Assistindo aqui no you tube a um vídeo que me envia o amigo e excelente
jornalista Bruno Ribeiro — trata-se de Hélio Bicudo revestido de uma autoridade
que lhe dá a respeitável idade e, igualmente, seu curriculum como jurista — assaltam-me a memória duas lembranças; ou, diria mesmo, duas livres associações. Uma delas (oh!, demônio da literatura) é Antero de Quental e a carta-réplica em que o então jovem poeta, se bem lembro com 23 anos, escrevia contra a virulência ressentida e o reacionarismo do septuagenário Antonio Feliciano de Castilho, patriarca das letras em Portugal. Dizia Quental: ―Levanto-me quando os cabelos brancos de V. Exa. passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas coisas que saem dele confesso não me merecem nem admiração, nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. Exa. precisa menos cinqüenta anos de idade, ou então mais cinqüenta de reflexão. É por esses motivos todos que lamento do fundo da alma não me poder confessar, como desejava, de V. Exa, nem admirador, nem respeitador.‖ A segunda lembrança — Oh!, demônio da memória... — remete ao próprio Hélio Bicudo. Seu ar respeitável e insuspeito no vídeo logo me denunciou. Falo de um Hélio Bicudo dissimulado e ressentido, que eu, pessoalmente, testemunhei há quase três décadas. Pelo jeito, não mudou. Ali pelo início da década de 1980, talvez 1984 ou 1986, participei da organização do PT de Ribeirão Preto. Eu era muito jovem e, à época, cria mesmo que meu contributo era grande. Hoje, vendo de longe, sei que era insignificante. A propósito, sem a menor importância para mim. Não pertenço a partidos políticos, não tenho colorações de credo, associações, não me incluo em chapa que disputa eleição de condomínios, nunca pertenci a qualquer centro acadêmico universitário. Em termos de multidão, somente pertenço à pequena (não tão pequena assim) congregação de apaixonados pelo Santos Futebol Clube, o que, a propósito, já me dá trabalho mais do que suficiente. De qualquer forma, voltemos ao PT de Ribeirão Preto e a Hélio Bicudo. Para resumir: por ocasião da visita de Hélio Bicudo e de Eduardo Suplicy à cidade, ambos em campanha pelo PT, fui, por algum motivo, designado para ciceroneá-los. Hoje, claro, sei que provavelmente os mais argutos escorregaram da missão, deixando-a para o voluntarismo bronco de um jovem qualquer (no caso, eu). Acompanhei Suplicy e Bicudo o dia inteiro. Naquele calor de rachar mamona do interior paulista. José Dantas, até hoje grande amigo e companheiro constante, cedeu seu único carro: um Opala 1979. Sônia, minha esposa e companheira, dirigiu. Atrás, no Opala do Zé, Hélio Bicudo e Suplicy. Eu ia orgulhoso da companhia daqueles figurões. Mas meu orgulho não durou um isto. Logo se transformou em decepção. Naquele dia tive a oportunidade de ver de perto o jurista que eu conhecia dos jornais (certamente mal lidos pela miopia da juventude), e cuja imagem somente plasmava o paladino da luta pelos direitos humanos, contra o esquadrão-da-morte e contra a ditadura. Sentado ao lado de Suplicy, o ilibado Hélio Bicudo era a finura e a polidez; o ―companheiro‖ acima de qualquer mácula; a figura pudica da transparência. Bastou desagregarmos Suplicy, deixando-o em algum de seus compromissos, para a coisa mudar de figura. O Bicudo logo virou bicudo. Poucas vezes vi alguém capaz de trocar de roupa tão rapidamente. A altivez polida do intelectual e do homem de bem se transformou em verrina; em ódio gratuito; em quase que doentia inclinação à fofoca — feito aquela gente que vive de futricas à soleira da porta enquanto a panela de feijão queima lá dentro. O que interessava ao douto jurisconsulto era o mexerico, a insídia, a baixeza do falar mal. Desancou Suplicy e seus defeitos; denunciou-nos a ―falta de caráter‖ do companheiro; fuxicou à vontade em relação, inclusive, à vida íntima do colega de Partido. Daí a pouco, passou para os altos escalões do PT. O jurista trocava de lugar com o alarmista facinoroso. Orientou-nos sobre o ―perigo‖, disse-nos mal de tudo e de todos. Somente uma coisa talvez tenha me admirado mais do que isto; aliás, duas. A primeira foi a candura da entonação de voz, que dava àquele ódio reles um tom de verdade necessária. A segunda veio, horas depois, quando fomos apanhar Suplicy. Hélio Bicudo parecia rever um irmão ou filho que voltava da guerra. Era só derramamento e amizade. Engraçado: durante décadas isto me ficou depositado num canto obscuro da memória. Mais engraçada é a força com que o episódio retorna agora, quando assisti ao breve vídeo que Bruno me mandou. Parece que foi ontem. O mesmo Hélio Bicudo do Opala 1979 ali está, inteiro, no vídeo. Trocam-se personagens, substitui-se uma ou outra matéria; mas a essência é idêntica. Revestido da capa da probidade, o ressentido diz ―coisas que só ele sabe‖; ―segredos‖ que ―podem salvar a todos do engano‖; ―alertas‖ para que os ―bons não sejam enganados‖. O curioso é que o impoluto jurista só lembrou que era uma responsabilidade alta ―contar toda verdade‖ agora. Por que não veio a público, antes, para contá-la? Não posso me conter: a mesma chocalhice acanalhada de trinta anos retorna, revestida de missão patriótica. ―A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança‖. Quental estava certo. Hélio Bicudo também precisa ―menos cinqüenta anos de idade, ou então mais cinqüenta de reflexão‖. Por essas e por outras — mas sobretudo porque o Governo Lula (com seus muitos erros, é verdade) é o Governo que promoveu a mais extraordinária inclusão dos desfavorecidos — é que voto Dilma. Mesmo não pertencendo a Partidos; mesmo não acreditando que seja possível uma transformação total do capitalismo desalmado; mesmo crendo que o voto obrigatório é uma violência contra as liberdades individuais é preciso votar em Dilma. Havia, claro, decidido isto já no 1º turno. Tornar pública essa decisão e declarar voto são imposições de velhacarias como as de Hélio Bicudo. Votamos Dilma! Contra o fascismo e pela continuidade dos avanços do Governo Lula!
Geraldo Noel Arantes – Professor Doutor em Literatura Brasileira pela
Unicamp Sônia Midori Takamatsu – Psicóloga e Mestre em Educação pela Unicamp Dimitri Takamatsu Arantes – Graduando em Letras pela Universidade de São Paulo