. Mos-
trava a alma a nu naquele belo, - pode-se dizer naquele
magnifico rosto. O sorriso traduzia a confian a e a sim-
plicidade da juventude, e uma +ão grande meiguice lhe im-
pregnava os olhos pretos que s6 o fato de olh -!os me ali-
viava a tristeza - conto-o sem o menor exagero. Na al-
deia natal, o seu irmão mais velho, (tinha cinco irmãos: os
outros dois foram condenados as minas) ordenou-lhe um dia
que apanhasse o iatagã, montasse a cavalo e o seguisse. O
respeito palos mais velhos e tão grande nessas familias mon-
fanhesas, que o rapaz jamais se atreveria ~pergun+ar aonde
~e ~
informa-lo.
iriam. Os mais velhos não julgaram nece s
Iam assaltar na estrada um rico negociante armenio. Com
efeito, assassinara m-no, bem como aos homens da escolta a
deitaram mão as mercadorias. Todavia descobriu-se a coisa:
os seis foram apanhados, a oitados, e deportados para a
Siberia. O tribunal não mostrou inclulgencia senão para Ali,
que foi condenado ... pena minima, isto e, a quatro anos
de presidio. A afei ão que lhe tinham os irmãos era como
um amor de pai. Era o consolo que eles tinham no exilio ...
e, sempre tão sombrios, +ão tristes como eram, sorriam ao
olha-lo, e quando conversavam com Ali (raramente, ali s,
porque decerto o consideravam muito mo o para lhe pode-
rem confiar qualquer cousa seria) as caras melancOlicas se
iluminavam, abrandavamõ e pelo piscar dos olhos, pelos
sorrisos bem humorados que trocavam ao ouvi-lo, eu adivi-
nhava que se dirigiam a ele como a um garoto com quem
se brinca. Quanto a Ali, mal ousava dirigir a palavra aos
outros, +ai o respeito que lhes votava. dificil de conceber
como. em vez de se corromper, aquele mo o pudera con-
servar no presidio um cora 3o f8o manso, uma honestidade
tão escrupulosa, uma sinceridade f3o aberta, uma bondade
+ão simp tica. Era ali s uma natureza forte, apesar da vi-
sivel mansidão do seu genio, como mais +arde o ver¡fiquei. Pu-
dico como uma rapariga, qualquer a ão vil, c¡nica, repug-
nante ou injusta fazia com que luzissem de indigna ão os
seus olhos magnificos. Mas ele tambem evitava disputas
* injurias, embora não fosse homem capaz de consentir que
* rebaixassem. Ali s, não poderia ter questões com ninguem:
todo o mundo o adulava, todo o mundo o adorava. De ini-
cio, foi apenas delicado comigo, porem, pouco a pouco, che-
gamos a conversar; alguns meses lhe haviam bastado para
aprender a se exprimir corretamente em russo, o que os ir-
#

mãos jamais conseguiram fazer. Pareceu-me inteligenfissi-


mo, muito modesto e delicado, e ao mesmo tempo forte o
sensato. Em resumo, considero-o como criatura acima do
comum, -e sempre evoco o seu encontro como um dos me-
lhores da minha vida. Ha dessas naturezas belas de nas-
cen a, tão ricamente dotadas por Deus. que a id ia de as
ver corrompidas parece absurda. A gente sempre fica
tranquila a seu respeito. Sinto-me +ranquilo quanto a sorte
de Ali. Onde entretanto estar ele agora?
Uma vez, bastante tempo apOs minha chegada ao pre-
sidio, eu estava estirado na tarimba. presa de dolorosos pen-
samenfos. Embora ainda fosse cedo para dormir, Ali, sempre
ativo, nada fazia naquela noite, porque os irmãos observa-
vam então uma festa mu ulmana. (Eu estava deitado, com um
bra o sob a cabe a, e meditava.
- Por que +e sentes tão triste?
Olhei-o surpreso, considerando estranha aquela pergunta
partida de Ali, sempre tão delicado, tão cheio de tato, de
cora ão tão inteligente. Mas, olhando-o com mais aten ão,
vi-lhe no rosto o reflexo de toda a dor, toda a angustia da
saudade, e compreendi imediatamente quanto o mo o fam-
bem se senfia infeliz naquele momento. Deu um suspiro
profundo e sorriu amargamente. Eu gostava do sorriso dele,
sempre +ão afavel, que descobria duas fileiras de dentes ai-
vissimos, capazes de fazer inveja a mais bela rapariga do
mundo.
- Dize, Ali, estas pensando na festa que se celebra
hoje na tua +erra, no Dagues+an? L e muito lindo?
#

84 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA


CASA DOS MORTOS 85
- Oh, sim! respondeu ele exaltado, enquanto os seus
olhos se iluminavam. Por que viste que eu estava pensando
na festa?
- Ora, grande dificuldade! Como se a gente não
fosse mais feliz em casa do que aqu 1
- Oh1 por que me dizes isso)
- Agora, quanta flor não deve haver na tua +erra, que
paraiso ha de ser lai
- Oh, cala-fe, cala-fe!
Sua agita ão estava no auge.
- Escuta, Ali, tinhas alguma irmã?
- Sim, por que?
- Deve ser bonita, se parece configo!
- Não se compara comigo! tão bonita que não +em
nenhuma igual em todo o Daquesfani Ah, como e bonita!
Nunca viste uma mulher tão linda! Alias, minha mãe +am-
bem era bonita.
- E tu gostas muito de tua mãe?
- Ai, que me estas pergunfando! Decerto morreu de
desgosto, por minha causal Eu era o seu preferido: gostava
mais de mim que de minha irmã e de meus irmãos ... Esta
noite sonhei com ela: estava chorando.
Calou-se, e não disse mais nada durante todo o resto
da noite. Mas, depois dessa ocasião. procurava todas as
oportunidades para falar comigo, apesar do respeito que eu
lhe inspirara, nem sei berril por que, e que o impedia de me
dirigir a palavra em primeiro lugar. E eu fambem, que ale-
gria sentia quando o interrogava sobre o Caucaso, sobre a
sua vida passada! Os irmãos não o impediam de conversar
comigo, e parecia ate que ficavam contentes quando o viam
responder ao que lhe perguntava. E quando constataram
que eu dia a dia mais me afei oava a Ali, +ornaram-se cada
vez mais delicados para comigo.
Ali me ajudava no trabalho, pres+ava-me todos os ser-
vi os que podia, na caserna. Senfia-se que lhe dava prazer
ser-me agradavel, auxiliar-me um pouquinho que fosse. E
não havia nisso, da sua parte, nem servilismo, nem procura
de uma vantagem qualquer, mas apenas um sentimento de
ardorosa amizade, que j6 não dissimulava. Como tinha
muita capacidade para os trabalhos manuais, aprendeu a
costurar muito bem roupa branca e botinas, e depois, tanto
quanto era possivel, a marcenaria. Os irmãos, muito orgu-
lhosos pelo xito do rapaz, o felicitavam por isso.
- Escuta, Ali, disse-lhe eu certa noite. Por que não
aprendes a ler e a escrever em russo? Ha de ser-te muito
util mais tarde, na Siberia.
- Eu bem queria, mas com quem?
- Aqui não falta quem saiba. Se queres, eu te en-
#

,sino.
- Oh, por favor, ensina-me!
Ergueu-se da tarimba, juntou as mãos e me olhou,
com ar suplice.
Come amos no dia seguinte a tarde. Eu possuia uma
tradu ão russa do Novo Testamento, livro autorizado no pre-
sidio. Sem abecedario, com o auxilio Unico desse livro, Ali,
em algumas semanas, aprendeu a ler correntemente. Tres
meses depois, compreendia muitissimo bem a linguagem es-
crita. Estudava com ardor, com exalfa ão.
Certa vez, lemos juntos o Sermão da Montanha. Obser-
vei que lhe interessavam particularmente algumas passagens.
E perguntei se lhe agradara o que acabara de ler. Ele me
lan ou um olhar vivo, e a cor lhe subiu ao rosto:
- Oh, sim! Issa (2) e um grande profeta. Issa fala
as palavras de Deus. muito bonito.
- Que e que mais +e agrada?
- O trecho onde ele diz: perdoa, ama, não ofendas,
estima o teu inimigo. Ah, como elo diz bem isso!
Virou-se para os irmãos que nos escutavam e falavam
com anima ão. Ficaram a conversar os fres muito tempo,
seriam-ente, com gestos afirmativos da cabe a. Depois,
sorrindo com um sorriso ao mesmo tempo grave e benevo!o,
- o puro sorriso mu ulmano, cuja gravidade me encanta es-
(2) Deforma ão russa de fisus (les£s), (N. de H. M.)
#

.f
86 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA
CASA DOS MORTOS 87
pecialmente - volveram-se para mim e confirmaram, qu3
Issa era um profeta de Deus e obrara grandes milagres;
depois de esculpir um passaro de argila, soprara nele, e o
passaro voara; isso estava escrito num dos livros. (3) Diziam
essas cousas certos de que, louvando Issa, me davam grande
prazer. Quanfo a Ali, estava radianfe: os irmãos tinham
conversado com -ele, e tinham se dignado aprovar-me!
Tive igualmente grande xi+o no ensino da escrita a Ali.
Arranjou papel (não permitiu que eu lho comprasse com meu
dinheiro) penas, tinta, e dentro de dois meses escrevia p,~r-
feitamente bem. Os irmãos ficaram embasbacados. Sua
alegria, seu orgulho, ultrapassaram todos os limites: nassi~-
biam como me agradecer. Durante as tarefas, se nos acon-
tecia estar juntos, eles faziam tudo para me auxiliar, e consi-
deravam aquilo uma felicidade. Ja- não falo de Ali, que se
afei oou a mim quase tanto quanto aos irmãos. Não es-
quecerei jamais a sua partida. Arrasfou-me para fora da
caserna, e agarrou-se ao meu pesco o, chorando. Nunca
antes me abra ara, e nunca eu o vira derramar uma lagrimal
- Fizeste tanto por mim, fizeste tanto por mim! dizia.
Mais que meu pai, mais que minha mãe! Fizeste de mim
um homem. Deus +e recompensar6 e eu não +e esquecerei
nunca 1
Onde esfaras agora, querido, angelical e meigo Ali?
Alem dos circassianos, nossa caserna abrigava ainda
alguns polacos. Formavam um grupo inteiramente a parte,
e não se davam com os outros for ados. Ja lhes descrevi
o exclusivismo, ia expliquei que o desprezo deles pelos de-
tentos russos lhes havia granjeado o odio geral. Tinham
o temperamento atormentado e doentio. Eram em numero
de wis - e alguns deles homens de instru ão: falarei mais
detidamente destes ulfimos. Algumas vezes, duran+e os der-
radeiros anos da minha reclusão, me emprestaram livros; o
primeiro que li me provocou uma impressão forte, estranha,
(3) Essa lenda cristã est com efeito registrada no Corão, 111, 43. Chegou a
os
rabes por intermedio da versão rabe do pseudo-evangelho de S. Tom . (N. de
H. M.)
especialissima, da qual falarei mais tarde. Considero essas
sensa ões muito curiosas e tenho a certeza de que muitas
pessoas nada poderiam compreender delas. Sem as expe-
rimentar, a gente não pode julgar certas cousas. Basta dizer
1
que os sofrimentos morais são muit¡ssimo mais pesados que
1 a
os sofrimen+os f¡sicos. No presidio o homem simples es¡5
#

no seu meio - talvez a+e num meio mais adiantado que o


seu. Evidentemente ele perdeu muito - a sua aldeia, a sua
familia, tudo, se o quisermos, mas não mudou de ambienfe!
O homem instruido, punido pela lei do mesmo modo que o
rUs+ico, perde incon+es+avelm ente muito mais: deve reprim*,r
todas as suas necessidades, todos os seus habi+os, deve aprer.-
der a respirar um ar inteiramente estranho! como um
peixe +irado da agua e jogado a areia ... Muitas vezes o
castigo, que a lei dita igual para todos, torna-se para ele
um tormento multiplicado por dez. E isso e verdade, mesmo
sem se levar em conta o sacrificio dos Mbi+os materiais.
Assim, pois, os polacos tinham um grupo a parte. En+re
todos os defenfos estimavam apenas o nosso judeu, simples-
mente porque ele os divertia. Esse judeu, alias, gozava da
afei ão geral, embora os for ados, sem exce ão, o levassem
na tro a. Era o Unico da sua ra a. e nao o posso recordar
sem rir. Sempre que o olhava, fazia-me lembrar aquele
Yankel do "Tarass Bulba" de Gogol, que uma vez despido
e pronto a entrar, junto com a sua judia, num objeto que
parecia um armario, fica de repente igual a um frango de-
penado (4). Ja idoso, - andava perto dos cinquenta, -
era de pequena estatura, de constitui ão fraca, astuto e es-
+Upido, impertinente e covarde ao mesmo tempo. O rosto,
vincado de rugas, mostrava na fronte e nas faces as marcas
do pelourinho. Jamais consegui compreender como e que ele
(4) A memoria de Dostoievski o traiu. Na realidade o episodio citado não s
e re-
fere a Yankel, mas ao judeu ruivo que guia Bulba na noite da sua chegada
a Varsovia.
Eis o texto real: "j anoitecera. O dono da casa, o judeu da cara sardent
a, trouxe
um colchão s¢rdido, coberto duma esteira ainda pior, destinados a Bulba. Yank
el se
deitou no chão num colchão id ntico. O judeu ruivo enguliu um c lice de aguarde
nte
e despiu o cafetã: de cerouias e sapatos assemelhava-se vagamente a um fran
go; de-
pois, junto com sua judia, penetrou num objeto que se assemelhava vagamen
te com um
armario.‾ Cogol, "Tarass Bulba", cap¡tulo XI. (N. de H. M.)
#

88 DOSTOIEVSKI RECORDA OES DA


CASA DOS MORTOS 99
pudera suportar sessenta a oites de knuf. Porque estava pre-
so por crime de morte. Guardava consigo, muito bem es-
condida, uma receita que outros judeus lhe haviam obtido,
logo depois da execu ão do castigo. Tra+ava-se dum b lsa-
mo que depois de uns quinze dias de uso apagava as marcas
do pelourinho. Ele não ousava utiliza-lo na prisão, e para ex-
perimentar as virtudes da tal receita, esperava acabar os vinte
anos de trabalhos for ados, depois dos qua¡s seria desterrado
/1
para uma aldeia. "Sem isso não me poderei casar , dizia,
no seu sotaque, "e fa o questão absoluta de ter mulher".
Eramos n¢s dois muito amigos. Ele estava sempre nas me-
lhores disposi ões de espirito. A vida no presidio não lhe
era absolutamente penosa: ourives de profissão, os habitantes
da cidade, - que não dispunham de nenhum joalheiro - o
enchiam de frabalho: e ele assim escapava aos labores mais
pesados. Como seria de esperar, +arribem praticava a usura
e emprestava a juros a caserna inteira. Entrara no presidio
antes de mim, e um dos polacos me descreveu um dia a sua
chegada. uma his+oria divertida que mais +arde conta-
rei, porque mais de uma vez terei que falar em Isai Fomi+ch.
Havia ainda no nosso alojamento quatro raskoiniki,
ou "velhos-cren+es", anciãos versados nas Santas Escrituras,
entre os quais se. encontrava o velho de S+arodubov. Dois
ou +r s pequenos-russos, gente de temperamento sombrio; um
for ado muito jovem, de nariz pontudo, que a despeito dos
seus vinte e +r s anos j assassinara oito pessoas. Um bando
de moedeiros falsos, dos quais um nos servia de bobo. E,
enfim, mais alguns individuos taciturnos e mal encarados,
raspados ou desfigurados, infelizes e invejosos, resolvidos a
se mostrarem como +ai, cenho franzido, boca costurada, alma
oclienfa, durante ainda longos anos, durante todo o tempo da
sua reclusão.
Eis o quadro que me desfilou ante os olhos durante essa
primeira +arde sem alegria da minha nova existencia. Vi-o
atrav s da fuma a e do ar sufocante, das pragas, do cinismo
indescrifivel, do cheiro f tido e do filin+ar das grilhefas, das
a
risadas estridentes e das maldi ões. Esfirei-me, sobre a ta-
bua nua da tarimba, pus a roupa debaixo da c ibe a (não
tinha ainda fravesseiro), enrolei-me na pele de carneiro e por
mais exhausfo, por mais extenuado que estivesse gra as as
impressões monstruosas e inesperadas desse primeiro dia, não
consegui adormecer. Aquilo no entanto era apenas o come-
o. Muitas outras cousas me esperavam, cousas que eu nao
poderia nunca prever, nem adivinhar. . .
#

I
#

O primeiro m s
r s dias depois, da minha chegada, recebi ordem de ir
frabalhar. Esse dia me ficou gravado na lembran a,
T embora nada tenha acontecido de especial - pelo
menos se levarmos em conta o que minha propria situa ão
tinha de exfraord¡nario.
Mas eram impressões novas e eu ainda encarava as cou-
sas com avidez. Acabava de passar tr s dias presa das
emo ões mais penosas. "Cheguei ao fim da viagem! estou
no presidio!" repetia eu de minuto em minuto. "Eis-me no
porto, onde passarei longos, longos anos. Esta aqui o meu
canto! Chego com o cora ão ferido cheio de apreensão e
desconfian a. . . E quem sabe se, daqui a muito tempo, no
momento de partir, não terei SaudadesV' acrescentava, es-
+imulado por essa perfida necessidade que, as vezes, nos
faz magoar uma ferida ate o seu ponto mais profundo, para
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92 DOSTOIEVSKI
saborear a dor intensa, para goza-Ia em toda a sua imensi-
dade. O pensamento de que um dia eu teria saudades da-
quele lugar, enchia-me de angustiado horror. Desde então
pressentia quanto o homem e feito de h bitos. Isso, todavia,
representava ainda o futuro, enquanto que nQ presente tudo
que_ me cercava me parecia hostil, abominavel; pelo menos,
se não o era completamente, assim eu o enxergava. Aqueia
selvagem curiosidade com que contemplava os for ados,
meus novos companheiros, a dureza deles para com o ba-
rine feito agora seu igual - dureza que chegava quase a ser
odio, atormentavam-me tanto que eu ardia por ir mais de-
p 1 ressa para O trabalho, afim de penetrar de- uma vez at ao
f rido da minha desgra a, de me por a viver como eles, de
puxar com eles pela mesma trela. Não posso dizer quanfos
fatos n?e escaparam então, e quão pouco me apercebia eu
do que se passava sob o meu proprio nariz; ao l d¢ da- hosfi-
lidade por demais visivel, não me apercebia de nada con-
solador; contudo, foi nesse momento que encontrei algumas
criaturas amave¡s, cuja acolhida me deu coragem. O mais
amavel, o'mais acolhedor, foi Akim Mimitch. Na multidão
de rostos +riston.hos e pouco amigos dos outros for ados, fui
obrigado a notar algumas boas caras. Por toda parte h
gente ruim, mas nem todas as ovelhas dum rebanho são pw-
teadas, depressa disse eu a mim mesmo, para me consolar.
"Quem sabe? Talvez estes individuos não sejam muitos piores
que os demais, que esses que vivem 16 fora, do outro lado
dos muros da fortaleza". E pensando isso, eu meneava a
cabe a - entretanto, meu Deus, nem de longe descon-
fiava de que aquilo era a verdade pura!
Eis um exemplo: o condenado Suchilov: levei varios anos
para o conhecer realmente, embora estivesse a todo tempo
ao meu lado. Exatamente no momento em que eu dizia que
alguns não são piores do que os outros, ergue-se a sua lem-
bran a, na minha memoria. Servia-me de aio, juntamente
com Ossip, um ou+ro defen+o que desde o inicio Akim Aki-
mi+ch me inculcara, afirmando que por trinta copeques men-
sais me prepararia uma refei ão, se o rancho do presidio
RECORDA âES DA CASA DOS MORTOS
i.
93
se eu tivesse meios
me inspirasse excessiva repugnancia. e
de comer por conta propria. Ossip era um dos quatro cozi-
nheiros eleitos pelos presos para tomarem conta das nossas
duas cozinhas. Esses eleitos, alias, pocleriam aceitar ou re-
#

cusar o oficio, e mesmo aceifando-o, abandonar o lugar no


dia seguinte, se lhes desse na veneta. Os cozinheiros fica-
vam dispensados do trabalho for ado; s6 se ocupavam em
cozer o pão e preparar a sopa. Não eram chamados cozi-
nheiros mas "cozinheiras", não por desprezo, (pois eram es-
colhidos para a cozinha os homens mais honestos e inteli-
gentes que era possivel encontrar) mas por uma familiaridade
que absolutamente não os ofendia. Durante varios anos
o
Ossip foi "cozinheira" quase sem interrup ões: s' abando-
nava o emprego quando o atormentava o fedio, ou lhe davam
desejos de confrabandear vodca, pois esse contrabandista
de profis~ão era homem de uma honestidade e uma bondade
raras. J falei um pouco a seu respeito - era o +ai rapa-
gão a quem os a oites inspiravam pavor tão grande. Sosse-
gado, arriavel, paciente, incapaz de promover uma briga, não
podia, apesar das suas apreensões, deixar de introduzir aguar-
dente, quando o assaltava a paixão do contrabando. En-
tregava-se pois ao trafico de vodca, igual aos wus colegas,
mas em propor oes mais modestas que Gazine, cuja audacia,
amor do risco, não partilhava. Sempre mantive muito boas
rela ões com Ossip. As refei ões em separado n3o saiam
muito caras: creio n5o me enganar, afirmando que eu na .. o
gastava mais de um rublo por mes com minha alimenta ão,
sem contar com o pão, e claro, fornecido pela casa, e alqu-
mas vezes a sopa, que +ornava quando estava com muita
fome. - pois acabara por desaparecer a repugnancia que
ela de inicio me inspirara. Em geral eu comprava um ~e-
da o de carne de uma libra, - o que no inverno custava
dois copeques. Um dos inv lidos, vigilante na caserna, en-
carregava-se dessa compra. Todos os invalidos espon+anea-
mente se ofereciam para as compras-, não recebiam por
isso nenhuma nemunera ão, salvo uma ninharia aqui ou alem.
Agiam assim por amor do seu proprio sossego, porque de
i
i,
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94
DOSTOIEVSKI
outra maneira não se poderiam aguentar. Traziam fumo,
"fabie+f,es" de ch (1), carne, kalafchi e mais outros g neros,
salvo o vodca, que ninquem lhes pedia para trazer, embora
de vez em quando eles aceifassern iornar um trago. Du-
rante varios anos seguidos Ossip me preparou o mesmo pe-
da o de carne: pouco importa o modo como o fazia! Cousa
curiosa: por todo esse tempo não consegui nunca arrancar-
lhe duas palavras. Tentava, as vezes, iniciar uma conversa,
,mos ele parecia incapaz de sustentar qualquer dialogo seguido.
Sorria, respondia por sim ou por não, e era tudo. Aquele
H rcules, com o esp¡rito de um garoto de oito anos,
me produzia uma impressão estranha.
1 Suchilov +ornou-se pois minha ordenan a. Eu não o
procurara nem escolhera. Foi ele esponfaneamenfe que se
ligou a mim, nem me lembro mais quando nem como. Pos-se
a lavar minha roupa branca: havia por +r6s das barracas um
grande tanque, onde os defen+os faziam a sua barrela, em
finas disposfas especialmente para esse fim. E afora a la-
vagem, Suchilov arranjava meios de me prestar mil outros
pequenos servi os; preparava-me a chaleira, corria a dar
meus recados, arranjava as coUsas de que eu precisava, le-.
vava o meu casaco para o remendão, engraxava-me as bofas
quatro vezes por mes. E fazia isso tudo com zelo, com afã,
como se se tratassem sabe Deus de que obriga ões! Em
resumo, ligara inteiramente a sua sorte ... minha e +ornara
...s suas costas tudo que me concernia. Por exemplo, não
d~Öria nunca: "Voce +em tantas camisas; seu casaco esfã
rasgado. . . " e sim "Nos temos agora tantas camisas; nosso
casaco est rasgado. . . " Eu vivia pois sob os seus cuidados
e evidentemente ele considerava aquilo a finalidade da sua
vida. Como não exercia nenhuma profissão, so de mim po-
deria esperar alguns copeques. Pagava-lhe tanto quanfo
podia, - isfo 6, umas frisfes moedas de cobre, uma miseria;
entretanto, jamais o vi mal satisfeito. 9e não poderia viver
(1) Na Siberia consome-se o ch fortemente comprimido, sendo vendido em
for-
m4 de "tablette~". (N. de H. W
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RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS


97
sem servir ilguem. e me escolhera, suponho, porque eu era
mais indulgente que os outros e mais justo ao lhe avaliar os
ganhos. Era um desses homens que não conseguem nunca
libertar-se da rriiseri,-, ¡aqueies que por uma moeda de cinco
copeques se fazem guardas de ma¡dane, - que podiam
ficar durante horas inteiras imoveis, na antecamara gelada,
escutando qualquer ruido vindo do pafio, ou a chegada do
maior, e que, em caso de disfra ão, perdem tudo e respon-
dem com as proprias costas. J falei dessas criaturas. Sua
caraferistica e a atitude humilde, a falta completa de perso-
nalidade; desempenham sempre e em qualquer lugar um papel
de segunda e mesmo terceira categoria. A na+ureza O,-;
criou assim. Suchilov era um pobre diabo, inteiramente
irresponsavel, humilde como um c5o a oitado, embora nin.
guem lhe ba+--sse: devia ter de nascen a aquele ar. Sempre
senti do por ele. Não o conseguia olhar sem sentir uma
inexplicavel impressão, - inexplicavel ate mesmo para mim.
Nunca pude +ambem faz -lo conversar. Ele não sabia
exprimir-se: ara-lhe um esfor o penoso escutar e dar resposta,
e animava-se quando, para acabar, a gente lhe pedia para
correr a algum lugar ou fazer qualquer cousa. Acabei por
me convencer de que so um mandado lhe poderia dar algum
prazer. NSo era nem alto nem baixo, nem feio nem bonito,
alourado, levemen+e picado de bexigas. Nada se poderia
dize de definido a seu respeito senão (tanto quanto era
possivel julgar) que ele pertencia a mesma ra a de espiri+os
-de Siro+kine-, e essa convic ão nos fora inculcada pelo seu
ar de toleima irresponsavel. Algumas vezes os outros presos
o debicavam contando que, durante a marcha para a Sibe-
ria, ele se "frocara" por uma blusa vermelha e uma moeda
de um rublo. O que provocava as risadas, era o infimo
pre o da venda. "Trocar" e +ornar o nome de algum outro
condenado, e por consequencia a sua sorte. Por mais mons-
fruoso que o fato pare a, nem por isso deixa de ser neal;
no meu tempo, esse costume vigorava ainda com toda a
for a, entre as colunas de deportados, consagrado pela
#

98
DOSTOIEVSKI
1
tradi ão. A principio recusei-me a crer, mas depois rendi-
me a evidencia.
E~s como se passavam as coisas: um comboio se põe a
caminho; ha nele uma grande variedade - presid¡arios, con-
denados as minas, simples deportados. Em qualquer lugar,
perto de Perriri, por exemplo, um for ado procura se "frocar"
com um outro. Vamos que seja um Mikhailov qualquer, con-
denado por assassinio, ou outro crime capital, a um grande
numero de anos no presidio, cousa que evidentemente lhe
desagrada. Suponhamo-lo um homem astuto, inescrupuloso;
imediatamente procura encontrar no comboio algum indivi-
duo simplorio, abordavel, sem defesa, cuja condena ão seja
branda, - por exemplo, as minas duranfe alguns anos, ou a
deporfa ão para alguma aldeia, ou mesmo o presidio por
pouco tempo. Enfim, acaba por descobrir um Suchilov.
Suchilov, servo de nascimento, foi condenado apenas a de-
porfa ão. Ja +em mil e quinhentas versfas nas pernas e nem
um copeque no bolso, porque claro que os Suchilovi jamais
trazem consigo um vintem. Caminha, embru+ecido, exhaus-
to, em geral mal alimentado, sem nem ao menos qual-
quer cousa para mastigar, frazendo sobre si apenas os far-
rapos do umforme, - pronto a servir seja para o que for
em troca de alguns cobres. Mikhailov insinua-se ao seu lado,
trava conversa, conquista-lhe a amizade, e, afinal, na pa-
rada. paga-lhe um trago. Chegou o momenfo de lhe propor
a troca: "Eu me chamo Mikhailov-, vou para o presidio;
isto e, não e propriamente o presidio, a se ão -especial;
16 não ha trabalhos for ados, mas coisa diferente, muito
melhor". A proposi+o da se ão especial, hoje supressa, devo
dizer que muitos altos funcionarios, ate mesmo em Pefers-
burgo, ignoravam ao certo o que ela significava. Locali-
zava-se nalgum recanto longinquo da Siberia, compunha-se
de poucas pessoas, (no meu tempo cerca de sessenta de-
tentos) de forma que era dificil acompanhar-lhe o rasfro.
Depois de minha liberta ão, enconfrei pessoas que conhe-
ciam muito bem a Siberia, porque haviam servido Ia, e que
souberam por meu in+ermedio da exis+encia da se ão espa-
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
1_
99
cial. o cOdigo contem apenas seis linhas a seu respeito:
#

"Esperando que se organizem na Siberia trabalhos fo r ados


especiais, fica anexada a essa casa de deten ão uma se ão
igualmente especial, desfinada a delinquen+es mais perigo-
sos.11 Mesmo os de+en+os dessa se ão não sabiam se ela
era +emporar¡a ou perpetua. Diziam: "Não temos +ermo
inclicado; esperamos apenas a organiza o dos trabalhos for-
ados especiais; isso quer dizer: sera por pouco tempo. 11
Nem Suchilov nem ninguern do combõio sabia qualquer
cousa a respeito dessa se ão, salvo falvez Mikhailov, que
fora enviado para Ia, e cujo horrendo crime ia lhe propor-
cionara +r s ou quatro mil a oites: dizia-lhe o faro que o
lugar não poderia ser grande cousa. Suchilov, ao contrario,
ia apenas para uma aldeia, so isso. "Queres trocar comigo?"
Suchilov, cora ão singelo, meio tonto a cheio de reco-
nhecimenfo para com Mikhailov que o obsequiara, não se
atrevia a recusar. Alias, ia ouviu dizer que aquilo se faz
com frequencia, que nada tem de ex+raordinario. E aceita:
aproveitando-se da simplicidade do camarada, Mikhailov lhe
compra o lugar por uma blusa vermelha e uma moeda de
um copeque, que tem o cuidado de lhe entregar diante de
testemunhas. No dia seguinfe, Suchilov ia não esta b bedo,
mas novamente o embriagam; ali s, +orna-se dificil voltar
aftas do trato: o rublo ia foi bebido, e a blusa vermelha não
tardou nada em acompanha-lo. "Não queres mais? então
devolve o dinheiro!" De onde tirara dinheiro o pobre Su-
chilov? Se não quiser devolver o rublo, +era o arfei (2) que
o obrigar6 a isso, porque reina severidade, em +ais casos.
Ademais, toda palavra dada deve ser marifida, - e a regra
do arfei, que vela por isso: um delinquen+e não +er6 repouso,
ficara com a vida in+oleravel, ser6 atormentado, talvez ate
morto. Com efeito, se uma umca vez o arfei desse mostras
de indulgencia, +ais trocas não se poderiam realizar. Se
fosse poss¡vel renegar uma promessa e desmanchar um ne-
gocio depois de recebido o dinheiro, quem. então, cumpriria
(2) Espede dP comit de vigilancia e dire ão formado entre os deportados.
(N. de R. Q )
O
#

100 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA


CASA DOS MORTOS 10
os acordos? Em suma, a coluna inteira toma o negocio
a sua conta, e, por essa razão, se mostra impiedosa. En-
fim, Suchilov se apercebe que ia n3o pede voltar afras, que
suas suplicas são inuteis; resolve concordar sem restri 5es.
Anuncia-se o caso ao comboio inteiro, e se houver neces-
sidade, da-se uma gorjeta aqueles que poderiam falar
demais. Que importa alias aqueles miseraveis que o presi-
diario seja Such¡lov ou Mikhailov? Podem muifo bem ir
para o diabo todos os dois, se assim o querem[ E depois
de receberem a gorjeta, o jeito que t m e calar a boca.
Na parada seguinte, a hora da chamada, quando chamam
Mikhailov, Suchilov responde: "Presente!" quando chamam
Suchilov, Mikhailov responde: "Presente!". Continua-se o
caminho e a troca esta feita. Em Tobolsk, os depor~ados
são escolhidos: "Mikhailov" vai para a colonia, e "Su-
chilov", com forte escolta, +orna o -caminho da se ão espe-
cial. ... nenhum protesto e mais poss¡vel. Alias, que pro;
vas se poderiam apresenfar? Quanfos anos se arrastaria o
processo? Que novo castigo sofreria o desgra ado? Onde
arranjaria fes+emunhas? Se as encontrasse, elas se recusa-
riam a depor. E por fim de contas, eis como, a troco de
uma blusa vermelha e de uma moeda de um rublo, o pobre
Suchilov esta instalado na se ão especial.
Os defe~fos o levavam na +ro a não porque trocara de
personalidade com o outro, mas porque eram geralmente
desprezadas fedas as pessoas que se deixavam embrulhar.
Zombavam dele porque recebera pela troca apenas uma blusa
vermelha e um rublo, - indeniza o irrisoria. Em geral a
troca se opera mediante quantias relativamente elevadas, -
algumas dezenas de rublos, as vezes. Contudo o pobre
Suchilov, +ão nulo, +ão apagado, tão insignificante, não po-
deria senSo ser levado a ricliculo.
Vivemos muito tempo juntos, Suchilov e eu. Pouco a
pouco ele se ligou a mim, e eu tomei o habito de o ver ao
meu lado. Um dia - nunca o perdoarei a mim proprio -
apesar de ter recebido dinheiro de minha mão, ele não fez
o que lhe pedira, e tive a perversidade de lhe dizer:
"Suchilov, voc s0 presta para receber . dinheiro!" Ele não
respondeu, correu a fazer o que eu queria, mas ficou subita-
me-,~te triste. Passaram-se dois dias. Eu não poderia supor
que ele houvesse tomado tão a peito as minhas palavras.
Sabia que um defento, An+one Vassiliev, o atormentava con-
finuamen+e, cobrando-lhe uma divida rifima. "Decer+o.
pensei, Suchilov precisa de dinheiro e não se atreve a vir
pedir-me". No fim de +r s dias, perguntei: "Suchilov, voc
queria me pedir uns cobres afim de pagar a Anfone Vassi-
liev, não? Torne!" Eu estava na tarimba, e Suchilov de pe,
a minha frente. Parecia muito comovido com a oferta que
#

lhe fazia e surpreso por me haver lembrado do seu aperto


- principalmente porque, na sua opinião, nestes Ulfimos
tempos, ele ia me +ornara excessivo dinheiro emprestado, e
não ousava receber mais nada. Olhou as moedas, fitou-
me, e de repente deu meia volta e saiu. Tudo aquilo me
surpreendeu muit¡ssimo. Fui procur6-lo e o encontrei Ia,
atras das casernas. Estava encostado a pali ada, a ca-
be a e os bra os apoiados a uma estaca. "Suchilov, que
houve?" perguntei-lhe. Ele não me olhou, e grandernenfe
surpreso, vi que estava prestes a chorar. "Alexandr Pe-
trovi+ch, voce pensa. . . - come ou com voz tremula, ten-
fando evitar o meu olhar - pensa que eu ... que e por di-
nheiro. . . e eu. . . eu. . . eu ... ah!" Dizendo isso, voltou-
se para a estaca, e com tanto es+ouvamento que bateu com
a cabe a, e se p"s a solu ar. Era a primeira vez que eu via
um for ado chorando. Tive muito trabalho para o con-
solar. Depois disso, Suchflov mosfrou-se ainda mais zeloso
que antes no meu %õservi o" - caso isso ainda fosse possivel;
cuidava-me, mas por sinais quase impercep+iveis verificava
que ele ainda não me pudera perdoar aquela censura.
Entretanto os outros o cobriam de escarneos, faziam-lhe
picuinhas a respeito de tudo, injuriavam-no as vezes rude-
mente, e ele vivia com todos em bons termos, sem se ofender
nunca. Como e dificil conhecer um homem, mesmo depois
de longos anos de vida em comum!
#

102 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA


CASA DOS MORTOS 103
Eis porque o presidio não me apareceu, de entrada, no
seu verdadeiro aspecto. Eis porque, ia o disse, embora en-
carando tudo com +ão avida a intensa aten ão, não me
apercebi de inumeros fatos que se passavam sob o meu
nariz. 50 os mais aparentes me impressionaram; mas como
eu os considerava sob um ngulo diferente, eles fambem não
me podiam deixar na alma senão uma sensa ão de peso, de
tristeza, de desespero. O que contribuiu muito para esse
estado de espiri+o, foi o meu encontro com A ... v, defento,
chegado pouco tempo antes de mim, que me produziu uma
impressão particularmente atroz, logo' ap6s meu ingresso
na prisão. Tinham-me, no entanto, prevenido de que o en-
contraria Ia. Ele me envenenou aqueles primeiros dias ia de
si tão penosos, e por +ai modo agravou meus sofrimentos
morais, que não poderei ficar calado a seu respeito.
Era o exemplo mais repugnante de baixeza, de avilta-
mento em que pode cair um hornem; mostrava ate que ponto
a gente pode matar dentro de si. sem luta e sem remorsos,
qualquer sentimento de honra. Esse A. era o jovem fidalgo
ao qual ia aludi, e que, por amizade a Fedka, a ordenan a
do major, servia de espião na caserna. Posso resumir-lhe a
his+6ria em poucas palavras. Antes de acabar os estudos,
ele rompeu com os pais ' assustados por seus desregra-
menfos. e deixou Moscou por São Pe+ersburgo. La, afim
de obter dinheiro, não recuou nem diante de uma sordida
dela ão. Explico-me: possuido pela sede desenfreada, in-
saciavel, de prazeres bestiais, obteve dinheiro vendendo a
vida de dez homens. A capital. seus caf s, seus botequins,
suas casas suspeitas, o seduziram de tal maneira que, a des-
peito da in+eligencia que inegavelmente possuia, ele se arris-
cou a essa insensata empresa. Foi rapidamente desmasca-
rado: e como sua denuncia falsa comprometia pessoas ino-
cen+es e era um escarneo as autoridades, condenaram-no a
dez anos de presidio. Ele ainda era muito jovem - estava
apenas no inicio da vida. Era de crer que +ão pavoroso
castigo o comovesse. lhe despertasse no intimo uma resis-
fencia qualquer, lhe provocasse uma crise. Mas ele aceitou
sua nova condi ão sem o menor pejo, sem mesmo a menor
repugnancia; não se revoltou moralmente, não se mostrou
sens¡vel senão-ao pavor do trabalho, a obriga ão de dar
adeus aos seus h bitos de liberEno. NEo via no fi~ulo de
· for ado senão a possibilidade de ampliar o campo das suas
vilanias e baixezas. "Se temos que ser um gale, sejarrio-lo
f de todo. E quando a gente e um for ado, tem direito de
rastejar pelo chão, sem pudor." Era essa, literalmente, a
f sua concep ão da vida. Evoco como um fenomeno aquela
repugnante criatura! Vivi varios anos entre assassinos, ceie-
-rados confessos, libertinos, mas garanto que nunca +esterriu-
#

nhei queda moral mais completa, corrup ão mais total, bai-


xeza mais cinica. Tinhamos entre n6s um parricida de ori-
gem'nobr,e, - ia falei nele, +ambem - todavia pude me
convencer por meio de muitos fatos e palavras de que ate
mesmo esse individuo era incomparavelmente mais elevado
e mais humano do que A.. Durante todo o periodo de minha
11
¡ reclusão, esse desgra ado jamais foi senão um peda o de
carne com dentes e ventre, e com uma sede insaciavel pelos
prazeres mais sOrc¡licios; era capaz de tudo, desde que nao
1 1 corresse nenhum risco. Não exagero de modo algum. Es-
fudei A. profundamente, e reconheci nele um especime com-
pleto da animalidade que não ¢badece a nenhuma norma, a
nenhuma lei. E que repulsa me causava o sorriso eterna-
mente escarninho daquele monstro, daquele Quasimodo
moral! Al s, alem da sua asfucia e da sua infeligencia,
aquela fera possuia certa beleza, um pouco de ins+ru-
ão e algumas capacidades! Não - antes o incendio, antes
a fome e a peste do que a presen a na sociedade dum indi-
viduo de +ai especie! Ja contei que no presidio todos se
depravavam tanto que a espionagem e a denuncia flores-
ciam ... solta e a ninguem infamavam. Pelo contrario. os
defentos se mostravam muito mais amaveis com A. do
que conosco- Os favores que lhe dispensava o nosso maior
b bedo, davam-lhe valor e impor+ancia aos olhos dos
demais. Ele afirmara ao maior, entre outras cousas, que
sabia pintar, fazer retratos (aos defentos contava que era
#

104
DOSTOIEVSKI
tenente da guarda); o maior liberou-o do trabalho e o mandou
escoltar a, sua casa, afim de lhe aproveitar os falenfos. Vendo-
se Ia, A. se acamaradou com Fedka, a ordenan a, que tinha
uma ex+raordineria e-
5
temente sobre o presidio inteiro. E A ... v passou enfão a
fazer at relaforios a nosso respeifo, a pedido do proprio
maior,.que nas suas horas de bebedeira o esbofeloava, o
injuriava, lhe chamava de espião, de sabujo. Muitas vezes,
depois de o espancar, o maior se insfalava numa cadeira e
ordenava a A. que continuasse o retrato. Nosso maior, a
despeifo de o considerar um pintor nofavel, quase um Brul-
lov (3) (pois ouvira falar nesse mestre), achava-se todavia
no dineito de lhe bater no rosfo, - porque "por melhor pinfor
que sejas, esfas no presidio, e mesmo que fosses Bruilov em
pessoa, nem por isso eu deixaria de ser o +eu chefe, e de
fer o direito de fazer de ti o que en+endess.e". Ufilizava-o
afe para lhe tirar as botas e carregar o seu vaso noturno. En-
frefanto, demorou muifo fempo a convencer-se de que o
miseravel não possuia nenhum falen+o arfisfico. O refrato
arrasfou-se quase um ano in+eiro. O maior acabou por adi-
vinhar que o ludibriavam e compreendeu que. longe de ficar
pronto, em cada se 3o ficava o refrafo mais diferente.
Zangou-se, sovou o pintor, e o devolveu ao servi o pesado.
A. tinha bastantes motivos de queixa: sentia saudades dos
dias de vagabundagem, dos presentinhos, das sobremesas
furtadas a mesa do maior, do seu Fedka querido e da boa
vida que levavam os dois na cozinha.
Depois da queda de A., o maior deixou de perseguir
o defenfo M., contra quem o canalha o irritava incessanfe-
menfe pela razão seguinte: no momento em que A. chegara
ao presidio, M. vivia so, e presa de desespero, Nada tinha
em comum com os oufros gales, e os olhava com horror,
com repugnancia. Não reparava nem observava neles nada
(3) Pintor russo (1799-1852) descendente de uma familia de huguenotes fr
an-
ceses (Bruieleau). Representante do academicismo rom ntico, gozava nessa ep
oca um
renome que nos parece hoje bastante injusto. Seus retratos ali s são muit¡ssi
mo su-
periores aos seus quadros hist¢ricos. (N. de H. M.)
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
105
que o pudesse afrair, odiava-os em vnz de se aproximar deles
a ao
- e era pago na mesma moeda. espantosa a sifu ...
#

desses homens- M. ignorava a causa,que trouxera A. ali,


,enquanfo A., adivinhando com quem irafava, lhe cjar£n-
tiu logo que esfava no presidio não inculpado de dela ão
falsa, mas em virtude do mesmo delito que acarretara a
pena de M.. O pobre M. alvoro ou-se por encontrar en-
fim um companheiro, um irmão. Duranfe os primeiros dias,
supondo que o outro deveria sofrer muifo, frafou-o, conso-
lou-o, deu-lhe os seus Ulfimos vin~ens, f -lo comer separado,
partilhou com ele os seus obiefos mais indispensaveis. Mas
A. lhe +ornou aversão, desde logo, justamente por causa
dessa generosidade do outro, do seu horror a qualquer bai-
xeza, da sua falta de indenfidade consigo proprio. E tudo
aquilo que, nas suas primeiras confidencias, M. lhe revelara
sobre o presidio e o chafe, assim que teve um momento
propicio, A. se apressou em o fransmifir ao maior. O maior
tomou odio a M., e se não fosse a auforidade do governador,
teria decerto dado cabo dele. E A., não so não mostrou
nenhuma confusão quando mais +arde M. lhe descobriu a
feionia, como a+6 procurava encon+ra-lo para o escarmen+ar
com o seu sorriso ironico. Esse feito lhe causava uma ale-
gria visivel. Muitas vezes M. me fez reparar nisso. Aquele
infame canalha fugiu fempos depois, em companhia de um
outro for ado e um vigilan+e-, mais alem falarei dessa aven-
fura. Quando cheguei ao presidio, ele se pOs logo a me
rodear. pensando que lhe ignorava a hisforia. E, repito-o,
envenenou os primeiros dias da minha esfada na prisão, e
me aumentou o desespero. Horrorizava-me ante a igno-
minia na qual me via mergulhado. Supunha que ali não ha-
via senão sordidez, abje ão; mas estava enganado: e que eu
julgava todos os oufros presos pelo exemplo de A..
Durante os fres primeiros dias não fiz outra cousa senão
me arrastar pela fortaleza, ou esfirar-me na farimba. Enf re-
~uei ao defenfo que me fora indicado por Akim Akimitch
a fazenda destinada a me costurarem camisas, (pagava ai-
9
#

106
DOSTOIEVSKI
gumas moedas por camisa feita); depois, guiado sempre por
Akim Akimifch, arranjei um colchão dobradi o de feltro,
forrado de pano, delgadiss¡mo, e um travesseiro recheiado
de 15, duro demais para quern r30 esfava acosfurnado a ele.
Akim Mimi+ch dispendeu bastante esfor o para me arranjar
isso tudo, e com suas proprias mãos cosfurou-me um coberfor,
feito de farrapos da esfamenha dos umformes, resfos de ca -
sacos e cal as gastas at ao fio que comprei de varios deferi-
fos. Quando completam certo tempo, os umformes se for-
riam propriedade dos for ados, que imediatamente os reven-
dem no proprio presidio; por mais rota que pare a uma roupa
velha, não deixa de render qualquer cousa, mudando de dono.
Aquilo tudo me espantou muit¡ssimo. Era o meu primeiro
confacfo real com o povo. Eu me +ornara de repenfe fão
da "Plebe" fão "pres¡diario" quanto eles todos. Seus ha-
bitos, suas opiniões, seus cosfumes, +ornavam-se por assim
dizer os meus, pelo menos pela forma e pela lei, mesmo que
-não os partilhasse na realidade. Tinham-me prevenido,
e eu sabia o que esperar; mas não ficaria mais surpreso nem
mais envergonhado se nada houvesse esperado daquilo, antes.
A realidade produz uma impressão muito diferente daquilo
que s0 conhecemos por ouvir dizer. Suporia euPiamais, por
exemplo, que farrapos sujos, que trapos velhos pudessem
fer algum valor? Entretanto, ufilizava-os para fazer uma
coberta! difi~il explicar como e o pano com o qual ves-
tem os for ados. Aparentemente, parece 13, burel. esfame-
nha de soldado espessa e grosseira; mal a genfe o vesfe, se
desfia e se fura lamentavelmente. Davam-nos umformes
novos todos os anos, e durante esse lapso de tempo era com
esfor o que o conservavamos. O defenfo frabalha, carrega
pesos, a roupa se gasfa e se rasga muito depressa. So reno-
vavam as nossas peles de carneiro de fres em fres anos; con-
tudo, tinham que nos servir de capa, de coberfor e colchão.
Embora uma pele de carneiro seja s61ida, algumas delas, espe-
cialmenfe no fim, consfifuiam apenas um £nico remendo.
Quando atingiam os fres anos, embora usadas ao maximo
possivel, valiam ainda uns quarenfa copeques. Algumas,
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
mais bem conservadas, chegavam a sessenta e setenta co-
peques, qua . rifia elevada, para o presidio.
107
O d;nhe;ro +ambem - ~... fiz a isso uma r pida referen-
cia - tinha um valor extraordinario. um poder assustador.
#

Pode-se afirmar que um preso possuidor de alguns recursos


sofre dez vezes menos que aquele que nada tem. Quando o
governo fornece tudo, para que se quer dinheiro? assim
que a nossa adminisfra ão raciocina. Entretanto, repito-o,
se os defenfos fossem privados da faculdade de possuir al-
gum dinheiro, enlouqueceriam; ou morreriam como frioscas
(embora "providos de tudo") ou, então, enfregar-se-larri aos
piores desmandos, uns por desespero, outros para mais depres-
sa serem punidos e aniquilados, e desse modo mudarem, de
qualquer fo~rma, o curso do proprio destino ("mudar de
sorfe" a expressão t cnica). Se depois de ganhar alguns
copeques, suando sangue e agua, ou depois de obter o di-
nheiro por alguma as+ucia excepcional ajudada muitas vezes
pela fraude ou pelo roubo, o defen+o se põe a gastar ...-toa,
com o descuido de uma crian a, isso não quer dizer - em-
bora o pare a, ... primeira vista - que ele não sabe o pre o
do que ganhou. O gale +em -pelo dinheiro uma avidez que
vai at -ao espasmo, ate ... obnubila ão do juizo; se quando
se diverte o afira ... direita e ... esquerda, como cavacos sob
o cepilho, para se apropriar de algo ainda mais precioso.
E que cousa essa, mais preciosa para ele do que o dinheiro?
A liberdade, ou pelo menos a ilusão da liberdade perdida.
Os for ados são grandes sonhadores. Falarei disso mais
tarde; ia, porem, que a palavra sonho me caiu da pena, posso
afirmar que ouvi condenados a vinfe anos me dizerem em
tom perfeifamenfe calmo, frases desta natureza: "Espera
um pouco, quando eu acabar meu tempo, se Deus quiser,
então vais ver..." A id ia +raduzida pela palavra "de+en-
+o" e o homem privado do seu livre-arbitrio. Mas quando
esse homem gasta o seu dinheiro "faz o que quer". Apesar
das testas marcadas a fogo, das grilhetas, do muro odiado
que lhe fira a vista do umverso e o fecha como um animal
#

108 DOSTOIEVSKI
feroz na jaula, - ele pode obter aguardente, isto e, um
prazer pelo qual incorre em castigo severo. Pode arranjar
uma mulher, e, ...s vezes, (embora nem sempre) subornar os
vigilan~es, o inv lido, ou mesmo o sub-oficial, que farão vista
grossa ante sua infra ão a disciplina. Pode at - e adora
isso - pavonear-se diante dos colegas, isto e, persuadi-los,
como se persuade a si proprio,-de que e livre, - embora
por fempo, Ilimifado. Tem necessidade de supor e de fazer
supor que sua liberdade e sua iMporfancia t m um alcance
infinitamente mais extenso do que parece, que ele tem liber-
dade para se divertir, para fazer barulho, ofender os outros
af obriga-los a se meterem debaixo do chão, se lhe der
na veneta. ~Enfim o desgra ado procura convencer-se e
convencer os outros daquilo que sabe impossivel. Dai vem
provavelmente, mesmo entre os defenfos sobrios, essa feri-
dencia para a gabolice. para a temeridade, para um cOmico,
um ingenuo exagero da propria personalidade, ainda que
aquilo, para eles proprios, não passe de uma miragem. To-
dos esses prazeres, afinal, comportam um risco - mas pro-
porcionam uma ilusão de liberdade. E que e que não se da
pela liberdade? Qual o milionario, que vendo-se estrangu-
lado por um no corredio, não trocaria todos os seus milhões
por uma golfada de ar?
O pessoal da administra ão se espanta ...s vezes quando,
depois de varios anos de vida sossegada, um defento - no-
meado ate "monifor" gra as a sua boa conduta '- sem ne-
nhum pretexto plausivel, como levado pelo demonio, se poe a
fazer asneiras, a beber, a aifercar, a cometer ate mesmo cri-
mes capitais, como falta de respeito aos superiores, es-
fupro, assassinio, e+c. . . Espan+a-se, e no entanto a causa
daquela explosão subita, que ninguern esperaria de tal in -
viduo, provem talvez de uma insidiosa magoa, da saudade,
de uma angustia instintiva, de uma necessidade de afirmar o
seu eu humilhado, deixando transbordar cegamente todo o
seu odio, af ao paroxismo, ate ao furor, af ao espasmo da
epilepsia. Assim, talvez, procede o homem que desperta
RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS 109 i
1
fechado vivo num caixão, esmurra a tampa do ca+afalco e
mune todas as suas for as para o despeda ar. Não reflete,
não procura convencer-se de que foclos os seus esfor os serão
inu+eis, oois a razão absolutamente não intervem nesses casos.
precis o ainda considerar que qualquer manifesta ão de per-
sonalidade, partindo de um for ado, 6 qualificada como
crime: pouco lhe importa, pois, a extensão do desastre cau-
sado por aquela repentina revela ão que faz de si proprio.
Se a dissipa ão, a orgia, j representam um risco, pode-se
#

muito bem arriscar tudo de uma vez, ir ate ao fim, at ao


crime. Basta apenas come ar, basta o homem embriagar-se.
Depois disso, nada mais lhe serve de barreira, nada mais o
retem. Eis porque seria melhor não levar ao desespero esse
homem. Representaria a franquilidade para todos.
Sim - como, porem, o conseguir?
#
vi
O primeiro mes
(continua ão)
por ocasião de minha chegada ao presidio, possuia eu
algum dinheiro; mas trazia comigo, apenas, uma pe-
quena quanfia, com receio de que a confiscassem.
Por seguran a, colara algumas notas na encaderna ão do
meu Evangelho, £nico livro 16 admitido. Esse livro, com o
dinheiro escondido dentro, me fora dado em Toboisk por
alguns deportados que, exilados ia ha dezenas de anos, se
finham habituado a vor em cada "desgra ado" um ir-
mão (1). Ha na Siberia pessoas cuja umca preocupa ão e
ajudar fraternalmente os "desgra ados". Inquietam-se, so-
frem por sua causa como se se tratasse dos seus proprios
(1) O romancista se refere aos insurrectos de dezembro de 1825, conheci
dos pelo
nQme de "d cembrist is". (N. de H. M.)
#

112
DOSTOIEVSKI
a
filhos; sentem por eles uma compaixão desinfeiressada. Devo
dizer, aqu¡, algumas palavras a respeito de um encontro mei
com uma dessas pessoas. Na cidade onde ficava o nossc
presidio, morava uma viuva, Naihalia ivanovna com quem
claro, nenhum de nos poderia estabelecer rela ões. Essa
mulher parecia haver consagrado a vida a socorner os
exilados, e, principalmenfe os for ados. Teria, por acaso,
sofrido na sua familia uma desgra a igual a nossa, algum ente
querido,Seu feria recebido castigo id ntico? Ignoro-o, mas
sua felicidade consistia em fazer por nos tudo que lhe esfava
ao alcance. Pouco, alias, porque era paup rrima. E, en-
frefanto, no`s, os encarcerados, senfiamos que do oufro lado
dos muros da fortaleza vivia uma amiga fiej. Ela nos fazia
chegar noticias para nos muito imporfarifes. Quando deixei
o presidio, com destino a outra cidade, tive oporfunidade
de a visifar. Vivia num fim de rua, em casa dum parenfe
prOximo. Não era nem mo a nem velha, nem bonifa nem feia;
não se poderia sequer adivinhar se era infeligente ou edu-
cada. Notava-se apenas, em cada um dos seus afos, uma
bondade infinita, um desejo irresistivel, de servir, de aliviar
,
de ser agradavel. Tudo isso se lia nos seus olhos bondo-
sos e meigos. Passei em sua casa quase um serão todo, junfo
com alguns companheiros. Ela nos fitava os olhos, ria quando
riamos, partilhava das nossas opiniões, e esfor ava-se ao m -
ximo para nos obsequiar da melhor maneira possivel. O ch
foi servido com uma merenda e alguns doces. Via-se bem
que, se possuisse ela alguns milhares de rublos, a sua maior
felicidade seria reconfortar os nossos camaradas que ficaram
no presidio, alivia-los. Na hora da despedida, deu-nos como
recorda ão umas cigarreiras. Ela propria os ;ecorfara em
papelão, e colara por cima - sabe Deus como! - papel
colorido, desses que cobrem os compendios de aritm tica
usados nas escolas (falvez houvesse realmenfe utilizado uma
arifrnefica). Em +orno, por elegancia, pusera um estreito
friso de papel dourado, comprado decerfo na loja para esse
fim. "Os senhores fumam, nSo e mesmo? Então isfo aqu¡
talvez lhes sirva," d,;s-se-nQs ela timidamente, como se pediss
e
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
~ 4
.1
J
113
#

desculpas pela modicidade do presente. Alguns pre+enden


G6 o li eouv¡ dizer) que o mais elevado amor que possamo
f~` P-~C n0550 PrUrno, não passa dum imenso egoismo. Poi
não compreendo absolutamente que qualidade de egoism
poderia ditar a conduta daquela mulher!
Embora não fosse nada rico ... minha chegada ac
presidio, não me podia zangar deveras confra alguns for ado
que me lograram quase que no primeiro insfanfe, e volfavarr
cinicamente a pedir dinheiro emprestado segunda, ferceira E
af quinfa vez. Mas, devo reconhec -lo francamenfe, o que
me vexava e que todas aquelas criaturas, com suas ingenuas
asfucias, me +ornavam sem duvida por um folo e zombava
de mim precisamente porque eu lhes dera o dinheiro pela
quinta vez. Supunham que ma enganavam com suas men-
+iras, e pensavam que não era mister se consfrangarem co-
migo; e se, ao confrario, eu os houvesse repelido com dureza,
feria cerfamenfe conquistado a estima geral. Contudo, por
mais que me irritasse, não conseguia recusar: minha irrifa ão
provinha justamente da inquiefa ão que me assaltava, em
rela So a atitude que deveria manter para com eles. Eu
sentia, compreendia, naquele meio infeiramen+e novo para
mim, que me encontrava em plena noite, e que a vida e im-
possivel nas trevas. Era, portanto, imperioso que ma prepa-
rasse. E, para isso, eu resolvera agir fraricamenfe, deixan-
do-me guiar por meus senfimenfos ¡nfimos e minha conciencia.
Enfre+anfo, sabia fambem que tudo isso não passava dum
aforismo, a que diante de mim se apresentava a mais desco-
nhecida das experiencias pr ticas.
Assim, ao lado das pequenas preocupa ões referenfes
a minha instala ão na caserna, (preocupa ões a que ia me
referi e nas quais era guiado por Akim Akimi+ch), ia pos-
suindo-me uma angustia cada dia mais atroz. "A casa dos
mor+os", repetia eu, olhando, afraves do crepUsculo, para a
porta da caserna. os for ados que volfavam do trabalho e
que vagueavam pelo , pafio, indo e vindo dos alojamentos para
as cozinhas. Pelas atitudes e pelas caras, esfor ava-me por
lhes adivinhar os carac+eres. Passavam e repassavam diante
#

DOSTOIEVSKI
de mim, com a testa franzida ou simulando uma ruidosa ale-
gria. (Esses dois aspectos são os mais frequentes, e podem
mesmo caraterizar o presidio). Praguejavam ou falavam
simpiesmente entre si, ou então se aTraSiavam, como para
mergulhar em medita 5es solitarias, uns com o ar tranquilo,
calmo, outros com jeito abatido e displicente, e alguns
(af mesmo Ia) com ar fafuo, o bone dum lado, a pele de
: L
carneiro atirada a um ombro, o olhar insolente e escarn ri o,
o sorriso cinicamente zombeteiro. "Agora, e este o meu
ambiente, e esta a minha sociedade, medifava; quer eu o
queira quer não, e aqu¡ que devo viver." Tinha vontade de
interrogar Akim Akim¡+ch a respeito deles. Gostava muito
de tomar cha em sua companhia, afim de me sentir menos s0.
Diga-se de passagem, durante esses primeiros dias o cha foi
praticamente a minha £nica alimenta ão. Akinn Akimifch
não recusava nunca os convites, e preparava, ele proprio,
o misero samovar de lata, utensilio improvisado que M. me
emprestara. Ado ava em geral um copo de ch (pois Akinn
ate copos possuia!) em silencio, cerimoniosamente, depois be.
bia-o dum trago, agradecia, e imediatamente voltava ... con-
fec ão do meu cobertor. Mas o que eu tinha necessidade
de saber, ele não me podia comunicar; não compreendia
por que me interessava tanto pelo cara+er dos for ados
que nos cercavam: escu+ava-me com um sorriso finorio, que
ainda hoje me recordo. . . "Não, não devo perguntar nada;
cada um tem que fazer sozinho as suas experiencias", refle-
+ia eu.
No quarto dia, do mesmo modo como na manhã em que
me trocaram a grilhefa, os for ados, bem cedinho, se reu-
niram em duas fileiras no pafio, em frente ao corpo da
.guarda, perto da porta de entrada. Diante e por tiras deles
esfendiam-se duas ordens de soldados, de armas embaladas,
baionetas caladas. Qualquer soldado +em direito de atirar
num defenfo, se este faz men ão de se evadir. Em compen-
sa ão, fica responsavel pelo firo, se não o deflagrou em caso
de absoluta necessidade. Acontece o mesmo nos motins dos
for ados; mas quem ousaria fugir na frente de todo o mundo?
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
115
Um oficial de engenharia, diretor dos trabalhos, apa-
receu em companhia de alguns sub-oficiais e sapadores da
mesma arma, designados como moni+ores. Fez-se a cha-
mada. Os de+en+os que trabalhavam na oficina de cos-
tura partiram antes dos outros: esses alfaiates do presidio
#
nao dependiam da engenharia. Depois deles, foram-se
os que tinham oficio, e afinal chegou a vez dos simples ta-
refeiros, uns vinte homens mais ou menos, entre os quais
me encontrava. Aftas da fortaleza, sobre o rio gelado,
havia dois velhos barcos (propriedade do governo), que era
preciso desmontar para lhes aproveitar pelo menos a ma-
deira. Alias, esse material não valia nada, pois a madeira
era barafissima na nossa cidade, rodeada de imensas fio-
restas. Mandavam para Ia os for ados umcamente para
os impedir de cruzar os bra os; e, como eles o compreen-
diam muito bem, empreendiam sempre essa tarefa com mo-
leza e apatia. Sucedia cousa muito diversa quando o +ra-
balho tinha uma razão, uma finalidade, sobretudo quando
os nossos homens conseguiam obter uma tarefa de+ermi-
nada! Imediatamente se animavam. e, embora não deves-
sem receber nenhum proven+o pelo labor feito, pude cons-
+atar quanto se esfor avam para o concluir depressa e
bem: e que entrava em jogo o seu amor-proprio- Mas
nessa Iqbu+a a que me refiro, feita mais por formalidade que
-por necessidade, seria dificil pedir uma tarefa: era preciso
portanto lidar ate o rufar do tambor, que, as onze horas da
manhã, anunciava a volta.
O nosso grupo inteiro se dirigiu para a margem, num
filinfar de grilhetas, porque elas. embora escondidas sob a
roupa, produ7iam a cada passo um som claro e breve. Dois
ou +r s homens foram apanhar no deposito os ufensilios
indispensaveis. Eu caminhava com eles e me sentia mais
animado: enfim, ia ver com meus olhos em que consistiam
os trabalhos for ados; e como seria que eu, que jamais
utilizara al minhas mãos no trabalho, iria me sair da em-
preitada?
#

116
DO,5TO I EVSK I
Recordo o.,9- mais infimos detalhes dessa manhã. Em
caminho encontramos um sujeito de barbicha, q!je se de-
me
teve e rgulhou a mão no bolso. Imediatamente um de-
tento se destacou do grupo, tirou o gorro, recebeu a es-
mola - cinco copeques, - e voltou les+amente ao seu
lugar. O homem se persignou e continuou o caminho. Na-
quela mesma manhã os cinco copeques foram gastos na
compra de kalafchi, partilhados igualmente entre todos.
No nosso grupo. uns se mostravam sombrios, facitur-
nos, outros indiferentes, inertes, outros conversavam apa-
ficamenfe. Um de nos, ate, francamente elegre, cantava
e dansava em caminho, fazendo a cada salto ressoarem os
ferros. Era aquele mesmo preso atarracado que na manhã
de minha chegada ao presidio brigara com o outro for ado
que pretendia ser um 11(agari. Chamava-se Skura+ov, e en-
toava uma cantiga agradavel, da qual , me recordo do
estribilho:
"Eu estava no moinho
"quando me casaram
"sem me consultar".
SO lhe faltava uma balalaica.
Seu ex+raordinario bom humor teve o condão de irritar
alguns dos companheiros, que deram largas a sua indigna ão.
- Para com esses lafidos! rosnou um for ado que
não tinha nada com a hisforia.
- O lobo s6 sabe uma cantiga e, assim mesmo, ele
a imita! Não e a-+oa que vem de Tula! disse um dos mal-
humorados com sotaque da Ucrania.
- Tenho muita honra em ser de Tula, respondeu ime-
dia+amen+e Skura+ov. Mas voces de Polfava cheiram a
galuch¡lti - ainda +em a goela cheia de galuchkR (2)
- (2) 'Os habitantes de Tula são acoimados de ladrões; devem sem d£vida es
sa
reputa ão aos operarios (recrutados ... for a por toda parte) das c lebres forjas
fun-
dadas por Pedro o Grande na capital da provincia.
Os de Poltava são extremamente gulosos de um bolo de carne a que chamam
galuchiki, muito semelhante ...s nossas alm"ndegas.
São muito comuns essas zombarias entre os naturais das diversas provincias
. (N.
de H. M.)
A DOS MORTOS
RECORDA õES DA CAS
117
#

- Mentiroso! E tu, sabes a que e que cheira o teu


focinho? Decerto cheiravas os teus tamancos!
- E agora o diabo Q ceva com balas de rifle! acres-
cen+ou um terceiro.
- Vou contar a verdade a voces, rapazes, responde
Skuratov. Fui um menir·o mimado...
E deu um leve suspiro, para significar que a sua ecluca-
ao efeminada o fazia sofrer. Depois, dirigindo-se a todos,
continuou:
- Se bem me lembro, fui educado muito bem; criei-me
com "mã"e melada" e " descom porta". (Skurafov estropia-
va deliberadamen+e as palavras "marmelada" e "compo+a").
Hoje, meus irmãos t m estabelecimento em Moscou, vendem
pasteis de brisa e es+So riqu¡ssimos.
- E tu, que e que vendias?
- Vendia de tudo. Quando recebi os primeiros du-
zentos ...
- RuUos? Ser possivel? in+orrompeu~ um -curi'õso,
saltando quase, ao ver falar em quantia tão grande.
- Não, mano velho, não foram duzentos rublos, foram
duzentos a oites. Ah, Luka, Luka!
- Dobra a lingua-, v Ia se me podes chamar de Lu¡ a;
chamo-me Lu¡ & Kusmifch, replicou ofendido um preso pe-
queno e magro, de nariz pontudo.
-s- Sim, Luka Kusmifch, e que +e leve o diaboi ...
- Sim, Luka Kusmifch, mas tu me deves chamar "+io
Kusmi+ch".
- Diabos +e carreguem a fi e ao teu flo! Não adiar+a
nada +e contar cousa nenhuma. E eu que estava sendo deli-
cado contigo! E então pessoal, não pude demorar muito
Umpo em Moscou; eles me obsequiaram gentilmente com
quinze a oites de knuf e me mandaram para ca. Então ...
- Que e que tinhas feito? observou um defento que
ouvia com aten ão.
- Não fa as quarentena, não bebas no gargalo, não
te metas a engra ado .............3
E, por isso, amigos, n o me era
b
#

118
_DOSTOIEVSKI
possivel fazer fortuna em Moscou. E eu que queria tanto
enriquecer! Nem posso dizer quanta vontade Enha!
Muitos se puseram a rir. Skurafov era uma dessas cria-
turas bem humoradas, desses gaiatos que acabam Obrigando
a rir todo o mundo, ate os mais tristes, e em troca não re-
cebem senão desaforos. Pertencia a um tipo de for ado
nofavel e muito singular, do qual ~alvez ainda me ocupe.
- Sim, e agora podes ser esfolado como uma zibelina,
retrucou Lu¡ a Kusm¡fch. So tua roupa dava bem uns cem
rublos!
Skura+ov usava com efeito a n---lgnisgasta, a mais remen-
ciacia, a mais rapacia (Ias peles de carneiro; de todos os
lados lhe pendiam farrapos. Ele olhou-a de alto a baixo,
com ar indiferente porem atento:
- E verdade, concordou, mas em compensa ão minha
cabe a vale em ouro o que pasal Quando me despedi de
Moscou, o que ainda me consolou foi ter minha preciosa
cabe a em cima dos ombros. Adeus, Moscou, vivam teus
banhos turcos e feus bons ares, viva ate a surra que levei!
Quanto a minha pele de carneiro, paizinho, se não a olhares
ela não te doera nos olhos!
- Então a gente s¢ pode olhar para fua linda cabe a?
- E se ao menos a cabe a fosse dele! debicou Luka'
Kusmitch. Foi-lhe dada de esmola quando o comboio pas-
sou por Tiumene.
- Escuta , Skurafov. tinhas ao menos um oficio?
- Oficio, ele? Era guia de cego, disse um dos irri-
fados. E enquanto o cego cantava os benditos, ele unhava
as codeas que lhe punham no prato!
Com efeito, respondeu Skura+ov que não ligara m-
porfancia a maleclicencia do outro. ainda tentei cosfurar bo-
tas, entretanto não passei do primeiro par!
- O que? E te compraram esse par?
- Decerto! Passei-o a um sujeito que não respeitava
pai nem mãe, nem tinha fernor de Deus ... mas foi casfi-
gado: comprou-me o par de botas!
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
119
Romperam risadas em redor de Skuratov.
- Aqui, uma vez, -experimentei de novo ser sapateiro,
continuou Skurafov com imperfurbavel calma. Remendei as
#

botas do lenen+e Sfepan Fioclorovi+ch Pomorfsev.


