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A SOCIEDADE CONTRA O ESTADO 167

Nunca se chegará, em urna comunidade humana dada, a eliminar


completamente as re^óes de poder. E isso nao por alguma razao psi-
10. A SOCIEDADE CONTRA o ESTADO cológica ou biológica, como pseudo-intelectuais afírmam as vezes, po-
rém, mais certamente, porque sempre haverá, em toda comunidade,
desigualdades económicas assim como divisóes sociais.
Ja sendo formas de violencia, essas desigualdades e divisóes ali-
mentam, por sua simples existencia, um estado de guerra permanente
Vamos sonhar: no seio do corpo social. Ora, para que esse corpo se mantenha vivo, a
guerra deve ser canalizada. E a única maneira de canalizar a violencia é
A partir do momento que se impóe a necessidade de urna nova "or-
recorrer á violencia, fazé-la voltar-se contra si mesma. Essa é, precisa-
dem internacional", coroada pela instauracao de um direito "cosnm
mente, a funcao das relances de poder. Ou seja, do "político" em geral.
político", o principio de "soberanía" nacional deixa de ser um dogma
da teoría política. É a instancia política que deve organizar as outras instancias, que
Ao mesmo tempo, o poder do Estado sobre os cidadáos deixa de deve regular—pela violencia — a violencia imánente a toda comunida-
ser ilimitado: pelo contrario, fica contido por todo tipo de coac.óe,s de humana. É a ela que cabe arbitrar os conflitos resultantes das desi-
"supraestatais". gualdades económicas ou das divisóes sociais. É por isso que o Estado se
Pederíamos ir mais longe? arroga o "monopolio da violencia legítima" (Max Weber), dedicando
um cuidado especial para fazer esquecer suas verdadeiras origens — isto
Nao poderíamos sonhar com urna "sociedade civil" que, promo
vendo enfim sua revanche sobre o Estado, conseguisse auto-organi- é, para produzir (pelo mito ou pela flecho) a ilusáo de que o poder "legí-
zar-se de tal modo que o papel dessa instituicao coercitiva e centraliza timo" nao seria, justamente, a expressáo de urna violencia.
dora, o Estado, seria reduzido a zero — ou pelo menos a pouca coisa, u Assim, nunca existirá urna sociedade totalmente "anárquica", libe-
um papel verdadeiramente "mínimo" (tomando-se "mínimo" em um rada do poder, livre da opressáo. A anarquia absoluta é a utopia abso-
sentido mais radical ainda do que quería Nozick)? luta. Como indica o seu nome (ou topos, em lugar algum), ela nunca
Vemos que a questao que surge aqui é a questao da "anarquía". existirá.
Toda sociedade real, se quer perdurar, é obrigada a dispor de um
Ha muito tempo, a anarquía caminha ao lado do sonrio. Do desejo. D;i órgáo de poder específico e de leis — cuja eficacia conjunta permite
utopia. dar, ao estado de guerra social, a aparéncia tranquilizadora e desejável
A utopia anarquista é o sonho de urna sociedade fraterna e feliz, na da paz.
qual os homens, vivendo livres enfim, chegariam ao pleno floresci- De todo modo, esse órgao de poder nao é necessariamente obriga-
mento de suas potencialidades. £ o sonho de um fim ou de um "aléin" do a assumir a forma do Estado-na<páo, coercitivo e centralizador tal
da política. corno o conhecemos ha alguns séculos.
Essa utopia irresistível nao morre: muitos sao aqueles que, de um Ele poderia muito bem revestir-se de outras formas — inclusive
modo ou de outro, Ihe permitiram atravessar os séculos, dos cínicos formas inéditas, em que ainda nao pensamos.
gregos a Cornelius Castoriadis, passando pelo cura Meslier, Fourier, Além do Estado, o poder continua. A política também.
Proudhon, Bakunin, Guy Debord e Noam Chomsky. Isso nao significa que nao tenhamos nada melhor a fazer do que
Entretanto, apesar do respeito que se deve a esses espirites audaci nos entregarmos á utopia — como alguém se entrega aos decretos do
osos, nao creio que a anarquia seja possível. destino ou da Providencia divina.

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Porém, mais pragmáticamente, isso significa que a "auto-instiiui do nao encontravam os traeos que, para eles, desenhavam o rosto
cao" da sociedade (como dizia Castoriadis) nunca está concluida, líin familiar desta.
suma, nao é proibido sonhar. Tarnbém, vindo de Estados em plena for9a, de monarquías absolu-
E, como nao ha sonho que nao se alimente de alguma lemhraitv* tas em que o peso da centralizacáo se fazia sentir cada vez mais, so po-
da realidade, ou da nostalgia de alguma "infancia" perdida, desojo, diam se surpreender ao dcscobrir sociedades que, aparentemente,
para concluir este percurso, deter-me um instante naquilo que é, ciu viviam sem regras nem hierarquia. Sem rei nem lei? Talvez nao. Mas o
minha opiniáo, o mais fascinante "sonho" do Ocidente moderno: a le fato é que as sociedades indígenas tradicionais nem sempre tém chefe
oria da "sociedade primitiva" como "sociedade contra o Estado". "permanente". E que, quando tém, este nao parece dispor de nenhum
Em outras palavras, como sociedade que conseguiu, se nao atín poder coercitivo sobre o grupo, de nenhuma capacidade de fazer vio-
gir o estado "ideal" de anarquía, pelos menos aproximar-se o iruns lencia contra seus "súditos".
possível dele.
