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O grito de um louco.

Nietzsche e a morte de Deus.

Paper do Prof. Eduardo Sugizaki,


solicitado pelo IFITEG, para Conferência em 28/09/99
Texto e conferência dedicados ao amigo Prof. Ms. Pedro Gomes.

O homem louco. - Não haveis ouvido falar daquele homem louco que, tendo aceso uma lanterna
em pleno meio-dia, corria pela praça do mercado e gritava ininterruptamente: 'Procuro Deus!
Procuro Deus!'? - E como lá encontravam-se reunidos justamente muitos daqueles que não
acreditavam em Deus, ele suscita uma grande hilaridade. 'Ter-se-á perdido?' pergunta um. 'Ter-se-á
desgarrado (sich verlaufen) como uma criança? disse outro. 'Ou bem escondeu-se em qualquer
parte? Terá medo de nós? Ter-se-á embarcado? Ter-se-á emigrado?' assim eles gritavam e riam
todos ao mesmo tempo. O homem louco precipitou-se para o meio deles e trespassou-lhes com o
olhar: 'Onde está Deus?' gritava ele. 'Eu vou lhes dizer! Nós o matamos - vós e eu! Nós todos somos
seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como pudemos esvaziar o mar? Quem nos deu a esponja
para apagar todo o horizonte? Que fizemos para desprender esta Terra de seu Sol? Para onde nos
leva seu movimento? Para longe de todos os sóis? Não estamos precipitados numa queda contínua?
E isso para trás, para os lados, para frente, para todos os lados? Existe ainda um alto e um baixo?
Não erramos como através de um nada infinito? Não sentimos o sopro do vazio? Não faz mais frio?
Não faz noite sem cessar e cada vez mais noite? Não é necessário ascender lanternas de manhã?
Não escutamos ainda o barulho dos coveiros que sepultam Deus? Não sentimos ainda algo da
putrefação divina? - os deuses também se putrefazem! Deus está morto! Deus permanece morto! E
eis que fomos nós que o matamos! Como nos consolar, nós, assassinos dos assassinos? Isso que o
mundo havia possuído até então de mais sagrado e de mais poderoso perdeu seu sangue sob nossa
faca - quem lavará esse sangue de nossas mãos? Qual água poderá nos purificar? Quais solenidades
expiatórias, quais jogos sagrados nos falta inventar? A grandeza dessa ação não é demasiado grande
para nós? Não nos seria necessário transformar-nos em deuses para parecer dignos dessa ação? Não
houve jamais uma ação maior do que essa - e qualquer um que nasça depois de nós pertencerá, em
virtude dessa ação, a uma história superior a toda história de até então!' Aqui o homem louco calou-
se e atentou novamente a seus auditores: eles também calaram-se e olhavam sem compreender.
Enfim, ele jogou a lanterna ao solo, espatifando-a. 'Eu chego muito cedo, disse ele em seguida, meu
tempo ainda não chegou. Esse formidável evento está ainda a caminho e em viagem - ele não
chegou ainda aos ouvidos dos homens. É necessário tempo ao raio e ao trovão, é necessário tempo
à luz dos astros, é necessário tempo às ações, depois de completadas, para serem vistas e
entendidas. Essa ação lhes é ainda mais distante que os astros mais longínquos - e ainda que
tenham sido eles quem a realizaram!' Conta-se ainda que, nesse mesmo dia, o homem louco teria
entrado em diferentes igrejas (Kirche) onde ele teria entoado seu Requiem aeternam Deo. Lançado
fora e interrogado, ter-se-ia limitado a responder invariavelmente desta maneira: 'Que são ainda
essas Igrejas, se não covas e sepulcros de Deus - ?' " (Friedrich NIETZSCHE, in A gaia ciência §
125. Trad. do francês e do italiano, das Edições críticas de Colli e Montinari, por Eduardo
Sugizaki)

1
1. O louco

Conta uma parábola nietzschiana o sinistro evento de um louco (tolle Mensch)


que corria pela praça de mercado, gritando sem parar "Procuro Deus! Procuro Deus!".
Logo de princípio, essa narrativa que perfaz todo o aforismo 125 de A gaia ciência,
reporta-se a uma outra narrativa muito semelhante, citada não por recurso à nota de
rodapé, mas por sua evocação cênica. Segundo uma das anedotas contadas por
Diôgenes Laêrtios sobre Diôgenes de Sinope (413-323 a. C.), "durante o dia
Diôgenes andava com uma lanterna acesa dizendo: 'Procuro um homem!'"1 Essa e
outras que se conservaram sobre o filósofo de Sinope, como andar nu pela cidade e
satisfazer todo tipo de necessidade fisiológica, em público,2 podem dar a qualquer um
aquela mesma impressão que teria levado Platão a ver, em Diôgenes, um "Sócrates
demente"3. Também o louco da parábola do filósofo alemão entra na praça do
mercado portando uma lanterna acesa em pleno dia, mas sua procura é outra. Por
isso, impõe-se a fazê-la, para além da praça do mercado, lugar natural de Diôgenes,
aquele que viveu sem casa, nos lugares públicos de Atenas.4 O louco da parábola
nietzschiana leva adiante sua procura e passa a visitar também as Igrejas.
Embora não referida diretamente na parábola nietzschiana, há uma outra
narrativa antiga muito semelhante. Trata-se da parábola do endemoninhado de
Gadara. Contam os evangelhos sinóticos que um homem endemoninhado5, sem
roupas e sem casa6, habitava em sepulturas,7 perambulava incansavelmente pelos
desertos8 ou pelas montanhas, dando gritos e ferindo-se com pedras9, tão feroz que
ninguém podia atravessar o seu caminho10, que ninguém era capaz de mantê-lo preso,
nem com grilhões nem com algemas11. Esse endemoninhado é apresentado ao leitor
quando berra desvairadamente seu reconhecimento de que caminha ao encontro do
1
LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. do grego por Mário da Gama Kury. Brasília,
Editora Universidade de Brasília, 1988, p. 162. Livro VI, capítulo 2, parágrafo 41.
2
Id. Ibidem, p. 158 e 163. Livro VI, capítulo 2, parágrafo 22 e 46.
3
Id. Ibidem, p. 165. Livro VI, capítulo 2, parágrafo 54.
4
Id. Ibidem, p. 157-173. Livro VI, todo o capítulo 2.
5
Ou endemoninhados, conforme a versão mateana. Cf. Bíblia de Jerusalém, Mt 8,28 (segundo o sistema de citação
adotado pela mesma obra).
6
Id., Lc 8,27 e Mt 8,28.
7
Id., Mt 9,28, Mc 5,2 (entre as sepulturas) e Lc 8,27.
8
Id., Lc 8,29.
9
Id., Mc 5,5.
10
Id., Mt 8,28
11
Id., Mc 5,4 e Lc 8,29.

