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Neste sentido, exemplifico o que acabei de afirmar com os postulados mais relevantes da
Escola da Exegese (francesa na origem e de outras nacionalidades, quando teve seus
princípios e métodos exportados e ambientados em diversos países sobretudo de tradição
romano-germânica) que elegeram a "letra da lei" o pressuposto formal no qual estava
subsumida mentalidade jurídica afeita aos fundamentos da hermenêutica clássica que, ao
menos com relação à Escola de Exegese, tinha acentuado matiz positivista. Por mais que
reconheçamos as peculiaridades do momento histórico que contribuíram para o
desenvolvimento de mecanismos político-jurídicos anti-absolutistas, a permitir a submissão
dos governantes à soberania da lei (fundada na vontade geral), devemos notar a força de
determinadas idéias que, fortalecidas por crenças fervorosas em suas pretensas perenidades,
atravessam as épocas condicionando o presente a soluções pretéritas de caráter jurídico,
hermenêutico e decisório. Os princípios, métodos e ideologia da Exegese repercutiram
temporalmente, na esteira da História jurídica ocidental, implícita ou explicitamente, nas
tendências ideológico-jurídicas refratárias pelo menos aos métodos histórico-evolutivos de
compreensão das expressões e proposições jurídico-normativas.
Para a Escola da Exegese, tão fortemente vinculada aos valores liberais-burgueses plasmados
na legislação francesa da época napoleônica, os princípios da Legalidade e da Separação de
Poderes eram concebidos como verdadeiros dogmas a serem ortodoxamente observados.
Neste sentido, chamo a atenção para o fenômeno das hierarquização das fontes do Direito
constatável nesta época, imperando - e aqui me permito certo rigor técnico e científico - a
legiferação como fonte primordial da qual decorre a lei. Embora seja importante explorar e
indicar os sentidos do vocábulo 'lei' em vista de sua polissemia, registro que no contexto
histórico analisado 'lei' recebe, face ao modelo jurídico definido pela Exegese, conotação que
relaciona o termo às expressões jurídico-normativas que, produzidas por um órgão que
apenas legisla (Poder Legislativo), receberiam tratamento hermenêutico adstrito à
equivalência sintático-semântica entre significante e significado (interpretação em sentido
estrito, portanto).
Deste modo, o exegeta ± mormente o magistrado ± não teria condições ± assim pensavam os
adeptos da escola - de macular a legalidade, ao servilmente compreender o direito à luz da
suposta vontade ou mesmo intenção de um legislador onisciente, pelo fato de haver
produzido um direito (_ ., Código Civil francês de 1804) que conteria em si todas as
respostas para as problemáticas jurídicas de ontem, hoje e amanhã. Assim, a ideologia
político-jurídica desta escola tinha na interpretação literal o meio pelo qual a controvérsia
judicial concreta e atual deveria ser sintonizada a uma vontade pretérita, mesmo que em
prejuízo da solução mais justa ou equânime para o litígio.
Sem querer aqui esgotar a análise de outras importantes características desta escola, tomo a
liberdade de elegê-la como destacado paradigma de um tipo de mentalidade jurídica
identificadora do direito com a lei, exclusivamente, que em momentos históricos distintos
receberá outras roupagens, todas a apresentar em comum o que Miguel Reale tantas vezes
criticou: o reducionismo normativista.
Assim, conjecturamos que será o direito bem interpretado ± pelo menos para os fins de
solução de litígios - se aquele a quem compete produzir a subsunção não operar
racionalmente apenas guiado pelo princípio do terceiro excluído (³ou este ou aquele método
de interpretação podem ser aplicados´) mas também aberto à possibilidade de fundar e
aplicar o direito com base ± na falta de expressão melhor ± no princípio do terceiro incluído
(³este e todos os métodos de interpretação jurídica são válidos, não se excluem, mas poderão
ser concomitantemente empregados tendo em vista as exigências do caso concreto´).
Embora o que foi escrito acima não seja propriamente uma novidade, creio que tem o condão
de elucidar o que segue: não são os métodos de interpretação fins em si mesmos, muito
menos instrumentos de afirmação desta ou daquela ideologia jurídica. São momentos, isto
sim, da atividade pacificadora da judicatura imparcial ou da atuação de advogados,
promotores, procuradores... diante dos interesses parciais que representam.
