Tonecas - Bom dia, senhor professor. Professor - Vamos Iá a saber: o menino estudou a sua lição de música?... Tonecas - Estudei, sim, senhor professor. Professor - Ora muito bem. Nesse caso diga-me: o que é um sol?... Tonecas - Um sol? Professor - Sim, um sol. Não sabe?... Tonecas – Sei, sim, senhor professor. Um sol... é o bilhete mais barato para as touradas... Professor - Mau, mau! O menino já começa mal... O sol é a quinta nota musical. Percebeu?... Tonecas - Muito bem, senhor professor. Professor – Bem. Diga-me, agora: e Iá o que é?... Tonecas - Lá?... Lá, onde?... Professor – Mau!… Mau, Maria! Tonecas - Ó senhor professor! Eu não sou Maria, sou Mário... Professor - Vamos! Diga-me cá: lá o que é?... Tonecas - Então, digo cá ou digo lá?... Professor - Ó menino! Eu perguntei lá! Tonecas - Peço desculpa, mas o senhor professor perguntou aqui!... Professor - Pois foi! Perguntei-lhe aqui, o que era lá... Percebeu?... Tonecas - Não percebi nada, senhor professor! Professor - Apre, que o menino é burro! Lá é a sexta nota musical! Do, ré, mi, fá, sol, lá... Tonecas - Faz sol Iá?!... Cá também faz, senhor professor. Professor - Ora a minha vida!... Vamos lá saber: o menino quer brincar comigo? Tonecas - Quero, sim, senhor professor! Sabe jogar ao pião?... (…) Professor - Pois claro! O menino não estudou a lição... Vejamos os intervalos: o menino sabe o que são intervalos? Tonecas - Muito bem, senhor professor: são aqueles bocadinhos em que a gente vai ao bufete, quando está no cinema. Professor - Nada disso, menino! Refiro-me aos intervalos musicais! Intervalo, em música, é a distância que vai duma nota a outra. Dê-me lá um exemplo de intervalo... Tonecas - Um exemplo?... Professor - Sim! Não sabe?... Tonecas - Sei, sim, senhor professor! Um exemplo de intervalo... Um exemplo de intervalo... Já sei! Quinze euros!... Professor – Quinze euros? Mas que disparate vem a ser esse?... Tonecas - Ora essa! Então, o senhor professor não disse que era a distância que ia de uma nota a outra? Ora de uma nota de cinco euros a outra de vinte, vai uma distância de quinze euros... Professor – Mas… ó menino! Nos estamos a tratar de música e não de dinheiro. Os intervalos a que me refiro, são, por exemplo: de dó para fá; de sol para ré: de Iá para si... Ora repita isto. Tonecas - De dó para fá... Professor - Vamos! Que mais?... Tonecas - De lá para mim! Professor - Não é para mim, menino! É para si! Tonecas - Pois é, senhor professor! Para mim... Professor – Mau, mau! Assim, não nos entendemos! Eu quero que o menino diga: para si! Tonecas - Ah! Quer que eu diga em voz baixa, para mim?... Professor - Mas que trapalhada! Ó menino!... (...) Professor - Muito bem! entre ré e sol, que é que há?... Tonecas - Entre ré? Professor - Sim! Nunca ouviu falar em ré?... Tonecas - Já sim, senhor professor! Ouvi uma vez, no tribunal!... Professor - No tribunal?... Tonecas - Sim, senhor! Ouvi o juiz dizer assim: “Entre a ré!” Professor - Mas que disparate, menino! Já lhe disse que estamos a tratar de música! Bom! Diga-me cá: o menino sabe o que são compassos? Tonecas - Sei, sim senhor! Compassos são aquelas coisas com duas pernas que servem para fazer rodinhas muito redondinhas. Professor - Quais rodinhas!... Circunferências é que o menino quer dizer… Tonecas - Isso! Isso! Conferências... Professor - Quais conferências!... São circunferências! Mas não me refiro a esses compassos. Refiro-me aos compassos musicais. Quais são os compassos simples mais conhecidos?... Vamos!... o quaternário... Tonecas - O quaternário... Professor - E que mais? O ternário... Tonecas - Ah! É verdade! O ternário... Professor – E o... vamos! Diga! Tonecas - E o... veterinário! Professor - Qual veterinário, menino!... O bi...Vamos!...Diga... O bi... Tonecas - O bi... O bicarbonário... Professor - O binário, menino! O binário! Tonecas - Ah, é verdade! Não me lembrava! Professor - Bem. Passemos às figuras. Diga-me lá algumas figuras... Tonecas - Algumas figuras?... Professor - Sim. Não conhece nenhumas?... Tonecas - Conheço, sim, senhor: a figura de parvo, a figura de urso... Professor - Exactamente! Figuras de parvo e de urso tem o menino, estado a fazer! As figuras de música são as seguintes: semibreve, mínima, semínima, colcheia, semicolcheia, fusa e semifusa! Percebeu?