Estranha "ausencia", na verdade. Entretanto, essas sociedades —
pelo menos quando se respeita sua independencia—nao parecem mi-
nadas pela desordem ou arruinadas pelo caos. Montaigne e La Boétie
SELVAGENS SEM DEUS NEM SENHOR (que recolheram, no porto de Bordeaux, todo tipo de historias sobre
os indios), e depois Diderot e Rousseau, quando estudaram esse para-
Essa teoría tem urna origem histórica precisa. Ela remonta ao "deseo-
doxo, so puderam resolvé-lo traduzindo-o em urna fantasía: o "bom
brimento" do Novo Mundo.
selvagem". Os indios seriam, por natureza, tao virtuosos que nao te-
Efetivamente, foi no rastro de urna conquista colonial que os euro-
riam necessidade de senhor? Viveriam sob o reinado da graca? A Amé-
peus viram surgir a sua frente, pela primeira vez, "selvagens" — no
rica seria (como ainda disse Whitman) o paraíso terrestre?
caso, indios. Convencidos do preconceito de que sua própria civiliza-
Essa fantasia, como sabemos, durou até o século XIX. Depois, a an-
cao so podía ser a melhor, comecaram por avaliar as culturas que en-
contravam pela medida daquela na qual tinham nascido. E o que os tropología incipiente a encerrou em nome de urna explicacao mais
impressionou logo de saída (nesse ponto, todas as dedara9&es dos pri- "positiva", menos romántica. Nao, os indios nao sao nem melhores
meiros "cronistas" concordam) nao foi tanto o fato de que os indios nem piores do que os outros homens. Sao homens, simplesmente.
andavam ñus, ignoravam a escrita ou nao dispunham da tecnología Mas homens socialmente imperfeitos, politicamente inacabados. Em
européia. Foi principalmente o fato de que pareciam viver "sem fe, suma, "primitivos".
sem lei, sem reí". Ou seja, "sem Deus nem senhor". O que esse termo quer dizer, na pena dos "eruditos", é claro. Os
Essa observa9áo foi tao repetida, a partir do século XVI, que merece "primitivos" pertencem ao estágio mais antigo do desenvolvimento da
atencáo, embora seja manifestamente errónea. humanidade. Tanto na ordem política como na ordem da técnica, fal-
Os indios, por exemplo, nao eram "sem fe". Cada urna de suas so- ta-lhes todo tipo de invencóes que nos sao familiares. Essa falta é o sín-
ciedades possuía o seu próprio corpus de mitos e rituais, seu próprio toma de seu atraso no caminho da evolucáo. O sentido dessa evolucáo,
sistema religioso. Mas esses sistemas nao se pareciam com aqueles em contrapartida, é evidente. A medida que evoluem, as sociedades
existentes na Europa. Nao eram controlados por urna casta de "pa- devem se dotar de um Estado. O Estado é o símbolo do progresso, a
dres" fácilmente identificáveis. Nao se encarnavam em lugares de cul- única forma política que convém a povos que alcancaram a maturida-
to visíveis por todos. Enfim, nao exerciam nenhum poder díreto sobre de. Os que o ignoram ainda estao a espera desse "tornar-se adulto",
a moral individual ou social. Isso bastou para induzir em erro os cro- prisioneiros de urna "infancia" prolongada demais. Urna infancia á
nistas. E fazer com que eles acreditassem na ausencia de religiáo, quan- qual a conquista — justamente — deve por um termo definitivo.
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Favorecido, na segunda metade do sáculo XIX, pelo triunfo do evo- crítica anücolonialista, questionam o duplo mito das sociedades "sem
lucionismo, esse novo mito de aparéncia científica acarreta duas con- historia" e da "mentalidade prelógica". Um papel determinante é en-
seqüéncias importantes para a describo dos "primitivos". táo o de Claude Lévi-Strauss. Das Estruturas elementares de parentesco
Primeira conseqüéncia: suas sociedades sao doravante qualificadas (1949) aos quatro volumes de Mitológicas, publicados vinte anos de-
de sociedades "sem historia", pois se desenrolam, como se acredita, pois, passando pelo texto decisivo de O pensamento selvagem (1962),
em um tempo imóvel. Lévi-Strauss nao cessa de explicar que a mentalidade primitiva, capaz
Segunda conseqüéncia: para explicar esse imobilismo, é preciso de elaborar as construcóes intelectuais mais sofisticadas, nao merece
imaginar alguma imperfeÍ9áo congénita ou algum atraso constitutivo de forma alguma o qualificativo de "prelógica".
do espirito "primitivo". Forjado por Lucien Lévy-Bruhl por volta de Alias, nao existe urna mentalidade própria dos primitivos. No má-
1900, o conceito de "mentalidade prelógica" permite dar a esse "atra- ximo, pode-se dizer que seu pensamento, sem ignorar as regras da ló-
so" intelectual urna formulacáo de acordó com os cánones da psicolo- gica universal, também funciona, em certas circunstancias, segundo
gía da época. outros esquemas — associativos ou participativos — cujo vestigio se
Essa constni9áo teórica tem sua coeréncia. Mas é claro que ela encentra, no Ocidente, em atividades como a criacáo artística ou o ar-
cumpre, antes de tudo, urna funcáo ideológica. É claro que serve ape- tesanato. O pensamento dos selvagens nao é portante diferente do
nas para tranquilizar a consciéncia de urna antropología colonial pre- nosso por natureza.
ocupada em legitimar, por pseudo-argumentos, a expansao "branca" Trata-se simplesmente de um "pensamento selvagem" adaptado a
(e até "etnocida", para retomar a expressao de Robert Jaulin). um ambiente particular e a urna escolha específica de vida.