E embora varie a interpretação conforme o ramo do direito (e de fato reconheçamos a
existência de ramos mais dominantemente afeitos a este ou aquele método de interpretação)
não está excluída a exigência dos operadores do direito ± não apenas juízes ± saberem mesmo
que potencialmente empregar os métodos de interpretação literal, lógico-sistemático,
teleológico, histórico, sociológico, analógico... ora sustentando, dependendo da posição
argumentativa que ocupam em um processo, interpretações estritas, extensivas ou mesmo
restritivas, ora produzindo entendimentos que sinteticamente agregam novos conteúdos.
Peter Häberle, inegavelmente, foi um dos autores a quem a tópica de Theodor Viehweg mais
influenciou. Sua metodologia implica a radicalização da orientação tópico-problemática no
campo da teoria da Constituição. Partindo da perspectiva conceitual de Karl Popper, defende
a adequação da hermenêutica constitucional à sociedade aberta, através da democratização da
interpretação da Constituição.
Desta arte, como antecipado, Peter Häberle propõe o abandono do modelo hermenêutico
clássico, construído a partir de uma sociedade fechada, reconhecendo que não apenas o
processo de formação é pluralista, mas também todo o desenvolvimento posterior, de modo
que a teoria da Constituição ± assim como a teoria da democracia ± exercem um papel
mediador entre Estado e sociedade. Tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista
prático, a interpretação da Constituição não constitui um fenômeno absolutamente estatal,
pois além dos órgãos estatais e dos participantes diretos, todas as forças da comunidade
política ± ainda que de forma potencial ± também têm acesso a esse processo.
O papel exercido pelas pessoas concretas merece destaque na teoria de Häberle, inclusive no
que diz respeito às funções estatais ± leia-se parlamentares, funcionários públicos e juízes. A
isto ele denomina personalização da interpretação constitucional. A teoria da interpretação
constitucional, portanto, deveria deter-se sobre aspecto fundamental para o qual não se tem
dado a devida importância: a questão relativa aos participantes da interpretação
Neste sentido, oportuno registrar passagem provocativa do texto de Häberle sobre a
sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:
"Não se conferiu até aqui maior significado à questão relativa ao contexto sistemático em que
se coloca um terceiro (novo) problema relativo aos participantes da interpretação, questão
que, cumpre ressaltar, provoca a práxis em geral. Uma análise genérica demonstra que existe
um círculo muito amplo de participantes do processo de interpretação pluralista, processo
este que se mostra muitas vezes difuso. Isto já seria razão suficiente para a doutrina tratar de
maneira destacada esse tema, tendo em vista, especialmente, uma concepção teórica,
científica e democrática. A teoria da interpretação constitucional esteve muito vinculada a um
modelo de interpretação de uma "sociedade fechada". Ela reduz, ainda, seu âmbito de
investigação, na medida em que se concentra, primariamente, na interpretação constitucional
dos juízes e nos procedimentos formalizados. Se se considera que uma teoria da interpretação
constitucional deve encarar seriamente o tema "Constituição e realidade constitucional" - aqui
se pensa na exigência de incorporação das ciências sociais e também nas teorias jurídico-
funcionais, bem como nos métodos de interpretação voltados para atendimento do interesse
público e do bem-estar geral -, então há de se perguntar, de forma mais decidida, sobre os
agentes conformadores da "realidade constitucional" .