- E ele ficou satisfeito?
- Infelizmente não! Disse-me os piores desaforos e ain-
me deu uma joelhada no lombo... Ficou uma fera!
meus cordeirinhos, que desgosto tem sido esta droga
da
Ai,
da minha vida!
"Depois de um bom momento
"O marido de Akulina
"Apareceu no patio...
Cantarolava de novo, batendo o facão em terra e sal-
fitando.
- Oh, que idiofal rosnou o ucraniano. que caminhava
a meu lado, lan ando para Skura+ov um olhar de oclienfo
desprezo.
- Não vale nada, disse outro em fom definitivo.
Não compreendi por que eles tinham raiva de Skura+ov,
g%rem ia tivera fempo de observar que, ali, os homens alegres
ozavam de um desprezo geral. O odio do ucraniano e dos
outros parecia-me provir de algum ressentimento. Mas es-
fava enganado. Tinham-lhe raiva porque se portava mal,
porque carecia daquele ar de falsa dignidade' do qual se
confagiam todos os for ados, e que os impregnava ate a
afg+a ão. Em suma, segundo a expressão deles, Skura+ov
"não valia nada". Entretanto, nem todos os engra ados eram
tratados como Skurafov e mais alguns. Mais de um, com
efeito, se fazia respeitar; enquanto o bom rapaz, sem ma-
licia, so colhia desdens, o gaiato que mosfrava os dentes
e não consentia que ninguem lhe pisasse o pe impunha res-
peito. Havia precisamenfe um engra ado desse Ultimo fei-
fio no nosso grupo, todavia so o conheci sob seu verdadeiro
aspecto um pouco mais +arde. Era um camarada de ex-
fer¡or bem agradavel, com uma grande verruga na face,
e um rosto delicado e bonito, mas de expressSo muito co-
#

120 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA CASA


DOS MORTOS 121 , 1
mica. Chamavam-no o "Explorador" por ter outrora ser-
vido nos batalhões de engenharia. Pertencia a se ão es-
pecial. Ainda falarei a seu respeito.
Co-n+udo rem todos os for ados "ser-lcs11 - er-~m +-go
expansivos nem tão irri+adi os quanto o homem da Ucra-
nia. Alguns procuravam conquistar a proeminencia por sua
habilidade no trabalho, pelo carafer, pela in+eligencia, pelo
espirito. A muitos deles, com efeito, nSo faltava nem in-
teligencia nem energ;a, para atingirem o fim visado, - isto
, renome e uma grande influencia moral entre os colegas.
Essas especies de virfuoses eram muitas vezes inimigos fi-
gadeis uns dos cu¡ios, e cada um sozinho criava ao seu
redor muitos invejosos. Olhavam para os simples for ados
do alto da sua impor+ancia, e não sem desprezo; evitavam
brigw inuteis, eram muito bem cotados, e de certo modo
dirigiam os trabalhos. Nenhum deles discutiria com os ou-
fros por causa de uma carifiga; não se rebai,, avam a isso.
Comigo, esses principes se mostravam de uma amabilidade
absoluta, durante todo o periodo da minha defen ão; mas
fambem lac"nicos, - ques+So de dignidade, certamente. Te-
rei que fai,,, dz3 novo sobre esses, aincia.
Chegamos a margem. Em baixo, no rio, o velho barco
a demolir estava preso no gelo. Do outro lado do rio, a
estepe azulada se estirava, vazia e triste. Pensei que todo
o mundo se iria atirar ao trabalho, todavia ninguem cuidava
nisso. Alguns se sentaram numas vigas que por Ia rolavam;
quase todos tiravam da bota uma +abaqueira - cheia da-
quele espesso fumo siberiano que era comprado em folhas,
a +¡rinia copeques a libra, - e um cachimbo curto de ma-
deira de salgueiro feito no proprio presidio. Puseram-se a
fumar, os soldados da escolta nos rodearam, em circulo, e
come aram a sua vigilancia com ar en+ediado.
- Que ideia, desmanchar esse barco! resmungou um
dos gales, sem se dirigir a ninquem. Sera que precisam de
madeira?
- Decerto quem se lembrou disso foi alguem que não
+em medo de nos, retrucou um outro.
- Para onde, diabo, irão aqueles mujiclues? indagou
o que falara em primeiro lugar, sem mais pensar na sua
pergunta e sem escutar a respos+a, apontando com o dedo,
ao longe, um grupo de gen+e que caminhava em f*,Ia por
sobre a neve imaculada. Todos, sem pressa, se volveram
para o lado indicado, e, por desfasfio, cobriram de apodos
os muiiques. Um dos passantes caminhava de modo muito
engra ado, afastando os bra os e inclinando a cabe a co-
berta com um alto gorro de pele, redondo como um broa.
- Olha, compadre, como que o 'mano Petrovitch
caminha! pilheriou um outro, arremedando a fala dos mu-
#

jiclues.
Coisa curiosa, embora metade deles fosse proveniente
da aldeias, todos os for ados olhavam por cima do ombro
os camponeses.
- Olha o de+ras, não parece que esta plantando nabos?
- Aquele gordo? Esta com a moleira pesada: de-
certo tem dinheiro demais!
Todos ~desataram a rir, mas com um riso arrastado,
sem, alegria. Nesse momento apareceu uma vendedora de
kalafthi, alegre e esperta.
Compraram-lhe os cinco copeques que o homem dera
de esmolae dividiram a compra com toda a equidade.
O rapaz que revendia os kalafchi na caserna adquiriu
duas duzias e exigiu tr s kalaMbi de comissão, em vez dos
dois que habitualmente recebia. ,N mulher, porem, não lhe
deu ouvidos.
- Então, tu fambem vendes aquilo?
- Aquilo o que?
- Aquilo que rato n o rOi?
- (Espera senvergonha! respondeu a vendedora com
uma gargalhada.
Enfim apareceu, com uma bengala ... mão, o nosso sub-
oficial encarregado -dos trabalhos.
- Que que es+So esperando? Comecem!
- Bem, Ivan ~veifch, d ... gente uma tarefa! disse
um dos monifores, erguendo-se lentamente do seu lugar.
10
#

22 DOSTOIEVSKI
- Não podiam pedir tarefa mais cedo? A tarefa
agora e desmontar o barco.dos e caminharam sem pres
Ergueram-se afinal os for a os mon*lores
sa para o leito do rio. Apareceram no grupo 1
- que o eram pelo menos no nome. Demonstraram que
não se devia deswnchar o barco a torto e a direito, mas
tanto quanfo fosse possivel conservar as fabuas, e, sobre-
tudo, as costelas verticais, fixas por meio de cavilhas em
todo o comprimento do barco - trabalho longo e fastidicso.
- Em primeiro lugar, arranquem-me essa viga pequena!
Vamos, rapazes! propOs um dos for ados, quieto, pouco con-
versador, e que at então não dera um pio. E inclinando-se,
segurou com ambas as mãos uma viga grossa, esperando au-
xilio. Ninguern entretanto o ajudou.
- Experimental Não a levantas sozinho, e mesmo que
o urso do teu av" estivesse aqui, pão creio que a levan+assei
rosnou alquem.
- Mas então, minha gente, por onde se come a*? ...
continuou em tom lastimoso aquele que iniciara o trabalho.
Largou a viga e se endireitou.
- De qualquer jeito, fu, sozinho, não vais dar conta
do trabalho. Não adianta +e fazeres de esperfo.
- Não - sabe dar milho a Ires galinhas e est aqu¡ se
fazendo de Sabido! Olhem esse anão!
- Ora, ou am, eu ia dizendo. . . tentou explicar o
homem.
- Então como ? Vou por voces debaixo de uma
redoma, ou mando salgar a todos, durante o inverno? gri-
+ou o sub-c,ficial, olhando com certo mal-,es+ar para aqueles
vinte homens reunidos, que não sabiam o que fazer de si.
Vamos, andem! Toquem com issol
- A gente com pressa não faz nada direifo,.Ivan Mat-
veifch!
- E por isso que esperas? Anda, Saveliev, con-
figo que estou f lando, lingua de frapoi est s esperando o
que? Porque arregalas as olhos? Anda com isso!
- Que e que eu posso fazer sozinho?
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
123
Marque uma tarefa, Ivan Mai^veitchi
Ja disse que não h tarefa! Desmanchem o barco,
-0
d.ei, IS Voltem! Andem!
Puseram-se afinal a trabalhar, mas sem gos+o, sem je~fo.
Era triste ver homens tão vigorosos aparentemente incapazes
#

de dar conta daquele trabalho. Mal tinham come ado a


desfacar a primeira e a menor das costelas e ala se quebrou.
"Quebrou-se soiinha", disseram como justificativa ao vigi-
larife. Não se podia pois continuar daquele modo. E se-
guiu-se uma longa discussão enfre os defenfos, acerca da
maneira de frabalhar. Pouco a pouco, foram-se ouvindo
insultos, e a cousa amea ava ir mais longe. . . ,
O vigilante tornou a gritar, agitando o bastão, en-,
juanfo outra trinca de novo se qu brava.
Verificaram então que falfavam machados, e que era
preciso ainda frazer mais não- sei que utensilio indispensavel.
Imedia+amenfe foram dois for ados escoltados ate a for+a-
leza; enquanfo esperavam, os outros sen+aram-se sossega-
damente no barco, tiraram as +abaqueiras e os cachimbos
e recome aram a fumar.
O sub-c,ficial cuspiu de raiva.
- Sim, est se vendo que nenhum de voces ha de
morrer de trabalhar! Que gente! que gente! bufou o ho-
mem. Depois, com um, gesto impofente, retomou o cami-
nho da forfaleza agitando o bastão.
O clirigenfe dos trabalhos chegou uma hora ap6s.
Escutou cairmamenfe as queixas dos presos, anunciou que
dava quatro trincas para descavilhar sem quebrar, como
tarefa, e, mais ainda, um bom peda o do barco a desfazer;
depois disso, poderiamos voltar. A farefa era pesada, mas
ob, meu Deus! como se atiraram a ela! Ja não havia inercia,
j não havia hesita ão: ~ os machados enfraram a dansar.
arrancaram-se as cavilhas. Os que não tinham machados,
punham escoras sob as trincas, e vinte mãos pesando sobre
elas simulfaneamen+e, as frincas saltavam do lugar direi-
tinho, artisticamente, e para surpresa minha, absolutamente
#

124
DOSiOIEVSKI
infactas. O trabalho se adiantava rapiclamenfe. Todos,
de chofre, pareciam aptos para a labuta. Ja não se ouviam
pracias, j6 não se ouviam discussões inufeis; cada um sabia
que gesto fazer, que conselho dar. Meia hora antes do
rufar do tambor esfava feita a tarefa e os for ados volfa-
ram ao presidio cansados, mas satisfeitos. Aquela meia
hora ganha sobre o tempo de servi o os pusera, a todos,
de, bom humor.
Quanto a mim, fiz uma observa ão curiosa. Por toda
parfe onde eu me queria meter, para os ajudar, era afasfa-
do; não servia em parfe nenhuma, i,ncomodava em +od4
parte, mandavam-me embora de foclo lugar, quase com in-
sulfos. O pior esfarrapado, o mais rus+ico labrego que não
se atrevia a dizer uma palavra diante dos companheiros
mais desenvoltos, achava-se no dineifo de me atirar desa-
foros se eu parava perto dele, e prefendia que o incomo-
dava. Enfim um dos "O'espachados" me falou bru+alm,eri+e:
- Não fiques parado ai! Para que vens te meter onde
n5o es chamado?
- Engole essa, aprovou logo um outro. -
- Arranja um mealheiro e vai pedir esmola para a
consfri~So da igreja e a clerrubada da taberna! Aqui não
feris nada que fazer! bradou um ferceiro.
desagradavel ficar de pe, com osbra os balan ando,
quando fodos trabalham. E, enfrefanfo, quando quis real-
menfe me afastar para o outro exfremo do barco, recome a-
ram os gritos.
- Na verdade, bons ajudantes nos digol Mal a genfe
lhes enfrega um servi o, caem fora!
Tudo aquilo era feito de prop¢sito. Sentiam prazer
em humilhar o karine que eu era, e aproveitavam a oca-
siso.
Concebe-se agora por que a primeira pergunta que
eu fiz a mim propric, foi para saber como me compgrfaria
com aquela gente. Pressentia que feria com eles frequen-
tes choques claquela especie. Apesar disso resolvi não ai-
+erar nada no plano de conduta que me tra ara, e qua sa-
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
125
,b¡a correto. Eis no que consistia esse plano: portar-me o
mais simplesmente possivel, man+er-me independente, sriSà
fazer o menor esfor o para me aproximar deles, mas +am-
bem não os repelir se ma procurassem; não lhes recear nem
as amea as nem o odio, agir como se deles não me aperce-
#

besse; não lhes chegar perto em cerfos momentos, nem me


cumpliciar de certos costumes e h bitos seus; em suma,
não procurar esporifaneamenfe a sua camaradagem. Eu
adivinhara ao primeiro olhar que eles ficariam me despre-
zando de inicio se eu agisse de modo diverso. Porque,
na opinião geral, (soube-o mais +arde com certeza) minha
origem nobre me autorizava a arrotar imporiancia a frente
dos outros, - isto , procurar considera ões, mostrar-me
susceptiv¡pi e exigente, -e não fazer nada com os meus dez
dedos. Esse pro edimento me feria granjeado insultos
abertos, e o ¡nfimo respeito de foclos. Porem era papel
que nao me convinha: nunca assumi para com eles as manei-
ras que eraM consideradas adequadas a um barine, mas em
compensa ão jurei a mim propric, nunca rebaixar, por uma
concessão, minha educa ão e meus pensamentos infimos. Se
me houvesse misturado com eles, se me houvesse proposto a
granjear as suas boas-gra as por maio de familiaridades e
condescendencias, concluiriam imediafamente que eu agia
assim por covardia, e me tratariam de acordo com essa con-
clusão. A ... v não era exemplo que se pudesse seguir: denun-
ciava-os ao maior, e era temido por todos. Por oufro lado,
eu não desejava, como os polacos, isolar-me numa frieza e
numa pol ` idez altivas. Via muito bem naquele momento que
eles estavam com raiva porque eu procurava me +ornar ufil,
em vez de fazer caretas e me queixar. C~erfo embora de
que mais +arde seriam obrigados a mudar de ideia a meu
respeito, não deixava en+refan+o de me sentir mortificado:
pelo simples fato de desejar trabalhar e não saber como
o fazer, ia lhes dava o direito de me desprezarem.
a
Quando volfei ' tarde, roido da fadiga, vi-me +ornado
por uma pungente tristeza. "Quan+os milhares de dias id n-
#

126
DOSTOIEVSKI
Òcos tenho diante de mim, sempre os mesmos, todos imufa-
velmenfe umformes?" cismava. Em silencio, sob a noite,
que caia, ou vagueava sozinho pelas casernas, ao longo da
pa!i ada, quando o nosso Charili: correu ao meu encontro.
Char¡t era o cSo do presidio, pois h cães de presidio,
1 como os ha de companhia, de bateria ou de esquadrão.
, ,Vivia al¡ j6 h6 tempo indeferminado. considerando a todos
..c~õmo seus donos e alimentando-se dos restos da cozinha.
,-,. :, Era - um mastim bem grande, ainda não muito velho, com
pelo preto mosqueado de branco, cauda peluda, olhos
Aipifeligentes. Ninguem lhe fazia uma festa, ninguem sequer
,, . , , 'se
prestava aferi ão. Logo ao primeiro dia eu o conquis-
1~,I'~4,1~,J,` tara dando-lhe uma codea de pão: e enquanto eu o acari-
--- , , i,
.- Java, ele não se mexia, olhava-me com carinho e sacudia
... cauda para me mostrar o prazer que lhe dava. Como se
,1 . haviam passado alguns dias sem que ele me visse, a mim que,
,L depois de anos, fora a primeira pessoa que lhe fizera uma
1 . 1 festa, Charik correu em busca de mim, no meio dos outros, .
e descobrindo-me por t s das casernas, saltou -ladrando,,
alegremente ao meu encontro. Não sei o que se passou,,
comigo, mas abr¡ os bra os para o cão, segurei-lhe a cabe ai
en
quanto ele punha as duas patas sobre meus ombros e m
procurava lamber o rosto.
"Esta aqui o amigo que me manda o destino!" pensava
eu. E todas as tardes, durante essas primeiras semanas de
,sofrimento, assim que chegava do trabalho, corria para +rãs
das casernas; vinha aos saltos, ladrava, cumprimentando-me,
eu lhe segurava a cabe a, cobria-a de beijos, enquanto um
sentimento suaviss¡mo, e ao mesmo tempo um ~pungente
amargor me apertavam o cora ão. Lembro-me bem que
me comprazia naquele tormento, sentia um estranho prazer
'em pensar q--e não me restava senão um amigo no mundo:
o 6.orri, o'fie¡ ChariJk.
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confudo iam-se passando os dias, e, pouco a pouco, eu
me habituava ...quela nova vida, cujas cenas cotidia-
nas a principio me mortificavam tanto. Os acon-
tecimentos, o ambiente, os individuos, tudo me deixava in-
diferente. Parecia-me impossivel habifuar-me ...quela exis-
fencia, e, entretanto, era mais que chegado o tempo de me
habituar, uma vez que estava diante do inevitavel ... Dis-
simulava minhas inquiefa 6es no recesso mais profundo da
minha alma, i6 não vagueava mais como um tonto, não dei-
xava mais que vissem a minha dor. Os olhares ferozmente
curiosos dos for ados ia não se-definham com a mesma fre-
quencia sobre a minha pessoa, e diminuia a exagerada in-
solencia com que me tratavam: eu fambem lhes ficara in-
diferente, vsa que muit¡ssimo me alegrava. Eu ia e vinha
#

130
DOSTOIEVSKI
como denfro de minha casa, no presidio. Conhecia o meu
lugar na tarimba, acostumara-me com coisas que supunha
,n3o poder acei+ar nunca. De oito em oito dias ia ao
barbeiro para que me raspasse mefade da cabe a; nos s -
bados, duranfe o nosso periodo de repouso,, faziam-nos pas-
sar um a um no corpo de guarda, (deixar de comparecer
era motivo para puni ão) onde os barbeiros do batalhão,
depois de nos ensaboar a cabe a com agua fria, raspavam-
,na sem do com navalhas cheias de mossas: so a lembran a
dessa tortura ainda hoje me arrepia. Todavia, depressa des-
cobri um rem dio para isso: Akim Akimifch me indicou um
defen+o da se ão militar que, mediante um copeque de pa-
gamenfo, raspava a gente de acordo com o regulamenfo,
usando uma navalha de sua propriedade, que consfifuia , o
seu ganha-pão. Tinha varios clientes entre os for ados, gen-
te dura, que, porem, fazia tudo para escapar aos barbeiros
oficiais. Chamavamos ao nosso colega barbeiro "maior"
- mas nao sei em que poderia ele recordar o maior au-
fenfico. Enquanfo escrevo estas linhas, revejo-c, menfalmen-
te, ao "maior": rapagão magro e silencioso, talvez est£-
pido, sempre enfregue a sua obriga ão, fendo na mão uma
correia na qual, noite e dia, afiava confinuamenfe uma nava-
lha admiravelmente amolada: decerfo encontrara naquela
-profissão a meta definitiva da sua existencia. Mos+rava-se
francamente radiante quando alguern se vinha entregar aos
seus cuidados; tinha sempre a navalha afiadissima, a agua de
-sabão quente, a mão macia como veludo. A genfe via que
,ele tinha orgulho da propria pericia. Recebia com ar distrai-
do a moeda ganha e parecia trabalhar mais por amor da arte
que pelo dinheiro. A. passou mal um dia em que, ao fazer
O seu relaforio a quem de direito, chamou imprudentemente
o nosso barbeiro pelo apelido. O verdadeiro maior enfu-
receu-se como um louco:
- Então não sabes, crapula, o que e um maior? berrou,
deitando escuma pela boca, e aplicando em A. um castigo
a sua moda. Compreendes q que e um maior? E ~ncon,
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
131
cebivell Chamar de maior a qualquer presidiario imundo,
e na minha presen a!
o
S' A. seria capaz de entender aquele homem.
Logo no primeiro dia comecei a sonhar com a liberfa-
#

ão. Minha ocupa ão favorita ficou sendo confar o fem-


pc, que me resfava a cumprir, de mil diferenfes maneiras.
Não conseguia, pensar noutra cousa, e creio que todas as
pessoas privadas de Rk>erdade agem da mesma maneira.
Ignorava se os outros for ados pensavam ou contavam como
eu, mas logo ao primeiro dia, a inconcebivei leviandade
das suas esperan as me impressionou muito. As esperan-
as de um prisioneiro nada + rn que ver com as esperan-
as de um homem livre. O homem livre pode esperar por
uma mudan a de sorte, ou pela realiza ãQ de uma ambi ão
qualquer, porem Vive, age, e a vida real o arrasta sem cessar.
Ja não acontece o mesmo com o prisioneiro. Admitamos
que a vida da prisão, o presidio, +ambern vida: mas seja
qual for o for ado, e sejam quais forem os anos de sua
defen ão, ele se recusa instintivamente a considerar sua sorte
como positiva, definitiva, como fazendo parfe da sua exis-
fencia. No presidio, qualquer for ado sente que não "es+6
em sua casa", supõe-se por assim dizer em visita. Encara os
vinte anos da sua pena 'como Se fossem umcamente dois;
esta convencido de que aos cinquen+a anos, quando soar
a hora da sua liberta ão, sera fão jovem quanto agora,
aos trinta e cinco apenas. "Ainda terei muito tempo bom
a viver!" cisma ele; expulsa obstinadamente todas as dUvi-
das, todos os +ristes pensamentos que o assaltam a esse res-
peito. E af mesmo os condenados a gal perpetua, ate
mesmo os da se ão especial, + m como certo que um belo
dia vira de Pi+er (1) uma ordem que o mandara para as mi--
nas de Nerfchinsk, e a vida no comb¢¡o e bem melhor que
no presidio, e depois, findo o seu tempo em Ner+chinsk,
então! ... Escutei velhos de cabelos brancos raciocinarem
assim.
(1) Petersburgo. N. de K Q)
#

132
DOSTOIEVSKI
, Vi em Tobolsk homens chumbados a parede, ao lado do
cafre, por uma corrente de um sachene (2) de compri-
men+o. SSo punidos assim por algum crime horrendo, co-
metido -Ia na Siberia apos a deporta ão: e ficam ali cinco,
dez anos. Eram na maioria bandoleiros de estradas. Um
umco, que fora empregado não sei em que, aparentava um
melhor a pecto; falava com um sorriso adocicado, um tom
resignado e sibilante; mos+rou-nos a corrente, disse qual a
maneira mais c"moda de dormir com ela. Era mesmo uma
ave estranha! Todos se portam muito bem, e parecem de
bom humor, embora estejam roidos pelo desejo de verem
terminado o seu tempo na corrente. Para que? da-nos von-
tade de perguntar. Mas então ele sair6 daquela masmorra
sufocante, de fec+o baixo, em arcadas de tijolo, podera
passear no pa+io ... Isso, apenas isso, porque jamais poder6
franspor'as portas do presidio. O preso sabe muito bem
que os que estão acorrenfados ficarão Ia, que morrer3o pre-
sos as grilhetas. Sabe-o, e, enfrefan , to, deseja ardentemen-
te terminar o seu tempo nos ferros. iE, com efeito, sem
essa esperan a, poderia -um homem. ficar acorren+ado cinco,
seis anos, e não morrer, não enlouquecer? Poderia ele re-
sisfir,- realmente?
Quanto a mim, eu compreendia que so, o trabalho me
poderia preservar a saude e o corpo. A inquieta ão
moral perpetua, a irri+a ão dos nervos, o ar mefifico das
-casernas me teriam abatido completamente. "O air livre,
a fadiga, o h6bi+o de carregar fardos pesados, - isto
que me salvara, pensei. H6 de me manter o vigor e a
juventude ate o instante da liber+a ão". Não me enga-
nava: o trabalho e o movimento me foram muito ufeis. Vi
com ferrcir um dos meus companheiros, ex-ficialgo, (3) con-
sumir-se no presidic, como uma vela: entrara ao mesmo tem-
po que eu, ainda jovem, belo e forte; quando saiu, era apenas
um farrapo de homem, asmafico, encanecido, pernas tr mu-
las. "Não, dizia-me ou. olhando-o: quero viver e viverei".
(2) A toesa russa; 1 m 98. (N. de R. Q.)
(3) Duroy. Ver nota p gina 45. (N. de H. M.)
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
e
133
De inicio, durante longos meses, meu ardor no trabalho me
granjeou, da parte dos for ados, um grande desprezo, in-
#

finitas indiretas, mas eu não me importava e ia alegremente


para oncle me mandavam. queimar e moer alabastro, por
1 e
exemplo. Esse oficio, um dos pr~meiros que aprend¡, '.
muito facil. Alias. os oficiais de engenharia aliviavam o
mais. que podiam as tarefas designadas para os barines
e isso menos por inclulgencia que por esp¡rito de iusfi a.
issimo menos vi-
Seria estranho exigir de um homem muiff Ö
goroso e deshabifuado a labuta manual o mesmo esfor o que
,se exige de um trabalhador. Essa "poupan a", porem,
era feita quase as escondidas, -porque eramos vigiadissi-'.
mos. Com frequencia era a tarefa excessivamente penosa;
e, então, os nobres sofriam duas vezes mais que os outros for-
ados. Eram em geral mandados para o alabastro tr s
ou quatro homens idosos ou pouco vigorosos; a eles nos re-
umam, mas +inhamos como monifor um operario de verdade,
que conhec~a o oficio. Durante varios anos seguidos, o nosso
monifor foi sempre o mesmo, certo Almazov. individuo
severo, trigueiro, magro, ia velho, calado e exigente no fra-
balho. Desprezava-nos profundamente: como, porem, não
gostava de falar. n3o se dava ao trabalho de nos passar des-
composturas. O galpão no qual moiamos o alabastro erguia-
se na margem escarpada e deserta do lrfych. No inverno,
principalmente durante os dias escuros, a vista do rio e da
outra margem longinqua provocavam uma grande nostalgia.
Uma impressa . o despecla adora de tristeza emanava daque-
la estepe arida e vazia. Mas era ainda pior quando um sol
)claro dardejava os seus raios sobre o imenso campo de ne-
we; a gente sentia o louco desejo de se evadir para aquela
planura dis+,,,.n+,e que come ava na outra margem e se alon-
gava em dire ão ao sul, como uma toalha infinita, num es-
pa o de mil e quinhentas verstas. O silencioso, o severo
Almazov punha-se a trabalhar; nos nos envergonhavamos
porque nao o podiamos ajudar segundo as suas regras, e
ele, contudo, nos dispensava muito de prop¢sito como se
nos quisesse fazer sentir a nossa completa inutilidade. O
:i
#
134
DOST61EVSKI
trabalho consistia de inicio simplesmonfe em aquecer ~ o,,"
forno; depgis fraziamos alabas+ro suficiente para enchi 1 -
lo. No dia seguinfe o alabastro estava infeiramenfe cal-
cinado e era refirado do calor. Cada um de n6s fornava
então uma pesada mão de pilão, enchia de alabasfro um,
deposito ia destinado a esse fim, e punha-se a pilar. Não---,
era'frabalho que oferecesse dificuldade. O alabastro, friave[,.'
facilmenfe se esfarelava, e depressa se transformava num p
branco e brilhanfe ... Faziamos um barulho fão grande, a,
pilar, que nos proprios nos admiravamos. Quanfo mais au-a
menfava a fadiga, mais leves nos senfiamos, o sangue nos
subia ao rosto, a circula ão se acelerava. Almazovenf io nos , .
. olhava com a condescendencia que a genfe fem com crian-
cinhas, punha-se a fumar o cachimbo com ar indulgente, mos,,,
,não podia deixar de rosnar assim que abria a boca. Ali s,
,procedia desse modo com foclo o mundo; no fundo, falvez-
fosse um homem bom.
Ufilizaram-me depois para movimenfar a roda do forno;
era uma roda pesada e grande, que exigia g~ande esforqp
para ser girada, sobretudo quando o +orneiro (um sapador Oe
engenharia) fabricava um balausfre de escada para algÇ
funcionario, ou uns pes de mesa, o que exigia um +ronco de
rvore quase inteiro. Nesses casos, um Unico homem não fes.
ria for a suficiente para girar a roda; devam-me erifão corino
auxiliar o meu colega 13.. Fizemos esse frabalho varios anos
seguidos, focla vez que havia qualquer cou , sa para fornear.
13. era um rapaz doentio e magricela, mo o ainda, porem do-
enfe do peifo. Chegara ao presidio um ano anfes de mim,
com dois outros companheiros de inforfunio: um - um velhi-
nho que vivia a rezar, (o que lhe conquisfara a estima dos
for ados) morreu durante minha reclusão; o outro, robusto o
corajoso adolescente de cara vermelha, durante a caminhada
(quer dizer duranfe setecentas verstas), carregara as costas
o seu companheiro 13. que caira de fadiga, depois de me#4
jornada: valia a pena ver a afei ão que tinham um ao outro.'
B. era homem de fina educa ão, carafer nobre e generoso, ,
mas a doen a o tornava irrifadi o. Nos junfos consegu¡a-
#

ILECORDA õES DA CASA DOS MORTOS


137
mos fazer girar tf roda, e o exercicio nos interessava: eu o
considerava excelente para a saude.
Do que mais gostava era de limpar a neve depois das
borrascas, cousa frequente, no inverno. Bastava um dia para
que os turbilhões de neve cobrissem as casernas, as vezes ate
metade das janelas, ou então inteiramente. Assim, quando
o furacão passava e reaparecia o sol, enviavam-nos em bando
(aconfecia at irmos todos) desimpedir os edificios escondi-
dos sob anevasca. Davam a cada um de n6s uma p6 e nos
marcavam uma tarefa, +ão grande que parecia impossival dar
conta dela. Todos se enfregavam alegremente ... labuta. A
neve quase em p6, ainda não umda, mal gelada na superficie,
elevava-se em montes enormes que iamos atirando por parto,
transformada em nuvens de poeira reluzente. As p s se en-
terravurri facilmente na espessura brilhante que luzia ao sol,
e os defentos gostavam daquele trabalho. O ar fresco, os
movimei,fo-
, lhes estimulavam as risadas, os ditos, as pilherias;
atiravam bolas de neve uns nos outros; mas ao cabo dum
instante os mais ajuizados, que detestavam o riso e a alegria,
punham-se a gritar e a anima ão. terminava geralmente em
desaforos.
pouco a pouco se foi ampliando o c¡rculo das minhas re-
11
la ões. Por mim proprio eu não as procurava: deixava-me
estar, inquiefo,,+risfe, desconfiado. A cousa se fazia sozinha.
O primeiro que me veio visitar foi Pe+rov. Falei "visitar'
o chamo a aten ão para o voc6bulo. P * e+rov pertencia ...
se ão especial, que ocupava a caserna mais afas+ada da mi-
nha. Nenhum la o, evidentemente, poderia existir entre n6s,
nada +inhamos nem poderiamos absolutamente ter em comum.
Entretanto, nos primeiros tempos, Pe+rov assumiu a obi-lga ão
de ir diariamente me procurar no meu alojamento, ou então
me deter durante os passeios, quando eu andava por +ras
dos edificios, o mais longe possivel de +odos os olhares. Suas
visi+as a principio me eram desagradaveis, mas de W modo
se portou ele, que em breve Ia as considerava uma dis ¡ra ão,
embora ele não fosse nada comunicativo. De estatura media,
#

138 DOSTOIEVSKI
a
consfifui ão robusta, movimenfos faceis, com um rosto p ili-
do bastante agradavel, pârnulos salienfes, olhar crtrevido,
denfes pequenos, brancos e muito umdos, ele mascava in-
cessantemente um pouco de tabaco, rolando-o entre a gen-
giva e o labio inferior, - habito cultivado por muitos dos
presos. Parecia mais jovem do que o era: tinha quarenta
anos e a gente lhe dava frinfa. Falava comigo, sem o me-
nor consfrangimenfo, e se portava como meu igual, mostran-
do todavia composfura e delicadeza. Se, por exemplo, no-
fava que eu desejava estar s¢, deixava-me dentro de dois
minutos, 'agradecendo-me a simpatia que lhe fesfernunhava,
- cousas que decerfo jamais dissera a alguem, desde que
estava no presidio. E, curioso, essas nossas rela ões se man-
tiveram assim, durante varios; anos, sem nunca se fornarem
mais ¡nfimas, embora Pefrov me tivesse sincera afei ão. Ain-
da hoje, eu não seria capaz de definir exatamente o que
vinha ele procurar ao meu lado, e qual a razão que me pro-
porcionava a honra cotidiana da sua visifa. Aconfecia-lhe
roubar-me, "sem querer", no entanto, e quase nunca me pe-
dia dinheiro empresfado: não era portanto o inferesse que
o impelia.
Nem sei bem por que, mas ele n3o me dava a impressão
de viver no nosso presidio, e sim longe, na cidade - fal era
o seu jeito de aparecer como que por acaso, para saber no-
ficias, indagar do que era feito de mim, pedir informa ões
sobre a nossa maneira de viver. Chegava sempre com o
ar de alguem que deixou suspenso um negocio impor+anfe.
,E confudo, não se apressava absolufamen+e a sair. Seu olhar,
um pouco afrevido e zombeteiro, tinha uma estranha fixidez.
Olhava de longe, por sobre os objetos, como para distinguir
o que ficava para alem das cousas. Parecia sempre disfraido.
Algumas vezes eu r)ergunfava a mim proprio: "Para onde
ir Pefrov quando sair daqu¡? Onde o esperam com fanfa
impaciencia?" E ele ia apenas para um dos alojamenfos ou
uma das cozinhas, e Ia, aproximando-se dum grupo que con-
versava, escutava com aferi ão, exaltava-se, dava um aparte,
depois calava-se de sUbito. Mas quer me falasse, quer fi-
O
I
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
V
1 139
#

casse em silencio, via-se claramenfe que se defivera de


passagem, que tinha outros interesses sua espera. O mais
esfranho 6 que ele rigo tinha nunca a menor ocupa ão: não
absolufamenfe nada (afora o trabalho obrigatorio, e
claro) não enfendia de nenhum oficio, não possuia quase nunca
dinheiro, o que ali s não o enfrisfecia. E sobro que me fa-
lava? Sua palestra era quase fão estranha quanfo a sua
pessoa. Se me via a andar no patio, por fr is das casernas,
dava uma s£bita meia volfa para chegar ao meu lado. Ca-
minhava sempre em grandes passadas, e aquelas meias volfas
eram tão r pidas que davam a impressSo dum inicio de
corrida:
Bom-dia!
Borri-dial
Não estou atrapalhando?
De modo algum!
Escute. quero lhe fazer uma pergunta a respeito de
Napoleão III. parenfe daquele que esfeve, na Russia em
1812? (Pe+rov, antigo soldado, sabia ler e escrever).
- Sim, sobrinho.
- E por que então o chamam de presidente? Como
pode ser isso?
Fazia sempre indaga ões repentinas, como se realmente
tivesse urgencia em se informar o mais rapidamente possivel
sobre aquele assunto, fão importante que não poderia folerar
nenhum afraso.
Expliquei-lhe que especie de presidente era Napoleão, e
acrescenfei que decerfo em breve seria imperador.
- Como?
Expus a cousa na medida do possivel. Pe+rov escutava
com aten ão intensa, o ouvido inclinado para mim, e com-
preendendo tudo com grande rapidez.
- Hum! Tambem queria lhe pergunfar, Alexandr Pe,
frovitch, se 6 verdade o que contam, que h6 macacos do +a-
manho de homens, com bra os que tocam na ponta dos pes?
- Sim, verdade.
- ~E como que eles são?
I
#

140 DOSTOIEVSKI
Dizia-lhe o que sabia a respeito.
- E onde e que vivem?
- Nos paises de clima quente, na ilha de Suma+ra.
- Fica na Am rica, não 2 La onde dizem que as pes-
soas caminham de cabe a para baixo?
- Não e de cabe a para baixo ... são os arifipodas ...
1
E eu lhe explicava o que são a America e os ant¡podas.
Ele me ouvia com a mesma aten ão, como se so me houvesse
procurado para saber daquilo.
- A prop¢sito, diga-me uma cousa: li no ano passado
a his+oria da Condessa de Ia Valliere. Foi o ajudante Are-
fiev que me empr s+ou o livro. his+oria de verdade ou in-
ven ão? O autor se chama Dumas (4).
- claro que e inven ão.
- Então afe a vista, e muito obrigado.
E Pe+rov desaparecia. A falar verdade, quase nunca
conversamos de outra maneira.
Tomei informa ões a seu respeito. Quando soube das
nossas rela ões, M. me advertiu: afirmou-me que se muitos
for ados lhe haviam provocado horror, sobretudo de inicio,
nenhum (nem mesmo Gazine)- o impressionara fanfo quanto
Pe+rov.
- o mais ousado, o mais fernivel dos bandidos, avisou-
me -ele. capaz de tudo, nada o defern quando quer sa-
fisfazer o minimo capricho. Não hesifaria em o degolar, se
lhe desse na veneta; sim, e homem para o assassinar, sem um
esfremecimenfo, sem remorso algum. Suponho at que
meio louco.
Essa declara ão me inferessou muito. Mas M. não foi
capaz de me explicar as razões de tão implacavel conceito.
E, cousa curiosa, depois disso avistei-me com Pefrov e con-
versamos quase diariamente, porque ele na verdade se afei-
oara a mim, nunca eu o soube por que. Levava vida sossega-.
da, não cometia nenhum ato repreensivel, e entretanto,
(4) Engano talvez do Autor, porque Dumas não escreveu romance nenhum ~
esse t¡tulo. Decerto se trata dum p ssimo livro de Mme. de Cenlis, "La Duche~
se de
Ia Valli re" (1804), que foi traduzido com grande sucesso para o russo. Gog
o) refere-se
tambem a ele. V. "Almas Mortas". 1.8 parte, cap. X. (N. de H. M.)
Ik
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
141
cada vez que ele se aproximava, eu não o podia olhar nem
lhe falar sem pensar que M. dissera a verdade, que Petrov
era o homem mais fernivel, o mais intrepido, o mais dificil
#

i i
de dom~nar do presid*c infa*ro. E por que pensava eu isso?
Não o sei absolufamenfe.
Esse Petrov era precisamenfe o for ado que quisera
matar o maior, quando ochamararri para sofrer os a oites.
J confei que o maior - salvo por milagre, segundo a ex-
pressão dos defenfos - refirou-se exatamente no momento
que precedeu a execu ão do castigo. Quando ainda era ho-
mem livre, e soldado, Petrov foi espancado pelo coronel du-
ranie uma manobra. Decerto j lhe haviam batido basfarifes
vezes, antes, mas daquela vez Pefro~, não estava disposto a
aturar pancadas, e se afracou com o coronel abertamente,
a luz do sol, diante de toda a tropa em formatura. Ignoro os
detalhes da hisforia, porque ele nunca a contou a mim. Toda-
via, essas explosões onde a sua natureza real aparecia a nu
eram raras; mosfrava-se em geral razoavel e pacifico. Suas
paixões ardiam forfes, indornaveis, contudo uma pouca de
cinza cobria aqueles carvões em brasa. Jamais observei em
Pefrov, como ern inumeros outros for ados, uma sombra de
vaidade, de farifarronada. Brigava raramente, não tinha ami-
zades com ninguem, salvo com Siroffine, e, apenas, quando
dele precisava. Entretanto, vi-o desa 1 finado um dia em que
lhe recusaram algo que reclamava. Seu antagonista era um
condenado civil, Vassili An+owv, especie de hercules, mau,
rixenfo, atrevido e nada covarde. Grifaram durante muito
tempo, e pensei que a briga acabaria como todas as outras
do mesmo genero, com simples bofetões, porque Pe+rov as
vezes +ambem brigava a murros, como o derracleiro dos gales.
Mas a cousa de subifo tomou um aspecto diferente: Pefrov
ficou l¡vido, seus labios tremeram, azularam, a respira ão
fornou-se ofegante. Endireifou-se devagar, muito devagar,
e sem ruido, (no verão gosfava de andar descal o) aproximou-
se de Anfonov. Instantaneamente o arruido da caserna deu
lugar ao silencio: ouvir-se-la o vOo de uma mosca. Todos
esperavam. An+onov saltou contra Pefrov, que ia não tinha
o
i I
#

142 DOSTOIEVSKI
mais cara humana ... Não pude suportar a cena e sal. Tinha
certeza de que quando chegasse ... porta, ouviria o esterfor
dum homem sangrando. Não houve nada, porem. Antes que
Petrov o agarrasse, Antonov lhe atirou sem dizer palavra o
objeto em lifigio - um misero farrapo. , Depois de dez
minutos Anfonov se pos a praguejar, mas não muito, simples-
mente por descargo de conciencia, para não derrogar habitos,
para mostrar que não tivera medo. Quanto a Petrov, não
concedeu -a minima imporfancia ...s pragas do outro, nem
mesmo os ouviu. Palavreado não o inferessava; recuperara
o farrapo da que carecia, guardara-o consigo, o resto pouco
importava. Um quarfo de hora depois ele vagueava como
de h6bifo, com ar sossegado, a procura de um grupo onde
dissessem cousas interessantes, e onde pudesse dar um pai-
pite. Tudo parecia inferessa-lo; e, entretanto, mantinha-se
indiferente a tudo, e arrastava incessantemente a sua indo-
lencia dum lado a outro do presidio. Poderia ser comparado
a um desses operarios vigorosos, devoradores de trabalho,
n¡as que se senta e se põe a brincar com crian as, enquanto
espera a tarefa. Jamais compreendi por que ele se deixava
estar ali, por que não fugia. Pe+rov não hesitaria em se
evadir - bastava apenas lembrar-se disso. A razão s6 go-
verna entes como Petrov enquanto a vontade dorme dentro
deles, porque quando desejam qualquer cousa, nada lhes serva
de obs+aculo. Tenho convic ão de que ele saberia fugir e
enganar todo o mundo, e passar depois uma semana sem comer
no meio da mata, ou nos juncais da margem do rio: mas, evi-
denfemente, ainda não tivera nem o desejo nem a id ia disso.
Nunca observei nele nem um raciocinio sOlido, nem muito
bom-senso. Gente dessa especie nasce com uma id6ia qual-
quer que os atira dum lado para outro, sem que eles o enten-
dam bem. Vagueiam assim, enquanto não encon+ram algo
que lhes desperta uma violenta cobi a; porem, chegado o mo-
menfo, não regateiam riscos. & me espantava ...s vezes por
ver aquele homem - que, para vingar-se duns a oites, assas-
sinara o coronel - suportar tão docilmente as varas. Porque
ele era a oifado foclei vez em que o apanhavam a introduzir
f
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
qt sa ' qual se aventurava de tempos em
aguardente, empre a
tempos, como todos os desocupados. Dobrava-se sem pro-
testo para receber o vergalho, como se se reconhecesse cul-
pado. De outra maneira, preferiria deixar-se matar a dei-
xar-se- a oitar. Espantava-me fambem que, a despeito da
sua visivel afei ão por mim, não se abstivesse de me roubar.
#

Aquilo o assaltava como um acesso de tosse. Foi assim que


roubou minha Biblia, que lhe pedira para guardar no meu
lugar. Embora ele precisasse dar apenas alguns passos para
me fazer esse favor, achou meios de descobrir um compra-
dor, vender a Biblia e beber o dinheiro. Decerto tinha na-
quele instante um violento desejo por bebida, desejo que era
mister satisfazer de qualquer maneira. Nesses momentos,
uma criatura como ele e capaz de assassinar um homem por
uma moeda de vinte e cinco copeques, umcamente para
obter vodca. Em qualquer outra ocasião, desdenharia cem
mil rublos. Na mesma noite confessou-me o roubo, mas sem
a minima confusão ou remorso, com absoluta indiferen a,
como se se tratasse dum acidente ordinario. Tentei ralhar com
ele um pouco, porque a Biblia me fazia falta. Ouviu-me sem
se zangar, calmamente, reconheceu que a Biblia e um livro
utilissimo-, e lamentou, sinceramente, a perda que eu sofrera,
sem, contudo, se arrepender do seu roubo. Olhava-me com
tanta seguran a, que parei com minhas censuras. Ele as to-
lerara-, considerando certamente que por seu ato as merece-
ra, que os desaforos aliviam a alma, que no fundo, porprn, um
homem de juizo não pode se prendera fais.ninharias. Creio
al s que ele me considerava como um garotinho, que nada
entende das cousas mais simples deste mundo. Se, por exem-
plo, lhe come ava a falar de outra cousa que não fosse ciencia
ou livros, ele me respondia, apenas por simples delicadeza,
com algumas palavras rapidas. Muitas vezes perguntei a
mim proprio o que o interessava nesses livros sobre os quais
me interrogava. Acon+ecia-me, durante as nossas conversas,
olh6-lo de vies para verificar se o homem não estava zom-
143
a
#

144
DOSTOIEVSKI
bando de mim. Mas não, escutava muito a serio, emb¢ra
com uma aferi ão pouco constante, o que ...s vezes me abor-
recia. Fazia suas perguntas com clareza, com precisa*, e
não se mosirava nunca nem surpreso nem embara ado com
as explica ões que lhe dava. Sem duvida se convencera de
uma vez por todas de que não deveria falar comigo como
aos,oufros, e que, fora dos livros, eu de nada entendia.
Tenho, contudo, certeza de que me queria bem, e isso
sempre me admirou. Tomava-me por um rrwnino, por um
homem incompleto, sentia em rela ão a mim essa especie de
compaixão que os fortes sentem pelos fracos? ... não sei
Mas seus sentimentos, quaisquer que fossem, não o impediam
de me roubar, e estou certo de que ele tinha pena de mim
no momento em que perpetrava o furto. "Ora, afinal de
contas isso o ensinar6 a +ornar conta das suas cousasi" diria
talvez, na ocasião. Mas 6 possivel tambem que gostasse de
mim justamente porque eu não sabia cuidar das minhas cou-
sas. Declarou-me ate uma vez, como involun+ariamente, que
eu tinha "a alma boa demais". "Voce 6 tão simples, +ao
simples, que at causa c16! Porem não se ofenda, Alexancir
Petrovitch, acrescentou logo depois; disse isso sem m6 in-
ten ão."
Individuos da especie de Petrov tem as vezes oporfuni-
dade para aparecer bruscamenfo, totalmente, nos momentos
de perturba 6es, de revolu ão. Como não +em o dom da
palavra, não são nunca inspiradores: são os executantes, fazem
as cousas andar. Agem com toda a simplicidade e sem ruido:
são os primeiros que se atiram aos obstaculos, sem reflexão,
sem receio; jogam-se contra as baionetas, e cada um 'ap6s
ele se precipitam cegamente ate junto ...s muralhas, onde em
geral perdem a vida. Não creio que Petrov acabe bem:
morrera um dia ou outro de morte violenta: isso ainda não
lhe aconteceu porque não houve ocasião. !E quem sabe,
afinal, se não lhe chegarão os cabelos brancos, e ele morre
pacificamente de velhice, depois de vaguear pelo mundo
sem destino? Entretanto, na minha opinião, M. não errava
ao considerar Pe+rov o mais +ernivel habitante do presidio.
7:
4
O
V
Vill
#

facinora
10 Luka

ao facil falar dos "facinoras", que alias eram tão


N poucos no presidio quanto em qualquer outra parte.
Tem. aspecto de homens ferozes: e pensando nos
horrores que lhes são atribuidos, a gente os evita. De inicio
um sentimento irresistivel me obrigava a fugir deles.* Com o
,tempo, meu modo de julgar modificou-se muito, mesmo a
respeito dos piores bandidos. Ha c.&fo individuo que nunca
matou ninguem, contudo e mais de temer do que um outro
cuja conciencia es sobrecarregada, por seis crimes. H6 de-
litos que a gente dificilmente concebe, tal a estranheza da sua
realiza ão, e e por isso que afirmo que, no nosso povo, certos
crimes tem as causas mais surpreendentes. muito comum,
por exemplo, este tipo de assassino: um mul¡que, um criado,
um ar+esão, um soldado, at6 então vivendo sossegadamente
e suportando com resigna ão a sua sor+e-, de repente, como
I
I ,
#

146.
DOSTOIEVSKI
se qualquer cousa se abrisse denfro de si, sente que a sua
reserva, de paciencia acabou e enfia uma faca no peito do
seu opressor ou do seu inimigo. E e esse o pgnfo de parficla
de uma nova exisfenc~a. Daquele momenfo em dianfe o
nosso homem perdera focla no ão de medida. Da primeira
vez matou o seu f irano, o seu inimigo; e um crime, porem com-
preensiveLcuia causa e evidenfe; depois, ia não mafa inimi-
go nenhum, mas o primeiro franseunfe que enconfra, e o
que pior, pratica aquela fa anha por prazer, por causa de
uma palavra aspera, um olhar desagradavel, para complefar
a sua confa, ou simplesmenfe para confirmar o seu grito de
guerra: "Torna cuidado, olha que vou passando!" Dir-se-6
um b bedo ou um louco furioso. Uma vez que transp"s a
linha fatal, parece comprazer-se com a id ia de que nada
mais lhe e sagrado. Parece que esta impaciente por saltar
sobre qualquer lei, qualquer barreira, e gozar de uma li-
berdade sem limites, duma liberdade fão desenfreada que a
ele proprio apavora, deixando-lhe o cora ao tremulo e parado.
E senfe ali s que um castigo implacavel o aguarda. Suas sen-
sa ões lembram talvez a dum homem que, debru ado no alto
duma forre, sofre a vertigem da alfura at querer se atirar
dali, de cabe a para baixo. As criafuras mais pacificas, mais
insignificarifes, são as vezes presas desse delirio. Depois do
primeiro impulso, compõem então uma atitude. Quan+o mais
o homem se sente aviltado, mais se ergue, mais procura
causar pavor. Goza aquele pavor, goza a repugnancia que
provoca nos outros. uma especie de desespero que o im-
pele; arde por acabar com tudo, por ver resolvida a sua sina,
por ser castigado, para não ter que carregar sozinho o fardo
da sua iniquidade, o fardo esmagador do seu desespero.
Cousa espanfosa: essa exalfa ão o man+Bm em geral ate ao
pelourinho: mas, então, desaparece, como se houvesse anfe-
cipadamen+e marcado um prazo para findar. No pelouri-
nho,.o homem se acalma repentinamente, anula-se, forna-se
um farrapo; choraminga, pede perdão a +urba.' E quando
afinal esta no presidio, ninguem diria que aquele chorão, aque-
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
147
le baboso, aquela criatura apavorada foi capaz de matar
cinco ou seis pessoas.
claro que alguns dentre eles não se acalmam tão
depressa. Conservam ainda certo ar de bravata, certa fa-
fuidade: "Olhemque nSo sou bem o que imaginam! Tenho
seis mortes nas costas". Todav ia acabam submetendo-se,
#

de quaquer maneira. De tempos em tempos, consola-se, lem-


brando-se das suas fa anhas e dos desregramen+o¡ de outrora,
dos tempos em que era -um "facinora"-, e se encontra um
basbaque, diverte-se em se pavonear confandg-lhe os feitos
passados. Procura, enfrefan+o, disfar ar essa necessidadei de
jactar-~e. E como se vigia, quanta prudencia usa, que re-
quin+es de amor-proprio, que displicencia na narrativa, que
sabia presun ão no fom, na minima palavra! Onde fera ele
aprendido aquilo tudo?
Durante um dos compridos serões dos primeiros fempos
de minha reclusão, deitado na farimba, desocupado e triste,
escutei certa vez uma conversa entre eles: carecido de ex-
periencia, +ornava o narrador por um celerado de alta enverga-
dura, por uma,alma de bronze. e chegava quase a zombar de
Pefrov. Luka Kusmitch, o - profagonisfa, sem outro motivo
senao O capricho, fizera o "servi o" com um maior. Luka
Kusmifch era aquele homenzinho de nariz afilado a quem ia
me referi. Embora fosse russo, nascera *na Ucrania, creio
que na condi ão de wrvo domestico. Emanava dele algo
de dominador, altivo: lembrava um passaro de pequeno por-
te, mas bem provido de bico e garras, visfo ser extraordina-
riamente suscepfivel. Ali s os defenfos, que tinham farc?
para homens, dedicavam-lhe precaria estima., Nessa noite,
sentado a beira do cafre, ele cosia uma camisa, pois seu ofi-
cio era costurar roupa branca. Tinha ao lado o seu vizinho
de tarimba, Kobyline, rapagão forte, est£pido, porem afetuo-
so e bom. Por causa da vizinhan a, Luka frequentemente
rixava com ele, a o tratava alfivamenfe, com uma ironia e
um despotismo dos quais o pobre Kobyline não se apercebia.
#

S
148
DOS T(ki EV-SK I
-Nesse momento Kobyline tecia uma meia de 15% escutaAdO
distraidamente Luka. Luka falava em voz alta e clara: que-
ria ser ouvido por todos, mas fingia falar apenas a Kobyline.
- Pois eu, mano, fui mandado de minha ferra Tch ...
por vagabundagem, - come ou, enquanto puxava a agulha.
Faz muito tempo? indagou Kobyline.
Quando amadurecerem as ervilhas, fara outro ano.
Depois, chegando a K ... v, puseram-me na cadeia por uns
tempos. Ao chegar, verifiquei o pessoal. Estava Ia. co-
migo,uma duzia de rapazes, - todos da Ucrania, altos, fortes
como uns touros. ~E tão quietinhos! E, alem disso, a co-
mida não,valia nada. O maior manejava a rapaziada como
queria. Fiquei com eles um dia, dois dias, e vi logo que
tinham um medo danado do homem. Perguntei por que razão
eles punham o rabo entre as pernas assim que viam
aquele cretino. "Vai falar com ele!" foi o que me disseram,
rindo na minha cara. Fiquei calado. Pois fiquem sabendo,
pessoal, tinha Ia um sujeito engra ado, continuou Lu¡ a aban-,
donando subitamente Kobyline, para se dirigir a todos. Essa
sujeito- contava como e que tinha sido julgado, que,6 que,
tinha respondido ao juri, e como e que choramingara falando
na mulher e nos filhos. Era um homenzarr...o, ia todo gri-~
salho. "E eu dizia: (ele que contava) Não, senhor, estou-
inoc.ehfe! mas o diabo do filho de uma cadela continuava ei.~
creve que escreve ... E então (ele que dizia), então tão
certo como eu estou inocente, tu vais +e estrepar, miseravel!
E o bandido sempre na porcaria da escrita! Então fiquei
louco (ele que dizia)" Vassia, me da linha. Esta est
R_Ore.
1 - Pois vem da cidade, respondeu Vassia es+endendo-lhe
o,novelo de linha.
1 - A linha que temos na oficina e melhor. Esta daqu¡
~ * o novall¡do que traz; va Ia alguem saber de que marafona
compra linha! continuou Luka erguendo a agulha para a
luz,- a-Fim de a enfiar.
I
#
F
O 1
O
I a",
I
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
- Decerfo em casa da comadre delei
- Decerto.
- E então, que foi que aconteceu com o maior? per
151
guntou Koby1ine, que j6 estava complefamente esquecido.
Luka s¢ esperava por isso. Entrefanfo,.não voltou ime-
diafamenfe a hisforia, nem parecia mesmo presfar'afen ao
a Kob line. Primeiro enfiou vagarosamente a agulha, cruzou
displicenfam ente as pernas e fornou afinal:
- Tanto aperreei a rapaziada da Ucrania que eles aca-
baram fazendo com que o maior aparecesse. Dp manhã, eu
tinha abafado uma faquinha dum companheiro e a escondera,
para o que desse e viesse. E o maior chegou feito uma
fera. Eu então falei: "Escutem, voces que são da Ucrania,
nada de rabo enfre as pernas!" Mas ia esfavam todos mor-
rendo de medo. O maior veio aos gritos, bebedo como
uma vaca: "Quem foi que me chamou? Que esfa se pas-
sando aqu¡? a mim que procuram? Sabem que aqui eu
sou o fsar, sou Deus" - então, enquanto ele dizia que era o
fsar, que era Deus, prosseguiu Luka - eu me adiantei, cofri
o punhal na manga da blusa. "Não, Excelencia, sou eu que
lhe digo.." e enquanto isso, ia me chegando de manso,
perfinho, cada vez mais perfinho. . . "Não. não possivel,
Excelencia, como que o senhor poderia ser nosso fsar e
nosso Deus?" - "Ah, berrou o maior, então es tu o cabe a?"
- "Não, disse eu, e me aproximei ainda mais - não, Exce-
Iencia, exisfe apenas um Deus Onipo+enfe, que esfa em focla
parte. E quanfo ao nosso +sar, Excelencia, temos apenas
um, e foi Nosso Senhor em pessoa que o colocou por cima
de todos n6s. Esse e que e o nosso senhor, sou eu que lhe
digo. E quanfo ao senhor, Excelencia, apenas nosso maior,
nada mais, e isso pela gra a do fsar e dos seus meritos."
- "O que? o que?" gaguejava o horriem; não podia mais
nem falar, nem voltar a si. Isso mesmo!" repeti. E pluf!
enferrei-lha o punhal af o cabo, bem no meio da barriga!
Foi uma furada e tanto! O desgra ado caiu ali mesmo, s6
fez ciscar um pouco com os p s. E eu atirei fora a arma a
#

grifei para os rapazes:


i
"k
#

152
DOSTOIEVSKI
- Agora, meus pafricios, me apanhem aquele punhal t
..........................................1
Devo fazer aqu¡ uma ligeira digressão. Infelizmenfe as
palavras "Sou o Deus aqu¡, sou o isar'', eram empregadas cjm
muita frequencia, antigamenfe, por cerfos chefes milifares.
Devem¢s reconhecer que hoje resfam poucos dessa especie,
ou talvez nenhum. preciso confessar fambem que * esses
,que se jactavam assim provinham em geral da tropa. Os
galões de oficial os enchiam de vento, firavam-lhes a cabe a
do lugar. ' Depois de muitofempo, de pra a, viam-se de re-
pente promovidos a oficiais, a fidalgos. E e logico que, por
falfa de h6bifo, na primeira embriaguez do exifo, 'exageravam
a imporfancia do proprio poder, - claro que apenas em rela-
ão aos subordinados. Porque em presen a dos superiores
conservavam o mesmo servilismo - j agora inufil e af
mesmo desagradavel. Alguns levavam a obsequiosidade ao
ponto de dizer ao chefe, num tom singularmente meloso, que,
como haviam passado por fcdos os posfos subalfernos, sabiam
conhecer o seu lugar. , Mas, com os pequenos, tiravam a sua
forra, e se portavam com um despotismo inaudito. Não,
decerto j não h mais sujeifos capazes de grifar: "Sou o
fsar, sou Deus". E, confudo, devo observar que nada irrita
fanfo o defento ou qualquer outro subalterno como seme-
lhanfes expressões, partindo dum chefe. , Essa fatuidade,- essa
falsa convic ão de impunidade, desperta o odio no mais
submisso dos homens e o leva ao desespero. - uma sorte
que abusos dessa especie estejam quase desap recidos; ali s.
mesmo nos fempos antigos, havia medidas severas contra
os culposos de +ais faltas. Conhe o mais de um exemplo.
Em geral. nada irrifa mais os subordinados que se verem
frafados com desprezo. Certas pessoas supõem que alimen-
fando e tratando os presos de acordo com a lei, ia fizeram
o basfante. fambem um erro. Por mais aviltado que es-
'feia, fodo individuo exige. insfinfiva mente o respeifo pela sua
dignidade de homem. Sabe que e um gale, um reprobo, co-
nhece a distancia que o separa dos seus superiores, mas nem
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
153
as grilhefas, nem as cicatrizes do knuf lhe fazem esquecer que
um homem. E j que um homem, deve ser tratado como
tal. E ai, meu Deus! um frafamenfo "humano" pode soer-
1---- --- JUL215 U 3 ~S; U- --- i_ - - - _.
aparece empanada! precisamente com esses desqra ados
#
que nos devemos portar o mais humanamente possivel, por
amor de sua salva ão e de sua alegria. Encontrei chefes
dotados de grande cora ão e vi o efeito que eles produziam
sobre o~ humilhados. Com algumas palavras afaveis, res-
suscifa~am moralmenfe os seus homens. Ouvindo-os, os de-'
tentos se alegravam como crian as, e como cri" as se pu-
nham a adora-los. Fa o notar aqui que o for ado não apre-
cia, da parte do chefe, nem a condescendencia, nem a fa-
miliaridade exagerada. Aquilo o leva a irreverencia - a ele,
que tem fanfa necessidade de respeitar. O preso sen+e-se
orgulhoso, porexemplo, se tem um chefe condecorado, boni-
fo, bem reputado; gosta dele severo, impodante, jusfo, digno.
Gos+a de um chefe que sabe o que vale, porque um homem
desses não ofendera nunca a ninguem, e tudo correra da
m,-3!hor n, aneira.
- E então por causa disso te cozinharan-l a fogo bran-
do, heiri? perguntou calmamente Kobyline.
- Sim, realmente me cozinharam, mano velho, me cozi-
nharam de verdade. Ali, passa-me a tesoura! Escuta, pessoal,
não h maidane hoje?
- J foi tudo bebido, explicou Vassia: se a sede não
fosse tão grande, decerto havia maidane!
- Sim, sim! Em Moscou pagam os "sim" a cem ru-
blos o alqueire, zombou Luka.
- Mas quan+os +e deram pelo "servi o" no maiar? insis-
fiu Kobyline, obstinado na sua ideia.
- Quinhen+os a oites, maninho. Porem declaro ao pes-
soal que se eles não me mataram andaram bem perto, ex-
clamou Luka abandonando novamente Kobyline. Levaram-me
em procissão, para receber as minhas quinhenfas varadas. E
eu a+ então não sabia o que era um a oite. Juntou gente de
12
I
i
#

154
DOSTOIEVSKI
toda parte, s~S se via o povareu correndo: "Vão a oitar o
bandido, o assassino!" Nem se pode mesmo dizer como o
povo e burro! O carrasco me despiu, me estirou, e gritou:
1 repl~-;£ o quS v,:~15 Ser G~----1_111 C,
e sabem o que aconfeceu? Quando bateu a primeira Iam-
bada, eu quis gritar, abrir a boca, mas não tinha voz. Perdi
a fala. Quando me deu a segunda, acredite quem quiser,
mas ouvi dizer: "Dois!" Dai, quando voltei a mim, ouvi
contar: Mezessetel" Depois disso, meninos, me levantaram
quatro vezes do cavalete para eu +ornar um pouco de f¢lego
e me atiraram agua fria por cima. Eu olhava para todos,
com os olhw esbugalhados, e pensava: "Hoje deixo o couro
'I"
aqui.
- E não morreste? perguntou ingenuamenfe Kobyl¡ne.
Luka o envolveu com um olhar de desdem absolu+o; es-
frondaram as gargalhadas.
Não se pode ser mais burro!
Esse tem uma aranha no miolo, escarneceu Luka, qu@'
parecia lamentar haver travado conversa com um individuo
daquela especie.
- , tem o miolo mole, concordou Vassia.
Luka. que tinha seis crimes na conciencia, rigo fazia medo
a ninguem; no entanto, gostaria de sier um "ferror".
Isai - Fornitch - O banho - A h¡storia
de BaMuchine
A proximava-se o Nafal. Os de+entos aguardavam as
festas com uma especie de solenidade, e, vendo-os, eu
não podia deixar de esperar como eles qualquer cousa
extraordinaria. Quatro dias antes, foram levados os presos
para o banho de vapor. No meu tempo, sobretudo durante
o primeiro ano, os de+en+os raramente se banhavam. Todos,
portanto, se alegraram e iniciaram os preparativos. Devi-
amos ir para o banho depois do rancho e naquela tarde não
haveria trabalho. Na nossa caserna nenhum se afanava tanto,
nenhum se alegrava tanto quanto Isai Fomitch Bumchfein, o
preso judeu de quem ia falei no capitulo IV. Ele gostava
de transpirar ate ao espasmo, ate ao desfalecimento. Cada
#

156 DOSTOIEVSKI
vez que hoje em dia volvo ...s velhas recorda ões, quando
evoco as estufas (e elas merecem esse frabalho'I) no primeiro
plano do quadro aparece imediatamente o rosto do diqno,
do inesquecivel Isai, meu camarada de presidio e meu vizi-
nho de alojamento. Senhor, que grofesco inexprimivei que
era! J disse algumas palavras sobre o seu'aspecfo: cin-
quanta anos, debil, enrugado, com horrendos estigmas na
fronfe e nas faces, magro, doentio, um corpo livido de frango.
Se[i rosto exprimia uma perpetua satisfa ão consigo proprio,
uma auto-suficiencia quase beatifica. Não parecia lamentar
seu destino. Como era ourives de profissão e na cidade
não havia nenhum oufro, trabalhava incessantemente para os
funcionarios e ate mesmo para particulares, o que lhe rendia
algumas moedas. Não lhe falfava nada, vivia "corno rico",
sem todavia gasfar demais do seu dinheiro, *que era empres-
fado com usura ao presidio todo. Possuia um samovar,, um
colchão, chicaras e talheres. Em vez de o renegarem, os
judeus da cidade o protegiam. Nos s bados, e!~,- ia com as-
colfa ao servi o da sinagoga, (como o autoriza a lei). Vivia
in+eiramen+e feliz, embora esperasse com impaciencia o fim
dos seus doze anos de pena, para "casar-se". Era uma c"mi-
ca mescla de ingenuidade, tolice, astucia, imperfinencia,
simplicidade, timidez, fatuidade e imprudencia. Surpreendia-
me muito ver que os for ados não o levavam a rid¡culo:' ape-
nas implicavam com ele de tempos em tempos, de brincadeira.
Isai Fomifch lhes servia de perpetua dis+ra ão: "S6 temos
este aqui, deixem-no em paz!" diziam. E Isai Fomitch, embora
compreendesse por que diziam aquilo, ficava ufano com a
sua notoriedade, e nada divertia mais os presos. Fizera sua
entrada no presidio de maneira extraordinariamente engra a-
da (isso sucedera antes da minha chegada, mas alquem me
contou). Certa noite, na hora do descanso, espalhou-se o boa-
+o de que haviam trazido um iupim (1) para o corpo da guar-
da, que lhe estavam raspando a cabe a e em breve aparece-
ria. O presidio não confava dentro das suas paredes, então,
(1) judeu. (N. de R. Q)
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS 157
i
nenhum judeu; e os defentos, que o esperavam com ¡mpacien-
cia, cercaram-no logo que ele surgiu a entrada. O sub-c,ficial
conduziu-o a pri~So civil e lhe mostrou o seu lugar na tarimba.
Isai Fomifch carregava um saco com pe as de umforme e os
seus proprios objetos. Dep"s o saco, subiu a tarimba, sen-
fou-se, com as pernas dobradas sob o corpo, sem ousar le-
vantar os olhos para ningt~em. Ao seu redor, os for ados es-
frugiam em gargalhadas, dizendo pilherias sobrie a ra a do
#

nova+Q. De repente um jovem defenfoi que tinha nas mãos


uma *velha cal a suja, rasgada, r-emen~ada com farrapos,
atravessou o grupo, fornou lugar,ao lado de ]sai Fomifch e
ãp bateu no ombro:
- Ah, meu velho, ha seis anos que te esperol Quanto
me d s por isfo*? -, mostrava a cal a velha ao recem-
chegado.
Assim que viu o penhor que lhe apresentavam, Isai Fo-
mitch, - tão intimidado antes que nem ousava dizer pala-
vra, ou erguer os olhos para a turba de rostos zombeteiros,
fer re+ea dos,, assustadores, reunidos ao se * u redor, - Isai Fo-
mitch e~strerneceu de chofre, e pOs-se a apalpar o farrapo
com os dedos ageis. Olhou-o a luz da candeia. Todos es-
peravam o que ele ia dizer.
- Decerto não vais querer emprestar um rublo por
isto; enfrefanto as cal as bem o valem! continuou o "presta-
mista" piscando o olho.
ainda vai!
- Um rublo-prata não posso; porem sete copeques
Foram essas as primeiras palavras de Isai Fornitch; todo
o mundoestalou em gargalhadas.
- Sete copeques! Bolas! Da de uma vez! Mas
cuida bem do meu penhor! Respondes por ele com fua
cabe a!
- Com +res copeques de juros serão dez que me ficas
devendo, prosseguiu o juc[eu em voz arquejante s tr mula,
mergulhando a mão no bolso e olhando timidamente os
#

158 DOSTO(EVSKI RECORDA õES DA


CASA DOS MORTOS 159
outros. Tinha um medo horr¡vel, contudo queria fechar o ne-
gocio!
_uo por ' 1 -5 ires =~------
- Não, por ano, não, por m s!
- s um ladrão, judeu! Como te chamas?
Isai Fomitch.
Pois bem, Isai Fomi+ch, has de vencer aqui! At a
vista.
Isai Fomitch examinou mais uma vez o penhor, dobrou-o,
enfiou-o cuidadosamente no saco, sob a risada incessante dos
for ados.
E, com efeito, embora fossem quase todos seus deve-
dores, os defenfos pareciam gostar dele; ninguem o ofendia.
Alias, ele era menos capaz de enraivecer que um pinto. Quando
constatou os sentimentos que despertava, fez-se fanfarrão,
mas com bom humor, suficientemente cOmico para nSo agas-
far ninquem. Luka, que em outros tempos conhecera muitos
judeus. o espica ava frequentemente, mas sem animosidade,
apenas por distra ão, como a gente brinca com um cãozinho,
um papagaio, um animal ensinado. lsai Fomitch, que o com-
preendia bem, não se formalizava com aquilo e respondia na
altura.
- Toma jeito, ffipim, olha que +e dou uma surra!
- Por cada pancada que me deres receberas dez de
troco, replicava bravamente lsai Fomitch.
- Sarnen+o dos diabos!
- Que mal +e faz que eu seja sarrienfo?
- Jud-eu pioffienfo!
- Posso ser pio!hento mas tenho dinheiro. Tenho os
meus cobres! cantarolava lsai na sua fala ceceada.
- Vendilhão de Cristo!
- Isso mesmo!
- Bravo, Isai Fornifchi Não o estragues, Luka, que so
temos este! gritavam os defentos.
Siberia!
- O que tu esf s precisando e de knuf, judeu! Knuf e
- J estou na Siberia!
- Ir s ainda mais long~!
- Deus +ambem não esta l ?
- Bem, l isso esta ...
- Então não faz mal: tendo Deus e dinheiro, nada mais
preciso.
- Bravo, Isai Fomitchi bem se v que 'valentel
es um
bradavam de novo.
#

E. a despeito das zombarias, Isai Fomitch continuava a


Ibrava+e...r, Os cumprimentos lhe causavam tanta satisfa ão
que ele se punha a cantar, atraves da caserna, numa voz debil
de soprano: "La-la-la" numa melodia cOmica e est£pida. En-
1~uan+o durou sua deten ão, não cantou nunca outra cousa,
afora essa mUsica sem letra. Mais tarde, quando travou conhe-
cimento mais intimo comigo, garanflu-me sob juramento que
aquele era o hino entoado pelos seiscentos mil hebreus - do
mais mo o ao mais velho - durante a f ravessia do Mar Verme-
lho e que todo israelita tem ordem de o cantar nos momentos
solenes de triunfo sobre o inimigo.
Toda sexta-feira a noite os presos das outras casernas
vinham para a nossa apreciar [sa¡ Fomi+ch a celebrar o sabbat.
iE ele era de uma vaidade tão ingenua que essa curiosidade
geral o lisonjeava muito. Com ex+raordinaria afeta ão e
uma majestade bsfudadas, cobria a sua mesinha, ao canto,
abria o livro, acendia duas velas e resmungando palavras mis-
teriosas, envergava uma especie de estola, (cujo nome não sa-
bia pronunciar) (2). Era uma especie de marifeau de 13 colorida
que ele conservava cuidadosamente no bal.i. Punha nos pulsos
uns braceletes de couro, e na cabe a, segurando-a com um
cordSo, uma esp--cie de caixinha que parecia lho nascer da
testa como um como grotesco (3). E come ava, en13o, suas
devo Ees-, recitava lentamente, soltava gritos. escarrava dum
lado, piruetava, gesticulava de modo estranho e c"mico. Na
(2) O TVet ritual. (N. de P, QJ
(3) Trata-se evidentemente dos "tefilim" filacterais que os estritos ob
servadores
da Lei judia amarram aos pulsos e ... testa, seguindo as prescri ões do Òxodo (
Xili.
9 e 16) e do Deuteronornio (Vi. 8 - XI, 18). (N. de H. M.)
#

161
160 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA CASA
DOS MORTOS i
realidade, o rifual que ele observava s¢ se tornava, ridiculo
x
lhe ordenava que ness
e momento mostrasse uma e pressão de
devido a exibi ão, aos ares que assumia. Cobria a cabe anobreza e felicidade pe
rfeitas, ele tratou de obedecer,
en, as mSos e se punha a ler em vc7 c'~ sciu os,p;scando o
oinio, rindo, e balan ando a cabe a para o visitante.
que iam aumenfando af ao paroxismo; enfim, exhausfo, quaseE o maior, a prm
cipio espantado, acabou rindo, e passou
uivando, inclinava sobre o livro a cabe a adornada com o taladiarife, chama
ndo o judeu de idiota, enquanto Isai Fomitch
como; depois, parando de chofre os solu os arquejados, desa-prosseguia nos
seus grifos de triunfo. Uma hora mais tarde,
fava a rir, e volfava a salmodiar em voz agora triunfante e enquant
o ele ceava, pergunfei:
fr mula de alegria. "Ele'acaba se desconjuntando!" diziam os
- , E se o maior, est£pido como ,
se zangasse com voc ?
defenfos. - Qye maior?
Indaguei um dia de Isai Fomitch o que significavam os
seus solu os repentinamente interrompidos peila felicidade
- O que! que maior? Então
não o viu?
triunfal. O judeu deliciava-se por lhe fazer essas perguntas. - Não!
Explicou-me, imediatamenfe, que o medo e os solu os eram
- Ora, ele estava dois
dedos a frente do seu nariz!
provocados pela ruina de Jerusalem e por esse motivo a Lei
Mas Isai Fomitch me
garanfiu formalmente que em abso-
ordenava que os fieis gemessem e batessem no peito com
luto não se apercebera da presen a do
maior; suas ora ões
quanfa for a pudessem; mas, no insfan+e do mais violenfo da-
o mergulhavam numa especie de
xtase, e ele nada via nem
sespero.ele, Isai Fornitch, deveria de subifo e como inconcien-
ouvia do que se passava ao seu redor.
temente (aquele de s£bito era +ambem prescrifo, pela lei) re-
, Ainda hoje, parece que estou
a ver Isai Fomi+ch passar
cordar que uma profecia promete aos filhos de Israel a sua vol-
o sabado infeiro vagueando pela
forfaleza, cuidando em não
+a para Jerusalem. Tinha então que manifesfar alegria com
fazer nada, segundo as prescri ões
da Lei para o dia de sab-
c nticos e riso, dar a sua voz umaenfona ão de vivo prazer, e
b.af. Que anedotas ¡mpossiveis que
ele me repetia quando vi-
ao rosto uma expressão solene. Essa mudan a repentina, essa
nha da sinagoga, que noticias, que
boatos extravagantes, vin-
obriga ão indispensavel, encantava Isai Fomitch: via naquilo
dos de Pefersburgei, - cerfo de que
os seus correligiona rios re-
uma obra-prima de engenho,.e me explicava com imenso orgu-
cebiam de primeira mão tudo que lhe
con+avam!
lho essa prescri So sutil da Lei. Um dia; no momenfo, mais pa-
Mas ia falamos demais em
Isai Fomitch.
fefico da sua ora ão, o maior enfrou no alojamento, em com-
panhia do oficial de guarda e dos soldados da escolta. En-
A cidade possuia apenas
dois estabelecimentos de ba-
nhos. Um, mantido po
r um judeu, era reservado aos nofaveis,
quanto os demais for ados ficavam em confinencia defronte
tinha cabinas de cinquenfa copeques.
O outro, destinado a
...s farimbas, Isai Fomitch redobrou a grifaria. Como o re-
plebe, era sujo, det
eriorado, escuro. Era para Ia que nos leva-
#

gulament" autorizava a pratica dos cultos, ele sabia que nao


vam, num dia muito frio, mas de sol.
Os defenfos se alegra-
se arriscava absolutamente a nada; continuou a berrar como
vam com a id ia de sairem do
presidic, e olharem a cidade, de
um possesso. Mas, o que mais o encantava, era ter o direito
i forma que as brincadeiras e as
risadas não pararam, durante
de se esgani ar e gesticular assim diante do maior. Este
todo o caminho. Um grande pelotão de
soldados nos escolta-
se aproximou, chegou ate a um passo de distancia do judeu.
va, de armas embaladas, espanfando a
gente da rua. Quando
Isai Fomi+ch deu as costas a mesa e de p diante do oficial,
chegamos aos b&.~ihos, fomos
separados em dois grupos. Dada
entoou, gesticulando, o seu hino triunfal. Como a religião
a esfreifeza ~e espa o, um dos
grupos esperaria no vesfibulo,
#

162 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA


CASA DOS MORTOS 163
glacial, enquanto o outro se lavaria. Apesar disso, a sala era
tão minuscula que indagavamos como caberia ali a metade
's. Mas Pefrov n5o m-,:) leraave- sem escerar por consen-
timento de minha parte, acorreu em meu auxilio, e se ofereceu
ate para me esfregar. Seu exemplo foi seguido por outro for-
ado da se ão especial, Bakiuchine, que era chamado o "Ex-
plorador" e que me ficou gravado na lembran a como o mais
alegre e o mais agradavel dos companheiros. J eramos
conhecidos. Pe+rov ajudou-me at a me despir, porque, por
falta de habito, eu andava devagar demais, e na antec mara
fazia quase tanto frio quanto no pafio. Um de+enfo novi o
sente geralmente enorme dificuldade em se despir sozinho.
Em primeiro lugar, preciso desatar depressa as correias queIk
prendem as grilhetas; são correias duns quatro verchok (4) de
comprimento que se usam em baixo da roupa branca, por
sob o anel de ferro que rodeia a perna. Embora um pcir
dessas correias custe sessenta copeques, cada for ado as
adquire por sua conta. pois de outra maneira ser-lhe-la im-
possivel caminhar: o anel da grilhefa não aperta muito, pode-se
ate introduzir um dedo entre ele e a pele; mas o ferro, batendo
de encontro a perna, acaba ferindo-a de tal sorte que ao fim
dum dia o for ado que não usa correias tem uma chaga
aberta no lugar da grilhefa. Ali s, a dificuldadie não come a
com as correias: come a com a ceroula, presa sob o anel de
ferro. Para desp¡-la, misfer ser prestidigitador.
Quando se fira a ceroula do p esquerdo, por exemplo, e
preciso a principio ir puxando enfre o p e o aro da grilhela;
depois, deixando livre o pe, vai-se erguendo a perna da ce-
roula ate o aro; quando o p esquerdo asta livre, a ceroula e,
passada por baixo, para o pe direito; e afinal, pelo mesmo aro,
fira-se tudo para cima. E o +rabalho para vestir 6 o mesmo
que para despir. Um novato não sabe como h de fazer. O
primeiro professor que tive foi, em Toboisk, o for ado Kore-
niev, que passara cinco anos na corrente. Uma vez adquirido o
(4) O verchok uma medida equivalente a 4,445 cent¡metros. (N. de R. Q)
habito, a gente se arranja-sem dificuldade. Dei alguns cope-
quas a Petrov para que me comprasse sabão, e um dos peda-
cin~n-s de es+ong com
que nos disfriLam um peda o cle sabão a cada um, mas do
famanho de uma moeda de dois copeques e fino como as
fatias de queijo que servem nas mesas de gente pobre. Ven-
dia-se sabão na propria sala de entrada, bem como sbifen (5),
katafchi.e aqua fervendo. Segundo as conven ~es es+abele-
cidas om o proprie+ario, cada for ado tinha o direito a um
jarro cic, agua quente. Quem -fazia questão de se assear
melhor podia, mediante o pagamento de d¢is copeques,
adquirir um segundo jarro, que era passado da entrada para
#

a sala de banhos por um postigo ia aberto para esse fim.