2
filho de Deus12.
A parábola de Nietzsche, a anedota sobre Diôgenes e as narrativas sinóticas
guardam algumas semelhanças cênicas que, agrupadas, podem constituir um quadro
dramático mínimo e comum, capaz de elucidar algo da própria semântica dessas
narrativas, no interesse da recepção da parábola nietzschiana. Nos três relatos, há um
homem enlouquecido ou supostamente louco, que caminha para um encontro. Esse
homem procura algo que só busca por já tê-lo previamente encontrado, Deus, no caso
do louco de Nietzsche, o homem, no caso de Diôgenes e o filho de Deus, no caso do
endemoninhado dos sinóticos. Nas três narrativas, o louco é portador do objeto de sua
busca. Nas três, pode-se observar o deslocamento geográfico desse bizarro
personagem desde um espaço próprio, aquele do não-louco, de tal forma que o louco
faz-se protagonista de um pequeno drama, cujo ponto alto encontra-se na sua entrada
em cena, num flagrante fotográfico de uma transgressão, irrupção abrupta e
desconvidada, a tomada exclusiva do encontro do sano e do insano, acompanhada de
uma fala inusitada e, em princípio, inaceitável, do ponto de vista dos não-tolos.
Nas três narrativas, aquele que parece louco, aos olhos dos que se concebem
como sãos, é portador de uma palavra que parece loucura, porque desconcertante,
porque arrisca tudo na verdade ou na mentira de uma busca gratuita ou notícia
infundada e que, mesmo assim, requisita ser ouvida por aqueles que se compreendem
como não-loucos. Assim, um louco é apresentado como portador de uma palavra que
pode fazer sentido, embora isso não esteja claro para os que se têm por sensatos. Essa
estrutura semântica comum permite enquandrar as três narrativas no terreno de uma
luta ideológica. Elas têm inimigos. Estão plantadas num campo de batalha, como
peça de artilharia, de defesa de uma posição e de ataque frontal de posições adversas.
Cada uma delas tem, ao seu próprio modo, sua dose de cinismo e seu contra-efeito
apologético. Elas dão aos seus narradores a chance de sair do posto defensivo para
assumir aquele da acusação.
O perdido narrador das anedotas sobre Diôgenes,13 os sinóticos e Nietzsche
apresentam um louco como portador de uma mensagem tão diversa, que suas
12
Id., Mt 8,29, Mc 5,7 e Lc 8,28.
13
Visto que essas anedotas
foram objeto de uma vasta tradição oral, testemunhada
pelo autor de Vida e doutrina dos filósofos ilustres.
3
palavras só podem ser ouvidas pelos homens comuns, como fala de louco. Dessa
forma, colocam sob suspeita as próprias fronteiras entre loucura e sanidade, impureza
e pureza, pecado e santidade, vida e morte, razão e desrazão, humano e inumano. Há,
nas palavras de cada um desses loucos, de cada uma das três narrativas, um
conhecimento que funde o apartado e o distinto, que confunde o claro e o obscuro,
que embaraça as mentes sãs.
Nietzsche é conhecedor da ambigüidade profunda dessas dicotomias e está
claramente disposto a tentar desautorizá-las. Em uma passagem do terceiro livro de
Assim falou Zaratustra, a própria vida, transformada literariamente em personagem e
interlocutora de Zaratustra, reconhece-se nele, com as seguintes palavras: "E que eu
sou bondosa contigo e, às vezes, demasiado bondosa, isso bem o sabes; e a razão é
que tenho ciúmes da tua sabedoria. Ah, essa velha, doida varrida sabedoria! (Ah,
diese tolle alte Närrin von Weisheit!) / Se algum dia a tua sabedoria te abandonasse,
ah, então, logo te abandonaria, também, o meu amor". (O outro canto de dança § 2).
Doida varrida é a sabedoria dada pela vida à Zaratustra. A sabedoria da vida é
loucura. Assim a vida mesma o reconhece.
Quanto à anedota contada por Diôgenes Laêrtios sobre seu homônimo, embora
a tradição filosófica não tenha dado grande importância às provocações do filósofo de
Sinope e dos cínicos em geral, Nietzsche deu-lhe atenção porque, como o cínico,
também o filósofo alemão procura um homem, por crer que ele não esteja dado de
antemão.14
Lida desde a perspectiva das duas narrativas semelhantes mais antigas, a
parábola de Nietzsche revela-se naquilo que tem de presunçoso, em comum com as
outras. Aquilo que é tido como loucura transforma-se em réplica de sabor paródico
contra o supostamente não-louco. Trata-se de uma forma de radicalizar a oposição
das verdades e a diferença dos postos. Colocadas na boca de um louco, uma palavra e
uma verdade apresentam-se em toda sua pretensão. Ou bem elas são um grande
equívoco e seu portador só pode ser um louco ou elas são verdadeiras de uma tal
forma que tudo o mais, fora delas, torna-se loucura. Louco, nesse caso, poderia ser
quem não desse ouvidos a tais palavras. De forma que, ou bem se decide a favor ou