Após ressaltar que a interpretação constitucional tem sido, até agora, manifestação de uma
sociedade fechada, restrita aos intérpretes jurídicos vinculados às corporações e às partes
formais do processo, observa Häberle, de forma convincente:
³(...) o método concretista da µConstituição aberta¶ demanda para uma eficaz aplicação a
presença de sólido consenso democrático, base social estável, pressupostos institucionais
firmes, cultura política bastante ampliada e desenvolvida, fatores em dúvida difíceis de achar
nos sistemas políticos e sociais das nações subdesenvolvidas ou em desenvolvimento,
circunstância essa importantíssima, porquanto logo invalida como terapêutica das crises
aquela metodologia cuja flexibilidade engana à primeira vista. Até mesmo para a
Constituição dos países desenvolvidos sua serventia se torna relativa e questionável, com um
potencial de risco manifesto. Debilitando o fundamento jurídico específico do edifício
constitucional, a adoção sem freios daquele método ± instalada uma crise que não se lograsse
conjurar satisfatoriamente ± acabaria por dissolver a Constituição e sacrificar a estabilidade
das instituições. Demais, o surto de preponderância concedida a elementos fáticos e
ideológicos de natureza irreprimível é capaz de exacerbar na sociedade, em proporções
imprevisíveis, o antagonismo de classes, a competição dos interesses e a repressão das
idéias´.
³(...) representa uma contribuição fecunda dos juristas da tópica ao Direito Constitucional.
Sem a tópica, a teoria material da Constituição não teria feito os excepcionais progressos que
alcançou, depois de chegar a um ponto de exaustão a controvérsia do positivismo com o
direito natural nos arraiais do pensamento filosófico europeu. A grande saída de Viehweg e
Esser na hermenêutica jurídica do século XX foi o caminho aberto às correntes críticas de um
constitucionalismo de renovação, que reaproximou, com base em profunda reflexão, a
Constituição e a realidade. Fez possível dentro da sociedade móvel e dinâmica de nosso
tempo um Estado de Direito com fundamento de legitimidade nos direitos sociais e nas
garantias concretas da liberdade´.
De outro modo, desempenharia a Corte Constitucional, para Häberle, o papel de mediadora
entre as diferentes forças com legitimação no processo constitucional. Vale registrar, também
aqui, o que leciona:
Por mais que reconheçamos os riscos de uma deturpação deste tipo de proposta teórica, uma
das virtudes da teoria de Häberle reside na negação de um monopólio da interpretação
constitucional, mesmo naqueles casos em que se confere a um órgão jurisdicional específico
o monopólio da censura. O reconhecimento da pluralidade e da complexidade da
interpretação constitucional traduziria não apenas uma concretização do princípio
democrático, mas também uma conseqüência metodológica da abertura material da
Constituição.
Não afastando a precedência da jurisdição constitucional - até porque reconhece que a ela
compete dar a última palavra sobre a interpretação - Häberle afirma que devem ser
reconhecidos como igualmente legitimados a interpretar a Constituição os seguintes
indivíduos e grupos sociais: o recorrente e o recorrido, no recurso constitucional, como
agentes que justificam a sua pretensão e obrigam o Tribunal Constitucional a tomar uma
posição ou a assumir um diálogo jurídico; outros participantes do processo, que têm direito
de manifestação ou de integração à lide, ou que são convocados, eventualmente, pela própria
Corte; os órgãos e entidades estatais, assim como os funcionários públicos, agentes políticos
ou não, na suas esferas de decisão; os pareceristas ou experts; os peritos e representantes de
interesses, que atuam nos tribunais; os partidos políticos e frações parlamentares, no processo
de escolha dos juízes das cortes constitucionais; os grupos de pressão organizados; os
requerentes ou partes nos procedimentos administrativos de caráter participativo; a media ,
em geral, imprensa, rádio e televisão; a opinião pública democrática e pluralista, e o processo
político; os partidos políticos fora do seu âmbito de atuação organizada; as escolas da
comunidade e as associações de pais; as igrejas e as organizações religiosas; os jornalistas,
professores, cientistas e artistas; a doutrina constitucional, por sua própria atuação e por
tematizar a participação de outras forças produtoras de interpretação.
Neste sentido, no caso brasileiro, a Lei n º 9.868, de 10 de novembro de 1999, que estabelece
o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de
constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, autoriza que outros titulares do
direito de propositura da ação direta possam manifestar-se, por escrito, sobre o objeto da
ação, pedir a juntada de documentos úteis para o exame da matéria no prazo das informações,
bem como apresentar memoriais (arts. 7º, § 1º, e 18, § 1º), permitindo que o Tribunal decida
com pleno conhecimento dos diversos aspectos envolvidos na questão. Da mesma forma, o
relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá
admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades (arts. 7º, § ¦º, e 18, § ¦º), visando fazer
com que Tribunal decida as causas com pleno conhecimento de todas as suas implicações ou
repercussões.