Depois de me despir, Pefrov me +ornou nos bra os, obser-
vando que seria para mim dificil caminhar com as grilhetas.
- Puxe o ferro para cima, para a barriga das pernas,
disse ele, segurando-me como uma ama segura uma crian-
cinha ... E aqui, cuidado com o degrau!
Eu estava envergonhadissimo com tantos cuidados, e
gostaria muito de mostrar a Pefrov que poderia andar so,
mas ele não me acreditaria. Tinha para comigo os cuidados
que a gente acha devidos a um menino pequeno e desa-
jeitado. Petrov n~o tinha nada dum lacaio, nem o procura-
va ser; se o ofendesse, ele saberia muito bem como se
portar. Eu nada 1.he prometera pelos seus servi os, e ele
nada me pediu. Que lhe inspiraria tanta solicitude?
Quando abrimos a porta da estufa, parecia-me que
entrava no inferno. Imagine-se uma sala de doze passos de
comprimento e outros tantos de largo, onde estav~m juntos
senSo uns cem homens, pelo menos oitenta. pois eramos du-
zen+os, divididos em dois grupos. O vapor nos cegava; o
sujo , a lama, a falta de espa oeram tais que n3o se sabia onde
por os pes. Assustado, eu quis recuar, mas Pefrov logo me
sossegou. Com dificuldade inaudita abrimos caminho ate"tim
banco, passando por cima da cabe a dos presos sentados
(5) Bebida feita com agua, mel e especiarias. Hidromel. (N. de R~ Q)

164
DOSTOIEVSKI
em baixo. aos qua¡s pediamos que se curvassem para nos dar
passagem. Porem todos os lugares estavam ocupados: Petrov
me explicou depois que, eu dwicri-- ccmrr,,r um, e entrou
fogo em. negocia ões com um defento sentado perto do pos-
figo. Mediante um copeque o homem me cedeu o lugar,
agarrou depressa a moeda que Pefrov ia tinha na mão, e es-
corregou, bem por baixo de mim, para o escuro e a sujeira
de sob os bancos: e embora ia se patinhasse ali na lama com
bem um dedo de altura, formigava de gente. Não havia
no piso espa o para a palma de uma s0 mão. Alguns for ados,
de cOcoras, despejavam sobre si a agua do jarro. Outros, de
p entre os acocorados, seguravam o jarro com a das
mãos e com a outra se esfregavam. A agua suja lhes
escorria do corpo, cata diretamente sobre as cabe as raspa-
das que ficavam por baixo. Os degraus que levavam aos
bancos estavam famEem fervilhando de homens que, enrob-
dos sobre si proprios, se banhavam o melhor que podiam.
Mas a lavagem era pouca; o homem do povo não abusa nem
da agua quente nem do sabão; procura suar tremendamente,
e, depois disso, se encharca de aqua fria - o que constitue
o seu me+odo de banhar-se. No banco, as vassouras de b -
+ula baixavam-se e se erguiam em cadencia. Uns cinquenta
for ados se fus+igavam uns aos outros ate ao esgotamento.
O vapor aumentava de minuto em minufo. Ja não se estava
num banho de vapor, mas numa fornalha. Todos berravam,
todos urravam entre o ranger da ferragem que batia no soa~
Ao passar, alguns agarravam a sua grilhefa na grilhela
do outro, batiam nas cabe as dos queestavam agachados em
baixo, calam, praguejavam, arrastando na queda aqueles aos
quais se agarravam. A agua imunda corria por toda parte.
Os homens ficavam numa especie de estranha bebedeira; os
uivos, os gritos, se cruzavam. No posfigo da entrada, por
onde passava a agua quente, a turba era ainda mais densa.
Al¡, as pragas e os empurrões eram mais +erriveis. Antes de
chegar ao seu destino, a agua quente se entornava na cabe a
#

RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS


I
4
167
dos que estavam em baixo, de cOcoras. Re tempos em tem-
pos, na janela ou na porta entreaberta, um soldado barbudo,
com o fuzil na mão, verificava se não estava acontecendo
alguma cousa de anormai. As cabe as rdsp"das e c - cor-
pos vermelhos de suor pareciam - ainda mais monstruosos.
Nas costas, amolecidas pelo vapor, as cicatrizes do knuf ou
das varas sobressaiam com tanta nitidez que pareciam re-
cen+issimas. Horrendas cicatrizes! Dava-me arrepios sim-
111,
plesmente olh6-las. Tornavam a atirar agua sobre a pedra
ardente do forno, e um vapor espesso enchia a estufa como
uma nuvem chamejante. Todos ganiam, gritavam. Entre a
nevoeiro, apareciam dorsos remendados, cabe as raspadas,
dedos crispados de mãos em garra, pernas tortas. Para
completar o quadro, l¡sai Fomi+ch berrava o mais alto que
podia, trepado no banco mais elevado. Transpirava aM
desfalecer, porem calor nenhum lhe parecia bastante. Pagou
por um copeque um esfregador, mas o homem sem poder
mais atirou fora a vassoura e correu a se inundar de agua
fria. Isai Fomi+ch não desanimou: contratou um segundo,
um terceiro, sem encarar despesas, - chegou a cinco es-
fregadores. "Faz bem suar, remo a, hein, Isai Fomi+ch?"
bradavam-lhe os for ados de baixo. Naquele momento Isai
Fomi+ch senfia-se acima do presidio inteiro: mais alto que
todos os for ados, pavoneava-se, e, com voz rachada, esga-
ni ava um Ia-la-la que tinha for a suficiente para cobrir to-
das as vozes. Ocorre-me que se um dia tivermos que nos
reunir todos no inferno, - 16 ha de ser muito parecido corri
o lugar onde nos encontramos agora. Não posso deixar de
comunicar esse pensamento a Pe+rov, - ele, entretanto, olha
apenas em +orno de si, e não responde.
Quis pagar 1 para ele um lugar configuo aquele em que
estou, mas Pe+rov se instalou aos meus pes e declarou que
estava muito bem. Enquanto isso, Bakluchine ia nos corri-
prava agua, e ia +razendo-a a medida que a gris+avamos.
Petrov anunciou-me qua ia me lavar dos pes a cabe a, para
me deixar 1impinho" e me intimou a transpirar bem, cousa
#

168 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA CA


SA DOS MORTOS 169
que não me atra¡a absolutamente. Ensaboou-me todo; "e,
agora, vou passar sabão nos pezinhos". Eu quis respon-
.1 -
der que me poderia lavar s¢, mas Ia não. estava capaz de
u ~,~Jiiiiõ~Ii-dC e i-ti ~ ZUCA VUJIf Cie.
No diminutivo "pezinhos" não descobri nenhum tom de ser-
vilismo; Pefrov simplesmente não podia chamar meus pes
de forma diferente. Os outros, os homens de verdade,
podiam ter p¢s, mas eu!
Depois de me enxaguar com o r~ smo cerimonial, isto
, segura , rido-me e vigiando cada um dos meus passos como
se eu fosse de porcelana, levou-me de volta a antec"mara
e me ajudou a vestir a roupa branca; e, enfim, quando aca-
bou tudo, precipitou-se para a estufa afim de por sua vez
f ranspirar.
Quando voltamos, ofereci-lhe um copo de cha que ele
não recusou. Ocorreu-me oferecer-lhe um pouco de vodca.
Havia aguardente na nossa caserna. Pefrov mostrou-se ex-
+raordinariamen+e feliz: enguliu o conteudo do copo dum
trago, rosnou de prazer, declarou que eu lhe havia dado
vida nova, e se precipitou para a cozinha, como se l nin-
quem pudesse resolver nada de imporfante sem sua presen a.
Logo depois apresen+ou-se outra visita. Bakluchine, o
"Explorador", que eu convidara durante o banho. Nunca
encontrei criatura de genio mais delicado que o seu. Para
falar verdade, era muito suscepfivel, e brigava com frequen-
cia. Detestava principalmente ver alquem se meter com a
sua vida: em suma, sabia defender-se. Mas nunca se zangava
por muito tempo. Todos pareciam lhe querer bem; por onde
ia, era recebido com prazer. Alias, ate mesmo na cidade
gozava de uma reputa ão de bom sujeito, sempre jovial.
Era um rapagão duns trinta anos, de cara ingenua e c ndida,
muito bonita, embora es+ragada por uma verruga. Tinha o
dom de fazer caretas de modo f3o c"mico, imitando qual-
quer pessoa, que se apinhavam grupos de gente ao seu redor,
e ninguem podia deixar de rir. Formava entre os engra-
ados do presidio, porem não se deixava vencer pelo azedume
I
dos rixentos, inimigos da alegria; assim ninguem lhe pisava
o pe, ninquem o chamava de "desmiolado" de "sujeito ...-
foa". Transbordava de vitalidade. Logo ... nossa primeira-
entrevista con+ou-rne que de soldado de infantaria passara
a sapador de engenharia, e que varias personagens impor-
tantes lhe tinham amizade e reparavam nele, cousa pela qual
sentia um grande orgulho retrospectivo-, depois interrogou-
me minuciosamente a respeito de Pefersburgo. Lia at
#

alguns livros. Quando veio +ornar chia em minha companhia,


come ou fazendo rir todo o alojamento, contando como,
naquela propria manhã, o tenente Ch. maltratara o nosso
maior. E, depois de instalado ao meu lado, anunciou-rne
satisfeito que o teatro j6 era cousa certa. Realmente, os
detentos andavam planejando uma representa ão para as
festas. Tinham-se arranjado atores, e um ou dois wnarios.
Algutrias pessoas da cidade prometiam emprestar frajos,
e Sis femininos. Por in+ermedio de
af' mes¡mo para os pap
um bagageiro, esperavam obter uma farda de oficial, com-
pleta, inclusive as dragonas. Contan+o que o maior nao
acabasse com a fun ão, como o fizera no Natal passado!
Aquele demonio andara de mau humor, nesse tempo: per-
dera no jogo, e não houvera barulho no presidio: assim, de
raiva, acabara com a festa. Desta vez, esperava-se que
estivesse mais manso. Em suma, Bakluchine sentia-se ani-
madissimo. Via-se que era um dos principais instigadores
da representa ão, ... qual dei-lhe minha palavra que assisti-
ria ... Sua ingenua alegria me comoveu. E, aos poucos,
fomos conversando com mais intimidade. Ele então me con-
fessou que passara todo o seu tempo de servi o militar em
Petersburgo: uma falta qualquer fizera com que o mandassem
para a quarni So de R., com a patente de sub-c,ficial.
. - E de Ia me deportaram para ca, acrescentou.
- Por que? perguntei.
- Por que? 'Não capaz de adivinhar, Alexandi-
Petrovi+chi Porque me apaixonei.
W
#

170
DOSTOIEVSKI
- Mas que isso? Nunca vi deportar-se um homem
porque esta apaixonado! comentei, rindo.
"IS-
- E' verdade: porem, devido a isso dei tim +iro de ;-i
+ola no diabo dum alemão que andava por Ia. Ser justo
me mandarem para o presidio por causa dum alemão? Jul-
que por si.
- Como foi a hisforia? Conte que deve ser in+eres-
sante!
- E' mesmo uma hisfor~a engra ada, AlexancIr Petro-
vi+ch!
- Melhor, então conte!
- Quer mesmo ouvir? Pois 16 vai!
E a hisforia do crime que ouvi era, senão engra ada,
pelo menos bastante estranha ...
- Aconteceu assim, come ou Bakluchine. Quando me
mandaram para R., que foi que encontrei Ia? Uma cidade
grande, bonita, mas com alemães demais. Eu, que ainda era
mo o nesse tempo, dava na vista; usava o gorro de banda,
e me divertia a larga - compreende, nSo? Arrastavo a asa
as alemãs, e tinha uma, chamada Luiza, que me agradava
muito. Eram engornadeiras, ela e a +ia, - mas engorna-
deiras de roupa fina. A +ia era uma bruxa velha, porem a
pequena enchia os olhos. De come o passei pela janela, fa-
zendo pose, depois ficamos amigos. Luiza falava russo mui-
to bem - s6 com um pouco de sotaque. -E era muito en-
gra adinha! N3o encontrei nunca outra igual. Então, -
ia sabe - fui pedindo ... ela porem me disse: "Não, Sacha.
isso não; quero guardar minha inocencia e casar contigo."
Passava todo o tempo me acarinhando e dando risada. Ti-
nha um riso tão alegre ... Enfim, - claro, -Z- uma rapa-
riga tão bonitinha, tão limpa - tinha que me agradar mais
que quaiquer outra. Ela e que queria se casar - e como
que eu poderia dizer não, heiri? E me prepAci para pe-
dir autoriza ão ao coronel. Mas de repente, que foi que
aconteceu? Luiza faltou a um encontro, a outro depois, e
a mais outro. . . Mandei-lhe uma carta, e nada de respos-
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
r
171
ta; então, pensei: "Que e que h ? Se ela estivesse me
enganando, daria um jeito para responder a carfa,ou vir
aos encenics; n£,~ icã~,e tijeinTir, e rompeu, simpiesmen-
#

te. Deve ser cousa da fia!" 1\15o me afrev¡ a ir em casa


da velha; ela sabia que n6s namoravamos, porem a gente se
escondia para despistar. Eu estava como louco; escrevi
,mais uma carta ... Luiza, e disse: "Se tu não apareces, vou
a casa da tua +ia!" Ela teve medo e veio. E, então, me
confessou chorando, que havia um alemão chamado Schultz,
seu parente afastado, relojoeiro rico, que queria casar com
ela - para faz -la feliz. Era s¢ o que queria: faz -la
feliz, e ao mesmo tempo não viver sem. mulher, na velhice.
E Luiza disse mais: "Ja faz muito tempo que Schultz gosta
de mim, que esta com isso na cabe a, mas não tinha co-
ragem de casar comigo: calou-se, e esperou, tu compreendes,
Sacha; mas e rico, e e para minha felicidade. Tu não queres
impedir que eu seja feliz, queres?" Olhei para ela: estava
chorando, me beijando, e pensei que afinal a pequena tinha
razão: que lhe adiantava casar com um soldado, fosse embora
sub~oficial como eu era? - "Bem, falei - adeus Luiza, e que
Deus te aben oe! Não 'quero impedir tua felicidade! Co-
mo esse alemão? Bonifo?" - E ela respondeu: "Não, e
um velho narigudo." E deu uma risada. Deixei-a, e pensei:
99;V porque não era minha sor+e!" No d*,a seguinte passei
diante da loja de Schul+z-, - ela me havia' dito em que rua
ficava Olhei pela vitrina, e vi um alemão remexendo
num relogio. Tinha uns quarenta e cinco anos, nariz de pa-
pagaio, olhos esbugalhadose e um fraque de gola alta - alfis-
sima! Aquilo me deu um nojo! Tive vontade de lhe quebrar
a vitrina na cara. Mas pensei: para que? Não adianta fa-
zer barulho, tudo j5 foi por agua abaixo! Voltei para o quar-
fel, a noifinha, esfirei-me na tarimba e, h de crer, Alexandr
Pe+rovifch? de repente me pus a chorar...
"Passou-se um dia, e outro mais, e um terceiro. Não
vi mais Luiza. Foi então que soube por uma amiga (uma ve-
lha engornacleira que Luiza ...s vezes visitava) que o alemão
#

172
DOSTOIEVSKI

tivera ciencia do nosso namoro, e estava apressando o ~asa-


menfo, por causa disso. Se não fosse assim, esperaria ainda
um ano ou dois. Parece que ele tinha feito com que Luiza
jurasse nunca mais me procurar. Parece fambern que ele
apertava a fia e Luiza por minha causa. Ela decerto ainda
não refletira bem, não se resolvera. A velha fambem me
disse que no outro dia, domingo, iam as duas +ornar um caf -
em casa do noivo; iria, aincla, um parente velho, antigo
comerciante ca¡do na miseria, e que era agora vigia numa
faverna. Quando compreendi que, no domingo, cerfamenfe,
a cousa toda ficaria resolvida, fiquei numa furia tão grande
que não sabia mais de mim. . Durante todo esse dia e no
dia seguinte não pensei -em oufra cousa. Era capaz de engo-
lir vivo o desgra ado daquele alemão.
"No domingo de manhã eu ainda não de , cidira o que
haveria de fazer; mas, assim que acabou a missa, vesti o ca-
pofe, e foquei para a casa do alemão. Tinha na mente en-
confrar foclos Ia, porem juro que não sabia para que os queria,
nem adivinhava que ia dar cabo de alquem. Por via das d£-
vidas, levei no bolso uma pisfola, -- uma pistola de nada,
com um gatilho a moda antiga, que eu tinha comigo desde me-
nino. Ja não valia cousa nenhuma. Mas pus-lhe carga, de
qualquer modo, porque pensava: "Vão me tocar para fora,
vão ser grosseiros comigo; então eu firo o brinquedo do bolso
e fa o um pouco de medo ao pessoal!" Entrei na loja: nin-
quem. Esfavam nos fundos, sozinhos, sem criada. O sujeito
tinha alias uma cozinheira alemã. Atravessei a loja, e dei
com uma porfa fechada, - uma porcaria duma porta velha,
francada com uma +ramela. Parei, com o cora So batendo
for¡a, o escutei: estavam falando alemão. Dei um pontap
na porta com toda a for a, e imediafamen+o ela se abriu. Vi a
mesa posta, e em cima uma cafeteira enorme, e o caf fer-
vendo numa l mpada de alcool. Biscoi+os num prato, uma
garrafa de vodca, arenques, um salsichão e mais outra garra-
fa de não sei que vinho. Luiza e a fia estavam senfaclas
no sof6, todas no trinque-, defronte delas, numa cadeira, o
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
173
alemão, o noivo, todo penfeado, com o fraque de gola alta;
no canto da mesa outro alemão, um velho gordo de cabelo
branco, muito quieto. Entrei: Luiza ficou da cor de cera;
a fia deu um sa¡to e tornou a sen-rar; o aiernão fechou a cara.
levantou-se, mal satisfeito e caminhou para mim:
- Que deseja aqui, soldado? perguntou.
#

Eu devia estar atrapalhado, mas a raiva me deu coragem:


- Que desejo? que me recebas e me ofere as bebida.
Vim aqu¡ de visita.
O alemão pensou e disse:
- Sente-se.
Son+ei-me e falei:
- Vamos, serve-me bebida.
E ele resmungou:
- Esta aqui o vodca, beba, por favor.
- Sim, falei, mas esfe vodca presfa?
A mostarda ia estava me subindo ao nariz:
- E' muito bom.
Ele me espiava por cima do ombro, e aquilo me fazia
ferver o sangue. !E o pior, ia se sabe, era ver Luiza me olhar.
Engulf o vodca e disse:
- Por que esfas com tanta grosseria, alemão? Tens
que ser meu amigo. Para isso vim aqui.
- Não posso ser seu amigo, respondeu ele. Voc não
passa dum soldado.
Então fiquei uma fera.
- Cara de espantalho, grifei, salsicheiro de uma figa,
irigo esf6s vendo que ou agora posso fazer de +i o que quiser?
Esf6s vendo esta pisfola? Queres que fe rebenfe a cabe a
com ela?
Tirei a pisfola do bolso, e apontei bem para o meio da
cara dele. Os outros olhavam, mais morfos que vivos, não
-rinham coragem nem de respirar. O velho +remia como uma
folha, sem dar um pio, branco de medo.
O alemão estava antes admirado, mas de qualquer modo
se refez depressa.
#

174 DOSTOIEVSKI
- Não fenho medo de voc , falou ele. :E se um
homem bem educado pe o-lhe que acabe ia com essa brin-
cadeira. Nio me laz medo nenhum.
- Mentira! bradei. Esfas com medo!
E' verdade que ele não se afrevia a mexer com a ca-
be a, debaixo da pistola; não movia um dedo.
- Não, o senhor não fem absolufamenfe o direito de
fazer isso!
- E por que e que não fenho direito?
- Porque e proibido, e depois feria que
que fez.
Diabos levem o burro daquele alemão! Se ele não me
fizesse perder as esfribeiras, ainda estaria vivo! Foi a dis-
cussão que provocou tudo!
- Ah, repliquei, então es+6s pensando que eu não me
atrevo?
pagar pelo
- N-não!
- Não me afrevo?
Não se atreve absolutamente!
Pois então toma, cara de salsicha, forna!
Dei o firo, e o sujeito escorregou da cadeira, enquanfo
os outros se puseram a berrar.
Enfiei a pistola no bolso e me raspei de 16. Chegando
ao quartel, atirei a pistola nas urtigas, perto da enfrada.
Enfrei, me estirei na cama, e pensei: "Vão me pegar".
Mas passou-se uma hora, outra, e nada! Ja era noite, quan-
do me veio uma magoa, uma dor fão grande, cNe quase
me rebenfa. Tinha que encontrar Luiza naquele mesmo ins-
fanfe. Passei pela relojoaria, vi 16 um povareu enorme e a
policia. Pedi ... velha que chamasse Luiza, esperei um pouco
e Lu¡za chegou. Agarrou-se comigo, chorando: "Sou eu
a culpada, porque fui escutar os conselhos de minha fia!"
E confou em seguida que, logo depois da hisforia, a fia
voltara para casa, doente de medo, incapaz de dizer uma
palavra. "Não quis falar nada a n¡nquem e fez com que eu
jurasse que calava a boca. A velha esfava morrendo de
f
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
i
175
medo! Fa am eles o que quiserem! Ninguern nos viu 16-,
#

ele tinha mandado embora a criada-, tinha medo dela; era


capaz de lhe arrancar os oilhos quando soubesse que o pa-
frão ia casar comigo. Os empregados fambern não esfa-
vam - ele mesmo preparou o cafe e a merenda. E o pa-
rente velho, sempre calado a vida inteira, ha de con-
tinuar calado agora. Quando -a cousa aconfeceu, apanhou
o cRapeu e saiu sem dizer nada."
Tudo se passou assim mesmo. Duranfe uns quinze dias
n¡nguem me prendeu, ninguern suspeitou de mim. E, du-
ranfe, esse tempo, acredite se quiser, Alexandr Pefrovitch,
nunca fui fão feliz na minha vida! Via Luiza todos os dias,
e que carinho que ela me dispensava! Chorava, e dizia:
"Vou para qualquer lugar onde fe mandarem. Deixo tudo
por til" Eu ia pensava afe em acabar com a vida, tanta pena
que ela me clava; mas, depois dessas duas semanas, me pren-
deram O velhoe a fia cor¡luiaram-se e me denunciaram."
- Escute, Bakluchine, interrompi. Um caso des-
ses podia lhe arranjar uns dez a doze anos, na se ão civil.
Contudo, voc es+6 na se ão especial. Por que?
- Isso ia e outra hisforia! Quando fui a conselho, de
guerra, o capitão me disse uma por 3o de palavrões diante
dos juizes. Eu não pude afurar aquilo, e grifei: "Por que
me insultas desse modo? Onde e que pensas que estas?
Não esf6s vendo o "espelho da justi a" (6) na tua frente, ani-
mal?" Junfaram uma hisforia com a ouira, pequei quatro
mil varadas, e a se ão -especial. Mas quando me !evaram
para sofrer o castigo, o capifSo fambem estava Ia. Eu
sofr¡ os a oites. Ele, porem, foi degradado e mandado para
o C6ucaso como simples pra a. Ate logo, A!enxandr Pe+ro-
vi+ch, não falfe ao nosso teatro.
(6) Na mesa de todos os tribunais russos havia um "espelho da justi a" (ze
rha-
to) - prisma de vidro triangular encimado por uma aguia e em cujas tr s fac
es erarn
colados tr s Lkazes de Pedro o Grande, referentes ao processo e aos direito
s dos
cidad os. (N. de H. M.)
#

Natal
Enfim, chegou o N £al. Desde as v speras os presos
quase não trabalhavam; os alfaiates e outros oficiais
foram para as oficinas porem os demais se reuniram para
a chamada e voltaram quase imediatamente, de um em um
ou aos grupos. Depois da rafei ão, ninguem se mexeu mais.
AUs, desde pela manhã a maioria dos defentos não se ocupa-
va senão dos seus proprios negocios. Uns, conspiravam
a proposito do vodca que era preciso fazer entrar, ou en-
comendar ainda. Outros, pediam permissão para visitar
amigos ou amigas; algun,% recolhiam para as festas as pa-
quenas quantias que haviam ganho com o seu trabalho parti-
cular. Bakiuchine e a turma encarregada do teatro procu-
ravam convencer alguns indecisos, sobretudo entre as orde-
nan as dos oficiais. que tinham possibilidade de lhes err~-
#

178 DOSTOIEVSKI
prestar fraios. Alguns iam e vinham com ar absorto e apres-
sado; mas apenas porque viam os outros absortos e apressa-
dos; não tinham nenhum dinheiro em perspectiva, todavia com-
porfavam-se como se o esperassem das mãos dos devedores.
Em resumo, todos aguardavam o dia seguinte como um acon-
fecimento extraordinario. A tarde, os invalidos voltaram
da cidade com as encomendas dos presos; traziam varios co-
mesfiveis, carne, leitões e a+ gansos. Alguns dos nossos,
entre os mais simples e os mais econ"micos, ate mesmo aque-
les que durante o ano inteiro iam juntando um a um os seus
1 copeques, senfiam-se obrigado- a afrouxar os cordões da
bolsa, e a comemorar condignar.,` rife a festa. O Natal repre-
sentava para os for ados uma solenidade de que ninguem
os poderia privar, que a lei lhes reconhecia formalmente. Era
um dos +r s dias do ano em que ninguem tinha o direito de
os fazer trabalhar.
Afinal, poda-se conceber quanfas recorda ões agitavam
as almas daqueles r probos nas proximidades do Natal! A
gente do povo cultiva, desde a infancia, o respeito pelas
festas solenes, durante as quais se abandona a rude !abufa
e congregam-se as reuniões de familia. No presidio, onde
a comemora ão das festas não poderia provocar senão sau-
dade, esse culto assumia um aspecto imponente. SO alguns
defentos bebiam, e maioria se mantinha grave, como que
preocupada, apesar da sua absoluta desocupa ão. Os pro-
prios beberrões se -esfor avam por manter um ar serio. As
-risadas pareciam proibidas. Reinava em todo o presidio uma
atmosfera de susceptibilidade, de infoleranc¡a: e, quem, mes-
mo involuntariameriM, perturbava a compostura geral, era
chamado ... ordem por gritos, por injurias; zangavam-se contra
ele como se faltasse ao respeito ... propria festa. Esse esta-
do de espiri+o era tão comovenfe quanto curioso. Mem
da venera ão intr¡nseca que sente nesse grande dia, o for-
ado se apercebe inconcienfemen+e de que a sua coparfi-
cipa ão na festa o poe em comunhão com o resto do mundo,
a que, por consequencia, j não e!e um r probo, um de-
. RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
179
ca¡do, um farrapo sem dono, mas, embora no fundo do pre-
sidio, ainda e um homem. C;gal,
~i o
vis¡vel, compreensivel.
O proprio Akim Akim¡fch se preparava ativamente.
Não tinha recorda ões de familia, pois se criara orfão em
casa de estranhos e, aos quinze anos, iniciara os duros fraba-
lhos do servi o militar. Sua vida não contara nunca ale-
#

grias especiais, porque -ele a passara na regularidade, na


rotina, no receio de infringir qualquer infimo dever que lhe
era imposto. Não era muito religioso, uma vez que o for-
malismo lhe absorvera todos os dons humanos, todas as
paixões, todos os desejos, bons e maus. Preparava-se por-
tanto, sem nenhum sentimento febril, sem emo ão, sem a
minima especie de saudade. Mas tinha ali excelente opor-
funidade para aplicar sua met¢dica pontualidade nos deve-
res impostos por uma festa de tradi ão indiscutivel. Alias,
Akim Akimitch não gostava de refletir. A'imporfancia dos
fatos lhe deixava o cerebro em repouso; bastava que uma
ordem lhe fosse dada para a cumprir com religiosidade e mi-
nucia. Se no dia seguinte lhe dessem nova ordem, inteira-
mente antag"nica a da vespera, obedeceria com a mesma
docilidade, o mesmo cuidado. Certa vez, uma unica vez
na sua vida, agira por sua propria cabe a, e aquilo o levara
ao presidio. A li ão nao se perdera. Por mais incapaz
que fosse ele de compreender em que consistira o seu crime,
tirara, daquela aventura, uma regra salutar: não raciocinar
nunca, porque raciocinar não era "negocio" seu. Devoto
cego das f¢rmulas, considerava com antecipado respeito -o
leitão que recheara com centeio, e que, com suas proprias
maos, assara no forno, - pois ate cozinhar sabia. Não o con-
siderava um simples leitão que se pode em qualquer tempo
comprar e assar, mas um animal criado especialmente para
festejar o Natal. Decerfo, habituado desde a infancia a ver
figurar um leitão na ceia do Natal, concluira que esse animal
ora indispensavel ... celebra ão do dia; estou convencido de
que se Akim Akimitch não pudesse comer leitão na noite de
~- i t2, 2 aquL.-l eird
#

ISO
POSTOIEVSKI
festas, aquele dever não cumprido lhe daria remorsos para o
resto da vida. Trajava af ent~o um casaco velho e umas
cal as que, apesar de todos os cuidadosos remendos, tinham
chegado ao ultimo grau de usura. Descobr¡ que ia h6 qua-
+ro meses ele guardava preciosamente dobrado no baU o
uniforme novo, com o fim Unico de o estrear no Natal. Na
vespera desse grande dja, Akim o tirou do bau, estendeu-o,
olhou-o, escovou-o, assoprou-o, examinou-o costura por cos-
+ura, e afinal o experimentou, para ver como ficava. Cons-
fa+ou que ficava bem, que estava decente, que os colchetes
fechavam at em cima, que o colarinho, duro como carto-
l~na, lhe mantinha o queixo elevado. O frai\ '.,iha uma certa
linha militar no corte, e Akim Akim+ch, com um meio sorriso
de satisfa ão, virava-se e revirava-se lestamen+e diante do
seu espelhinho, cuja moldura, ia ha muito tempo, numa hora
de folga, ele proprio dourara. So um colchete do colarinho
não parecia Ia muito bem pregado. Akim Akimitch o des-
cobriu e resolveu muda-lo de lugar. Depois de repregar o
colchete, experimentou de novo o casaco e viu que estava
irrepreensivel. Tranquilizado, então, dobrou a roupa e +or-
nou a guarda-la cuidadosamente no ba£. Estava com a ca-
be a bem raspada: todavia, depois de severo exame ao espe-
lho, observou que o alto do cranio não se mostrava inteira-
mente liso: avistavam-se alguns cabelos um pouco crescidos:
foi imediatamente procurar o "maior" para raspar a cabe a
direito, de acordo com o regulamento. Ninguem, decerto,
o iria revistar no dia seguinte, mas ele procedia assim por
alivio de conciencia, afim de cumprir seus deveres para com
a festa. Desde crian a trazia gravada na alma a venera ão
pelo botão, os alarriares, as dragonas: seu espirifo estava preso
a essas marcas externas do dever, e as cul+uava no ¡nfimo
como a imagem da mais perfeita -elegancia que pode ser
cobi ada por um homem de bom-+om. Depois de proceder
a todas essas verifica ões, na sua qualidade de monifor, man-
dou trazer palha e fiscalizou a sua me+6dica disposi ão sobre
o chão. Procedia-se a mesma opera ão em todos os outros
RECORDA õES DA CAU DOS MORTOS
181
alojamentos. Não sei por que, quando chegava o Natal,
punham palha no chão. Acabados os trabalhos, Akim Aki-
mifch rezou as suas ora r~Ses, es+ii-cu-se na farimba e ador-
meceu imediatamente, no so-no suave da infancia, para des-
perfar o mais cedo possivel no dia seguinte. Foi, alias, o
que tambem fizeram os demais detenfos. Em todos os alo-
#

jamentos foi-se dormir muito mais cedo que nos outros dias.
Os trabalhos comuns de serão foram abandoriados: quanto
ao maidane, nem se pensava nisso. Cada um vivia na ex-
pecfafiva do dia seguinte.
Enfim, o dia chegou. Muito cedo, antes da madrugada,
bateu-se a alvorada, abriram-se as casernas, e o sub-c,ficial
que veio fazer a chamada nos desejou boas-festas. E em tom
arriavel, lhe refribuimos os votos. Acabadas as rezas, Akim
it
Akim' ch e varios outros se precipitaram para a cozinha, afim
de vigiar o preparo do seu ganso ou do seu leitão. Na som-
bra, atrav s das janelinhas tapadas pela neve e pelo gelo, viam-
se luzir os seis fogões das cozinhas, acesos desde a madru-
gada. No patio escuro passavam os defen+os, com o ca-
pofe atirado ao ombro, afraidos todos pelos fogões. Al-
guns - em pequeno n£mero, porem - ia tinham tido tempo
para visitar os bofequineiros. Eram os mais impacientes.
A maioria se portava com dignidade, com decencia, muito
melhor que de h6bifo. Não se ouvia ninguem a praguejar
ou a brigar, como sempre. Todos compreendiam a gran-
cleza, a solenidade da'festa. Alguns iam ...s outras casernas,
para dar boas-festas aos amigos e conhecidos; senfia-se nas
vozes daqueles homens um sentimento que parecia muito com
amizade. Diga-se de passagem que os for ados rigo se
afei oam a ninguem; e muito raro ver algum fornar-se amigo
de outro. A amizade quase n"o existia entre ri~s-, as rela-
o
ões enf re os defenfos---nanfinham-se sempre 6speras, secas;
ora esse o tom adotado e vigorante, praticamente sem ex-
ce ões.
Quando por minha vez sai da caserna, o dia come ava
a nascer: as estrelas empalideciam, e uma leve nebIlina con-
#

DOSTOIEVSKI
~e erguendo da +erra. A fuma a sa¡a am aut n-
~is pelas chamines das cozinhas. Os poucos com-
Roffilro que e,-,C
me dar boas-festas. E eu agracteci e retribui os bons votos.
Alguns ma dirigiam a palavra pe~a primeira vez.
Na poria das cozinhas encontrei um defenfo da se ão
milifar, com a pele de carneiro atirada ao ombro. Do meio
do pafio, avistando-me, ele gritara: "Alexandr Pe+rovi+ch!
Akxandr Pe+rovitch!" E se precipitara para as cozinhas.
Detive-me para o esperar. Era um rapaz de cara neclonda,
olhar calmo, muito pouco conversador; nunca me dirigira c~
palavra nem me prestara a minima ateri ão: e eu não lhe sa-
bia sequer o nome. Chegou, afogueado, resfolegando, e
ficou parado diante de mim, sc( - do. e fi+ando-me com os
olhos es+Upidos.
- Que deseja? pergun+ei-lhe, não sem espanto, vendo
que ele não se mexia e me olhava sem encontrar palavras.
Mas ... e ... a festa ... gaguejou afinal, e, com
preendendo que nada mais tinha 6 me dizer, deu meia volfa
e entrou na cozinha.
Farei notar aqui que desde esse dia ate ao fim da mi-
nha deten ão não nos enconframos praticamente nunca mais.
Nas cozinhas, junto aos fo98es aquecidos ate ao rubro.
um verdadeiro formigueiro se agitava. Cada um +ornava
conta do que era seu, enquanfo os cozinheiros preparavam
a comida geral, porque nesse dia a hora das refei oas
era adiantada. - Entretanto, ninguem se senfava a mesa,
apesar dos desejos de alguns. Esperava-se o padre, pois
o jejum s¢ deveria terminar depois da sua visita. O sol
ainda não clareara de todo, quando no por+So de entrada
soou o grifo do cabo de servi o, chamando os cozinheiros.
O mesmo grifo ecoou a todo instante, durante perto de duas
horas; chamava para que se recebessem as esmolas man-
dadas de foclos os canfos da cidade. Enviavam em quan-
+idades -enormes kala+chi, pães, pas+eis de queijo, frifuras,
doces de toda especie. Penso que n3o havia na cidade
RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS
183
~,I. uma vendeira, uma burguesa que não mandasse, como fes-
fas, uma esmola para os "desgra ados". Algumas esmoias
eram opulenfas, como nor exempilo r~9~ c!,~ f!nr d-~ f,~Ir-¡rk-
,outras mesquinhas, um pãozinho redondo de dois copeques
,, u uma forta lambuzada de creme azedo: aquilo era o pre-
,,,senie do pobre ao pobre; mas o doador gastara nele o seir
Ifimo copeque. Recebia-se tudo com o mesmo reconhe-
i 1 rr!enfo, sem fazer disfin Ses entre os donafivos ou entre
#

res. Os de+enfos que recebiam esmolas tiravam o


clinavam-se para saudar os doadores desejando-lhes
s-fesfas, e levavam para as cozinhas o que lhes havia sido
fregue- Quando reuniam grandes montes de pão, charria-
m-se os monifores, e eles os repartiam em partes iguais,
1 1 nfre focios os alojamentos. A partilha não provocava brigas
m descomposfuras; fazia-se honesta, equi+afivamenfe. Mim
,,,kimifch, ajudado por outro preso, nos distribuia o quinh3o
nosso alojamento; dividiam-no com suas proprias mãos e
! irifregavam a cada um a sua parte. Não h¢uve a m¡nima
ma ão; cada um se considerava safisfeifo, nenhum sentia
a, nenhum pensava que as esmolas haviam sido escondidas
as sem igualdade.
do terminou os seus preparativos de cozinha, Akim
vesfiu-se com uidado e gravidade, sem deixar
do o menor colchete; depois foi rezar, ro que de-
as+an+e tempo. JEram sobretudo os mais velhos
desempenhavam os seus daveres religiosos. Enfre os
o 1
,~vens, muitos se contentavam em fazer o sinal da cruz, ao
levanfarem, mesmo nos dias de fesfa. Acabada a reza,
im Akimitch me procurou, e me deu as boas-fesiras com
certa gravidade. Convidei-o a +ornar ch e ele me con-
41dou a comer do seu leitão. Um pouco depois, Pe+rov
:i ara mim para me oferecer tambem seus bons votos.
a
iS fer bebido; um pouco sem f"lego por causa da cor-
o me falou muito, ficou' alguns segundos parado de-
e mim. como se esperasse alguma cousa, e me deixou
rapidamenfe para correr af a cozinha. Nesse ¡nterim, na
t
#

184
DOSTOIEVSKI
r
prisão militar, faziam-se os preparativos para a recep ão do
pope. Essa caserna não era construida de modo igual ...s
outras-, a tarimba era ao comprido da parede, em vez de fi-
car no meio, como nas demais. Era, pois, a unica que não
tinha o centro ocupado. Tinham-na arrumado assim para
os casos em que houvesse necessidade de reunir os for ados.
Puseram no meio da sala uma mesinha, coberta com um pano
branco; depois, colocaram em cima um icone, e acendeu-se
uma lamparina. Enfim, entrou o pope, carregando a cruz e
agua benta: ap¢s rezar e cantar diante da imagem santa, de-
frontou os de+en+os, que, com sentida compun ão, desfi-
laram perante ele afim de beijarem a cruz O pope afra-
yessou em seguida todas as casernas, e as dspergindo de
agua benta. Na cozinha, felicifou-nos pelo nosso pão, que.
era gabado ate na cidade; imediatamente lhe oferecemos
dois pSezinhos que acabavam de sair do forno e encarrega-
mos um dos invalidos de os levar ate a casa do pope. E
despedimo-nos da cruz com o mesmo respeito com que a
baviamos acolhido. Então, quase no mesmo instante, apa-
receram o maior e o governador. Este, que era querido por
todo o mundo, visitou os alojamentos em companhia do ma-
lor, desejou feliz Natal aos for ados, passou pela cozinha e
provou a sopa de couves, suculenta naquele dia, porque
tinham posto nela cerca de uma libra de carne por de-
tento. Ademais, um cozinhado de milho, onde a manteiga
não fora poupada, fervia no fogo. Depois de levar ... porta
o governador, o maior deu o sinal para a refei ão, mas os
presos se esfor avam por não lhe ficar sob as vistas; te-
miam o olhar ocliento que, por tr s dos ¢culos, passeava ...
direita e a esquerda, procurando, ate mesmo naquele mo-
mento, uma desordem a reprimir ou um culpado a castigar.
Senfamo-nos a mesa. O leitão de Akim Akimitch es-
+ava otimamente assado. Não sei como foi que isso se deu,
mas cinco minutos não tinham decorrido depois da partida
do maior, quando descobrimos que grande numero de ho-
mens j estava b bedo - e, entretanto, na presen a do
t
#

RECOR,DA õES DA CASA DOS MORTOS


187
,," ningiuem parecia ter tomado nada. Muitas caras fi-
cavammei, nos e lustrosas; apareceu uma balalaica; o polaco
do violino fora, contratado para todo o dia, e seguia um
40ão, arranhando alegres m£sicas de dansa. A conversa
~-se faz mais animada,.mais ruidosa; contudo a refei ão se aca-
e,
mn grande tumulto. Todos, estavam fartos. A maio-
· "'~`
-da dos velhos, -dos mais serios,, foi fogo se deitar; o mesmo
fez'Aki;~ Akimifch, considerando decerto que nas grandes
sesta -de rigor. O velho raskoiniki de Sfaradubov
u um pouco, depois esfirou-se na estufa, abriu o
pâs-se a rezar: ficou assim, sem se interromper, af4 ~: ._* noite
fechar de todo. Era-lhe penoso o espet culo da-
"verq(>nha" (assim designava a embriaguez colefiva
,~, -- do presos). Os circassianos foram todos sentar-se na en~
frada, contemplavam com curiosa repugnancia os despau-
terios dos bebedos. Enconfrei-me com Nurra: "Iaman! iarnan!"
~-~,,w , (Mal!'mal!) disse-me ele abanando a cabe a com honesta in-
di o.
igna a "Oh, iamant Alah vai se zangar!" Isai Fomifch,
com ar provocante e obstinado,' acendeu uma vela e se pos a
trabalhar, para tornar bem patente que nada tinha com aque-
Nos cantos, organizavam-se partidas de jogo; não
Ia festa.
se temiam os inv lidos-, entretanto, por causa do sub-c,ficial,
que ali s fechava os olhos, puseram-se sentinelas a entrada.
,0 oficial de guarda apareceu fres vezes fazendo a ronda.
A sua chegada escondiam-se os bebedos, desapareciam os
maidanes - e ele proprio parecia resolvido a não an~ergar
as Leves infra ões ao regulamento. Em dia de festa, a em-
briaguez não era *considerada crime. Pouco a pouco, au-
~ava¡ a anima ão e come avam as brigas. Mas como o
maior n£mero se conservara sobrio, não faltava quem to-
masse conta dos ebrios. Estes, realmente, se excediam.
estas a
oChi!o
#Viro o
Gazine triunfava. Passeava como um rei ao redor do seu
hi
, ~,4; , gar- Acabava exafamenfe de transportar para debaixo da
tarimba a aguardente ate então muito bem dissimulada num
esconderijo por fr6s das casernas sob a neve. Dava uma
r¡sadinha ladina olhando os que vinham comprar be-
#
188
DOSTOIEVSKI
bida, mas não tocava numa gota de, vodca, pois sua inten-
ão era divertir-se apos ter esvaziado de todo a algibeira
dos companheiros. As casernas vibravam com as can oes,
porem a bebedeira tornava-se infernal e as cantigas pareciam
pranto. Muitos passeavam aos bandos, a pele de carneiro
atirada displicentemente as costas, dedilhando com ar cas-
quilho as cordas da balalaica. Na se ão especial uns oito
homens tinham ate organizado um coro, can+a~ann muito
bem, acompanhados por balalgicas e guitarras. Mas as can-
figas realmenfe populares faziam exce ão; recordo-me apenas
de uma, admiravelmenfe cantada:
"Outrora, quando mo o,
"a muitas festas fui...
t
e da qual guardei de memoria uma variante que ainda não co-
nhecia. No final da toada acrescentavam alguns versos:
"Quando eu era mo o
"Boa casa tinha
"Tudo limpo, asseado.
"A lavagem dos pratos
"Engrossava a sopa;
"No sebo do degrau
"Se fritava a broa...
Cantavam-se principalmente as can ões chamadas "do
presidio" que todo o mundo conhece. Uma delas, intifulada .
"Oufrora", era engra adissima; conta a hisforia de um ho-
mem que dantes se divertia e vivia como barine, e acabou
dando com os ossos no presidio. Outrora, bebia cham-
panhe e agora,
"Dão-me couves com agua,
11 que quando as mordo mexo at as orelhas. .
moda:
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
"Outrora vivia eu
"garoto, feliz no mundo.
"Tinha um capital guardado
mas, ai 1 veio a pouca sorte
e o meu capital voou.
#

Agora j perdi tudo,


perd¡ mesmo a liberdade
e peno no cativeiro."
189
E assim por diante. Apenas, entre n¢s, pronunciava-
se "kopifal" e não "kapital" porque derivavam a palavra de
"koPiV (economizar). Can+avam-se +arribem cantigas +ristes.
Uma delas, carateristica can ão de presidio, parece-me que
conhecida fora dele:
¡~,
"Acende-se a luz do c u
"e o tambor rufa a alvorada.
"A velha porta se abre,
"faz a chamada o sargento;
"Ninguern v , por. tr s dos muros,
"como vivemos aqui ...
Mas Deus sempre est conosco,
embora nos guarde aqu¡. . . "
A outra can ão, conhecid¡ssima, esfava e arande
Uma outra can ão, mais triste ainda' Cuia M usica e
magn¡fica, embora a letra seja inculta e sem beleza, foi feita
decerto por um preso qualquer. Alguns dos versos ainda
me ocorrem ... lembran a:
"Meus olhos não mais ~vistarri
11 a provincia onde nasc¡.
'irido penando, inocente,
"condenado a este martirio.
"Adeus, amores antigos!
"No telhado chora o mocho,
11
e a mata ecoa o seu pranto.
"E o meu cora ão se aperta!
"Nunca mais, ai, nunca mais!
"hei de rever minha terra!"
Cantavam-na frequentemente, mas em solo, jamais em
coro. Nas horas de descanso, um for ado vai at a porta
I
#

190
DOSTOIEVSKI
da caserna, sen+a-se, medita, com o rosto entre as mãos, e
entoa essa queixa, num tom agudo de faisefe; e a tristeza que
emana da cantiga dilacera a alma da gente. Não faitavam
bonitas vozes entre n6s.
,Enfim, caiu o crepusculo. A angustia, a dor, o pesado
fed¡o refornavam atrav s da orgia, da bebedeira. Aquele
que uma hora antes estava rindo, solu ava agora num
canfo, depois de atravessar os limites da simples embriaguez.
Alguns ia tinham tido tempo de trocar pancadas duas ou tr s
vezes. Outros ainda, lividos, mal se segurando nas pernas,
vagueavam oscilantes atrav s das casernas, provocando, brigas.
Os . que o vinho entristecia procuravam obstinadamente
amigos: queriam aliviar a alma e desabafar as magoas que o
ilcool erguera a toria. Aqueles desgra ados tinham desejado
tanto divertir-se, passar alegremente a grande festa e - meu
Deus! que peso, que esmagamento para quase todos! Cada
um quisera, naquele grande dia, embalar-se com uma esperan-
a; mas a esperan a n io se realizara. Duas vezes ainda Pe-
frov me procurou. Bebera muito pouco. e parecia quase
sobrio de todo, porem esperava o acontecimento que deveria
necessariamente acontecer - at ao derradeiro minuto: seria
qualquer cousa extraordinaria, solene, profundamente alegre.
Não dizia isso, mas lia-se a expectativa nos seus olhos. Cor-
ria sem descanso duma caserna a outra, e contudo, nada de
especial sucedia: não encon¡rava senão b bedos, criaturas
que vociferavam pragas imbecis, caras inflamadas pelo 61cool,
Como Pefrov, Sirofkine, vestido com uma blusa vermelha nova
em folha, rondava pelas casernas, elegante e limpo; ele fam-
bem parecia esperar ingenuamente. Pouco a pouco, a af-
mosfera do meu alojamento se tornou irrespiravel, nau-
seabunda. Não faltavam espefaculos comicos, mas eu me sen-
+ia tão triste, tinha tanto do daqueles desgra ados, que su-
focava.
Dois, ali, brigavam, para decidir quem obsequiaria o
ufro; o Qusa j6 duro, hi mvifo tempo e esf io prontos a tro-
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
191
car murros. Um deles tem uma rixa velha com o outro; e
queixa-se remexendo a lingua pastosa.
Esfor a-se por demonstrar que acaba de sofrer uma in-
justi a: durante o Ultimo carnaval, o companheiro lhe vendeu
um capote e o dinheiro sumiu. Contudo não e so isso. O quei-
#

xoso e um -rapagao musculoso, sossegado, infeligenfe; mas


toda vez que bebe, procura um amigo para desabafar.
Apesar das - pragas, das ofensas que alega, senfe-se, o seu
desejo de fazer as pazes com o outro for ado, afim de se
aproximarem mais. E este, forte, atarracado, tem a cara
redonda, um ar astuto de intrigante, talvez tenha bebido mais
que o companheiro, porem mal se lhe descobre a embriaguez.
homem serio -e passa por rico; não quer irritar mais o colega
excessivamenfe expansivo, e leva-c, ao bofequineiro. O rapaz
sustenta sempre que tem direito de receber sua divida e que
o outro tem obriga ão de lhe oferecer bebida, "se que es
um homem honrado".
Demonstrando alguma considera ão pelo homem que
paga. e um leve desprezo pelo for ado expansivo que recebe
do outro em vez de beber por conta propria, o bofequineiro
apanha um calico e o enche.
- Não, Sfiopka, tu e que pagas, diz o for ado expan-
sivo vendo-se convidado - a tua obriga ão.
- Não adianta estragar a lingua falando contigo! re-
f ruca Sfiopka.
- Não, Stiopka, esf6s mentindo, sustenta o rapaz re-
cebendo o calice das mSos do bofequineiro. Sabes que me
deves, ou então não tens conciencia. Não tens conciencia
e % falta um olho - ate o olho empenhaste! Empenhas
tudo! s um canalha, Stiopka, um canalha, não passas dum
canalha!
- Ainda não paraste de choramingar? Olha, estas en-
tornando o vodca! Enchi o +eu copo, bebe, grita o botequi-
neiro ...quele b bedo por demais ruidoso. Tenho que esperar
ate amanhã?
#

192 VOSTOIEVSKI
- Sim, esfou bebendo, não preciso que me grifes! Boas
festas e boa saude, Sfepan Dorofeitchi fala delicadamente o
ebrio, com uma mesura cort~s. Depois, o:hando para aquele
a quem momentos anfes chamara de "canalha", continua,
om o copo a mão: - Desejo-te mais cem anos de id fo
s que j feris!
v a,ra
Bebe, rosna de satisfa ão, limpa a boca.
- Antes, minha gente, eu virava uma boa por ão de
od . ca, declarou com dignidade, sem se dirigir especialmente
ninguem; mas agora, esw tempo passou. . .Muito obri
ado, Stepan Dorofeifch.
- Não h de que!
- E agora, Sfiokpa, deixa-me continuar. Na minha
pinião s um grandissimo malandro, porem ainda fe digo ...
- E est aqui o que eu vou +e dizer, seu b bedo de
ma figa, in+errompe Stiopka, irritado. Escuta bem minhas
alavras: olha o mundo a nossa frente; vamos d ¡-lo em
ivid'
ucis metades. Eu +orno por uma e tu pela outra. Anda, e
ue eu nunca mais fe ponha os olhos em cima! Esfou farto!
- E não me pagas meu dinheiro?
- Que dinheiro hei de +e pagar, seu b bedo?
- Muito bem, se o vieres devolver no oufro mundo, não
recebo. Nosso dinheiro e o nosso trabalho, nosso suor.
ssas mãos calejadas. Tu has de me pagar os meus cinco
peques no outro mundo.
- Cai fora! Diabos te levem!
- Não me a oifes! Não sou cavalo de arado!
- Anda. anda, cai fora!
- Sujo!
- For ado ...-toa!
E as injurias choviam muito mais asperas que artes da
bida.
Na farimba. dois amigos esfSo sentados não longe um do
1+
fro. Um e alto, robusto. musculoso, uma legi ima cara ~de
ougueiro. Est quase desfeito em pranto, pois sua emo ao
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
193
e enorme. O outro, debil, franzino, +em o nariz comprido,
de onde parece ciofejar qualque, cousn, e olhinhos azues fixos
#

no chão. Foi escrivac, outrora, instruido e malvado, e frata


o amigo com cer+a altivez, o que não deixa de o ofender in-
fimamen+e. Beberam juntos o dia inteiro.
- Ele se portou pessimamente comigo! brrra o gran-
dalhão, sacudindo violentamente a cabe a do escrivão, que
segurara com a mão esquerda. "Portar-se mal" significa
"baf,er". O for ado grandalhão, antigo sub-oficial, invejava
secrefamenfe o seu magro amigo; e, por isso, travam um
duelo de palavras rebuscadas.
- ~E eu +e garanfo que não fens fundamento no que
dizes, come a em fom dogmafico o escrivão, mantendo fixa
e gravemenfe os olhos presos no solo.
- Ele bateu em mim, est s ouvindo? insisfe o outro,
sacudindo mais forternenfe a cabe a do amigo do peito.
Agora, tu es o unico que me resta nesfe mundo, est s ou-
vindo? Sou eu que +e digo, ele se porfou mal comigo!
- E eu mais uma vez +e repito, meu caro, - uma
hisforia tão +r¡sfe so fe pode cobrir de vergonha, replica po-
lidamente o escrivão, em voz debil. Olha, meu amigo, seria
melhor que reconhecesses que toda essa bebedeira e um sim-
pies resultado da tua inconstancia ...
O grandalhão oscila um pouco para tr s, considera com
olhos ba os de b bedo o escrivão magrelo e contente consi-
go, e de chofre, no momento em que o outro menos espera, o
esmurra na face, com toda & for a do seu enorme punho.
E, assim, acaba uma amizade que durou um dia inteiro. O
querido amigo rola desacordado pela farimba.
Mas eis que penetra no alojamerto um dos meus co-
nhecidos da se ão especial, - um sujeito sempre bem hu-
morado, que não +em nada de tolo, brincalhão sem mal-
dade e de aspec~c, muito simples. F"ra ele quem, no dia
da minha chegada, procurara um rica o na cozinha, afir-
mando que tinha o seu amor-proprio e que eu o convidara
#

1%
DOSTOIEVSKI
a +ornar cha comigo. Tem quarenta anos. uma bei orra
enorme, um nariz esborrachado e picado Je espinhas. Se-
gura uma balalaica, cujas cordas vai tangendo descuidosa-
menfe. Um outro preso, de baixa esfatura, nofãvel 'pela
cabe a enorme, acompanha-o como, um cão. Esse, mal -o
conhe o. -Alias, ninguem repara naquela criatura. um
individuo esfranho, desconfiado, facifurno, sempre serio, que
frabalha na oficina de cosfura e procura viver solifario, sem
se aproximar de ninguem. Agora, que esfa b bedo, gru-
dou-se a Varlamov como uma sombra, mas acompanha-o
agifadissimo, gesticulando, esmurrando as paredes e as fa-
rimbas; com um pouco mais esfara chorando. Varlamov pa-
rece não lhe notar a exisfencia. Cousa curiosa: aqueles dois
homens nada tinham em comum, nem no frabalho, nem no
genio; pertenciam, ademais, a duas se ões e duas casernas
diferenfes. O menor chamava-se Bulkine.
Logo que me avistou, Varlamov sorriu. Eu esfava sen-
+ado ... beira da minha tarimba, junto ao fogão; ele se de-
teve a alguma distancia, refleflu, titubeou, aproximou-se mais
com passadas incerfas, e, espigando o busto, arrancando as
cordas da balalaica, batendo no chão com a bota, p"s-se a
recifar:
"Cara redonda, cara branca,
$'canta como o rouxinol,
"meu benzinho.
"Corn seu vestido rodado
"barrado de cetim
" linda como uma rainha..
Essa can ão teve como resultado enfurecer inteiramente
Bulkine: fazendo molinefes e dirigindo-se a todos, ele excla-
mou:
- São 'marifiras, s¢ mentiras, rapazes, mentiras somen-
te! Não diz uma unica palavra de verdade, so mentiras!
- Meus respeitos ao "velho" Alexandi- Pefrovi+ch, diz
Varlamov olhando-me no fundo dos olhos; depois, com um
riso canalha. inclinou-se como para me beijar. Estava com
a sua conta de vodca. A expressão "o velho Fulano" C. um
i, ~,,
n .141 - E como vai voc , Variamov?
k
¢timo. Safisfeifiss¡mo com a festa e b bedo desde
1 U que em
anheceu. V desculpando!
#

2~ Varlamov falava arrastando um pouco as palavras.


J est de novo com a menfirada! grifou Bulkine
presa de um desespero sincero, clando.murros na farimba.
_ Mas o oufro parece que jurara não lhe prestar a minima
aferi ão. E o mais engra ado e que, desde que amanhece-
ra, Bulki'ne não deixava os calcanhares de Varlamov, afim de
o impedir de conversar. Vagueava afras dele como uma
sombra, discutia-lhe foclas as palavras, torcia os bra os, batia
nas paredes e nas tarimbas, af ensanguentar as mãos, e
sofria, sofria realmente porque na sua opinião Varlamov men-
fia como um condenado! Se tivesse cabelos na cabe a, ar-
ranca-los-ia, de puro desespero! Poder-se-ia supor que ele
fomara sobre os ombros a responsabilidade das a ões de
Varlamõv, e que cada falta do outro lhe pesava na concien-
cia. o pior de tudo e que Varlamov nem o enxergava.
- Tudo mentira, menfirada! Nem uma palavra e ver-
dade! berrava Bulkine.
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
195
sinal de respeito empregado pela genfe do povo, na Siberia,
mesmo quando e dirigida a um rapaz de vinte anos. A pa-
de respeito, ate
lavra "velho." tem um sentido de estima~
mesmo de lisonja.
e
- E que ' que tu tens com isso? exclamavam os outros
for ados, divertidos.
- Quero que fique sabendo, Alexandr Pefrovi+ch, que
fui um lindo rapaz; as mulheres eram loucas por mim, come-
ou de repente Varlamov.
- Mentiroso! Olha o menfiroso! inferrompeu Bulkine
numa esPecie de uivo. Todos os defen+os romperam em
gargalhadas.
1 - E eu sabia luxar: tinha uma blusa encarnada, cal as
de veludo bem largas; e me deitava como o conde Bufilkin (1),
e para designar a garrafa. (N. de P, Q.)
rig que serv
I
i
I
#

196
DOSTOIEVSKI
4~
b bedo como um sueco. Afinal de c ritas ...
querer mais!
não se pode
- Mentira! afirmou energicamente Bulkine.
- Nesse tempo eu tinha a casa de meu pai, uma casa
de dois andares. Mas dentro de dois anos os dois andares
vieram abaixo, e fiquei s¢ com a porta, sem os portais. Que
havia de fazer? Dinheiro como os pombos: quando voou,
voou, esta acabado!
- Mentira, mentira! garantiu hulkine ainda mais ener-
gico.
- Quando cheguei aqu¡, mandei uma carta chorona aos
parentes, afim de que me mandassem um d¶nheirinbo. E
pensar que eu procedi contra a vontade da minha gente, que
lhes faltei com o respei+o! E ia faz bem sete anos que man-
dei essa carta!
não recebeu resposta? indaguei, sorrindo.
Não, não receb¡ resposta nenhuma, prosseguiu ele
sorrindo +arribem, e aproximando o nariz do meu. E aqui,
Akxandi- Pe+rovi+ch, tenho uma namorada ...
- Uma namorada? Aqu19
- Onufriev estava dizendo outro dia: "A minha pode
ser feia, picada de bexiga, mas +em os seus +rapinhos; e a
tua pode ser bonita, porem e uma, mendiga, vestida de
saco ...
- Sera possivel?
- verdade, ela pede esmolas, respondeu Varlamov
com Um riso silencioso.
O alojamento inteiro +ambem ria; todos realmente co-
nheciam a liga ão de Varlamov com uma mendiga, a quem
ele dera no maximo uns dez copeques durante seis meses.
- E então? perguntei, desejoso de me livrar do b bedo.
Varlamov ficou num silencio reticente, depois falou, api-
nhando os labios:
- Sera que por causa disso tudo, n3o me emprestara
uns cobres para beber um trago, Alexandr Petrovi+ch? Olhe,
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
197
#

passei o dia inteiro bebendo unicamente cha, acr~scentou


prnavel, recebendo o meu dinheiro. Estou cheio de ch ate
aqui. . . J flique; sem TWego, e minha barriga sacoleja
como uma garrafa ...
No momento em que metia o dinheiro no bolso, o
desespero de Bulkine ultrapassava todos os limites. Estava
quase chorando e gesticulava como um possesso.
- Criaturas de Deus, berrava ele para o alojamento
todo, vejam esse homem! SO diz mentiras! Mentiras e mais
mentiras, s0 mentiras!
- Mas que e que tu tens com isso? pergun+aram-lhe
de novo os outros, espantados com aquele furor. Sera que
estas maluco?
- Não, não consinto que ele minta desse jeito, urrou
ainda Bulkine, revirando os olhos e despejando um murro.
enorme na tarimba. Não admito tanta mentira!
Rebentaram de novo as risadas. Varlamov, depois de
receber o que queria, inclinou-se diante de mim e tratou de
sair da caserna, trope ando, para ir diretamente ao bote-
quineiro, e logico. Nesse instante, parece que avistara
Bulkine pela primeira vez.
- Vamos, anda, disse de+endo-se na porta afim de o
esperar, como se aquele doido lhe fosse indispensavel. Ca-
be a de pau! exclamou empurrando Bulkine diante de si, com
ar de desprezo, e +o rido de novo a balalaica.
Como, porem, descrever o tumulto daquele dia sufocan-
te? Acabou, afinal. Os detenfos se estiram pesadamenfe
-nas tarimbas, falam, resmungam, sonham mais que de costu-
me. Aqui e aliem joga-se um pouco, mas a festa, a festa
tão !ongamenfe esperada, ia terminou. Amanhã e de novo
f .
aja ufil, sera de novo o trabalho. . .
I
I(
#

C
14%
400
x1l

o espet culo
No terceiro dia das festas, a noite, nosso teatro deu o
seu primeiro espetaculo. Foram inumeros e ardentes
os conciliabulos referentes a organiza ão, mas os atores
guardaram tanta reserva sobre os seus problemas que n6s
não sabiamos sequer o que iriam represenfar. Duran+e esses
tr s dias, quando iam ao trabalho, esfor avam-se os atores
por trazer a maior quantidade de +raios possivel. Quando
me encontraram, Baffichine estalava os dedos bem alto, para
significar o seu confentamento. O maior parecia estar dum
relativo bom humor; contudo ninguem poderia saber se es-
tava a par de tudo, se dera seu consentimento, ou se apenas
resolvera fechar os olhos, depois de se certificar de que as
cousas correriam convenientemenfe. Creio que o homem
nac, poderia ignorar a exis+encia do teatro, mas não queria
se envolver no caso, compreendendo que, se o proibisse, po-
L,
i
#

200
DOSTOIEVSKI
deriam surgir surpresas desagradaveis: Os for ados se re-
voltariam ou se embriagariam, e pesado tudo, melhor valia
deixa-los entregues a sua distra ão.
Atribuo este rqciocinio ao maior, porque e o mais na-
tural e o mais lOgico. Pode-se afirmar que se, durante as
festas, os detenfos nSo dispusessem do teatro ou de qual-
quer cousa analoga para os distrair, a administra ão teria
que organizar um sarau. Mas como o nosso maior se disfin-
guia por id ias inteiramente opostas a da maioria da hu-
manidade, eu e que dou provas de uma grande falta de dis-
cernimento pretendendo que o homem sabia bem o que iazia.
Um individuo como o nosso maior, sempre, e por toda parfe,
+em necessidade de esmagar alquem, de retirar qualquer
cousa, de suprimir um direito, em""resuj'x\,o, de manter uma
ordem rigorosa. Toda a cidade o conhecia sob esse aspe f
cr
Pouco lhe importava que sua opress5o acarretasse o risco e
provocar uma revolta. "Existe um castigo para os rebeldes
(e assim que raciocin os homens do mesmo calibre que o
nosso maior) e com aZes for ados imundos a gente deve
aplicar a lei severa, impiedosameriM, ao pe da letra, - nada
de mais, nada de menos." Esses -executores cegos não com-
pr,eendem, e jamais serão capazes de compreender, que a
aplica ão da lei ao pe da letra, sem preocupa ões pelo seu
esp¡rito, leva diretamente ... rebelião, nem pode levar a outra
cousa. "A lei o diz - que e que quer mais?" exclamam
eles, sinceramente surpresos ante alguern que lhes pe a um
pouco de bom senso e sobriedade junto com a aplica ão da
lei. Essa ultima condi 5o - sobriedade - e a que mais
lhes parece superflua e revoltante: consideram-na como um
vexame, uma falta de folerancia para consigo.
Seja como for, o sub-c,ficial nao se opos aos desejos dos
for ados; era tudo o ~ue lhe pediam. E afirmo que o teatro
e a condescendencia que o tolerou foi a razão pela qual du-
rante as festas não houve nem desordens nem roubos. Teste-
munhei a maneira pela qual os for ados +ornavam conta dos
b bedos a dos inconvenientes e os faziam desaparecer, ale-
RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS
14.,
-201
gando que, por causa deles, poderiam proibir a representa-
ão. O sub-c,ficial fez com que os deten+os lhe garantissem
que tudo decorreria bem e em calma. Eles concordaram,
#

lisonjeados por essa confian a, e mantiveram religiosamente


a promessa. preciso acrescentar que o consentimento
dado não acarretava nenhuma despesa a administra ão: os
lugares tinham sido marcados antecipadamente-, a cena se
montava e se desmontava toda num quarto de hora; a fun ão
deveria durar hora e meia e se sobreviesse bruscamente or-
dem de in+erromp -la, tudo desapareceria num abrir e fechar
de olhos, os +raios seriam escondidos nos baUs dos detenfos.
Mas antes de descrever os cenarios e os frajos, quero dizer
algumas palavras sobre o programa - isto , sobre as pe as
que deveriam ser representadas.
Não havia programa escrito. Entretanto, a segunda ou
a terceira represen+a 3o, apareceu um, composto por Baklu-
chine para uso dos senhores oficiais e outros frequen+adores
que, desde o primeiro dia, honraram o nosso teatro com sua
presen a. Nossos espet culos a principio foram acompanha-
dos pelo oficial de guarda-, uma vez ate o oficial da ronda
dignou-se assisfi-lo, de outra vez foi o nosso oficial de en-
genharia; e em honra desses grandes personagens e que se
preparou o programa.
Imaginavamos que a fama do nosso teatro se espalharia
Ia por fora, tanto mais porque na cidade não havia nenhum
outro; so de raro em raro algum espef culo de amadores. E
como verdadeiras crian as, os for ados se alegravam com
isso, e se envaideciam pelo mais infimo exifo.
"Quem sabe?" cochichava-se entre n6s, "pocle ser que
os chefões saibam do teatro e venham assis+ , -lo; e, então, vã' o
ficar admirados ao ver o que valem os for ados. O que nos
fazemos não +em nada de semelhante com esses +ea+rinhos
feitos pelos soldados: não usamos nem manequins, nem
barquinhos flutuantes, nem ursos, nem bodes amestrados: aqui
temos atores de verdade, que representam uma comedia de
"cavalheiros" e a cidade não tem nenhum teatro parecido.
15
I
J
#

202 VOSTOIEVSKI
Urna vez houve uma represenfa ão em casa do general Abros-
simov, e parece que vão dar outra; mas, excetc, nos frajos,
eles não nos vencem, em mais nada, porque no di logo nao
f m nada de melhor que n¢s! E pode ate chegar aos ouvidos
do governador o boato do que sabemos fazer, e quem sabe
se ele não vem assisf ir? Na cidade não ha mesmo featro ne-
nhum!" Em suma: sobretudo depois do primeiro xito,
a imagina ão dos for ados subiu ao auge; chegaram quase
a esperar recompensas ou diminui ão de pena - ao mesmo
fempo que tinham bastante juizo para rir das proprias diva-
ga ões. Sim, eram crian as, auf nfl~--as crian as, embora a
maioria denfre eles j houvesse Oassado dos quarenta anos.
Apesar da ausencia de programa, eu sabia mais ou menos
o que iriamos ver. A primeira pe a tinha como titulo: "Fi-
lafka e Mirofka, rivais". Uma semana antes da represenfa-
ão, Bakluchine se gabara diante de mim de que desempe-
nharia o papel de Filafka melhor do que jamais o represen-
tariam nos palcos de Pefersburgo. Passeava pelas casernas
e se jactava despudora da mente, embora sempre de bom hu-
mor. As vezes assumia de repenfe, uma atitude "de artista",
ou punha-se a declamar um frecho do seu papel, e todo o
mundo rebentava em gargalhadas, fosse a +irada engra ada
ou não. preciso nofar, ali s, que os de+enfos sabiam man-
ter reserva e conservar a dignidade: para apreciar as +iradas
de Bakluchine, ou falar do feafro em prepara ão, era pre-
ciso ou ser um mocinho leviano, ou um de+en+o cuja aufo-
ridade tinha base s¢lida e cujos sentimentos se podiam ex-
primir sem rodeios, nus e crus, por mais ingenuos que fossem
(cousa que no presidio representa o pior defeito). Os outros
deixavam passar em silencio os comen+arios, sem julgar, sem
confradizer, +ornando todo o cuidado em escutar com indi-
feren a, e at mesmo com desdem- 56 no Ultimo momen-
to. no proprio dia da representa ão e que cada um come ou
a se interessar: que haveria? que diria o maior? sa¡ria +udo
+ão bem como dois anos afras? e assim por diante. Bakiu-
chine me garantiu que a escolha dos atores fora excelenfe,
RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS
203
-que todos esfariam "no lugar devido", que hayeria af
mesmo um pano de boca, que Sirofkine faria o papel da
noiva de Fila+ka. "Vai ver como as saias lhe assentam!"
acrescentou piscando o olho e estalando a lingua A
"baridia bonfeifora" usar¡a um vestido de folhos, uma pele-
rine, fraria uma sombrinha na mão; o "nobre benfeitor" ves-
firia farda de oficial, com dragonas e um rebenque.
Em segundo lugar dever-se-ia represenfar o drama: "Ke-
#

dril, o glufão". Esse titulo me infrigou muito, mas não me


adiantaram pe!gunfas; nada consegu¡ apurar, anfes. Soube
apenas que a pe a não fora tirada de livro, porem de uma
"escritura" copiada por um sub-cficial reformado; o fal sub-
oficial decerto representara algum papel numa das repre-
senfa ões da pe a dada por um grupo de amadores militares.
Nas nossas cidades e provincias disfantes enconfram-se real-
mente pe as desse genero, que provavelmente ficarão para
sempre in ditas: não foram nunca impressas, - apareceram
apenas para servir ao feafro popular. Falei: "teatro po-
pular"-, e seria realmente bom que os nossos escritores se
ocupassem com pesquisas novas e mais objetivas nesse g -
nero de feafro que 6 muito mais vivo e mais rico do que o
imaginamos. Disso me conv nci dianfe de tudo que vi nos-
sos for ados fazerem para o seu espet culo. H tradi ões,
m todos, no ões j esfabelecidas que se transmitem de uma
gera ão a outra. Seria possivel lhes seguir os rasfros por
meio dos soldados, dos operarios da usinas, e ate enfre os
habitantes dos pequenos vilarejos longinquos. Conservam-se
fambem no campo e nas capitais de provincias, entre o
pessoal domestico dos grandes lafifundiarios. Creio mesmo
que muitas pe as antigas s¢ tiveram amplitude e s¢ se disse-
minaram afraves da Russia gra as a esses afores improvi-
sados. Os grandes proprie+arios e senhores moscovifas de
outrora tinham o seu elenco particular composfo de artistas-
servos. E esses teatros foram o ber o de nossa arfe dra-
m6fica popular, arfe cuja exis+encia 6 indiscufivel. No que
se refere a "Kedril, o glufão"; apesar de foclos os meus de-
#

DOSTOIEVSKI
seios, nada pude saber cie preciso, senão que apareceriam de-
monios em cena, que levariam Kedril para o inferno. Mas que
significaria esse nome "Kedril"? E por que Kedril, em vez
de Kyril (Cirilo)? A pe a seria russa ou estrangeira? Não
pe-le obter nenhuma informa ão precisa. Anunciou-se que,
para ferminar, haveria uma "pantomima musicada". O con-
junfo pois prometia muito. Os atores aram em numero de
quinze, foclos espertos e despachados. Esfor avam-se extra-
ordinariamente, ensaiavam as vezes a+ras das ca¡siernas, fa-
ziam-se de misteriosos, em suma, preparavam-nos algumõ
surpresa extraordinaria.
Nos dias de trabalho, fechavam-se os alojamentos ao
cair da noite. Por exce ão, durante as fesfas de Natal so
eram francadas as porfas depois do foque de recolher. Esse
favor especial fora concedido por causa do teatro. Duranfe
o fempo das fesfas todas as noifes mandava-se pedir ao ofi-
cial de guarda que autorizasse a representa ão e deixasse
abertas as casernas mais tempo, explicando-lhe que, na
v spera, quando houvera espet culo, se haviam fechado
tarde as porfas sem que se regisfrasse desordem alguma.
O oficial de guarda dizia então: "Ontem, com efeito, não sa
passou nada de grave, e se eles me dão a palavra de que não
havera nenhuma infra ão a disciplina, e que eles proprios
farão o policiamenfo, fico de acordo, e espero que esse
policiamento seja muito mais rigoroso que o nosso. Al s,
se proibo a representa ão, pode-se Ia saber o que acon-
face com -essa genfe? decerto havera encrenca, e em boa
complica ão estarei metido! Ademais, muito aborrecido
montar guarda: fenho o direito de assistir a esse espe+6cu16,
dado não por simples soldados, mas por presos, que são genfe
muito mais curiosa. Vamos ver o que e que eles são capazes
de arrumar!" E realmente, o oficial de guarda sempre tinha
o direifo de ir ver.
Alias, se o oficial de ronda indagava: "Onde esfa o
oficial de guarda?" nespondiam-lhe: "Foi fazer a chamada e
fechar as casernas", o que era uma resposta exata e uma fa-
- i
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
2DS
cil justificativa. Assim, durante as festas. o espefaculo foi
autorizado, e não se fechavam as casernas senão a hora de
recolher. Os for ados sabiam de antemão que a guarda
não entravaria nada, motivo pelo qual se sentiam tranquilos.
Pelas seis horas, Petrov me veio procurar, e saimos juntos
#

para a fun ão. Toda a nossa caserna estava Ia, exceto o


"velho crenfe," de Tchernigov e os polacos. Estes £ltimos s6
se resolveram a vir no derradeiro dia, 4 de janeiro, depois
que lhes garantiram defalhadamente que tudo era decenfe,
alegre e sem perigo. O desdem dos polacos irrifava os
nossos for ados, de forma que os receberam com uma po-
lidez extraordinaria; insfalaram-nos af nos melhores lugares.
Para os circassianos e, principalmente para Isai Fornitch, o
featro foi uma delicia. Todos os dias o judeu sacrificava
tr s copeques; no ultimo dia, chegou a depor no prato uma
moeda de dez copeques, - e a gente lia o deslumbramenfo
no seu rosto. Tinham resolvido os responsaveis que a assis-
fencia pagaria o que quisesse, para cobrir as despesas e para
'/estimular" os atores. Pefrov garanflu-me que me deixa-
riam ocupar um dos principais lugares, mesmo que o teatro
ficasse a cunha, porque, sabendo-me mais rico que os outros,
esperavam que eu desse contribui ão mais generosa - e
fambem porque me consideravam um enfenclido. E assim
sucedeu. Vou primeiro descrever a sala e o arranjo do teatro.
A caserna da se ão militar, na qual fora insfalado o
palco, tinha quinze passos de comprimenfo. Subia-se do
pafio para um p6rfico, que dava para uma salinha de entrada,
precedendo a sala propriamenfe dita. Como ia o expliquei,
essa coserna fora arrumada de modo diverso das outras; a +a-
rimba ficava ao comprido das paredes e o meio do salão era
livre. A metade da caserna do lado da entrada fora re-
servada para os espectadores, e a segunda metade, que co-
municava com uma outra pe a, servia de palco. A primeira
cousa que me impressionou foi o pano de boca. que se es-
fendia dez passos afraves da sala. Era de uma opulencia
inaudita, aquela cortina: fora pintada a oleo, e nela se viam
#