José de Oliveira Cosme, As lições do menino Tonecas
AS LIÇÕES DO MENINO TONECAS Primeira lição de gramática
Tonecas - Bom dia, senhor professor.
Professor - Bom dia. Vamos lá a saber: que andou o menino a fazer, para vir atrasado? Tonecas - Sim, senhor. É que... é que... Fui fazer um recado à minha mãe... Professor - Que recado? Tonecas - Fui... fui comprar um litro de vinho para temperar o carneiro branco guisado da perna! Professor - Que trapalhada!... Tonecas - Exactamente! Professor - Ora, vem mesmo a propósito, porque... Tonecas - Já está com apetite, não?... Professor - Não é isso! Vem a propósito a trapalhada que fez, porque me dá ensejo de lhe fazer algumas perguntas sobre Gramática. Como sabe, o estudo da Gramática é indispensável a quem pretende falar e escrever com a devida correcção. Tonecas - Sem dúvida... Mas como eu não tenho essa pretensão porque, felizmente, não sou nada pretensioso, o melhor é não pensarmos nisso… Professor - É preciso atrevimento!... Ora, diga-me: sabe o que é palavra?... Tonecas - Palavra?... Professor - Sim, palavra! Sabe o que é? Tonecas - Senhor professor, palavra... palavra que não sei! Professor - Eu logo vi! Então o menino não se envergonha de não saber o que é Palavra? Tonecas - Confesso que não, senhor professor. Eu oiço dizer a toda a gente que palavra é coisa que já não existe... Professor - Mau! Não venha outra vez com as suas confusões!... Palavra, em Gramática, é a sílaba ou a reunião de sílabas que, pronunciada ou escrita, forma sentido. Por exemplo: soldado. Tonecas - Esse forma em sentido! Professor - Silêncio, menino! Eu disse: soldado, como poderia ter dito outra palavra qualquer. Ora, os sons duma língua são representados por sinais, não é assim?... Tonecas - Evidentemente! Professor - E como se chamam esses sinais?... Tonecas - Os sinais na língua chamam-se aftas. Professor - Nada disso, menino, nada disso!... Chamam-se letras!... Tonecas - Ah! É verdade, são letras! Professor - Pois claro que são letras!... E, agora, preste muita atenção: com o conjunto das várias letras arranja-se… o quê?... Tonecas - Arranja-se... Professor - O alfa... Tonecas - O alfa... O alfaiate!... Professor - O quê?!... O alfaiate?!... O alfabeto, menino! O alfabeto! Tonecas - Ah! É verdade! O alfabeto!... Professor - Ora, as letras dividem-se em dois grupos: umas, são vogais; as outras, são con... Tonecas - Con... Professor - ...soantes, menino, soantes! Tonecas - Ah! É verdade! A prova é que eu já estou a suar! Professor - Também eu! E cada vez me convenço mais de que não ganho nada com isso!... Consoantes, foi o que eu disse! Ora, o menino, é capaz de distinguir as consoantes das vogais? Tonecas - Talvez... Nunca experimentei. Professor - E ainda o confessa!... Ora vejamos: A, é consoante ou vogal? Tonecas - É... É consoante. Professor - O quê?... Tonecas - Quero dizer: é consoante o que o senhor professor disser... Professor - Sim, sim... bem o entendo. Em que ficamos?... É vogal, menino. Tonecas - Pois claro que é vogal!... Professor - E o R? Tonecas - O quê?... Professor – R… R!... Tonecas - Ah! Isso é mexilhão!... Professor - E pronto!... Já cá faltava o