Assim, ofereceremos, mais do que soluções, provocações que irão sugerir a possibilidade de
transposição do que aqui optamos denominar por ³falsos preceitos pétreos´, ao abrir citada lei
possibilidades de legitimação jurisdicional e domesticação dos fatores reais de poder, não se
permitindo a agressão aos autênticos limites materiais ao Poder Reformador mas supressão
ou alteração de matérias constitucionais que, sem integrar a essência contitucional, são tão-
somente, reitere-se, aparentes limites substanciais, sempre com a atenta observância dos
postulados do Estado Democrático de Direito e da segurança jurídica.
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Ainda neste contexto doutrinário, determinadas perguntas acabam por ser inevitavelmente
formuladas, entre elas: o que justificaria, dentro de uma perspectiva democrática, que o
passado possa bloquear o futuro, por intermédio destas cláusulas de inamovibilidade? Para
muitos doutrinadores, as cláusulas pétreas, quando bem compreendidas e interpretadas, não
constituiriam uma ameaça a democracia ou uma pretensão autoritária das gerações passadas
buscando governar as futuras. Seriam limitações - por mais paradoxal que possa parecer -
habilitadoras e emancipatórias. Desta forma, proibindo que o sistema político restrinja
preceitos normativos e princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, as
cláusulas pétreas estariam apenas habilitando cada geração a escolher o seu próprio caminho,
sem, no entanto, estar autorizada a negar estes mesmos direitos às gerações vindouras.
Limitariam minimamente, para não limitar maximamente.
Nesta altura de nosso estudo, indagamos: como o Pretório Excelso tem se posicionado diante
das cláusulas inabolíveis da Constituição de 1988?
Por outro lado, o Pretório Excelso tem reconhecido os limites materiais do poder de reforma
constitucional:
Quando muito, apresentariam mera eficácia política. Na esteira desta posição, inexistiria uma
diferença qualitativa entre Poder Constituinte e Poderes Constituídos. Assim sendo, não
poderia o primeiro impor limites materiais ao poder de reforma constitucional, mas tão
somente formais. As gerações futuras, nesta ordem de idéias, não deveriam ficar obrigadas
pelas concepções do mundo e valorações da geração que exercera o Poder Constituinte. O
artigo ¦8 da Declaração jacobina de 1793, de certa forma, ao colocar que um povo tem
sempre o direito de rever, de reformar e de mudar a Constituição, não podendo uma geração
sujeitar as suas leis às gerações futuras, encontra eco na posição sob exame, principalmente
se fundarmos esta ilimitação na própria força legitimadora da soberania popular.
A hipótese da força popular como legitimadora do Poder Reformador já foi apontada por
Celso Ribeiro Bastos, ao sustentar a possibilidade de uma nova revisão constitucional com
fundamento no art. 3º do ADCT, já que o Constituinte Derivado, isoladamente, não teria
força para implementá-la novamente. É o que se pode verificar da seguinte lição:
"Cremos que a votação positiva, pela maioria dos eleitores brasileiros, supre a ausência de
força para tanto, por parte do Poder Reformador isoladamente. Na verdade, passa este a
tornar-se investido da força popular que é a que legitima o próprio Poder Constituinte
originário."
Pela adequação ao que estamos tratando, ressalta Miguel Reale em texto intitulado
Constrastes e confrontos constitucionais :
O filósofo paulista faz esta observação ao defender que o não - pagamento da contribuição
previdenciária pelo servidor público não constitui um direito adquirido de maneira definitiva,
mas antes uma situação jurídica suscetível de ser alterada em razão de impostergáveis
exigências de ordem financeira, cuja procedência cumprirá ao Congresso Nacional verificar.
Paralelamente a isto, as mudanças verificáveis paulatinamente na teoria do Direito
Constitucional indicam a desvalorização das normas imodificáveis de amplo espectro, em
prol de outras necessariamente imodificáveis por inerentes à sobrevivência do homem em
sociedade.