206
DOSTOIEVSKI
rvores, cararrianchões, lagos, estrelas. Compunha-se de pano
novo e usado, ao acaso dos donalivos. velhas +iras de enrolar
os p s, camisas velhas remendadas num len ol enorme. Nos
trechos em que faltava o pano, tinham simplesmente feito os
remendos com papel, mendigado folha por folha nos diver-
sos escriforios da fortaleza. Nossos pintores, na primeira
fila dos quais se distinguia o nosso "Bruilov", - isto e, A. . . v,
empregaram todo o seu engenho em decora-lo o colori-lo.
O efeito ultrapassava qualquer expectativa. Aquele luxo
satisfez ate mesmo os mais sorumbaticos e os mais exigentes
dos for ados, que ali s, desde o come o do espe+6culo,lb
mostraram +ão infantis quanto os mais impacientes e exal-
tados. Estavam todos de ofimo h umor, direi ate de um bom
humor orgulhoso. Tocos de vela consti+uiam a ilumina ão.
Diante da cortina ficavam dois bancos tirados da cozinha,
e duas ou +res cadeiras +ornadas ... sala dos sub-c,ficiais. As
cadeiras tinham sido postas ali prevendo uma possivel vi-
sifa dos oficiais superiores. Os bancos eram destinado6 aos
sub-oficiais, secrefarios de engenharia, capatazes e outros
chefes sem patente de oficial, - se lhes ocorresse vir dar uma
olhadela. - o que justamente aconteceu: mais ou menos
numerosos, os visitantes de fora~ não faltaram durante foclos
os espefaculos; na ultima noite`I não ficou nos bancos um
£nico lugar desocupado ... Aftas dos bancos comprimiam-
se os for ados, de pe, em sinal de respeito para com as vi-
sifas, sem gorro, de casaco ou de capote, apesar da fuma a
e do calor sufocante. Estavam literalmente amontoados uns
sobre os outros, sobretudo nas Ultimas filas, e ocupavam ainda
as tarimbas e os bastidores; alguns espectadores ate, reunidos
na segunda pe a por fras do palco, olhavam de Ia a fun ão
afraves dos bastidores do fundo. Na primeira metade da
caserna o aperto era fão.granda quanto o que eu vira nos
banhos. A porta do anfec mara estava aberta. L dentro
fazia vinte graus de frio, contudo fambem ela estava cheia.
Empurraram-nos imediafamenf e para diant e, a Pefrov e a mim,
ate aos bancos, onde se avistava a cena muito melhor que no
RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS
207
fundo da sala. Considaravam-me bom juiz, um entendido, que
Ia estivera em grandes tea+ros; tinham visto Bakluchine varias
vezes me vir pedir consa¡hos, e mosfrar deiFerencia para
comigo; deveriam, portanto, me honrar com um lugar bom.
Os for ados são gente vaidosa, insensa+a; apenas, porem, na
superficie ... Podiam zombar do mesquinho operario que
#

eu era, um Almazov tinha direito de nos encarar com des-


prezo - o
a n¢s, os barines - e gabar-se diante de n's da sua
habilidade em calcinar alabasfro; mas suas zombarias, s us es-
carneos, provinham de outra causa: n¢s finhamos sido nobres,
perfenciamos a mesma classe que os seus -antigos senhores,
dos quais não conservavam nenhuma boa lembran a. Entre-
tanto, al¡, no teatro, afastavam-se para me ceder lugar.
Reconheciam que, naquele assunto, eu.entendia mais que
eles. Os menos bem dispostos para comigo (soube-o de
fonte limpa) desejavam agora ouvir minha opinião sobre o
espe+aculo, e, sem o menor servilismo, me empurravam para
a primeira fila. Analiso hoje isso, de acordo com as minhas
impressões de então. Naquele mesmo momento, compreencl¡
- recordo-o muito bem - que no julgamento sensato que
eles faziam sobre si proprios, não havia nenhuma humildade,
mas antes o sentimento do proprio ~neri+o. O tra o mais
caraferisfico e mais impressionante do nosso povo sua con-
ciencia e sua sede de justi a. Fazer-se de galo, adiantar-se,
disputar o primeiro lugar, quer seja digno ou não de o ocupar,
- esse defeito não se lhe pode atirar ... face. Assim que a
gente lhe fira a grosseira casca e estuda atentamente e sem
preconceitos o que est em germe por baixo, descobre qua-
lidades das quais não desconfiava absolutamente. Nossos
moralistas não +em muita cousa a lhe ensinar. Dinei mais:
os nossos moralistas poderiam aprender muito em confacto
com o povo.
Pe+rov me afirmava ingenuamente que me deixariam pas-
sar ... frente porque eu pagaria mais. Não havia pre o fixo:
cada um dava livremente o que podia, mas todos puseram
pelos menos um copeque no prato, quando este circulou. Na
#

DOSTOIEVSKI
alidade, se me deixaram passar a frente, na certeza de que
ar¡a mais que os outros, isso +ambem provinha dum sen-
imenfo particular de dignidade. µu s mais rico que eu,
assa ... frente; conquanto sejamos iguais aqui, pagas melhor,
portanto, espectadores como tu são mais agradaveis aos
fores. Ocupa o primeiro lugar, porque não es+amos aqui
evido ao nosso dinheiro, mas em considera So aos atores
ue representam: nos mesmos sabemos classificar-nos". Que
Ifivdz nessa maneira de agir! Procede não do respeito ao'
inheiro, porem do respeito proprio. Ali6s, no presidio, não
e tinha grande deferencia. pela riqueza, sobretudo se a gente
ncara os detenfos em bloco. E af mesmo passando-os em
evisfa de um em um, não me recordo de ter visto um unico
umilhar-se por causa de dinheiro. Não falfavam os pedin-
hões - e muitas vezes fui vitima deles, todavia agiam mais
or esperteza que cupidez. Sabiam pedir com gra a, com
rifanfilidadel Não sei se me expresso com clareza ... Con-
udo, voltemos ao teatro, que ia ia esquecendo.
Anfes de levantar o pano, a sala apresentava um quadro
de esfranha anima ão. Em primeiro !ugar, a multidão de
espectadores amontoados, apinhados, acumulados em toda
parte, com as caras impacienfes e felizes esperando o inicio.
Nas Ultimas filas, homens frepados uns em cima dos outros.
Muitos tinham trazido foros de lenha da cozinha: encosta-
ra-nos as paredes, e, trepados sobre eles, apoiando os bra os
nos ombros dos que estavam por baixo, manfiveram-se du-
rante horas nessa posi ão, safisfeifissimos consigo proprios
e com os seus lugares. Outros, com as pernas apoiadas a
borda inferior da estufa, ficaram assim todo o tempo, sus-
tentados pelos que lhes ficavam a frente. E o mesmo acon-
tecia com as ultimas filas, junfo a parede. De lado, nas
farimbas, havia fambem uma multidão formigante e com-
pacta, que rodeava os musicos. La estavam, alias, os me-
lhores lugares. Cinco homens tinham trepado e estirado
por sobre a estufa, de onde olhavam para baixo; esses na-
davam em beati+ude. Nos portais das outras paredes fi-
4w
4'
turba dos refarda+arios, dos que nada haviam con
;Y~ cava a
J-,
g,5
seguido de melhor. Todos se portavam decentemente, sem
11 1 sob Lm bom as-
pacto aos harines e as "visitas". As caras vermelhas e lus-
#

suor, devido ao calor sufocante, exprimiam a


frosas de
mais ingenua impaciencia. Que esfranho reflexo de alegria
infantil, que contentamento radioso emanava daquelas fronfes
marcadas de cicatrizes, ferrefeadas, dos olhares daqueles
homens af então desolados e sombrios, olhares onde
outrora brilharam clarões +erriveis! Do lado direito, onde
eu estava. as cabe as sem gorro me apareciam comple+amen-
+e raspadas., . . Mas de repente, na cena, observa-se um mo-
vimenfo, um rumor... O pano vai subir... a orquestra ini-
cia a "ouver+ure". Essa orquestra merece men ão especial ...
De um lado, na tarimba, via-se um grupo de sete musicis+as:
dois violinos (um pertencente a um deiento e outro arranjado
na fortaleza - porem o artista era um dos nossos); +r s bala-
laicas - obra dos for ados: e um tamboril, fazendo as vezes
de confrabaixo. Os violinos rangiam, guinchavam, as quitar-
ras não valiam nada, mas em compensa ão as balalaicas eram
incomparaveis. A agilidade dos dedos que tangiam as cordas
tinha algo de prestidigita ão. Tocavam principalmente
musicas de dansa. Nas passagens mais movimenfadat, os
musicos batiam com o dedo fechado na madeira do insfru-
mento; o tom, a execu ão, tudo era original, tudo +raia o
presidio. Um dos guitarristas +ambem entendia maravilhosa-
mente do seu instrumento: era ele o jovem barine parricida.
O pandeiro fazia maravilhas: ora girava o disco nos dedos,
ora fazia ressoar a pele com o polegar; ora se ouviam pan-
cadas claras, hmpidas, monoforias, ora irrompia dele um
rumor sonoro que caia como uma cascata e se espalhava
num diluvio de pequenos ruidos tr mulos, em ricochete. En-
fim, havia ainda duas sanfo'nas. Palavra de honra, eu ate
então não tinha a minima id ia do partido que se pode firar
desse grosseiro instrumento popular: a harmonia dos sons. a
execu ão, e, sobretudo, a expressão, a compreensão perfeita
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
209
A
#

210
DOSTOIEVSKI
dos motivos, eram verdadeiramente exfraordinarios. Foi
en+So que descobri quanto abandono infinito, quanto amor
do risco traduzem as sugestivas m£sicas de dansa da Russia.
Afinal, ergue-se o pano. Todos estremeceram, inquietaram-
se; os de fras levan+aram-se na ponta dos pes, alguern caiu
dum foro, e do primeiro ao ultimo espectador, ficaram todos
de boca aberta e olhos arregalados. Reinava um absoluto
silencio. A fun ão come ara.
Ao meu lado estava Ali, no grupo dos irmãos e dos
outros circassianos. Todos se apaixonavam pelo espelaculo;
não faltaram a uma unica das represen+a ões. Como ia o
observei mais de uma vez, os mu ulmanos, far+aros e e+c.
são grandes apreciadores do teatro. Ao lado deles, Isai Fo-
mi+ch, logo ao subir do pano, esticava o rosto ex+asiado para
os milagres que se iriam produzir. Que desola ão se sofres-
se uma decep ão! O belo rosto de Ali resplandecia com
um prazer de menino, tão bonito, que dava gosto ve-lo-. Toda
vez que uma das +iradas divertidas dos atores provocava o
riso geral, eu involu n+a ria mente me voltava para o olhar. Ele
não me enxergava, cuidava de cousa bem diversa! Junto a
mim, do !ado esquerdo, estava um for ado de certa idade,
sempre sombrio, descontente, resmungão. Ele +ambern re-
parara em Ali, e, mais de uma vez, vi-o virar-se com um
meio sorriso, para contemplar aquele rosto tão agradavel!
Não sei por que, cha,mava-o Ali Sernionitch.
i,
Principiaram por "Fila+ka e Mirofka". Bakluchine repre-
sentava com perfei ão o papel de Filatka. Via-se que medi-
tara cada frase, cada movimento. A menor das palavras
que dizia, o minimo gesto, tomavam um sentido inteiramente
de acordo com o carafer do papel. Acrescen+e-se a esse
esfor o, a esse estudo, uma alegria surpreendente, irresistivel,
e simplicidade,, na+uralidade. Quem quer que visse Bakluchine
erifão. afirmaria imediatamente que estava diante de um
verdadeiro ator, de um ator nato, dotado de um enorme ta-
lento. Assisti mais de uma vez a "Fila+ka" em Moscou e Pe-
tersburgo, e afirmo que nenhum dos comediantes de ambas
. IL
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
211
as capitais se igualava a Bakluchine: comparados a ele, eram
camponeses ... francesa, e não autenticos mujiques. Via-se o
esfor o que faziam para meter-se na pele do personagem.
#

Bakluchine tinha, ademais, o acicate da emula ão: todos


sabiam que na segunda pe a o papel de Kedril seria desem-
penhado por um +ai de Pofseikine, considerado, não sei por
que, melhor comediante que Bakluchine, - e Bakiuchine sofria
como uma crian a por causa dessa preferencia. Quantas
vezes, nos £ltimos dias, não veio desabafar no meu peito os
seus ciumes! Duas horas antes da representa ão, tiritava
de febre. Ante as risadas e os gritos da assis+encia: "Bravo,
Bakluchine! Isso! Muito bem!" o seu rosto resplandecia e a
inspira ão lhe brilhava nos olhos. A cena, dos beijos com
Mirofta, quando Fila+ka lhe recomenda antes que se limpe
e acaba limpando-se a si propr¡o, foi duma comicidade per-
feita. Todo o mundo explodiu numa gargalhada. Contudo,
o mai s interessante para mim era os assistentes se abandona-
rem, sem nenhuma censura. Os gritos de aprova ao ressoa-
vam cada vez mais copiosos. C6 es+6 um for ado que em-
purra o vizinho com o cotovelo e lhe comunica vivamente
as suas impressões, sem saber sequer a quem se es+6 dirigindo.
Um outro, na sua exalfa ão, no inicio de um
a cena comica,
vira-se para a assis+encia, abarca-a com o olhar vivo, ges-
ticula como se a estimulasse a rir, depois +orna a fixar avida-
mente os atores. Um terceiro estala a lingua e os dedos,
não pode estar sossegado, mas como lhe e impossivel me-
xer-se, fica marcando passo, num p e noutro. No fim da
pe a, a alegria atinge o auge. Não exagero, absolufamen-
te. Imagine-se a prisão, os ferros, o cativeiro, os longos
anos tristes que devem ser passados Ia, naquela vida mono-
tona, semelhante a chuva que cai gota a gota num escuro
dia de outono - e de repente todas aquelas criaturas apri-
sionadas, aferrolhadas, conseguem durante uma hora perm¡s-
são para se expandirem, para se alegrarem, para esquecerem
o seu pesadelo e organizarem um espefaculo capaz de des-
pertar a inveja e a admira ão da cidade in+eira! "Offi--m
I
#

RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS


212
DOSTOIEVSKI
os for ados!" Tudo apaixonava, a come ar pelos frajos. Era
para eles extremamente inferessante, por exemplo, verem
Vanka Otpiet, ou Nietsvietaiev, ou Bakiuchine com roupa dlf -
rente da que eles estão habituados a usar diariamente, ia ha
anos. um for ado, nada mais que um for ado, ressonando
as grilhefas, e ei-lo que entra no palco vestindo sobrecasaca,
cartola e sobrefudo, como um cavalheiro. E pinfou um bi-
gode, e +em cabeleira! Tira do bolso um lindo len o ver-
melho e faz gesfos fidalgos, como se fosse um barine aut n-
fico! O entusiasmo chega ao auge. O "nobre benfeitor"
enfra em cena, com a farda de ajudante de ordens - bem
gasta, e verdade, - mag com dragonas, gorro com +opiiiiiii
militar, e produz um efeito indescrifivel. O papel teve dois
candidatos - e quem o acreditaria? ambos brigaram como
garotos para ver quem o obtinha, tão grande desejo tinham
de se exibir na farda de oficial! Os outros atores tiveram
que os separar: a maioria dos votos deu o papel a Nie+svi -'
faiev, - não porque fosse mais bonifo, ou parecesse mais
com um nobre; mas persuadira-os de que arranjaria um re-
benque com o qual faria molinefes, baferia no chão, exata-
mente como um barine legitimo, como um elegante aut ntico,
cousa que Vanka não poderia fazer, pois jamais se avisfara
de perfo com um fidalgo. E realmente, quando apareceu
com a sua dama peranfe o publico, Nie+svie+aiev passou o
tempo todo dando voltas no'ar com um leve rebenque cle
bambu, que ele arranjara sabe Deus onde, certo de que assim
dava provas de alta educa ão, de uma elegancia inconfes-
+avel. De certo, na infancia. pequenino servo descal o, vira
um cavalheiro elegantemente vestido divertir-se em girar
com um rebenque: ficou-lhe gravada a impressão, e frinfa
anos depois servia-se dela para seduzir e encantar o presidio
infeiro.
Niefsviefaiev estava fão absorto em sua ocupa 5o, que
não via nada nem ninguem, e falava com os olhos fixos na
badine. A "nobre benfeitora" +ambem era nofavel, ao
seu modo. Apareceu com um velho vestido de musselina,
213
que mais parecia um farrapo, bra os e colo nus, uma cara
esfranha, pintada de vermelho e branco, uma fouca de dormir,
de chifa, amarrada debaixo do queixo. Corri uma das mãos
segurava uma sombrinha, e com a outra se abanava com um
W~lue de papel visfoso. Uma salva de gargalhadas a recebeu,
#
e a noGre senhora, ela propria perdendo a gravidade, diver-
sas vezes pos-se a rir. O papel era desempenhado por um
tal de 1vanov. Sirofkine, vestido de rapariga, esfava encan-
fador. E cantou muifissimo bem as suas copias. Em resu-
mo, a pe a ferminou com geral agrado. Não houve a menor
critica. nem poderia haver...
Tocou-se mais uma vez a "ouverture" "Sombras, minhas
sombras" (1) e o pano subiu para "Kedril". Kedril e uma es-
pecie de Don Juan, pois no fim da pe a amo e criado são
levados para o inferno. O manuscrito foi representado sem
corfes, mas senfia-se que estava incomplefo, sem come o
nem fim, sem pe nem cabe a. A a ão se passava num local
qualquer da Russia, numa estalagem de posta; o esfalajadeiro,
leva para um quarto um senhor que usa capa e chapeu re-
dondo. Nas suas pegadas caminha o criado Kedril com um ma-
lofe e um frango enrolado em papel azul. Kedr¡i usa capofe e
um gorro de libre: e ele o glutão. Po+seikine, o concorrente
de Baffichine, fazia o papel, enquanto lvanov, "a nobre ben-
feitora" da primeira pe a, representava o amo. O esfalaja-
deiro (Niefsvie+aiev) avisa o harine de que o quarto e assom-
brado por derrionios; depois. refira-se. O cavalheiro, preo-
cupado, sombrio, resmunga a parfe que ia sabe disso ha
muito fempo. Ordena a Kedril que arrume a bagagem e
prepare a ceia. Kedril e um covarde e um glutão. Escu-
+ando falar em demonios, empalidece e +reme como uma
folha. Tem vontade de fugir, mas fambem +em medo do
amo. Ademais, esfa louco para comer. Adora empanturrar-
se, est£pido, covarde, astuto ao seu modo, engana o amo
a todo momento, apesar do medo que esfe lhe inspira. Nesse
(1) C lebre can ão popular (N. de H. M.)
V' ~
J,
1~
I
#

214
DOSTOIEVSKI
r
tipo notavel de lacaio gente encontra um vago e longin-
quo parentesco com Leporello. O papel estava realmente
muito bem desempenhado: Pai Potseikine tinha um talento
indiscutivel, superior at ao de Bakiuchine. claro que
quando no dia seguinte me avistei com Bakluchine, não lhe
fransmif¡ esse meu juizo; feria magoado muito o coitado. O
preso que representava o amo farribern se saiu muito bem:
seu palavrorio desalinhavado não significava nada, porem a
dic ão ara precisa, os gestos adequados. Enquanto Kedril
cuida da maleta, o senhor vai e vem pelo palco e anuncia
aos qua+ro ventos que aquela noite pora fim as suas viagens.
Kedril escuta com curiosidade, faz caretas, da apartes, pro-
voca estrondosas gargalhadas. Não sente nenhuma compai-
xão pelo amo. mas ouvindo falar em diabos, quer saber como
são, e faz perguntas sobre perguntas. O amo afirMil lhe ex-
plica que, enconfrando-se outrora em dificuldades, pediu
auxilio ao inferno. Os demonios o ajudaram, 1 o libertaram,
mas hoje e o dia marcado para o fim, e segundo o pacto,
decerto eles virão para lhe carregar a alma. Kedril põe-se
a tremer de verdade; contudo o amo não perde a e ~agem,
e manda-o de novo tratar da ceia. Ouvindo falar em ceia,
Kedril se anima; desembrulha o frango, +ira uma garrafa,
desossa o bicho, não sem provar dele. O publico gargalha.
De repente range a porta, o vento sacode as janelas; Kedril
estremece, e as pressas, quase invol untaria mente, mete na
boca um tão grande peda o do frango, que o não consegue
engolir. Novas risadas. "Esta pron+o?" indaga o amo en-
trando de novo no quarto. "Um instante ... barine...
estou preparando. . . " responde Kedril, que est pondo a
mesa e com toda a franquilidade se propõe a devorar a ceia
do fidalgo. O publico admira a pouca vergonha e a as+u-
cia desse lacaio que de tal modo ludibria o amo. Deve-se
dizer que Po+seikiw merecia todos os elogios. As palavras:
"Um instante ... barine ... estou preparando. . ." foram ad-
miravelmenfe ditas. Desde que ele come a a por a mesa,
põe-se fambem a devorar, sobressal+ado a cada passo do
N~
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
215
1 amo, que lhe poderia descobrir as bandalheiras. Cada vez
.1 que o barine se volta, Kedril se esconde debaixo da mesa,
e puxa um peda o do frango. Por fim, sacia um pouco o
#

apetite e pode cuidar na ceia do patrão. "Kedril, esf6


pro ar
;"r' rifo?" grita o h ine. "Esfa pron+o", responde Kedril
-,.com vivacidade, mas verifica que não resta senão uma coxa
no prato ... Sempre absorto, sombrio, o fidalgo senfa-se ...
mesa sem nada perceber de anormal, e Kedril, munido de
um guardanapo. planfa-se por +ras do seu senhor. Cada
palavra, cada gesto, cada careta de Kedril - quando, por
exemplo, voltado para o publico, abana a cabe a ante a
tolice do barine, provoca risadas inex+inguiveis. Mas, exa-
famenfe no momento em que o amo come a a refei ão, a-
parecem os diabos. A partir dai, não ha mais jeito de com-
preender cousa nenhuma: os diabos não t m absolutamente
nada de humanos, a porta do lado se abre, uma cousa branca
aparece, com uma lanterna acesa no lugar da cabe a: seque-a
um segundo fantasma, que +ambem +em como cabe a uma
lanterna e na mão segura uma foice. Por que as lanternas,
por que a foice, por que os diabos de branco? Esperto
quem o explicar. Tinha que ser assim, e nada mais. O
fidalgo se mostra bem valente: encara os diabos e diz que
esta pronto, que eles s0 carecem +ornar o que seu. Ke-
dril, ao conirario, poltrão como um coelho: esconde-se
debaixo da mesa, mas apesar do seu pavor, n3o se esquece
de apanhar a garrafa. Os diabos desaparecem um instante,
Kedril sai do esconderijo. No momento em que o amo vol-
ta ao frango, reaparecem +r s diabos, agarram-no, levam-no
consigo. "Kedril, me acode!" brada o harine. Kedril +em
outros cuidados: a garrafa, o prato, o proprio pão, que carre-
ga para debaixo da mesa. Enfim, ei-lo so: ia não ha dia-
bos, j não h amo. Kedril ergue-se; olha em forno de si;
um sorriso amplo lhe ilumina a cara. Canalha que e, pisca
o olho, senfa-se no lugar do barine, e balan ando a cabe a
para o p£blico, diz ... meia voz:
- Muito bem! agora ia não tenho senhorl
1
i
#

216
DOSTOIEVSKI
Todo o mundo ri por v -lo sem amo; então ele acres-
centa, sempre a meia voz, dirigindo-se confidencialmente ao
publico, com olhares cada vez mais alegres:
- Qs demonios o carregaram!
O entusiasmo dos espectadores torna-se indescrifivel.
Alem do fato de terem os demonios carregado o barine, as
palavras foram ditas num jeito tão can...¡ha, com uma caref
tão zombeteira e triunfante que ninguern p"de deixar d
aplaudir. A felicidade de Kedril, porem, não dura muito.
Mal apanhou a garrafa e encheu um copo, os diabos retor-
riam, deslizam por fras dele, na ponta dos p¢s, e o seguram
pelas costas. Patife demais para se volfar, Kedril berra
com toda a for a de que dispõe. E nSo pode defender-se , :
est com as mãos ocupadas pela garrafa e pelo copo, dos
quais não tem coragem de se separar. Com a bp, ca escarf-
carada de horror, fica wrca de meio minuto de 'olhos arre-
galados, com uma +ai -expressão de covarde a~avorado, que
decididamente merece um quadro! Enfim, arrastam-no , car-
regam-no, com a garrafa que ele não larga4grifa, sem parar;
seus gritosecoam nos basficlores. Mas cai o pano, com uma
gargalhada geral. A orquestra da ri i i ' K
m nk- ti o a a?arjnSKaga
1
Come a num pianissimo que mal se escuta, depois o
motivo se amplifica, o compasso se acelera, os dedos d~9bra-
dos batem ousados na madeira da balalaica. gr.~karri...rins-`
kaia em todo o seu furor, e seria bom se Glinka por acaso
a ouvisse no presidio. Então, inicia-se a pantomima. A Ka-
marinskaia acompanha-a durante focla a sua dura ão. A
cena representa o interior de um moinho. Senfado a um
canto, o moleiro con,erfa um arreio, enquanto a mulher fia
(2) M£sica de dansa Popuiar, que inspirou ao Compositor Fiodor Glinka (180
3-
1857) uma "fantasia" c lebre. A letra da l(amarinskaia bastante escabrosa.
O
mujique de Komarino um vagabundo onginario de Sievsk, antigo lugar de dep
orta lo
da provincia de Orei. Dostoievski fala mais longamente sobre essa can ão no s
eu
livro: "O Burgo de Stepantchikovo". Gogol tambern a comenta em "Almas Mor
tas".
(N. de H. M.)
16
I
#

UCOILDA õES DA CASA DOS MORTOS


4
219
num outro- canto. Sirofkine represenfava o papel da mulher,
Niefsvitaiev o do moleiro.
Farei notar que os cenarios eram paup rrimos. Nessa
pe a, como nas precedenfes, era preciso completar com a
imagina ão o que os olhos viam. Em lugar de parede no
fundo, pendia uma especie de tapete, ou manta de cavalo;
... direita, tinham posfo um biombo desmantelado: o lado es-
querão, que nada tapa, deixa ver a tarimba. Mas os espec-
tadores não são exigenfes, o estão dispostos a completar
em pensamento as deficiencias da realidade. Desde que
lhes dizem "isso a¡ .um jardim, um quarto, uma isbat# -
não precisa mais, não adianfa tarifa cerimonia. Sirofkine,
no papel da mo a moleira, estava um encanto; murmuram-se
alguns elogios enfre os espectadores., O moleiro acaba o
que est6 fazendo, apanha o chap u e o chicote, dirige-se ...
mulher e lhe explica por m¡mica que precisa sair e se durzi -
te sua ausencia, ela receber alguern, então-. . . o mosfra-lhe o
chicote. Ela parece enfender muito bem do que se frafa.
pois assenfe com a cabe a. Sai o moleiro. Mal franspõe
o umbral, a mulher o amea a com o punho fechado. Ba-
tem, a porta se abre, o um vizinho, moleiro +ambem, enfra.
um muiique barbudo, vestido- num cafe+3. Traz de pre-
senfe um len o vermelho. A mulher ri, mas no momenfo em
que ele vai abra a-la, bafem de novo. Que fazer? Ela o
esconde precipifadamenfe debaixo da mesa, e volta a fiar.
Apresenta-se novo adorador: um furriel, fardado. A pari-
fomima af então foi irrepreensivel, e cada gesto perfeita-
mente exato. Olhando-se aqueles afores improvisados, a gen-
te fem que se espantar e dizer, mau grado seu: "quanta for-
a, quanfo falenfo perdido na nossa Russia, enferrados, por
uma insignificancia ...s vezes, no fundo dos presidios ou do
degredo!" Porem o for ado que representava o furriel assis-
fira decerfo a alguma represenfa ão, - falvez numa cidade
de provincia, talvez num feafro de barines; achava decerto
que os nossos atores, do primeiro ao £ltimo, não entendiam
nada de palco e n3o se apresentavam direito em ceria.
#

220
DOSTOIEVSKI
Executou pois a sua enfrada a maneira dos herois do velho
reperforio classico: depois de uma vasta passada, emperfi-
gou a cabe a e o busto, lan ou em +orno de si um orgulhoso
olhar circular, -e executou afinal segunda passada, tão majes-
tosa quanto a primeira. Um andar daqueles, ia grotesco nos
herois classicos, ficava-o ainda mais num furriel fardado, re-
pnesenfando uma cena c"mica. Mas o nosso p£blico pensava
que devia ser assim mesmo, e aceitava como fato consumado
as passadas do homem, sem sombra de critica. Mal o furriei
feve tempo de chegar ao meio da sala, bateram novamente.
A dona da casa perdeu de novo a cabe a. Que fazer do
homem? Esconde-o num bau, que por felicidade est aberfo.
Dessa vez aparece uma visita importante, um galã* de espe-
cia rara: um br mane (3), vestido a rigor. Uma garga-
lhada louca rebenta entre os espectadores. O for ado Ko-
chkine, que tem a cara para o papel, representa maravi-
lhosamenfe de bonzo. Descreve com gesfos a ardencia do
seu amor, ergue os bra os para o ceu, aper+a-os ao peito,
sobre o cora 3o. No momenfo em que se vai +ornar mais
afoi+o, uma pancada violenta ressoa na porta. Pelo modo
como batem, reconhece-se que o dono da %asa. A mu-
lher +reme de pavor, o bonzo se agita como um possesso e
suplica que o escondam. Ela acaba por enfia-lo de qual-
quer modo denfro do armario; mas, esquecendo de abrir
a porta, atira-se a roca, fiando, fiando, sem escutar as repe-
+idas pancadas do marido. Perdeu de tal modo a cabe a
que force entre as mãos um fio inexisferife, e faz o gesto de
gi , rar o fuso, que esfa caido no chão. Sirofkine representa-
va - muifo bem o pavor da mulher. O moleiro arromba a
porta a pon+apes, e se afira a esposa com o chicofe erguido.
Viu tudo, porque estava escondido: e mostra, portanto, pe-
loS' dedos, que ela escondeu fres namorados. Procura-os;
enconfra primeiro o vizinho que e expulso com um pontap
nas cosfelas. O furriel apavorado quer fugir:. levanta com
(3) Deve-se entender por br rnane, ou bonzo, um pope. O autor temia a ce
n-
sura. (N. de H. M.)
k,
RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS
221
a cabe a a tampa do ba£, gesto que o trai; o moleiro o
abarca com o chicofe e dessa vez o galarife milifar esquece
as passadas cl ssicas. Resta o bonzo, que o moleiro procura
#
muito tempo; en ' fim, descobre-o no canto, por fr s do armario.
Faz-lhe uma mesura cortes, segura-o pela barba e o arrasta
para o meio de cena. O bonzo tenta defender-se e grita:
"Maldito! maldito!" (6 a unica palavra difa durante toda a
pantomima). O marido não lhe d ouvidos, faz-lhe justi a
ao seu modo. Vendo que afinal chegou sua vez, a mulher
afira longe o fio e o fuso e foge da sala cLerrubando o fambo-
refe. os for ados estalam em risadas. Sem me olhar, Ali me
puxa pela manga e diz: "Olha o borizo, o bonzoll" Não se
pode manter em p , de fanfo rir. Cai o pano. Come a
outra cena.
Todavia nao posso descreve-las todas. Houve ainda duas
ou tr s, todas de cara+er comico e, com efeito, engra a-
dissimas. Se os for ados não as haviam composto, pelo menos
lhes acrescentaram muito de seu. Quase todos os atores im-
provisavam: de modo que a cada representa ão o mesmo pa-
pel era desempenhado de maneira diversa. A ultima parifo-
'mima, de g nero fan+asmag6rico, acabava por um bailado du-
ran+e o qual enterravam um morto. O bonzo, acompanhado
por uma infinidade de servos, faz sobre o caixão uma por ão
de gestos inuMis. Afinal soa a musica do "Sol poente", o
morfo w reanima: foclos trepidam de alegria. O borizo dansa
com o morto, mas a sua moda sacerdotal. E, assim, termina
o espefaculo, ate a pr6xima noite. Separamo-nos, risonhos,
satisfeitos, elogiando os atores, agradecendo ao sub-c,ficial.
Nenhuma briga. Todos estão num bom humor raro, todos se
sentem como que felizes, e adormecem não com o sono ha-
bi+ual, porem com a alma quase +ranquila. Is , so não e inven-
ão de minha fantasia: e a vardade, a exata verdade. Foi
permitido aquelas pobres criaturas viver, embora por alguns
instantes, viver ... vonfade, diver+inem-se, passar algumas horas-
esquecidas de que são gal s, - e esses r pidos minutos os
fransfiguraram moralmente.
1,
#

222
DOSTOIEVSKI
Mas a noite ia vai alta. Esfreme o e acordo de chofre.
Junto ... estufa o velho reza, e, rezara ate amanhecer. Ali re-
pousa suavemenfe ao meu lado. Recordo a sua conversa
com os irmãos a respeito do feafro, as risadas que dava,
antes de adormecer. Mau grado meu, fico a mirar aquele
rosto pl cido de crian a. Pouco a pouco, tudo me volfa ao
esp¡rito; revejo os ulfimos dias, as fesfas, o mes que se acaba
de passar. Tomado de horror, ergo a cabe a, olho os pcior-
mecidos, meus companheiros, ... luz fremula da candeia admi-
nisfrafiva. Olho as caras liVidas, o cafre miseravel, sua nu-
dez, suas miserias exposfas- Olho-os bem, para fer a cerfeza
de que não sofro de um pesadelo abominavel, mas veio a
realidade. Ressoa um gemido, alguern agifa pesadamenfe um
bra o, sacode a grilhefa. Um defenfo se sobressalta a se
p5e a resmungar, enquanfo 16 na esfufa, o velho reza por fo-
dos os "crisfãos ortodoxos"; ou o as palavras da ora ão,
que ele arficula lenfamenfe, suavemenfe, em compasso: "Se-,
nhor meu Deus. fende piedade de nos!"
"Não vou ficar aqu¡ para sempre", cismo. "Estou aqu¡
apenas por alguns anos!" E deixo recair a cab% a sobre o
fravesseiro.
SEGUNDA PARTE
#

1
O4
i
O hospital
pouco tempo depois das festas, cal doente e mandaram-
me para o hospital militar, situado num local que fi-
cava a uns quinhentos metros da fortaleza. Era um
comprido edificio terreo, pintado de amarelo. No verão,
quando chegava o tempo das repara ões, gastavam a repin-
ta-lo uma quantidade exfraordinaria
de ocre. No grande
pafio ficavam as dependencias, a cas
a da dire ão medica e
as outras constru ões necassarias. 'Numerosas enfermarias
ocupavam os edificios principais: duas apenas eram reserva-
das aos defentos, e estavam sempre, cheias, principalmente
no verão. Muitas vezes, ate, era preciso reunir os leifos. En-
chiam-se essas duas salas com os "desgra ados" de toda es-
pecie: Q~ p95ws, os defenfos militare
s provenientes dos cl¡-
i,
#

226 . 1 DOS TO 1 E V $IK I .--- 11.


RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS 2Z7
versos corpos de guarda, individuos em insfancia de conde-
~ 1 terna e inferna que vesfiamos;
deram-nos roupa branca do
na ão-, depor-fados de passagem. Enviavam-se fambem os
hospital, e mais umas meias
compridas, chinelas, um gorro de
doentes das companhias correcionais, estranha institui ão on-
algodão, um roupão de grossa 15
cinza forrado de não sei que,
de são reunidos os soldados de mau procedimento para seiw
parecendo esfopa ou emplasfro; - o
seu grau de sujeira era
corrigidos - e de tal maneira agem que saem de 16 os mais
tão grande que ultrapas
sava todos os limites - foclavia a-
completos bandidos que e possivel imaginar. Toda manhã,
prec
1
o for ado que se sente doente previne o sub-oficial. Ime.
iei-o bastante depois que o vesti.
Fomos, então, le-
diafamente seu nome e inscrito num registro e ele e mandado
vados para a enfermaria dos for ados. A limpeza
exterior
ao hospital militar, escoltado por um soldado que leva o re-
-era agradavel de ver, - pelo menos tive impressão de
asseio,
. 1~ vindo do presidio.
Os dois outros defenfos passaram para
gistro. La, o medico examina a+enfamente os doentes en-
a Sala da direifa e eu para a da esquerda. Diante da
porta
viados por foclas as unidades acanfonadas na fortaleza, e,
fechada por uma barra de ferro, estava a sentinela
armada,
depois de os identificar, au-foriza-os a ficar. Inscreveram- me,
a
'Um jovem cabo, que
e não longe de 15, o se
u substituto.
o perfencia ao posfo mi
litar do hospital, deu ordem para me
pois, no regisfro, e cerca de uma hora ap's a partida dos
nossos homens para o trabalho da +arde, encaminhei-me para
o hospital. O cle+en+o enfermo levava em geral consigo o
infroduzirem numa enfermaria comprida
e esfreita, onde, de
m6ximo possilvel de pão e dinheiro, - porque no primeiro dia
ambos os lados, ao longo das paredes,
os leitos se alinhavam-,
não podia -esperar receber ra ão do hospital: conduzia a mais
havia vinte e dois, - e, enfre eles,
+r s ou quatro desocupa-
um cachimbo, uma +abaqueira, um isqueiro, - tudo cuidado-
dos. Eram ca+res de madeira pintados
de verde, velhos
conhecidos de todo o
mundo na nossa boa Russia desses
samenfe escondido na bota. Penetrando no recinto do hos-
e
pital senti despertar em mim carta curiosidade por esse novo
ca+res que, por uma esp'cie de fatalidade,
não podem existir
aspecto da nossa vida de gales. 1 sem percevejos. Ocupei
um que ficava junto ...s janelas.
Era um desses dias qu -rifes, +ristes, encober+05~. em que
Como ia o disse, uns poucos dos
nossos companheiros
a
a
os edificios daquela especie assumem um aspecto INais som-
estavam 15; alguns me conheciam, ou pelo
menos iS me ha-
brio e rebarbativo. Entramos, o soldado da escolfa e eu, na
viam visfo. Mas os doenfes em insfancia de
#
condena ao e
os da companhia correc
ional eram em numero muito maior.
sala de visitas, onde se viam duas banheiras de cobre, e onde
e
iã esperavam dois enfermos ladeados pela escolta. O enfer-
Havia poucos gravemente enfermos, - isfo ', incapazes
de
deixar o leito. O ar
sufocante, nauseante, exalava o cheiro
meiro apareceu, olhou-nos displicentemente com ar profefor,
IS emana ões de-
e mais displicentemente ainda foi prevenir o medico de ser-
cara+er¡ fico dos hospitais. Toda especie de J
~ ; j
vi o. O medico, por sua vez, nos examinou com bastante
leferias, de cheiro de po ões, o
infetavam, a despeito da
esfufa que ardia a um
canto duranfe quase todo o dia. Uma
afabilidadee nos enfregou "os cartões de molestia", nos quais
i ,
colcha lisfrada me co
bria a cama; avistei por baixo um cober-
esfavam inscrifos os nossos nomes. O que se deveria seguir
o de asseio
- diagn¢stico, indica ões de tratamento, regime, etc., era for d
e b ieta grossa e uns Len 'is de esfamenha,
trabalho do interno que dirigia a sala dos for ados. Ouv¡ os duv
idoso. Ao lado da cama ficava uma mesinha com um
jarro a um caneco de
estanho. Tudo isso, por higiene, era
for ados cobrirem de louvores os seus m dicos. "São uns cober
fo com um peda o de pano, que para esse fim me foi
pais para n¢s", disse-me um deles quando me preparava d
ado. Debaixo da mesa ficava uma prateleira onde os be-
para ir para o hospital. Entretanto, firaram-nos a roupa ex-
bedores de cha - uma minoria -
arrumavam a chaleira, e
#

228
DOSTOIEVSKI
os bebedores de kvass o seu p£caro. Cada um, ate mesmo
os fisicos, possuia o seu cachimbo e sua fabaqueira, que
eram escondidos sob o coichão. O.m dico e os guardas quase
nunca os pesquisavam, e se surpreendiam alguem fumando,
fingiam não ver. Ali s, os doentes +ornavam suas precau ões,
e iam cachimbar ao lado da estufa. Quase não fumavam na
cama, senão a noite, porque ia então não havia mais rondas,
exce+o, as vezes, a do oficial comandante do posto do hos-
pital.
Como eu jamais me tratara num hospital, inferessava-
me por tudo que via ao meu redor. A principio compreencl¡
que minha entrada provocava certa curiosidade. Tinham
ouvido falar de mim. e mo olhavam sem constrangimento,
ate mesmo com um ar de superioridade, como são olhados os
novatos nas escolas ou os pedintes nas antec maras minisfe-
riais. Eu tinha -por vizinho da direita um escrivão, filho natural
de um capitão reformado, preso como moedeiro falso, e que
estava h um ano sob observa ão. Parecia não sofrer de
nada e diziam os medicos que tinha um aneurisma. Alias,
conseguira o seu fito: evitou o presidio e a fusfiga ão e um
ano mais +arde foi transferido para T., onde o hospitalizaram.
Era um rapaz de vinte e oito anos, atarracado e forte, malan-
dro integral, que conhecia todos os arcanos do cOdigo, in-
+eligenfissimo, extremamente inescrupuloso, presun oso, dum
amor-proprio doentio. Convencido de sua absoluta honesfi-
dade, jamais se reconhecia culpado, não se afastando nunca
dessa negativa. Foi o primeiro a me dirigir a palavra. Inter-
rogou-me com curiosidade, e me deu informa ões minuciosas
sobre os h bitos internos do hospital. Antes de tudo, e cla-
ro, fez-me saber que era filho dum capitão. Gostaria que
eu o tomasse por um nobre, ou pelo menos por um homem
"bem nascido". Depois dele, outro doente, da companhia
correcional, veio me dizer que conhecera varios deportados
nobres, e os indicou por nome e sobr~enome. Era um antigo
soldado, chamado Tchekunov-. a sua cara respirava hipocrisia:
se me procurava as boas-gra as, e porque farejava o meu di-
RECORDA ¢ES DA CASA DOS MORTOS
avistado ch e a ucar na minha prateleira,
nheiro. *Tendo
o ereceu-me imediatamente os seus servi os para me obter
ferver aqua. prometera man-
uma chaleira e me faze,
4~ 1 dar no dia seguinte minha chaleira por intermedic, dos for a-
PÇos que viriam trabalhar no hospital. Mas Tchekunov arranjou
~.x,4%cIo. Obteve uma chaleira de folha, ate mesmo uma chicara,
#

er a agua e preparou o cha - em resumo, sarvilu-Me,


to zelo que atraiu os comenfa¡rios escarninhos dum +ai
ev, tuberculoso, que ocupava a cama defronfe. Era
esmo soldado condenado aos a oites que, por medo
igo, bebera uma infusão de tabaco e vodca. Af
então estava deitado, silencioso, respirando com dificuldade,
~enca,rando-me, e acompanhando com olhos indignados as
manobras de Tchekunov. Um ar exfraordina riam ente serio
lhe tornava comica a indigna ão. Afinal, não se pode confer:
- Olhem esse lacaio! Arranjou um barine para servir!
articulou com voz entrecorfada e sem timbre, porque j es-
tava perto do fim.
Tchekunov, ofendido, voi+ou-se para ele:
- Quem e lacaio aqui? disse, lan ando um olhar de
desprezo.
-, Tu, replicou Us+ian+sev em tom firme, como se ti-
vesse amplo direito de ralhar com Tchekunov, e como se fosse
seu dever faz -lo.
- hucaio, eu?
- Sim, tu. Escute, pessoal: ele acha que não e lacaio!
~ , .,,Zt6 se viu!
- Trata da tua vida! Não estas vendo que o harine
Ô...
não sabe fazer nada, que o harine esta acostumado a ser ser-
vido? ... Se estou ajudando, ninguem +em nada que ver com
--fez ferv
,--,,.,dom fan
.'U s f i a ri f s
oquele m
"~do cas+
isso, focinho peludo!
- Quem e focinho peludo?
- Tu!
- Eu?
- Sim, +u!
#

230
DOSTOIEVSKI
- E fu? Pensas que es muito bonifo? Se eu fenho
focinho cabeludo, fu fens focinho de um ovo podre.
- Cabeludo, cabeludo! Olhem, j esta com o pe na
cova e ainda apoquenta os outros! Ora que esperfinhol
- Sim, sou esperfoi Prefiro me'curvar diante de umas
bofas a curvar diarife de um par de llapfi! Meu pai não gos-
fava de dobrar a espinha diante de ninguem, e me ensinou a
mesma coisa. Eu...
Quando ia continuar, fornou-o um acesso de fosse, que
o sacudiu duranfe alguns minutos, provocando um escarro de
sangue. Logo depois um frio suor de esgotamento lhe pore-
jou no fesfa esfreita. Apesar da fosse que o forfurava, ainda
queria rixar, de qualquer modo: via-se nos seus olhos a neces-
sidade de continuar com as injurias. Mas, esgotado, não
pode fazer senão um gesto com a mão, a Tchekunov acabou
por esquece-lo.
Eu sentia muito bem que o odio daquele f¡sico se dirigia
muito mais a mim que a Tchekunov. Ninguem o censuraria,
desprezaria, por empregar seus bons oficios para ganhar al-
guns copeques. Todos compreendiam muito bem que ele
não visava senão meu dinheiro. A esse respeito a plebe
não fem falso pudor e sabe por as cousas nos seus devidos
lugares. O que desagradara a Us+ianfsev fora o Meu di-
nheiro, o meu cha, era o fato de, apesar da grilheta, eu con-
finuar a ser o barine incapaz de dispensar criados. - En-
frefanfo, eu não procurara absolufamenfe arranjar quem me
servisse: queria sempre agir por mim proprio, fazer com que
não me fornassern por nenhum barine cheio de luxos, d~
mãos delicadas derriais; punha nisso todo o meu amor-proprio,
se essa expressão pode caber ai. Todavia, - não compre-
endo como foi que isso se produziu - nunca me pude liberfar
dos varios companheiros condescendenfes ou presfimosos que
vinham esponfaneamenfe a minha procura, e que me acaba-
vam frafando como se fossem eles meus amos e eu o servi-
Idor. E - quisesse ou não - continuava a ser para todos
um verdadeiro barine, incapaz de dispensar conforfo nem
RECORDAI;OES DA CASA DOS MORTOS
231
do isso me desgosfava muito. Mas Ustianfsev era
,um tuberculoso irascivel. Os outros doenfes tomaram um ar
c
,¡riados. Tu
de desdenhosa indiferen a Para comigo. Naquela farde. eram
#

dos presa da mesma preocupa ão. Compreend¡, escufan-


os conversar, que iam frazer para a enfermaria um conde-
do que nesse momento esfava a sofrer os a oites. Os for-
dos esperavam o recem-vindo com certa curiosidade. Pre-
ndiam que a puni ão era leve - quinhenfos a oites, apenas.
Pouco a pouco fiz meu circulo de amigos. Segundo
de compreender, a maioria dos meus companheiros de en-
. rmaria sofria de escorbufo, doen a dos olhos, molesfias
caraferisficas dessa região. Os outros, os "doentes de
verdade", esfavam afetados por afec ões do peito ou febres
diversas.
Nossa sala tinha a caraferisfica de receber toda especie
F6 enfermos, af os de molesfias venereas. Falei em doentes
"de verdade" porque havia enfre nos alguns for ados que ti-
nham conseguido vir "para descanso" e que os medicos admi-
fiam por compaixão, sobretudo quando havia muitos leitos
vagos. Apesar da enfermaria ser fechada, apesar da sua
atmosfera mefifica, a vida do hospital parecia agradavel de-
pois dos rigores do presidio e do corpo da guarda: e por isso
muitos defenfos se faziam passar por doenfes. Havia mesmo
verd de* "h bifu's" dos leitos, vindos na maioria da com-
,~a i ros a e
panh correcional. Examinei com aten ão meus novos com-
panheiros, mas minha curiosidade foi especialmenfe afraida
por um dos nossos presidiarios, um agonizante que ocupava
o primeiro leito ao lado de Usfianfsev,,e, por consequencia, fi-
cava defronfe, de mim. Chamava-se Mikhailov, e, quinze dias
,onfes, eu o -vira ainda na fortaleza. Doente ha muito tempo,
deveria fer-se frafado; porem, com uma especie de desprezo
o uma obstina ão infeiramenfe inufeis, dominava-se, engulia
dores, e s0 no Nafal baixou a enfermaria, para morrer fres se-
manas depois, de tuberculose galopante. Derre+era-se como
cera no fogo; j não era senac, um esquelefo. Ainda lhe veio
I
#
232
DOSTOIEVSKI
o rosto descarnado, - um dos que me chamaram aferi ão
a
logo ' chegada. Ao seu lado estava deitado um preso da
companhia correcional, ia velho, horrimel, repugnante de su-
je~ra ... Mas'não Posso realmenfe enumer -los todos. Se me
recordo desse velho, e porque no momento ma produzia uma
maior impressão, e por ele fui iniciado em algumas parficula-
ridades da enfermaria. Atingido por um defluxo forMe, ele es-
pirrava sem parar, (não fez outra cousa durante a semana se-
guinte), mesmo durante o sorio; dava verdadeiras salvas de
cinco a wis tiros, e de cada vez repetia concienciosamenf ~:
"Senhor! tende piedade, que castigo!" Nessas ocasiões
senfava-se no leito, -e tomava avidamente um rap clume- guar-
dava num canudo de papel, afim de espirrar mais forte e com
e
mais m'fodo. Espirrava num len o de xadrez, sua propriedade
particular, e ia desbotado de tanta lavagem. O nariz pequeno
se pregueava de forma especial, a cara -s-- enchia dum numero
infinito de rugas, e mostrava alguns dentes negros, nas gen-
givas vermelhas, escorrendo saliva. -Apos espirrar, abria
o len o, olhava com muita aferi ão o catarro copioso, e de-
Pois o esfregava no roupão pardo e de tal 'forma lhe pas-
sava toda a gosma, que o len o ficava apenas levemente
umido. Vi-o fazer isso durante uma semana inteira. Essa in-
dignidade, para economizar um objeto pessoal em prejuizo dos
do governo, não despertava protesto nenhum da parte dos
outros doentes, embora algum deles talvez fosse obrigado
depois a vesf ir o mesmo roupão. Mas a nossa gente do povo
d6 provas de uma ausencia de repugnancia realmente espan-
tosa. Isso me impressionou tanto que passei a olhar com nojo
e curiosidade o roupão que eu proprio vestira. Notei primeiro
o odor forte: o pano ia tivera tempo de esquentar no meu
corpo, e cheirava cada vez mais a remedios, a emplastros, e
(segundo me pareceu) a pus, como, se desde tempos ime-
moriais estivesse a vestir corpos de doentes. Talvez lhe
tivessem lavado o forro alguma vez, contudo não o ousaria
afirmar. De qualquer modo, era semeado por nodoas es-
franhas, embebido de exsuda Ses mais ou menos gordurosas,
RECORDµCUS DA CASA DOS MORTOS
11~idas de vesicatorios, de unguentos, de cataplasmas, e+c ...
mo frequentemente nos chegavam for ados que acabavam
passar pela "rua verde", com as costas cobertas de equi
poses, eram tratados com ep¡ternas e compressas - e os
'rOLIpoes u21,1 , vestidos por sobre as
camisas 'midas, não poderiam
#

e se ¡mpreg
1, v Oeixar d nar de tudo. Durante os meus longos
:t,,,,~f*nos de deten ão, cada vez que devia voltar ao hos
pi-
(o que acontecia frequentemente) vestia sempre os rou-
poes com uma desconfian a medrosa. Essa desconfian a
"' ` 'Provinha fambem dos piolhos, que pululavam neles, e que afin-
giarri um tamanho enorme ... Os for ados os esmagavam
. .com satisfa ão, e quando os estalavam enfre as unhas, adivi-
nhava-se pela cara do catador, o prazer que sentia. Como
os presor. fambem não gostavam de percevejos, todos juntos
se ocupavam em desfrui-los nos longos e tristes serões de in-
verno. Contudo, a despeito do odor f tido, reinava um cer-
to asseio na sala, pelo menos na aparencia: não se deveria
olh6-la muito de perto. Os doentes estavam habituados a
considerar natural aquela ordem de cousas. Ademais, os re-
gulamentos não estimulavam o asseio: falarei sobre isso mais
tarde.
Quando Tchekunov me serviu o ch6 (direi de passagem
que a agua da nossa enfermaria, frazida uma vez cada vinte e
quatro horas, confaminava-se rapidamenfe em con+acto com
o ar ambiente), a porta se abriu de chofre e o soldado que
acaba&de ser a oitado entrou sob boa escolta. Era a pri-
meira vez que eu via um horr¡am fustigado. Depois, +rou-
xeram muitos outros, - alguns at foram trazidos ap6s pu-
ni ão por demais severa, e sempre o preso a oitado represen-
fava grande distra ão para os dwn+es. Recebiam-se esses in-
felizes com austera expressão de gravidade e com muita dis-
cri ão. A recep ão dependia em parte do grau da impor-
tancia do crime e, consequen+emenfe, do numero de a oites
recebidos. Os condenados que recebiam a oites mais se-
veros, os facinoras legitimos, gozavam de uma considera ão
que nao era dispensada a um pobre recruta punido por tenta-
17
#

234
DOSTOIEVSKI
fiva de deser ão - e era esse o caso do
desgra ado que
nesse dia traziam. Mas nem uns nem outros provocavam d6,
nem davam lugar a nenhuma observa ão m
alsonanfe. Ajudava-
r
se- o jusEgado, frafava-se Ue em siJencio, sobretudo quando
o desgra ado não podia dispensar socorros. Os enfermeiros
sabiam bem que os depunham em ma 1 os peritas. Os cuidados
consistiam principalmente na mudan a cont¡nua de compres-
o carri sa ou com um trapo qualquer molha-
do, e que se colocavam nas costas magoadas, se o paciente
não esfava em condi Ses de as aplicar pessoalmente; era pre
ciso, alem disso, tirar das chagas as felpas de madeira que Ia
se introduziam todas as vezes que as varas se quebravam.
Essa £ltima opera ão era dolorosissima. Mas a extraordinaria
resist ncia dos fustigados sempre me deixou afOnito. , , Entre
todos os que vi, alguns tinham sido horrivelmente maltratados,
e posso afirmar que bem poucos se permitiam gemer. So o
rosto liVido parecia diferente; os olhos brilhavam, porem, com
um clarão desvairado, e o desgra ado era, as vezes, obrigado
a morder os l bios ate deitar sangue, para os impedir de tre
mer. O soldado que acabava de entrar era um belo rapaz de
vinte e +r s anos, alto, esbei+o, trigueiro, bem feito. Seu dorso
fora todo escalavrado. Com o corpo nu ate ... cintura, trazia
nos ombros um pano molhado, sob o qual fremia de febre, e,
durante cerca de hora e meia. nSo fez senão andar dum lado
para outro, na sala. Eu o fifava atentamente: parecia não
pensar em nada: seus olhos fugidios, perdidos, tinham dificul
dade em se -fixar em qualquer cousa. Adivinhei que minhe
chaleira o atraia O ch estava quente, a fuma a subia da
chicara, e o pobre diabo tiritava, casfanholando os dentes.
Ofereci-lhe o cha. Sem um olhar com uma volta repentina, ele
me encarou, segurou a chicara, enguliu a infusão sem a ucar,
as pressas, esfor ando-se tremendamente para não me blhar.
Depois de beber, repousou a chicara em silencio, não fez se-
11
quer um sinal com a cabe a, voltou a andar pela enfermaria.
Não es+ava em estado de agradecer, nem de fazer reveren-
cias. Quanfo aos for ados, todos, a principio. evitaram falar
sas feitas com uma i
RECORDA US DA CASA DOS MORTOS
235
depois
#

-lhe as compressas,
corri o recruta punido: aplicaram rido provavelmente
fingiram não lhe prestar aten ão, procura
deixS-lo em paz, n5o o importunar com perguntas nem com
"compaixão" - o que era precisamente o desejo do homem.
Entretanto, chegou a noite e acenderam a lamparina. Al-
guns doentes, mais ou menos numerosos, possu¡am candeias-
O medico fez a visita noturna, a sub-c,ficial de guarda contou
os doentes e fecharam a sala, depois de trazerem a cuba para
as necessidades noturnas... Soube, surpreso, que o tal vaso
servia ali, a noite in+eirar, embora as latrinas ficassem apenas
a dois passos da nossa porta, no corredor. Assim o queria o ro-
gulamento. Duranfe o dia, deixavam sair da enfermaria os
for ados por um minuto, não mais: porem ... noite, não se to-
Jeravam sa¡das sob nenhum pretexto. As enfermarias dos for-
ados não estavam sob o regulamento comum-, um de+en+o,
mesmo doente, deve sofrer o seu castigo. Ignoro a quem se
deve semelhante regulamento, s6 lhe conhe o a absurda aplica-
ão; jamais o pedantismo da burocracia se exibiu melhor do
que nesse caso. Tais medidas não emanavam decerto dos
m dicos, a quem, repito, os de+en+os não se cansavam de
louvar, e que eram respeitados, venerados como pais. Repeli-
dos por todos, os for ados sabiam apreciar as boas palavras
e a afei ão dos m dicos, senfiam-lhes a bondade e a fran-
queza sob as mais simples palavras, sob os gestos afaveis, que
poddWam muito bem não ser feitos. Ninguern se lembraria
de ter raiva dos doutores, se eles se mostrassem grosseiros
ou brutais; eram queridos, porque eram humanos. Compreen-
diam bem que um for ado tem tanta necessidade de ar puro
quanto qualquer outro enfermo, mesmo de patente elevada.
Os convalescentes das outras salas, por exemplo, podiam pas-
sear livremente nos corredores, mexer-se um pouco, respirar
um ar menos pesteado que o da enfermaria, saturado sempre
de emana oes deleterias. Não poderia haver nada mais in-
fecto que o ar podre da nossa sala, depois que o vaso da
noite era Ia posto-, quanto mais avan ava a noite. mais esse ar
i
I
#

236
DOSTOIEVSKI
se tornava irrespiravel, gra as a alta temperatura e as fre-
quentes necessidades provocadas por certas doen as. Se eu
disse que o for ado sofre a sua pena at na doen a, -ao quero
fazer supor que o regulamento 'visasse apenas o castigo. Seria
de minha parte uma calunia sem fundamento. Não havaria ne-
cessidade de punir um doente. Em consequencia, e de crer
que um motivo imperioso imp6e ... administra ão essa medida
tão cruel. Que motivo, porem, sera esse? O que ha de precisa,
a
mente irritante, no caso, e que ninguem esf' em condi Ses de
explicar tal medida, como alias varias outras, tão ineptas e
ilOgicas que desafiam qualquer compreensão. Como. real-
mente, explicar crueldade tão inufil? Rensarão eles que os for-
ados se declaram doentes com a inten ão unica de enganar
os medicos, e aproveitar a noite para fugir do hospital? Mas
essa suposi ão não resiste a um exame. Por onde fugiriam,
com que roupa? Durante o dia so 1 se permite sair da sala
a
um homem de cada vez; poder-se-ia fazer o mesmo ' noite.
Juntinho da porta, a dois passos das lafrinas. fica uma senti-
nela armada. Ela +em, ademais, o direito de acompanhar o
doente -e não o abandonar de vista. Numa das cloacas ha
uma janela de vidra a dupla, com barras de ferro. Bem
debaixo dessa janela, no patio, e sob as janelas da enferma-
ria dos presos, uma outra sentinela vai e vem. Para passar por
ali seria preciso quebrar as vidra as e as barras. Quem o per-
mitiria? Mas suponhamos que um doente mata silenciosamente
a sentinela, sem desper+ar nenhuma suspeita, admitamos essa
impossibilidade; pre~isara ainda quebrar os vidros e as barras.
Observemos ainda que, bem ao lado, dormem os enfermeiros
e, dez passos alem, diante da outra sala de defentos, velam
ainda umo sentinela armada e o seu substituto. Isso soma
muitos guardas. E para onde fugir, no cora ão do inverno,
de meias e chinelas, com roupão e gorro de dormir? Se,
portanto, o perigo de fuga e min¡mo, ou, por assim diWr,
inexistenfe, para que trancar os doentes, para quem o ar puro
e mais necessario que aos sãos? Com que fim? Nunca o
pude compreender.
REColtDA õES DA CASA DOS MORTOS
Todavia, Ia que propus essa pergunta: para que ? - não
,posso deixar de dizer uma palavra a respeito de outro pro-
¡ r. Quero fala- das riri-
blerna que jamais consegui resolve
lhetas, das quais o mais doente dos for ados não se pode
libertar. Mesmo os +uberculosos~ a cuja morte assisfi, ainda as
#

carregavam. Todos estavam habituados a elas, todos as


consideravam uma necessidade inelufavel. Durante o meu
.tempo de presidio, nunca que eu soubesse, pessoa nenhuma
-teve a id ia de solicitar a dispensa da grilhe+a a um doente.
.- principalmente de um +uberculoso, proximo da morte.
Para falar francamente, as cadeias não são tão pesadas assim,
- não pesam mais de oito a doze libras (1), o que representa
um fardo suportavel para um homem v61ido. Entretanto, dis-
seram-me que ao cabo de alguns anos, as pernas come am a
definhar. Não sei se isso e exato, mas inclino-me a crer que
o seja: fixado para sempre a perna, um ferro, embora leve,
ppenas de dez libras, aumenta de qualquer forma o peso
_do membro de uma maneira anormal, e depois de algum
fempo provoca perturba ões perigosas. Admitamos, contu-
-do, que as grilhefas sejam uma bagatela para um homem
que goze boa saude. S -lo-So igualmente para um enfermo?
~Admitamos ainda que elas nSo pesem quase nada para um
doente comum. Porem, repito, para doentes graves, para os
fisicos cujos bra os e pernas se descarriam, qualquer palha
s.er6 lesada. Realmente, se a administra ão medica re-
clamasse a tirada dos ferros ao menos para os t¡sicos, teria
direito a grande gratidão. Alguem dira talvez que os for-
ados são monstros, que nSo merecem nenhuma benevolen-
cia-, mas sera necessario redobrar o castigo daquele sobre
quem j6 pesa a mão de Deus? Não se pode acreditar que
tal maneira de agir vise apenas punir: a lei perdoa ao +uber-
culoso as penas corporais. Trafa-se, portanto, de uma mis-
feriosa medida preventiva: que fim visara, ao cer+o? Bem
inteligente sera quem o adivinhe, pois ninguem pode recear
a fuga dum +uberculoso. A quem poderia ocorrer sernelhan-
1
(1) Ou sejam: de tr s quilos e meio a cinco e meio. (N. de R. Q)
#

.m
- 'DOSTOIEVSKI
te id ia, principalmente quando o enfermo j6 est6-gravemente
atingido?' O~ doentes dessa especie não podem enganar
os medicos, -'sgo reconhecivais ao primeiro olhar. Ademais,
prendem-se cadeias as Pernas de um homem unicamente para
que ele não fuja e nao possa correr? Absolutamente. A,,,
grilhefa um sinal ~ de infamia, uma vergonha, um fardo f¡-
sico o moral - e pelo menos assim que a consideram -
mas nunca impediu ninguem de fugir. O mais esfUpido, o
mais desajeitado dos presos, não tem dificuldade em serrar,
, ou em quebrar com uma pedra o elo de ferro que o prende. . . ~,,4
Os ferros são pois uma precau ão ihufil, e ia que não re-
presentam senão um castigo, novamente pergunfo: por que
mortificar af os moribundos?
Is
Escrevendo estas linhas, revejo um f¡ ico, agonizante,
aquele mesmo Mikhailov que se deitara defronte a mim, não
longe de Usfianfsev e- que, se bem me lembro, morreu quatro
dias ap6s minha chegada ao hospital. E, talvez, agora, fa-
lando de f¡sicos, eu esteja a repetir involunfariamenfe as id ias
que me ocorreram por ocasião dessa morte. Eu conhecia
pouco esse Mikhailov, rapaz de vinte e cinco anos no max¡mo,
alto, esbelto, de beliSsima aparencia, e que pertencia a se ão
especial. Fazia-se notar por uma estranha facifurnidade, por
uma tristeza meiga e franquila. Tinha positivamente "se-
cado" na prisão como a seu respeito diziam os for ados, entre
os quais deixou uma boa recorda ão. Revejo os seus olhos
magnificos, mas a falar verdade, não compreendo pbr que
guardei dele uma imagem tão clara. Expirou pelas fres horas
da tarde, um dia muito claro eµrio, com o sol a brilhar nas vi-
dra" , esverdeadas e cheias de gelo das nossas janelas. Uma
verdadeira torrente de luz inundava o desgra ado. Morreu
lucidez e depois de agonizar durante varias
an icou com os olhos vidrados, e nSo
reconheceu mais os que se aproximavam do seu leito. Que-
riam alivi * a-lo, pois compreen 1 diam que ele sofria muito. Es-
tava com a respira ão penosa, arquejante, rouca. Seu peito
'ap6s perder a
horas. Desde
11
A n~ L= t
#

Afastou
se erguia muito alto, como se o ar lhe faltasse.
primeiro o cobertor, depois a roupa, e pos-se afinal a es-
, gar ar a camisa. Nada mais pavoroso do que ver aquele
corpo comprido, com pernas e bra os descarnados, ventre
;~-cavado, peito soerguido, com as costelas salientes como as
~,~,µurn esqueleto. Não tinha mais sobre si senão uma cruz de
madeira, um breve de pano, e as grilhe+as, das quais as
equidas poderiam sair sem dificuldade. Um qu
s ar-
, pernas res
to de hora antes da sua morte, estabeleceu-se um silencio
~I ~` na sala: não se falava senão cochichando, não se caminhava
senao na ponta dos pes. Os for ados trocavam raras pa-
-lavras sobre assuntos alheios, lan ando olhares de esguelha
ao moribundo, que arquejava cada vez mais alto. Afinal,
com mão tremula e incerta, ele procurou o breve no peito
para o arrancar, como se aquilo fosse um fardo que o ator-
menfasse, o esmagasse. Tiraram-no. Dez minutos apOs, o
homem expirou. Batemos na porta afim de prevenir a sen
finela. Veio o guarda, olhou o morto, estupidamente, e foi
procurar o enfermeiro. Este ultimo, bom rapaz, muito preo-
cupado com seu f¡sico, - alias agradavel - depressa apa-
a
11 11 receu; em passos rSp
idos, que ressoavam no silencio da en-
fermaria, acercou-se do morto: enfSo, com ar desenvolto,
1,1 -e preparado de antemão, tomou-lhe o pulso, +a+eou-o,
como qu
fez um gesto impotente e se retirou. Logo depois foram
1 prevenir o posto da guarda: como o criminoso pertencia ...
se ão especial, a cons+afa ão do 6bifo exigia formalidades
. e de certa ordem. Enquanto se esperava, um dos for a-
1 r os olhos do de-
,? dos opinou que se deveriam fecha
! ~I , funto. Um outro, que ouvia atentamente, avan ou sem di-
i ~:' ~, zer palavra, e lhe baixou as p61pebras. Avistando a cruz
que escorregara para o travesseiro, segurou-a, olhou-a bem,
e a repOs no pesco o de Mikhailov, e, afinal, benzeu-se. Os
Ö os do morto iam se endurecendo; um raio de sol lhe brin-
ra
cava no rosto; pela boca entreaberta, duas fileiras de
4 dentes brancos reluziam entre os labios finos, colados as
1
1 gengivas. Enfim, o sub-c,ficial da guarda chegou, armado e
1~
#I
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
241
#

242
DOSTOIEVSKI
de Capacete, seguido por dois guardas. Aproximou-se, di-
minuindo cada vez mais o andar e olhando com embara o
os detenfos, que de todos os fados o fitavam em silencio,
com ar sombrio. A um passo do morto se imobilizou, como
intimidado e pregado no lugar. Aquele cadaver, comple-
famenf nu e ressequido, carregado ainda de ferros, o im-
pressionava; bruscamente levantou a jugular, tirou o capacete,
- cousa a que não era absolutamente obrigado - e fez um
amplo sinal da cruz. Era um rosto grave e grisalho, o da-
quele soldado idoso. Ao seu lado' estava Tchekunov, gri-
salho fambem; não deixava de fitar o sub-oficial, e acom-
panhar cada um dos seus gestos com uma obstina ão obse-
dante. Entretanto seus olhos se encontraram, e de repente o
labio inferior de Tchekunov pOs-se a tremer. O preso mordeu-o
ate fazer sangue, trincou os dentes, depois, como que mau
grado seu, com um gesto involunfario da cabe a, indicou o
morto ao sub-c,ficial e exclamou vivamente:
- Esse fambem tinha mãe!
Acabando de dizer isso, afastou-se.
Lembro-me que essas palavras me trespassaram ... Por
que as dissera ele, a como lhe vieram ao espirifo? Porem j6
vinham apanhar o cadaver. Erguq-am-no com o cafre, e a
palha estalou. No silencio geral, as grilhefas ressoavam, ar-
rasfando-se pelo soalho. Repuseram-nas no lugar. Levaram
o corpo. E imediatamente todos se puseram a falar ao mes-
mo tempo, muito alto. Do corredor nos chegava ainda a
voz do sub-c,ficial que mandava chamar o ferreiro: era prae-
ciso desferrar o morfo!
Mas sal do meu assunfo.. .
6
O hospital
(continua ão)
visita dos m dicos se fazia pela manhã: apareciam todos
A juntos pelas onze horas, acompanhando o chefe de cl¡
nica: mas hora -e meia antes deles o interno fazia a ronda
dos leitos. Nessa ocasião finhamos como interno um rapaz
muito expedito, sempre afavel e manso. Os for ados lhe
queriam muito bem, e s6 viam nele um defeito: o de ser "sos-
segado demais". Realmente, como não tinha o dom da pa-
lavra, ele parecia intimidado, corava, apressava-se em modi-
ficar os regimes ao primeiro pedido dos doentes; dava a im-
pressão que lhes receitaria apenas os remedios que eles qui-
sessem tomar. No fundo era um excelente rapaz! pre-
#

ciso notar que muitos dos nossos medicos gozam da estima


#

244
DOSTOIEVSKI
e da afei ão Popular, pelo que sei. a justo t¡tulo- Compre
endo que estas palavras parecem um paradoxo, mormente
se se ncara a falta de con-~an ,3 elo nosso povo para com
tudo que se refere ... medicina e aos remedios de origem
estrangeira. De preferencia a recorrer ao m dico e ao,hos-
pita], um homem do povo, embora atacado por dolorosas
enfermidades, trafar-se-6 durante longos anos com uma fe¡fi-
ceira, ou se enchera com os mais primarios remedios de
comadre (que alias não devem ser desprezados). Essa pre-
ven ão tem uma causa extremamente grave, inteiramente
alheia a medicina: provem da desconfian a gerQI do nosso
povo por tudo que traz uma estampilha oficial. preciso
confessar fambem que ele fem preven ao contra o hospital
gra as a uma infinidade de narrativas pavorosas que ouve,
- frequentemente est£pidas e despidas de qualquer funda-
m rito. O que lhe inspira mais repugnancia são os h bitos
alemães em vigor nos nossos hospitais, as pessoas estranhas
que os cercam durante as doen as, a severidade da dieta
os boatos sobre a dureza das enfermeiras e dos medicos, sobre'
a disseca ãoe autopsia dos cadaveres, e+c ... O povo pensa
fambem que fera um barine a traM-lo, pois afinal de contas,
todos os doutores são barines. Quando, porem, trava mais
amplo conhecimento com os m dicos, (ha exce ões. embora
Pouco numerosas) todas essas repugnancias caem por si, gra-
as, creio eu, a probidade dos nossos clinicos, - particular-
mente os mo os. A maioria deles sabe granjear a estima
e ate mesmo o amor da gente do povo. Em todo caso,
escrevo sobre o que vi e experimentei mais de uma vez e
em muitos lugares, e não tenho razão para crer que em outra
parte as cousas se passem de Modo diferente. Sei que em
algumas localidades longinquas os m dicos podem ser acusa-
dos de mercenarios: abusam dos rendimentos dos hospitais,
negligenciam os doentes, e chegam m-esmo a esquecer infei-
ramente a medicina. Isso j se fem visto. Mas quero falar
aqui da maioria do corpo m dico, que se inspira num espirito
novo, que se regenera dia a dia. Quanto aos apostafas da
rofissão, aos lobos do redil, embalde tentarão justificar
do o meio, responsabilizando-o por sua desgra a:
car sempra no w , rO,5_~ i 5 perderam -4,0d3
de. Porque a humanidade, a afabilidade, a com
fernal para com os doentes são ...s vezes mais afi
zes que os remedios.Ja e tempo de por +ermo ...s nos
queixas ap ticas contra o meio que nos gangrena.
mifamos que essas queixas +enhann base, que o meio
nos deforma muito; entretanto, um canalha astuto, que
conhece o seu negocio, acusa esse mesmo meio e sua
#

,influencia afim de dissimular não s¢ as proprias fraque


·, como fambem a propria indignidade, principalmen
quando sabe falar bem e escrever melhor. Mas estou
novo a me afastar do meu assunto. Queria mo limitar a
11 _~dizer que a ciente simples tem menos hostilidade e descon
-,fian a para com os cl¡nicos do que para com a administra
e Vendo os medicos a trabalhar, eles perdem
, ão m'dica.
a maioria dos seus preconceitos. Em muitos detalhes, a ad
ministra ão dos nossos hospitais não esta em harmonia com
o esp¡rito do nosso povo, vai de encontro aos seus habi+os,
e não lhe sabe granjear a confian a e a estima. pelo
menos o que pude concluir das minhas observa ões pessoais.
Nosso interno tinha o h bito de se deter diante de cada
doente, inferroga-lo seria e atentamente, antes de lhe pnescre
ver o regime e o remedio. As vezes notava que o "enfermo"
estava de boa saude, mas deixava-o ficar assim mesmo. Aque
le desgra ado vinha descansar do trabalho for ado, ou dor
~,mir num colchão, em vez de numa +abua nua, numa sala
aquecida, em vez de num corpo de guarda Umido, onde são
atirados em massa os presos preventivos, palidos e descar-
nados. (Em toda a Russia os defenfos que sofrem prisão
prOT155c10,
~~ic acusan
o cia 1 i
humanida
faixão fra
Ca.
4¡,
fe
preventiva são p lidos e descarnados, o que prova quanto
o seu sustento moral e material e inferior ao dos condena-
dos.) E por isso o nosso interno fazia sem resmungar a ins-
cri ão do falso doente, deciarava-o afetado por uma "febris
catarrhalis", depois deixava-c, tomar ferias durante uma longa
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
245
,i
#

246
DOSTOIEVSKI
semana. iEssa "febris cafarrhalis" divertia todo o mundo.
Sabia-se muito bem que, por um acordo fatico enfre o me-
dico e o seu doente, a f¢rmula designava uma doen a sir-,iu-.
lada, "a febre de emergencia" como fraduziamos nos.
Algumas vezes o doenfe, abusando da indulgencia do
inferno, ficava ali af que o expulsassem. Era então que
valia a pena ver o nosso inferno; parecia intimidado, enver-
gonhado de dizer direfamenfe ao enfermo que, j que es~
va curado, tinha de pedir o seu boletim de alfa. confudo,
poderia sem a menor explica ão, sem a menor considera ão,
obriga-lo a partir, escrevendo na papelefa: "Sanat --sf". A
principio ele insinuava, depois procurava convence-lo: "Ja
acabou, hein? Anda, ia ficasfe bom! E aq u i esfa falfan-
dck lugar!" e assim por diante, af que o doente senfia afinal
alguns remorsos, e se resolvia pedir o papel de alfa. O m¢-
dico-chefe, homem compassivo e honesto (e fambem muito
querido) era muito mais severo e mais resoluto que o in-
terno; em cerfos casos mosfrava uma dureza rebarbativa, que
alias lhe conquisfava uma estima especial dos presos. Che-
gava acompanhado por fodo o pessoal medico do hospifal,
depois do inferno fer feifo a sua ronda, e se punha a visifar
os doentes um ap¢s outro, defendo-se longamenfe junto
...queles que sofriam mais. E sempre tinha uma palavra es-
fimulante para lhes dizer, - uma palavra que penefrava at
... alma e provocava uma excelenfe impressão. Não ralhava
nunca COM os recem-vindos afacados de "febre de emergen-
cia", mas se um desses gaiafos se obstinava em demorar
mais que a confa, assinava-lhe simplesmenfe a senfen a:
"Vamos, meu velho, chega de descanso, não se deve abusar!"
Os feimosos eram ou for ados que reclarnavan~ confra o ser-
vi o duranfe a poca de maior calor, ou os condenados em
insfancia de castigo. Lembro-me que em rela So a um des-
ses foi preciso usar de severidade especial, e ate mesmo de
crueldade. Ele veio frafar da visfa, esfava com os olhos
vermelhos, e queixava-se de uma dor lancinanfe. Puseram-
lhe vesicaforios, sanguessugas, inje+aram-lhe no local um liqu¡-
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
247
in-
do corrosivo; todavia. os olhos do homem continuavam
flarnados. Pouco a Pouco os m dicos descobriram que es-
favam as voltas com um simulador: a inflama ão ficara es-
facionaria, o caso era suspeito. Ja h6 muito tempo os for-
#

'- ados sabiam que o camarada representava uma far a, em-


bora ele não houvesse falado nisso a ninguem, Era um ra-
pagão bem bonito, mas que provocava em todos n¢s uma
impress
So desagradavel. sonso, sombrio, não conversava com
os outros, sempre de olhos baixos, sempre afastado, como se
desconfiasse de todo o mundo. Lembro-me ate que ocorreu
a alguns de n¢s que ele talvez preparasse uma pe a. Era
um soldado condenado por um roubo grave a mil a oites e
... companhia correcional. Como ia o confei, para afastar
a hora do castigo, os condenados se resolvem, ...s vezes, a
'tremendos disparates, na vCspera do dia fatal: dão por
exemplo uma facada num chefe ou num companheiro, o que
lhes acarreta novo julgamento e recua um ou dois meses a
-execu ão da pena. E, assim, atingem o seu fito. Não se
preocupam ao saber que depois dos dois meses sua peria-
lidade sera duplicada ou friplicada; basta que o minuto
amea ador seja afasfado por qualquer pre o duranfe alguns
dias, - de fal modo esses desgra ados carecem de cora-
gem para o afrontar. Alguns dos nossos doentes murmura-
varri que seria bom vigiar o homem, para o impedir de as-
sassinar alguem, durante a noite. Todavia, ficou tudo em
conversa, e mesmo os seus vizinhos de leito não +ornaram ne-
nhuma precau ão. Tinham-no visto durante a noite esfre-
gar os~olhos com a cal raspada ... parede, e com outra cousa
mais, afim de os manter vermelhos. Enfim, o m dico-chafe
amea ou-o de lhe fazer um sedenho. Quando um doente dos
olhos resiste ao +ratamento. quando foclos os meios medicos
i6 foram empregados para lhe salvar a vista, os m dicos se
resolvem a essa providencia energica: tratam o doente
como um cavalo e lhe fazem um sedenho; ele enfSo se deixa
curar. Mas o rapaz era tão obstinado ou fão covarde que
af mesmo o sedenho, embora doloroso, lhe pareceu prefe-
#