Com o fim da coloniza9§o e seu questionamento a partir da II Guer- Paralelamente, Lévi-Strauss mostra que essa escolha de vida nao im-
ra Mundial, as fraquezas dessa construcao nao tardam a aparecer. plica absolutamente urna recusa da historia em geral. Como todas as so-
Por urn lado, o olhar antropológico se sofistica. Estudando mais ciedades, as dos primitivos estáo inseridas na historia — urna historia
seriamente as sociedades primitivas (expressao impropria, mas que é pouco conhecida, mas cuja Iembran9a sobrevive na tradÍ9áo oral. Em
conservada por comodidade), os ocidentais descobrem que estas se contrapartida, elas desconfiam do processo "cumulativo" — aumento
organizam em torno de estruturas políticas mais complexas do que de riqueza ou de popula9ao — que amea9aria o equilibrio precario so-
imaginavam. Sua descricáo se torna objeto de urna disciplina autóno- bre o qual se fundam. Em resumo, se essas sociedades tendem a afastar
ma, a antropología política. Esta, depois das pesquisas pioneiras de de si o espectro de urna historia "quente" (semelhante á que conduz o
W.C. MacLeod (1924) e R.H. Lowie (1927) sobre a origem do Estado, Ocidente), é porque elas optaram por urna historia "fria", mais de acor-
toma impulso com a publicacao simultánea, em 1940, de tres obras dó com a idéia que tém das condÍ9óes de sua sobrevivencia.
magnas. As duas primeiras, Os Nuer e O sistema político dos Anuak — Lévi-Strauss introduz assim, na antropología, urna revolu9ao cujas
referentes a duas etnias vizinhas da África Oriental — sao de E.E. implicases filosóficas nos levam de volta, paradoxalmente, a Montaig-
Evans-Pritchard. A terceira, Os sistemas políticos africanos, é um livro ne e Rousseau. Sem idealizar os "selvagens" (como prova o tom pessi-
coletivo dirigido por E.E. Evans-Pritchard e Meyer Fortes, e prefacia- mista de Tristes trópicos), ele os reabilita. Estabelece que seu pensamento
do por A.R. Radcliffe-Brown.' Todas as tres abrem caminho para urna e seu modo de existencia devem ser apreciados por si mesmos, e nao
serie de trabalhos (cada vez mais numerosos, ao longo das décadas se- como formas inferiores dos nossos. Condenando o etnocentrismo, pro-
guintes) que nos oferecem enfim urna imagem confiável e detalhada clama a igual dignidade das culturas (Rafa e historia, 1952).
daquilo que se poderia chamar de política dos primitivos. Mas abstém-se de tirar dessa afirma9áo as conseqüéncias que se
Por outro lado, desde o fim dos anos 30, antropólogos mais atentos impóem no campo propriamente político.
ao seu "objeto", menos imbuidos de preconceitos ou mais abertos á Esse passo suplementar será dado por Fierre Clastres.
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CHEFES BEM DIFERENTES tratégia deliberada para prevenir a dimínuicao das liberdades indivi-
duáis, que a emergencia de um poder estatal (isto é, ao mesmo tempo
Nem comunista (embota tenha lido Marx atentamente), nem an.ir coercitivo e centralizado) nao deixaria de provocar.
quista (no sentido estrilo), Fierre Clastres (1934-77) se senté, toclavn, Nao se trata, é claro, de atribuir aos indios a misteriosa premonicao
bem mais próximo da córrante "libertaria" (no sentido francés do u-i de um futuro que, evidentemente, eles ignoravam. Mas trata-se de in-
mo) que do marxismo. Durante seus anos de estudo, freqüenta ",S<u i vestigar o método com o qual eles se dedicaram, durante sáculos, a su-
alismo ou barbarie", movimento criado em 1949 por Claude Ldbrt i* focar em suas' próprias sociedades toda tendencia á concentracao —
Cornelius Castoriadis. Depois, viaja para a América do Sul. Al^mi* ñas máos de um so ou de alguns — do poder político.
meses antes de sua morte, funda com Lefort, Castoriadis e alguns ou Vamos observar o funcionamento da chefia indígena. Primeiro, o
tros urna nova revista, cujo título soa como urna palavra de ordem: /,/' chefe, nos casos em que este existe, nem sempre é fácil de identificar.