Portanto, qualquer purismo jurídico que pretenda ver nas cláusulas pétreas uma barreira
absoluta e definitiva ao poder de reforma, sem que se leve em conta a relevância maior ou
menor daquilo que se petrificou, seria sempre um fator de instigação de um colapso
constitucional. Defendemos que a Constituição é a representação maior que temos da
possibilidade de solucionarmos nossos impasses por meio de procedimentos que ainda
permitam arranjos menos traumáticos, em prol da promessa de estabilidade jurídico-
institucional.
Nossa Constituição, inegavelmente, foi pródiga em petrificações; mas será que todas as
matérias acobertadas por intangibilidade não autorizam eventuais supressões ou mesmo
alterações expressivas? Até que ponto a distinção entre Poder Constituinte Originário e Poder
Constituinte Derivado não se tornaria em determinadas ocasiões um empecilho às sintonias
necessárias entre a ordem constitucional e as sempre renovadas e crescentes exigências da
sociedade? Importante considerar se a observância tranqüilamente subserviente do teor de
tais cláusulas, ao invés de assegurar a continuidade do sistema constitucional, não poderia
contribuir para antecipar a sua ruptura, permitindo que o desenvolvimento constitucional se
realize fora de eventual camisa de força do regime da imutabilidade.
Para os adeptos da ineficiência funcional dos limites materiais, destaca-se a idéia de que as
cláusulas pétreas ou as garantias de eternidade não assegurariam, de forma infalível, a
permanência de determinada ordem constitucional, nem excluiriam a possibilidade de que
essa ordem contenha uma cláusula de transição para outro regime ou modelo. A Constituição
espanhola de 1978, por exemplo, consagrou expressa previsão de revisão total da
Constituição ou de revisão parcial que afete as cláusulas pétreas:
"Art. 168.
1. Quando for proposta a revisão total da Constituição ou uma revisão parcial que afete o
título preliminar, a seção I do capítulo II do título I ou o título II, proceder-se-á à aprovação
do princípio da revisão por maioria de dois terços de cada Câmara e à dissolução das Cortes.
¦. As Cortes que vierem a ser eleitas deverão ratificar a decisão e proceder ao estudo do novo
texto constitucional, que deverá ser aprovado por maioria de dois
terços de ambas as Câmaras.
3. Aprovada a reforma pelas Cortes Gerais, será submetida a referendo para
ratificação".
Essa abordagem teórica permitiria introduzir reflexão sobre a adoção, no processo de reforma
constitucional, de uma ressalva expressa às cláusulas pétreas, contemplando não só a eventual
alteração dos princípios gravados com as chamadas garantias de eternidade, mas também a
possibilidade de transição ordenada da ordem vigente para outro sistema constitucional
(revisão total). Se se entendesse que a reforma total ou parcial das cláusulas pétreas está
implícita na própria Constituição, poder-se-ia cogitar, mediante a utilização de um processo
especial que contasse com a participação do povo, até mesmo de alteração das disposições
constitucionais referentes ao processo de emenda constitucional com o escopo de explicitar a
idéia de reforma total ou específica das cláusulas pétreas, permitindo, assim, que se
disciplinasse, juridicamente, a alteração das cláusulas pétreas ou mesmo a substituição ou a
superação da ordem constitucional vigente por outra.
Outrossim, inspira ainda boa parte dos autores que defendem a transponibilidade dos limites
materiais ao poder de reforma a afirmação de Ferdinand Lassale , para quem os problemas
constitucionais não seriam problemas de Direito, mas de poder. Lecionava referido autor:
³(...) a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do
poder que naquele país vigem, e as constituições escritas não têm valor nem são duráveis a
não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí
os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar.´
Pinto Ferreira , em sua obra Da Constituição, neste sentido destaca que para Lassale a
Constituição real, que é a totalidade destes fatores reais de poder, prima sobre a Constituição
positiva ou jurídica, podendo ser enumerados como fatores sociológicos e reais a monarquia,
o caudilhismo, as oligarquias, os banqueiros, a grande burguesia, a consciência coletiva do
país, a pequena burguesia, as massa proletárias, a cultura intelectual, etc., tornando a
Constituição positiva um compromisso deste estado de tensão social.