14
Cf. XII, 2 (13) de 1885- 1886. Assim falou Zaratustra, Livro I, Dos pregadores da morte.
4
bem se decide contra, mas não é possível não se decidir ante as palavras do louco,
quanto ao fato de que sejam ou não-loucuras.
No que diz respeito ao texto nietzschiano, resta saber se uma tal pretensão de
relevância, escondida na escolha da forma literária, justifica-se quanto ao conteúdo,
ao mesmo tempo que dá provas de sua pertinência filosófica.

2. O Deus do louco

O louco da parábola nietzschiana diz que procura Deus, mas quem é esse deus
que ele procura? A resposta do personagem parece esclarecer pouco. Diz que procura
um Deus que "está morto!" que "permanece morto!". Talvez se devesse entender
tratar-se do deus ancestral de um povo perdido, de uma civilização desaparecida.
Talvez, tratar-se-ia de um deus que foi substituído por outro ou incorporado na
identidade de outro. Nesse caso, poder-se-ia mobilizar a etnografia para fazer o
levantamento das características do deus do louco, ou seja, dos traços elementares
dessa entidade e identidade divina. Um procedimento como esse teria de tomar a fala
do louco como relato descritivo de uma crença religiosa, ponto de partida da pesquisa
sobre o deus que se pretende descobrir e conhecer. Tratar a fala do louco dessa forma
seria um procedimento legítimo porque o louco crê que Deus morreu, donde se pode
concluir que também creia que esteve vivo. A fala do louco, com seu conteúdo e tom
dramático, a narração do sentimento da falta e da ausência desse deus morto, é a
descrição de uma experiência de pensamento, mas também de uma vivência religiosa.
Escute-se o lamento do louco: "Não estamos precipitados numa queda contínua? E
isso para trás, para os lados, para frente, para todos os lados? Existe ainda um alto e
um baixo? Não erramos como através de um nada infinito? Não sentimos o sopro do
vazio? Não faz mais frio? Não faz noite sem cessar e cada vez mais noite?"
Por um lado, portanto, o personagem nietzschiano recai no estatuto do homem
religioso, objeto potencial de uma ciência positiva. Por outro, a parábola nietzschiana
não se deixa domar assim tão facilmente pelo discurso científico. O primeiro grupo
ao qual o louco dirige suas palavras é aquele dos homens da praça do mercado. Esses
homens reagem ao grito angustiado do louco com perguntas cheias de perplexidade:

5
"Ter-se-á perdido?", "Ter-se-á desgarrado como criança?". Perante a busca por um
ser transcendente e empiricamente inverificável, os homens da praça riem pois, como
a parábola esclarece, "lá encontravam-se reunidos justamente muitos daqueles que
não acreditavam em Deus". Pensam que o louco esteja buscando um objeto no qual
apenas as crianças ou os homens, num estágio de infantil de seu desenvolvimento,
num estágio pré-científico ou teológico, puderam depositar crença e confiança. Os
gritos do louco são ouvidos como algo cômico, porque tido como ingênuo,
desprovido de maldade e de malícia; infantil, enfim. Daí que os homens da praça do
mercado recebam o louco como adultos que se divertem de gracejos pueris. Ocorre,
entretanto, que, entre os homens da praça e o louco, há uma incompatibilidade
fundamental, que torna sua comunicação impossível. O louco da parábola
nietzschiana faz uma indicação gramaticalmente definida e demonstrativa de Deus.
Enquanto o louco diz que procura Deus, os homens da praça entendem que ele
procura "um" deus.
Ora, a etnografia, como ciência moderna, ao tomar a fala do louco por objeto,
tem de processar a mesma redução operada pelos homens do mercado. A ciência
positiva não pode lidar com o próprio Deus, entendido como "o Senhor''. Por recorrer
às provas empíricas, a etnografia não pode lidar a não ser com um deus entendido
como objeto produzido pelo homem, ou seja, com os registros humanos de suas
próprias criações cultuais. Nas mãos da etnografia, o Deus do louco só pode ser lido
como um deus. Apenas um deus do homem pode ser objeto de estudo científico
porque um deus estudado pela etnografia jaz aí, diante dela, passivo à exumação. É a
crença humana na transcendência que pode se tornar objeto da ciência positiva, não o
conceito de transcendência e jamais o transcendente em si mesmo e enquanto tal.
Disso decorre que Deus mesmo para a ciência não chega a ser uma hipótese pensável.
Está fora do âmbito do conhecimento, do aparato, do método e de tudo o possa estar
ao alcance da ciência positiva.
Assim, a parábola nietzschiana subverte o programa de submeter a fala do
louco à ciência. Para além da possibilidade real de o discurso de fé decepcionada do
louco dar-se como objeto de ciência, a parábola nietzschiana tem algo a dizer sobre o
significado da atitude de base necessária à produção do discurso histórico sobre a