bre (1977-80). Nem seus ornamentos, nem seu habitat, nem seu modo de vida o dis-
Clastres é pois um intelectual "engajado". Mas, se suas simpalúis tinguem dos outros. Nada é mais notável do que a semelhanca das
políticas nao podem ser ignoradas, elas nao o impedem de ser, princ i condi^oes no interior da sociedade primitiva. Mas o chefe nao é des-
pálmente, um pesquisador de campo. De 1963 a 1974, permanecen provido de todo privilegio. O principal daqueles que acompanham o
militas vezes entre os indios: Guaraní, Guayaki e Chulupi no Paraguai, seu cargo, freqüentemente hereditario, é a poliginia (quando a socie-
Guaraní no Brasil, lanomami na Venezuela — "a derradeira sociedad*' dade á qual ele pertence é monógama), ou a faculdade de ter mais es-
primitiva livre, na América do Sul certamente, e talvez também m> posas do que o resto dos homens (quando estes ja praticam a
mundo", escreve ele, nao sem algum romantismo, em 1971.1 Além dis poliginia).
so, é um leitor atento dos cronistas da conquista, assim como de Mon- Em contrapartida, o chefe tem deveres. Por um lado, está sujeito á
taigne e de La Boétie — os dois primeiros filósofos a se interessarem obrigacao de dar presentes a todos aqueles que, em sua comunidade,
pela concepcáo "selvagem" da liberdade. os solicitam. Por outro lado, é obrigado a pronunciar ritualmente, na
A sodedade contra o Estado, a obra magna de Clastres, data de 1974. aurora e no crepúsculo, longos discursos que ninguém escuta e cuja
Trata-se de urna colecáo de artigos, dos quais o primeiro, "Copérnico o única funcáo é lembrar aos outros as virtudes dos ancestrais — parti-
os selvagens" (1969), aprésenla a revolucáo "copernicana" que o autor cularmente, o gosto destes pelo bom entendimento. Mas esses discur-
deseja importar para a sua própria disciplina, a antropología política. sos tranquilizadores nao dao ao chefe um verdadeiro poder de
Esta, segundo seu modo de pensar, nem sempre escapa ao etnocentris- arbitragem judiciária. Alias, ele nao dispóe de nenhum poder "coerci-
mo denunciado por Lévi-Strauss (a quem Clastres presta urna homena- tivo" propriamente dito. Nao se trata, para ele, de impor suas decisóes
gem explícita). Se a antropología quiser se livrar do etnocentrismo, deve ao restante da sociedade. Caso se arriscasse a isso, caso fizesse a impru-
mudar de método. Para compreender as sociedades primitivas, quere- dencia de "brincar de chefe", ele se exporia a ser destituido. E até, em
mos sempre remeté-las a nos, como se fóssemos o centro do mundo. alguns casos, a ser morto.
Pelo contrario, devemos remeter-nos a elas, e perguntar por que nos Como observa Clastres, os traeos estruturais da chefia indígena a
afastamos a tal ponto do modelo que elas nos oferecem. situam fora do espaco da cultura, fundado na regra da troca recíproca.
Efetivamente, essas sociedades sao, de certa maneira, exemplares. A poliginia rompe o círculo da troca das muiheres. A obrigacao de dar
Sao sociedades sem Estado. As únicas ou as últimas sociedades sem Es- presentes rompe o círculo da troca dos bens. Os longos discursos rom-
tado atestadas pela historia. Mais aínda, longe de serem assim por aca- pem o círculo da troca de palavras. Como efeito dessa tríplice ruptura,
so ou por efeito de algum retardo, elas so sao sem Estado porque sao o chefe é lancado para o lado da natureza, assimilado as forcas que
contra o Estado. Em outras palavras, porque desenvolvem urna es- ameacam a sobrevivencia da sociedade. Assimila^ao que, por sua vez,
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confirma que os indígenas véem na chefía um perigo potencial para o Clastres comeca observando que a antropología, até entao, se limi-
grupo. tou a propor tres interpretacóes da guerra primitiva: "naturalista",
Como neutralizar esse perigo? "economista" ou "intercambista".
A estrategia indígena é dupla. Consiste, por um lado, em atribuir A primeira (defendida pelo pré-historiador André Leroi-Gourhan)
ao chefe apenas um poder insignificante: o de falar no vazio. E, por ou- vé na guerra urna simples variante da caca, isto é, um comportamento
tro lado, em dar á sociedade inteira o verdadeiro poder: o de tomar, de origem biológica, motivado pela procura de urna presa comestível:
coletivamente, as decisóes que empenham o futuro do grupo. Estas, hipótese negada pelo fato de que a guerra entre indígenas nao tem por
longamente discutidas, devem ser objeto de um consenso tao ampio fim a antropofagia.