Lassale deslocou a Constituição de sua posição suprema, invertendo as regras estabelecidas
pelo constitucionalismo clássico. Não é a Constituição que controla e institucionaliza o poder,
submetendo-o às competências e normas preordenadas. É o poder, através de seus fragmentos
que domina e faz a Constituição. Basta projetar essas relações reais, esses fragmentos do
Poder, em uma folha de papel, dar-lhes forma escrita e redação jurídica, para surgir a
Constituição escrita.
Para Tércio Sampaio Ferraz , em sua obra Introdução ao estudo do Direito, os fatores reais do
poder, quando se convertem em fatores jurídicos, geram a organização de uma série de
procedimentos que culminam na elaboração das normas de um documento. Segundo suas
palavras: ³Em termos de teoria das fontes, a Constituição, como conjunto de fatores reais, é a
fonte da qual emanam as normas constitucionais. De um lado, temos uma regra estrutural, de
outro, um elemento do sistema do ordenamento.´
Na verdade, os fatores reais de poder detectados por Lassale contribuem presentemente para
também pensarmos a problemática da identidade da Constituição brasileira de 1988.
Reconhecer o caráter dinâmico das forças sociais, que exigem constantes atualizações na
ordem jurídica, é constatar o óbvio. Mas no jogo democrático, princípios fundamentais à
subsistência de uma democracia saudável devem domesticar e compor os inúmeros interesses
em conflito.
Ao aproximar o pensamento de Ferdinand Lassale com o Peter Häberle, Inocêncio Mártires
Coelho desenvolve interessantes colocações:
³Nesse aspecto, como veremos afinal, as lições de Lassalle têm o singular efeito de estimular
os seus discípulos, confessos ou não, a procurarem saídas para aqueles impasses. Já que o
mestre não admitia as acomodações como soluções políticas para os conflitos entre a
Constituição escrita e a Constituição real, e esses conflitos não podem ser ignorados nem
suprimidos - nem muito menos ser reprimidos indefinidamente - , não restou aos seguidores
de Lassalle senão a alternativa de procurar outras saídas para esses impasses, fórmulas ou
procedimentos jurídico-institucionais que, na medida do possível, prevenissem os confrontos
e, nas situações de crise, pudessem impedir que, precisamente em razão deles, se cumprisse o
destino trágico das Constituições folha de papel. A esse propósito, quem se detiver no exame
de duas obras contemporâneas da maior importância - A Força Normativa da Constituição, de
Konrad Hesse, e A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição, de Peter Häberle - ,
haverá de concluir, sem maior esforço, que as fórmulas apresentadas por esses juristas como
soluções modernas para aqueles antigos problemas, embora de fabricação recente, são as
mesmas chaves das mesmas e velhas prisões. Por isso, o sucesso que eventualmente possam
ter alcançado ao empreender a sua fuga parece ter decorrido muito mais da identidade das
fechaduras do que da astúcia dos que lograram escapar daquelas prisões.
Embora seguindo caminhos diversos, e não muito diferentes, o que Hesse e Häberle fizeram,
ao fim e ao cabo, foi constitucionalizar os fatores reais de poder, no que se mostraram
sensatos e eficazes. O primeiro, pelo reconhecimento explícito de que a norma constitucional
não tem existência autônoma em face da realidade e que, por isso, a sua pretensão de eficácia
não pode ser separada das condições históricas de sua realização; o segundo, pela afirmação,
como tantas outras de conteúdo semelhante, de que não apenas as instâncias oficiais, mas
também os demais agentes conformadores da realidade constitucional - porque representam
um pedaço da publicidade e da realidade da Constituição - devem ser havidos como legítimos
intérpretes da Constituição".