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crença religiosa. Na reação dos homens do mercado à procura do louco está inscrito
aquilo que o louco, em seguida, explicita: " 'Onde está Deus?' gritava ele. 'Eu vou
lhes dizer! Nós o matamos - vós e eu! Nós todos somos seus assassinos!' ". No ato de
reduzir a entidade divina, na qual o homem deposita ou depositou sua fé, a objeto de
pesquisa empírica, a ciência reduz Deus a um deus. Por seu método, ela não pode não
reduzir o discurso do louco da mesma forma como o fizeram os homens do mercado.
Ora, essa redução pode adiantar um significado da metáfora parabólica "matar" ou
"assassinar" Deus, enquanto Deus. Deus é assassinado em sua condição divina
porque já não é mais possível não perceber que a ciência pode manipular aquele
objeto que, desde sempre, foi passível de uma outra forma de manipulação, aquela de
tipo sacerdotal, escondida em processos de mistificação, que a ciência histórica,
agora, está em condições de desvendar. Ocorre que a ciência tem uma pretensão
epistêmica necessária à sua natureza. A perspectiva de conhecimento própria da
ciência é aquela pela qual todo evento humano apresenta-se como histórico e, como
tal, objeto potencial de um método científico. Também aquelas realidades que o
homem pretende transcendentes à história recaem no registro da história, na medida
em que são conhecimento processado pelo homem. Apenas um objeto desconhecido
pelo homem, em sua transcendência e, por causa desse desconhecimento, algo
completamente inexistente no mundo humano, poderia não recair na malha da
necessária historicidade de tudo o que é humano. Ora, todos os deuses são objetos
não da história da natureza, mas da história do homem. Além disso, nenhuma religião
positiva pode lidar com um deus cuja transcendência seja tal que sobre ele nada se
saiba. Um deus cuja transcendência é garantida pelo fato de que seja inteiramente
desconhecido pelo homem, também não pode ser crido pelo homem. Por isso, o
conhecimento científico sobre a crença religiosa implica, como tese fundante, a idéia
de que é por mãos humanas que os deuses fazem sua história, que é humana a história
divina, que é na esfera do homem que os deuses nascem e morrem.
Entretanto, o louco, ao utilizar o modo de referimento ao divino que teve lugar
no âmbito do monoteísmo, já que se trata da morte de Deus e não da morte de um
deus, assume um posto que se aparta epistemicamente da etnografia, criando a
incompreensão entre os discursos, que é retratada pelos risos dos homens da praça do

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mercado. A parábola põe em evidência o fato de que os dois discursos não podem
coexistir pacificamente, quando suas pretensões internas são levadas às últimas
conseqüências. Do ponto de vista interno de cada um, o outro só é compreensível e
aceitável, se reduzido em sua pretensão. Porém, nem a ciência positiva pode
abandonar a pretensão de que todo o campo do humano recaia sob o domínio da
história, nem a religião pode aceitar que o discurso sobre Deus possa ser
completamente reduzido à imanência da história humana. Tudo o que a ciência pode
fazer é ouvir, na proposição indicativa e demonstrativa de Deus, mais uma pretensão
humana, que poderá estudar, enquanto tal. Tudo o que a religião pode fazer é
considerar que Deus está para além do que todo e qualquer conhecimento que o
homem possa alcançar. Essa incompatibilidade insolúvel é retratada na visita do
louco da parábola nietzschiana às Igrejas. O louco é expulso de todas as que visita.
Essa segunda recepção do seu discurso é muito diferente da primeira. Nas Igrejas, o
louco não pode ser ouvido porque ele diz que Deus morreu. Seu discurso não pode
ser aceito porque Deus, por ser Deus, do ponto de vista das Igrejas, não pode ter
morrido.
Em conseqüência, a expressão "Deus morreu" opera uma dupla contusão
epistêmica. Não pode ser ouvida na praça do mercado, nem aceita nas Igrejas. O
louco é aquele que provoca a revelação do caráter epistêmico da incompreensão entre
os dois lugares geográficos, ao dizer, em ambos, que "Deus morreu". Pensados como
lugares-sede de saberes incompatíveis, ou bem alguém está na praça do mercado ou
bem está dentro das Igrejas. Os dois lugares não podem ser reduzidos a um. Dessa
forma, a dualidade geográfica da parábola nietzschiana metaforiza as duas únicas
possibilidades teóricas do homem moderno ocidental. Ou bem ele pensa a totalidade
sob o signo de Deus ou bem ele carece dessa explicação de totalidade. Caso se
formule uma tal explicação, não está mais a alcance de ninguém ver nela legitimidade
para além daquela alcançável à razão humana entregue às suas próprias
possibilidades.

3. A experiência humana da morte de Deus

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O louco da parábola é aquele que, não podendo mais pensar a totalidade sob o
signo de Deus, não abdica de pensá-la. "Nós o matamos - vós e eu! Nós todos somos
seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como pudemos esvaziar o mar? Quem nos
deu a esponja para apagar todo o horizonte? Que fizemos para desprender esta Terra
de seu Sol?", diz ele para, em seguida, descrever as conseqüências desse feito
abominável. "Para onde nos leva seu movimento (o da Terra)? Para longe de todos os
sóis? Não estamos precipitados numa queda contínua? E isso para trás, para os lados,
para frente, para todos os lados? Existe ainda um alto e um baixo? Não erramos como
através de um nada infinito? Não sentimos o sopro do vazio? Não faz mais frio? Não
faz noite sem cessar e cada vez mais noite? Não é necessário ascender lanternas de
manhã?"
Como a Terra não esteve e não está caindo, nem se desprendeu do Sol, as
imagens e figuras da parábola são, aqui também, metáforas. Evocam uma
desorientação sentida pelos homens com aquela proposição da ciência moderna, em
seus primeiros movimentos, de que seria mais simples dispor os cálculos
matemáticos adotando o Sol e não a Terra como centro do sistema planetário. O
discurso do louco parodia e duplica esse evento da história da ciência pelo evento
fantástico da perda do próprio centro gravitacional, para indicar uma segunda
desorientação do homem ocidental, mas de proporções muito mais graves que a
precedente. A parábola quer indicar uma perturbação completa dos sentidos humanos,
pela perda desse centro de todos os centros, que é Deus. Perda que, em sua
gravidade, deixa sem referencial todos os humanos movimentos. Assim, a descrição
das conseqüências da morte de Deus, descritas pelo louco dizem respeito a uma
experiência humana, aquela da privação do sentido da totalidade e da totalidade de
sentido. Perda que só é inteligível dentro de uma compreensão tipicamente
monoteísta do mundo e, muito particularmente dentro da concepção ocidental do
monoteísmo, em que Deus representa o sumo bem, o fundamento eterno da justiça e
da verdade. Se o Deus do monoteísmo morreu pelas mãos do homem, considerando-
se que é o Deus único, todo o referencial perder-se-ia sem chance de substituição. A
morte de Deus de que fala o louco é um evento humano, porque o homem é o
assassino. E o lugar desse ato inapagável é o único terreno em que isso poderia ser