248
rivel as varas. Para essa opera ão, agarra-se o paciente Por
tras, segura-s-e-lhe o couro da nuca, puxam-no o mais Possivel
para o afasfar da carne. enferra-se o bisturi ar de
¡ naquele lug
modo a produzir um corie comprido e largo, que ocupa toda
a largura da nuca, e, afrav s desse corte, se faz passar uma
mecha de algodão da grossura dum dedo; cL-pois,-todos os
dias, numa certa hora, puxa-se a mecha, como para abrir
novamente a ferida, afim de a fazer supurar, e impedir a
cicafriza ão. O pobre diabo suportou obstinadamente, du-
ranfe varios dias, essa forfura abominavel, antes de se con.
formar a pedir alta. Um belo dia seus olhos apareceram
infeiramenfe claros, e assim que a nuca sarou, devolveram-
no ao corpo da guarda, que ele deixou no dia seguinfe para
ir receber os seus mil a oifes.
DOSTOIEVSKI
O minuto que precede o castigo e horrivelmente perio-
so; errei, pois, em dizer que o medo dos condenados provem
da covardia. Deve realmenfe ser um momento espantoso, j
que eles arriscam uma dupla, tripla puni ão, afim de o adiar.
Ja falei, enfrefanfo, dos condenados que pedem que se
lhes d o resto dos a oites, sem esperar que as costas cicatri-
zem depois de recebida a primeira parfe do castigo. Querem
acabar o mais rapidamerte possivel com focla, a pena, liqui-
dando assim a prisão preventiva, - de fal modo a vida no
corpo da guarda lhes parece mais dura que nos trabalhos
for ados. Mas, pondo de parte a diferen a dos fempera-
mentos, o habito inveferado de receber pancadas e casfi-
gos corporais desempenha um grande papel nessa decisão
infr pida. Os que ia foram muito a oitados +em a alma e
as cosfas curtidas; acabam por encarar as puni ões com ce-
ficismo, quase como um pequeno incomodo, que j6 não pro-
voca nenhum mal-es+ar. Eis um exemplo: um dos nossos for-
ados da se ão especial, um kalmuk batizado, Alexandr ou
Alexandra, (1) como o charnavamos enfre n6s, - rapaz es-
(1) Turguenev observa. em "Memorias de um Ca ador", que "a gente do Povo c
on-
sidera mais carinhoso dar a um prenome masculino uma termina ão feminina". (N
.
de H. M.)
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
L r t-nntou-
249
anho, engra ado, atrevido, sempre de bom umo .
#

sem deixar de rir e pilheriar, que receµra quatro mil


ifes; porem jurou-me que, se desde a mais tenra infancia,
o o houvessem acostumado com chicofaid*" na sua horda,
as correias ia nao lhe houvessem marcado as costas com
atrizes indeleveis, não poderia nunca suporfar esses quatro
il a oites. E, con+ando-me isso, parecia reconhecido a sua
rufa] educa ão. Uma noite, em que esfava senfado no meu
fre, falou assim: "Olhe, Alexandr Petrovi+ch, batiam em
im por causa de tudo e por causa de nada, e isso durou
m parar quinze anos a fio; +ao longe quanto posso me ]em-
,gar, fui a oitado, varias vezes por dia; todos que tinham
onfade podiam bafer em mim, de modo que acabei acostu-
,-,teadoi" J6 não recordo mais o acaso que o fizera soldado,
V- ue, no fundo, ele devera sempre fer sido um vagabundo;
o ou o contar-me o medo que sentira quando
via ainda
vira condenado a quatro mil a oites, por fer assassinado
superior. "Eu sabia que iriam me castigar de rijo, que tal-
,vez morresse debaixo das varas. Era habituado a pancadas,
, : , mas quatro mil ... Ja e bastante, e alem do mais os chefes
1 todos estavam umas feras, devido a his+oria. Eu sentia,
sabia muito bem que a coisa não iria correr macia, que,
deixaria o couro ali. Então frafei de me batizar, pensando:
~ "Talvez me perdoem!" Os companheiros tinham me preve-
, ~ ~nido que não adiantava batismo, que não me perdoariam;
ITI N
as eu cuidei: ao faz mal, experimento, eles hão de ter
mais pena de um cristão que de um mu ulmanol" E foi as-
sim que me batizaram, me puseram o nome de Alexandr, mas
as varas são sempre as varas, e não perdoaram uma so va-
rada. E isso me ofendeu tanto que jurei a mim mesmo que
e
O
eles'me haviam de pagar! E, acredife, Alexandr Pefrovitch,
apanhei-os! Eu sabia fingir de morto - morfo propriamente
não, porem moribundo. Levaram-me para o pelourinho na
frente do batalhão. Deram-me os primeiros mil a oi+es: pare-
cia fogo, e eu grifava; deram-me o segundo milheiro, a eu vi
18
#

250
DOSTOIEVSKI
que o meu fim estava chegando. Tinha perdido a cabe a, as
pernas se dobravam debaixo do corpo, e eu ia desfalecendo#;
meus olhos reviravam, minha cara estava roxa, eu não res-
pirava mais, tinha a boca cheia de espurna; o medico chegou
perto e disse: "Ele est morrendo!" Levaram-me para o
hospital e logo tornei a mim. Depois disso, come aram mais
duas vezes, - esfavam`com cidio de mim, estavam furiosos,
isso lhe garanto. Mas das duas outras vezes consegu 1 en-
ganar novamente a eles todos; no fim do terceiro milheiro,
tornei a morrer; porem preciso notar que quando chegou o
quarto milheiro, cada ~ancada valia por fres, era como uma
faca que me enterrassem bem no meio do cora ão, tal
a dor! EstAvam encarni ados contra mim: aquele cachorro
que dava o £ltimo milheiro - diabos o carreguem! - valia
pelos fres outros juntos, e se eu não me houvesse fingido
de morto antes do fim (so faltavam duzentos), tinham me
acabado de verdade; mas não deixei que eles me liquidas-
isem; dessa vez como das outras - revirei os olhos -
e bumba! pensaram que eu tinha morrido. E como
não haveriam de acreditar, se era o m dico que es-
fava dizendo? Mas ainda faltavam duzentos, e eles
deram esses £ltimos com toda a vontade - pode-se dizer que
duzentos a oites foram dois mil; e, ainda assim não conse-
guiram me liquidar mesmo! E por que isso? Simplesmente
porque me criei debaixo de chicote! Se ainda estou vivo hoje
em dia, devo-o a isso! Ai, sin-sei bem o que levar pan-
cada," ajuntou pensativo, como se procurasse recapitu~
lar todas as surras que recebera. "Não, tornou depois de um
minuto de silencio, ninguem seria capaz de contar as pari-
cadas que deram nestas costas. E, ademais, para que
confar? não haveria numero que chegasse!" Olhou-me o
soltou uma gargalhada, onde se revelava tanto bom humor,
que não pude deixar de lhe retribuir com um sorriso. "Sabe,
Alexandr Pefrovifch, quando sonho de noite, penso sempre
que estão me a oitando - não tenho nunca outro sonho!"
ILECOltDA "ES DA CASA DOS MORTOS
251
te flauit...s vezes durante a noite ele se punha a urrar,
:_v,1*~ a o acordassem
muito alto, e era preciso que
...s I1J6 paraste de berrar, bicho do inferno?" Era
premas:
e r,
da de estatura media. agil, alegre, facil de v*
#
camara
anos de idade, como tinha uma
uns quanenta e cinco
a o roubo, isso lhe proporcionava fre-
~~Cloncia forte par
~enfe pancadaria. Ali s, quem, dentre n¢s, não apanha
o recebia a oites por essa razão?
---va na
Não acrescentarei senão uma palavra: * a ex+raordinaria
bonomia, a falta de rancor com que os a oitados contavam
como o por que tinham ido as varas, sempre me espantaram.
Nessas narrativas que 's vezes me faziam palpitar o cora-
a
~ão como louco, não se percebia o menor indicio de rancor
ou de odio. Mas acontecia coisa muito difenente com
M-cki quando ele falava em fusfiga ão. Como não era no-
6re, levou quinhentos a oites; eu soube disso por outros, e
lhe perguntei se era verdad.e. Ele confirmou com duas pa-
lavras r pidas, com uma especie de sofrimento Intimo, es-
for ando-se -por não me olhar. Ficou com o rosto subi+a-
mente rubro. Depois -de meio minuto, levantou os olhos
que reluziam ao fogo do odio, vi-lhe os labios a tremer de in-
digna ão e senti que ele jamais poderia esquecer essa pagina
do seu passado. Quanto aos nossos for ados (e logico que
havia exce ões) viamessas cousas por um ngulo muito diver-
SO. Não e possivel, pensava eu ...s vezes, que eles se reconhe-
am francamente culpados, e considerem a puni ão justa,
sobretudo se pecaram contra os chefes e não contra os com-
panheiros. A maioria dentre eles não se acusava absoluta-
mente. Nunca, repito, observei entre os meus companhei-
rQs remorsos de conciencia, mesmo nos casos em que o crime
fora perpetrado contra os de sua propria classe. Quanto
aos crimes cometidos contra superiores, nesses nem falo. Pa-
receu-me compreender que os for ados tinham a +ai respeito
um modo de ver especial e, por assim dizer, empirico;, leva-
11
, 1 1
, I
#

252
DOSTOIEVSKI
253
RECORDA OES DA
CASA DOS MORTOS
vam em --Onsidera So o destino, o fato consumado, e, -isso,
sem refletir, inconcientemente; era, neles, uma es 1 pecie de fe.
Nessa especie de crimes, o criminoso da sempre razão a si
mesrno, e a ques+Zo de sua cu!pab¡lidade nem se propoe ante
ele proprio; entretanto, sabe muito bem que os seus supe-
riores não encaram o delito com os mesmos olhos com que
ele o v , e, portanto, deve sofrer um castigo para ficarem as
duas parfes de confas saldadas. A luta ai e reciproca. O cri-
minoso pensa que um tribunal constifuido por gente humilde
da sua terra ou o absolveria, ou pelo menos o justificaria em
grande parte, confan+o que o crime não fenha sido perpefra-
do confra seus irmãos, confra os seus, contra a plebe.
Fortificado por sua conciencia, fica todavia sossegado e
sem remorsos. E e o principal. Senfe-se por assim di-
zer num terreno sOlido, e gra as a wessa convic ão, o
castigo se fransforma numa desgra a inevifavel, e mais
nada. Ele não ei O primeiro nem o Ultimo a sofrer
fal desv.-ntura. Duranfe muito tempo, muito tempo aind ,
prosseguira o combafe, um combafe obstinado, imposto
pela for a. O soldado não tem odio pelo turco com quem
esfa¡ em guerra, contudo o furco o mata a golpes de sabre
ou da baioneta, a tiros de fuzil ...
Todas as his+orias, alias, não revelam o mesmo sangue-
frio, a mesma indiferen a. Por exemplo, não se falava nunca
do tenente Jerebiafnikov sem wrfa indigna ão recalcada.
Travei rela ões com o fenenfe durante a minha primeira es-
fada no hospital - por infermedio das hisforias dos for ados,
compreende-se. Vi-o mais farde, em carne e osso, uma vez
que ele comandava na fortaleza. Deveria fer uns frinfa¡
anos. Era alto, gordo, vermelho, desfilando graxa, com uns
denfes brancos e a risada estrondosa, infermiferife, um riso
a Nozdriov (2). O rosfo lhe refletia o vacuo absoluto das
id ias. Adorava castigar, dar varadas, quando o designa-
(2) C,0901 - "Almas Mortas" - Primeira parte, cap¡tulo IV. (N. de H. M.)
i
i
5~,,_va xecufor de uma senten a. Os outros oficiais -
Mjocimo
i-meam cliz -lo - consideravam o tenente Jerebiafni-
kov como um monsfro, e os for ados manfinham sobre ele
lid nfica opinião. Evidentemente houvera, nos bons tempos
#

de anfanho, "cuja fradi ão, embora custe cr -lo, ainda esfa


.. viva", (3) executores que gostavam de realizar escrupulosa-
--- imerifis a sua tarefa. Mas em geral as varas eram vibradas
- com simplicidade, sem nenhuma especializa ão, nem prazer
para o execufor. Esse tenente, pois, era uma especie de gas-
m refinado, um "connaisseur" no mais amplo sentido
e . fr6no o
da express...o. Tinha a paixão da sua arte. e amava a arfe
pela arfe. Comprazia-se nela como um pa+ricio enfediado
da,Roma Imperial, inventava toda especie de requintes suffs,
afim de estimular, animar um pouco a sua alma afundada na
banha.
Eis Jerebiafnikov encarregado de uma execu ão: um olhar'
-atirado ... longa fila de soldados armados de grossas' varas
basta para o e * ncher de inspira ão. Percorre a fila com ar
satisfeito, reifera a ordem para que foclos cumpram concien-
ciosamente o seu dever, orião... Os soldados sabiam
antecipadamente o que significava aquele "senSo". O cri-
minoso e frazido, e se ate então ele não travou conhecimento
com Jerebia+nikov, se ninguem o pos ao corrente do que se
vai passar, veja-se a pe a que Jerebiafnikov lhe prega: e ape-
nas uma pe a entre mil, porque aquele +anen+e não faltava
inventiva. Enquanto lhe desnudam as cosfas, e lhe atam as
mãos a coronha do fuzil, por meio do qual os sub-c,ficiais o
arrastam depois. ao longo da "rua verde", todo condenado
se põe sempre, em voz de choro, a suplicar aos executores
que, nao bafam com muita f"r a, que não redobrem o casti-
go com uma severidade superflua.
- Excelencia, grita o desgra ado, tenha piedade, mos-
fre o seu cora ão de pai, deixe-me rogar a Deus eternamente
por si, não me desgrace, tenha d,6!
(3) Verso de Criboiedov, que se tornou proverbial, (N. de H. M.)
#

254
DOSTOIEVSKI
Jerebiafnikov, que não esperava senac, essas palavras,
suspende imediatamente a execu ão, e, num tom sentimen-
tal, enfabola com o for ado o seguinte
- Meu querido amigo, que queres que eu fa a? Não
sou eu que +e castigo, e a Lei!
- Excelencia, tudo depende de si. seja compassivo!
- E pensas que não sou compassivo? Pensas que
tenho prazer em ver te a oitarem? Eu fambem sou um ho-
mem. Vejamos, sou um homem ou não sou?
- Se e, Excelencia, se e! A verdade que os oficiais
são os pais e nos somos os filhos; mostre o seu cora ão pa-
terno, Excelencia! brada o preso, fremente de esperan a.
- Mas meu amigo, julga por ti proprio: tens um cere-
bro para refletir. Sei muito bem que o sentimento de huma-
nidade me ordena que te olhe a ti, pecador com iedade
com misericordia.
I P I
- O que Vossa Excelencia diz e a pura verdade!
- Sim. e devo te olhar com misericordia, por mais peca-
dor que sejas. Porem não sou eu, e a Lei que te castiga.
Reflete! Tenho que servir a Deus e a minha pafria, e cometo
um grande pecado se assumo a responsabilidade de atenuar
a lei. Pensa nisso!
- Excelencia!
- Então não faz mal! Passa por esta vez! Sei que
estou errado, mas não faz mal! E, entretanto, se eu +o fV¡ r
isso, presto-te um pessimo servi o! Pois se +e perd"o, se
s0 te castigo um pouquinho, ficaras pensando que de outra vez
e a mesma cousa. Tornaras a fazer asneiras, e então como
h6 de ser? ficara esse peso na minha conciencia.
- Excelencia, juro que não me ha de castigar uma
segunda vez! Juro-o diante do trono de Deus!
- Muito bem, então, muito bem! Jura que vais te
portar direitinho.
- Deus Todo Poderoso que me castigue e que no outro
mundo, ..,
I
#

t
4
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
4
257
- Não ¡ures que ecado! Acredito, se me deres a
fua palavra!
- Excelencial
- Esfa bem - vou te perdoar por causa das tuas Ia-
gr¡mas de orfão. Porque es orfão, não es?
Orfão, Excelencia, s¢ no mundo, sem pai nam mãe ...
Muito bem, perdoo-fe por causa das tuas l grimas
de orfão, mas e pela £lf¡ma vez, v bem! Levem-no - diz
com voz fão comovida que o for ado ia nem sabe com que
palavras h de agradecer a Deus, por o haver enf regue a um
oficial dotado de tão bom cora ão. Mal o amea ador cor-
feio se põe em marcha, a ordem e dada, o fambor rufa, a
primeira vara se ergue...
- Duro com ele! grifa Jerebia+nikov com todas as suas
for as. Surrem-no bem! Arranquem-lhe a pele. Mais, com
mais for a, liquidem o orfão, liquidem o canalha! Sirvam-
lhe a sua ra ão, sirvam-no bem!
Os soldados dão as varadas com toda a for a, os olhos
do pobre diabo soltam faiscas, ele come a-a urrar, e Jere-
biafnikov corre a sua frenfe, ao longo da "rua verde": ri, da
gargalhadas, segura as costelas com as duas mãos, ri tanto
que af se sente mal. Esta no s timo c u, acha aquilo uma
delicia! De tempos em tempos uma risada formidavel e so-
nora, seu riso cascafeanfe de homem gordo refine de novo;
e de novo ele berra:
- Arranquem-lhe a pele! Quero v -lo esfolado!
folem-me esse canalha! Pelem~me o lombo do orfão!
Havia ainda outras varianfes desse motivo, no seu reper-
u
forio. O for ado que vai apanhar come a com as s'plicas.
Jerebia+nikov não faz as palha adas costumeiras e lhe diz
francamenfe:
- N5o, meu caro, vou +e castigar segundo as regras,
conforme o mereceste! Mas h uma cousa que posso fazer
por f i: não fe mando amarrar. Vais caminhar sozinho, a moda
#

258 DOSTOIEVSKI RECORDA OES


DA CASA DOS MORTOS 259
nova. Basta apenas que corras bem depressa pela linha da
soldados. Não te livrar s das pancadas, verdade, porem a
cousa andar mais depressa. Que achas? Queres expe-
rimentar?
O for ado escuta. incerto, desconfiado, depois medita:
"Quem sabe? Talvez seja mesmo vantagem para mim. Se
eu correr com toda a for a a coisa durara pelo menos cinco
vezes menos e talvez nem todas as varadas me apanhem!"
Esta bem, Excelencia, concordo!
E eu tambem! Vamos, marcha! Aten ão, voc s Ia,
aferi ão! Não estão aqui para dormir! grita para os sol-
dados, embora saiba muito bem que nenhum dos a oites dei-
xara de apanhar o lombo do culpado: se um soldado erra o
a oite, sabe por experiencia o que o espera. O for ado
põe-se portanto a galopar pela "rua verde" mas não passa
mais de quinze filas porque as varas sibilam no ar. as pan-
cadas chovem como geada nas suas costas, e o pobre diabo
se abate num urro, como apanhado por uma bala.
- Não, Excelencia, prefiro que sigam o regulamento,
suplica ele erguendo-se com dificuldade, liVido de pavor, en-
quanto Jerebiafnikov, que sabia antecipadamente o resultado
daquela boa partida, ri a sufocar.
Contudo, eu não poderia descrever todas as diversões
ag~se oficial, nem todas as historias que correm a seu res-
peito.
De modo muito diverso falavam entre n¢s do tenente
Smekalov, que precedera o atual maior nas fun ões de coman-
dante da pra a.
Discorriam sobre Jerebiafnikov num tom calmo, sem lhe
gabar as fa anhas, sem odio; não o estimavam, despreza-
vam-no. E o desprezavam por assim dizer - de cima -
enquanto ninguem evocava a lembran a do tenente Smekalov
sem lhe fazer o elogio en+usias+ico. Sendo o oposto do apre-
ciador das varas, esse tonQofe ne
.3da tinha pois em cQmum
A
com Jerebiafnikov. Não que ele desdenhasse punir: ao con-
trario, empregava muito bem as varas, mas em vez de lhe
guardarem rancor, os presos se enierneciam. Esse hornem
soubera agradar aos for ados! Como lhes teria granjeado
a estima? Nossos for ados, como quase toda gente da
plebe, estão prontos a esquecer os piores sofrimentos por
amor de uma boa palavra: limito-me a constatar o fato sem
procurar analisa-lo. flada e menos dificil que agradar a essa
#

genfel Mas o tenente Smekalov gozava de uma popularida-


de especial, pois ate suas execu ões eram mencionadas com
enternecimento. "Era bom como um pai", diziam dele os
gales, e soltavam um suspiro, comparando Smekalov com o
nosso maior. "Que boa alma!" Era um homem simples, e
sem duvida bom ao seu modo. Contudo, acontece as vezes
ninguem querer bem, e mesmo se fazer +ro a de alguns ho-
mens bons - zombam ate da sua misericordia no comando.
O fato e que Smekalov de +ai modo se portava, que todos
os defentos reconheciam nele o "seu homem" e deve-se
dizer que isso representa um grande dom, uma capacidade
inata, da qual muitas vezes aqueles que a possuem não se
apercebem. Cousa estranha: entre os oficiais ha alguns que,
sem serem bons, atraem uma grande popularidade, simplas-
mente porque não desprezam o povo, porque não o tratam
com altivez. Não se sente neles nem o barine mimado, de
maos brancas, nem o espirifo de cas+a; emana das suas pes-
soas uma especie de cheiro especial, de simplicidade; isto
lhes e congenito, e, meu Deus, como sabe o povo farejar esse
cheiro! Que dedica ão não e capaz de sentir por +ai es-
necie de cricturas! Com que rapidez sacrificar o chefe
mais humano para escolher o mais severo! E se o persona-
gem em quem o povo fareja esse cheiro especial e ademais
uma boa pessoa, então não +em mais pre o!
Como ia o disse, o tenente Smekalov as vezes castigava
com dureza, mas sabia como o fazer, eam vez de lhe guarda-
r-em rancor, todos os presos do meu tempo evocavam rindo as
suas "bg.?5 pe~as". Pe as que ali s não eram muito variadas,
#

260
DOSTOIEVSKI
pois o tenente carecia infeiramenfe de fantasia arfisfica
,Na realidade, duranfe um ano infeiro, ele não se divertira
senão corn uma unica e mesma far a, que talvez devia o seu
presfigio ao fato de ser énica. Não lhe faltava ingenuidade.
O delinquente e trazido: Smekalov deve assistir pessoalmente
... execu ão. Vai para Ia brincando, rindo, interrogando o
culpado sobre cousas indiferen+esl sobre seus negocios pes-
soais, sobre os seus trabalhos, e isso sem inten ão zombeteira,
sem id ia preconcebida, "+So s0 porque lhe apraz ficar a
par dos negocios daquele homem". Trazem as varas e uma
cadeira para Smekalov. Ele sen+a-se, acende o cachimbo,
(cachimbo muito comprido, alias). O for ado come a as
suplicas ...
- Não, meu amigo, vamos, dei+a-fe, que foi que +e deu?
resmunga Smekalov.
O for ado suspira e se deita.
- ~Escufa, meu amigo, sabes as tuas ora ões?
- Decerto, Excelencia! Sou batizado, aprendi a rezar
quando ainda era da altura da sua bo+a!
- Bem, então reza!
O for ado ia sabe o que vai rezar e o que se seguir .
porque a brincadeira ia foi repetida pelo menos umas
frinfa vens. O propric, Sm.ekalov não ignora que o preso
sabe disso e que os soldados, que esperam com as varas
erguidas sobre o culpado, estirado no chão, +ambem o sa-
bem, mas isso não o impede de se repetir. A brincadeira
lhe agradou de vez, e talvez ele a aprecie principalmente
por vaidade de autor. O desgra ado come a a recitar suas
rezas, os soldados se imobilizam com as varas, a Smekalov,
que ia não se pode confer, levanta a mão, para de fumar,
espreifa a palavra esperada. O for ado a articula afinal:
õ'no ceu" (4).
(4) Trata-se evidentemente do Padre Nosso, mas, com receio ia censura, a
cita-
ão vaga. (N. de H. M.)
RECORDA õES DA CASA DOS MORTO
d
.41
a palavra de ordem
_ Alto! grifa o tenente cujo rosto se inflarria; bru
camenfe, com um gesto inspirado, dirige-se ao homem que
#

]e
vai bater em, prime'iro lugar, e brada: - Para o ceu v e, !
E solta uma gargalhada. Os soldados +ambem sor-
riem, o fustigador sorri, o proprio fustigado se prepara
para sorrir, - embora a ordem de "para o c u! . - . " a vara
fenha sibilado no ar e venha cortar como uma navalha o
lombo do paciente. Entretanto Smekalov esta satisfeito,
porque a pilheria e de sua inven ão, e lhe agrada mui+ts-
simo. E vai para um lado, encantado, enquanto o fu%fl-
gado seque pelo outro, satisfeito consigo proprio e cr)m
Smekalov. Meia hora mais farde confa-se em focla a for-
taleza que a famosa pilheria foi de novo dita, pela frig'sir-na
primeira vez. "Ai, aquele era mesmo um homem de ver-
dadel"
As vezes as louvaminhas dedicadas a esse tenente c~e_
gavam a aborrecer.
- Lembram-se, rapazes, as vezes, quando a gente ia
trabalhar - (conta um for ado cujo rosto se ilumina ante a
recorda ão) - via o tenente sentado na janela, de roupão,
cachimbo na boca, fornando cha. Tiravamos o gorro
"Para onde vais assim, Aksionov? ele dizia. - Vou para o
trabalho, Mikhail Vassili+ch, mas antes tenho que passar na
oficina!" Ele então punha-se a rir. Sujeito bom! Cora ão
de ouro!
- Dessa especie ia não os fazem mais! acrescentava oen-
-sa+ivo um dos ouvintes.
I
i,
1
#

IK
"·"
O hospital
(continua ão)
O
4
se falei longamenfe- sobre as puni ões e sobre aqueles que
&s administram, e porque durante minha estada no hos-
pifal testemunhei com meus proprios olhos cousas que
não conhecia senão por ouvir dizer (1). Traziam para as
nossas duas enfermarias os condenados as varas de todos os
batalhões, companhias correcionais e outras unidades acan-
+onadas na cidade, e no distrito que dela dependia. Du-
ranfe os primeiros dias, quando eu estudava ainda com gran-
de avidez os costumes do presidio, todos esses a oitados,
foclos esses homens na expectativa da "rua verde", me da-
(1) O que contei sobre castigos corporais passava-se no meu tempo. OuvI
dizer
que tudo foi mudado, ou est em vias de mudan a. (Nota do Autor).
I
#
264 DOSTOIIEVSKI
RECORDA õES DA CA
SA DOS MORTOS 265
vem uma impressão horrivel. Eu ficava comovido, perfur-
bado, aferrorizado. Lembro-me de que então me p£s a
refletir febrilmente em todos os detalhes desses fatos novos
para mim, a escutar as conversas e as hisforias que a eles
se referiam, a fazer perguntas aos for%ados, querendo des-
cobrir uma solu ão para esse.estado de cousas.
Desejava em especial conhecer minuciosamente os graus
das diversas condena ões, todas as diferentes cambiantes de
castigo, com os modos de ver dos condenados a esse respeito.
Esfor ava-me por imaginar o esfado de alma dos que par-
fiam para o suplicio. rarissimo, ia o contei, que um con-
denado conserve o sangue-frio ate ao momento fatal, em-
bora ia fenha sofrido varias outras fusfiga ões. Nesse ins-
+ante, ele sente um ferror puramente fisico, agudo, involun-
fario, inconcienfe, e esse terror o afurde. Durante meus lon-
gos anos de presidio tive mais de uma vez a oporfunidade de
observar alguns desses condenados que, entrando no hospi-
fel com as cosfas em carne viva, depois de sofrerem a pri-
meira metade da puni ão, se inscreviam para a alta logo no
dia seguinte, afim de mais depressa afrontar o resto. Essa
interrup ão no castigo e sempre devida as ordens do medico
que assisfe a execu ão. Quando o numero de a oifes ao
qual foi condenado o criminoso parece elevado demais para
ser recebido todo de uma vez, e ele dividido em dois ou
tr s, segundo a opinião do medico que, no decorrer da
execu ão, verifica se o fustigado esfa em condi ões de
suporfar a pena sem perigo de vida. Quinhentos, mil, mil
e, quinhenfos a oites podem ser adminisfrados de uma vez:
mas dois mil a oites são em geral disfribuidos em duas ou fres
por ões. iEm geral, aqueles que, com as cosfas mal cica-
frizadas, sa¡am para receber a segunda metade do castigo,
fornavam-se desde a vespera da partida sombrios, +risfonhos,
faciturnos. Observava-se neles uma especie de embrufeci-
menfo, uma disfra ão singular. Não +ornavam parte nas
conversas e na maioria do tempo - cara+erisfica curiosa, -
w~ Ompanheiros evitavam falar com eles, evitavam fazer a
menor alusão ao que os aguardava. Nenhum consolo, ne
. nhuma palava inufil: parecia que todos tinham combinado
_.. não M presfar a menor aten ão. E era muito melhor assim.
Havia, confuido, exce ões - Orlov, por exemplo, de quem
'. J falei.- Depois da primeira metade da sua puni ão, ele
não parava de gemer, porque suas costas não saravam bas-
, fanfe depressa. Tardava-lhe acabar, e ser metido num.
comboio de deportados, porque contava fugir durante o
C inho. Esse não via senão o fim que visava atingir; e-R
Nu sabe do que era capaz uma natureza daquelas, tão
apaixonada, fão ardente. No dia em que chegou, parecia
#

1 , ",,safisfeifo a muito excitado, embora se esfor asse por dis-


simular seus senfimenfos. Na verdade, Orlov_ cuidara não
sobreviver ... primeira metade do castigo, nao se poder
levantar de sob as varas. Durante a prisão preventiva,
chegaram-lhe aos ouvidos boatos sobre as medidas +orna-
das a seu respeito pela administra ão, e finha-se preparado
para o fim. Mas o fato de suporfar a primeira metade
devolvera-lhe a esperan a. Quando chegou ao hospital,
esfava semimorto. Jamais vi na minha vida umas costas
Coa chegadas, contudo a alegria lhe tomava o cora ão. Es-
+ave cerfo agora de que lhe tinham confado boatos falsos,
o que se sairia da segunda vez como se saira da primeira.
,Depois da longa reclusão preventiva, não sonhava senão com
g futuro comboio no qual seria incluido, na viagem que faria,
na evasão, na liberdade nas estepes e florestas ... E dois
,ckas ap6s sua saida do hospital, voltou para morrer no pro-
o
prio leito que deixara: não pudera resistir ... segunda metade
do castigo. Ja falei, porem, a esse respeito.
Todavia, esses condenados, mesmo os mais pusil nimes,
aformenfados noite e dia pela expectativa do momento fatal,
suporfavam a sua dor com coragem, uma vez chegada a hora.
Raramente os ouvi gemer durante a noite que se seguia a
fustiga ão, por mais rigorosos que houvessem sido os a oites,
- tão grande e a for a de resisfencia do nosso povo. Infer-
19
#

266
DOSTOIEVSKI
roguei muit¡ssimo os meus companheiros acerca dos sofri-
mentos causados pelos a oites. Queria infeirar-me da sua
:nIensidade,e saber a quc~, poder*,a¡~ c-'bs ser comparados. Não
sei realmente que razão me impelia, mas recordo bem que
não era a simples curiosidade. Repito-o, a emo ão e o pavor
me estrangulavam. Por mais que indagasse, porem, nunca
obtive uma resposta sa+isfatoria. "Queima como fogo", res-
pondiam sempre. "Queima - e e s6!" Nos primeiros tem-
,pos. quando me aproximei de M-cki, interroquei-o +ambem.
"Doi horrivelmente, confessou ole; sen+e-se uma impressão
de queimadura, como se grelhassem as costas da gente no
fogo do inferno". Assim, todos se exprimiam de maneira
un nime. Lembro-me de +er feito então uma observa ão
estranha, cuia exatidão alias não garanto, mas que o consan-
so geral dos for ados confirmava: uma severa flagela ão de
varas constitue o mais ferrivel dos suplicios em uso entre nos.
Ao primeiro olhar, a afirma ão parece absurda, entretanto
quinhe0os a oites, quatrocentos mesmo, bastam para matar
um homem; acima de quinhentos, a morte e por assim dizer
certa; e o mais robusto dos individuos nSo pode enfrentar
de uma vez s0 mil varadas. De chibata, pelo contrario, su-
por+am-se quinhentos a oites sem perigo para a vida. Um
homem de constitui ão media pode aguentar mil chibatadas,
duas mil af , se esta de boa saude. Todos os for ados con-
sid.eravam as varas infinitamente mais assustadoras que a chi-
bata. "As varas doem muito mais, queimam mais", explica-
vam eles. evidente que torturam muito mais, porque
atacam muito mais os nervos, irritam e abalam ao mais alto
grau o organismo do paciente. Não sei se ainda existem
hoje, mas havia outrora cavalheiros que se de!eitavam em
fustigar as vitimas - por exemplo, o marqu s de Sade e a
Brinvilliers. A emo So do espe+6culo provocava, segundo
creio, uma especie de desfalecimen+o ex+afico, que e ao
mesmo tempo perversão e delicia. Ha pessoas que, como
os tigres, lambem avidamente o sangue que derramaram.
Aquele que, embora uma Unica vez, exerceu um poder ilimi-
&EColtDA OES DA CASA DOS MORTOS
r,
267
fado sobre a carne, o sangue, a alma do seu semelhante, -
sobre o corpo do seu irmão, segundo a lei de Cristo, -
aquele que gozou da faculdade de aviltar ao grau maximo
L" outro ente, feito a imagem de Deus, esse alguem torna-
#

se escravo de suas sensa ões. A tirania um habito dotado


~pio extensão, pode-se desenvolver e acabar afinal se frans-
formando~ doen a. Sustento que o melhor dos homens
pode, gra as ao h bito, endurecer-se ate se transformar num
animal feroz. O sangue o o poder embriagam, engendram
-a brutalidade e a perversão, fazendo com que a alma e o
esp¡rito se tornem acessiveis aos prazeres mais anormais. O
homem e o cidadão se eclipsam para sempre no tirar*. E
1 a volta ... conciencia humana, ao arrepenclinvenfo, a ressurrei-
ão, se lhe torna quase impossivel. Acrescentemos que o
poder ilimifado de gozo tem uma sedu ão perniciosa, que
age por contagio sobre toda a sociedade. A sociedade que
encara com indiferen a a ões desse jaez, ia esta con+ami-
nada at ao cerne. Em suma, o direito de puni ão corporal
que um homem exerce sobre um outro e uma das chagas da
sociedade, e um meio seguro de abafar, ainda em germe,
qualquer civismo e lhe provocar a decomposi ão.
A sociedade despreza o carrasco profissional, porem não
o genfleman-carrasco. Quiseram recentemente pretender o
contrario, mas de maneira inteiramente abstrata, inteiramente
Ilivresca. Os que exprimiram esse conceito não tinham +ido
ainda tempo de matar dentro de si o instinto de dominio.
Qualquer industrial, qualquer diretor de empresa, deve fre-
quen+emenfe sentir uma especie de satisfa ão exasperada
quando recorda que muitos operarios, carregados de fami-
lia, não dependem senão de si. Não rapidamente que
as gera ões extirpam os seus vicios heredifarios, nem que o
homem renuncia ao que tem na massa do sangue, ao que,
por assim dizer, sugou no leite materno. Nenhuma revolu ão
se faz as pressas. Não basta confessar o seu erro, o seu
#

268
DOSTOIEVSKI
pecado original; e mister elimina-lo complefamenfe. E isso
não se obtem senão com fempo.
Falei em carrasco. Os ;nsfin+os bestiais es+So em germe
em quase foclos os nossos con+emporaneos, mas não se de-
senvolvem uniformemente em cada individuo. E quando su-
focam os demais insfinfos de um homem, este se torna -
e claro - um monsfro, abominavel. Ha duas especies de
carrascos: os carrascos volunfarios e os carrascos a for a, ou
por obriga ão. Os carrascos volunfarios são, e claro, infe-
riores sob todos os aspectos aos carrascos involunfarios.
Estes £l+imos, enfrefanfo, inspiram ao povo uma repugnancia
que raia ao horror, um receio irrefletido e quase miSfico.
De onde provem esse medo supersticioso por um e -essa in-
diferen a quase aprobafiva pelo ou+ro? Ha casos parti-
cularmente esfranhos. Conhec¡ individuos bons, honestos,
estimados no seu meio, que julgavam indispensavel que o
condenado gritasse debaixo do knuf, que implorasse per-
dão ... Isso era para eles uma cousa esfabelecida, regular,
necessaria. Assim, um executor meu conhecido, que em qual-
quer outra ocasião passaria por um bom sujeito, senflu-se um
dia pessoalmente ofendido porque a sua vitima nSO se digna-
va grifar. De inicio não tinha inten ão de castigar de rijo;
não escutando, porem, nenhuma das palavras habifuais: "Ex-
celencia, paizinho, tenha piedade, rogarei eferna mente a Deus
por si!" perdeu o sangue-frio e mandou dar cinquenfa a oites
a mais no recalcifrante para lhe arrancar os grifos e as su-
plicas de rigor, - e arrancou-os. . . "Era impossivel agir de
oufra maneira; a insolencia do homem ultrapassava os li-
mi+es", explicou-me ele com grande seriedade.
Quanto ao verdugo de profissão, sabe-se de onde ele
sai. um condenado que obteve comuta ão de pena, co-
me ou como aprendiz junto a outros carrascos e, uma vez
senhor do oficio, insfalou-se vi+aliciamen+e num presidio; +em
seu alojamento particular, seu quarto, e ate mesmo o seu lar,
mas anda quase sempre sob escolfa. Um homem vivo não
afinal de contas uma maquina: embora comece a a oitar
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
269
por. dever, acontece-lhe ser assalfado pelo furor e sentir pra-
zier nas pancadas que da, sem Por isso alimentar oclio contra a
1 e
sua, v'iirna. A nece"ldãde de provar qua ' habil na pro-
f¡ssão, que enfende do oficio, a necessidade de se exibir
perante os companheiros e diante do publico, estimulam-lhe
#

zelo. Trabalha por amor da arte. Não ignora que, aos


hos de foclos, e um r¢probo, que um terror supersticioso o
acolhe e o acompanha por toda parte, cousa que, sem d£-
vida, bastante para lhe aun-kenfar a furia e os instintos
besfiais. Ate mesmo as crian as sabem que ele "n io conhe-
co pai nem mãe". Fato estranho, todos os carrascos que
ma foi dado conhecer, deixavam-me a impressão de incliv¡¡
duos inteligentes, de palavra facil, dotados dum amor-
-oprio excessivo. O orgulho crescera neles para resistir
ao desprezo geral. fortificara-se gra as ao medo que ins-
pirava as-suas vitimas, pelo sentimento do seu poder sobre
elas? Não o sei. A encena ão teatral com a qual se mos-
frann ao publico, no pelourinho, contribue falvez para de-
senvolver neles certa presun ão. Tive ocasião de observar
de perto um dos nossos verdugos. Era um quadragenario
de estatura mediana, seco, musculoso, cabelo crespo, 'rosfo
pode-se dizer franco, afavel. Tinha uns ares graves de pes-
soa de impor+ancia; suas respostas eram breves, cheias de
bom-senso, amaveis. mas amaveis com altivez, como se ele
não se permitisse abrir mão da propria imporfancia. Os
oficiais de guarda não desdenhavam falar-lho, e lhe teste-
munhavam ate uma especie de respeifo. O homem o com-
preendia perfeitamenfe-, por isso, quando em con+afo com
eles, redobrava de polidez, de frieza, de dignidade. Quanto
mais delicadamente lhe falava um chefe, mais ele parecia
inabo'rdavel, sem nunca se afastar de uma perfeifa amenida-
de. Estou cerfo de que, nesses minutos, se considerava in-
comparavelmente superior ...quela que lhe dirigia a palavra:
ria-se a conciencia disso no seu rosto. ·s vezes, num belo
dia de verão, mandavam-no sob escolta matar com uma vara
comprida os cães vadios que se mulfiplicavam na cidade com
"I
#

270
DOSTOIEVSKIsurpreendente rapidez, e que duranfe o calor forfe se frans-
u
formavam num perigo P'blico. Essa fun ão s¢rdida não pa-
recia absolutamenfe humilhar o wnhor carrasco. Era de ver
o ar grave com que percorria as ruas da cidade, acompanha-
do pelo seu vigilante, morfo de facliga; espanfava com o olhar
as mulheres e as crian as que encontrava, e fitava de alfo
todos os transeuntes. Alias, os verdugos f m vida facil: não
lhes falta dinheiro, são bem aiimenfados, e bebem o seu
vodca. As suas rendas provem das gorjetas com que os
presos civis lhes abrandam a mão, anfes da pena. Os con-
denados pobres usam para esse fim o seu derradeiro copeque.
Quanfo aos ricos, o carrasco mesmo lhes extorque uma
quantia de acordo com as suas posses: cobra-lhes frinta ru-
blos e af mais. Quanfo mais rico e um condenado, maior
e o pre o. Esf6 claro que o carrasco não pode bafer de
leve, pois sua propria pele responde por isso. Mas em troca
do dinheiro recebido, compromete-se a não bafer com for a
demasiada. E os pacientes ou os seus consentem quase sempre
nas exigencias do carrasco, porque, se as v recusadas, ele
a oita como um aut ntico barbaro, o que esta amplamenfe
denfro dos seus poderes. Consegue af arrancar dos con-
denados mais pphres quantias importantes; os parenfes v m
lhe fazer suplicas, regafeiam o paigamenfo; desgra ado de
quem não o satisfaz! Nesses casos o medo sup ti i
inspira ajuda muitissimo o verdugo. De que
um executor? Os for ados me afirmaram que
e w, a c oso que
nao se acusa
lhe possivel
mafar um homem ao primeiro a oite; afinal de contas, nSà
cousa inverossimil, embora eu não disponha de nenhum
exemplo a citar; e a verdade e que o nosso carrasco pre-
fendia ser capaz de o fazer. Os for ados confavarri ainda
que o verdugo e capaz de chibafar com focla a for a as
cosfas do criminoso, sem lhe fazer a menor marca, sem lha
os esses truques, porem, são por
demais conhecidos para que seja necessario insistir. Na rea.
lidade, se o carrasco recebe uma gorjeta para bater com
.rnenos for a, não se exime de dar o primeiro a oite com ~oda
causar a minima dor Tod
I
#

I
i
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
273
4 rudeza. o uso. Adminisfra os a oites seguintes com ais
brandura, sobref udo se lhe pagaram bem. Mas quanto ao
primeiro ciolpe, quer lhe tenham pago quer não, vibra-o
1,~, 1
Ignoro por que procede assim. Quer
s ~:`com toda a sustancia.
rar brutalmenfe a vitima para os a oites futuros, com
que, depois de uma primeira vergastada cruel, as
parecerão menos dolorosas e menos violentas? Age
amenfe para mostrar o seu vigor, para assustar a
ara a mortificar desde o inicio, fazer-lhe compre-
nder com quem esta frafando? O fato e que, anfes de
, coffie ar a execu ão, o carrasco se senfe superexci+ado, +em
:1 . 11 .conciencia da sua for a e do seu papel, torna-se um ator
o
`preparar
'~.:6 id ia de
e u ri e s
"`-Ossim unic
p
--- :": que inspira ao publico admira ão e medo, e não sIm sa-
.11 '',, 'fisfa ao que grita para a vitima: "Aguenta, que isso
1 .-queima!" Palavras sacramentais do mornenfo. A gente
dificilmente imagina ate que ponto um ente humano pode se
desnaturar...
4
4
1 1 Nos primeiros tempos de minha esfada no hospital eu
agu ava o ouvido para todas as hisforias -que corifavam.
Senfiamos todos o mesmo fedio em ficar deitados, e cada
dia, fão semelhante ao outro, era de uma monofonia +re-
menda. Pela manh , ainda, nos disfra¡amos com a visita dos
m dicos e, logo depois, com a chegada da comida, que -
compreende-se - desempenhava um papel da maior impor-
fancia na nossa vida. Os regimes variavam segundo os en-
fermos. Uns recebiam apenas sopa, outros somente um min-
gau de cevada, e outros s rnola, da qual eram todos gulosos:
aliU, no hospital, os for ados acabam ficando gulosos, so-
#

,bretudo quando Ia demoram muito fempo. Alguns recebiam


um peda o de cozido: "vaca", como se dizia enfre n¢s. Os
melhores pratos eram reservados para os doentes de escor-
bufo, - bife com cebola, rabanos, acompanhado, as vezes.
de um copo de vodca. A disfribui ão do pão variava fam-
bem segundo a molesfia, - ...s vezes pão prefo, ...s vezes pão
branco, mas sempre bem preparado. Os presos, de tanto
viverem acamados, iam ficando melindrosos, e faziam ques-
#

274 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA


CASA DOS MORTOS 275
tão de banquefear-se. Se alguns doentes não tinham apetite,
outros o tinham de sobra. E frocavam os quinhões, de modordo; como ia o con
tei, produziam sempre uma impressão
que o regime destinado a um, ia reqularmen+e para outro. Os forte.
Mas nos dias em que não se pass
ava nada, o fedio era
que estavam em dieta e recebiam apenas uma ra ão magra,
_~---,infoleiravel. Todos pareciam fa
tigados com a presen a imu
compravam carne aos doentes de escorbufo, e arranjavam
das mesmas caras, e finda
vam por procurar briga.
kvass, a cerveja do hospital, com os doentes que a obtinham.favel sa razão
nos recebiamos com interesse os loucos que
Alguns comiam ra ões duplas. As ra ões se trocavam por
dinheiro; a carne tinha pre o bas+anfe alto, ate cinco co-
m trazidos. Alguns espertos
simulavam loucura para
peques a ra ão. Se na nossa enfermaria ninguem firilia nada
r ao a oite. A maioria deles era
rapidamente des-
a vender, mandava-se o vigilante indagar na outra sala, e
ada, ou antes, resolvia-se
espontaneamente a mudar
ca, e depois de dois ou +r s di
as de extravagancias,
se Ia ele não encontrava nada. passava ao salão dos soldados,
"aos livres", como eram chamados entre nos. Encontravam-o "louco" recuper
ava de chofre o bom-senso e a calma, e,
se sempre pessoas que estimavam vender a sua ra ão, e que,sombrio, pedia a ex
ecu ão da senten a. Nem os for ados
por amor de alguns vinfens, comiam o pão seco. A pobrezanem os m dicos lhes f
aziam censuras, nem sequer os humi
,::"" , lhavam recordando as sandices.
Eram inscritos em silen
era incontestavelmente geral, todavia os que dispunham de
algum dinheiro podiam mandar adquirir no mercado kalafchicio, em silencio
a gente os acompanhava com & vista, e
e o
e outras guloclices. Nossos vigilantes davam conta dos mandois ou fr^s di
as ap's eles reapareciam, depois de sofrida
dados com um total desinteresse. . 1 . a puni ão. Ali6s, os casos desse g ne
ro aram raros. Em
O momento mais penoso do dia era o que se seguia compensa ão, os alienados
reais postos em observa ão na
... refei ão: uns tentavam dormir para matar o tempo, outrosnossa enfermaria
eram verdadeira calamidade. Recebiamos
conversavam; rixavam, contavam hisforias em voz alta. Se
a principio quase com entusiasmo
aqueles que tinham a lou-
cura expansiva, os a
legres, os vivazes, os que cantavam, gri-
nSo chegava nenhum doente novo, o fedio ainda era mais
favam, choravam. "Pelo menos vamos
nos divertir!" diziam
opressivo. A entrada dum novato provocava sempre uma os enfermos olhando
para as contor ões do recem-vindo.
diversão, sobretudo se ninquem o conhecia: examinavam-no,
Mas, a mim, o espet culo que davam
esses desgra ados era
procuravam saber quem era, de onde vinha, o que o levara
sempre terrivelmente perioso; nunca
pude olhar com sangue-
ao presidio. Os mais interessantes provinham dos comboios
frio para loucos. Quanto aos outros
sucedia que. sem de-
de condenados. Esses tinham alguma cousa a narrar, mas,
mora, em vez de prov
ocar o riso, as caretas perpetuas e os
e claro. nunca sobre os seus proprios negocios. E se não
movimentos constantes do doido os
cansavam, -- e ao cabo
contavam his+oria nenhuma espontaneamente, a esse respei-
de dois dias estavam todos fartos. Um
desses desgra ados
fo, ninguem os interrogava. Pergun+avam-lhe apenas: "De
ficou +res semanas conosco, de tal
#

modo que ia não sabia-


onde veio? Por qual estrada? Com quem? Ia para on-
---~ i,_ Por es
~ps era
ascapa
. rinascar
de? efc." mos mais onde nos esc
onder. Nesse intervalo, como de
Alguns, escutando o que diziam os novatos, recordavamP roposifo, manda
ram-nos um outro. que me provocou uma
de sUbito certos incidentes de estrada: animavam-se, falavam
impressão especial¡ssima. Isso se
passou no meu terceiro
sobre comboios, sobre vigilantes, soldados da escolta. Os
ano de presidio. Durante o meu
primeiro ano, ou mais
homens que haviam sido fustigados chegavam no fim da
exatamente, durante os meus primeiros
meses de prisão, na
1 primavera, eu ia para
o trabalho com um grupo de presos
#

I
276

DOSTOJEYSKI
forneiros, aos qua¡s deveria servir de ajudante. Ficava o
local de trabalho a duas vers+as de distancia, numa olaria
cujo forno precisava ser reparado para o ver io. Nessa ma-
nhã, M-cki e 8. me tinham apresentado ao nosso vigilante, o
sub-oficial Cistrozki. Era um polaco duns sessenta anos, alto.
magro, excessivamente bern parecido, e ate mesmo impo-
nente. Servia na Siberia ia h muito tempo. Embora fos-
se de baixa origem, - era um dos insurretos de 1830 -,
M-cki e B. lhe queriam bem e o estimavam. Vivia sempre
mergulhado na leitura da Biblia. Conversei com ele. Pa-
lestrava amavelmente, com sensatez, com interesse, encaran-
do o inferlocu+or com franca benevolencia. Eu ia não o re-
via ha dois anos, mas sabia que estava submetido a um in-
qu rifo, quando de repente o trouxeram para a nossa en-
fermaria: enlouquecera. Entrou soltando uivos e gargalha-
das, e se pOs imediatamente a darisar, empregando os gestos
mais obcenos, mais canalhas, para grande divertimento dos
for ados. Quanto a mim, fiquei muito triste. Depois de
tres dias, nos ia não sabiamos o que fazer. Ele brigava, fro-
cava murros, urrava, cantava noite e dia; suas repugnantes
inven ões nos provocavam nauseas. E, atem disso, não tinha
medo de ninguem. Meteram-no na camisa de for a, mas
nossa situa ão piorou ainda mais, porque nem por isso o lou-
co deixou de rixar e de querer trocar pancada com todo o
mundo. No fim de tr s semanas, a enfermaria, num brado una,
nime, suplicou ao medico-chefe que transferisse aquele fesou-
ro para os nossos vizinhos. De Ia, tr s dias apos, o devolve.
ram para n¢s. Ficamos então com dois agitados ao mes.
mo tempo, dois brigões, ambos inquietantes, e como eram
regularmente devolvidos de uma sala ... outra, não faziamos
senão trocar de doido. Eles se equivaliam, e todos solta-
mos um suspiro de alivio quando nos livraram d 1
panhia...
aque a com.
Guardei lembran a de outro maluco. Trouxeram-nos
certo dia um preso preventivo de uns quarenta e cinco anos,
sujeito forte, com a cara marcada de bexiga, olhinhos verme-
RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS
t
A
#

Z?7
inflamados, e expressão excessivamente sombria. Ins-
m-no ao meu lado. Mostrou-se muito quieto, não pro-
conversa, e parecia meditar. Quando ca¡a a noite,
repentinamente a mim. Diretamente, sem pre6m-
mas como se me fosse revelar um segredo importante,
n ou-me que
deveria em breve receber mil a oites, e que
;'-~~anto a execu ão não se realizaria porque a filha do ca-
,,~,:,p¡fão G. era sua protetora. Olhei-o inquieto e respondi
a meu ver, a filha do capitão nada podia fazer num caso
desconfiara ainda da verdade, porque ele
, toesses. Eu não
falizado como simples doente. Perguntei-lhe qual
4;ora hospi
sua molestia, e ele me declarou que n3o o sabia, que não
------~',~,viapor que o mantinham na enfermaria, que estava de per-
ita saude e que a filha do capitão o adorava. Quinze dias
1 fes, ao passar diante do corpo da guarda, no momento
m que olhava pela janelinha gradeada, ela se apaixonara por
' ele. Desde então, sob diferentes pretextos, a mo a voltara
vezes ao corpo da guarda: da primeira acompanhava o
1 pai, e vinha visitar o irmão, então oficial de dia na caserna.
fia, segunda, viera com a mãe trazer esmolas aos prisioneiros,
e, ao passar junto dele, lhe dissera ao ouvido que o amava a
o
o libertaria. Nada mais curioso que a minucia com a qual
ele expunha os detalhes dessa absurda hisforia, nascida e de-
senvolvida no seu cerebro desarranjado. Acreditava piamen-
que seria perdoado; insistia, com seguran a imperfurbavel,
',na paixao que a rapariga sentia por ele. O cora ão da gente
se apertava, ao ouvir aquele quinquagenario, com cara tão
horrenda, +ão maltratada, forjar ponto por ponto tão ex+rava-
garife romance de amor: mostrava muito bem o que o pavor
do castigo pode engendrar numa alma fraca. Talvez, com
.ofeito, ele houvesse avistado alquem pela lucarna, e a loucura
~que crescia dentro de si, alimentada pelo medo, encontrou
uma saida, uma forma. Esse desgra ado soldado, que decerto
durante sua vida toda não sonhara nunca com lindas harinias,
inventava de sUbito um romance, e a ele se agarrava, furiosa-
menfe. Preveni os outros presos, mas quando estes lhe qui-
#
278
DOSTOIEVSKI
seram fazer perguntas, o homem guardou um silencio pudico.
No dia seguinte, o medico o interrogou longamenfe, e como
ele pretendia não sofrer de molesfia nenhuma, e a auscu!+,, 3o
nada revelava, inscreveram-no para a saida. Depois da par-
tida dos medicos, quando ia não era possivel preveni-los
do que se tratava, verificamos que eles haviam escrito na
papeleta: "Sanat est". Ali s, que poderiamos n¢s fazer, na-
da sabendo de preciso? A responsabilidade do caso cabia
a nossa admini.,ifra ão, que não indicara por que motivo fora
aquele homem mandado ao hospital. Cometeram uma ne-
glig ncia imperdoavel. Contudo, aqueles que o haviam con-
siderado doente, desconfiavam decerto de alguma cousa. pois
tinham querido por o desgra ado em observa ão. Seja co-
mo for, ao cabo de dois dias foi ele fustigado. Parece que -a
puni ão o deixou at"nito: quando o trouxeram ante os solda-
dos, come ou a gritar, pe indo socorro. Dessa vez não o
mandaram para a nossa enfermaria, onde faltavam leitos;
ins+alaram-no na outra. Indaguei dele, e soube que durante
cito dias não proferira uma palavra, de +ai forma se sentia
envergonhado e triste. . . Afinal, quando ficou com as cos-
+as saradas, mandaram-no não sei para onde. Nunca mais
ouvi falar no seu nome.
No que se refere a tratamento e rem-edios, tanto quanto
o pude julgar, os presos que não estavam gravemente doen-
fes não obedeciam nunca ao recei+uario e nSo tomavam os
remedios; mas os doentes graves gostavam de se tratar e en-
guliam pontualmente as po ões, os pos, embora guardando
preferencia pelos medicamentos de uso externo. Suporta-
vam de bom grado e n io sem certo prazer as ventosas, as
sanguessugas, as cataplasmas, sangrias, +ai e a cega confian a
que o povo +em nisso tudo. - Um fato curioso fambem me
despertou interesse: certos cama,ra l~as, que suportavam com
paciencia as dores abominaveis da flagela ão, torciam-se,
gemiam com uma simples ventosa. Teriam ficado assim +ão
sensiveis, ou apenas simulavam? E' preciso notar que as nos-
sas ventosas eram de um formato especial. Numa epoca
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
279
,que n¡nguem mais recordava, um enfermeiro estragara a ma-
quina que faz com que a pele se abra instantaneamente -
ou talvez a m quina se quebrara soz¡rina. Era pois necess rio
1 , recorrer a lanceta. Para uma ventosa, são precisas doze inci-
soes que, feitas a maquina, não doem muito: uma cluzia de
#

liminas fere a pele dum s¢ golpe, sem que se tenha tempo


para sentir a dor. Não acontece o mesmo com a lanceta,
que corta lentamente e faz sofrer muito; se, por exemplo, para
dez ventosas são feitas na pele cento e vinte incisões, a cou-
~sa dura, necessa riam ente. Eu proprio o experimentei: era
bem desagraclavel de suportar, mas não a ponto do pacien-
fe não se poder dominar, o gemer. Nada mais c"mico
que ver aqueles rapag6es fortes lamen+arem-se, +circerem-se.
Podiam ser comparados a esses homens que são ¡mpassiveis
- nos negocios graves, e que em casa se mostram incessante-
mente caprichosos, resmun98es, zangam-se por um nada, não
querem que se lhes sirva a comida, exal+am-se, queixam-se,
fudo esf6 errado, tudo os ofende, os atormenta, - em suma,
a fartui-a que os irrita, segundo diz a expressão popular. No
presidio, por causa da cohabita ão for ada, os temperamentos
dessa especie eram por demais frequentes. E o remedio, na
1 , nossa enfermaria, era levar
a ridiculo um desses impertineM-es
ou, singelamente, cobri-lo de insultos; ele se calava então,
como se so houvesse esperado aquilo para fechar a boca. Us-
fianfsev principalmente, detestava caretas, e nao perdia opor-
funidade de rixar com os de "pele fina". Ali s, não esquecia
nunca de chamar os outros ... ordem. Isso era nele uma ne-
cessidade, criada tanto pela doen a como pela estupidez.
Acontecia-lhe olhar fixamente alguem, e depois lhe pregar ujm
sermão, com voz placida e convicta. Repreendia tão bem,
que parecia encarregado da boa ordem geral.
- Tem que meter o bico em toda parte. diziam rindo
os for ados. Contudo, poupavam-no, evitavam brigar com
-ele, e não lhe faziam senão alguma zombaria de raro em raro.
- Como fala! homem oara encher +r s carradas de
mentiras!
#

280 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA CA


SA DOS MORTOS 281
- A gente estraga fâlego falando com esse cretino.
O1
Por que gritas com a lanceta? Comeste a carne e agora r'*
os ossos. Aquenta firme!
- Que e que tens com isso, afinal?
- Não, meus filhos, interrompia um dos presos-, venfcsa
não e nada, ia provei delas. O pior de tudo e quando pu-~
xam a orelha da gente muito tempo.
Todos desataram a rir.
- J6 te puxaram as orelhas tanto assim?
- Então!
- por isso que elas são desse +amanho?
O de-tento, que interrompera a discussão. certo Cha-
pkine, tinha com efeito orelhas enormes e salientes. Era um
vagabundo ainda mo o, ajuizado, manso; falava sempre com
imperturbavel seriedade, porem com um bom humor disfar-
ado que dava grande comicidade as suas hisforias.
- Mas seu burro, como e que voc quer que eu saiba
que lhe puxaram as orelhas? imiscuia-se de novo Ustianfsev,
volfando-se indignado para os lados de Chapkine, embora
este se houvesse dirigido a todos; contudo Chapkine não se
dignava presfar-lhe aten ão.
- E quem foi que as puxou? perguntou alguem.
- Quem? Ora quem! foi o capitão Ispravnik. No
meu tempo de vagabundagem, rapazes! Esfavamos então
em K., nos dois, -eu e um outro - um vagabundo f ambem.
Chamava-se lefime. !Em caminho, em Tolmina, em casa dum
mujique nosso amigo, a gente se esquentou um pouco. H
por Ia uma aldeia que se chama assim mesmo, Tolmina * Che-
gamos, e demos uma espiada em redor, para ver se havia al-
guma coisa a fazer. Todo o mundo conhece como e: no cam-
po a gente tem suas quaf ro liberdades, mas na, cidade e um
horror. Ninguem sabe o que fazer! Então entramos num
botequim, oNamos, e vimos vir em nossa dire ão um homem
com fr s buracos no cotovelo, roupa a moda alemã. Veio
!ogo dizendo:
Com licen a, trazem os seus documenfos?
Não, não temos documentos.
I
"- Ah, Ofimo! eu +ambem não os +enho! Andarri comi-
go dois companheiros engajados com o coronel Kukuchkin (2).
Assim, queriamos perguntar se podiam nos oferecer um go-
le ... estamos a nenhum. . ,
"_ Com grande prazer, respondemos. Erifão bebemos.
Ele nos falou num bom golpe a dar numa casa no fim da
cidade, onde um burgues rico morava no meio de tanta
#

coisa boa que ate se perdia. E resolvemos ir Ia ... noite.


Mas apenas chegamos, nos cinco fomos agarrados. Leva-
ram-nos a delegacia, a presen a do ispravnik. "Vou inter-
roga-los pessoalmenfe", disse ele. Vinha com o cachimbo,
e lhe trouxeram uma chicara de cha. Era um homenzarrão
gordo, estalando de saude, a cara enfeitada de sui as. Sen-
tou-se. Fora nos, tinham trazido mais tr s passaros, vaga-
bundos fambem. Bicho excluisifo e vagabundo, pessoal, não
se lembra absolutamente de nada: nem que leve uma paula-
da na cabe a, não sai cousa nenhuma, esquece tudo.
"E de repente, o ispravnik pegou-se comigo:
"- Quem s +u? - Berrava como um tonel vazio. E e
claro que eu respondi como os outros:
"- Não sei, Excelencia, esqueci ...
"- iEspera um pouco que ainda +e digo quem tu es.
Conhe o o teu focinho, falou-me olhando no branco dos
olhos. Mas eu nunca lhe pusera a vista em cima. O ho-
mem virou-se para outro:
E tu, quem es?
Sou o "Perna para que +e quero", Excelencia.
esse o teu nome, "Perna para que +e quero"?
Sim, e o meu nome, Excelencial
Bem, va Ia, "Perna para que +e quero"!? E +u?
perguntou a um terceiro.
Eu? "Vou com ele", Excelencia.
Sim, porem como +e chamas?
como eu disse: chamo-me "Vou com ele", Exce-
lencial
(2) Alegoria significando a floresta onde canta o cuco. Quer dizer que são
tarribern vagabundos. (Nota do Autor).
20
#

282 DOSTOIEVSKI RECORDAC6ES


DA CASA DOS MORTOS 283
"- E quem +e p"s esse nome, cachorro?
"- Gente muito boa, Excelencial Não falta gente
boa neste mundo, e coisa sabida, Excelencia.
"- Ora, quem era essa gen~e Loa?
Não feão nenhuma mernoria, Excelencia; queira
ter a bondade de me perdoar.
"- Então esqueceste essa gente?
1 o
- Isso mesmo, Excelencia!
"- Mas decerto tiveste pai e mãe? Com certeza te
lembras deles?
"- de crer que tenha +ido, Excelencia; mas não me
lembro; esqueci tudo!
"- Bem! E onde viveste, ate agora?
"- Na mata, Excelencia!
"- Sempre nas matas?
Sim, sempre.
E no inverno?
No inverno? Não sei o que e isso, Excelencia.
11
- Esfa bem! E tu, como +e chamas?
Machadinha, Excelencia.
E tu?
"- "Come e não pia", Excelencia!
E +u?
"Sai da¡", Excelencia!
"- Então estão todos desmernoriados?
"- Isso mesmo, Excelencia!
"O homem se pOs de pe, sorriu, de tal modo que nos
não pudemos deixar de sorrir fambem.
"Mas de outras vezes a coisa não corre +ão facil. Batem
na gente bem no meio da boca, quebrando os dentes, so
para estragar a cara. um pessoal que vive gordo e sadio!
"- Levem essa turma para o xadrez, que depois cuido
deles.
"E o ispravnik virou-se para mim:
"- Tu, fica sentado a11
"Olhei, havia uma mesa, papel, pena. Pensei: "Que 6
que ele quer arrumar?"
"- Sentai-te ... mesa, disse o homem, toma
escreve, anda!
"Segurou-me a orelha. E p"s-se a puxar por ela. Olhei-o
como o diabo olharia para um pope, e falei:
"- Não sei escrever, Excelencial
"- Escreve de qualquer modo!
o
- Tenha d', Excelencia!
#
"- Escreve como puderes, anda, escreve!
"E me puxava a orelha todo o tempo. Puxava e torcia.
Isso mesmo, meus irmãos, garanto que preferia trezentos a oi-
fes aquilo. Estava vendo estrelas. E ele s6 fazia repetir:
"Escreve, anda, escreve!"
- Estava doido ou o que era?
- Doido nada! Mas certo tempo antes, em T., um
escrivão dera um golpe: apanhou todo o dinheiro em caixa
e fugiu. O sujeito tinha orelhas cabanas; mandaram o sinal
para toda parte e eu correspondia a indica ão. Por isso o
espravnik queria saber como e que eu escrevia.
- Que sujeito! E doia?
- Se doia!
Nova gargalhada estrondou.
- E então, escreveste?
- Quer dizer que fiz a pena andar em cima do papel,
e afinal, ele me largou. Deu-me umas dez bofetadas e de-
pois me mandou para o xadrez, claro ...
tu sabes -escrever realmenfe?
Aprencl¡ ha muito tempo, mas depois que estão
usando penas de a o não tenho mais jeito ...
Eis com que hisforias, ou melhor, com que tagarelice a
gente mafeva o tempo. Meu Reus, que +edio mortal! Os
dias eram compridos, abafantes, mon¢tonos. Se ao menos
fivessemos livros! Frequentemente, de inicio, eu ia para o
hospital, as vezes por doen a, as vezes para repousar, para
sair do presidio onde a vida era ainda mais dura: sempre a
maldade, a inimizade, o odio, sempre rostos asperos, amea-
adores; sempre aquelas lutas, aquelas rixas, com que nos
#

284
DOSTOIEVSKI
perseguiam a n6s, os barines! No hospifal, pelo menos, es-
favamos em pe de igualdade, viviamos como companheiros.
O momento mais triste durante o dia focio, era o cair da
+arde e o come o da noife. ... luz das candeias. Deitava-
mo-nos cedo. Uma lampa¡rina ba a brilhava ao longe, perto
da porta, como um ponto luminoso, e no nosso canto era
completa a escuridão. O ar se tornava nauseante. Um
doenfe que não consegue adormecer, levanfa-se. Fica hora
e meia senfado na cama, de roupão, gorro de dormir, a ca-
be a inclinada, como mergulhado em suas reflexões. Olho-o
duran+e uma hora. e para matar o fempo, procuro adivinhar
ú que ele pensa. Ou então, ponho-me a sonhar, a reviver
ú passado. O graride, o luminoso quadro das recorda ões
se desenha, e revejo certos detalhes que em outros tempos
feria esquecido, ou sentido com menos for a. E mais +arde,
imagino o futuro. Que me aconfecera, depois do presidio?
Para onde irei depois? Poderei voltar a minha terra? Pen-
so, penso fan+o que minha alma freme de esperan a ...
Outra vez, ponho-me a contar: um, dois, fres, para chamar
o sono. Chequei algumas vezes a confar assim af quafro
mil sem conseguir adormecer. Um doente se mexe, Ustian-
tsev tosse, com aquela fosse espessa de fisico, depois geme
fracamente e resmunga: "Senhor, pequei!" Oh, como e
horrivel escutar, no meio do silencio geral, aquela voz desfa-
lecenfe e quebrada! No canto, Ia ao fundo, +ambem não
se dorme; dois doenfes conversam, estirados na cama. Um
deles se põe a desfiar o seu passado, fala de cousas longin-
quas, esquecidas, das suas vagabundagens, dos filhos, da
mulher, da sua vida arrumada de outrora. Adivinha-se pelos
seus murmurios que tudo de que o homem fala não +ornara
mais, qua ele ia não passa dum membro decepado, rejeifado.
O outro escufa, calado. Ouve-se apenas um cochicho morio-
tono, regular como o marulho dagua que mina da +erra.
Lembro-me de que eu farribem, numa inferminavel noite de
inverno, escutei assim uma his+6ria que a principio me pare-
ceu um pesadelo abominavel, engendrado pelo delirio e pela
febre. .---
I
i
IV

O marido de Mulka
(histo6a)
#

Era hora tardia, - meia-noite, falvez. Acordei sobressai-


fado, depois de um sono curto. A luz incerta da Iam-
pariria deixava a enfermaria numa penumbra. . . Quase
todos os doentes ia repousavam, inclusive Usfian+sev. Ouvia-
se, afraves do silencio, sua respira ão penosa, o seu esfer+or
a cada golfada de ar. O passo da senfinela que se apro-
ximava para substituir a outra ressoou de sUbifo no fundo do
corredor. Uma coronha bafeu pesadamen+e no soalho.
Abriram a sala. O cabo veio fazer o controle dos doen+es,
caminhando com precau ão. Um minu+o apos, a porta fe-
chou-se, colocaram a sentinela nova, a patrulha se afaslou e
foi restabelecido o silencio. S¢ então notei, perto de mirri,

286
,DO S,TO I EVSKI
a esquerda, dois homens que não dormiam, e conversavam
num sussurro. Acontece, as vezes, nas salas de hospital,
ficarem dois homens deitados duran+e dias e meses um ao
lado do outro, sem trocar palavra; depois, de repente, como
se obedecessem ao sorfilegio da hora noturna, travam con-
versa. E então, um principia a desenrolar diante do outro
todo o seu passado.
A palestra deveria durar ia ha muito tempo. O come-
o me escapara, e nem todas as palavras me alcan avam dis-
finfamente; mas, pouco a pouco, me habituei ao som delas
e acabei entendendo tudo. Não tinha vonfaide de dormir;
que havia de fazer senão escutar? Um dos doentes contava
com calor, semi-dei+ado no leito, com a cabe a erguida e vol-
+ada para o lado do outro. Via-se que se sentia a+ormen-
+ado, superexcitado, presa- da necessidade de desabafar.
Seu confidente estava sentado na cama, as pernas -estiradas,
numa atitude sombria e indiferente. Rosnava de tempos em
tempos uma vaga resposta ou um sinal de assentimento, mas
fazia-o por polidez, -e em todo o tempo metia os dedos na
fabaqueira de chifre e enchia o nariz de rape. Era Tchere-
vine, um correcional duns cinquenfa anos, horrivelmente per-
nosfico, frio argumentador, pretensioso, ressumando amor-
proprio. Chichkov, o narrador, era homem duns trinta anos,
um de nossos for ados civis. empregado na oficina de cos-
tura. Ate então eu quase não lhe prestara a+en 3o nenhu-
ma, e depois, durante todo o resto da minha pena, não me
despertou nunca o minimo interesse, por causa da sua vai-
dade e do seu es+abariamenfo. As vezes ficava taciturno,
amuado, assumia uma atitude grosseira e passava semanas
sem falar. Outras vezes, engo'ifava-se todo numa his+oria
qualquer, inflamava-se a-toa, corria de alojamento em alo-
lamento para repetir mexericos, calunias, que pareciam p0-lo
fora de si. Depressa fazia com que o espancassem, e de
novo se calava, porque era covarde e fraco. Todos o +ra-
+avam com grande altivez. Era de es~afura media, mui+o
magro, com olhos ora abstratos, ora estupidamente pen-
I
RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS
287
safivos. Assim que contava alguma cousa. enfebrecia e
gesticulava. E não ia muito longe - in+errornpia-se, muda-
#

1 'ha 1 i - -1 -1
va de assun~o, emeru¡ -se nos ...'-a,hes ou o f*10 d3
historia. R¡xava com frequencia; quando injuriava alguem
acusava-o logo de lhe querer mal: fingia, então, um ar como-
.vido, e choramingava. Tocava balalaica muito bem, e du-
rante as festas, era facil faz -lo d irisar. Alias era facil e rapi-
do leva-lo a fazer qualquer cousa, não que fosse obediente,
mas porque gostava de conquistar camaradas e lhes ser
agradavel.
Durante muito tempo, não compreend , nada do que
Chichkov contava. Parecia-me que ele a toda hora se afas-
+ava do assunto. Talvez houvesse observado que Tchere-
vine s0 lhe prestava uma aten ão dis+raida, em vez de se
mostrar todo ouvidos, entretanto preferia ignorar essa indi-
feren a, a formalizar-se.
- Quando ele ia a feira, narrava Chichkov, todo o
mundo o saudava. lhe tirava o chapeu ... Era um rica o!
- Negociava?
- Sim, negociava. E 16 entre n6s a pobreza e grande.
Uma miseria. As mulheres vão buscar agua no rio, para
regar as hortas; labutam que e um horror, e, assim mesmo,
quando chega o outono, não t m um pe de couve para a sopa.
E' uma desgra a! Porem esse camarada possuia um bom pe-
Ja o de ferra, +r s trabalhadores, vendia mel e gado, era por
~odos muito considerado. Mas ia estava com setenta anos,
bem velho, e os ossos lhe pesavam. Tinha a cabe a toda
branca. Quando chegava na feira, com o capote de pele
de raposa, todo o mundo o cumprimentava. SO se ouvia
isto: "Bom-dia, paizinho Ankudime Trophimyfch!" E ele
respondia: "Bom-dia, meu amigo!" Não fazia pouco de
ninguem. "Saude, Ankudime Trophimyfch!" - "E os +eus
negocios como vão?" peFguntava ele. - "Os negocios v5o
como nozes brancas (1). E os seus?" - "iEh, +ornava o ve-
(1) Proverbio russo que denota impossibilidade. (N. de R. Q)
#

288
IL I
DOSTOIEVSKI
o. nos fambem vivemos por mal dos nossos pecados, pu-
xando o diabo pelo rabo." - "Deus o guarde, Ankudime
Troph;rnyfch!" Parei encurtar a histor¡a, fica sabendo que
ele não desprezava ninguem, e quando falava, cada palavra
que dizia valia um rublo. Lia muito, sabia muito, e entendia
dos livros sanfos que era uma beleza! Mandava a velha dele
senfar, e dizia: "Escuta, mulher, procura compreender!" e ex-
plicava tudo. A velha, e bom dizer, não era assim tão
velha, pois Ankudime casara duas vezes, para fer filhos. A
primeira mulher fora esferil, mas a segunda Maria Sfepa
noviria, finha-lhe dado um casal: o ultimo, Vassia, nascera
quando o pai ia tinha mais de sessenfa anos, porem a filha,
Akulka, era rapariga duns dezoito anos.
- E era essa a fua mulher?
- Espera um pouco! Foi ai que Filka Morozov foi
falar com o velho: "Vamos fazer confas. Ankudime-, devol-
ve-rqe os quatrocentos rublos, ia não sou feu trabalhador,
não q"uero mais negocios contigo, nem quero mais saber da
tua Akulka! Agora quero e gozar a vida. Meus pais mor-
reram, vou beber meus cobres; depois, quando acabar, senfo
pra a e dentro de dez anos volto aqui feito marechal de
campo." Ankudime devolveu-lhe o dinheiro, tudo que tinha
dele, pois negociara de sociedade com o pai de FiIka. "Tu
es um perdido", virou-se o velho para Filka. E Filka respon-
deu: "Não me importo; esfou farfo da fua casa, velho barbu-
do, velho ladrão! Na fua casa a genfe aprende ate a beber
leife com uma sovela. Tu economizas dois vinfenS e junfas
af as varreduras, como se quisesses fazer a sopa com -elas!
Pois vou viver como enfendo e não me caso com a fua Mul-
ka! Ja dormi com ela, sem precisar de casamento!" - "C,
que? berrou Ankudime. Tens coragem de ofender um pai
honrado e uma mo a honrada? Quando foi que dormiste
com ela, cachorro, velhaco, vagabundo?" O velho fremia
a ra va - foi Fili a que o confou, mais +arde. -
"Isso, mesmo, replicou Filka-, e não a desejo mais. E agora*
Muli a, não 3 hara mais quem a queira, porque esta deshon-
He +An+
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
289
rada - nem mesmo Mikifa Grigorifch a querer . Desde o
#

outono passado que n6s andamos juntos. Agora, nSo a ace~o


rem por cem caranguejos ... Faze a prova, da-me os cem
caranguejos e ver is que não a quero mesmo. . . " E depois,
o rapaz come ou uma orgia pavorosa. Fazia tremer a ferra,
fão grande era a farra. Tinha amigos, tinha dinheiro; du-
rante +r s meses seguidos desmandou-se sem parar. E dizia:
"Esperem um pouco; quando o cobre se acabar eu vendo
a casa, liquido tudo e, em seguida, assento pra a ou viro
vagabundo." Vivia b bedo, de manhã' a noite, e passeava
de carro, com guizos no pesco o dos cavalos. As raparigas
andavam loucas por ele. Sabia focar citara muito bem.
- E ele tinha então andado mesmo com Akulka?
- Cala a boca! Espera que eu conte. Eu +ambem
tinha enterrado meu pai; minha mãe fazia doces, trabalhava
para Ankudime, o assim iamos fendo com que comer e mais
nada. As coisas não andavam muito bem, Ia em casa.
Tinhamos um campo, por defras da mafa, e nele plarifava-
mos frigo; mas depois da morfe do.meu pai vendemos tudo,
porque eu fambem andava na farra. E tirava os cobres da
velha a for a de pancada. . .
- Fazias muito mal., isso e um pecado muito feio.
- Olha, rapaz, em geral me aconfecia esfar b bedo
e a e
de manhã af' ~ noite. Na nossa casa, podia-se a+' fazer
ca adas dentro! Esfava toda indo abaixo, porem era nossa;
as vezes a genfe passava fome, ficava mastigando frapos du-
ranfe semanas. Minha mãe me enchia de descomposturas,
mas eu pouco me importava. Nesse tempo não me sepa-
rava de Filka um instante. Ele dizia: "Toca a balalaica e
dansa, que eu vou ficar deitado, e fe jogo -dinheiro, porque
sou um rica o". E as coisas que ele inventava! Mas não
recebia nada que fosse roubado. "Eu, garantia ele, não sou
nenhum ladrão, sou um/',nomem de bem". "Agora, falou
uma vez, vamos sujar de alcatrão a porfa de Akuika (2) por-
(2) Costurne popular apontando ao desprezo p blico as raparigas que lha
viam
P~caclo contr~ ~ ~astidade. (N. de R. Q1 ,
#

290 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA


CASA DOS MORTOS 291
que não quero que ela se case com Mikita Grigori+ch. Levo
isso muito a peito!" J6 ha muito tempo o velho queria dar
a filha a Miki'J-a Gr~gorif . Esse MIk*;fa era cufro ve!ho,
viuvo, que usava oculos e +arribem comerciava. Mas assim
que ouviu contar essas historias a respeito de Akuika, pos-se
de fora! Explicou ao amigo: "Para mim, Ankudime Trophi-
my+ch, seria uma grande vergonha, e alem disso, na minha
idade, não fa o questão de casar." E pintamos de alcatrão
a porta de Akulka. Por causa disso, os pais deram-lhe uma
surra, mM que surra! Maria Stepanovna gritava: " Dou
cabo dela!" E o velho: "Antigamente, no tempo dos san-
+os patriarcas, eu poderia ma+a-la a machado, em cima de
uma fogueira; porem hoje em dia o mundo e apenas corrup ão
e trevas!" As vezes os vizinhos da rua inteira escutavam os
gritos de Akulka, porque a a oitavam de manhã ... noite. E
Filka ainda por cima gritava: "A mo a e de luxo, meus
amigos. Muito limpa, com roupa branca bonita - não se
pode pedir mais! Isso mesmo ia atirei a cara do velho, para
que não o esque a!" ... Certa vez, por essa poca, en-
confrei Akulka carregada com dois baldes, e gritei: "Bom-
dia, Mulina Kudimova. Saude, beleza! Deixa de orgulho
e dize com quem est s vivendo agora!" Falei s0 isso, e ela
me fitou com uns olhos maiores que dois por+ões ... Alias,
estava magra como um palito. Enquanto ela me olhava, a
mãe pensou que a mo a estava de prosa comigo, e gritou da
porta: "Mos+ra-lhe os dentes, senvergonha!" E nesse dia
deram-lhe outra surra. As vezes, a oitavam-na durante uma
hora inteira. "Dou-lhe de chicote ate liquida-la, gritava a
mãe, porque ia não e mais minha filha!"
Mas escuta, ela vivia mesmo na pouca vergonha?
Espera, escuta ainda, meu velho. Filka e eu não
paravamos de nos embriagar juntos. Uma vez, quando eu
estava deitado, chegou minha mãe ralhando: "Por que estas
ai de papo para o ar, desgra ado, porcaria, sujeira! O que
deverias fazer era casar! Casa com Akulka, eles terão
O
muito gosto em se livrar da filha, e tu recebe s trezentos
rublos, sem contar o mais que vira depois." Eu respondi-
"Mas todo o mundo sabe que e!a fo*, des~orrada!" 1m-
becil, retrucou a velha, a coroa (3) arranja tudo! Não perdes
nada: se ela pecou, h6 de eternamente ter medo de fi. E
a gente endireita a vida com o dote. Ja falei a Maria Sfe-
panovna, e ela não disse que não." então aceitei:
"Ponha vinte rublos em cima da mesa, que eu me casoY
Quer acredites ou não, a verdade e que ate o dia do casa-
mento -estive todo o tempo de pileque. Mas Filka Morozov
vivia me amea ando: "Quando fores marido de Akulka,
#

quebro-te as costelas e dormirei todas as noites com ela."