Peter Häberle, por seu turno, premido pela necessidade de constitucionalizar essas forças
sociais, preconiza a construção de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição a
partir do reconhecimento de que, além dos seus intérpretes oficiais - juízes e tribunais -
devem ser admitidos a interpretá-la todos os agentes conformadores da realidade
constitucional, todas as forças produtoras de interpretação. Na realidade, tanto Lassale quanto
Häberle condicionam a eficácia das constituições à manutenção da sintonia entre o seu texto e
a realidade que elas pretendem conformar; entre a superestrutura jurídica e a infraestrutura
social; entre a Constituição folha de papel e as forças sociais, quaisquer que sejam as suas
denominações - fatores reais de poder, fragmentos de Constituição, agentes conformadores da
realidade constitucional ou forças produtoras de interpretação.
Já Peter Häberle, à luz da experiência acumulada desde Lassalle e favorecido pelo ambiente
saudável de uma sociedade aberta e pluralista, imaginou procedimentos que se mostram aptos
a resolver aqueles impasses exatamente porque implicam a assimilação das forças vitais do
país no processo de tradução/formulação da vontade constitucional.
Peter Häberle criou espaços hermenêuticos para que os agentes conformadores da realidade
constitucional, as forças vivas do país, referidas por Lassalle, pudessem entrar no processo
constitucional formal e, por essa via, viessem a participar do específico jogo-de-linguagem no
qual se decide - com eficácia contra todos e efeito vinculante - qual o verdadeiro sentido da
Constituição. Hermeneuticamente assimiladas, se forem devidamente consideradas, e na
medida em que o sejam, essas forças pluralistas da sociedade poderão transformar-se em
fatores de mudança e, conseqüentemente, de estabilização social.
Acima de tudo, quer concordemos ou não com as diretrizes doutrinárias que defendem, sob
vários matizes, ora a transponibilidade, ora a não transponibilidade dos limites materiais ao
poder de reforma constitucional, cumpre adequá-las às conjunturas que necessitarem de
fundamentos teóricos sólidos, tornando-as viáveis e convenientes em contexto empírico-
constitucional, estabilizando as forças político-sociais sem que estas intentem eventuais
rupturas constitucionais (antes de tudo, a manutenção da ordem constitucional legítima, e o
estímulo a uma catequese que gradativamente inspire na sociedade a idéia de que nossa Lei
Maior não é mera folha de papel).
Não compactuamos com aqueles que sustentam que os limites materiais ao poder de reforma
constitucional não têm qualquer valor, sendo juridicamente irrelevantes sob o ponto de vista
jurídico. É engano acreditar que os depositários do limitado Poder Reformador, investidos na
laboriosa tarefa de modificar a Constituição, a fim de adaptá-la a novas realidades fáticas,
tudo podem fazer. No entanto, ao reconhecermos que na prática legislativa brasileira
propostas de emendas constitucionais, por mais que padeçam de algum vício de
inconstitucionalidade, são admitidas à deliberação e posteriormente aprovadas; se
identificamos emendas que, incorporadas ao texto constitucional, agridem preceitos
petrificados relacionados diretamente a elementos fundamentais da identidade histórica da
Constituição; se até o presente nosso Supremo Tribunal Federal não se ocupou em distinguir
limites materiais que, ao serem violados, contribuiriam para deflagrar um processo de erosão
da própria Constituição, de outros limites que consubstanciariam temas aparentemente
intangíveis; conjecturamos uma situação que julgamos ser uma possibilidade de alteração no
âmbito da jurisdição constitucional, a partir da Lei nº 9868/99, do modo de abordagem
hermenêutica tradicionalmente aceita acerca do papel e extensão do poder de reforma
constitucional, sem que haja a necessidade de nos apegarmos a doutrinas que defendam a
impotência das cláusulas pétreas em face do - entendem - irrefreável Poder Reformador.
Ainda para este autor, a interpretação concretista, por sua flexibilidade, pluralismo e abertura,
mantém abertas as janelas para o futuro e para as mudanças mediante as quais Constituição se
conserva estável na rota do progresso e das transformações incoercíveis, sem padecer abalos
estruturais, como os decorrentes de uma ação revolucionária atualizadora, havendo
necessidade para tanto de muitas vezes implementar a despetrificação do falsamente pétreo.
Deste modo, somos otimistas com relação a certas saudáveis conseqüências hermenêuticas
advindas da efetiva aplicação da Lei nº 9868/99 ± por mais que ela padeça, em alguns pontos,
de duvidosa constitucionalidade ± ao permitir que nosso Supremo Tribunal Federal possa vir
a adotar uma realística jurisprudência de resultados, assumidamente inspirada nos valores da
segurança jurídica e do interesse social, que são congênitos à idéia de direito.