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realizado, o sistema de explicação humana de mundo. Deus morre nesse lugar em que
nasceu, pela descoberta de que houve um lugar de um nascimento.
Se tudo se passa no horizonte da experiência de pensamento, nos confins do
humano, há que se perguntar o que confere ao louco uma condição tão privilegiada
em relação aos homens da praça e aos homens das Igrejas, que lhe permite explicar a
incompreensão e a recusa de seu discurso, como o faz: "Eu chego muito cedo (...) -
diz o louco -, meu tempo ainda não chegou. Esse formidável evento está ainda a
caminho e em viagem - ele não chegou ainda aos ouvidos dos homens. É necessário
tempo ao raio e ao trovão, é necessário tempo à luz dos astros, é necessário tempo às
ações, depois de completadas, para serem vistas e entendidas. Essa ação (o
assassinato de Deus) lhes é ainda mais distante que os astros mais longínquos - e
ainda que tenham sido eles quem a realizaram!"
O privilégio de visão do louco se estriba naquilo que indica a imagem
metafórica de seus sucessivos deslocamentos geográficos. Não estando mais nem na
praça do mercado, nem nas Igrejas, ele estaria em condições privilegiadas de ver,
desde fora, desde o lugar próprio do louco, a dicotomia geográfica que tem diante de
si, com o que essa distância geográfica indica em termos da incompatibilidade dos
saberes que esses lugares simbolizam.
Ora, o louco pode chegar à lucidez da experiência da morte de Deus antes dos
outros porque realizou uma trajetória prévia à sua narrativa, tal como suas próprias
palavras o indicam. Na medida em que o louco se confessa partícipe da morte de
Deus, acusa sua cumplicidade com os homens da praça. Na medida em que se utiliza
de uma linguagem compreensível apenas nas Igrejas, entrega sua cumplicidade com a
crença delas. Assim, antes de ter realizado o deslocamento geográfico, que vai do seu
lugar de louco para a praça do mercado e, daí, para as Igrejas, o louco deve ter
realizado o mesmo movimento em sentido inverso. Deve ter estado nas Igrejas, de
onde deve ter saído, passando pela praça do mercado, de onde também deve ter saído,
para chegar a esse lugar distante dos dois primeiros, que é o lugar próprio do louco.
Então, o louco deve ter sido homem de fé e que deve ter se tornado homem de
ciência, antes de ser conhecedor da morte de Deus. Homem de fé, o louco ter-se-ia
feito homem de ciência e, por fim, pensador, ao compreender que, como homem de

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ciência, participou do banimento da hipótese "Deus", na qual havia crido como
homem de fé. Dessa forma, o enunciado da morte de Deus pressupõe uma tríplice
identidade, neste personagem que é o louco. O louco metaforiza o pensador, na
medida em que esse faz-se conhecedor de sua própria trajetória intelectual, das
sucessivas experiências de pensamento que realizou, tornando-se capaz de avaliar
seus deslocamentos. O personagem do louco remete ao papel do filósofo enquanto
conhecedor das pretensões internas irreconciliáveis da ciência positiva e da religião,
enquanto modos de saber ocidentais. O filósofo confronta as duas experiências de
pensamento, a da crença em Deus e a do pensar científico, e percebe que a segunda
anula a primeira porque é possível reconhecer cientificamente o processo de
pensamento a que se denomina crença, bem como auferir a relação entre a identidade
de um deus e a experiência de pensamento que o produziu. Mas é ainda como homem
religioso que o filósofo experimenta a dor da ausência de Deus, conhecedor de todas
as suas conseqüências em termos de compreensão da totalidade.
Com isso, a descrição do louco oferece exatamente aquilo que uma pesquisa
empírica e científica sobre a experiência humana da dissolução da crença poderia
esperar como objeto de análise. Mas a experiência da morte de Deus, enquanto
fenômeno humano e experiência do homem, só pode ser compreendida se se reproduz
o próprio complexo de experiências de pensamento que geram a assertiva "Deus
morreu". Para tanto, é necessário levar a sério toda a pretensão que o monoteísmo
tem quanto à identidade de Deus e do significado desse Deus para o homem, para a
compreensão humana do cosmos e do ser em totalidade. Em seguida, é necessário
tomar a sério toda pretensão interna da ciência moderna. Por fim, é preciso refazer o
sobrevôo teórico que compreende ambas as experiências de pensamento como
inconciliáveis. Disso resulta que o louco perfaz um trajeto intelectual na direção da
opção epistêmica do discurso científico sobre o objeto de crença religiosa, mas que,
no lugar de compartimentar a consciência entre discursos incompatíveis, o louco
opera o confronto das experiências de pensamento, que resultam na experiência de
que Deus, como coisa humana, não pode mais ser sustentado pelo homem no nível da
pretensão do monoteísmo e o ato mesmo dessa descoberta não é outra coisa que a
percepção da insustentabilidade da divindade de Deus. Por ser Deus e não

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simplesmente um deus, sua morte é irremediável. Em seu lugar, o homem pós-
monoteísta não pode pôr nenhum outro deus, sem saber, previamente, que se trata de
um constructo humano, ou seja, sem desdivinizá-lo, de antemão. O homem ocidental,
depois da morte de Deus, só pode dar-se deuses, aos quais ele próprio está fadado
reconhecer previamente como meros simulacros.