"Isso so vendo, carne de cão!" - Porem ele me insultou tanto,
diante da rua inteira, que corri Ia em casa e disse: "Não
caso mais se não me derem ia ia cinquenta rublos!"
- E deram-fe os cinquen+a rublos?
- Por que n3o? Nos não eramos gente ã-foa. Meu
pai,-perfo de morrer, foi arruinado por um incendio: contudo,
antes disso, era talvez mais rico que eles. Ankudime veio
nos chamar de miseraveis, de esfarrapados. . . "E sua porta
(respondi eu) não esta suja de pixe?" O velho +ornou: "To-
pete e o que não +e falta! Prova que a minha filha esta de-
shorirada! A gente não pode tapar a boca do povo com um
len o. Pelas chagas de Cristo, vai-M embora daqui! Oas de-
volve o meu dinheiro!" Então combinei com Filka mandar di-
zer ao velho, por in+ermedio de Mifri Bykov, que o haveria de
arrastar na rua da amargura; e ate o dia do casamento, nãc,
podes calcular quanto bebi, rapaz! So na igreja foi que voltei
a mim. Quando nos trouxeram depois do casamento, manda-
ram-nos sentar, a Mi+rophane Sfispani+ch, que era fio dela, fa-
lou: "Embora o negocio não tenha sido honesto, esta fecha-
do, e acabou bem!" O velho Ankudime bebera o seu golezi-
nho, e choravalan+o que as lagrimas lhe desciam pela barba.
Mas eu, que nao era tolo, meti um chicote no bolso antes de
ir para a igreja. Tinha-o levado para o usar em Akulka,
(3) A coroa nupcial que as noivas russas usavam por ocasião das bodas. (R
de P, Q)
#

292
DOSTOIEVSKI

para ela ficar sabendo que nab,,,;e deve apanhar marido com
enganos deshorirosos, e que 4 não era o idiota que ela
-pensava ... 1%
- Muito bem, querias que ela provasse logo do que
a esperava!
- Ah, meu velho, tu conclues muito depressa; espera e
veras. Em casa, logo que saimos da igreja, levaram os re-
cem-casados para um quarto, enquanto os outros bebiam e
esperavam. E então, fiquei sozinho com Akulka na alcova.
Ela estava sentada sem se mexer, sem uma gota de sangue
no rosto. Tinha um medo pavoroso. Os cabelos claros
como linho e os olhos enormes. Não dizia nunca uma pala-
vra, ninguem lhe ouvia a fala, era como uma muda, dentro
de casa. Rapariga engra ada! Pois bem - has de crer?
Eu estava com o chicote pronto em cima da cama, e a ino-
cenfe não tinha culpa nenhuma, nenhuma - era pura como
um anjo.
Não e possivel!
Pura, pura, sou eu que te digo. Honesta como uma
filha honesta de casa honesta. E por que sofrera todos aque-
les formen+os? Por que Filka Morozov a difamara diante de
todo o mundo?
- Sim, sim ...
- En+So saltei da cama, p¢s-me de joelhos, juntei as
mãos, e exclamei: "Perdoa-me Mulina Kudimova, fui um idio-
+a em ter acreditado nisso tudo, perdoa ao band , ido que eu
sou!" Ela estava sentada na minha frente, na cama, olhava-
me. com as duas mãos nos meus ombros, e p"s-se a r*.r,
chorando ao mesmo tempo. Ah, seu mano, chorava e ria!
Então fui procurar os outros: "Escuterri, disse eu, Filka que
fuja de se encontrar comigo, porque juro que n3o ha de
viver muito tempo neste mundo!" Os velhos ficaram sem
saber a que santo acenderiam velas! a mãe quase se atirou
aos p s da filha, solu ando, e o velho falou: "Se nos sou-
bessemos, não seria um marido como esse que +e dariamos,
minha filha querida!" Quando no domingo seguinte fomos
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
O
I
293
juntos a igreja, eu levava um gorro de pele de cordeiro, um
lindo cafe+S de pano fino, e uma cal a de veludo. Ela usava
#

um abrigo novo, de pele de lebre, um f ichu de seda, -enfim,


estavamos dignos um do outro. Não sou mal parecido, e
Akulka não era pior que as dernais; pode-se diz--r que valia
por dez, sem gabolice ...
- Então tudo ia pelo melhor!
- Espera o resto! No dia seguinte ao casamento, em-
bora b bedo. deixei os convidados e corri pela rua toda.
gritando: '7ragarri-me aqui Filka Morozov, apare a-me aqui
esse velhaco!" E fui gritando assim ate ao mercado! Mas
como eu te contei, estava b bedo e fui barrar na porta da
.casa dos VIassovi; agarraram-me e +r s homens me trouxeram
a for a para casa. Todo o mundo falava naquilo, na cidade,
e as raparigas, quando se encontravam no mercado, cochi-
chavam: "J soubeste, heiri? Akulka ainda tinha a inocencia
dela!" Algum tempo depois, diante de uma por ão de
gente, encontrei Filka, que me disse: "Vencle-me a tua
mulher, que ter s com que beber. Faze como o soldado lach-
ka, que casou de propOsi+o para isso: não se deitou nunca
-com a mulher, e durante +r s anos não ficou a seco um ins-
+anfe." E eu lhe respondi: "Tu es um sujo!" - "E tu, replicou
ele, não passas dum grandissimo cretino. Casararri-+e quando
estavas b bedo, hein?" Chequei em casa e grifei para o
pessoal: "Voc s arranjaram um jei+ão de me casar quando eu
estava b bedo!" A m5e de Akulka agarrou-se comigo, mas
eu lhe disse: "Tu, mãezinha, tens as orelhas tapadas com
o feu ouro! Traze Akulka aqui!" En+ão, durante duas horas
seguidas bati nela, bati ate rolar no chão. Depois disso,
Akuika ficou +r s semanas de cama, sem poder se levan+ar!
- claro, a , provou fleumaticamente Tcheverine -
quando a gente não lhes da pancada, elas ... Então tu a
encontraste com um namorado?
- Não, i~so não posso dizer, confessou com magoa
Chichkov, depois de um sil-encio. Eu, porem, estava furioso,
furioso. Todo o mundo zombava de mim, e o chefe da
#

294 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA


CASA DOS MORTO
+ro a era Fili a. "Tua mulher foi feita )ara os olhos dos
homens!" dizia ele. Um dia convidou-~.,s para beber em
sua casa, e p"s-se a falar: "Minha m¡ u!he fern Lorn cora ao,
e bem educada, bem parecida, delicada, amavel para todo
o mundo", esta a cantiga dele, agora! Entretanto não faz
tempo que foi sujar de pixe a porta de Akuikal" Mas como
eu estava b bedo nessa hora, ele me segurou pelo cabelo
e me derrubou. "Dansa, maridinho de Muli a, dansa en-
quanto +e seguro pelos cabelos, dansa para me distrair!"
- "Cachorro, bandido!" grifei. E ele: "Vou contigo a tua
casa, e na tua frente darei tanta palmada em Akulka, tantas
quanto o cora ao me pe ai" E ai, quer acredites ou não,
não me atrevi a por os pes fora na rua durante um m s in-
feiro, +ai o medo que eu tinha que ele me viesse fazer de-
sordem em casa. E fambern foi por causa disso que comecei
a espanca-ia ...
- Por que a espancavas com tanta for a? A gente pode
amarrar as mãos das mulheres, mas não a lingua. Não se
deve surr -las demais. Corrigir um pouco, e depois aca-
rinhar. assim que elas gostam! para isso foram feitas.
Chichkov calou-se um momento.
- Não podia engolir aquela hisforia, tornou ale, e
acabei me habituando a esparicãi-la; em cerfos dias, baL
fia-lhe da manhã a noite: porque ela não se levantava na
hora, porque não caminhava do meu gosto. Quando não
a surrava, fazia-me falta. As vezes ela ficava sentada junto da
janela, chorando como uma Madalena e doia-me v -la chorar,
tinha pena dela, porem batia assim mesmo. E minha mãe ma
descompunha por causa dela: "Bandido, dizia a velha. crimi-
noso!" E eu berrava então: "Sim, ainda a mato, e voc
não +em direito de me dizer nada, pois foi quem me meteu
nisso!" No come o, o velho Ankudime farriberin quis dar
palpite: "Deus não +e fez diferente dos outros, hei de arranjar
um jeito de te dar juizo!" Mas teve que dar para +ras. E
Maria Sfepanovna tambem fiou fino, comigo: um dia veio
me implorar, banhada em pranto: Ivan Sernin~ofich, quero
I
f
te pedir uma cousa'. para +i não e nada mas para mim e
Muitol, o E se ajoelhou aos meus p s. "Abranda esse cora-
go, perdoa ... minha filha! Essa gente ruim fala mal dela,
confuido bem sabes como a recebeste. . . " E ficou estirada no
chão chorando. Então fiquei danado: "Cale essa boca,
não quero ouvir nada! Agora vou fazer o que me der na ca-
be a; fiquei doido, doido, ouviu? E Filka Morozov e meu
amigo, - meu melhor amigoW
#

- Então voc s andavam de novo bebendo juntos?


- Juntos? Eu não chegava nem perto dele. Fili a ia
bebera tudo o que possuia, e ia assentar pra a no lugar do
filho dum rica o. L6 na nossa +erra. quando a gente assenta
pra a no lugar de alguem, fica em casa do engajador como
na casa da sogra, e faz-se o que se quer. Recebe~se o di-
nheiro todo de uma vez, na hora da partida, mas enquanto
se espera, fica-se na casa do pai do recrufa as vezes at seis
meses. O que esses rapazes inventam, o que arranjam, para
danar o pessoal, nem se pode conceber! Os velhos s6 o
que podem fazer e cobrir os icones das paredes, e dar lugar
ao homem! E ele berra: "Voc s querem muito que eu
va ser soldado no lugar do seu filho, não e? Então tem
que_,me considerar seu benfeitor e me agradecer muito,
senão, nada feito, e vou caindo fora!" E, assim, o nosso
Filka ia comendo do bom e do melhor na casa do rica o,
dormia com a mo a, e todas as noites depois do jantar pu-
xava as barbas do velho. Diverfia-se como diabo! Diaria-
mente queria um banho, e com vapor de vodca, ainda por
cimal As mulheres tinham que o carregar no colo. Quando
voltava da orgia, ficava berrando no meio da rua: "Não
quero entrar pela porta, ponham a cerca abaixo!" Então
abria-se uma passagem ao lado da porta e ele entrava por
16 ... Mas tudo +em um fim. Ele teve que ir mesmo para
o quartel, e acabou-se a bebedeira. Tinha um gen+So
enorme na'.~ua para assistir ... partida de Filka que fazia cum-
primen+os para todos os lados. Nesse momento, Akulka
vinha da hor+a. Assim que Fiika a avistou (ela vinha che-
#

296
DOSTOIEVSKI
gando em frente a nossa porta) gritou ao coche*!ro:
"Para!" E saltou da felega. Caminhou para ela. e se curvou
ate tocar o chão. "Minha lindeza, minha alma, meu moran-
quinho,com a ucar, amei-ie durante dois anos, e agora estão
me levando com banda de musica para o quarfel. Per-
doa-me, filha honesfa dum pai honesfo, porque muito pe-
quei contra ti. Esfe que esfa aqui a tua frenfe e um ca-
nalha, um perdido. Eu que fui o culpado de tudo." E de
novo se curvou af ao ch3o. Akulka a principio assus+ou-se
muito, depois falou, fazendo uma. mesura: "Perdoa-me
farribem. não tenho queixa nenhuma contra +i!" E eu, então,
enfrei afras dela em casa: "O que foi que lhe disseste, ca-
chorra?" pergunfei. E ela, acredites ou não acredites,
olhou-me de cara e confessou: "Sim, gosfo dele mais que
de tudo neste mundo!"
- Não e possivel!
- E eu, durante o dia inteiro. não abri a boca. So
quando escureceu. foi que disse: "Akulka, ainda +e ma+ol"
Sim, falei isso. ¶ noite não pude pregar olho; sai do quarfo.
fiquei bebendo kvass ate o romper do dia. Então voltei ao
quarfo. "Akulka, chamei,'acorda, vamos para o campo!"
J fazia algum fempo que era mesmo preciso ir ver o centeio
de modo que a minha velha ficou satisfeita. Isso mesmo!
respondeu ela. preciso fazer a colheita e j ha uns dois dias o
trabalhador anda doente." Preparei a +elega, sem dizer nada.
No fim da nossa cidade, mesmo na saida da rua, come a uma
mata dumas quinze verstas, e depois da mata ficava o nosso
campo. Quando esfavamos +r s vers+as dentro da mafa,
parei o cavalo. Akulka me olhou, assus+ou-se, e ficou de
pe, sem dizer nada. "Esfou farto de fi, continuei, anda, faze
tuas ora ões!" Segurei-a pelo cabelo - as +ran as dela
eram grossas, assim, enrolei-as na mão, aperfei-lhe o corpo
entre os joelhos, puxei a minha faca, derrubei sua cabe a
para tr s, e en+errei-lhe a faca na garganta. Ela deu um
grifo e o sangue -espirrou. Eri+So, atirei fora a faca, dei'
fei-a no chão, me abracei com ela, beijei-a, e fiquei berrando
21
4 k
/ I jb~ \
#

r
I
RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS
2"
---um possesso. Ela grifava sempre, eu lambem, e
mia, esfrebuchava, e o sangue me salpicava lodo. De
e, me invadiu um medo danado, i rguei-a, abandonei
, p£s-me a correr, corri ale chegar em casa. Enfrei
rfa¡ de fr s e fui para o banheiro do quintal. Era um
ro velho, quase caindo. Deitei-me no banco e
16. Não me mexi ale que a noite ficou bem escura.
E Akulka?
Ela? Ah, sim! Depois que corri. levanfou-se, de-
querendo lambem volfar para casa, pois a enconfraram
ou menos a uns cem passos do lugar onde a feri.
1 - Quer dizer que não estava degolada direito?
Sim
E Chichkov calou-se um momenfo.
1---, - verdade, observou Tcherevine, a gente +em uma
'010
; ~o
, veja que se nao e cortada logo ao primeiro golpe, a criatura
,,continua vivendo. e por mais sangue que derrame, nao morre.
1 1 - Ela, porem, morreu. Foi enconfrada a noite. Deram
o alarme, procuraram por mim, e me prenderam Ia mesmo
no banheiro ... Ja faz uns quatro anos que esfou aqui ...
acrescentou depois de um silencio.
- Hum! A verdade que quando a genfe, não as
espanca, nao arranja nada, declarou Tcherevine num fom
frio e sentencioso. Tornara a abrir a eterna +abaqueira.
Demorou fomando uma pilada, fazendo pausas. - Entretanto,
rapaz, foste um folo. Eu lambem apanhei minha mulher
;ACOm um namorado. Chamei-a para um alpendre. dobrei em
~~ , duas uma correia, e disse: "A quem foi que juraste ser fiei?
` · quem, bein?" E dei-lhe com a correia, dei com focla a
.~i1~ -,' for a do bra o, durante uma boa hora e meia, af que ela
--- grifou: "Lavo os teus pes e bebo a aqua depois!" Cha-
:1 mava-se Avdolia, menino! ...
#

'k
Primavera
come ara abril e estava proxima a Semana Santa. Pou-
co a pouco, iamos iniciando os trabalhos de verão. Cada
J dia o sol ia se tornando mais quente, mais brilhante; o
a r cheirava a primavera e atuava sobre os nossos nervos. A
9proxima ão da primavera perturba ate os homens que es-
fão debaixo da grilheta, desperta-lhes desejos, ardores, uma
s~agdade tristissima. Pensa-se com muito mais for a na li-
berdade sob os raios brilhantes do sol que durante as nevadas
Jo inverno, ou nos dias chuvosos do outono. E um fato
-, 4,n se pode observar entre os defentos: um dia bonito e
, l4ro os alegra, mas os torna tambern mais impacientes, mais
irritados. Constatei com efeito que, durante a primavera,
aumentavam as brigas. Ouviam-se mais frequentemente ba-
I
#

DOSTOIEVSKI
rulhos e gritos, surgiam hisforias, e ao mesmo tempo . , surpre-
endia-se de subito, em pleno trabalho, alguern fixar obstina-
darnenfe o olhar na disfane~a que azulava ao longe, 16 em
aixo, na outra margem do lr+ych, na qual, na extensão de
mil e quinhentas verstas, se desdobrava a vastidão incomensu-
ravel das estepes kirghizes. E um pesado suspiro subia ao
peito do homem, como se ele estivesse i rresisf ivelm ente atrai-
do por aquela planicie de ar livre que lhe haveria de curar
a alma,, esmagada e aprisionada. "Ai, meu DeusV' excla-
mava o for ado. e como para sacudir os sonhos, segurava
com gesto rude a enxada ou os tijolos que deveria frans-
portar dum lugar para outro. Depois de um ins+ante,esque-
cia aquela impressão fugitiva, e punha-se a rir ou a praguejar,
de acordo com o seu genio; ou, então, atacando a fa~efa
com uma febre repentina, inteiramente insolita e desmedida,
encarni ava-se no trabalho afim de sufocar a for a de fadiga
o tormento intimo que o roia. Os for ados s , So homens vi-
gorosos, a maioria na flor da idade, em plena posse das suas
nergias. Contudo, como lhes pesam tremendamente os ferros
nessa es+a ão! Não estou poefizando, e garanto a aufen-
ficidade do que digo. Quando chegam os dias bonitos,
quando o sol clareia, quando se ouve e sente em +orno de
os, com toda a alma, com todo o corpo, a nessurrei ão da
natureza -e a sua imensidão, - o presidio, os vigilantes, a
submissão a vontade alheia esmagam muito mais. Alem disso,
e com a primavera, com a primeira co+ovia que por toda
a Siberia, por toda a Russia, come am a andar os vagabun-
dos; e então que os "filhos de Nosso Senhor" fogem das
prisões, somem-se nas florestas. Depois do ambiente sufo-
cante, depois dos julgamentos, das grilhe+as, dos a oites,
eles vagueiam a vontade, ao leu, vão onde lhes apraz,
bebem e comem o que encontram, o que Deus manda, e
quando chega a noite, adormecem franquilamente em qual-
quer parte, num canto de bosque, num fundo de trigal, sem
preocupa ões, sem angustia da prisão, como os passaros,
dando boa-noite as estrelas do ceu, sob a guarda do seu
RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS
303
Cr¡ador. H momentos, e claro, em que nem tudo são rosas,
a "e aperta, - pois o servi o do general Kukuchkin com-
porta as suas fadigas. Passem-se dias 19~elros sem uma co-
doa de pão; e preciso fugir de todo o mundo, esconder-se
simi. buracos; e preciso roubar, saquear, matar ...s vezes. "O
colono como crian a, atira-se a tudo que v ", diz-se na
Siberia. Esse ditado se pode aplicar com toda a sua for a,
e com mais exatidão ainda, aos vagabundos. São raramente
#

bandidos, porem quase sempre ladrões, mais por necessidade


que por prazer, compreende-se. Ha vagabundos empeder-
1~ ---l-nidos. Alguns fogem depois de terminada a pena, no pre-
sidio, quando ia se transformaram em colonos. Alquern po-
deria imaginar que eles se sentem felizes na sua nova si+u ~
a ão,
na seguran a de que + m pão gararificlo; mas não - h6
algo que esta longe e os chama. A vida na floresta, mise-
ravel,e ferrivel, porem livre e avenfurosa, +em para os que al-
guma vez a experimen+aram um encanto misterioso, sem o
qual não podem mais viver. Entre esses fugitivos a gente
se espanta ao encontrar individuos sossegados, lavradores ia
pr6speros. As vezes e um desterrado casado, pai de familia,
fixado no mesmo local ha uns quatro ou cinco anos, que um
belo dia desaparece, abandonando mulher, filhos, lavra. Mos-
fraram-me no nosso presidio um desses fugitivos. Não tinha ne-
nhum grande delito na conciencia, - pelo menos ninquern
aludia a nada grave ao falar nele, mas desertara, - deser-
tara durante a vida inteira. Estivera na fronteira russa do sul,
do outro lado do Danubio, na estepe Kirghiz, na Siberia Ori-
enfal e no Caucaso, - andara por toda parte. Quem sabe
se um homem daqueles, em outras condi ões, e com a mesma
,paixão por viager¡s, não se tornaria um segundo Robinson
Crusoe? Tudo isso me foi narrado por outros for ados,
porque ele falava pouco, não abria a boca senão em caso
de necessidade absoluta. Era um homem pequeno, de uns
c¡nquen+a anos de idade, muito quie~o, com o rosto +ão pla-
cido que parecia idiota. No verão gostava de senfar-se ao
sol, e logo se punha a resmungar uma cantiga, mas tão b3i-
#

304
DOSTOIEVSKI
xinho que a cinco passos de distancia não se escutaria nada.
Os fra os do seu rosfo esfavam por assim dizer pefrificados;
comia pouco, e em geral so comia pão preto; jamais com-
prava kalafchi ou vodca. Teria dinheiro, acaso? e se o pos-
suisse, seria capaz de o confar? Mosfrava-seem fudode uma
indiferen a absolufa- ¶s vezes atirava um pouco de comida
aos cães do presidio, animais que ninguem pensava em ali-
menfar. (Em geral, o russo fem uma repugnancia instintiva
em dar comida aos cães.) Confava-se que era casado, que
af mesmo o fora duas vezes, e que tinha filhos, em algum
lugar. Que de!ifo -expiava? Não o sei. Todos n6s espe-
ravamos v -lo fugir; enfrefanfo, talvez porque não surgisse
ocasião, falvez porque os anos ia lhe pesassem, ele continuava
a viver, dobrado sobre si pr¢prio, fitando do alto aquele
ambienfe estranho que o cercava. Contudo, não se deveria
confiar muifo naquele sossego; que inferesse, porem, feria o
homem em fugir?
A verdade e que, fornada em conjunfo, a vida, na flores-
+a, a vida de vagabundo, e um paraiso comparada a do
presidio. Nenhuma aproxima ão e alias possivel enfre a
vida do presidio e a vida livre, dificil embora, mas livre. 'E
eis a razão por que, em toda a nossa querida Russia, qualquer
defenfo, seja qual for o local da sua prisão, fica inquieto nos
primeiros dias de primavera, com os primeiros raios sorriden-
+,es do sol. No entanto, todos estão muito longe da inten ão
de fugir! Pode-se afirmar que, dadas as dificuldades e os
riscos, um so entre cem se decide a fuga: mas isso não impede
os noventa e nove restantes de sonhar com a evasão, de pro-
curar onde e como poderiam tentar a empresa, estudar um
local onde obteriam refugio. Essa esperan a surda os anima;
f m necessidade de calcular suas possibilidades. Alguns fi,
ram coragem da lembran a de uma fuga antiga ... Sà me
refiro aqui aos condenados. Porque, entre os presos preven-
+ivos, e muito maior o numero dos que se resolvem a fugir.
Os condenados, em geral, s6 o fazem no inicio da sua
miseravel vida. Depois de dois ou +r s anos de presi-
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
A
305
dio, o for ado come a a apreciar os meses de pena que
ia fem cumprido e pouco a pouco acha que sera melhor
terminar !eg !r¡,.en'ie a pena -- forn,:~r-se mais tarde colono
numa aldeia, do que se desgra ar em caso de fracasso. E
#

o fracasso e sempre possivel. Unicamente um for ado, entre


dez. consegue, evadindo-se, "mudar de sorte". Os que se
resolvem a fugir, são em geral os condenados a longas penas:
quinze, vinte anos parecem eternos, e essas criafuras estão
sempre prontas a "mudar de sorte" mesmo ao cabo de dez
anos de prisão. Enfim o ferrete na festa fambem constitue
um obst culo. "Mudar de sorte" e a expressão t cnica. E'
essa a ambi ão que o for ado confessa no in~errogatorio, se
e apanhado. A expressão, um pouco livresca, aplica-se ex-
celenfernenfe ao ato que designa. Todo evadido não visa
precisamente a liberdade completa, que ele sabe quase im-
possivel; pretende, principalmenfe, ou passar para outra prisão,
ou ver-se mandado para uma aldeia, ou ser julgado outra vez
por um crime cometido ao vagabundar, - em suma, ir para
qualquer parfe, conquanto não seja para a mesma ¡nfolerave!
cadeia de onde escapou. Se, durante o verSo, esses fugifi-
vos não encontram um a * brigo inesperado. para o inverno a che-
gar, se não descobrem, por exemplo, um campones que con-
sinta em asila-los, mediante um arranjo qualquer; ou se não
conseguem, as vezes ate mediante um crime, um passaporte
que lhes permita viverem onde quiserem, -+odos, quando cha-
ga o outono, a menos que fenham sido apanhados antes, +or-
nam em bandos numerosos as cidades e as fortalezas e se
fazem internar nas prisões para Ia passarem o inverno, claro
que não sem a esperan a de fugirem novamente, quando
chegar a primavera.
Sobre mim, fambem, a primavera exercia a sua influen-
cia. Veio-me de novo espiando avidamenfe o mundo livro
afraves das fendas da pali ada; ficava em pe, com a cabe a
apoiada a uma estaca, contemplando com obstina ão insa-
ciavel a erva que verdejava ao longo do fosso do recinto, e
o ceu longinquo que se +ornava cada vez mais azul. Minha
#

a
306
DOSTOIEVSKI
inquieta ão, minha angustia, aumentavam dia a dia e o presi-
dio ia-se tornando um inferno sempre pior. O odio que mi-
nha qualidade de barine rw granjeara grai-u~lamenfe en-
fre, os for ados, durante os primeiros anos, enverienara-me
a vida e eu ia não a sabia tolerar. Muitas vezes, então,
pedia entrada no hospital, sem necessidade verdadeira, tão
somente para me libertar daquele odio obstinado e geral
que nada podia amortecer. "Voc s, harines, tem bicos de
a o para nos acabar com a ra a. . . " diziam-nos os presos.
Como eu invejava as vezes os homens da plebe que chegavam
ao presidio! Esses, logo de inicio, se viam tratados como
companheiros ...
Assim, na primavera, o fantasma da liberdade entrevista,
a alegria de toda a natureza se traduziam para mim numa fris-
feza, numa irrifabilidade aumentadas. Durante a semana
da Paixão incluiram-me entre os que deveriam fazer a Pascoa.
O velho sub-c,ficial dividira o presidio em sete series, corres-
ponden+es as sete semanas da quaresma. Cada grupo era
composto de uns trinta homens que deveriam fazer sucessiva-
mente as suas devo ões, e para esse fim eram dispensados
dos trabalhos. Essa semana de descanso me fez muito bem.
lemos a igreja, que ficava a pequena distancia da fortaleza,
- duas, e ate mesmo +r s vezes por dia. Ja ha muito tempo
que eu não -entrava numa igreja. Os oficios da quaresma,
tão familiares ... minha infancia, na casa de meu pai, as ora ões
solenes, as prostra ões, tudo isso me envolvia na alma recor-
da ões de ha muito apagadas, tudo me trazia evoca oes
da meninice. Revivo ainda o prazer que sentia quando, pe-
Ia manhã, pisando a terra gelada pelo frio da noite, nos nos
dirigiamos sob escolta para a casa de Deus. Ficavamos num
grupo perto da porta, no Ultimo lugar; não escu+avamos quase
a voz grave do diacono; e de tempos em tempos avisfavamos
por sobre a turba a casula negra ou o cranio calvo do pope.
Então eu me revia crian a, olhando para a gente do povo, que
formava um grupo apinhado na porta da igreja, e que
recuava servilmente ante uma dragona dourada. um se-
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
307
1
nhor barrigudo ou uma senhora devota de saia ro a-
gente, - os donos clas`primeiras filas. La na porta,
#

junto ... enfrada, ao que ma parec*,d en lão, as pessoas nSo


deveriam rezar como nos lugares que nos ocupavamos; pros-
tradas no chão, oravam com fervor resignado, com perfeita
conciencia da propria humildade. E agora, era eu que lhes
ocupava o lugar, -e nem sequer o mesmo lugar: n¢s carrega-
vamos cadeias, eramos os reprobos. todos se afastavam de
n¢s, pareciam nos temer, davam-nos esmolas, e diariamente
eu descobria naquilo uma sensa ão agradavel, -especial i ssima,
um contentamento estranho e requintado. "Esta muito bem!"
dizia -a mim proprio. Os for ados rezavam com grande
fervor, e todos eles, dia apOs dia, traziam a igreja o seu mise-
ravel copeque, para um c¡rio ou para o pedi+orio. "Eu fam-
bem sou um homem, pensavam decerto, enquanto davam a
esmola; diante de Deus somos todos iguais. . . " Comunga-
mos na primeira missa. Quando o padre, segurando o cibo-
rio, recitou a ora ão: "Como o ladrão, -eu vos digo: lem-
brai-vos de mim, Senhor, quando esfiverdes no vosso rei-
no. . . " quase todo o nosso grupo se prosternou, com um ti-
fin+ar de ferros, +ornando essas palavras ao pe da letra.
Mas afinal chegou a Pascoa. A administra ão nos man-
dou dar a cada um um ovo e um peda o de pão branco.
Novamente as esmolas choveram sobre o presidio, outra vez
recebemos a visita do pope com a cruz, e a visita dos chefes;
de novo tivemos a gorda sopa de couves dos dias de festa,
bebedeira, o dia vadio, como no Natal - com a umca dife-
ren a de que agora a gente podia passear nopafio e se aque-
cer ao sol. Tudo parecia mais claro, mais vasto que no
inverno, e +ambem mais triste. Os longos dias de primavera
inferminaveis, sobretudo nos feriados; as horas de +ra-
-eram
balho passam muito mais depressa, gra as ao labor que as
encurta.
I
Os trabalhos do estio, com efeito, se revelaram m
mais penosos que a labuta do inverno.
Ocupavam-se princi-.
#

308
O
DOSTOIEVSKI
palmenfe os for ados nas consfru ões de engenharia. Uns
edificavam, ou cavavam a ferra, colocavam tijolos, realiza-
vam trabalhos de serralheria, de marcenaria. de pinfura. Os
ou~ros *iam as c!arias preparar os tijolos, - cousa que conside-
ravamos como a mais penosa das farefas. A olaria ficava
a quatro verstas do presidio. ·s seis horas da manhã, em
cada dia da esta ão bonifa, um grande grupo de for ados
a
- cerca de cinquenfa homens - se dirigia para 15. Esco-
lhiam-se para esse g nero de servi o os simples trabalhadores
bra ais, isto e, os que nao tinham oficio, e portanto não per-
+enciam a nenhuma oficina. Levavam consigo o pão, pois a
distancia a que ficava a olaria impossibilifava a volfa para a
refei ão; assim, para se pouparem a caminhada de oito
vers+as inu+eis, ~o comiam o janfar a noite, quando regressa-
vam. Fixavam-lhes pela manhã a tarefa do dia, mas +aref-i
+ão grande que dificilmenfe a executavam. Era preciso pri-
meiro arrancar o barro, carrega-lo para a fossa, em seguida +ra-
zer agua para molhar aquele barro e arriass -lo com os pes, de-
pois enfim divid¡-lo num numero respeifavel de tijolos. duzen+os
ou duzentos e cinquenfa, se bem me lembro. 50 duas vezes fui
para esse trabalho. Os que a noite voltavam da olaria, esfa-
vam extenuados, mal satisfeitos, e a todo o momento se acu-
savam reciprocamente de se pouparem em preiuizo dos
demais. Deveriam enconfrar naquilo uma especie de consolo.
Entretanto. alguns iam de bom grado para a olaria: Ia, do
outro lado da cidade, num local descoberfo a margem do
Ir+ych, avis+ava-se uma paisagem muito mais agradavel aw
olhos que as constru 6es do governo; ademais, podia-se fumar
livremente, e ate mesmo sesfear durante uma meia hora.
Quanto a mim, ia como antes trabalhar numa oficina, ou
preparar alabas+ro, ou carregar tijolos para os pedreiros, nas
consfru S.es. Em certa epoca eu tinha que fransporfar minha
carga de tijolos af a margem do lrfych, a um quarfel qu;
esfava sendo edificado a cento e cinquen+a me+ros do rio:
devia afravessar o fosso da nossa forfaleza, anfes de Ia chegar.
Esse frabalho durou dois meses sem interrup ão. Tomei por ele
certo gosto, embora a corda com a qual amarrava os fio-
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
309
~ ferisse os ombros Sentia que as for as me cresciam:
cipio não podia senão carregar oito tijolos, que pesavam
#
ca de doze libras (1); depois, consequ¡ c~egar a uma duzia e
,mesmo a quinze tijolos, - cousa que me encarifava. Para
prfar foclas as miserias daquela vida maldifa, a for a f¡sica
menos necessaria que a for a moral.
F que eu ainda queria viver, depois do presidio!
Se encontrava prazer nesse frabalho, não era apenas
rq . ue ele me fortificava, mas porque se realizava na mar-
do lrfych. Era o umco local - e por isso falo nele com
frequencia - de onde se podia entrever o umverso, os
rizonfes luminosos, as livres estepes desertas, cuja nudez me
1 1 cava uma impressão estranha. Era +ambem o Unicr
1 al de onde se podia dar as costas a forfaleza, porque +odor,
,t,,.
.... outros pontos de trabalho se encontravam na vizinhan a
mediafa ou no inferior daquela casa sinisfra. Desde os pri-
eiros dias eu lhe +ornara odio. principalmente a algumas d ,.-,.
,suias dependencias: a residencia do nosso maior me parecia
~;vm local maldito, abominavel, e cada vez que lhe passav.-i
,.defronte, atirava-lhe um olhar irado. Na margem do lr+ych
,-eu podia -esquecer isso tudo, e defronfando a vastidão infi-
ifa, olhava-a como o prisioneiro espia para o mundo livre.
,pela sefeira da sua cela. Tudo ali me era querido - os raios
5,11 ,
'k e
,,cegarifes do sol nos abismos azues do c'u, as cantigas lon
1 ginquas dos kirghizes, que subiam da margem oposta. Quando
gente olhava com paciencia, acabava avistando a pobre
rfe enfuma ada duma baiguche (2) qualquer; conferri-
.1 . ta-se a fuma a que sai da tenda, e uma mulher khirguize que
1 , ~ ri
. " ¡da ao redor de dois carneiros. Tudo aquilo e pobre e sel-
tt...
Nagem, mas livre. Avisfa-se um passarinho no azul franspa-
---1"~'~',renfe do ceu, e, longa e obstinadamente, acompanha-se o seu
~,,y6o com o olhar: ei-lo que ro a a agua. ei-lo que se per~e no
azul, ei-lo Ia longe, como um pontinho minUsculo ... Mesmo a
,florinha doentia que eu encontrava no come o da primavera,
(1) Cerca de cinco quilos e meio. (N. de R. Q)
(2) A yurte a tenda dos kirghizes, povo n"made, cujos baiguches constitu
em
a classe mais pobre, (N. de H. M.)
'I . I
#

310
DOSTOIEVSKI
em alguma fenda de rocha, me atra¡a a aferi ão, morbida. "
mente. A angustia daquele primeiro ano de presidic,~ ora
intoleravel, enervariM, horrivelmente amarga. Impedia-me ele
observar uma por ão de cousas ao meu redor. Fechava os'1'1~'
141, z
olhos, recusava-me a ver. Entre os meus companheiros f30"~'
W
fiosffs, tão odientos, não via, não descobria pessoas capaz s-,~.'
de sentir e pensar, apesar da casca repugnante que Ilh 0k~
dissimulava a natureza real. Entre as frases venenosas, não,'~---
sabia +ambem distinguir as palavras amaveis, afetuosas, fant~J4~'
k
mais apreciaveis porque muitas vezes vinham diretamente dcw,,~:
cora ão de um homem que sofrera mais do que eu. Ai, Dara~N¡~
que me alongar a esse respeito? Senfia-me muito feliz quando' ? .
voltava para a fortaleza, exhausto: pelo menos dormiria 1
Porque no-verão o sono era mais tormentoso, senac, pior qu¢"`~
no inverno. Para falar verdade, nos finhamos ...s vezest'~-'
V`1
belissimas +ardes. O sol, que não parara de banhar o pafio
da fortaleza, deifava-se afinal. O ar refrescava, e depressa a . "
fria noite das estepes - fria relativamente - nos envolvia.~,~,
Os presos, -esperando que os trancassem, passeavam em
bando pelo patio. A maioria, entretanto, agrupava-se de
preferencia nas cozinhas. La, debatiam-se questões de ordem
geral, discutia-se isso, aquilo, recolhiam-se alguns boatos, md#--,
tas vezes absurdos, mas que despertavam exfraordinaria curio.-
sidade naqueles entes segregados do mundo dos vivos; assim,~`---
por exemplo, confava-se que o nosso maior fora fransferid¢. ,
Os for ados são credulos como crian as; sabem muito benv,
-
que a noticia e absurda, que Kvassov, seu portador, e um
reia noforio, um mentiroso incapaz de dizer uma palavra
se possa dar credifo-, entretanto todos +ornam conta da nofr,~"
. --- 1 11
cia, emitem opinião, rejubilam-se; e, no fim, envergonharri-",~
por se haverem deixado enganar por Kvassov.
c quern o manclaria embora! exclama um tor a
"OifO olhos" tem as costas largas, ha de aparar o golpel,~, ",." , 2
- Sim. mas,af ele +ambem fern chefes! brada um
ardente, que não +em nada de tolo, que j viu muita cousa'e
d6 a vida por discutir.
#

RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS


313
- Os lobos não se comem uns aos oufros! resmunga um
terceiro, homem de cabelo grisalho, que +orna a sua sopa
sozinho, a um canto.
- E tu achas que os chefes virão pedir tua opinião
_para saber se podem mandar o maior as favas? acrescenta
~com impaciencia um quarto preso, vibrando com indiferen a
1 uma das cordas da balalaica.
- E por que não, se nos juntarmos foclos? +orna o
segundo exaltado. Mas aqui o pessoal s6 presta para bater
com a lingua, nos dentes: quando se chega aos fatos, ia não
h6 mais ninguerril
- Esse coitado parece que não sabe que esf6 no presi-
dio, retruca o focador de balalaica.
Outro dia, continuou o discufidor, sem o escutar,
~ ~;,4, ¢brou um pouco de farinha. Junfaram ate o £ltimo pu-
u
nhado e levaram para vender - era um restinho. não ren-
deria nada. Porem ele soube. Fizeram um rela+orio e a farinha -
foi confiscada - "rnedida de economia!" Isso ser6 iusto?
¡1
- Mas a quem que tu querias te queixar?
- A quem? Ao inspetor que est6 para chegar.Que inspetor?
a
- verdade que es+' para chegar um inspetor, irmãos,
explicou um mo o for ado, muito bem posto, instruido, antigo
escrevente de batalhão, que j lera a "Duquesa de Ia vallier-e"
ou qualquer outro folhetim do g nero. Era um palha o eterno,
todavia os for ados gostavam do seu desembara o. E sem
prestar nenhuma aten ão a curiosidade geral despertada pela
noticia da futura chegada do inspetor, ele se dirigiu ao fogão'
afim de pedir a "cozinheira" uma por ão de figado. Os
cozinheiros vendiam sempre pratos dessa especie: comprq-
vam por -exemplo um bom peso de figado que iam cortando
em peda os e fritavam para os for ados que os podiam com-
prar.
- Dois ou quatro copeques? indagou a "cozinheira".
- Corta para quatro copeques! Se alguem ficar com
-9 boca cheia de agua não tenho nada com isso! respondeu o
22
I
I
#

314
DOSTOIEVSKI
for ado. Um general, meu irmão, um general de Pefersburgo
est a caminho, vem passar revista em toda a Siberia. E'
verdade, disseram isso na casa do governador.
A noticia provocou uma sensa ão extraordinaria. Durante
um quarto de hora cruzaram-se perguntas sobre quem seria
esse general, que titulo usaria, se seria mais importante que
os generaisclaqui ... Falar de patentes e chefes, saber quem
fem precedencia, quem pode fazer com que os outros se cur-
vem, diante de quem o comandante fer6 que se inclinar, -
são assuntos que os for ados gostam de discutir. um assunto
que os entretem muito; discutem azedamenfe, injuriam-se,
chegam quase a se agarrar; pode-se supor que não +em nisso
nenhum interesse, mas pelo conhecimento minucioso dos
fatos administrativos que se mede entre eles o grau de infe-
ligencia dos individuos, da insfru ão adquirida antes da prisão,
do lugar ocupado na sociedade; falar das altas esferas d
igualmente uma reputa ão de seriedade e elegancia.
- Voc s estão vendo mesmo que e verdade, rapazes:
o maior vai ser posto para fora daqui! observa Kvassov, o
homenzinho vermelha o, exalfado eestUpido, que fora o pri-
meiro a agitar a hisforia.
- Ora! ige solta os cobres e d um jeitinho! comentou
com voz resfolegan+e o preso velhusco, que acabara de +ornar
a sua sopa de couves.
- Sim, bem pode ser! ajunta um outro. Faz muito
tempo que ele economiza, pois ia era maior antes que n¢s
chegassemos aqui. Ultimamente, anda arrastando a asa ...
filha do profopope (2).
- Mas não casou! Mosfraram-lhe a porfa, o que prova
que "Oito olhos", não tem vinfem. Imagine que lindo noivo!
Quando se levanta da cadeira, seu guarda-roupa foclo se
lavarifa com ele! Na Pascoa, perdeu tudo no jogo. Foi,
Fedka que confou.
- Isso mesmo! O camarada não gosta de soltar os
copeques, porem dessa vez ficou a nenhum!
(2) O arcipreste. (N. de R- Q.)
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
315
- - Ai, irmãos, coisa ruim e casamento para quem e
pobre! Entendo um pouco disso. A noite de nuPcias e curta
demais, comenfou Skurafov, que acabava de entrar na con-
verso.
- - Supões talvez que esfamos falando em ti? retrucou o
#

rapaz despachado, o antigo escrevente. Tu, Kvassov, es um


cretino se pensas que um maior possa subornar um general, e
que um general venha aqui para inspecionar o maior. Cs
mesmo um idiota, rapaz!
- E que e que +em? Um general não pode recdber
nunca uma gorjeta? indaga um c tico.
- Certamente que não. E se recebe, não e nenhuma
bolacha quebrada.
- Claro que a bolada e grande - vai crescendo rie
acordo com a patente.
- Um general recebe grafifica 3o de qualquer um,
afirma Kvassov com soberba seguran a.
- J deste gorjeta a algum general? goza Bakluchin-e,
que entra de subito. O que eu quero saber e isto: onde
foi que ia visfe um general?
- Sim, ia Vi um!
- Mentiroso!
-'Mentiroso es fui
- Bem, rapazes, se ele ia viu um, vai nos contar de que
if ' o homem. Anda, fala, eu conhe o focla qualidade de
, lei o e
generais!
- Vi o general Sieberf, respondeu Kvassov em tom hesi-
fanfe.
- Sieberf9 Não ha general nenhum com esse norre.
Decerfo esfas falando num que +e olhou o lombo quando te
,k a oitavam. Siebert poderia ser no m ximo tenenfe-coronel.
~v,`Foi o feu medo que lhe deu patente de general!
Não, escuta, grifa Skura+ov. Sou um homem serio
',,2 sou um homem casado. Havia um general Siebert em
Moscou, era alemão, mas agora e russo. Todos os anos, dia
da Assun ão, confessava-se a um pope. Enchia-se clagua
lr~
A
i
#

316 DOSTOIEVSKI i. RECORDA õES DA


CASA DOS MORTOS317
como um pato - quarenta copos de agua do Moskova, lodos
os dias. Dizia-se que engulia essa agua toda para se curar
duma doen a, foi o seu criado de quarto clue me contou,
- Ser que ele tinha peixinhos na +ripa? indagou o preso
da balalaica.
- EsM a[! A gente falando a seric, e eles v m com
canalhismo. Quem e esse inspetor, irmão? perguntou Marli-
nov, um velho da se ão militar, que fora hussardo.
,- Tudo isso mentira, afirmou um dos c ticos. De
onoa que essa gente inventa tanta mentira?
- Não mentira nenhuma! explicou dogma+icamen+e
Kulikov, que at então se mantivera num silencio majestoso.
Era um sujeito pesadão, duns cinquen+a anos de idade,
com fei ões extraordinariamente corretas e modos desdenho-
sos - cousa de que muito se orgulhava. Tinha sangue cigano
nas veias. Ve+erin rio de profissão, +ralava dos cavalos
da cidade, o que não impedia de na prisão ser bo+ecluineiro.
Tinha visto muita cousa, era inteligente, e deixava cair as pa-
lavras da boca como se fossem de ouro.
- E' a verdade pura, irmãos! continuou, no seu tom sos-
segado. Na semana passada ouvi contar isso mesmo. Uni
general est mesmo a caminho, - general dos de galão gran-
de, afim de inspecionar a Siberia de cabo a rabo. H6 de ser
a coisa de sempre: vai receber seus presentinhos, porem não
do nosso maior "Oito olhos". ~Esse não lhe ha de chegar
ri . em perto. Ha generais e h6 generais, irmãos. Ha gere-
rais de toda especie! Mas posso garantir a voces, qua,
quanto ao nosso maior, fica por aqui mesmo. Nos vamos ficar
de bico caladinho, como sempre, e nem os grandolas daqui
se atreverão a denuncia-lo. O inspetor corre focla a forta-
leza e ir6 embora sem dizer nada; depois far6 um relafor*ic,
contando que encontrou tudo aqui em perfeita ordem. . .
- Sim, entretanto o maior es+6 com medo; não e ...-toa
que anda b bedo desde que o dia amanhece.
- E hoje a +arde +ornou carga nova; foi Fedka que
contou.
- NãO adianta esfregar um cavalo preto para ver se,
ele fica branco! Sera que voc s nunca viram o maior b bedo,
anf,-~'7
es;
- De qualquer forma, ser6 um azar se o general nSo
fizer nada! Porque estava na hora de dar um fim naquele
bandido! comentavam os for ados animadissimos.
A noticia da vinda do inspetor espalhou-se num piscar de
olhos. No palio, os homens a repetiam com precipita ão.
Procuravam alguns mostrar silencio e sangue-frio, para se
darem ares de imporfancia. Outros ficavam indiferentes.
Nas portas das casernas ins+alavam-se os locadores de baIo-
#

laica. Alguns continuavam a tagarelar, enquanto outros.


,,entoavam cantigas - todos. porem, naquele serão, se mostra-
varri exci+adiss¡mos.
Pelas dez horas, depois da chamada, eram aferrolhados
nas casernas. Apesar das noites curtas, faziam-nos levan+ar
as cinco horas, mas ninguem adormecia antes das onze. Ale
então havia sempre o vaivem das conversas, e algumas par-
+idas de jogo, como no inverno. Embora entrasse ar frescC
pela janela aberta, o abafamento era in+oleravel. Os de+en-
tos se agitavam nas tarimbas, como se delirassem. Milhões
de pulgas nos picavam. Ja numerosas no inverno, elas pulula-
vam na primavera em propor oes ¡nimaginave¡s: e quan~c
mais avan ava o calor, mais agressivas iam ficando. A gente
pode se acostumar as pulgas - sei disso por experiencia
propria, - mas o aprendizado e extremamente penoso: o
tormento se torna tão insupor+avel que ate febre da: e afta-
v s do sono a gente sabe que em vez de dormir esta deli-
rando. Enfim, quando ... aproxima ão da madrugada as
pulgas fartas se aquietavam e um sono suave nos +ornava,
a implacavel alvorada rufava nos tambores. A gente se en-
rolava na pele de carneiro, e escutava com pragas as pan-
cadas intercaladas do tambor, como se fosse preciso conta-
Ias; e, ao mesmo tempo, atrav s do resto do sono, vinha-nos
a id ia desagraclabilissima de que amanhã seria a mesma
cousa, e depois de amanhã e durante muitos anos seguidos,
~;! I
#

318
DOSTOIEVSKI
af a hora da liberfa ão. Quando soara essa hora? a gente
cisma ... E enquanto espera, e mister acordar; a barulha-
da, o ramerrSo costumeiro se inie~arn; os hornens se vestem,
precisam sair depressa para o trabalho. Por felicidade,
poder-se-a fazer uma hora de sesta ...
A hisforia da vinda do inspetor era verdadeira. Os boa-
tos se confirmavam diariamente, e, afinal de contas, soube-se
com toda a certeza que um alto funcionario de Pe+ersburgo,
um general, vinha inspecionar a Siberia infeira, que ia chegara,
que j estava em Tobolsk. Cada dia novas minucias apare-
ciam no presidio. Traziam-se boatos da cidade, confava-se
que Ia o pessoal administrativo fremia, que foclos os funcio-
narios se esfor avam por mostrar-se sob bom aspecto, que
as altas esferas organizavam a porfia fesfas, bailes, recep ões.
Mandavam-se grupos compactos de for ados aplainar as
ruas da fortaleza, arrancar capim e ervas, repinfar a pali ada
e as es+acas, remendar paredes, caia-las; em suma, procura-
vam endireitar num abrir e fechar de olhos tudo que poderia
ser visto. Os for ados compreendiam a cousa muito bem,
e suas discussões iam ficando cada dia mais ardentes, mais
audaciosas. Sua fantasia ultrapassava todos os limites. Esfa-
vam disposfos a expor suas queixas, assim que o general lhes
perguntasse se estavam satisfeitos. Isso não os impedia de
brigar, nem ~de frocar insultos. O maior estava sobre brasas.
Vinha com muito mais frequencia fazer inspe ões. grifava mais,
afirava-se com maior furor sobre as criafuras, mandava-as
,para o corpo da guarda por um~ nada qualquer, fiscalizava
imperfinenfernenfe o asseio e a ordem. Nesse momento,
como de propOsifo, sucedeu um caso que, longe de comover
o nosso chefe como seria de esperar, lhe deu gra,nde'prazer.
Durante uma briga. um gal feriu um outro, enfiando-lhe uma
sovela bem perto do cora ão.
O for ado que cornefera o delifo chamava-se Lomov, o
ferido GavriIka, um desses vagabundos empedernidos de que
j falei. Ignoro se tinha outro nome, pois entre n6s s6 lhe
davam esse. LQmQv r.~ um mujigue abastado da provincia
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
319
isfrifo de K. Todos os Lornovi viviam junfos, o velho,
filhos e um irmão. Passavam por ricos. Corria 16
pela aldeia que possuiam pelo menos trezentos mil rublos em
papel.,~ Lavravam a ferra, curtiam 1 peles, comerciavam, mas
sua principal fonfe de renda era a usura, recepta ão de obje-
tos roubados, refugio aos criminosos evadidos, e outras indus-
#

Wies do mesmo tipo. Metade dos muiiques do distrifo lhe


havia feito empresfimos, e se debatia em suas garras.
Di¡a-se que eram infeligenfes e astutos porem acabaram fi-
1. cando muito soberbos, principalmente quando um alto per-
_~,,_scioagem se fornou de amizade pelo velho, por causa da sui
finura, da sua esperfeza, e deu para se hospedar em sua ca-
se, quando de viagem. Os Lomovi julgaram então que não
precisavam ferner mais cousa alguma, e cada dia se afun-
daram mais em negocios escusos. Todo o mundo resmun-
gava contra eles, faziam-se votos de que se sumissem a cem
p"s debaixo do chão - mas eles iam sempre erguendo a
cabe a cada vez mais alfo: nem a policia nem os juizes lhe
faziam mais fernor. Enfim, perderam o pe. e cairam no
fundo do precipicio, sem que o motivo fosse o mal que ha-
. . - viam feito ou os seus crimes clandestinos: uma acusa ão in-
fundada-basfou para os desgra ar. Possuiam a dez leguas
da aldeia uma grande propriedade, onde seis trabalhadores
kirghizes, que eles ha muito tempo haviam reduzido a ser-
vidão, foram passar o outono. Uma noite encontraram-se
os seis homens assassinados. Come ou-se um inquerito que
durou muito fempo e trouxe estranhas revela ões. Os Lo-
movi foram acusados da morte dos seus trabalhadores.
Eles proprios tinham confado essa his+oria, de modo que
todo o presidio a conhecia. , O povo malclara que eles deviam
de d
os f
muito dinheiro aos trabalhadores; e apesar da sua fortuna
noforia, a avareza deles, noforia +ambem, os +ornou suspeitos
de se haverem desembara ado dos kirghizes afim de não lhes
pagarem os salarios. Durante o inqu rito e a prisão preven-
fiva todos os seus bens se dissiparam. O velho morreu, os
filhos foram deporfados. Um dos filhos e o fio deram com
#

I I
320
DOSTOIEVSKI
os ossos na nossa forfaleza, com senten a de doze anOS. E
contudo, estavam absolutamente inocentes do crime que lhes
fora impulado. Um belo dia um dos nossos defenfos,
Gavrilka, malandro, vagabundo contumaz, de g'enio muito
animado e alegre, gabou-se de ser o aufor das mortes. Não
sei se ele fizera confissão completa, entretanto todo o pre-
sidio o considerava o assassino dos seis kirghizes. No decorrer
das suas vagabundagens, Gavrilka se acumpliciara as vezes com
os Lornovi. Estava preso como soldado deser+or e vaga-
bundo. Em companhia de fres outros da sua laia, degolara
os kirghizes, esperando encontrar boas cousas na propriedacle.
Não sei bem por que, mas os Lomovi nao gozavam dq
estima entre nos. O sobrinho era rapaz novo e inteligente,
muito dado, enquanto o fio, que acabava de ferir Gavrilka
ccm a sovela, era um sujeito violento e est£pido, e brigavo
a toda hora com os outros, que ali6s o espancavam ... vonfade.
Quanto a Gavrilka, seu genio alegre lhe conquistara a afei-
8'0 geral. Os Lomovi sabiam muito bem que era ele o autor
do crime pelo qual tinham sido condenados, porem não o
provocavam, nem mesmo lhe chegavam perto. Em geral,
GavriIka não lhes prestava nenhuma aferi ão. A sua briga
com o fio Lomov irrompera bruscamente por causa de uma
mulher publica: Gavrilka se gabara dos favores que ela lhe
concedera, e certa +arde o velho, enciumado, enterrou-lhe a
sovela em pleno peito.
Embora arruinados pela justi a, os Lomovi ainda tinham
fama de ricos. Deveriam guardar algum dinheiro, porque
possuiam um samovar e bebiam ch6. Nosso maior, que sa-
bia disso, detestava os dois homens; mulfiplicava-lhes as ve-
xa ões. Os Lomovi davam como motivo desse odio o desejo
que tinha o maior de que eles lhe passassem alguns cobres;
todavia recusavam-se obstinadamente a isso.
E' claro que se a sovela houvesse penetrado um pouco
mais, Gavrilka seria defunto. Contudo a ferida não passou
dum arranhão. Fez-se um rela+orio ao maior. Veio-p ainda
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
321
irromper no presidio, esfogueado, radiante. Dirigiu-se a
Gavrilka, num tom de grande carinho, como um pai ao filho:
' - EnfSo, paizinho, ser que podes ir caminhando afe o
hospital? Não, e melhor mandar um carro. Vão depressa!
gritou para o sub-c,ficial, com voz arquejante.
#

- Mas Excelencia, não tenho nada, foi s0 uma picada!


Nunca se sabe, meu filho, 16 e que eles verão. Foste
ferido em lugar perigoso. Tudo- depende disso: ele procurou
o cora ão, o bandido. Espera, anda, espera! berrou, voltan-
do-se para Lomov. Vais te haver comigo, rapaz! Para o
corpo da guarda!
E, com efeito, cumpriu a promessa. Lomov foi julgado.
Embora a ferida fosse das mais benignas, a premedifa ão
era evidente. O criminoso teve sua pena aumentada, e sofreu
dois mil a oites. O maior ficou encantado com o incidente.
Finalmente, chegou o inspetor.
Logo no dia seguinfe, veio inspecionar a fortaleza.
Decre+ara-se feriado. J alguns dias antes estava tudo
lavado, limpo, reluzente. Os for ados, com a cabe a recem-
raspada, vestiam um umforme imaculado. O regulamenfo
Frescrevia para . o verão cal as e casaco de linho. Todos
vavam cosfurado no meio das cosfas do casaco um circulo
de fazenda preta de dois viorchkas (3) de di metro. Durante
uma hora inteira nos foram ensinadas as resposfas que deve-
riam ser dadas, na hip6fese do general nos dirigir a palavra.
Fizeram-se ate ensaios. O maior se agitava como o diabo
na agua benta. Uma hora antes da apari ão do general,
todos os presos estavam em formatura, com a mão na costura
das cal as; enfim, pela uma hora da tarde o homem fez sua
entrada. Era um general majestoso, +ão majestoso que os
funcionarios da Siberia ocidenfal deveriam estremecer de
medo, ao v -lo. Mos+rou-se grave e soberbo, acompanhado
por uma escolta imponente, solicita, formada por ~odos os
(.3) Um viorchka tem 4 c ntimetros. (N, de R. Q)
#

322
DOSTOIEVSKI
altos magistrados da cidade, e mais alguns gener 1 a . s e tOro ,
neis. Entre eles se encontrava lambem um paisano. W 1 Wil¢
homem de elevada es+afura, de casaca, sapatos, vindo tam-
bem da capital. Esse personagem tinha um jeito sintjul ~
mente desembara ado, e o general frequentemente lhei~
gia a palavra com extrema cortesia. Os for ados, e claro
ficaram infrigadissimos: tanta considera ao por um pa¡sanq,
e partindo de um general tão importante! Mais tarde s~
bemos-lhe o nome e a qualidade, mas at então as linguas %~_
ram o seu oficio. Nosso maior, ostentando as condecor &,bs
na farda cor de laranja sob a cara cor de tijolo, parece n,ão fa~
produzido no general uma impressão muito boa. Como sin¡J
especial de respeito ... autoridade, "Oifo olhos" pusera, -c~
parte os Oculos. Manfinha-se a distancia, erec+p como . uma
estaca, esperando febrilmente, numa afen ão,tensissima,`o
momento em que o chamassem, quando então ~pitaria para
aceder ao desejo de Sua Excelencia. Mas não foram precisos
os seus servi os. Sem dizer palavra, o general percorreu os
alojamentos, deu uma olhadela ...s cozinhas, chegou a provar
a sopa de couves. Mosfraram-me a ele, explicando-lhe quem
eu era, e o que me trouxera ao presidio - a mim. um nobre!
- Ah, respondeu o general. E como se porta ele agora?
- Por ora, porfa-se satisfatoriamente, Excelencia!
O general meneou a cabe a. e dois minutos depois saia
do presidio, deixando os gales deslumbrados, e claro, contu-
do um pouco desapontados farribem. Quanto a queixarem-
se do nosso tirano, não seria possivel; ali s, ia de antemão o
maior sabia disso.
O9 animais do presidio
compra do Gniedko (1) que se fez pouco tempo
A depois, representou para os for ados uma distra ão
muito mais agradavel que a visita do general. N6s
empregavamos o cavalo para trazer agua, levar o lixo, Oc. . .
Um dos presos era encarregado de o tratar e dirigir, escoltado
por uma sentinela, naturalmente. Durante o dia inteiro, o
pobre animal tinha bastante o que fazer. . Era um bom cavalo,
mas ia gasto pelo demasiado servi o. Um belo dia, exatamente
na v spera de S.Pedro, Gniedi o, ao trazer a agua da tarde,
caiu, e morreu no espa o de alguns minutos. Todos lhe cho-
raram a falta. Todos se reuniram para lhe comentar a morte.
Os que haviam servido na cavalaria, os ciganos, o veterinario
(1) DiminuUy9 ~t "Cniedoi" (Baio), (NL de R. Q1
I
#

324 DOSTOIEVSKI
KECOOA~66 DA C
ASA Dot MOitdt O3
e alguns outros que exibiam conhecimenfos especializidos a
respeito da ra a equina, - chegaram a brigar uns,,tom os
oufros. Mas isso nSo ressuscifa Gniedko: esfava ..., esfi-
3v
rado no chão, e todos se conside c am no dever de, & calcar
com o dedo a barriga inflamada. Informou-se o maior acerca
do acidenfe, e ele resolveu logo que se comprasse novo anim ai.
Dia de S. Pedro, pela manhã, depois da missa, quando estava-
mos todos reunidos, frouxeram os cavalos a venda: a escolha
era deixada aos for ados. Havia enfre n¢s aufenficos peri-
fos, e deveria ser dificil lograr duzenfos e cinque~ã kb~cris
L
- - L __
que, na sua maioria, se tinham ocupado outrora om blirga-
nhas de animais. Apareceram vendedores kÖrgbizes,-ti~anos
e comercianfes da cidade. Os for ados, alegres como cri n-
as, esperavam com impaciencia o aparecimenfo de cada n"vo
animal. O que mais os lisonjeava era ser-lhes lado comprar
o cavalo como pessoas livres, como para seu uso parficylar.
Recusaram-se +res rocins, anfes de ser decidida a compra. Os
vendedores olhavam em forno de si com cerfa perplexidade, e
lan avam aos soldados -encarregados de os acompanhar olha-
res não despidos de medo. Aqueles duzenfos individuos de
cabe a raspada, marcados a ferro em brasa, carregados de
grilhefas, dentro de sua propria casa, no seu ninho de presi-
diarios cujo umbral não poderia ser fransposfo por ninguem,
tinham que imprimir certo respeito, ao seu modo. Os
nossos usavam uma infinidade de asfucias para examinar cada
cavalo oferecido. Consideravam-no por todos os angulos,
apalpavam-no em focla parfe, com persisfencia, com ar preo-
cupado, serio, diligenfe, como se a prosperidade do presidio
dependesse daquela compra. Os circassianos chegavam af
a lhe salfar ... garupa, com os olhos faiscanfes, e discutiam viva-
menfe entre si, na sua lingua incompreensivel, descobrindo os
denfes brancos, meneando as cabe as morenas de nariz curvo.
Alguns dos nossos russos mostravam +anfo interesse pela- con-
versa dos circassianos que praticamente os devoravam com os
olhos. Não compreendiam um:)- umca palavra, mas procura-
vam adivinh2r a+-av6s da expressSo dos homens a sua opinião
_,: sobro o valor do animal. Uma aferi ão fão infensa poderia
.1 . parecer estranha ao espectador desinteressado- qua adianfa
gasfar fan~o ardor e cu72ado, quando n3o se passa de um
de um pobre for ado apatico, domado, que mesmo
` iante dos seus proprios compan
heiros não se atreve a abrir
~boca? Parece ate que o adquire para si, e afinal de
#

tas lhe deve ser indiferente que se compre este ou aque-


avalo! Alem dos circassianos, os ciganos e os antigos
U'.
t,
+es de cavalo se distinguiam especialmente; f¢ra-
~!,",eigocian
'dada a primeira fila, e eles tinham a sua palavra a dizer.
~,"ve ate uma especie de duelo entre dois presos, o cigano
~~,`AP~"ko11kov antigo traficante e ladrão de cavalos, e um asfufo
,W,-~ff~0fique siberiano, veterinario por voca ão, chegado havia
~o tempo ao pnesidio, e que j conseguira surripiar
a¢,,,cigano quase toda a freguesia da cidade. preciso
1 1 nofar que os nossos veterin rios "curiosos" eram muito apre-
ciados, não so pelos burgueses o negociantes, mas ate pelos
~: 1 , olfos funcionarios, que os chamavam de prefe~encia aos ve
1 ; terinarios diplomados. Kulikov, antes da chegada de lolki-
--- ne, o muiique siberiano, não encontrara nunca concorrentes;
possu¡a uma rica clienfela, que, bem ent
endido, lhe teste-
-eu reconhecimento em especie sonanfe. Mas,
munhava o s
auf nfico cigano e charlatão, conhecia o oficio muito menos
1.1'1 do que o pretendia. Seus rendimentos +ornavam-no entre
1 os uma especie de aristocrata. Sua experiencia, seu espi-
ri-to, sua audacia, sua decisão, finham-lhe conquistado ha
muito fempo a estima de todos os for ados. Se ali s falava
mui+o pouco, e s0 dava opinião nos casos mais imporfanfes.
Era um fafuo, porem dotado de real energia. Embora ia velho,
conservava a beleza e a in+eligencia de mo o. Creio que ves-
1,1,
tido convenientemente, e apresenfado como conde em qual-
quer um dos clubes de Petersburgo, feria desempenhado muito
bem o seu papel. jogaria whisf, abriria a boca de tempos em
fempos, - com pouca frequencia - afim de pronunciar al-
gumas palavras escolhidas, como o deve fazer um homem di -
tinto, e durante todo o serão ninguem desconfiaria que o pre-
I
#

326
DOSTOIEVSKI
tenso conde não passava de um cigano a-toa. Falo a serio:
seu esp¡rito, seu fato, sua rapidez de adapta ão eram surpre-
end-enfes. suas maneiras de uma d~sf~n 3o perfeita. Provavel-
mente vira muito mundo, em sua vida, porem jamais desven-
dava algum recanto do passado. Pertencia ... se ao especial.
Com a chegada do muiique lolkine, "velho crenfe" duns cin-
quen+a anos de idade, esperto como ninguem, a gloria veteri-
naria de Kulikov empalideceu. Bastaram dois meses a lolkine
para lhe arrebatar a freguesia: os cavalos que o outro j6 aban-
donara h6 muito tempo eram rapidamente curados pelo
siberiano; fazia sarar ate os que os veterinarios diplomados de-
claravam incuraveis. Ele nos fora mandado com um bando de
moedeiros falsos: curiosa id ia, na sua idade, meter-se em
semelhante vespeiral Confou-nos, zombando de si proprio, que
eram necessarias +r s moedas aut nticas de ouro para fabricar
uma falsa! Kulikov tinha motivos para se irritar com o exi+o
do recem-vindo, porque o seu prestigio entre os defentos quase
declinara: ele que sustentava amante na cidade, que usava
um cafe+ã de veludo, anel de prata, brincos nas orelhas,
botas com canos de cor, - devido aquela reviravolta da for-
tuna, foi obrigado ,-~ fazer bo+equineiro. Esperava-se pois
que os dois inimigos a~r,,-)veitassem a compra do cavalo para
chegarem as vias de fato. E a curiosidade aumentava de
vulto porque tinham ambos os seus partidarios. J6 os chefefes
dos dois clãs se injuriavam abundantemente, ia uma careta
sarcasfica crispava a cara de raposa de lolkine; mas as cousas
se passaram de modo inesperado; Kulikov evitou brigas, o
saiu-se do caso com no+avel habilidade. A principio simulou
dar precedencia ao rival, cujas criticas escutou com defe-
rencia, depois o apanhou subitamen+e pela palavra e em tom
modesto, mas firme, f -lo notar que se enganava. Sem dar
ao outro tempo para mudar de id ia, derrions+rou-lhe o erro,
fornecendo minucias precisas. Em resumo, lolkine levou um
xeque, dado da maneira mais rapida e mais habil, e embora
tenha ficado de cima, no apurar das contas, o partido de
Kulikov sentiu-se safisfeifissimo.
RECORDACõES DA CASA DOS MORTOS
327
Não, meus filhos, esse não apanha facilmente, sabe
o que faz, diziam uns.
- lolkine +ambem sabe onde tem o nariz! retorquiam
outros, de modo conciliador.
Ambos os partidos discutiam agora em tom de conces-
o rec¡proca.
#

* Não e que ele saiba muito - mas tem a mão mais


feliz. E, em materia de cavalos, Kulikov não tem medo de
ninquerril
tão forte assim?
Claro! Não tem quem o igua e ...
kk, -
f
11
I
Enfim, foi escolhido o novo Gniedito. Era um animei
bonito, jovem, vigoroso, de aparencia muito agradavel. Pa-
recia irrepreensivel, sob todos os pontos de vista. Come-
afam imediatamente os regateios. Os donos queriam trinta
rublos, nos ofereciamos vinte e cinco. Discufiu-se com calor,
longa e acremente, cedendo de uma parte e acrescentando
,rio outra. Afinal os proprios for ados puseram-se a rir.
- Que e que a gente +em com isso? Sera que vai sair
do nosso bolso? diziam. Que adianta regatear?
- Esfamos poupando o dinheiro do governo, hein?
- De qualquer modo, irmãos, o dinheiro tambern e
nossol
- Nosso? Ora bolas! Não, pelo que veio, ra a de
cretino não precisa ninguem plantar - nasce sozinha!
Entraram finalmente em acordo por vinte e oito rublos.
Mandaram informar o maior, e a compra efe+ivou-se. Trou-
xe-se o pão e o sai; e o novo Gniedko foi conduzido em triunfo
para o interior da fortaleza. Não creio que um umco for ado
,,tenha deixado de vir dar-lhe palmadas no pesco o, ou lhe fazer
festas no focinho. Nesse mesmo dia, a+relou-se Gniedko, e
todos olharam curiosamente o modo pelo qual ele arrastava
&p¡pa. Nosso aguadeiro, Romane, fitava o animal com extra-
ordinaria satisfa ão. Era um labrego duns cinquenta anos,
calado, circunspec+o. Alias, todos os cocheiros russos são
serios e af mesmo taciturnos, como para confirmar a opinião
I
#