Mencionamos da citada lei, por exemplo, a faculdade conferida ao relator para, em caso de
necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato, ou de notória insuficiência
das informações existentes nos autos, requisitar informações adicionais, designar peritos para
emitir parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos
de pessoas com experiência e autoridade na matéria, bem como a permissão, igualmente
concedida ao relator, para solicitar informações aos Tribunais Superiores, aos Tribunais
federais e aos Tribunais estaduais acerca da aplicação da norma impugnada, podendo via a
ampliar consideravelmente o seu horizonte de compreensão e, por via de conseqüência, a
decidir melhor as demandas constitucionais.
Poderá assim o STF enriquecer a interpretação constitucional pela reintegração entre fato e
norma, entre realidade constitucional e texto constitucional, reintegração que se faz tanto
mais necessária quanto sabemos que esses elementos se implicam e se exigem
reciprocramente, como condição de possibilidade da compreensão, da interpretação e da
aplicação de qualquer modelo jurídico (importante lembrar que a correlação fato-norma é da
própria essência do direito, que só é o que é enquanto se manifesta como ordenação jurídica
da vida social).
Nossa Constituição, recheada de petrificações, poderá contar com uma arena onde os fatores
reais de poder se dialetizarão, sempre sob a batuta da prudência judicial, com dispositivos
normativo-constitucionais falsamente intangíveis, que necessitam muitas vezes ser
removidos, mas que só não o são por um enfoque hermenêutico assaz cauteloso e
excessivamente generoso com relação ao alcance das disposições contidas no art. 60 § 4º,
incisos I, II, III, IV da Constituição Federal de 1988.
Assim, vislumbramos nessas aberturas hermenêuticas uma maneira segura e legítima para a
manifestação do titular do Poder Constituinte para aquém dos excessos de procedimentos
temerários tais como consultas plebiscitárias e por referendo (fazemos menção a determinada
diretriz que afirma ser válido este mesmo titular do Poder Constituinte Originário abolir
posteriormente, por meio destes instrumentos de consulta, o que havia, por decisão de uma
Assembléia Constituinte soberana, furtado do Poder Constituinte Derivado).
Procedimentalmente, a Lei nº 9868/99 abre a possibilidade de se integrar a realidade no
processo de interpretação constitucional no contexto das ações diretas de
inconstitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade, por meio de mecanismos que,
por mais que devamos reconhecê-los ainda insuficientes, poderão ser capazes de filtrar e
absorver os anseios dos atores da cena social, despetrificando e extinguindo-se
democraticamente e de forma prudente certos conteúdos, e harmonizando-se - sem
necessidade de se recorrer ao subterfúgio da dupla revisão - as correntes adeptas da
transponibilidade e da intransponibilidade dos limites materiais. É inegável que os
legitimados ativos para a propositura das citadas ações deverão contribuir como agentes
imprescindíveis e desencadeadores do processo de abordagem tópica e pluralista de emendas
constitucionais que outrora poderiam ser propostas não admitidas em face de um
entendimento precipitado acerca de um alcance por demais dilatado das cláusulas pétreas.
Por fim, quanto mais aberto à participação social se mostrar o processo de interpretação e
aplicação de nossa Lei Maior, mais consistentes e mais eficazes serão as decisões da
jurisdição constitucional como respostas hermenêuticas às perguntas da sociedade sobre o
sentido, o alcance e a própria necessidade da sua Constituição e de disposições que, pela
intangibilidade, se tornam entraves à sua plena sintonização temporal. De fato, o óbice às
compatibilizações necessárias entre a ordem constitucional e as sempre renovadas e
crescentes exigências da sociedade, ao invés de assegurar a continuidade do sistema
constitucional, pode instigar a sua ruptura, permitindo que o desenvolvimento constitucional
se realize fora de eventual camisa de força de falsas imutabilidades materiais. Mas antes de
tal ocorrência traumática, tentemos as vias do hospital processual.
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