4. Sobre o fundamento da pretensão da fala do louco

Se o conteúdo da mensagem do louco for a morte de Deus, enquanto processo


da descoberta humana de que o último Deus, o do monoteísmo ocidental, era também
um deus humano, como todos os demais que o precederam, como é possível que esse
Deus ainda seja cultuado nas Igrejas visitadas pelo louco? Se o Requiem aeternam
Deo do louco é recusado nas Igrejas, ainda que o louco as considere covas e
sepulcros de Deus, não faz sentido dizer que ele morreu. Ora, se a vida de Deus é
dada pelo homem porque foi vivo para e no homem, para quem e em quem morreu, e
se ainda há homens que dão vida a Deus, por sua crença nele, Deus não pode estar
morto. Desse ponto de vista, a recusa do discurso do louco, apresentada pela
parábola, é a refutação da idéia de que Deus morreu.
Se o louco continua crendo em seu anúncio da "morte de Deus" é por pensar
que a experiência de pensamento que gera o enunciado seja mais que meramente
subjetiva e restritamente individual. Algo que só seria sustentável, entretanto, se o
enunciado "Deus morreu" repousasse ou bem sobre uma positividade empírica,
sujeita a checagem, ou bem sobre um discurso metafísico, zeloso de seus
fundamentos. Porém, a parábola não oferece nem uma coisa nem outra. Ao pretender
descrever um fenômeno universal, enquanto experiência de pensamento subjetiva,
mas necessária como conseqüência da crença monoteísta, a afirmação "Deus morreu"
elude o discurso metafísico, enquanto desvela a pretensão de arrancar-lhe seu mais
basilar conceito, o do ser em si, que se garante a si mesmo a existência. O louco burla
o discurso próprio da metafísica pela instauração de uma linguagem equívoca. Do
ponto de vista da tradição filosófica ocidental, o problema de Deus, como explicação
última do mundo, requer uma solução quanto à existência ou inexistência. A

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teodicéia pergunta pelo ser de Deus, a partir da consideração lógica do ser em sua
totalidade.15 A afirmação "Deus morreu" resvala fora da linguagem metafísica porque
troca o discurso sobre o ser pelo discurso sobre a vida e, ao fazê-lo, imiscui-se no
discurso religioso e teológico, sem deixar-se prender e sem obter guarida aí. O
enunciado "Deus morreu" não é aceitável nas Igrejas por seu conteúdo, por motivos
muito próximos daqueles pelos quais o discurso de Paulo, o Apóstolo, não pôde ser
aceito pelo judaísmo. Não é sem razão que seu discurso apresente-se como "loucura
para os homens".16 É bem por isso que apenas nesse lugar, nas Igrejas, o enunciado
"Deus morreu" tenha sido compreendido. Enquanto, para os homens da praça, a fala
do louco simplesmente cai no vazio; das Igrejas, ele é expulso. Aqui a pretensão de
sua mensagem foi compreendida e, por isso, não foi aceita. Dessa forma, a afirmação
do louco, insensata para a metafísica e blasfema para a linguagem religiosa, resta sem
registro epistêmico possível, enquanto ele for buscado nas tradições filosófica e
teológica ocidentais. Na perspectiva monoteísta, como supor que Deus esteve e não
está mais vivo? Como se pode pensar que Deus tenha morrido? Não é exatamente o
fato de não poder morrer que diz sua condição divina? Então, ou bem ele estava vivo
e, por ser Deus, não pode estar morto, ou nunca esteve vivo e, nesse caso, não
morreu. Mas, se nunca esteve vivo, também nunca foi Deus, pois não se pode
imaginar um Deus que, não sendo um vivo, nunca passou de um morto. Dizer que
Deus esteve vivo apenas para o homem, para e em quem morreu, elucida algo da
afirmação de que tenha sido assassinado pela experiência do pensar tipicamente
científico, mas deixa em descoberto a pretensão metafísica da inexistência de Deus,
como ser em si, causa incausada de todo ser.
É na área desse rompante contra a metafísica que o discurso do louco joga com
a decisão fundamental por sua sensatez ou tolice. Ou bem Deus não morreu e, por
isso, o cosmos não se desorganiza e o homem não se desorienta, ou morreu e o
cosmos se manteve porque esse Deus não desempenhava a função que o monoteísmo
lhe creditava e os homens do mercado e os das Igrejas, diferentemente do louco, não
se desorientam porque não se dão conta que, descrendo em Deus, deixaram sem

15
JOLIVET, Régis. Tratado de filosofia. Vol. III. Metafísica. Trad. do francês por Maria da Glória Pereira Pinto
Alcure. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1972.
16
Carta de São Paulo aos ...