disparate! Tonecas - O senhor professor é que mandou... Professor - Que diz o menino?... Eu mandei-o responder errado?... Tonecas - Mandou, sim, senhor! Disse assim: “erre, erre”... E eu errei! Professor - Valha-me Deus! O menino tem tal vocação para as confusões, que chega a defendê- las com certa lógica! Preste atenção, por favor: a letra r, como todas as outras, com excepção de a, e, i, o, u, é consoante. Percebeu? Tonecas - Muito bem, senhor professor. Professor - Mas há letras que não têm sempre o mesmo valor: por exemplo, o A pode ser aberto ou fechado, conforme a palavra em que se encontra. Por exemplo: em gato, encontra- se aberto ou fechado? Tonecas - Senhor professor: o meu gato encontra-se fechado na capoeira, porque roubou duas postas de peixe-espada de cima da mesa da cozinha!... Professor - Mas que tenho eu com o seu gato? Está sempre a pensar noutras coisas!... O a da palavra gato é aberto, percebeu? Em fama, por exemplo, é que já é fechado! Ora a letra E tem mais valores: pode ser aberto, fechado, mudo... Na palavra feliz, que valor tem?... É mudo?... Tonecas - Não senhor professor. Felizmente tenho a língua desembaraçada. Professor - Isso sei eu! Mas é só para dizer disparates! Quando pergunto se é mudo, não me refiro ao menino. Refiro-me ao e de feliz... É mudo, menino, é mudo! Tonecas - Coitadinho!... Professor - O menino não sabe nada disto! Mas o meu dever é interrogá-lo até ao fim. Tonecas - Mas, ó senhor professor, porque é que não falta um dia ao seu dever? Uma vez não são vezes!... Professor - Silêncio, menino! Essa maneira de pensar define bem o seu critério de cábula consumado! Responda com acerto às minhas perguntas. Ora, o menino tem obrigação de saber que as letras consoantes se dividem em vários grupos, a saber: labiais... dentais... dento-labiais... E que mais?... Tonecas - E outras que tais! Professor - Isso era bom, era! Ora vamos: labiais, dentais, dento-labiais... e... pa... Tonecas - Pa... pa... pardais! Professor - Quais pardais! Um bom pardal me saiu o menino!... Palatais! Percebeu?... E que mais?... Tonecas - O quê? Ainda há mais?... Ó senhores! Com tantos ais, isto não é uma aula; é um hospital!... Professor - Vamos! Ainda faltam dois grupos. Quais são eles?... Linguais e guturais! Percebeu?... Tonecas - Muito bem, senhor professor! Professor - Não acredito, mas enfim... E, agora, para terminar, falemos dos ditongos. Ora os ditongos são orais e nasais, não é verdade?... Tonecas - Basta o senhor dizer... Professor - Por consequência, não pode haver trapalhada. Preste, contudo, a máxima atenção: nas palavras pai, fugiu, mau, escarcéus, judeus, os ditongos são... São quê?... Tonecas - São... Professor - O... Tonecas - O... Professor - Orais, menino! São orais! Tonecas - São orais. É isso mesmo! Professor - Bem. Vejamos agora. Nestes casos: tubarões, Guimarães, alemães, são...? Tonecas - São... Professor - Naz... Tonecas - Ah! Já sei: são nazis! Professor - Basta, menino! Estou farto de aturar os seus disparates!... E para não perder o resto da paciência que ainda tenho, dou por terminada a lição de hoje! José de Oliveira Cosme, As lições do menino Tonecas