129
corrente segundo a qual o convivio constante com os cavalos
acaba por dar juizo ao homem. Romane era pois sossegado,
afavel com todos, pouco conversador; +ornava rape numa ta-
baqueira de chifre, e, desde tempos imemoriais, cuidava e
dirigia o cavalo do presidio; ia estava agora no terceiro ani-
mal. Na nossa opinião, s¢ um cavalo baio servia para a for-
faleza; e, por nada no mundo. feriamos comprado um cavalo
ru o, por exemplo; Romane compartilhava inteiramente dessa
opinião. Quanto ao lugar de aguadeiro, cabia-lhe em vir
fude de não sei que direito, e nunca a nenhum de nos ocorreria
lho disputar. No momento em que o velho Gniedi o morreu,
ninguem, nem mesmo o maior, pensou em acusar Romane:
Deus assim o quisera, e nem por isso Romane deixava de ser
um bom cocheiro. Em breve, o novo Gniedko tornou-se o
favorito do presidio. Os defenfos, embora homens rudes,
iam frequentemente fazer-lhe festas. As vezes, voltando do
rio, enquanto Romane fechava o porfão que lhe fora aberto
pelo sub-c,ficial de guarda, Gniedko, depois de penetrar no
recinto com a sua pipa, parava a esper -los iscand 1h
para o cocheiro.
Adiantei gritava Romane, e Gn¡edko ia embora s(
o-
zinho, ate defronte das cozinhas; Ia se imobilizava, aguar-
dando que as "cozinheiras" viessem apanhar a aqua.
- Gniedko e um malandro! exclamavam os presos. Sabe
andar sozinho! &fende tudo!
Sim, com -efeito, esse animal entende tudo!
Cavalo infeligenfe,,~,,Gnieditol
O cavalo relinchava, m neando a cabe a, como para
mostrar que sabia apreciar as lisonjas. E alguem imediata-
mente lhe trazia p5o e sal. Quando acabava de comer,
Gniedito levantava de novo o focinho e parecia dizer: "Bem
que te conhe o! Bem que +e conhe o! Eu sou um bom ca-
valo e tu es um bom sujeito!"
Tambem ia, as vezes, levar pão a GniedI o. Gostava
de olhar o seu focinho, sentir na palma da mão os seus bei os
macios e quentes que lambiam minha oferta.
RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS
. Nossos defenfos tinham muita capacidade para amar
animais, e se lhes fosse p rmifido, +criam de bom grado en-
chido a fortaleza de b~chos dornesficos e p ssaros. Que
outra ocupa ao seria mais indicada para- abrandar, crio-
brecer, o carater depravado e brutal dos gal s? Mas n o
lhes era permitido faz -lo. Nem o regulamento nem o es-
#

pa o o consentiam.
Entretanto, no meu tempo, alguns animais encontraram
abrigo no presidio. Alem de Gniedko n¢s tivemos caes,
gansos, o bode Vaska e ate mesmo, durante algum tempo,
uma aguia.
Como cachorro titular, possuiamos Charik, de que iã
falei, cão destemido e inteligente, muito meu amigo. Mas
a gente do povo v no cão um animal impuro pelo qual não
convem criar estima, e quase ninquem cuidava em Charik.
Ele vivia ao acaso a sua vida de cão, dormia no pafio, comia
as sobras da cozinha, não despertava nenhuma simpatia,
contudo considerava como seus donos todos os habitantes
do presidio. Na hora em que voltavamos do frabalho, logo
que ele ouvia gritar: "Cabo da guarda!" avan ava para o
por+ão e acolhia cada grupo abanando a cauda e fitando
alegremente os olhos dos for ados, na expectativa dum ca-
rinho. Todavia, durante varios anos, jamais recebeu carinhos
de ninguem, exce+o de mim. E, por essa razão, me preferia
a foclos.
3"
Não me lembro agora como foi que frouxemos Bieika,
o outro cão. Quanto ao terceiro, Kulfiapka, eu proprio o in-
froduzira certa vez em que voltava do trabalho, ... +arde.
Bieika era um animal estranho. Uma carro a lhe passara
sobre o meio do corpo e lhe curvara +anfo a espinha dorsal,
que de longe, olhando-o correr, a gente supunha ver dois
c5es brancos, amarrados um ao outro. Ademais, tinha
sarna, os olhos lhe supuravam, e a cauda pelada pendia cons-
fariferrienfe. Maltratado pela sorte, resignara-se ao silencio.
Jamais ladrava ou grunhia contra ninguem, como se receasse
faz -lo. Vivia sobretudo cle p5o, que comia por fras das ca-
2i
I
#

330
DOSTOIEVSKI
sernas. Se algum de n¢s se aproximava dele, ari-fes que
.chegasse junto, Bieika procurava mo~frar-se arnavel; rola
costas, como para dizer: "Faze de mim o que quiseres que
eu não me defenderei!" E todos os for ados diante de
quem ele :rolava assim, consideravam do seu dever lhe dar
um pontape. "õ cachorro imundo!" Mas Bieika não se
queixava; so se a dor fosse muito forte, solfava um ganido ra-
pidamente abafado. Bieika dava suas cambalhotas diante
de Chark ou mesmo de qualquer outro cão que viesse em
busca de aventuras defronte ... forfaleza. Achafava-se hu-
mildemente, mesmo quando um grande mastim se atirava.
contra ele, rosnando. de crer que os cães apreciam a
humildade e o respeifo da parfe dos seus semelharifes,
porque o mastim furioso imedia+amenfe se aplacava e, me-
ditafivo, defia-se anfe o animal estendido aos seus pes com
as pat;is no ar, e então, lentamente, curiosamente, farejava-
o por todos os lados. "Esfe malvado ira me morder?" pen-
sava decerto Bieika, tr mulo. Porem, depois de o farejar
com cuidado, o mastim abandonava-o, não enconfrando ali
nada digno da sua curiosidade. Imediafamente ~ieika se
erguia nas quatro patas, e, manquejando sempre, juMava-se
ao grupo dos outros que partiam na pista de alguma cadela.
Cerfo de antemão de jamais travar rela ões ¡nfimas com
a diva, seguia-a de longe, assim mesmo, como se nisso en-
con+rasse algum consolo. Sobre honestidade, s¢ possuia
no ões por 'demais vagas. Tendo renunciado a qualquer
esperan a de futuro, confen+ava-se em trazer cheia a pan a,
e nada mais. Tenfei cerfa vez fazer-lhe fesfas. Mas, para
ele, o fato foi fão novo, tão inesperado, que se rojou por
ferra, e, fremenfe, pos-se, a ganir de satisfa ão. Isso me deu
piedade e, desde então, fiquei lhe fazendo fesfas sempre;
por isso, assim que me avistava, Bieika iniciava de longe os
1seus ladridos lacrimosos. Sua vida acabou fora do prasidio,
no basfiã*o, onde foi destro ado pelos outros cães.
Kulfiapka tinha o genio infeiramenfe diverso. Não sei
porque eu o trouxe para o presidio, certa +arde, ievando-o da
oficina onde ele nascera. Sentia prazer em alimenf -lo e
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
331
Chank imediafamente tomou Kulfiapka debaixo da
ão, o o fazia dormir consigo. Consentia af ,
, que o cachorrinho 1,he mordiscasse o pelo e as
., como em gerai o fazem os grandes cães com os
#

C
x=a estranha: Kultiaplita não crescia quase nada
1 m, mas apenas em largura e comprimenfo. Tinha
~ 'i
------ um bonito cinzento cor de rato, e uma das
s ficava pendente, enquanto a outra se erguia.
a todos os cães jovens que, na alegria de avisfar
~ -~_1 , se põe a ladrar, a saltar-lhe ao rosto para o lamber,
ridir diante dele'seu ardor e enfusiasmo. "Conquanfo
,,~~Örem na minha alegria, pouco me importo com as con-
,,,,v"ncias!" Onde quer que eu estivesse, se chamasse Kul-
~a# ele aparecia aos saltos, como se saisse dum al apão,
1
1 ~ 17 1 ~ ; ladridos ruidosos afirava-s
e sobre mim, igual a uma
om
Wa que vai ro
~45, i Iando por um declive. E eu me afei oei a
1 esse monsfrozinho. A sorte parecia + -lo criado umcamente
~para, a alegria e a felicidade. Porem um belo dia, para des-
~gra a sua, Kulfiapka afra¡u a afen ão -especia
l do for ado
que fabricava cal ados de mulher com peles que
1 --- ele proprio curtia. O homem chamou Kulfiapka, +a+eou-lhe
o pelo, deifou-o, fazendo-lhe festinhas. Kulfiapka, sem des-
,,, confiar, gania de prazer, na manhã seguinfe desaparecera!
Procurei-o muito fempo, sem encontrar em lugar nenhum,
,e s¢ soube da verdade quinze dias mais +arde. O pelo de
eapka seduzira Neus+ruiev, que lho tirara e curtira, para
W, com ele forrar umas bofinas de veludo. encomendadas pela
, ~,,mulher do auditor do conselho de guerra. Ele proprio mo
~.,~,^osfrou as bofinas, quando as concluiu: o interior forrado
~~-ficara uma maravilha. Pobre Kulfiapkal
---~,:, , , Muitos for ados se ocupavam em curtir peles, e traziam
--- ,de fora cães de pelo longo, que faziam desaparecer num
;,,,: abrir e fechar de olhos. Roubavam uns, compravam outros.
,,,Uma vez, afras das cozinhas, vi dois de+en+os conspirando.
O primeiro trazia pela trela um cão enorme, magnifico, de
¢tima ra a. Um lacaio ladrSo o roubara ao amo e o ven-
dera por frinfa copeques aos nossos sapateiros. Esfavern
I I
#

332
DOSTOIEVSKI
tratando de o estrangular. A opera ão não oferecia ne-
nhuma dificuldade. Esfolava-se o cão e depois se atirava
o cadaver no grande fosso que ficava nos fundos da forta-
leza, e que no verão, durante o calor, desprendia um cheiro
terrivel, pois raramente o limpavam. O desgra ado bicho
parecia compreender a sorte que lhe destinavam. Olhava
para nos fr s com ar perscrufador, e, de tempos em tempos,
se aventurava em agitar a longa cauda, em sinal de confian a.
Afas+ei-rne as pressas, enquanto os dois cumplices termina-
vam a vontade a execu ão.
Os gansos se tinham estabelecido por acaso no presidio.
Quem os criara? A quem, realmente, pertenciam? Não
* sei, mas durante algum tempo eles divertiram os for ados
* foram assunto de conversa at na cidade. Nascidos na
fortaleza, tinham crescido numa das cozinhas. Quando fi-
cararri adultos, o bando inteiro +ornou o costume de nos
acompanhar ao trabalho. Assim que o tambor rufava e os
for ados se reuniam, os gansos corriam ao nosso encontro,
grasnando, agitando as asas.
Saltavam um aftas do outro o degrau alto do portão,
o corriam para a frente das fileiras; 16 se agrupavam, (aguar-
dando o fim dos preparativos da escolta. Iam-se 5empre
com o contingente maior, e durante o trabalho, esgrava-
favarri pelas proximidades. Assim que os de+en+os se pre-
paravam para voltar, eles novamente reintegravam o cortejo.
Espalhou-se por toda a vizinhan a o boato de que os gansos
acompanhavam os presos ao trabalho. Os passan+es que
os viam, comentavam: "Olhem os gaik e os gansos. Como
foi que ensinaram isso a eles?" "Tome para os seus gansosl"
acrescentava um outro, dando-nos uma esmola. No entanto,
apesar da sua dedica ão, foram os pobres gansos sacrificados
sem do, no fim da quaresma.
Quanto a Vaska, nosso bode branco, ninguern se resol-
veria a ma+61o se não houvesse surgido uma circuns+ancia
especial. Não sei dizer de onde ele viera nem quem o +rou-
xera ao presidio, ainda cabrifinho. Dentro de alguns dias,
RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS
333
1 todos o adoravam, tornara-s
e o nosso divertimento. Des-
: C¢br 1 lu-se um pretexto para
o guardar: era indispensavel um
bode na cavalari a (2). Entretanto, não era na cavalari a
que cio vivia, e sim primeiro nas cozinhas, depois, em toda
, paria. Essa criatura graciosa e estouvada acorria a pri-
. ~' ~ira chamada, saltava sobre bancos e mesas, lutava a chi-
#

fradas co
m os for ados, provocava incessantemente alegria
e, risadas. Certo dia, quando os chifres de Vaska ia haviam
atingido um tamanho regular, Babai, o lezghiano, que estava
~,;~ ~ sentado na entrada de uma das casernas, resolveu lutar com
s~ , -61
e, frente a frente. Durante muito tempo mediram for as;
esse o passatempo favorito dos for ados. De sWito,
Vada saltou no degrau mais alto, e sem deixar ao adversario
o tempo de se por em guarda. erguido sobre as patas tra-
seiras, marrou com os chifres na nuca de Babai, com tanta
destreza e for a, que Babai rolou escada abaixo, para gran-
de alegria dos assistentes e do proprio vencido. Eram
todos loucos pelo animal. Quando Vaska atingiu a idade
nubil resolveram, depois de consulta geral ser¡ssima, que o
bode seria submetido a uma determinada opera ão que os
nossos veferinarios sabiam praticar com mestria. "Pelo
menos assim não h6 de feder!" explicavam os presos. ApOs
a opera ão, Vaska engordou demais. Al s, enchiam-no de
comida. Enfim, fransformou-se num lindo bode, grande e
,gordo, com chifres de no+avel grossura. Gostava de dar
,cabriolas, ao caminhar. Ele fambem nos acompanhava ao
trabalho, para divertimento dos for ados o das pessoas que
enconfravamos. Todo o mundo conhecia Vaska, o bode do
presidio. As vezes, por exemplo, se frabalhavamos ... margem
do rio, um de nos colhia ramos de junco e outras folhagens,
ou flores, no fosso, para enfeitar Vaska. Entrela avam-lhe
flores e ramos em +orno dos chifres, +eciam-lhe qrinaldas em
redor do corpo. , Na hora da volta, Vaska caminhava sempre
em frente da coluna, pimp5o, enfeitado, e os de+enfos que
lhe acompanhavam o passo, orgulhavam-se dele, ao cruzar
(2) O bode considerado mascote nas cavalari as russas. (N. de H. M.)
1 . 1
1
I
#

134
DOSTOIEVSKI
com os transeuntes. O amor que tinham pelo bode era f50
intenso que alguns de n6s, como crian as, pensaram em lhe
dourar os chifres. Perguntei um dia a Akinn Akimifch, o
melhor dourador do presidio depois de lsai Fomitch, se real-
mente a cousa era praficavel. Akim fitou o animal com
aferi ão, refletiu um bom instante, disse que seria possivel,
sim, mas que o dourado não seguraria, e o resultado não
pagaria o trabalho. E o projeto ficou nisso. Vaska po-
deria ter vivido muito, e morreria de asma e velhice, talvez.
Um dia, porem. o maior, no seu carro, encontrou na estrada
um grupo de for ados que voltavam do trabalho, precedidos
por Vaska, engrinaldado e altivo.
- Para! berrou ele. De quem e esse bode?
Explicaram-lhe.
- O que? Um bode no presidio? Sem oermissão
minha? Sub-oficiali
O sub-oficial apareceu, e recebeu ordem imediata de
abater o bode. A pele seria vendida no mercado, a quantia
apurada recolhida a caixa do presidio, e a carne refor aria a
sopa dos presos. Discufiu-se muito, lamentou-se Vaska, mas
ninguem se atreveu a infringir as ordens do maior. Mataram
pois o nosso bode Ia do outro lado da fossa do lixo. Sua
carne. comprada em bloco por um dos de+enfos, nos rendeu
um rublo e cinquenta copeques - dinheiro que seria empre-
gado em kalafchi. Depois de preparar um saboroso assado,
o comprador de Vaska o vendeu a retalho, e todos que dele
comeram o acharam excelente.
Durante algum tempo possuimos +ambem uma aguia das
estepes, de +amanho pequeno. Alguem a trouxera ferida, e
em m s condi ões. Todos os for ados a foram ver, porque
a aguia não podia voar. Sua asa direita pendia por terra
e uma das garras estava quebrada. Ainda revejo os olhos
furiosos que ela deitava ao grupo de homens ao seu redor.
Tinha o bico recurvo entreaberto, pronta a vender caro a
vida. Quando a quiseram examinar, afas+ou-se, mancando,
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
335
do numa perna e agitando a asa valida, procurando o
mais afastado do recinto, e se encostou ... cerca.
~u tr s meses seguidos sem sair do lugar. No cornejo,
1 , ¡3/4 . -la frequentemente, a ulando contra ela
, --- presos iam visita
,,,- o, nosso Chari¡k. O cão se atirava ... aguia com furor, mas
#

--- ~)~enta evidentemente aproximar-se muito, o que divertia


P,4~ ~~ rdinariamente os for ados., "Que animal! diziam. Não
o*ao
um tolo!" Aos poucos, entretanto, Chark curando-se
do, come ou a atormentar realmente a aguia, segu-
-a pela asa doente. A ave se defendia altiva e seiva-
te com todas as for as, com o bico e as garras, como
rainha ferida; encostada ao seu canto, fixava os curiosos
lhe chegavam perto. Enfim, cansaram-se dela, abando-
m-na, esqueceram-na. Contudo, diariamente se via no
'1~11~, ~~ OU canto um peda o de carne fresca e uma tigela de agua:
allguem ainda a cuidava. Durante alguns dias ela não quis
1 , : - so alimentar, depois aceitou a comida, mas nunca das mãos
de ninguem, nem na presen a de qualquer um. Mais de uma
vez a observei de longe. Vendo o vazio fazer-se ao seu
'ireclor, supondo-se sozinha, ela se resolvia a sair do seu canto,
` o saltitava dez passos ao longo da pali ada: voltava depois
~...-,,_- dto ponto de saida, como se estivesse fazendo um passeio
i"nico. Assim que me avistava, corria, capengando, sal-
'~4ando como lhe era possivel ate o seu canto imutavel. E.
- 1 ~--
. ` 1mediafameriM, com a cabe a
erguida, o bico aberto, a plu-
ada, preparava-se para o combate. Meus ca
magem eri
rinhos foram inufeis, não consegui amans i-la, ela bicava, de-
recusava-se a tocar na carne que eu lhe estendia, e
1,1 , , ,,enquanfd me mantinha inclinado sobre ela, não deixava
e
de me fitar com seu olhar feroz e penetrante. Odien+a
solifaria, esperava a morte, todavia continuava a desafiar
onh
~ 1 E
pri
O00
dc
10
g"'
en
ra
foclo o mundo, a se manter inconciliavel. Afinal, ap6s dois
meses de esquecimento, os for ados a recordaram, e a onda
1de simpatia revelou-se de maneira inesperada: resolveram
carrega-ia dal¡.
- At16 porece Qnos Q! ex lamQu um dos presos,
I
#

336
DOSTOIEVSKI
- Ora ora descobm+- *-
41
e o ---so sozin oe mas a agu,
uma ave, enquanfo n¢s somos gente. . .
- A - guia, irmãos, a rainha das florestas... foi c
me ando Skuratov, contudo, daquela vez n¡nguern quer
escut -lo.
Uma farde, quando o fambor rufava para a saida a
frabalho, seguraram a ave enferma, apertaram-lhe o bic
om a mão, porque ela procurava debater-se e bicar, e
levaram af ao basfião. Os doze for ados que formavam
grupo estavam curiosiss¡mos por ver aonde a aguia iria. Cov
sa estranha: estavam fão satisfeitos quanto se eles proprio
estivessem sendo solfos.
- õ desgra ada, a gente lhe quer fazer um bem,
ela d bicada! disse o homem que segurava a aguia, contem-
plando quase com amor a ave m~l¢vola.
- Solta-a, M¡k¡fkal
- - Nem o diabo a segurava! Essa precisa de liberdade
s0 quer liberdade!
Do alto do fafude, atiraram a aguia para a esfepe.
Era no fim do outono, o dia esfava frio e nevoento. O vento
soprava na estepe nua, e gemia atrav s dos altos fefos e da
erva ressequida. A aguia pos-se logo a andar, sacudindo o
asa machucada, como se tivesse pressa em fugir fão longo
quanto seus olhos alcan avam. Os for ados lhe seguiam
curiosamenfe a cabe a que emergia acima do mafo rasfeiro,
- Hein! Olhem aquilo! exclamou um deles, pensativo.
- Nem se volfa para tr s! Nem uma vez se voltou
para tr s, irmãos, tarifa pressa +em d fugir!
- Julgavas que ela havia de se virar para te dizer mui.
fo obrigada?
- Ela est sentindo o cheiro da liberdade, est faro-
jando o c u!
- Sim, a liberdade!
- Perdeu-se de vista!
ue e que voces es+go esperando? A caminho!
grifaram os soldados, e os for ados todos se encaminharam'
em silencio para o fraboffio,
f
4
#

I
#

O
- O1,
1.
1~, µa~.
A queixa
ome ando este capitulo, o editor das memorias do fale-
c ciclo Alexandi- Pefrovitch Goriantchikov sente-se no
dever de transmitir ao leitor a seguinte comunica ão:
No primeiro capitulo das "Recorda ões da Casa dos
,,Mortos" foram feitas certas referencias a um parricida de
origem nobre; apareceu como exemplo da insensibilidIade
corri que alguns for ados aludem aos crimes que perpetraram.
Esse parricida, segundo o vimos, jamais confessou o assassinio,
porem as narrativas das pessoas que conheciam minuciosa-
,menfe toda a his+oria do caso lhe estabeleciam a culpabili-
dade de modo tão irrefu+avel que ninguem a poderia por em
duvida. Essas mesmas pessoas contaram ao autor das "Re-
corda 6es" que o culpado era um ¡nd¡viduo desregrado,
crivado de dividas, e matara o pai ac so pe~a ansia de herdar
V
f
I I
#

340
DOSTOIEVSKI
mais depressa. Alias, toda a cidade natal do parricid *ra
i , , 1
un nime em narrar a hisforia, cousa de que o editor
corda Ses" se informou ampla a ver2;camenfe. Enfim, o ! ku-
for das "Recorda ões" afirmava que no presid¡o o assassino
mantinha um bom humor consfante, que se mostrava levia~o,
esfouvado, - mas nada tinha de tolo, e não se notava n~le
nenhuma crueldade especial. E então, o autor das "Rec ~r-
cla ões" comenta: "E por isso eu não podia acreditar na
sua culpabilidade!" i,
Ha alguns dias, o edifor das "Recorda ões" recebeu
1 V,
da Siberia a noticia de que esse "parricida" tinha as mios
limpas de sangue e cumprira dez anos de pena no pres¡dio
sem os merecer. A propria justi a oficial proclamou-lhe
a inocencia; os verdadeiros assassinos µciram descoberf,61 e
confessaram o crime; o infeliz foi -solto. O editor não p"de
por em duvida a aufenficidade dessa noticia. Mas inutil
discufi-la mais. Que adianta deplorar essa exisfencia mufi-
lada em plena juventude, por acusa ão fão horrenda! Que
adiarifa alongarmo-nos sobre a profundidade fragica desse
fato! Ele sozinho fala alto bastante e torna desnecessario
insistir. Pensamos, en+refan+o, que se tais erros ocorrem, a
sua simples possibilidade da um novo e poderoso relevo ...s
cenas da Casa dos Mortos.
J disse que acabei afinal por me habifuar ... minha
sifua ão. Todavia esse "afinal" foi duro de, :-,+*,,--*.-,, exigiu-me
.1- 1
quase um ano, o ano mais abominavel da minha vida. E
por isso esse ano se gravou em minha memoria, nos seus de-
falhes mais Infimos. Parece-me que cada hora, uma atr s
da outra, me deixou marca. Ja contei ali s que nenhum for-
ado se poderia "habifuar" aquela vida ... Lembro-me que,
no decorrer desse primeiro ano, muifas vezes perguntei a
mim mesmo: "E os outros? terão a alma tão calma quanfo
parece ... primeira vista?" Essa questão me preocupava
muifo. Como j o mencionei, todos os for ados viviam"al-i
.não como em sua casa., mas como numa estalagern,, como
numa parada. Os proprios condenados a prisão perpefua,
.1 quer fossem agitados ou apaticos, sonhavam com qualquer
1 :~ ` ossivel, que, porem, lhes aconteceria. Essa continua
Cousa irrip
inquieta ão, simulfaneamenfe dissimulada e perceptivel, esse
esse impaciente ardor de esperan a que se frafa in-
iamerte e era tão quimerico que se assemelhava a
#

io, - tudo tinha em si elementos bastantes para es-


ate ...s pessoas mais praticas. Eram tra os que
vam ...quele local um aspecto e um carafer excepcionais.
-por exemplo um de nos, mais pueril ou mais impaciente,
punha repentinamente a descobrir seus sonhos, a proclamar
o que todos pensavam em voz baixa, imediata e bru+almenfe
~,o calavam, cobriam-no de apodos: mas fenho a cerfeza de
,,I
que os seus perseguidores mais encarni ados eram justamente
Os que consfruiam a sos os mais insensatos castelos no ar.
J confei, alias, que os individuos sinceros e simples de es-
pirifo eram considerados enfre n6s como sinisfros imbecis,
merecedores apenas de desprezo. Na maioria, eram foclos
muito azedos, muito suscepfiveis, e por isso odiavam em
massa os bons camaradas desprovidos de amor-proprio.
Afora esses poucos tagarelas ingenuos e sem malicia, todo o
resfo dos gal s - isto e, os de genio reservado - se dividia
1 claramenfe em duas categorias: os bons e os maus, os frisfes
e os alegres. Os tristes e maus formavam inconfes+avel-
menfe o grupo maior; se entre eles se enconfrava algum fem-
. 1
peramen+o expansivo, frafava-se sempre dum s6rdido mexe-
riqueiro, um inquieto invejoso. Mas quanto mais se envolvia
no que não era da sua confa, tanto mais recalcava denfro
de si o que lhe dizia respeito pessoalmente, o que se referia
... sua alma e as suas id ias secretas. Não era uso ninguem
w esfranho
volunfar
delir
1,5
se expandir. Os bons - em numero infimo - tinham modos
franquilos. Dissimulavam profundamenfe as suas esperan as,
ew claro, tinham para o devaneio uma tendencia muito mais
forte que os maus. Devia fambem haver no presidio cria-
furas despojadas de qualquer esperan a, - como, por
exemplo, o velho de Starodubov. - porem eram em numero
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
341
O
#

342
DOSTOIEVSKI
muito diminuto. Apesar dos ares sossegados desse velho,
compreendi entretanto, por cerfos indicios, que era horrivel
o seu estado de a!ma. Resfava-lhe um consolo, um recurso:
a prece, a id ia cIn mortifica ão. O leitor perpetuo da Bi-
blia, de quem ia falei, um belo dia enlouqueceu e atirou um
tijolo no maior; deveria fambem ser um daqueles a q , uern a
esperan a abandonara. Como fosse impossivel viver sem
esperan a, procurara a mor+e por infermedio desse marfirio
volunfario. Declarou que afacara o maior sem odio, sim-
plesmenfe levado pelo desejo de sofrer. E quem sabe o
frabalho que se processara em sua alma? Homem algum
pode viver sem um alvo que se esforce porafingir; se não
ferri mais finalidade nem esperan a, o desespero faz dele um
monsfro ... A meta de todos n¢s era a liberfa ão, a saida
da fortaleza. . .
Es+ou tentando, nesfe momento, classificar em cafego-
rias o nosso presidio, mas a tarefa e imposs¡vel. A realidade
e infinifamenfe diversa, escapa as engenhosas dedu ões do
pensamenfo abstrafo; não suporta nenhuma arregimenfa ão
precisa e esfrei+a. A realidade tem +endencia para o es-
facelamento perpetuo, para a variedade infinifa. Mesmo
Ia, entre nos, cada um mantinha a sua vida disfinfa, privada,
ao lado da vida oficial, regulamenfar.
Como ia o contei parcialmente, logo a minha chegada
eu não soube penetrar nas profundidades de-,d VIJa inferior,
e por essa razSo foclas as suas manifesfa 8es me provocavam
uma angustia inclizivel. ¶s vezes odiava aqueles seres que
contudo sofriam fanto quanto eu. Acontecia-me af invei6-
[os, amaldi oar minha sorfe. Invejava-os porque, apesar de
tudo, viviam entre si como camaradas, capazes de se com-
preenderem mufuamen+e-, entretanto, na realidade todos se
sentiam fão fatigados como eu, todos se sentiam enojados
daquele companheirismo debaixo do a oite, daquela pro-
miscuidade obriga+oria; foclos sentiam aversão uns pelos ou-
fros e não procuravam senão isolar-se. Repito-c, ainda, esse
odio que me obsedava nos piores momentos tinha motivos
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS 343
1 leig¡timos: erramos quando prefendemos que os nobres, nas
prisões, nao sofrem fanfo quanto os da plebe. Ouvi, ulfi-
~mente, sustentada essa afirmativa; li ate artigos de im-
rensa defendendo-a. Mas o princip~o "Todos os homens
iguais" (principio alias justo e generoso), e por demais
rato. Perde de vista uma infinidade de fatos praticos,
poss¡veis de compreender quando n¢s mesmos não os
vamos. Não vou querer afirmar que o homem de clãs-
#

superior, o homem instruido, sinta as cousas mais in-


samenfe, mais dolorosamente, pelo fato de ser mais de-
olvido. A alma e seu desenvolvimento não se medem
r dados fixos. A propria insfru~So, nesses casos, não
a servir de medida. Sou o primeiro a reconhecer que
poderj
"I
as pessoas menos instruidas, mais humildes, mais
.
miseraveis, descobri tra os do mais perfeito desenvolvimento
; ; 1 , . Assim, pois, no presidio, conheci os mesmos homens
~,,~µuranfe varios anos. Desprezei-os, de inicio, n3o enxergando
neles senão animais ferozes. E de repente, no momento
Mais inesperado, a alma desses homens involun+ariamenfe
te expandia. Revelava uma tão grande riqueza de senti-
imenfos, fan+a cordialidade, uma compreensão fão clara do
proprio sofrimenfo e dos sofrimenfos alheios, que nos pri-
meiros instantes não acreditava nem nos meus olhos, nem
nos meus ouvidos. O confrario fambern sucede: o homem
cultivado desenvolve, as vezes, uma barbaria e um cinismo
1,41k1 que nos provocam nauseas, e por mais indulgente, por mais
Orevenido que se esfeia, não se poderia descobrir nele nem
~ @` . justifica ão nem desculpa.
Deixarei de parte a mudan a de h bitos, de g nero de
~, 1 vida, de alimenta ão, que, para um homem de certo nivel
liocial, e infinifamenfe mais penosa que para um muiique.
Este, na pris5o, pelo menos come o bastante para satisfazer
a fome. Não quero, porem, discutir a tal respeifo. Embora
essa bagatela não seja fão insignificante quanfo se pensa,
admitamos que nao tenha nenhuma imporfancia para um
1~
homem de for a de vonfade ... Mas ba uma especie de
Po
#

344 DOSTOIEVSKI
1 RECORDA õES DA C
ASA DOS MORTOS 345
1
sofrimento diante do qual fudo empalidece, de maneira
arranjar. Ao cabo de duas horas
estar6 instalado entre eles
que j6 não se afenfa na sujeira infefa que nos rodeia, nem nas
da forma mais pacifica, na mesma
isba ou sob a mesma tenda.
resfri ões que nos esmagam, nem na comida parca e repul-
Nada de semelhante acontece com um
homem educado.
siva. Depois de trabalhar o dia inteiro, vertendo o suor do
1 Um abismo profundo o separa do homem
da plebe; isso se
sou rosfo como nunca o fez em liberdade, o mais efemi,nado,
observa amplamente quando ele perde
os seus direitos primi-
enfre os efeminados, o barine de mãos mais brancas, come
tivos, e quando enfra efetivamente
nas fileiras do povo. E
sem reclamar o pão negro e a sopa f rv¡lhanfe de baratas.
mesmo que durante a vida inteira
tenha o barine frequen-
A genfe se habifua a fudo, como o recorda jocosamente
fado os muiiques, mesmo que durante
quarenta anos tenha
a cantiga dos for ados sobre o ex-fidalgo cheio de mimos
estado em confacto com eles, ou como
funcionario, ou pelo
que cai no presidio: simples desejo de convi
ver, de obsequiar, jamais os conhe-
"Dão-me couves com agua, cera a fundo: fudo ser a
penas ilusão de ¢tica. Sei muifo
e eu nelas meto o dente
" bem que alguns leitores destas
linhas prefenderão que estou
Não, o principal e que duas horas depois de enfrar noexagerando, mas sei
que fenho razão. Minha certeza não se
presidio, o homem do povo, qualquer que seja ele, senfe-se se baseia em l
ivros ou em teorias: baseia-se em fatos e ia
tive tempo suficiente p
ara a comprovar. Talvez mais tarde
colocado no mesmo ponto que os oufros: esf6 em' sua casa,
tem os mesmos direitos que os seus companheiros, perfencese reconhe a o fun
damento destas afirmativas
... comunidade dos for ados. compreendido por focios e
a todos compreende, foclos o reconhecem, todos o consi
Como um fato proposital, os
acontecimentos confir-
deram um dos seus. Não aconfece o mesmo com um homem mararn minhas observa ões
feitas logo aos primeiros dias,
de classe social superior. Por mais correfo, bom, infeligenfee agiram cru
elmente sobre os meus nervos. Duranfe o pri-
que seja, ver-se-6 odiado e desprezado duranfe anos infeirosmeiro verao n
ao fiz senão vaguear, e quase sempre s0. Meu
pelos gal s em massa, que nao o compreendem, e, cousa maisestado de esp¡rifo
não me permitia apreciar, nem mesmo
11
greve, nele não confiam. Não e nem seu amigo nem seu distinguir os fo
r ados que mais farde se afei oaram a mim,
companheiro, e se, com o fempo. cor,,gue~aifinal que não o que, entretant
o, jamais me trataram em p de igualdade.
molestem, nem por isso continua a ser menos esfranho para Alguns dos m
eus companheiros haviam, como eu, pertencido
os demais. Eterna e dolorosamenfe, +em que confessar a si as classes s
uperiores, mas seu convivio não me atraia. Eu
mesmo que continua soli+ario, que e mantido para se*rnpre não queria ver
ningu m, nem podia fugir para lugar nenhum.
segregado. O vacuo se faz ao seu redor, as vezes sem m6 Vou citar co
mo exemplo um incidenfe que me fez compre-
inten ão da parfe dos presos. O novato não e da igualha ender logo focla a
estranheza, toda a solidão em que eu cair - a.
deles - e e so. Nada mais horroroso que não se viver no No mes de acio
sfo desse verão, por um dia claro e quente,
proprio ambiente. Transplantado de Taganrog a Pefropa- 16 pela uma
hora da +arde, quando de habito a gente
vlosk (1) o homem do povo encontrara imediafamente oufros fazia a sest
a antes de voltar ao trabalho, os for ados se
homens do povo com os quais depressa se ha de enfender e levantaram r
epentinamente, todos a um s0 tempo e se reu-
#

niram no pafio. Eu ate


erifão nada percebera de anormal.
i') Taganr09 fica ...s margens do mar de Azav, cerca de dois mil quil¢met
ros de Ali is, nessa 6poca, andava, ...s vezes,
+ão profundamenfe
Petropaviosk, na Siberia ocidental. (N. de P, Q) mergulhado nos meus pe
nsamentos que não prestava a+en 3o
24
J
#

346 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA


CASA DOS MORTOS 347
alguma ao que me cercava~ Contudo, havia ia tr s dias
o presidio se agitava intensamente. Essa agita ão era alias
gundo depo:s o descobr'¡, r2cordan-
muiio mais õMicia. se 1 1
do trechos de conversa, o mau humor evidente dos for-
ados, a irrifa ão crescente de que davam provas. Eu atri-
buia,isso ao trabalho por demais penoso, aos longos dias esma-
gadores da esta ão quente, aos sonhos involun+arios de va-
gabundagem na floresta, em liberdade, as noites curtas du-
rante as quais não podiamos satisfazer o sono. Todas essas
causas talvez, reunidas, provocaram uma explosão sUbita, cujo
pretexto foi a ma alimenta ão. Fazia algum tempo j que
os homens se queixavam em voz alta, reclamavam pelas ca-
sernas, sobretudo ... volta das cozinhas depois do jantar e da
ceia, desconferifes com as "cozinheiras": tinham ate +enfado
trocar um deles, mas foi preciso demitir imediatamente o
novato e voltar ao antigo. Em suma, o mau humor era geral.
- A gente trabalha de morrer, e s¢ nos dão porcarias,
resmungava um, nas cozinhas.
- Se a gororoba, n3o +e agrada, encomenda manjar
branco! pilheriava um outro.
- Não ha nada melhor do que cuuve com sebo, ir-
mãos! observava um terceiro.
- E se te dessem couves com sebo a vida inteira,
confinuarias gostando?
- verdade, bem que podiamos comer um peda o de
carne, comentou um quarfo preso. A gente se es+rompa
trabalhando na fabrica, e quando chega precisa por um bo-
cado na boca. Essa porcaria não 6 comida!
- E quando não e sebo que nos dão, são miudos.
- Sim, ou sebo ou miudos. A 'b¢ia e so isso. Sera
justo?
E' uma imundicie!
- E o cachorro vai enchendo o bolso!
- Não tens nada com isso!
- E por que não? A barriga e minha! Se fizermos
clueixa, todos ao mesmo tempo, hão de ver!
I
I
- Fizermos queixa?
- Isso mesmo!
- Est -se vendo que a~nda nSc, apanhasfe basfan~a,
por causa de queixas, cretino!
- isso, rezingou um outro que ate então se man-
#

fivera em silencio. Quem muito quer fudo perde. Que


e que pretendes dizer, ia que s +ão esperto? Pois fala fu,
andal
- E' claro que falo. Se foclos forem comigo, eu falo.
Quem pobre, sofre! Aqui +em gente que enche a barriga
do bom e do melhor, enquanto a tripa dos pobres ronca.
1 - Sujeito invejoso! Vive de olho comprido na comida
dos outros!
- Ninguem ponha o olho no prafo alheio; acorde cedo
e cozinhe o seu!
- Ora bolas! Nos dois poderiamos discutir isso ate
ficar de cabe a branca! Quem fe ve, fica pensando que
s rico!
- Sim, rico como lerochka que tem um cachorro e
um gafo!
- E' verdade, irmãos, que e que a gente espera? Ja
chega de passar mal! Estão nos tirando o couro e o cabelo!
Por que não vamos falar?
- Para que? Pensas que "Oito olhos" vai te meter
bons bocadinhos no bico? Não, meu velho, lambe os bei os.
Lembra-fe que esfamos no presidio - e o resto e fuma a.
- sempre o mesmo: Deus mata de fome o pobre e
engorda o vaivocla.
- Isso mesmo. "Oito olhos" esfa¡ engordando. Com-
prou uma parelha de cavalos ru os.
- Bem, e beber não lhe agrada ...
- Faz dias que ele e o ve+erinario nã'o se apartam dum
baralho.
- Passaram a noite jogando. -durante mais de duas
horas o maior não feve um trunfo na mão!
#

48 DOSTOIEVSKI
- Não admira então que a gente s¢ tenha sopa de
sebo! - Bando de idiotas! Se não estivessem af, de boca
aberta, outro galo nos cantaria! ver que
- Mas se formos 16, todos juntos, vamos
que ele diz. Vamos, vamos de uma vez.
- E que e que o maior vai dizer? Tens vontade de
levar um murro nas ventas?
- E ir novamente a julgamento?
A agita ão ia pois em crescendo. Naquele momento,
com efeito, a comida andava pavorosa. Tudo, alias. con-
corria para provocar a explosão; a angustia surda, o secreto
sofrimento perpetuo enchiam as medidas. Os for ados, por
natureza, são rixen+os a rebeldes, mas as revoltas em massa
são raras no pres¡dio, devido ao eterno desacordo entre
os homens. E isso, todos o sentiam muito bem; eis por que
havia entre n6s mais palavras que atos. Entretan+o, dessa
vez, a agita ão teve consequencias. Come aram a se reunir
em grupos, puseram-se a discutir nas casernas, a reclamar,
a recapitular com odio toda a administra ão do maior, a son-
da-la a fundo, ate o amago. Alguns, principalmente, se
agitavam muito. Nas questões desse g nero, tanto nas pri-
sões como nas corpora ões operarias, ou nos destacamentos
de soldados e+c., h6 sempre insfigadores, caudilhos, indivi-
duos em geral curiosissimos, e pertencentes todos a um tipo
iderifico. São almas ardentes, avidas de justi a, - uma jus-
+i a da qual esperam o mais ingenuamente, o mais honesta-
mente poss¡vel, uma aplica ão absoluta, infal¡vel, sobretudo
imediata. NSo +em nada de +olos: são, ...s vezes, a+ muito
mais inteligentes que os demais, porem sofrem dum ardor
excessivo, que não lhes consente agir com as+ucia e pruden-
cia. Se, nos casos desse genero, se encontram sempre homens
P
que sabem dirigir a massa e resolver tudo bem, e porque
eles pertencem a outro tipo de chefes populares muito raros
entre nos. Porem, esses de quem estou falando agora, esses
insfigadores de "queixas" perdem quase sempre a partida
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
349
e vão encher as cadeias e os presidios. A impetuosidade
perde, quando lhes d6 influencia sobre as massas.
deles oscompanhados. Seu ardor, sua honesta
São de boa mente a
indigna ão, agem sobre foclos; e ate mesmo os mais irreso-
lutos os acompanham. Sua f cega no exito seduz a+6 os
mais empedernidos ceticos, embora frequentemente essa fe
#

tenha bases tão pouco firmes, tão infantis que a gente per-
gunta a si proprio como foi que ela o pode inspirar. O
segredo da sua influencia esta em marcharem ... frente e não
terem medo de nada. Avan am como +ouros, cabe a baixa,
defesas para cima, sem saberem sequer do que se trata, sem
o jes£ifismo pratico gra as ao qual o mais vil, o mais repug-
nante dos homens as vezes tem ganho de causa e sai da chu-
va sem se molhar. E, desse modo, quebram infalivelmente a
cabe a. Na vida cotidiana, essa esp cie de gente biliosa,
de dificil convivencia, irritadi a, in+olerante, e na maioria,
muito obtusa, - o que, alias, e um dos fatores da sua or a.
O mais lamen+avel e que, ...s vezes, em lugar de se encami-
nharem diretamente ... meta, se precipitam para os lados: es-
quecem o essencial para se prenderem as minucias, e por
isso se perdem. En+retan+o s3o compreendidos pela massa, e
essa a sua for a ...
E preciso dizer algumas palavras sobre a significa ão
do +ermo "queixas".
i
Alguns dos nossos for ados tinham justamente sido con-
denados por um caso dessa especie: eram os mais excitaveis,
sobretudo um deles, Marfynov, antigo bussardo, homem ar-
doroso, inquieto, desconfiado, embora honesto e de boa fel
Citarei ainda um outro, Vassili Antonov, indiv¡duo que a san-
gue-frio exibia um olhar sarcasfico, um sorriso altivo, - muito
esperto, alias, mas igualmente correto. Não os posso citar
todos, infelizmente, pois eram numerosissimos. Pe+rov ia
e vinha, escutando os grupos sem falar muito, mas provavol-
mente animadissimo, pois foi ele o primeiro a vir para fora da
caserna quando come aram a sa reunir os presos.
#

DOSTOIEVSKI
Nosso sub-oficial. que desempenhava as fun ões de sar-
e reocupado.Uma vez
,n~o_major, (2) chegou logo muito Pfavor de
ormados, os gales delicadamente lhe solicitaram o
izer ao maior que o "presidio" lhe desejava falar e pedir
Igumas explica ões. Por tr is do sub-c,ficial, puseram-se
m fila todos os invalidos, defronte aos for ados. O recado
ado ao sargento era +ão ex+raordinario que o encheu de
perito. Mas era-lhe impossivel deixar de imediatamente
lafar os fatos ao maior. Em primeiro lugar, se o presidio
se rebelasse, poder-se-ia esperar tudo, e ademais, os nossos
chefes eram bastante polfr&es, quando se tratava de enfren
tar os presos. Em segundo lugar, se nada se, passava de
grave, se denfro em pouco os de+en+os mudassem de ideia
1 e se dispersassem, o sub-c,ficial continuava do mesmo modo
obrigado a redigir seu relaforio. Muito paiido e +remendo
de medo, ele se precipitou para a casa do maior, sem fazer
i nferrog ato rios, sem discutir com os presos. Compreendera
que nao era com ele que queriam "falar".
Ignorando do que se tratava, coloquei-me +ambem em
fila. SO mais tarde soube das minucias do caso. Naquele mo-
men+o, pensava que iam proceder a qualquer chamada-, não
vendo, porem, os soldados que de ordin rio se encarregavam
disso, admirei-me e p£s-me a espiar ao meu redor. Notei
que muitos me olhavam com grande surpresa, mas se afas-
tavam sem dizer palavra. Não podiam acredifar que eu
fambem tivesse queixas a articular. Entrefan+o, logo depois,
quase todos que me cercavam fixaram em mim um olhar in-
ferrogador.
-m a di
- Que fazes a[? perguntou e is+ancia, em voz alfa
e em fom grosseiro, Vassili An+onov, e que ate então sempre
me frafara por "senhor" e com grande cortesia.
Olhei-o, perplexo, procurando perceber o que significava
aquilo, ia adivinhando, contudo, que se passava qualquer
cousa de anormal.
(2) Atualmente, o sargento encarregado da contabilidade. (N. de R. Q)
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
i
351
- Sim, e verdade, que fazes aqui? Volta para o alo-
jamento, +alou-me um sossegado rapaz da se ão militar, que
eu af então não conhecia. - Não tens nada que fazer junto
de nos.
#

- Mas estão todos formados! respondi. Não vão fa


zer chamada?
- Vejam! Aquele +ambem saiu da focal grifou alguem.
- Nariz de ferro! bradou outro.
- Papa-moscas, berrou um terceiro, com inexprimivel
desprezo. Esse novo dito provocou risadas gerais.
- Vai para a cozinha, acrescentou um.
- Estes onde quer que estejam estão muito bem. Aqu 1
no presidio, papam pão doce e leitão de forno. N o comes
separado? Que es+6s fazendo aqu19
- Aqui não e seu lugar, atalhou em tom amistoso Ku-
likov. E, +orriando-me o bra o, me fez sair da fila.
Estava muito palido, os seus olhos pretos faiscavam, e
mordia o labio inferior. Decerto não esperava o maior a
sangue-frio. Eu gostava muito de o olhar nessas emergen-
cias, pois então revelava-se todo.
Estava representando como num palco, mas agia. Creio
que iria para o suplicio corri a elegancia de um grão-senhor.
Naqueles momentos em que todos me tratavam por tu e me
insultavam, ele se esfor ava -em redobrar de gentilezas para
comigo. Ao mesmo tempo, as suas palavras eram +ão firmes,
tão altivamente resolutas, que não foleravam replica.
- Esfamos aqui para tratar das nossas coisas, Aiexandr
Pefrovi+ch, o senhor não +em nada com isso. Afaste-se, va
esperar onde quiser. Olhe, os seus colegas estão na co-
zinha, va para W
- Estão no cluenfinho, Ia dentro!
Pela janela entreaberta da cozinha vi realmente os po-
lacos e, segundo me pareceu, muita gente com eles. Com-
plefamenfe desconcertado, fui para Ia. As risadas, as
jurias, os estalidos com a lingua (que no presidio subs+i+uerr
os assobios), acompanha ram-me.
J
#

352 DOSTOIEVSKI 11 RECORDACõES


DA CASA DOS MORTOS 353
- :Não agradou ao harine! Tiu-flu-tiu! Anda, agarra!
Entre eles via-se certo numero de
individuos de genio fris-
Jamais, at então, fora tão gravemente ofendido pelos
tonho e grave; alimentavam a
obstinada certeza de que o
for ados; e, daquela vez, a cousa me feriu profundamente.
caso não levaria a nada, que dele s¢
sairia mal. Contudo, em-
que eu surgira num momento critico. Na entrada da bora convencidos de qu
e suas previsões quanto ao resultado
cozinha, encontrei T-ski, um jovem fidalgo sem grande ins-
da queixa se confirmariam, (o que os
fa+os- corroboraram) sen-
fru ão. mas de cara+er firme e generoso, - o mesmo que fiam-se consfrangidos
e pareceu-me que o seu olhar carecia
era cegamente dedicado a B. Os for ados abriam uma ex- de seguran a. Consider
avam-se renegados que haviam frai-
ce ão a seu favor, e quase se pode dizer que lhe queriam
do a corpora ão, e vendido os seus
companheiros ao maior.
bem. Cada um dos gestos daquele mo o denotava bravura, Enfre eles disfingui
a-se lolkine, aquele astuto mujique siberiano,
coragem, vigor. condenado como moede
iro-falso. e que roubara a clientela de
- Que foi, Gorianfchikov? Venha cal grifou ele. Kulikov. Vi fambem o
"velho crente" de Starodubov. Ne-
- Mas que e que hV. nhuma das "cozinheir
as" se mexera; julgavam decerto que,
- Querem se queixar, nSo sabia? Al s, não vão con- pertencendo a administ
ra ão, não poderiam +ornar partido
seguir riada; quem acredita em for ados? O maior manda contra ela.
procurar os insfigadores, e se estivermos enfre eles, sera
- Enfrefanfo, disse eu
dirigindo-me embara ado a M-cki
sobre nos que ha de recair a culpa. Lembre-se do que nos
fora esfes, todos estão 1a.
trouxe para ca. Eles serao apenas fustigados, mas n¢s - Sim. mas que temo
s n¢s com isso? rosnou 13
seremos levados a julgamento. "Oito olhos" nos odeia e
- Arriscariamos muito mais que
eles, indo para Ia-, e
ficara satisfeito se nos desgra ar. Seremos a sua justifica-
com que fim? Je hais ces
brigands (3), ajuntou M-cki em
ão. frances. Voc acha que a
reivindica ão deles dar6 em alguma
- E os "colegas" serão os primeiros a nos enfregar de
cousa? Vão se complicar - e so
o que lucrarão.
pes e mãos atados, acrescentou M-cki, quando enframos na
- verdade, disso não vai
sair nada de bom, apoiou
cozinha. um dos outros for ados,
um velho de genio azedo e teimoso.
- Claro, não terão do nem piedade, confirmou T-ski.
1, Almazov, que fambem esfava
entre nos, apressou-se em
Alem dos nobres, uns trinta presos se haviam refugiado
concordar veementemente.
nas cozinhas: uns, covardes demais para queixas, outros, con-
- ! Uns cinquen+a pelo
menos irão as varas, decla-
vencidos da inutilidade da medida. Esfava 16 Mim M¡mitch,
rou.
inimigo figadal de qualquer manifesta ão confraria ... boa
- Esfa . ai o maior!
grifou alguem, e todos se precipita-
ordem e a disciplina; esperava sem dizer palavra, numa calma
~i 1 1 ram para as janelas.
absolufa, +3o pouco o preocupava o desenlace do caso
O maior acorria, furioso,
desesperado, rubro, com os
convicfo do triunfo inevifavel da ordem e da auforidade1'~, '¢culos na cara
. Sem uma palavra, porem decidido, avan ou
Com a cabe a baixa e muito inquieto, Isai Fomi+ch escutavaperto dos homens
enfileirados. Nesses casos sua bravu
com avidez medrosa as nossas conversas. Todos os rLisficos,~-¡ra era real,
e não lhe faltava presen a de espirifo. Alias,
polacos haviam considerado bom agruparem-se -em `forricestava quase sempr
e embriagado. Af mesmo o seu gorro
dos seus fidalgos. Alguns for ados russos, fimidos, - gentesebento, com bar
ra alaranjada, e as dragonas de prata tinham
#

ap tica, silenciosa, deprimida, que não ousava fornar parfe em (3) "QdeiQ e
stes briguentosi" (N de R. Q)
nada, - esperavam com angustia Q resultado da reclama ão.
#

354
DOSTOIEVSKI
naquele instante qualquer cousa de sinistro. Seguia-o O
furrie! Dia+lov, personagem extremamente importante, que
dirigia tudo no presidio, e tinha mai¡s influencia que o vo-
prio maior. Era um velhaco mas sem maldades, e os for a-
dos sentiam-se satisfeitos com ele. Afras de Diaflov vinha
o nosso sargento, que decerfo levara uma boa ensaboadela,
e esperava outra, dez vezes pior. Tres ou quatros soldados
os seguiam. Os presos, que estavam de cabe a descoberta
desde o momento em que haviam mandado chamar o maior,
endirei+aram-se rapidamenfe, enrijaram-se nas pernas, depois
se imobilizaram, aguardando a primeira palavra, ou melhor,
o primeiro grifo do chefe.
Não tiveram que -esperar muito: j ... segunda s¡laba o
maior berriava como um possesso; sibilava, f5o grande era
o seu furor. Da janela, podiamos v -lo correr ao longo da
fila, afirar-se para a frente, interrogar. Es+avamos entretanto
afastados demais para lhe entender as perguntas, bem como
as replicas dos for ados. Escu+avamos-lhe apenas o grifar,
com voz estridente:
- Uma rebelião! ... As varas! ... os cabe as! Tu que
6s cabe a disso, fui uivou, afirando-se a um homem.
Não se ouviu a resposta. Mas ao cabo dum momenfo
vimos um for ado deixar a fileira e sair para o corpo da guar-
da. Um instante ap6s um outro o seguiu, depois um fer-
ceiro.
- Todos a julgamento!. . . Eu ... e que esf6 havendo
na cozinha? silvou ele, avistando-nos a+rav6s das janelas aber-
+as. Todos aqui! Tragam-me todos!
O furriei Dia+lov veio ate a cozinha. Alguns dos nossos
lhe declararam que não tinham queixa nenhuma a formular.
Ele se afasfou imediatamente, afim de dar parte ao maior.
- Ah, esses não +em nada que clizer! comentou o chefe,
em voz baixa, evidentemente satisfeito. Não faz mal, todos
aqu¡!
N6s saimos. Vi que senfiamos alguma vergonha aõ
faze-lo, pois esfavamos todos de cabe a baixa.
#

11
~I
1
of
i
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
Prokofievi lolkine e tu, Almazov.
357
. . por aqui, por
aqu,, reur¡am-sei ordenou o nosso tirano em voz arquejante
m s abrandada, fitando-nos com ternura. M-cki, tu fam-
bem. Anda, toma nota dos nomes, Diailovi Toma no+a ia
dos nomes dos individuos satisfeitos, e os nomes dos descon-
fenfes, todos os nomes, a+ o ultimo, e me da a lista. . .
Vou lev61os foclos a conselho de guerra, ... Vou mostrar do
que sou capaz, seus cr pulas!...
A lista produziu o seu efeito.
- N6s esfamos safisfei+os! grifou um dos descon+enfes,
21 mas em voz sombria e incerta.
Ah, ah! satisfeito! Quem mais esfa sa+isfeifo?
estiver satisfeito que avancei
Satisfeito, safisfei+o! bradaram algumas vozes.
Satisfeitos? Quer dizer que foram a ulados por
alguem? quer dizer que +em entre si cabe as, rebeldes?
Pior para eles!
- 'Senhor, que significa isso! exclamou uma voz, no
dos homens.
- Quem grifou, quem foi? rugiu o maior, precipifan-
do-se par
a o lado de onde saira a voz. Fosfe tu que grifaste,
~I Resforguiev? Para o corpo da guarda]
Rasforguiev, um mo o gorducho, saiu da fila e entrou
lentamente no corpo da guarda. Não fora ele que grifara,
1 ~ mas como o maior o havia designado, não ousou confradi-
Es+So rebentando de gordos, por isso reclamaml
,;,,-,urrou "Oito olhos", erguendo-se nos facões das botas.
~"Olhem esse focinho roli o! não se lhe d a volta em fres
Hei de apanha-los todos! Saiam os que estão safis-
foitos!
Satisfeitos, Excelencia, articularam -algumas dezenas
·e vozes surdas. O resto manteve um silencio obstinado.
~~I Todavia o maior nada mais desejava. O que melhor lhe con-
~ vinha era liquidar esse negocio o mais rapidamente possivel.
#

i DOSTOIEVSKI
1 ora todos estão satisfei+osi disse ele as pres-
c Claro
ue o sabia. A culpa e dos cabe as - - .
~,s de motim entre eleS, conflinuou, d*¡rigindo-se
que descobri-los todosi E agora ...
Tambor. foca!
agora es-~ .,, hora do trabalho!
s. Tristemente,
a
Ele proprio assistiu forma ão dos grupo
-em silencio, os for ados partiram para o trabalho, felizes pelo
menos em fugir ao olhar +errivel do chefe. Depois da partida
dos pelotões, o maior se dirigiu vagarosamente para o corpo
da guarda onde tornou suas medidas contra os "cabe as",
medidas alias não muito crueis. Contaram mais +arde que
um deles, que pediu perdão, foi desculpado imediatamente.
O maior, ou tinha pressa, ou não se sentia muito seguro.
Quem sabe não estava corri medo? Urna reivi 1 ndica ão e
sempre cousa espinhosa. A falar verd . ade. a queixa dos for
ados não poderia equivaler a uma reivindica ão, porque fora
dirigida não a administra ão superior mas ao proprio major.
Nem por isso, contudo, deixava de ser desagradavel, devido ...
unanimidade dos descontentes. Era preciso pois abafar a
cousa a qualquer pre o. Depressa soltaram os cabe as.
Logo a comida foi melhorada, - infelizmente por muito pouco
tempo! Nos dias seguintes o maior veio com mais frequen
cia inspecionar o presidio, e +ambem mais frequentemente
encontrou desordens a reprimir. Nosso sargento ia e vinha,
preocupado, desorientado, como se persistisse no seu estu
por. Quanto aos for ados, custaram a se aquietar: entre
tanto, a agita ão silenciosa deles não se parecia.com a dos
primeiros dias: mas o seu silencio não +raia menos inquieta ão
e embara o. Alguns se mantinham de cabe a baixa. Alguns
resmungavam e aludiam involunfariamen+e ao caso. A maio
ria zombava amargamente uns dos outros, como para se pu
nirem do motim.
- Toma, mano velho, +orna, come] debochava por
exemplo um deles.
- Quem semeia ventos colhe ~empes+ades!
i
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
359
- Onde esta o rafo que amarrava o chocalho no rabo
#

do gato? insinuava um terceiro.


- N¢s ca somos convencidos a poder de vara - todo
o mundo sabe disso. Foi sorte que ele não nos mandasse
a oitar a todos!
- Se a gente soubesse as cousas adiantado, falaria
menos e se portaria melhor! observou um outro, não sem aze-
dume.
Queres dar alguma li ão? Olha o professor!
Isso mesmo, quero te dar uma li ão!
Antes disso, podes me dizer de onde vens?
Posso te dizer que eu, eu sou um homem, e tu o que
7
es.
- Um osso de cachorro, e o que es!
- Osso de cachorro es fui
- Basta, basta, ia berraram demais! grifavam vozes de
todos os lados, acalmando os rixenfos.
No mesmo dia da queixa, ao voltar do trabalho, encon-
frei Pefrov por fras das casernas. Ele ia me procurava.
Aproximando-se de mim, resmungou duas ou fres exclama ões
incompreensiveis, depois calou-se com ar embara ado, e
Os-se a caminhar ao meu lado, maquinalmenfe. Todo o caso
ainda me pesava com for a sobre o cora ão, e parecia-me
que Pefrov me poderia dar certas explica ões.
- Confa, Petrov, voces não estão com raiva de n¢s?
- Raiva de quem? perguntou ele como se acordasse de
S£bito.
- Voces, de+en+os, de n¢s, os nobres!
- E por que lhes haveriamos de querer mal?
Porque não os acompanhamos na queixa!
E por que nos haviam de acompanhar? replicou es-
fQr ando-se por entender-me. Voc s comem separado!
- Ora ora! Ha muitos de voces que comem separado
e que, entretanto, se amotinaram. E n¢s deveriamos fam-
bem ... por companheirismo ...
#

360
e
DOSTOIEVSKI
- Ora! Como e que voc s poderiam ser nossos compa-
nheiros? indagou Pefrov muitissimo surpreso.
E'e de-c¡d*
Afirei-lhe um rapido o!~,ar. E- ;darnenfe não me
compreendia, não ia ate onde eu queria chegar. Em com-
pensa ã'o, eu o compreendia perfeitamenfe. Pela primeira
vez, uma id ia -que me perseguia ha muito, sem,conseguir
tomar corpo, se precisava no meu pensamento. Weirei-me
duma coisa da qual ate então tivera apenas uma intui ão con-
fusa; compreendi que jamais os for ados me considerariam
um companheiro, mesmo que eu passasse ali o resto da vida,
mesmo que pertencesse a se ão especial. A expressão que
se pintou no rosto de Pe+rov, quando ele me disse: "Como
e que voc s poderiam ser nossos com pa nhei ros? ", essa expres-
são me ficou gravada na lembran a. Havia nela +ão franca
ingenuidade, tão singela surpresa, que perguntei a mim mesmo
se não dissimulava a ironia, o odio, o escarneo. Mas não: -
eu não era companheiro deles, e nada mais! "Seque +eu
caminho que eu sigo o meu; trata dos teus negocios que eu
trato dos meus."
Com efeito, pensei que depois da queixa eles se puses-
sem todos a nos mortificar, a nos +ornar a vida impossivel.
Não houve, porem, a minima injuria, a men , or censura. nenhu-
ma animosidade especial. Continuaram a nos debicar de
bom humor, quando se apresentava ocasião. Não guardaram
rancor nem aos que se mantiveram afastados, nem aos que
em primeiro lugar se haviam proclamado satisfeitos. Nin-
quem mesmo deu palavra a tal respeito.
E era principalmente esse silencio que me deixava afonifo.
-11
Vill
Comoanheiros

nfre os companheiros. os que a principio mais, me atraiam


ram, e claro os meus iguais, - os nobres. Porem,
enfre, os fr s representantes da nobreza russa que se
pntravam no presidio, - Akim Mimitch, o espião A. e o
, condenado como parricida, - travei amizade apenas
1 1 1 Akim Akimifch. A falar franco, s¢ o procurava em deses-
de causa, nos momentos mais angustiosos de fedio;
1 do supunha não me poder entender com ninguem mais.
, Ö, nos capitulos anteriores, dividir os for ados em cate-
C14 .
#

s, mas, ao recordar-me de Akim Akimi+ch, creio dever


cenfar uma categoria, a qual, alias, ele preenchera sozi-
a dos for ados indiferentes, aqueles aos quais pouco
. rfa viver em liberdade ou no presidio. Essa especie de
furas não poderia existir entre nos, senao na qualidade
#

exce ão. Akirn Mimitch. pois, c onstituia ele s¢ a e De aIO:


sfalara-se no presidio como se devesse passar ali da, a
istencia. Tudo que o cercava, o colchão, o travessei :), os
ensilios, estava solida e cuidadosamente arrumado, para
mpre; nada sugeria uma vida provisoria, de acampamento.
kim Mimitch deveria passar ainda muitos anos no presidio,
berfa ão. Entre+anW,
as creio que nunca sonhou com a li
e se acomodara a realidade, era menos por bom cora ao
por esp¡rito de disciplina, - o que para ele dava no
mo. Esse bom sujeito m'e amparou, de inicio: encheu-me
e conselhos, prestou-me grandes servi os, mas algumas ~
es, confesso-o,.me provocava um aborrecimento profundo:
agravava, com a sua presen a, a minha desmedida fendencia
para a angustia, essa mesma angustia que procurava esquo-
er, quando dele me aproximava. Havia momentos em quo-eu
tinha sede de ouvir palavras vivas, mesmo rudes, -mesmo
impacientes, mesmo duras-. poderiamos desabafar juntos
sobre a desgra a do nosso destino*, ele, porem,- calava-se e
faz¡a-s.e indiferente, ou então narrava minuciosamente a re-
vista militar que tinha sido feita no ano tal, citava os
nomes e o sobrenome do chefe de divisão, narrava a safisfa-
ão ou o descontentamento testemunhado por esse perso-
nagem, discriminava as confinencias +rõcadas. Tudo isso em
voz igual, mon6+ona, como agua que escorre gota a gota.
Animava-se so um pouquinho mais quando me contava que,
em retribui ão ao papel por ele desempenhado em não sei que
acontecimento, no Caucaso, juigaram-no digno de receber a
condecora ão de Santa Ana. Nesse minuto, sua voz se +or--
nava extraordinariamente grave e seria: baixava-a uma oitava,
e assumia um ar misterioso para dizer: "Santa Ana". Então,
durante pelo menos +res minutos, guardava severo silencio.
Durante o primeiro ano passei por instantes absurdos em que,
d chofre, eu odiava quase, e sem o menor motivo, o coitado
Akim Akin---ii+ch: e, en+3o, amaldi oava em silencio a ma sorte
que nos fizera dormir vizinhos, na mesma tarimba. Passada
uma hora, envergonhava-me dessa irri+a ão. Alias, so a
DOSTOIEVSKI
DOS MORTOS
RECORDA OES DA CASA
363
sofri no. primeiro ano. Depois acos+umei-me ao genio de
Akim Akimi+ch e deixei de sofrer dos antigos acessos de
loucura. Acho que nunca brigamos abertamente.
Alem desses tr s russos,' tive como companheiros de
infortunio mais oito fidalgos - todos polacos. Travei rela-
#

- ões muito agradaveis com alguns deles, mas não com todos.
Os melhores eram doentios, exigentes, impacientes ao mais
alto grau. Com dois desses acabei rompendo definitivamente
rela ões. Tr s, apenas, eram realmente pessoas de instru ão:
B-ski, M-cki e o velho J-ki, outrora professor de ma+ernafica,
¢timo velho, muito original e muito pouco inteligente, ape-
sar. do seu saber. M-cki e B-ski eram inteiramente diversos
um do outro. Com M-cki eu me entendi logo de inicio, e
nunca trocamos uma palavra mais aspera; estimava-o muito,
mas quanto a lhe querer bem, a me afei oar a ele, disso nunca
fui capaz. Profundamente azedo e desconfiado, ele conser-
vava contudo um grande dominio sobre si proprio. Esse
controle proposi+al, - talvez excessivamente proposital -
era justamente o que me desagradava: sentia-se que jamais,
por amor de ninquem, ele poria sua alma a nu. Entretanto,
talvez eu me engane, pois ele tinha uma natureza forte e
nobre ... Sua habilidade ex+raordinaria, talvez um pouco
iesuifica, sua reserva nas rela ões com os outros, +raiam um
profundo ceticismo. Todavia aquele c tico mantinha uma f
-em certas esperan as. Essa
,¡riaBalavel em certas convic ões,
, :'dualidade representava o seu tormento. Apesar do seu +ato,
~:,v¡via em guerra aberta com M-cki e T-ski. B-ski era doente.
-~predispos+o a fisica, irri+adi o, nervoso, porem, no fundo, ge-
11, Reroso e bom. Sua irritabilidade o +ornava, ...s vezes, tão
caprichoso quanto uma crian a. NSo me pude acostumar ao
seu genio, o afasfei-me de B-ski, sem contudo deixar de o
aprec .Com M-cki, jamais tive um rompimento as claras,
~1~ iar.
~1~ ~
irias não gostava dele. Por causa de B-ski afas+ei-me fam-
bem de T-ski, aquele rapaz de quem ia falei no capitulo pre-
dl
cedenfe, a prop6si~o da nossa queixa. isso me aborreceu
#

364 DOSTOIEVSKI
muito, porque T-ski, embora de instru ão precaria, e~.i valen-
te, generoso, encantador. Adorava B-ski, venerava-o tanto,
que todos os que com ele rompiam, +ornavam-õr au+ornatica-
mente seus inimigos. Separou-se +ambem de M-cki, mas
dificilmente se resolveu a isso. Devo notar que todos aqueles
homens tinham o moral enfermo, o genio amargo, o tempera-
menfo sombrio. E isso se concebe: o presidio era para
eles mais penoso que para nos. Estavam muito longe da
patria, alguns haviam sido deportados por muito tempo, dez,
doze anos. E, cousa mais grave, vencidos por um preconceito
indesfrufivel, não viam nos for ados senão animais ferozes,
e não podiam nem lhes queriam reconhecer nenhum sinal de
humanidade. Cousa compreensivel fambem: o seu destino,
a for a das circunsfancias, os lavava por esse carninho; o
sofrimento os sufocava. Afaveis com os circassianos, os
tarfaros, com Isai Fomi+ch, fugiam com horror de todos os
clarriais de+en+os. SO o velho crente de Sfarodubov lhes
conquistara a estima. Entretanto, cousa nofavel, durante
todo o meu tempo de presidio, nunca nenhum dos outros
presos lhes censurou a origem, nem a religião, nem as convic-
ões, como o faz frequentemente o nosso povo nas suas rela-
ões com esfrangeiros. sobretudo com alemães, vitimas prin-
cipais de zombarias. Nossos for ados mostravam muito mais
respeito pelos polacos que por n¢s, russos; raramente lhes
atiravam remoques, cousa em que alias os polacos não se dig-
navam reparar.
Mas voltemos a T-ski. Fora ele quem, por ocasião da sua
fransferencia para o nosso presidio, carregara nos bra os
durante quase toda a noite o seu amigo B-ski, de saude e cons-
fifui ão debeis, extenuado ao cabo de meia jornada. O
lugar para onde os deportaram fora a principio U-gorsk (1)
onde, segundo contavam, viviam bem, pelo menos muit¡ssimo
melhor que entre nos. Como, porem, tinham iniciado cor-
respondencia - ali s inocenfissima - com exilados de outra
(1) Sem d£vida o autor se refere a Ust-Kamenogorsk, na prov¡ncia de Semipa-
latinsk. (N. de H. M.)
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
365
cidade, as autoridades julgaram necessario transferir os fr s
para a vigilancia direta do nosso comandante superior. A+6
a chegada deles, M-cki vivera s¢; quanto não devera ter so-
frido, durante esse primeiro ano de deporta ão!
Todos os nossos presos pol¡ticos eram jovens. Apenas
J-ki, aquele velho de quem ia falei, que vivia eternamente a
rezar, -chegava aos cinquenta anos. Esse homem, decerto
#

hor¡radissimo, mostrava algumas singularidades. Seus compa-


nheiros B-ski e T-ski não o apreciavam; não lhe falavam quase
nunca, apodavam-no de teimoso e ferino. Não sei aM que
ponto tinham razão. Um presidio, como qualquer outro lugar
onde as pessoas estão reunidas ... for a, e não esponfanea-
mente, parece-me lugar adequado ao nascimento de questões
e odio; muitas causas para isso concorrem. Ali s, J-ki real-
mente era pessoa de esp¡rito obtuso, desagradavel; nenhum
dos companheiros com ele se entendia. Nunca brigamos,
porem nossas rela ões nunca foram ¡nfimas. Devia ser bom
matem tico. Lembro-me que um dia se esfor ou, na sua lingua
semi-russa, por me explicar um sistema asfron"mico de sua
inven ão. Disseram-me que outrora ele imprimira uma obra
sobre esse assunto, mas que todo o mundo cient¡fico o levara
na tro a. Talvez tivesse o juizo um pouco incerto. Passava
dias inteiros a orar, de joelhos, o que lhe conquistara o res-
peito de todo o presidio, respeito que conservou ate ...
morte, pois morreu no- nosso hospital, sob minhas vistas, ao
fim de tormentosa molesfia. Conquistara a venera ão dos
for ados logo no dia da sua chegada, devido a uma his-
foria que houve entre ele e "Oifo olhos". Durante a viagem
entre U-gorsk e nossa fortaleza, não haviam raspado a cabe a
nem a cara dos deporfados; a barba lhes crescera, e como
foram levados diretamente para o maior, este, ao v -los, enfu-
receu-se ante aquela ignominiosa infra ão ... disciplina, da qual
entretanto eram todos inocentes.
- Olha essas caras! rugiu o chefe. Parecem vagabun-
dos, bandoleiros!
#

866
DOSTOtEVSKI
Por essa poca. J-ki ainda compreendia o isso muito."
mal, pensou que lhe perguntavam: "Quern sã voc...?" e
respondeu:
- Não s6mos vaga un os, somos deportados pol¡ticos.
- O que? Ainda vens com insolencia? berrou o maior.
Para o corpo da guarda! Cem vergastadas!
Fustigaram o velho. Ele se estirou sob as varas, mordeu,'
a mão, e recebeu o castigo sem um grito, sem ao menos se
mover. Nesse in+erim, B-ski e T-ski chegavam a caserna.
M-cki os esperava ... porta. Aperfou-os nos bra os, embora
jamais os houvesse visto. Revoltados com a recep ão do
major, eles lhe contaram o que acontecera a J-ki. Ou o
ainda M-cki a me narrar a his+oria: "Eu estava fora de mi,%-,
j não me continha mais, de tanta furia, tremia de febre. Fui
esperar J-ki a entrada; deveria voltar diretamente do corpo
da guarda, onde estava sendo fustigado. De repente, abri-
ram a porta. Sem olhar para ninguem, J-ki, descoberto, os
labios palidos e tr mulos, passou diante dos presos que esta-'
vam no pafio e que 16 sabiam que se havia fustigado um
barine. Entrou na caserna, foi para o seu lugar, dep
.R&-
sem dizer palavra, ajoelhou-se e come ou a rezar. Os fdr ã-
dos sentiram-se não s6 surpresos, mas comovidos. Quando
vi aquele velho, aquele homem de cabelos brancos, separado
da esposa, dos filhos, que ficaram todos na ferra natal, quando
o vi ajoelhar-se e rezar ap6s a iniqua puni ão, uma c61era
ferrivel me sufocou; corri para +ras das casernas, e durante
duas horas -Fiquei 16, embrufecido, como bebedo." . ---
Desde então, os for ados conquistados por seu silenci , o
'debaixo do a oite, mostraram por J-ki uma considera ão toda
especial.
Sejamos justos, entretanto, e não julguemos por esse
exemplo a conduta da adminisfra ao para com os deportados
de origem nobre, russos ou polacos. Ve-se apenas que um
homem mau, se e o comandante, pode agravar singularmente
a sorte dum exilado quando este lhe desagrada. Mas, con-
fessemo-lo, o alto comando da Siberia. do qual depende a
#

i
I
V
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
, 369
a
conduta dos subalternos, d' provas de discernimento no que
se refere aos deportados dessa especie; em certas oportu-
nidades, at , por causas bem claras - lhes mostra mais
indulgencia que aos outros. Em primeiro lugar, esses chefes
tambern são fidalgos; em segundo, citam-se casos em que
os nobres, de preferencia a receberem os a oites, se atira-
riam aos execu+ores, o que acarretaria lamentaveis consequen-
cias; em terceiro lugar, de uns trinta e cinco anos para ca,
~% a Siberia recebeu uma grande quantidade de fidalgos (2).
NEsses barines conquistaram o respeito geral e se fizeram tão
apreciados que no meu tempo, gra as a um habito j antigo,
a administra ão encarava os criminosos de origem nobre com
olhos bem diversos dos que tinham pelos deportados comuns.
Essa atitude passara do alto comando aos chefes subal+ernos,
os quais calcam seus modos e atos pelos dos superiores.
Entretanto, muitos dentre os inferiores criticavam sem rodeios
o procedimento dos chefes em rela ão aos nobres. Ficariam
encantados se lhes fosse dada carta branca, em vez de se
sentirem assim coagidos. Tenho pelo menos fortes razões
para crer nisso, -e ei-las aqui: a segunda categoria do pre-
sidio, a qual eu pertencia, e que era composta por for ados
outrora servos, submetidos a autoridade militar, era infinita-
mente mais severa que as duas outras, isto e, a terceira -
(trabalhos de usina) e a primeira (trabalhos de minas); e isso
nao s6 para os nobres, mas para todos os for ados, precisa-
mente porque sua organiza ão milifarizada se identificava ...
das companhias correcionais da Russia. O regime militar
mais severo, a ordem e mais esfrita, nunca se dispensam as
grilhefas, nem os vigilantes, nem os ferrolhos, o que nao se
ve com rigor id ntico nas outras categorias . Era pelo menos
~...
o que afirmavam os nossos for ados, e não faltavam enfen-
didos entre eles. Teriam passado contentes para a primeira
categoria, -que a lei considerava no entanto como a mais
penosa, e mais de um, ate. -,onhava com essa mudan a,
(2) O autor refere- e novamente ac "decembristas". (N. de H. MA
I I
#