13
resposta a pergunta pela totalidade. Se é assim, a parábola nietzschiana ganharia
consistência filosófica apenas ao respaldar-se num discurso conceitual não-parabólico
e não-metafórico, em que o autor acertasse suas contas com a metafísica. Ocorre que
não é apenas o louco que deixa de fazê-lo. O autor não supre a falha de seu
personagem. Nega-se a mover-se no registro da metafísica e propõe-se a investigar o
próprio pensar humano em sua historicidade. Registro epistêmico em que o
enunciado "Deus morreu" adquire seu estatuto próprio. Observe-se que, embora o
discurso do louco só tenha podido ser audível nas Igrejas, é no espaço da praça que o
autor da parábola prende a fala do louco. É só aí que o discurso é explicitado, nesse
lugar simbólico, a praça, lugar em que Sócrates exerceu sua arte dialética, que
Diôgenes satirizou os passantes e onde Zaratustra empreendeu o primeiro discurso de
sua missão junto aos homens. Inaudível à tradição metafísica, é a ela que o louco se
dirige, em primeiro lugar, sua palavra.
Resta perguntar como o autor pretende legitimar sua renúncia em dar uma
justificativa de tipo lógico conceitual para uma afirmação que contém um enunciado
metafísico em sua base, ainda que isso seja eludido por recurso a uma linguagem
destoante. Renúncia essa que está intimamente ligada à escolha da forma literária. A
parábola do louco remete tudo à decisão do ouvinte. Nesse sentido, o aforismo 125 de
A gaia ciência funciona como paródia de um outro aforismo nietzschiano, o 84 de O
andarilho e sua sombra, intilutado "Os presos". Trata-se de outra parábola. Conta que
os detentos de um presídio, numa manhã de trabalho, na ausência do carcereiro,
foram interpelados pelo discurso de um colega. Ele dizia que era filho do carcereiro e
que eles podiam considerar-se livres para trabalhar ou não, pois, de qualquer forma, o
carcereiro iria impor um grande castigo. Mas aquele que falava poderia salvá-los,
desde que eles cressem que ele era o filho do carcereiro. A parábola do louco,
espelhando essa mais antiga, dá-se ao leitor sem fundamento, sem prova, sem
demonstração. Cínica como o filósofo do barril que evoca, a parábola brinca de jogar
uma bola oca de barro cozido contra os pés do santo. Ao lançar contra as Igrejas a
maliciosa frase "Deus morreu" ele incita seu adversário a dar suas provas de que
Deus esteja vivo. Ao dizer às Igrejas que elas não passam de covas e sepulcros, dá
aos homens que lá se encontram a alcunha de coveiros, incitando-os para fora das

14
Igrejas, para o terreno da praça. Essa isca já foi mordida por aquele que exigir do
louco provas racionais de sua assertiva.
Dessa forma, o constructo literário da parábola de A gaia ciência, parágrafo
125, apresenta-se como adequado para a estratégia explícita da obra nietzschiana, o
querer agudizar as tensões entre as posições teóricas. O filósofo alemão diz que seu
interesse não é nunca a morte de seu inimigo, mas que ele viva e que a polaridade das
oposições se intensifique. Fala de louco, dita fora da linguagem lógica e do estatuto
do discurso metafísico, a expressão "Deus morreu" é uma arma de conflito ideológico
que convoca aquele que a pretende negar a dar as provas que sua função não é a do
coveiro ou a neutralizar a proposição, pela indiferença em relação ao seu discurso.
Ambas as saídas, entretanto, são ainda armadilhas do louco. Porque, optando-se por
provar racionalmente que Deus não está morto, se está obrigado a emparelhar as
proposições "Deus está vivo" à proposição "Deus está morto". Algo que põe em
descoberto o fato de que os problemas conceituais que afetam a segunda,
comprometem igualmente a primeira. Em princípio, ambas indemonstráveis. A
segunda alternativa, a de simplesmente ignorar a fala do louco, na verdade, não é
possível em termos absolutos. Isso porque, fora das Igrejas, há uma praça do
mercado, onde os homens riem da proposição do louco porque são descrentes.
Hilaridade a que os homens das Igrejas não podem ficar alheios, pois se o fazem, dão
razão à acusação do louco. Assim, se existe essa dualidade de lugares, a afirmação de
que Deus está vivo, dita nas Igrejas, ou bem irradia para fora delas ou elas se
condenam a ser, de fato, sepulcros, pouco importando se velam um vivo ou um
morto. A imposição da necessidade de dizer que Deus está vivo, também na praça do
mercado, faz com que a afirmação "Deus morreu" tenha de ser, continuamente
negada e, por isso, não é possível, em termos absolutos, ignorar a fala do louco. Ela
está sempre ali, como ausência presente, que assombra o vivo com a ameaça de que
ele pode morrer.
Lançando o indemonstrável enunciado "Deus morreu" contra o enunciado
"Deus vive", o louco descortina o dado histórico de que um discurso infundado, que
tinha sua força fora da racionalidade de tipo lógico, foi fundamentado ad hoc, por
recurso a conceitos cunhados na tradição metafísica grega. Se o louco não dá

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argumentos para demonstrar sua assertiva, nem o podem seus ouvintes, os homens da
praça e os das Igrejas. Tudo se passa como se a solução do problema da morte ou da
vida de Deus não se encaminhasse teoricamente pela argumentação racional. A
parábola faz retroceder o debate para um momento pré-filosófico da pré-história do
Ocidente ou, visto de outra maneira, para o filão geneticamente não-filosófico dessa
civilização. Isso, não para abandonar o terreno da filosofia, para onde as coisas foram
irreversivelmente transpostas, mas para indicar que o problema precisa ser recolocado
num plano que transcenda o simples horizonte dos argumentos lógico-
demonstrativos. O enunciado da morte de Deus diz respeito à necessária historicidade
das experiências humanas de pensamento e que é essa descoberta mesma que torna
inevitável a experiência da morte de Deus, na trajetória epocal e histórica do homem
ocidental.