quanto possível antes de serem postas em prática. Com isso, o aspecto A segunda interpretacao (em geral, a dos marxistas) amplia a pri-
abertamente "coercitivo" do poder é, se nao esvaziado (como Clastres, meira, assimilando a guerra a urna atividade de pilhagem provocada
um tanto apressadamente, tende a dizer), pelo menos amenizado. O pelo subdesenvolvimento das forcas produtivas ñas sociedades primi-
chefe nao goza de nenhum poder desse tipo. Quanto aos outros mem- tivas: tese refutada pelos trabalhos de Marshall Sahlins, estabelecendo
bros do grupo, se obedecen! a urna coercáo (a decisao coletiva), nao de maneira definitiva que essas sociedades, longe de víverem na mise-
tém a impressao de que esta Ihes é imposta por unía pessoa ou institui- ria, gozam, pelo contrario, de urna certa abundancia, pelo menos em
cao "central" exterior a eles. materia alimentar.4
As sociedades indígenas nao sao pois "anárquicas", rigorosamente Quanto á terceira interpretacao (a de Lévi-Strauss, da qual Clastres
falando. Se o seu funcionamento tende a tornar impossível o surgi- se afasta, sublinhando, com razao, a incapacidade do estruturalismo
mento de um órgao de tipo "estatal", se elas "aliviam" ao máximo o para pensar a historia, a violencia, o confuto, em suma a especificidade
peso psicológico das relacóes de poder, nao as ignoram totalmente. da instancia política), consiste em inserir a guerra no ciclo eterno das
Também nao estáo a salvo da violencia política — como prova a trocas sociais, feito de aliancas e de rupturas alternadas — o que equi-
importancia que assume, em sua existencia cotidiana, o fenómeno da vale, em suma, a dissolver a dimensao institucional que é a sua ñas so-
guerra. ciedades indígenas.
Porque reduzem o sentido da guerra a fatores externos (de ordem
biológica, económica ou sociológica), essas tres explicacóes sao insufi-
FUNC;AO DA GUERRA PRIMITIVA cientes. Rejeitando-as em bloco, Clastres encara a guerra como ela é:
um fenómeno propriamente político. E procura seu significado em
A guerra entre grupos vizinhos é um efeito extremamente comum en- seus efeítos.
tre os indígenas. Dos cronistas da idade clássica até os antropólogos Ora, o principal efeito da guerra entre sociedades indígenas nao é a
modernos, todos os observadores enfatizaram isso. Nem sempre con- conquista, mas, ao contrario, a fragmentacao. .Os confrontes, alias
seguiram elucidar a significacáo de tal prática, nern compreender por breves, que as opóem a intervalos regulares, permitem a essas socieda-
que ela nao resultava, como se poderia temer, na constituicao de im- des permanecerem independentes entre si. A hostilidade que se dedi-
perios ou de castas político-militares. cara mutuamente mantém entre elas urna distancia salutar. Gracas a
Para esse enigma, Clastres propoe urna explicacao interessante, essa distancia, cada urna délas preserva seu modo de vida autárquico, e
que prolonga, confirmando-a, a sua tese sobre a ausencia de Estado logo sua autonomía política. Nesse estado de guerra generalizada, nao
como recusa do Estado. Dois de seus textos de 1977 merecem ser lidos ha vencedor nem vencido definitivos. Existem apenas grupos que se
;
com atencao a respeito desse ponto: "Arqueología da violencia" e batem para nao ter que submeter-se a seus vizinhos. Longe de resultar
: "Infelicidade do guerreiro selvagem".3 na constituicao de imperios, a guerra é apenas um modo de prevé-
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nir-se contra o Estado. Urna estrategia, em outras palavras, a servico UMA OUTRA INFANCIA: A ÁFRICA
de urna escolha política.
Resta o problema dos guerreiros. O sucesso de suas armas nao po- Poder-se-ia objetar que o campo das sociedades indígenas, suporte
das análises precedentes, nao esgota o espaco das sociedades primiti-
deria Ibes dar a vontade, quando retornam a seu lugar, de estabelecer
vas em geral; que aquilo que é verdadeiro para os povos da Amazonia
seu poder sobre o grupo cuja existencia acabam de salvar?
poderla nao o ser em outros continentes.
Tudo tende a demonstrar que esse risco é cuidadosamente evitado. Essa objecáo legítima tem urna resposta nos trabalhos dos antro-
Primeiro, constatamos que os guerreiros vencedores retomam, depois pólogos africanistas. Trabalhos que, no conjunto, confirmam as hipó-
da batalha, o curso de sua existencia anterior, sem gozar de nenhuma tese de Clastres — com ainda mais credibilidade porque foram
vantagem material. Sua única recompensa é o prestigio que adquiri- elaborados de modo completamente independente deste.
ram na a^áo. Além disso, esse prestigio nao é destinado a durar, quan- As sociedades africanas tradicionais apresentam urna grande di-
do nao é imediatamente posto a prova em urna nova exped¡9ao versidade de estruturas políticas. Nelas, encontram-se alguns Estados
militar. Na hierarquia dos valores indígenas, nao ha louros conquista- organizados, formas estatais embrionarias, e também muitas socieda-
dos urna vez por todas: a bravura é urna virtude que deve ser provada des cujo funcionamento lembra o das sociedades indígenas.
incessantemente. Essa necessidade de urna tensao permanente obriga No seu trabalho sobre os Nuer do Sudao, Evans-Pritchard ja obser-
os jovens guerreiros a lancar-se em aventuras sempre mais audaciosas, vara que esse povo parecía ignorar até a figura do "líder". "No país
em que acabam inevitavelmente encontrando a morte. Morrer jovem Nuer", escreveu ele, "nenhuma pessoa, nenhum conselho é investido
das fun^óes legislativa, judiciária e executiva".5
em combate: esse é o destino "infeliz" dos guerreiros selvagens. Isso
Comentando esse texto, Lúe de Heusch esclarece que urna tribo
significa que estes pensam em outra coisa, que nao é o poder político.