DOSTOIEVSKI
Aqueles dentre os nossos que tinham estado nos presi-
os da Russia, falavam a seu respeito com horror unanime;
arantiam que, em compara ão, a vida na Siberia era um pa-
iso. Se, pois, apesar da severidade do noslo regime militar
da presen a do propric, governador geral, se apesar de
mor de que alguns funcionarios, levados por excesso de
lo, por inveja ou por maldade, mandassem relatorios se-
retos sobre as trangress6es de um ou outro chefe, - se
essas circunsfancias ainda se encaravam os criminosos no-
r s com mais benevolencia que os outros for ados, deveriam
ra+6-los com muito maior indulgencia nas duas outras se ões.
Dado o lugar em que eu me encontrava, creio poder
eduzir o que se passava em focla a Siberia. As noticias, as
arrafivas que me chegaram,a esse respeifo, por interm dio
os for ados da primeira e da terceira categoria, confirmam
inhas conclusões. Na realidade, a administra ão dava para
onosco provas de certa habilidade. Nos não gozavamos,
laro, de imunidade nenhuma, no que se referia ao +rq~)alho e
reclusão: a mesma farefa, as mesmas grilhe+as, os, mesmos
ferrolhos; tudo, conosco, era igual ao dos demais for ados. Era
mpossivel agir de outra maneira: sei que numa poca pouco
longinqua os delatores, os intrigantes, os cavadores de minas
sob os p s dos outros pululavam na cidade, e a administra ão
se mantinha aler+a-, considerava-se um crime qualquer inclul-
gencia com certa classe de de+en+os. No medo de se pre-
judicarem, de perderem o lugar, os chefes nos tratavam pois
do mesmo modo que aos outros for ados: mas faziam exce-
ões quanto as puni ões corporais. A falar verdade, seria-
mos fustigados direitinho, se o merecessemos, isto e, se corne-
1
fessemos a menor falfa; o regulamento exigia que a igual-
dade ... Entretanto, não se atreveriam a nos punir sem
motivo. E a puni 5o sem motivo não era nenhum mito e
permitia a certos chefes subalternos, por demais inclinados ao
zelo excessivo, aplica-la a torto e a direito. Soubemos que,
ao infeirar-se do sucedido com o velho J-ki, o governador se
indignara com o maior, e o intimara severamente a conter-se.
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
371
Todos me falaram nisso. Sabiamos que o maior levara uma
reprimenda do governador geral em pessoa, - contudo, o
-governador tinha confian a no maior. E o nosso tirano nSo
se esquecera disso. Teria muito gosto em fustigar M-cki, a
O~ ~ 11
quem odiava, por causa das dela ões de A.; mas nunca con-
i" seguiu satisfazer esse desejo, a despeito das provoca ões que
#

lhe fazia, da espionagem a que o submetia. Toda a cidade


depressa ficou ao par do caso de J-ki, e o maior teve confra si
toda a opinião p
1 .---£blica; muitos o censuraram, alguns ate lhe
16,
1~n 1
afronfas.
Recordo muito bem o meu primeiro enconfro com o
maior. Durante a nossa estada em Tobolsk, +inham-nos con-
fado ferriveis hisforias sobre o genio pavoroso desse homem.
Alguns fidalgos deporfados, que moravam em Tobolsk havia
vinte e cinco anos, e nos vieram visifar varias vezes enquanto
descansavamos da jornada, fizeram questão de nos prevenir,
para que +orriassemos cuidado. Tinham fambem nos prome-
tido procurar, por in+ermedio de varias pessoas, poupar-nos
...s persegui ões do maior. E realmenfe escreveram s fres
filhas do governador geral, vindas da Russia em visita ao pai,
e que provavelmente lhe falaram em nosso favor. Mas que
poderia fazer o governador? Simplesmente advertir o maior
de que mosfrasse mais composfura. Foi pelas fres horas
que meu companheiro e eu chegamos a cidade: os soldados
da escolfa nos levaram direfamente a presen a do firano.
Ficaffios em p , esperando-o, na an+ecamara. Ja haviam
prevenido o sub-oficial. Assim que esfe apareceu, surgiu
tamb m o maior. Aquela cara vermelha a, avinhada, hosfil,
nos causou uma impressão dolorosa: parecia uma aranha
feroz pronfa a devorar uma pobre mosca, presa na feia.
Teu nome? pergunfou ao meu companheiro. Falava
em voz corfan+e, desfacada, que visava produzir um deter-
minado efeifo.
Fulano.
E tu? continuou ele, dirigindo-se a mim, e fixando-me
atrav s dos ¢culos.
i,,
#

372
DOSTOIEVSKI
- Beltrano-
- Sub-ofici¢li Leva-os imedi citam ente ao Presil-3i01
1 . 1 isto e, metade
devem raspar cabelo e barba como CIVIS - a. QUe capo-
da cabe a. os ferros serão mudados amanhi
tes são esses, de onde v rn? indagou de chofre, avistando
os capotes cinzentos, com c¡rculos amarelos nas costas, que
nos haviam sido entregues em Tobolsk, e nos quais estavarnos
vastidos, sob a inspe ão dos seus oculos fuzilantes. - um-
forme novo? ... Decerto esta em estudos? ... Ordem de
Petersburgo? ironizava, fazendo-nos girar cada um por sua
vez. . . - Não trazem nada consigo? perguntou depois a um
dos guardas que nos comboiava.
- Tem as suas proprias roupas, Excelencia, respondeu
o guarda, que se endireitou logo, e ate mesmo estremeceu de
leve. Todos o conheciam, todos o temiam.
- Tomem conta de tudo: deixem apenas a ro~upa bran-
ca. Se a roupa de baixo for de cor, e não branca, +ornem
+arribem. O resto sera vendido em leilão. O dinheiro ser
inscrito na receita. Um for ado não possue nada, acrescen-
+ou, fitando-nos com severidade. E cuidado, porfem-se berni
Não quero ouvir nada, senão ... castigo cor-po-rali Ao
menor delito, - as varas1
Por falta de habito, aquela recep ão me deixou meio
doente durante quase toda a noite. O que vi depois no
interior do presidio, so me fez agravar o mal-estar-, todavia
ia falei nisso tudo.
Acabo de dizer que eramos tratados em p de igualdade
com os outros for ados. Uma vez, entretanto, procuraram
nos auxiliar; durante +r s meses consecutivos fomos emprega-
dos, B-ski e eu, como secrotarios no escri+orio de engenharia.
A cousa foi feita em segredo, por ordem do engenheiro-che-
fe, - quer dizer, aqueles que deveriam saber da nossa pre-
sen a Ia, fingiam ignora-la. O caso se passou sob o comando
do feriente-coronel G-kov, que nos caiu por assim dizer do
c u, mas que demorou muito pouco tempo - seis meses no
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
373
m xirno, se bem me lembro, e retornou a Russia deixando uma
recorda ão irdelevel no cora ão de todos os for ados.
-Pode-se dizer que o amavam, que o adoravam, se cabe aqui
esta palavra. Ignoro como ele o fizera, porem os soubera con-
quisfar a primeira vista. "Um pai, um verdadeiro pai!" excla-
#

mavam os presos a cada instante, vendo-o dirigir os trabalhos


de engenharia. Era um homem de pequena estatura. alegre,
de*olhar atrevido, farrista despudorado, que se mostrava
para com os for ados de uma amabilidade que ro ava
... ternura. Amava-os realmente como um pai. Não sou
capaz de explicar as razões desse amor, mas o fato e que ele
não podia avistar um detenfo sem lhe dizer uma palavra afa-
vel, sem rir e brincar com ele; e agia sem mostrar o minimo
esp¡rito de comando, nada que lembrasse o chefe, ou apenas
a 1 condescendencia do chefe. Senfia-se realmente nele um
camarada, um igual. E apesar desse dernocrafismo intenso,
nem uma umca vez os for ados se atreveram a lhe faltar com
o respeito, ou a menor familiaridade. Apenas, o rosto dos
clefen+os se iluminava quando avistavam o comandante: fira-
,vam o gorro, sorriam amplamente, s6 ao v -lo chegar. Se o
comandante lhes dirigia a palavra, parecia que lhe dera um
presente! Eis os efeitos da popularidade! Tinha um olhar
de crian a, caminhava com grandes passadas. "Parece uma
aquia!" comentavam os for ados. Ele não os podia auxiliar,
4 claro, não lhes podia minorar a sorte porque dirigia apenas
, os trabalhos de engenharia, executados segundo formas legais,
,-~, os+abelecidas ia defi nifiva mente. Mas se por acaso encon-
trava um pelotão de for ados cuja tarefa terminara, em vez
de os prender inutilmente, mandava-os embora antes do rufar
do tambor. Os for ados adoravam a confian a que ele lhes
,testemunhava, seu esp¡rito sem mesquinharias, seu procedi
M, men+o irrepreensivel nas suas rela ões de chefe para com os
subordinados. Se o comandante perdesse mil rublos e o mais
empedernido dos nossos ladrões os encontrasse, creio que os
devolveria. Sim, tenho certeza disso. Imagine-se pois com
que profunda emo ão souberam que o "nosso" comandante
#

374
DOSTOIEVSKI
esfav8 rompido de fogo e sangu com o odioso maior! Foi .
no primeiro mes depois da sua chegada. O maior, não sei
quando, fora companheiro de armas do comandante. Quando
se fornaram a encontrar, apos longa separa ão, come aram
divertindo-se juntos, todavia, em consequencia de uma dis-
cussão, G-kov ficou inimigo figadal do an+i~o camarada.
Correu ate o rumor de que haviam chegado a vias de fato,
cousa muito possivel com o nosso maior, que finha a nião
leve. Assim que os for ados souberam da historia, sua alegria
chegou ao auge: "Claro que "Oifo olhos" não poderia se
dar com um homem daqueles! ... Nosso comandante e um
aguia, enquanto o maior e ... !" - a palavra que o,qualificava
fere profundamenfe a decencia. E os presos desejavam apai-
xonadamente saber qual dos dois homens vencera no pugilato
que lhes era imputado. Se o boato fosse desmentido, teriam
sofrido um enorme desapontamento. "Decerto o coman-
dante escangalhou o maior", diziam; "ele pode ser pequeno,k
mas não sabe o que e medo; o outro e capaz de se fer metido V
debaixo da cama, para se esconder!" Porem em breve G-kov
foi embora, para lufo do pres¡dio infeiro. E' preciso reco-
nhecer que os comandanfes de engenharia eram todos exce-
lentes pessoas. Durante o meu tempo, mudaram-ri s fres ou
quatro vezes! "Nã*o, nunca veremos um igual!" afirmavam
os for ados. "Era uma aguia, um anjo da guarda!"
Foi pois ess , e G-kov que nos mandou, a B. e a mim, +ra-
balhar algum tempo no escriforio, por simpatia ante os sofri-
men+os dos deporfados nobres. Depois de sua partida, nossa
situa ão ficou de certo modo regularizada. Alguns oficiais
de engenharia (um deles, sobretudo) eram Muito bondosos
conosco. Dev¡amos copiar rela+orios, e nossa caligrafia ia
melhorando, quando de sUbi+o veio ordem superior de+ermi-
nando que volfassemos imediatamente as nossas ocupa ões
anteriores. Alguem se dera ao trabalho de nos denunciar!
Não nos entristecemos, porque a vida nos escri+orios come-
ava a ser fatigante. Depois, durante dois anos seguidos,
ficamos nas oficinas. Conversavamos, falavamos das nossas
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
375
esperan as, das nossas cmvic ões. O meu excelente B.
finha as vezes opiniões estranhissimas, muito exclusivas. Com
frequencia pessoas infel~genfes se obsiinam em defender
espantosos paradoxos; e que sofreram tanto por suas id ias
que lhes seria por demais penoso, quase imposs¡vel, renunciar
a elas. A menor obje ão feria B., que sempre me replicava
#

---comazedume. Talvez muitas vezes ele enxergasse mais claro


que eu, mas por fim tivemos de nos separar, cousa que
fez sofrer enormemente, porque finhamos muitos ponfos
COMUM.
Entretanto, com o passar dos anos, M-cki tornava-se cada
3/4ez mais sombrio. O desgosto o consumia. Nos primeiros
meses de minha deten ão, ele era mais comunicativo, mostra-
1 va mais claramente seus pensamentos. Come ava então seu
,,, ferceiro, ano de pres¡dio. A principio inferessava-se principal-
menfe pelo que se passara no mundo durante os Ulfimos dois
anos; inferrogava-me, ouvia, apaixonava-se. Mas pouco a
pouco, fornou-se mais fechado, ia não se expandia. O exfe-
rior ardente cobria-se de cinzas. A amargura crescia nele
mais e mais. "Je hais ces brigands!" repetia ele em frances,
olhando com horror os for ados que eu j6 aprendera a conhe-
er: nenhuma das minhas explica ões a favor daquelas cria-
furas tinha influencia no seu espiri+o. Ele não compreendia
11
que eu falava, se concordava, distra¡do, nem por isso dei
i . , , d pefir no dia seguinte: "Je hais ces brigands!"
xava e re
, Como frequentemente conversavamos juntos em frances, um
,,.,-Vigilante dos f rabalhos, o soldado de engenharia Dranichnikov,
eipelidou-nos, nSo sei por que, de "os enfermeiros". M-cki s6
se animava quando falava em sua mãe. "Esta velha, doente,
gosta de mim mais do que de tudo no mundo, e eu não sei se
ainda e viva ou morta! Foi um golpe forte demais para ela,
saber que me haviam a oitado!".. . Como M-cki não era
nobre, tivera que sofrer antes da reclusão o casticio corporal.
Não o recordava nunca sem trincar os dentes e desviar os
olhos. Nos ultimos tempos, procurava cada vez mais a soli-
y
#

376
DOSTOIEVSKI
dão. Uma ocasião. ao meio-dia, mandaram-no chamar em
casa do g,;vernador, que o recebeu com um sorriso nos labios:
- Então, M-cki, com que sonhaste esta noite? indagou
o governador.
(Quando ele me perguntou isso, estremec¡, contou m-cki
ao voltar. Era como se me traspassassem o cora ão).
- Sonhei que recebia uma carta de minha mãe, res-
pondeu ele.
- Melhor que isso, muito melhor! replicou o governador.
Estas livre! Tua mãe fez uma s£plica, e sua suplica foi levada
em considera ão. Esta aqui a carta dela, e esta aqui a +ua'
ordem de soltura; vais deixar imediatamente o presidio!
Ele voltou para junto de nos, livido, abaladissimo pela
noticia. Felicifarrio-lo e M-cki nos apertou as mãos com os
dedos tr mulos e gelados. Muitos for ados lhe deram os
parabens.
Foi ser colono, e ficou na nossa propria cidede, onde lhe
arranjaram logo um emprego. De inicio vinha frequ ente-
mente nos visitar, e quando o podia, comunicava-noS'-a'S noti-
cias: o que mais o interessava era a polifica.
Dos quatro outros polacos (fora M-cki, T-ski, B-ski a J-ki)
dois jovens, deportados por pouco tempo, eram ignorantes,
porem honestos, simples e francos. O terceiro, A-czukovski,
era muito vulgar, mas o quarto, 13-m, homem de idade, nos
produziu uma impressão abominavel. Não pude compreender
a presen a dele entre aqueles condenados, e ele proprio ne-
gava qualquer participa ão no movimento. Era um alma
grosseira, mesquinhamente burguesa, com h bitos e id ias de
vendeiro enriquecido vintem a vin+em. Desprovido de ins-
tru ão, não se interessava por nada, salvo por seu oficio de
pintor, no qual era alias um mestre. A administra ão de-
pressa se inteirou das suas capacidades, e toda a cidade o
reclamou para decorar paredes e tetos. Em dois anos ele
pOs novas em folha quase todas as res¡dencias dos funciona-
rios; pagavam-no bem, de modo que nunca lhe faltava di-
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
377
nheiro. Mas o melhor da hisforia foi que lhe concederam
auxiliares. De tanto o acompanhar, dois dos ajudantes aca-
bararr¡ aprendendo o oficio, e um deles, T-czevski, +orrou-se
+ão bom pintor quanto o mestre. Nosso maior, que morava
numa casa do governo, pediu por sua vez a B-m que lhe pin-
tasse as paredes e o teto. B-m se esfor ou tanto, que nem
mesmo a residencia do governador geral se comparava com
#

a do maior. Era um velho predio +erreo forrado de madeira,


deprepito e arruinado quando visto de fora, porem decora-
J9 interiormente como um palacio, o maior ficou radiante ...
ESfregava as mãos, contava a quem queria ouvir que ia ca-
sar-se: "Com uma. casa assim, que mais posso fazer?" acres-
confava em tom grave. E estava encantado com B-m e seus
ajudantes. O trabalho durou um m s, durante o qual "Oi+o
olhos" mudou comple+amen+e de id ia a nosso respeito, e
come ou ate a nos proteger. Levou as cousas tão longe
que um belo dia mandou chamar J-ki.
J-ki, falou, eu +e ofendi, mandei +e fustigar sem ra-
zao; sei disso e o lamento. Compreendes? Eu, eu, o Ia-
menfo!
J-ki respondeu que compreendia.
- Compreendes que eu, +eu chefe, +e mandei chamar,
para +e pedir perdão? Sentes isso? Quem es tu, diante de
- mim? Um verme! Menos que um verme! um for ado! E
eu, sou maior pela gra a de Deus (3)! Maior, compreendes
bem?
Mi respondeu que farribem o compreendia.
- Bem, então, agora, fa o as pazes configo.- mas es+6s
sentindo isso, estas sentindo de verdade9 em toda a sua
grandeza? Ser6s capaz de o compreender e o sentir? Ima-
gina apenas: eu, eu, um major ...
E assim por criarife.
O proprio J-ki contou a cena. Via-se pois que algo de
humano dormia ainda dentro daquela besfa avinhada e feroz.
(3) No meu tempo, não s6 o major, como varios outros chefes sub-~Iternos,
prin-
CiPalmente os que haviam come ado como soldados rasos, empregavam essa expr
essão.
(Nota do Autor).
26
#

378
DOSTOIEVSKI A
Se tomarmos em considera ão suas esfreitissimas id¢ias,'Seu
espirifo limitado, devemos convir que aquele gesto não ca-
recia de certa grandeza de alma. Todavia, o 61cool confri-
buira muito, certamente, para a realiza ão da cena toda.
O sonho do maior não se realizou. Não se casou, em-
bora estivesse resolvido a isso, na ocasião em que termi-
naram as repara ões da residencia. Em vez de esponsais,
foi levado a julgamento e obrigado a pedir demissão. Velhos
crimes seus tinham voltado ... tona: ele f"ra outrora comis-
sario de policia da nossa cidade. O golpe lhe foi vibrado
inopinadamente. A noticia provocou, na fortaleza uma frans-
bordante alegria; houve uma festa, uma verdadeira soleni-
dade. Contava-se que o maior gemia e choramingava como
uma velha. Mas em vão: teve que se resignar, demitir-se, -e
pedir reforma. Vendeu a principio a parelha de cavalos
ru os, depois tudo o que possuia, e acabou caindo na mise-
ria. Nos o encontravamos as vezes, de sobrecasaca puida,
e gorro com tope. Olhava-nos de vies. Porem sei., presfi-
gio desaparecera com a farda. De farda ele egr um deus.
De sobrecasaca, poderia ser +ornado por um lacaio. Com
quanfos outros se da o mesmo! O h6bito e que faz o
monge ...
Uma evasão
ouco depois da demissão do maior, reviraram de alto a
P baixo o nosso presidio. Suprimiram os trabalhos for-
ados, e em vez deles, criaram uma companhia corre-
cional, segundo o modelo das da Russia. Isso significava
que não haveria mais na fortaleza condenados e deportados
a gal s da segunda categoria; s¢ iam para 16 presos mili-
fares, isto 6, homens privados dos seus direitos civ¡s. Eram
soldados iguais aos ouf ros sodados, mas que haviam sido
fustigados e condenados a seis anos de prisão, no m iximo;
quando libertos, voltavam, de pleno direito, para o regimento
de onde haviam saido. Entretanto, os que apareciam na
qualidade de reincidentes, eram como outrora condenados
a vinte anos. Antes dessa transforma ão nos ia possu¡amos
uma se ão militar, mas os soldados eram deportados para ta
#

so DO STO I EVSK I
or falfa de oufro sitio proprio; contudo, agora, essa Se O9
ornara confa do presidio todo. claro que os for adm
os aut nticos, os que estavam pr'¡vados de todos os seu's
ireifos, raspados a navalha e marcados com ferro em brasa,
icaram 16 ate ... expira ão da peria; como não eram, porem,
razidos novos contingentes dessa especie, dentro de dez anos
a forfaleza não deveria conter mais nenhum for ado civil. A
se ão especial fambem foi conservada, e as vezes chegava
para ela um criminoso imporfariM, condenado pelo conser
lho de guerra, ... espera da organiza ão, na Siberia, de
trabalhos for ados particularmente rigorosos. Desse moclo,
nossa vida continuou exatamente como no passado: a.mesma
disciplina, o mesmo trabalho, e pouco mais ou menos o mesmo
regulamento. S6 a adminisfra ão fora renovada e compl'-
cada. Nomeou-se um oficial superior, comandante de com-
panhia, com quatro oficiais que sucessivamente ficavam com
a guarda. Subsfifuiram-se os invalidos por doze sub-oficiais-
Dividiram-se os defenfos em esgiadras de dez homens, g-
mandadas cada uma por um ~Abo escolhido enfre eles pro-
prios, - cabo apenas no nome, segundo e facil de imaginar.
Como era justo, Akim Akimifch foi logo um dos cabos. Toda
essa nova organiza ão, - a forfaleza, os "cabos", os for-
ados -, continuou como antes sob a autoridade de um go-
vernador. E as cousas ficaram nisso. De come o, os for ados,
se agitaram muifo, discutiram, procuraram esfudar os novos
chefes; mas quando vi~am que na realidade tudo continuava
imufavel, aquie+aram-se, e a vida prosseguiu o seu curso.
Pelo menos finhamos um lucro: conseguiramos nos desemba-
ra ar do maior. Cada um de n6s respirava mais livremente,
e recuperava coragem. O pavor desaparecera, todos so-
biam que agora, em caso de necessidade, a gente poderia
se explicar com os chefes, e, salvo um erro, os inocentes n~i9
pagariam pelos culpados. A venda de vodca continuou d
mesma maneira, apesar da substitui ão dos invalidos poir
sub-oficiais. Esses sub-oficiais revelaram-se, na maioria, ho-
mens serios e de juizo, capazes de compreender a situa ão.
ft
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
381
E' verdade que a principio houve um ou dois que tentaram
frafar-nos como a soldados, mas depressa compreenderam
com quem lidavam. Os mais recalcifrarifes foram corrigidos
pelos proprios for ados, o que provocou alguns incidentes.
Tenfavamos os sub-oficiais oferecendo-lhes bebida; depois,
quando lhes passava a bebedeira, a gente os fazia compre-
#

¢ncler, ao nosso modo, que se podiam embriagar-se com os


for ados, não valiam, por consequencia ... E os sub-oficiais
acabaram por olhar com indiferen a, ou melhor, acabaram
esfor ando-se por não enxergar mais as fripas cheias de
vodca. Melhor que isso, faziam como oufrora os invalidos,
iam ao mercado fra-zer kalafchi para os presos, carne e outros
artigos, tudo que poderia ser introduzido no pr sidio sem
lhes rebaixar muito a dignidade. Para que servia aquela
transforma ão em prisão militar? Não o sei. A mudan a
se operou no fim de minha pena, contudo five que viver ainda
dois anos sob o novo regime.
.--- Devo descrever aqui toda a minha vida durante esses
anos de prisão? Não o creio. Se devesse confar por ordem
tudo que vi e senti durante esse fempo, feria que duplicar,
ou af mesmo +riplicar o n£mero desfas p ginas. Ademais,
a descri ão se +ornaria fastidiosa . Todos os acontecimentos
assumiam um s6 e £nico aspecto, sobretudo se, pela leitura
dos cap¡tulos anteriores, o leitor 16 fez uma id ia suficiente-
mente clara da vida dos for ados de segunda categoria. Eu
gostaria de descrever num quadro impressionante pela ve-
racidade a nossa fortaleza e tudo que sofri durante longos
anos. Consegui esse fito? Ignoro-o; eu proprio não o po-
deria julgar. mas sinfo que posso terminar aqui; revolvendo
essas lembran as, a magoa me sufoca, e como poderia eu re-
cordar todas as minucias daquela vida? Os £ltimos tempos
por assim dizer desbotaram na minha memoria. Muita cousa
esqueci de todo. En+refanfo esses anos tão umformes ar,
rasfaram-se todos, sombrios, -tristes. Tenho lembran a de
longos dias de fedio, semelhantes ...s gotas -que, depois da
chuva, caem de uma em uma dum te+o. Um intenso, ardente
f
i
#

382 DOSTOIEVSKI
desejo de ressurrei ão, de renovamento, de vida fransfor-
mada, me dava coragem para ter paciencia, e esperar. No
fim, eu conseguira me enrijecer; esperava a passagem de
cada dia, para o descontar; embora me restasse ainda um
bom milhar deles a passar no presidio, era sempre com sa-
tisfa ão que eu cortava um algarismo a esse milhar. Cada
dia decorrido, acompanhava-lhe o enterro, via-o descer no
+umulo, e, alegremente, me preparava para a chegada do
seguinte; dizia a mim mesmo que, +Örando-se um de mil, fi-
,cam apenas novecentos e noventa e nove. Lembro-me-tam-
bem de que, cl'urante todo esse tempo, apesar das centenas
de companheiros que me cercavam, eu vivia numa solidão
estranha, e estimava essa solidão. S6 com minha alma, con-
siderava minha vida anterior, analisava-a nos mais ¡nfimos
detalhes, e me condenava severamente, sem piedade. Em
certos momentos, ate, aben oava a sorte que me concedera
aquela solidão, sem a qual não poderia meditar assim, nem
fazer uma severa revisão do passado. Que esperan as me
germinavam então, no peifo! Eu pensava, resolvia, jurava
que na minha vida futura não haveria nenhum dos erros, ne-
nhuma das quedas de outrora: tra ava um programa com-
ple+o, ao qual prometia firmemente obedecer. Desenvolvia
em minha alma a f cega de realizar, de poder realizar esse
programa. Esperava, ansiava pela liberdade, queria ensaiar
minhas for as numa nova luta. *As vezes, uma impaciencia fe-
bril me constrangia ... Mas -me muito doloroso recordar
isso tudo, que, alias, so interessa a mim ... Se o descrevo,
porque suponho que me hão de compreender, hão de sentir
a mesma, cousa todos os que são atirados numa prisão, na flor
de Mocidade e do vigor.
Contudo, para que insistir nesse assunto? E para não
terminar assim, de chofre, vou ainda narrar alguma cousa.
o melhor que posso fazer, afim de não terminar estas notas
de,modo excessivamente brusco.'
. Ocorre--me que talvez alguem pergunte se seria im-
possivel um preso fugir do presidio, se durante tantos anos
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
383
nenhuma evasão se deu. Como j o contei, um defento
que passou dois ou fres anos numa fortaleza, come a a dar
valor a esse lapso de tempo, e p6e-se involuntar¡amenfe a
pensar que melhor sera ficar ali at ao fim; sem trapalhadas,
sem perigo; terminada a pena, sair como colono livre, legal-
mente. Mas um c lculo dessa natureza so pode ocorrer aos
for ados cuja condena ão 6 curta. Os que +em a sua frente
longos anos de deten ão, estão prontos a correr todos os
#

riscos. Entretanto, no nosso presidio ninguem se evadia, e


seria dificil dizer por que; sem duvida, deve-se atribuir essa
reserva ao medo inspirado pela inflexivel disciplina militar,
ou ... situa ão da cidade da qual dependiamos - em plena
estepe. Houve, todavia, um caso de evasão, no meu tempo:
dois for ados a tentaram, ambos criminosos de impor+an-
*ão, A.,
Depois da partida do nosso maior, o seu esP,
viu-se comple+arnen+e abandonado e sem prote ão. O +em-
po lhe endurecera o cara+er: muito mo o ainda, era c¡nico,
malicioso, sem escrupulos. decidido a tudo. Se lhe houves-
sem dado a liberdade, continuaria decerto a exercer a espio-
nagem e a fazer dinheiro . de todas as maneiras mas sem se
deixar apanhar estupidamente como da primeira vez, e sem
pagar a tolice com trabalhos for ados. La no presidio, pra-
ticava para o futuro, fabricando passaportes falsos. Alias,
nao posso garantir muito isso, porque ouvi a his+oria da boca
de outros for ados: a lhes dar credito, ele 16 exercia o oficio
de falsario na cozinha do maior, nos tempos em que ia l ,
o que lhe produzia pingues rendimentos. Em suma, estava
resolvido a tudo para mudar de sorte. Pude obwrv6-lo
bem: e o seu cinismo, que raiava a mais revoltante abje ão,
... mais fria audacia, desperfava-me um horror invencivel.
Creio que tendo vontade de beber uma garrafa de vodca,
o não podendo obt -la senão gra as a um assassinato, ele
não recuaria diante do crime, con+an+o que o pudesse exe-
cufar em segredo, escondido de todos. No presidio, apren-
dera a calcular. Foi na sua pessoa que Kulikov, da se 5o
#

34 DOSTOIEVSKI
especial. fixou a escolha para companheiro. ja falei em Kuli-
kov. Homem maduro, manfinha-se forte, apaixonado, ativo,
com capacidades extraordinarias e diversas. Parecia dessas
pessoas que conservam ate ... mais extrema velhice a von-
fado e a for a de viver. Eu me sentiria surpreso se o visse
resignado a ficar ali, -como os outros. Porem Kulikov j to-
m ra a sua decisão. Qual dos dois teve mais influencia
sobre o oufro? Ignoro, mas ambos se equivaliam muito bem.
Feitos um para o outro, depressa estreitaram a amizade: pen-
so que Kulikov contava com A. para lhe obter um passaporte.
A. era de nobre familia, e isso autorizava +odas as esperan-
as - com a simples condi ão de conseguirem chegar ...
Russia. De qualquer modo, essas esperan as deveriam ir
mais longe que a simples rotina da vagabundagem siberiana.
Kulikov, comediante nato, poderia desempenhar muitos pa-
p is, na vida: pelo menos contava com a variedade das suas
aptidões. O presidio sufoca pessoas dessa especie. E com-
binaram portanto a evasão.
Mas sem a conivencia do vigilante, qualquer fuga seria
impossivel. Era preciso en+enderem-se com o bom-em. Num
dos batalhões sediados enfre n¢s, encon+rava-se um polaco
energico, digno falvez de melhor sorte, individuo de certa
idade, porem severo, serio. Enviado para servir na Siberia,
quando mo o, a saudade o venceu, e o rapaz deserfou. Foi
apanhado, fustigado, e condenado a dois anos de bafalhão
disciplinar. Quando o devolveram ... fropa, tivera tempo
para refletir-, entregou-se ao servi o com um interesse, um
zelo que lhe valeram as divisas de cabo. Tinha uma exagera-
da concienc¡a do seu valor; seus modos, suas palavras, res-
piravam orgulho, confian a propria. Muitas vezes, duran-
+e todos aqueles anos, eu reparei nele, entre os soldados de
nossa escolta. Ali s, os polacos me haviam falado no seu
nome. Parece-me que a saudade da pa+ria, a nostalgia, se
haviam mudado em odio surdo, irreconciliavel. Esse ho-
mem era capaz de tudo, e Kulikov mosfrou faro, escolhen-
do-o para cumplice. Chamava-se KoKer. Os +res se con-
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
385
luiaram e marcaram um dia. Estavamos no mes de junho.
o clima da cidade era quase umforme, sobretudo no verão:
o.calor persisfenl-e ajuda os vagabundos. Como e facil de
conceber, de modo nenhum poderiam os cumplices sair di-
refamenfe da fortaleza. A cidade fica numa colina, as pro-
ximidades são descampadas, e numa extensão bastante vas-
ta, floresta alguma prende o olhar. Era preciso pois tro-
car de roupa, e para isso tinham que ir ao bairro Onde Kuli-
#

kov Ia h muito tempo possuia um esconderijo. Não sei


se os seus amigo% do fal esconderijo esfavam +o+almenfe a par
do segredo. Podem-se fazer suposi ões, mas a cousa nunca
foi devidamenfe esclarecida. Nesse ano, num dos recanfos
do arrabalde, uma rapariga mo a e agradavel, chamada
"Vankan',,a", come ara carreira: dava grandes esperan as, -
esperan as que ali s cumpriu em parte. Chamavam-na +am-
bem '. Labareda". Decerto essa mulher desempenhou um pa-
pel no caso, pois Kulikov, ia ha um ano, fazia loucuras por
ela. Nossos homens se apresentaram de manhã a chamada,
e fizeram com que os dessem como ajudantes ao for ado
Chilkine, forneiro -e gesseiro de profissão, que esfava enfã'o
frabalhando num quartel vazio: os soldados que o habitavam
Ja havia muito viviam acampados sob fendas. Koiler arran-
jou fambem um gei+o de ser escolhido para a escolfa dos
fr s, mas como para +res for ados o regulamento exige duas
sentinelas, deram a Koiler, soldado antigo e cabo, um recruta
que ele deveria iniciar no servi o. Era mister que os nossos
for ados exercessem uma enorme influencia sobre Koiler e lhe
inspirassem desmedida confian a, para que aquele velho sol-
dado, com tantos anos de experiencia, graduado, austero,
ajuizado, se resolvesse a acompanha-los.
1
Chegaram ao quartel as seis horas da manh3. O local
.~ esfava deserfo. Depois de trabalhar uma hora, Kulikov e
¡
A. disseram a Chilkine que iriam a oficina, alegando a princ¡-
pio que queriam ver nao sei quem, e, depois, que iam apanhar
uma ferramenta que lhes faltava. Precisavam agir com as-
+ucia - isto e, com naturalidade, enquanto tratavam com.
#

U6
DOSTOIEVSKI
Chilkine. Chiikine era um desses astutos arfesãos moscovi-
tas, inteligentes mas de poucas palavras, de aspecto ~
e descarnado, fei+os para usar a vida inteira o colete e a
blusa da moda, no boa cidade de Moscou: pore . m o destino
resolvera outras cousas a seu respeito; depois de longas pe-
regrina ões ele acabara caindo em prisão p*petua, na se ão
especial, ou seja, entre os mais perigosos reincidentes da jus~-
fi a militar. Ignoro o ponto de partida de carreira tão Ia-
menfavel, mas Chiikine jamais demõnstrava a minima acri-
monia, o menor mau humor; de tempos em tempos, embria-
-se como uma esponja, todavia, fora isso, seu procedi
1 gava 1-,
monto nada deixava a desejar. Como ele não estava no se-
gredo e não era nenhum tolo, Kulikov lhe piscou o olho, dando
a entender que iria buscar aguardente escondida na oficina.,
desde a vespera. A id ia agradou a Chilkine: ficou s¢ 'com
o recruta, sem alimentar a menor suspeita. E A., Kulikov e
Koller afas+aram-se em dire ão do +ai arrabalde.
Passou-se meia hora. Como os ausentes não retorna-
Chilkine, subitamente alarmado, e que - * ita
vami wa mu
cousa neste mundo, pos-se a refletir, e tanto refle que seri-t,
flu que as botas lhe comichavam. Lembrou-s - te' que Kuli-
kov se mostrara num estado de esp¡rito anormal. Por duat
vezes vira A. -lhe cochichar qualquer -cousa; e nas duas vezo
Kulikov respondera ao c£mplice com uma batida de p lpa¡~. 1 1 1
bras significativa: disso Chilkine estava certo, imSiramente,_
certo. KoIler fambem lhe chamara a aten ão, por~que arit s,
de se afastar com os dois for ados, perdera tempo a ens¡n~ -',
cousas ao recruta, a lhe explicar como deveria agir ner
ausencia, fato ins¢lito, sobretudo partindo de homem
quela t mpera. Em suma, quan+o'mais Chilkine exarni
as circunsfancias, mais a desconfian a lhe aumentava. E,
mo o tempo ia passando e ninguem voltava, a sua inqu4
ão acabou por ultrapassar todos os limites. Compr
muito bem os riscos que corria, naquele caso- as sUsp, '.wA
,-lflr
dos chefes poderiam recair sobre a sua pessoa, acu64 ~
de haver permitido que os companheiros partissem por esta r
-l)-
I
#

RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS


389
de conivencia COM a fuga. Se demorasse a denunciar o
desaparecimento de Kulikov e A., essas suspeitas tomariam
ainda maior consisfencia. N3o finha pois um insfanfe a per-
der. Então se lembrou de que nos £ltimos tempos Kulikov
e A. se tinham tornado amigos intimos, passavam o tempo
cochichando juntos, e iam conversar por +ras das casernas,
longe de todos os olhares. Recordou-se at de que esse fato
lhe despertara a curiosidade . . Olhou então para a senti-
nela; o rapaz bocejava, encostado ao fuzil, e furacava o nariz
com o dedo, num'ieito tão inocente que Chilkine não consi-
derou oportuno desvendar-lhe os seus pensamentos. Pediu-
lhe apenas que o acompanhasse a oficina. Queria saber se
os companheiros haviam chegado 16; quando verificou que
ninguern os vira, suas duvidas se confirmaram. "Se eles ti-
vessem ido apenas beber e divertir um pouco na cidade, como
Kulikov o fazia as vezes, porque me esconderiam isso?" pen-
sava Chilkine. Resolveu-se então: abandonando o trabalho,
¡rigiu-se ire amen e para o r sidio.
Eram cerca de nove horas quando Chilkine se apresen-
tou ao sargento e lhe explicou as causas do seu retorno. O
sub-c,ficial assusfou-se, e a principio recusou acreditar. Chil-
kine, e claro, so lhe apresentou a cousa sob forma de mera
suspeita. O sargento voou a casa do maior, o maior cor-
reu. ... do governador, e um quarto de hora depois tinham
sido tomadas as medidas necessarias. Fizeram um rela+orio
ao governador geral. Os criminosos eram de impor+ancia,
e dever-se-ia temer uma reprimenda severa, de Peiersburgo.
Bem ou mal, A. fazia parte dos condenados pol¡ticos. Quan-
to a Kulikov, pertencia a se ão especial, isto , ... se ão dos
super-criminosos, da qual af então ninguern conseguira fu-
gir; e alem do mais, era militar. Recordaram que, de acor-
do com o regulamento, todos os homens dessa se ão, quando
iam para o trabalho, deveriam levar um e ate dois soldados
de escolta. O regulamento não fora pois cumprido, o que
agravava o caso. Mandaram-se correios a todas as capi-
fais de distrito, as circurivizinhan as, a todos os povoados.
#

390
DOSTOIEVSKI
grancles e pequenos. Fez-se conhecer por toda parte a no-
ficia da fuga, e foram dados os sinais caraterisficos dos eva-
didos; mand,,,,,rn-,e cossacos no seu rastro ... enfim, um Pa-
vor horrivel se disseminou. . . Durante esse tempo, no inte-
rior da fortaleza, a agita 5o era grande. A medida que iam
voltando do trabalho, os for ados sabiam da noticia, que j
corria de boca em boca, e cada um a recebia com uma ale-
gria secreta, mas intensa. Todos sentiam o cora ão lhes
bater corri for a ... Aquela evasão rompip a monotonia da
vida no presidio, agitava o formigueiro. Despertava um eco
fraternal no peito de todos os de+en+os, vibrava neles certas
cordas ha muito tempo adormecidas. A esperan a, a auda-
cia, a possibilidade de "mudar de sor+e", faziam fremir as
almas. "Se, eles puderam fugir, porque não o poderei eu?"
E cada um, a esse pensamento, fitava no vizinho os olhos pro-
vocantes, cada um se sentia bruscamente +ornado de orgulho,
e encarava de cima os sub-oficiais. ciaro que imediata-
mente apareceram os oficiais. O proprio governador apresen-
+ou-se. N¢s nos diverfiamos a grande; encaravamos os che-
fes com silenciosa gravidade, e com certo desprezo- "Quan-
do a gente quer ... 11 Esperando uma busca, +inhamos cor-
rido a esconder o que era nosso; porque ninguem ignorava
que, nesses casos, os chefes tratariam de tudo com grande
rapidez. E as previsões mos+raram-se exatas: houve um
grande reboli o, puseram tudo de pernas para o ar, pesqu¡-
saram individualmente cada preso, sem nada encontrar, 6
l¢gico. A +arde, mapdaram os for ados para o trabalho sob
escolta redobrada. A noite, os oficiais de guarda fizeram
rondas continuas. Procederam-se a duas chamadas, contra o
costume: e novo reboli o se regis+ou; mandaram-nos formar
no patio para nos contar outra vez, e depois novamente
verificaram dentro do alojamento ... A agita ão andava
pois no auge.
Mas isso quase não inquietava os presos. Tinham assu-
mido ares indiferentes, e como sempre, nesses casos de "Cor-
ridas", portaram-se muito bem durante toda a noite. "Pelo
41
RECORDA õES DA CASA DOS MORTOS
391
menos não vão poder culpar a genfei" E por seu lado, os
chefes meditavam: "Não terão ficado alguns cumplices
aqui?" Foram dadas ordens não s¢ para vigiar os for ados
como para lhes espionar as palavras. isso so os fez divertir:
#

"Eles não seriam tão tolos que fossem deixar c£mplices; esses
golpes se preparam na surdina. Camaradas do estofo de
Kulikov e de A. não vão mostrar rastro, sabem esconder o
E' gente que passa por um
jogo! Ninguern soube nem viu!
byraco de rato, quanto mais por uma porta fechada!" Em
resumo, a fama de Kulikov e de A. aumentava sempre; todos
,'~',tinham orgulho por eles; calculava-se que a fa anha dos dois
1 . %
~,:~passaria a mais remota posteridade, que sobreviveria ao pre-
sidio.
- São uns mesfresi
- E os chefes que pensavam que ninguem pode sumir
daqu¡! Agora j estão os dois bem longei acrescentavam
,~ outros.
- E estão longel repetia um terceiro com ares impor-
,~fantes-
, mas isso s¢ aqueles dois eram capazes de fazerl Não
te comparar com eles, hein?
Em qualquer outro momento, o defento a quem se diri-
-plicado aceso na defesa da propria
ia a pergunta teria re
rira. Desta vez, mantinha um silencio modesto: "E' ver-
'Oade, a gente não igual a eles; e -preciso passar por muita
ousa anfesli'
Afinal, irmãos, para que ficar aqu¡? disse um quarto,
então ouvira em silencio, sentado sossegadamente na
a cozinha. Esfregava a face com a palma da mão e
com voz um pouco arrastada e mole, que tra¡a um
I~refo, sentimento de satisfa ão. - Que estamos fazendo
. qu¡? Somos vivos sem vida, e mortos que não foram enter-
,,~,tados, não e mesmo?
- O presidio não e uma bota que a gente possa des-
Cal ar ...-toa, não?
Ora, Kulikov, entretanto ...
, cheio de ardor.
replicou um mocinho.
#

4 RECORDA õES DA'C


ASA DOS MORTOS 393
DOSTOJEVSKI
392
- Kulikov? interrompeu um outro, piscando o Olho com
desprezo para o lado do mocinho. Kulikov, meu filho, era
Kulikovi
Isso significava que os Kulikov não são fabricados as
duzias.
- Mas A. tamb m tem o seu valor, não9
- A. e esperto como um gatol E' capaz de enganar
ate Kulikov, e obriga-lo a ver a lua ao meio-dia!
- Sera que eles ia estão longe? isso e que eu queria
saber!
E logo se puseram a falar do caminho que os fugitivos
poderiam ter percorrido. Que dire 3o +ornariami Para on-
de seria melhor encaminha rem-se? Qual a cidade mais pr¢-
xima? Descobriram-se for ados que conheciam a região,
e suas explica ões foram avidamente escutadas. Falaram
nos habitantes das aldeias vizinhas, declararam-nos inseguros.
Perto das cidades o pessoal e esperto; ninguem ha de querer
ajudar fugitivos; apanham-nos a os entregam sem do.
- Se voc s soubessem, meninos, quanta gente ruim ha
neste mundo!
- Esses siberianos s8o umas feras!
- Gente muito ...-toa!
- Esses siberianos não tem sal nas orelhas: se a gente
lhes cai nas unhas, adeus!
- U, mas os nossos dois rapazes ...
- Sim, com eles a coisa e dura. Não e com eles que
h de ser facil.
- Espera! Se não morrermos, logo o saberemos!
- Achas mesmo que nao serão apanhados?
- Eu, por mim, tenho a certeza de que não os apanha-
rão nunca! afirmou um dos excitados, dando um murro na
mesa.
- Hum! Isso depende de como andarão as coisas!
- Pois esta aqui o que acho, pessoall disse Skurafov
Eu, se fugir, nunca mais ninguem me pega!
- Tu?
27
Vk
Puseram-se a rir e alguns fingiram recusar-se a ouvir
mais. Porem Skuratov estava animado.
- Nunca me haveriam de apanhar! repetiu energica-
mente. Penso tanto nisso, irmãos, que, ...s vezes, at me
admiro. Preferia me enfiar num buraco de rato ~ deixar
#

me porem a mão em cima!


- Ora, se estivesses morrendo de fome, acabavas pe-
dindo um peda o de pão por -esmola!
Novas gargalhadas.
- Pedir esmola! Burrice!
- Burro es +u! Tu e o velho Vassia vingaram a "mor+e
da vaca" (1) e por isso estão aquil
As gargalhadas redobraram. Os for ados serios assu-
miam um ar cada vez mais indignado.
- Mentiroso! gritou Skura+ov. Miki+ka e um m,entiro-
so, e inventou isso contra mim e contra meu tio Vassia. Sei
que me complicaram nessa his+oria. Sou de Moscou e des-
de pequeno corro mundol Quando o sacristão queria me
ensinar a ler, puxava-me as orelhas e dizia: "Repete: Poupa-
me Senhor, na vossa misericordia" . . . eu repetia: "Poupa-
me, Senhor, da miseria e da corda. . . " Assim e que sou,
desde pequenino.
As risadas continuaram. Era isso que Skura+ov procura-
va. Gostava de servir de palha o. Mas depressa o deixa-
ram de m3o para voltarem ... conversa seria. Os peritos em
evasões emitiam pareceres; os mais jovens e os mais; calmos
escutavam, satisfeitos, o pesco o estendido, os olhos fixados
neles. Havia uma multidão na cozinha, porem nenhum sub-
oficial estava Ia, pois do contrario os presos mostrariam mais
reserva. Entre os que rejubilavam, observei o fartaro Ma-
metka, hornerizarirão de pornulos salientes, e aspecto extraor-
dinariamente comico. Mal falava o russo e não compreendia
quase nada do que os demais cliziam; entretanto, estirava a
(1) Quer dizer que mataram Um mujique ou uma baba, suspeitos de deitarem
mau olhado ao gado. Havia no nosso presidio um criminoso dessa especie. (
Nota do
Autor).
#

394 DOSTOIEVSKI RECORDA õES DA


CASA DOS MORTOS 395
cabe a por cima dos outros e agu ava o ouvido com aten ão,
Claro! aprovava um outro. Os
rapazes tomaram as v
com beaf itude. 1 suas precau ões1
1
- Hein, Mametka, iakchi (que bom) falava Skuratov, As suposi 6es foram
mais longe.Prefendia-se que os
voltando-se para o t rtaro. Abandonado por todos. agar-
fugitivos ainda estavam escondidos
num arrabalde da cidade,
rava-se em desespero de causa ...quele ouvinte. no fundo de uma adeg
a, esperando que passasse a eferves-
- l£chi, uch, iaLhi! aprovou ardentemente Mame-
cencia, e que o cabkp raspado crescesse. Isso
poderia du-
fka, abanando a cabe a grotesca para o lado de Skufarov.
rar seis meses, um a ~b, e depois
eles sairiam do canto.
- Não os apanham, iok? (não?) Todos se mostravam de humo
r inventivo e romanesco.
- lok, iok! Mas de repente, oito dia
s ap6s a evasão, espalhou-se o
E dessa vez, Mame+ka se p"s a resmungar, gesticulando.
boato de que tinham encontrado uma
boa pista. Esse boato
---lsso quer dizer que se um mente o outro não o des-
es+Upido foi logicamen+e desmentido
com desprezo; entre+an-
mente, não ? to, na mesma noite, ia +orna
ndo consistencia, e os for ados
- ! e! i£chil respondeu Mamefka meneando sempre
come aram a se agitar. Na manhã
seguinte, contaram na
a cabe a. cidade que os fugitivos ti
nham sido apanhados, que eram
- Então seja ialtchil frazidos de volta. Depois
do jantar, conheceram-se informes
E para refor ar o iaLhi, Skurafov lhe enterrou o gorro
mais circunsfanciados: tinham sido
presos em certa aldeia
ate aos olhos, depois, deixando ali Mamefka at"nito, saiu da
a setenta versfas de distancia.
Enfim, chegou-nos a hisforia
cozinha muito bem humorado. autentica. O sargento, v
oltando da casa do maior, noticiou
Durante a semana inteira, prosseguiram as providencias
que naquela mesma noite seriam os
fugitivos conduzidos ao
severas na fortaleza, bem como batidas minuciosas nos arre-
corpo da guarda. Não se podiam mais
alimentar duvidas.
Seria dificil descrever
a impressão que essa nova provocou
dores. Os defenfos imediatamente ficaram a par - não sei
nos for ados; a principio foi
exaspera io, depois desanimo,
como - de todas as medidas tomadas para a recupera ão
e afinal escarneo. Come aram a
zombar, não dos persegui-
dos fugitivos. Nos primeiros dias, as noticias eram favora-
dores, mas dos perseguidos.
veis aos tr nsfugas: tinham desaparecido sem deixar rastro.
Nenhum indicio, nada! Nossos for ados não se cansavam de
De inicio alguns apenas
escarneceram, porem depressa
zombar dos chefes. Não sentiam a minima inquieta ão pela
todos fizeram coro. S6 uns dois ou
fr s presos ficaram em
sorte de Kulikov. e A. silencio; eram homens se
rios e obstinados, que não se deixa
- Não, n,ngu.em os encontra! não os apanham! re-
vam impressionar por zombarias, e
fitavam com desprezo o
pefiam uns aos outros, satisfeitos. grupo estouvado dos disc
ufidores.
- Sumiram como uma bala! Tal como haviam erguid
o ...s nuvens Kulikov e A., do
mesmo modo se esfor avam a
gora em rebaix51os. Pa- 1
- Ate breve, e sempre amigos, não?
a
#

recia
e 1
N6s. sabiamos que todos os mujiques dos arredores ha-
af' que os dois acabavam de
cometer uma afronta.
contra todos. Os nossos
contavam com ar de desprezo que,
viam sido prevenidos, vigiavam todos os lugares suspeitos,
batiam florestas e ravinas. 11 incapazes de suportar a
fom-e, entraram ambos numa aldeia
- Para que isso? tro avam os for ados. Decerto eles
afim de esmolgr pão, - cousa que
representa o ultimo grau
f m um esconderijo, em algum lugar. do nebaixamenfo para um va
gabundo. Alias, essas hisforias
#

DOSTOIEVSKI
,a
am falsas. Vendo-se ca dos, os fugitivos se esconderam
ma mata que em breve foi toda cercada: como não dispu-
am de meio nenhum para fugir, renderarn-w esponfanea-
ente. Não lhes sfava outra alternativa.
Mas quando a noite os trouxeram de pes e mãos atados,
coitados pelos guardas, todos os for ados se encostaram a
li ada para ver afraves das fendas o que lhes iriam fazer.
ão se avistaram, e claro, senão os carros do governador e
o maior parados a frente do corpo da guarda. Os evadi-
fora postos na solitaria, ferrados outra vez, e no dia
uinte tompareceram ante os juizes. A zombaria e o des-
o
zo dos for ados depressa cairam por si proprios. Sou-
e-se melhor do que houvera, soube-se que Kulikov e A.
inham sido obrigados a se render, e todos se puseram a
companhar avidamente a marcha do processo.
- Vão +ornar pelo menos mil! dizia um.
- Mil! replicava um outro. Est s brincando? Vão
apanhar ate morrer. Pode ser que A. +orne apenas mil, mas
o outro vai deixar o couro nas varas, meu velho, porque 6 da
especial.
Entretanto, não haviam calculado direito. A. saiu-se
com quinhentos a oi+es-, era o seu primeiro delito e foi
levado em considera ão o seu bom procedimento anterior.
Quanto a Kulikov, creio que recebeu mil e quinhentos a oites.
A puni ão foi afinal de contas bastante suave. Como ho-
mens sensatos, não denunciaram ninguem. Declararam, cla-
ra e resolutamente, que tinham fugido sem se deter em parte
nenhuma. Quem mais lamentei foi Koiler: perdeu ate a £l+i-
ma esperan a, e o seu castigo ultrapassou os dos outros em.
severidade: levou dois mil a oites e foi enviado como-gal
os
9
re
para um outro presidio. Quanto a A., gra as aos m dicos,
não recebeu o castigo senão quase "pro-forma". Porem no
hospital pOs-se a arrotar fanfarronadas, a se declarar pronto
para tudo: não recuaria diante de nade e ainda daria que
falar. Kulikov portou-se como sempre - homem de juizo,
RECORDA õES. DA CASA DOS MORTOS
397
o
decente. Ao voltar ao pre'*dio, depois de ser fustigado, pa-
recia que nunca saira dali. Mas ninguem o olhava mais com
#

os mesmos olhos, embora ele soubesse sempre e em toda


parte marifer-se no seu lugar. No seu foro Intimo os for a-
dos lho, tinham perdido o respeito: tratavam-no agora tão bom
como tão bom, com uma familiaridade sem considera ão.
O xito vale tanto, neste mundo!
#

P,
6
x
A saida do presidio
udo isso se passou no meu £ltimo ano de prisão. Esse
£ltimo ano, sobrefudo no fim, me ficou fio fortemenfe
T gravado na memoria quanfo o primeiro. Mas para
que dar minucias? Direi apenas que, apesar da minha im-
paciencia, esse ano foi o menos penoso de todo o meu perio-
do de presidio. Em primeiro lugar, eu tinha variOs amigos
enfre os for ados, bons camaradas, que me consideravam
todos um ¢timo sujeito. Muitos deles me eram dedicados,
tinham-me sincera afei ão. O ordenan a Bakluchine sen-
tiu vontade de chorar quando nos acompanhou a mim e ao
meu companheiro para fora da prisão: e como depois, em-
bora j6 libertos, n¢s devessemos passar um m s na cidade
num estabelecimento do governo, ele 16 aparecia diar¡amen-
fe, com o fim £nico de falar conosco. Deus sabe por que.
#

400 ' DOSTOIEVSKI


-en+re+an+o. certos indivilos rebarbativos, nunca, at ao fim,
me 1 dirig~ram a palavra. Parecia que uma barreira se erguia
entre n6s.
Nos £ltimos tempos, gozei de muito mais imunidades que
nos outros periodos de minha deten ão. Tinha encontrado
conhecidos entre os oficiais em servi o na cidade, antigos
comppinheiros de escola (1) e reentabolara rela ões com, el¢s.
Por seu intermedig, dispunha de mais dinheiro, podia escrever
ta
... rin¡nha fAmilia e obter livros. Ja havia anos que não r
um 56 , livro, e seria dificil reproduzir a impressão estranha
e a emo ão , que me causou 9 primeiro volume - um n£mero
de reV~i~o-, lembro-me de o ter come ado a ter ... noite, assim
que 1 fec 1 haram as casernas, e continuar na leitura at a madru-
ga.d - a. Era como_ um mensageiro de outro mundo, que hou-
ves . se voado ate mim: minha vida de outrora erguia-se diante
dos meus olhos num clarão limpido, e eu procurava adivinhar,
afraves da leitura, se me tinha atrasado demais, se eles tinham
vivido intensamente sem mim, Ia no mundo. Com que se ag¡-
favam agora? Que questões debatiam? - Definha-me nas
palavras, lia nas entrelinhas, procurava descobrir os pensa-
men+os secretos, as alusões ao passado: procurava os tra os
do que outrora perturbava e comovia os esp¡rifos ... E que.
tristeza me possuiu quando tive que reconhecer at que pon-
+o estava eu alheio a vida atual! Era um membro mutilado da
sociedade. Tinha que me habituar as inova ões, travar co-
nhecim.ent¢ com a nova gera ão1 (Enfronhei-me especial-
mente num artigo assinado por um nome conhecido, o nome
dum homem de quem estivera aproximado ... Mas j6 outros
nomes eram famosos: novos trabalhadores haviam ocupado
os lugares antigos: apressei-me em travar conhecimento com
eles, desesperando-me por ter tão poucos livros em mão, e
tanta dificuldade em ob+e-los. Antes, no tempo do nosso
antigo maior, era grave risco introduzir livros no presidio.
(1) Principalmente uma meia duzia de guardas-marinha cujas opiniões avan ada
s
os haviam deportado em 1849 para os batalhões da guarni ão de Ornsk. (N. de H.
M.)
O
RECORDA õES DA CASA DOS MORTO
401
Em casos de busca, farpeavam a gente de interroga ões- "De
ro9 Onde o apanhaste? Quais são teus
onde vem este liv .
cUmplices?" E que poderia eu responder'a isso tudo? De
forma que vivera sem livros, dobrado sobre mim mesmo, mau
#

grado meu. Quanfas perguntas fiz a mim proprio sem poder


eluci -las, apesar dos tormentos que me provocavam!
Porem isso tudo e impossivel de exprimirl , * *
Como eu chegara ao presidio durante o inverno, deveria
+ambem ser libertado nessa esta ão, no aniversario de mi-
nha entrada! Com que impaciencia aguardei esse inverno,
com que alegria vi morrer o verão, as folhas amarelecerem
nas 6rvores, a erva ressecar na estepe! Mas enfim o verão
acabou. O vento de outono gemia, o primeiro floco de neve
voli+ava ... O inverno tão longamente esperado chegara ...
O imenso pressentimento da liberdade me fazia bater o co-
ra ão em pancadas surdas, vioien+a~. E, cousa estranha, quan-
+o mais o tempo passava, mais se aproximava o momento,
mais eu me +ornava paciente, mais me. acalmava. Durante os
£ltimos dias espantava-me; acusava-me de indiferen a, julga-
va-me de gelo. Muitos dos for ados, quando me encontra-
vam no pafio, na hora do repouso, vinham me falar, felicitar:
- Então vai embora, Alexandr Pe+rovitchi A liberdade
chega, breve estar6 a¡: voc vai nos deixar, vai largar os
pobres diabos dos seus companheiros1
- E voce tambem, Marfynov, muito breve chegar6 sua
vez! respondia eu.
- Oh, muito breve não, ainda tenho que tirar sete
anos1
ele suspirava, definha-se, olhava diante de si com ar
disfraido, como se fixasse o futuro ...
Sim, muitos me felicitavam franca e cordialmente. To-
dos me pareciam mostrar mais afabilidade, sentia-se que eu
16 ' deles, que j6 se ha
nao era mais um viam despedido de mim.
K-czinski, um jovem fidalgo polaco, manso e delicado, gostava
de, como eu, passear pelo pafio nas horas de repouso. Pen-
sava que o ar puro e o movimento lhe conservariam a saude,
O compensariam das noites sufo antos da c¢sorno,
#

DOSTOIEVSKI
--- A -
Espero com impaciencia a sua par+ida, disse-me ele
m dia, sorrindo, durante um passeio. Ficarei sabendo então
uO ma resta apenas um anol
Notei de passagem que, gra as ... longe priva ão (i ...
ossa fendencia para o devaneio, a liberdade, vista da f¢r-
aleza, nos parecia mais absoluta do que o era na vida tan,-
ivel e real. Os for ados viam-na por demais embelezada,
ousa bastante natural num prisioneiro. Qualquer bagagWtro
oficial nos parecia quase um rei, quase o ideal do homem
ivre, simplesmente porque ia aonde queria, sem grilheta, s m
scolfa, sem a cabe a raspada.
Na v spera do £ltimo dia, ao crep£sculo, dei pela der-
deira vez volta ... pali ada. Quanfos milhares de vezes
era eu . aquele caminho? Ali, por tr s das casernas, va-
ueara sor¡tario, abandonado, desesperado, durante todo o
rimeiro ano da minha vida de presi...io. Recordava a poca
m que ainda contava por milhares os dias que me restavam
cumprir. Senhor, quanto tempo fazia que isto se passara!
C est o canto onde se debatia a nossa aguia, - aqu¡
que Petrov vinha sempre ao meu encontro. Petrov, -ali s,
não me deixava mais: corria ao meu encontro adivinhando
talvez meus pensamentos, espantado mau grado seu, cami-
nhova em silencio ao neu lado. Desped¡-me de todas as
vigas enegrecidas e mal esquadrejadas da nossa caserna.
Como me pareciam rebarbativas, então, nos primeiros fem-
pos1 Sem duvida tinham envelhecido ainda mais: eu, porem,
não o podia notar. E quanta juventude hnterrada naquelas
muralhas, quanta for a inutilmente perdida, sem proveito.~
nhumI Sim, devo diz -lo: todos aqueles homens tinham den-
fro de si recursos maravilhosos, eram talvez os mais dotados,
os mais en rgicos filhos do nosso povo, mas suas capacida.
des soberanas viam-se aniquiladas sem remissão. De quem
a culpa?
Sim, de quem era a culpa?
Cedinho, no dia seguinte, entes da hora da partida dos
hornens para o trabalho, logo que o sol foi nascendo, dei volta
I
i
#

RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS


·
NI
as casernas para me despedir de todos os de+entos. Muitas
mãos calosas e rudes se estenderam cordialmente para mim.
Mas os que me apertaram a mão como. c . ompanheiros não
eram numerosos. Compreendiam que eu iria imed*ia-~amen~e
me tornar outro homem. Sabiam que eu tinha rela ões na
cidade, que dentro em Pouco iria ... casa de alguns barines
junto aos quais tomaria lugar, como seu semelhante. Com-
pneendiam isso, e, embora o seu aperto de mão fosse cordial.
um dos seus, mas dum barine.
senti que não se despediam d não responder
Alguns me deram as costas e teimaram em
... minha sauda ão. Outros me lan aram olhares de odio.
O tambor rufava, todos partiram para o trabalho e eu
fiquei s6. Suchilov, que nessa manhã acordara antes de
h61-
todos os outros, arranjara tempo para me preparar o c
Pobre Suchilovi Chorou quando lhe dei os meus pertences
de preso: as camisas, as correias de segurar as grilhefas, e
um pouco de dinheiro.
- Não 6 por isso, não e por isso! murmurava ele atrav s
das 16grimas, mordendo os labios tr mulos . . . Corno vou
suportar sua perda, Alexandr Petrovitch9 Como posso viver
sem v -lo aqu¡?
Desped¡-me de Akim Akimi+ch.
- Breve ser6 sua vez, disse-lhe eu.
- Ainda me resta bastante tempo, bastante +empoi
murmurou Mim, aper+ando-me a mão.
Atirei-me aos seus bra os e nos beijamos.
Dez minunfos ap6s a partida dos for ados o compa-
nheiro com quem viera para o presidio e eu deixamos a
fortaleza para nunca mais ta +ornar. Fomos diretamente ...
forja afim de nos tirarem os ferros, mas ia não levavamos
escolta armada, e um Unico sub-oficial nos acompanhava.
Foram for ados que nos desembara aram dos ferros na ofi-
cina de engenharia. Esperei que tirassem o grilhão do meu
companheiro, depois me aproximei da forja. Os ferreiros me
fizeram voltar as costas, seguraram-me a perna por fras, esti-
405
I
#

DOSTOJEVSKI
i~... na ... Esfor avam-se em realizar
raram-na em cima de big
o trabalho da methor maneira possivel-
- olha - a ponta do cravo. vira primeiro a ponta do
crav01 ordenou o mestre ferreiro. Segura assim, for al
Agora uma martelada ...
Cairam os ferros. Ergu¡-os; ... Queria segur i-105 Com
minhas mãos, olh&-10S uma £ltima Vez. Maravilhava-me não
os sentir mais nas pernas.
- Bem, vão com Deus! Vão corri Deus! repetiram os
for ados, com suas vozes rudes, en+recortadas, nas quais mo
parecia perceber uma nota alegre.
Sim, iamos com Deus! Para a liberdade! Vida nova,
ressurrei ão de entre os mortos[ Maravilhoso momen+01
-m
Biblio I -,- - " ~'! 7, ' ~ - - - - ~
4
4
INDICE
dos Mortos"
Notas sobre "Recorda~ da Casa
Intro&jOo ...........
ix
PRIMEIRA PARTE
1 - A casa dos mortos ..................
Primeiras iffre~ .....
Primeiras impressões (continu~ ...........
jV - Primeiras impressões (continua &O) ................
V - O primeiro mis ............
Vi O primeiro m s (continua &O) ..............
Vil Novos conhecidos - Petrov ................
Vill - o "fac¡nora" Luka *----
1X - isai Fomitch - O banho - A historia de Bakluchine ....
X - Natal ...................
X1 - O espet culo ..................
SEGUNDA PARTE
#

i - O ~tal .................
11 - O hospital (conti~o) -
lli - O hospital (cont~ ....................
IV - o marido de Ai ulka (histOria) ........
V - Primavera ...............
V, - os animais do presidio .................
Vil - A queixa ....*-------
V111 - Companheiros .....................
1X - uma evasilo .********
x - A saida do presidio ..................
9
27
49
69
91
III
129
145
155
177
199
225
243
263
285
301
323
339
361
379
399
NOTA - Este livro foi publicado pela primeira vez em 1861 na
revista Vremia. de Petersburgo. pertencente a Mikhail, i~ de Dos-
tojevski. Saiu em folhetim. Tinha, entio, o escrim 33 anos de idadc-
i
#

erso
Os grandes romances, da literatura umv
COLE AO
FOGOS CRUZADOS
o
Ôste livro foi co~to e imPressO
nas oficinas da
EMPR SA GRµFICA DA "REVISTA DOS TRIBUNAIS" LTDA.,
... rua Conde de Sarzedas, 38, - São Paulo
para a
LIVRARIA jOS OLYMPIO EDITORA
Rio de janeiro
em setembro de 1945.
Esta cole ão que oferecemos aos leitores brasi-
leiros reune grandes obras literarias de todos os
tempos e todos os estilos. Atrav s de romances que
atravessaram os s culos, e obras modernas que tal-
vez não fiquem Para a eternidade, mas que são bem
representativas do momento atual, a alma e a terra
estrangeiras teem na espl ndida cole ão as suas v0-
zes mais expressivas. As ca;acter¡sticas dos "FO-
GOS CRUZADOS" $do a Perfei00 literaria e
forte intensidade humana: destinam-se, Pois, tanto
...., elites como aos que buscam a emo 5o de sim
romance vital.
Excelentes tradu õeS. Bela apresenta ão gr fica
Formatos in-8 e in~16. Volumes iniciais:
S.
4.
L
I
1. JANE AUSTEN - ORGULHO E PRECONCEITO
Tradu ão prefacio de LUCIO CARDOSO
ETHEL VW~ - FUGA
Tradu ão de LUCIO CARDOSO
TOLST01 - A SONATA A KREUTZER
Tradu ão de AMANDO FONTES
NINA FEDOROVA - ISTO A UM PEDA O DA INGLA-
TBRRAI (A FAMILIA) - Premio "Atlantic" de 200 mil
cruzeiros
Tradu ão de R. MAGAL1IXES JUNIOR
S. uPTON SINCLAIR - O FIM DO MUNDO
Tradu ão de Lucio CARDOSO
6. NATRANIEI, HA=11ORNE - A LETRA ESCARLA
TE
#

ROSA) - In-
(com um bico-de-pena do autor por SANTA
trodu o de WILLIAm LyoN PlIBLPs (ex-professor de litera-
tura na Universidade de Yale)
Tradu ão de SoDR VIANA
7. REMARQUE - NµUFRAGOS
Tradu ão de RACHEI, DE QUEIROZ
8. MARGARET KENNEDY - O IRREPARAVEL ENGAN
O
Tradu ão e prefacio de E~AN LIMA.
9.JANE AUSTEN - MANSFIELD PARK (com um retrato
da autora)
Tradu ão de RAc~ DE QUEIROZ
10. VICKI i3AuM - SANGUE B VOLUPIA
Tradu ão de VALDEMAR CAVALCANTi e RAUL LIMA
li. SAMUEL BUTLER - DESTINO DA CARNE
Tradu ão o prefacio de RAC= DE QUEIROZ
Introdu ão de OTTO MARIA CARPB¶UX
12. jOHN P. MARQUAND - SOL DE OUTONO
Tradu ão de M. P. MOREIRA FILHO
#

'.' 7 .
13. ARCHIBALD JOSEPH CRONIN - AS CHAVES D
O RRINO
Tradu ão de ILKA LABAItTHZ C a MAGAL~S JUNIOR
14.VOLTAIRE - ZADIG OU O DESTINO - (Historia Oriental)
(Com um bico-de-pena do autor por Luis JARDIM)
Tradu ão e prefacio de GzNoLiNo AMADO
15. MAURICE BARING - DAPHNE ADEANE
Tradu ão e prefacio de OSCAR MENDES
18. ARCHIBALD JOSEPH CRONIN - A FAMILIA.
BRODIE
Tradu ão de RACHEL DE Quz'Roz
17.DANIEL DEPOE - AS CONPISSOBS DE MOLL FLANDERS
- ou Sucessos a desgra as da famosa Moll Flanders, que nas-
ceu na prisão de Newgate e durante uma vida extraordina-
riamente intensa, foi prostituta durante doze anoq, casou-se
cinco vezes (uma delas com seu proprio Irmito), foi ladra
durante outros doze anos, depois vag*unda deportada para
a Virginia durante oito anos e, finalmente, millonaria, tendo
vivido honestamente o resto de seus dias e morrendo arre-
pendida, segundo as suas proprias memorias, escritas em
1683. - (Com um bico-de-pena do autor por Luis JARDIM)
Tradu Ao de Lucio CARDoso
18.HENRY BELLAMANN - EM CADA CORA IO, UM PE-
CADOI (KINGS ROW) ,
Tradu ão de CLo~is R~Hriu e JoÇO TAVOPA
19.TOLSTOI - OS COSSACOS - (Com um bico-de-pena do
autor por Luis JARDIM)
Tradu ão de ALMIR De ANDRADIM
20. HELEN MAcINNES - INSUSPEITOS
Tradu ão de*M. P. MoRieiRA FiLIIo
21. JAMES HILTON - NA NOITE DO PASSADO
Tradu ão de PzDito DANTAs e AURELIO GOMES DE OLIVEIRA
22. ARCHIBALD JOSEPH CRONIN - A CIDADBLA
Tradu ão, e prefacio de GzNoLiNo AMADO
23. FRANZ ~FEL - C U ROUBADO
Tradu ão de SODR VIANA
24. PHYLLIS BOTOME - TEMPESTADES D'ALMA
Tradu ão de P.AcHici, DE QuziRoz
25. PEARL BUCK - VENTO LESTE, VENTO OBSTE
Tradu ão a prefacio de VALDEmAR: CAVALCANTI
26. MAZO DE LA ROCHE - A HERAN A DE WHITEOA
K
Tradu ão e prefacio de HI:RmAx LIMA
PEARL BUCK - A EXILADA
Tradu ão de RAciizi, DE QujiciRoz
28. GEORGE SAND - INDIANA
Tradu ão e prefacio de ALMIR De ANDRADE
29. MAZO DE LA ROCHE - JALMA
Tradu ão de HERMAN LIMA
30. TOLSTOI - ANA KARENINA
Tradu ão de Lucio CARDOSO
31.C. S. FORESTER - A LONGA VIAGEM (Aventuras do
#

Cap¡tdo Hornblower)
Tradu ão de VivALDo COARACY
32.DAPHNE DU MAURIER - O ROTEIRO DAS GAIVOTAS
(GAIVOTA NEGRA)
Tradu ão de RACHEI, D3 QUZMOZ
33. LELLA WARREN - O SOLAR DA MURALHA DE PEDRA
Tradu ão de ILKA LABARTIIZ
34.CIRO ALEGRIA - GRANDE E ESTRANHO 2 O MUNDO
I.* Pr mio no Concurso da União Pan-Americana, ao qual
concorreram 300 autores das 3 Am ricas
Tradu ão de AMADRU AmARAL JuNioa
35. ROBERT HICHENS - O JARDIM DE ALA
Tradu ão de ANA MARIA MMMINS
96.MARGARET KENNEDY - ACONTECEU HA MUITO
TEMPO
Tradu ALo de H~Am LIMA
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~ I
O
1
39.
RACHEL PIELD - BRUMAS DO PASSADO
Tradu ão de LIA CAVALCANTI
38. CHARLOTTE BRONTE - O PROFESSOR
Tradu ão de RAUL LIMA
DAPI-lNE DU MAURIER - A MORTE NIO NOS SEPARA
TradUCIO de OSCAR MENDES e MILTON AMADO
40. DOSTOIEVSKI - O ETERNO MARIDO
Tradu ão o prefacio de COSTA NEVES
Xilogravuras de A)ML DE I~KOSCHEK
41. JAMES HILTON - FURIA NO C U
Tradu ão de RACHEL DO QUEIROZ
42. JANE AUSTEN - RAZIO E SENTIMENTO
Tradu ão de DiNAH SILVEIRA DE QUEIROZ
48. MARGUERITE STEEN - O SOL MINHA RUINA
Tradu ão de ANA MARIA MASTINS
44. DOSTOIEVSKI - HUMILHADOS E OFENDIDOS
Tradu ão de RACHEI, DE QUEIROZ
Introdu ão de OTTO MARIA CARPEAUX
Xilogravuras de OSVALDO GOELDI
45. GEORGE SAND - MAUPRAT
Tradu ão de ALmiR DE ANDRADO
46. EVELYN EATON - INQUIETAS ESTIO AS VEL
AS
Tradu ão de OSCAR MENDES
47. DOSTOIEVSKI - UM JOGADOR (Notas de
#

Tradu ão e prefacio de COSTA NEVES


XiIogravuras de AXEL DE LESXOSCHEIC
48. GUY DE MAUPASSANT - PORTE COMO A
Tradu ão de µocioLY NETO
49. PEARL BUCK - A, ESTIRPE DO DRAGIO
Tradu ão de ACCIOLY NETO
DOSTOIEVSKI - RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS
Tradu ão de RACHEI, DE QUEIROZ
Prefacio de BRITO BROCA
Xilogravuras de OsvALDo GOELDI
51. GUY DE MAUPASSANT - SEGREDOS DO CORA ÇO
Tradu ão de ALVARO GONCALV308
-52. NICOLAI GOGOL - ALMAS MORTAS (As
Chichicov) - (Com um retrato do autor)
Tradu ão e prefacio de COSTA NEVES
.introdu ão de OTTO MARIA. CARPEAUX
53. GEORGE ELIOT - O MOINHO DO RIO
Tradu ão de OLIVEIRA RIBEIRO NETO
54. LVON TOLSTOI - RESSURREI ÇO
Tradu ão de VALDBMAR CAVALICANTI
Edi ão integral profusamente ilustrada
55. EVELYN BATON - AT UM DIA ' ME U CAPITµOI
Tradu ão de DINAR SILVEIRA DE QUEIROZ
66. HENRY BELLAMANN - A INTRUSA
Tradu ão de RACREL DE QUEIROZ
E7. FRANZWERPEL-08 QUARENTA DIAS DE MUSA DAGH
Tradu ão de ANA MARIA MARTINS
58. A. J. CRONIN - ROR A. LUZ DAS ESTRELAS
Tradu ão de RUBEM BRAGA
:59. CHARLESDICKENS- UMA HISTORIA EM DUAS
Tradu ão de BERENICE XAVIER
60. A. J, CRONIN - TRÒS AMORES
Tradu ão de S. MARTINS LOPES CORREIA
61. MAZO DE LA ROCHE - o JOVEM RENNY
Tradu ão de MiROEL SILVEIRA
62.JOHN GALSWORTHY - O PROPRIETARIO (A Crâ?1i00
dos Forsyte)
Tradu ão de RACHEI, DE QUEIROZ
Os. MAURICE BARING - A PRINCESA BRANCA
Tradu ão de Lucio CARDOSO
60.
um jovem)
MORTE
Aventuraa de
FLOSS
#

CIDADES
#

JOHN GALSWORTRY - IRENS (A Cr~04 d06 ~,n


Tradu ão de ItACHZL DE QUXIEM
JOHN GALSWORTRY - DESPERTAR (A *17-r"~,"
Pornte)
Tradu ão de RACREL DE- QUZMOZ
NA ~.NIEL HAWTHORNE - A CASA DAS
TORRES
Tradu Ao de SoDR2 VIA?z...
IRINA SKARIATINA - T¶MARA
Tradu ão de JoÇO CALAZAN8
JACOB WASSERMANN - O PROCESSO W
Tradu ão de OCTAVIO, DID FARIA e ADONIAS
C. S. FORESTER - AGUAO DE ESPANHA
do Capitdo Hornblower)
Tradu ão de VIVALDO COARACY
C. S. FORESTER - A £LTIMA AVENTURA 1=-
do CapUdo Homblower)
Tradu ão de VIVALDO COARACY
OLIVF, HIGGINS PROUTY - STELLA DALLAS
Tradu ão de R&cim. Dm QuEiRoz
COMANDANTE EDWARD ELLSBERG - CAPITIO -98)
Tradu ão de EDUARDO Dm LIMA CASTRO
MYRON BRINIG - TUDO DE SUAS VIDAS
Tradu &o de EDUARDO De LIMA CASTRO
TURGUENEV - PRIMEIRO AMOR
Tradu ão de BRITO BROCA
MAURICE BARING - A TtNICA DB CRISTO
Tradu ão de Luis JARDIM Ir
MARGARET KENNEDY - O VAGABUNDO EVAN -10),
Tradu ão de CAIO DIZ FRUITAS
MAZO DE L ROCHE - CORA OES X44P3009*,4Mffizi
Tradu ão de IIERMAN LIMA
FIM DO LIVRO

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