5. Para além da dor pela morte de Deus a alegria pela vida do homem

A fala do louco da parábola nietzschiana, tanto quanto a fala do


endemoninhado de Gadara, como a pergunta de Diôgenes, entregam tudo ao
destinatário, ou seja, ao ouvinte da narração, convocando-o a uma decisão, porque
não é possível deixar de pronunciar-se pró ou contra a fala do louco, sem pagar alto
preço pela resposta que se dá. O receptor da palavra de qualquer um desses três
loucos está diante de um jogo de intensidade máxima, quando se está em condições
de ouvi-la em toda sua pretensão. Na acolhida ou na recusa da fala do louco se joga o
destino do homem. Nietzsche joga pela máxima tensão, pela máxima intensidade da
oposição dos pólos. Sua parábola coloca o ouvinte diante da decisão pela vida ou pela
morte de Deus, com o que isso implica, o que há de libertador e de opressor no gesto
fincar âncora no cais e buscar terra firme ou de deixar o porto e navegar sem a
orientação dos astros e sem ver a linha do horizonte.
O que não é possível fazer indefinidamente é permanecer na dor desse luto sem
comprometer a própria carne com o destino daquele por quem se vela. Vertigem de
uma circunferência em aspiral descendente que não encontra nunca um fim. A dor do
louco pela perda absoluta de referencial, daquele que jogou absolutamente tudo na fé

16
em Deus, tem por precedente histórico o grito do crucificado entregue à morte.
Nenhuma solidão humana se compara a esse abandono, a essa perda, a essa fuga, a
essa morte, a esse assassinato. A imagem do louco em queda livre no infinito, preso à
Terra, pode ser posta literariamente em paralelo com aquela do homem que despenca
da vida para a morte, preso ao madeiro. Ambas as perícopes, do ponto de vista do
conteúdo, introduzem a morte na esfera do divino. Paradoxo absolutamente insolúvel
à razão não-dialética, enquanto essa não pode abrir mão do princípio da não-
0contradição, sem entregar-se a si própria à dissolução. O louco é aquele que cai no
infinito, mas está preso à terra. É preciso, agora, decidir-se se ainda é possível viver,
viver sem Deus. Se é possível navegar, sem enxergar nenhuma terra firme e nem
mesmo o horizonte, se é possível suportar o frio, frio que congela, pela falta desse
Sol, pela ausência de qualquer fonte de calor, de esperança, de entusiasmo, que não
nasça unicamente de si próprio, da força triunfante de si, que insiste em abençoar
como belo esse mundo em sua totalidade, ainda que sem poder pronunciá-la, em sua
queda infinda, em lugar nenhum, nessa ausência de qualquer centro único e universal
da totalidade. Estar de frente ao mar sem nenhuma possibilidade de terra firme é o
desafio sem precedentes, de navegar na ausência de fronteiras e de limites. Há tudo
para recomeçar. Há tudo por refazer e reconstruir. A morte de Deus põe o
pensamento ocidental na estaca zero.
Para além das extremas possibilidades, a perspectiva de Jean Granier, pensador
cristão e um dos mais importantes intérpretes de Nietzsche, vale ser citada: "O que se
pode afirmar de todos os filósofos vale ainda mais para Nietzsche: não se pode
compreendê-lo, a não ser 'assumindo' o pensamento - com todo seu peso de paixão
existencial, de fervor, e até de imaginário... (...) Não se pode contestar que a prova é
dura, mais ainda para a personalidade formada ou inspirada pela cultura cristã. Mas é
indispensável hoje mais do que nunca. Trata-se do que eu gostaria de chamar 'a
perfeita saúde'... da fé cristã!..."17

17
GRANIER, Jean. Pensar com e contra Nietzsche. In: Concilium, n. 165, 1981, p. 125.
17
Referências Bibliográficas

HEIDEGGER, Martin. La frase de Nietzsche "Dios há muerto". In: Sendas Perdidas. Holzwege.
Trad. do alemão por José Rovira Armengol. Buenos Aires: Losada, 1. ed., 1960; 2 ed., 1969.
FUMAGALLI, Dirceu L. Interpretação da "morte de Deus" em Nietzsche. Monografia. Curitiba:
Universidade Católica do Paraná, 1982. (mimeo).
JOLIVET, Régis. Tratado de filosofia. Vol. III. Metafísica. Trad. do francês por Maria da Glória
Pereira Pinto Alcure. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1972.
GRANIER, Jean. Pensar com e contra Nietzsche. In: Concilium, n. 165, 1981, p. 124-130.
LÖWITH, Karl. Nietzsche e a completude do ateísmo. In: MARTON, Scarlett (org.) Nietzsche
hoje? Colóquio de Cerisy. Trad. do francês por Milton Nascimento e Sônia S. Goldberg. São
Paulo: Brasiliense, 1985, p. 140-155.
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PENZO, Giorgio. Friedrich Nietzsche. O divino como problematicidade. In: Penzo, G. e Gibellini,
Rosino. (organizadores). Deus na filosofia do século XX. Trad. por roberto Leal. São Paulo:
Loyola, p. 23-35.
SCHIFFERS, Norbert. "Deus está morto". Análise de uma expressão de Nietzsche. In: Concilium,
n. 165, 1981, p. 83-101.
THIBON, Gustave. Nietzsche ou le déclin de l'esprit. Lyon: Lardanchet, 1948.
TÜRCKE, Christoph. O louco: Nietzsche e a mania da razão. Trad. Antônio C. P. de Lima.
Petrópolis: Vozes, 1993.
VALADIER, Paul. Nietzsche e la critica radicale del cristianesimo. Trad. do francês por Velia
Alletti Petrucci. Palermo: Augustinus, 1991.

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