Nuer "se compóe de varios segmentos territoriais, encaixados segun-
E que seus bandos turbulentos nao tém nenhuma chance de se trans- do o modelo de segmentacao por linhagem. Cada territorio é associa-
formaren! em castas dominantes. do a um cía 'dominante', que nao detém nenhum privilegio político:
Fierre Clastres estava nesse ponto de suas reflexóes quando, de ma- seus ancestrais se definem simplesmente como os primeiros habitan-
neira acidental, também foi colhido pela morte. tes do lugar, o que confere a seus descendentes um certo prestigio". E
Restou sua obra teórica, de urna importancia considerável para a conclui: "Esse enraizamento primeiro fornece o principio estrutural
antropología e para a filosofía política. de urna organizacao política ferrenhamente democrática."'
Depois de Clastres, as sociedades indígenas nao podem mais ser es- Os sucessores de Evans-Pritchard encontrara urna situacao seme-
Ihante entre outros povos africanos. Lúe de Heusch, por exemplo, es-
tudadas sem que se leve em conta os dispositivos complexos pelos
tudando nos anos 50 os Tétela do Kasai, constata que existe realmente
quais estas procuram impedir toda centraliza9áo do poder coercitivo,
entre eles urna forma de chefia "sagrada", mas que os responsáveis por
esforcando-se em salvaguardar, por outras vías, suas próprias estrutu- esse cargo ritual nao intervém na regulamentacao da ordem pública. A
ras tradicionais. Assim, depois de Clastres, nao é mais possível con- separacáo das duas esferas, religiosa e política, é completa. Ele acres-
fundir "poder" e "Estado" — e afirmar que o primeiro se reduz centa: "comparável, mutatis mutandis, a que opóe o chefe amazónico
necessariamente ao segundo. ao xama."7
Mas também nao se pode mais fazer da sociedade primitiva a en- É verdade que a realeza sacra (que Frazer fora o primeiro a descre-
carna9§o de urna "Arcadia feliz". ver, sob o nome de realeza "divina", no fim do século XIX) pode assu-
Ou seja, de urna "anarquía" tranquila, na qual ninguém seria obri- mir, em certas sociedades africanas, urna fun9áo política mais
gado a obedecer, e da qual a violencia teria sido expulsa para sempre. afirmada, como se constituísse apenas urna forma de transicao para o
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Estado, Entretanto, mesmo nesse caso, o rei sagrado está longe de ser da por urna catástrofe natural ou ecológica). Poderíamos acrescentar
um chefe todo-poderoso. os fatores de ordem económica. Clastres os recusava, pois, sendo céli-
Analisando o status deste entre os Mundang de Léré (Chade), co em relacáo á antropología marxista, nao acreditava possível aplicar
Alfred Adler nota que múltiplos dispositivos simbólicos se opoem a as sociedades primitivas esquemas que privilegiassem a nocáo de
que ele goze de um verdadeiro poder coercitivo — como se os Mun- "producáo". Para ele, era o nascimento do Estado que devia explicar o
dang, conscientes de possuir um embriao de instituto estatal, achas- nascimento das classes sociais, e nao o contrario.
sem necessário fazer tudo para impedi-la de tornar-se um fator de Sem dúvida, seria conveniente flexibilizar esse ponto de vista. Quan-
divisáo social." do, no "Crescente Fértil", tres mil anos antes de nossa era, surgem os
Ao mesmo tempo, Adler e outros africanistas, refletindo sobre sua primeiros Estados históricamente conhecidos, seu nascimento, na Su-
experiencia de campo, chegam a conclusóes próximas das de Clastres méria como no Egito faraónico, parece ligado a urna transformacáo
a respeito da guerra. Na África, dizem eles, como entre os indígenas, os económica. Efetivamente, so o desenvolvimento de urna agricultura
incessantes conflitos armados entre grupos vizinhos nao tém outra fi- produtora de excedentes capazes de alimentar a casta burocrática
nalidade senao permitir-lhes conservar, ao mesmo tempo, sua inde- pode ter permitido o surgimento dessa casta. Seja como for, essa pró-
pendencia política e sua auto-suficiéncia económica. Assim, também pria transformacáo nao tinha nada de urna fatalidade. E nao constku-
esses conflitos fazem parte de urna estrategia que visa prevenir o surgi- iu, provavelmente, por si so; a única "causa" do Estado.
mento de Estados fortes. Constituem o preco a pagar pela salvaguarda
de urna certa concepcao de existencia. O Estado nao é portante o produto de urna necessidade transcendente
Sao inúmeros os exemplos desse género. Todos provam que poder á historia.
e violencia andam juntos. E que nenhuma sociedade pode escapar a Nascido do acaso, ele so existe á maneira de urna contingencia. É
seu dominio — mesmo que a forma "Estado" seja apenas urna das fi- por isso que, também, ele é capaz, um día, de desaparecer — embora,
guras possíveis do poder, e nao sua encarnacáo necessária. com toda a evidencia, esse dia nao seja amanha.
De todo modo, apesar das defesas erguidas contra ele, o Estado Pode-se imaginar, no futuro longínquo, um mundo sem Estado,
"coercitivo", em um sentido próximo do sentido moderno, acabou se Em contrapartida, nao se pode imaginar um mundo sem política
impondo em certas sociedades africanas tradicionais séculos antes da — um mundo preservado de toda violencia, desprovido de toda cslru
coloniza9ao. Do mesmo modo, no continente amerindio, dois gran- tura de poder.
des imperios pelos menos — os dos incas e o dos aztecas — prospera- As sociedades primitivas, como acabamos de ver, nao erain absolu-
ram durante muito tempo antes da conquista. Deve-se concluir que tamente paraísos desse tipo. Como, entáo, as sociedades "modernas"
seu surgimento se devesse a um processo inevitável? E que é preciso poderiam tornar-se paraísos, ao passo que se trata de sociedades tic
voltar ao velho esquema etnocéntrico que faz do Estado o termo "der- grandes dimensóes, dotadas de escrita e caracterizadas por um.t e-.lMli
radeiro" ou "superior" de urna evolucáo "natural"? ficacao (económica e social) complexa? E, mesmo que unw uti.istiulr
Nao, pois nenhuma lógica simples comanda a génese do Estado. climática, ecológica ou nuclear acabasse destruindo, acidcnlalmoiili',
Quando esta ocorre, é sempre — tanto quanto se saiba — por efeito de essa complexidade, nao seria verossímil que os sobreviven!es 11,10 \><-\, com isso, ne
causas múltiplas, singulares e acidentais. Clastres pode esbocar apenas
a an alise dessa génese, na qual vía a acao de falores demográficos (cres- Aceitar esta última hipótese nao equivale a confundir rísl;ul<»<• | >• «íí
cimento brutal da populacáo vivendo em um territorio dado) ou cul- tica. A política é inevitável. O Estado nao. Ele é apenas a face <.-< >iiliii>',nt
turáis (tomada do poder político por um chefe religioso, gracas, te assumída, hoje, pela política. E, se ele é um mal, um nuil un r.-..mu
notadamente, a urna "migra9áo" coletiva de tipo messiánico provoca- mas sempre uní mal, esse mal é apenas "provisoriamente" nei i",viiit«.
180 A FIIOSOHA POLÍTICA HOIE

"Provisoriamente". Ou seja, durante mais alguns séculos. Mas cer-


tamente nao "para sempre".
Vamos confiar na capacidade de "auto-instituicao" das sociedades
humanas. Nao apenas por "espirito de utopia". Mas porque está na ll.QUEMTEM RAZÁO?
natureza das coisas que tuda mude. E que talvez um dia acabaremos
tentando escapar, por nos mesmos, a essa "servidao voluntaria", na
qual La Boétie, em um célebre Discurso escrito ha mais de quatro sécu-
los, ja nos acusava — nao sem razáo — de nos comprazermos.*
"Se dependesse de mim, meu caro, as coisas nao seriam assim!"
"As coisas nSo seriam assim": ou seja, elas mudariam.
Mudar. Influenciar o curso das coisas. É isso, evidentemente, que
está em jogo na diferen9a — capital — entre "gestao" e "política".
Mas a mudanca é possível? E, em caso afirmativo, através de que
caminhos?
Sao essas, como vimos neste livro, algumas das interrogacóes que
habitam, ha mais de 25 séculos, a consciéncia ocidental. Mas tam-
bém vimos que as respostas que ela Ihes da variam consideravelmen-
te de um filósofo para outro. Alguns apostam que nada mudará,
outros que tudo deve mudar. Outros aínda que nada é seguro, nem
em um sentido nem em outro, e que, por conseguinte, algo pode mu-
dar. Ou aínda: que qualquer coisa (ou quase isso) pode acontecer (de
repente).
Quem tem razao?
E, principalmente, estamos certos de que as perguntas que faz a fi-
losofía política tém um sentido? Sao essas as boas perguntas, bem for-
muladas, legítimas, até necessárias?
Por exemplo, podemos, ao fim do nosso percurso, situar clara-
mente o campo que essas perguntas delimitam, o campo da "filosofía
política", em relacáo a outros campos do pensamento, de modo a esta-
belecer definitivamente sua objetividade e seu rigor?
Vamos ser sinceros: nao temos nenhuma certeza.

AS PREOCUPAgOES DA FILOSOFÍA

Para comecar, será que deveríamos tentar caracterizar a filosofía polí-


tica por sua dupla oposicao á "ciencia" política, por um lado, e as "ide-
ologías" políticas, por outro?

181
182 A FILOSOFÍA POLÍTICA HOJE QUEM TEM RAZAO? 183

Diríamos, por exemplo, que estas sao pseudo-teorias a servido de Para uns, a moral trata de acoes individuáis ou privadas ("é grave
movimentos determinados; que a "ciencia" política é urna ciencia so- engañar o cónjuge?"); a política, de acoes públicas ou coletivas ("deve-
cial entre outras, preocupada em estudar com imparcialidade a rea- nios ou nao derrubar Milosevic pela forca?"). Para outros, os juízos
lidade desses movimentos, assim como das "ideologias" que os acom- moráis, sendo a priori, tém um valor absoluto ("a mentira é, em si,
panham; ao passo que a fun^áo da filosofía política seria refletir, nao so odiosa"), enquanto os juízos políticos, de ordem puramente empírica,
sobre aquilo que é, mas também sobre aquilo que deveria ser? so poderiam ter um valor relativo ( "o regime parlamentar é o menos
Porém, na prática, essas fronteiras (úteis mas difíceis de balizar) mau entre aqueles que conhecemos").
sao incessantemente transgredidas. Vamos dizer sem rodeios: acerca Mais recentemente, surgiu urna tendencia a relativizar esse género
da política, reino da acao pura, universo da contingencia, nao poderla de oposicao — em suma, urna tendencia a "confundir" a fronteira en-
existir "ciencia", a nao ser puramente descritiva. Mas nenhum especi- tre moral e política. O fato é que muitos de nossos juízos políticos re-
alista em "ciencia" política se contenta com simples descricóes. Com sultara de urna deliberacáo ao mesmo tempo racional e moral —
isso, a "ciencia" em questao faz uso constantemente, como as "ideolo- como quando dizemos, desejando acabar com a "banaliza9áo" da
gias" políticas, de nocóes filosóficas mais ou menos benrcompreendi- Shoah, que "o nazismo nao é um mal da mesma natureza que o comu-
das. Alias, a recíproca é verdadeira: muitas vezes, a filosofía política, nismo, mas um mal absoluto". Urna grande parte da reílexao an-
sem saber ou confessar, também toma empréstimos a "ciencia" e as glo-saxónica atual (mas também da de Habermas, que reata com Kant
"ideologias" políticas. sobre esse ponto) gira assim em torno da intuicáo, clara embora pou-
Tentaríamos distinguir urna filosofía que fosse "política" de outra co demonstrável, segundo a qual o territorio da política seria "delimi-
que nao o fosse? Afirmaríamos — como aqueles que querem minimi- tado", por todos os lados, pelo da moral, e so disporia, logo, de urna
zar a importancia do engajamento nacional-socialista de Heidegger — autonomía parcial.1 Intuicáo que, entre outras coisas, inspira a busca
que existem neste, como em todo filósofo, textos "políticos" e textos de urna "nova ordem mundial".
"apolíticos"? Urna única certeza emerge dessas controversias. Se a política nao é a
Afirmar a existencia de tal "divisáo"seria presuncoso. Seria neces- mesma coisa que a moral, e mesmo que a primeira tenha tendencia a li-
sário ter urna idéia excessivamente simples, ou até simplista, daquilo bertar-se da tutela da segunda, ela nao poderia Ihe escapar totalmente e
que é um "texto", um texto "filosófico" em particular, para acreditar para sempre. Pode-se dizer a mesma coisa em termos mais cínicos, sem
que se pode assim cortar o fio de um discurso, dividi-lo em "fatias" e recorrer ao "transcendental" kantiano: ja que nenhum príncipe, ne-
colar sobre urnas ou outras "rótulos" previamente feitos. nhum Estado pode estar certo de subtrair-se indefinidamente a repto
Proporíamos, mais modestamente ainda, que se apreendesse a fi- vacáo suscitada por seus crimes, é do interesse do príncipe ou do Estado
losofía política a partir daquilo que a distingue dessa outra "discipli- nao se comportaren) de maneira sistemáticamente imoral. O medo tío
na" que se chama filosofía moral? castigo, infelizmente, continua sendo o ¿ome9O da sabedoria.
Esta, todavía, nao é mais fácil de delimitar do que aquela. E, se um Além dessa constatacáo (que o próprio Maquiavel aprovaria), cada
consenso suficientemente ampio reinou, de Platáo a Tomás de Aqui- filósofo tende a conceber as relacóes entre moral e política de um
no, para fazer da filosofía política urna simples "aplicacáo" da filosofía modo que pertence apenas a ele. Vimos neste livro múltiplos exent
moral aos problemas da cidade, esse consenso, definitivamente que- píos desse fato.
brado por Maquiavel, deu lugar, a partir de entáo, á idéia inversa, se-
gundo a qual urna "diferenca" importante separaría esses dois Seria possível, enfim, definir a filosofía política pela possc de ¡un "t. i u
"ramos" da filosofía — e o problema de saber em que consistiría a "di- pus" de temas ou de problemas que Ihe seria próprio, ou pela JH.ISM- ilt*
ferenca" em questao ainda é objeto, infelizmente, de ásperos debates. um "método" que Ihe seria específico?
184 A FILOSOFÍA POLÍTICA HOJE QUEM TEM RAZAO? IH",

Temo que, mais urna ve¿, nao se trate de nada disso. Nada disso. Porque, felizmente, a filosofía política teñí inimij'.tm, I<;
Temas e problemas variaram extremamente ao longo do tempo. a existencia desses inimigos, de um deles particularmente, me pau'u-
No século XVIII, a nocáo que provocou as mais vivas controversias foi largamente suficiente para justificar sua existencia.
a de "liberdade". No século seguinte, a "igualdade". No inicio do sécu- Qual é entao esse "adversario" contra o qual teremos que hitar r
lo XX, a "revolucao". Nos anos 70, a "justica". Amanha, será a "su- contra o qual a filosofía política, e so ela, nos daría os meios apropría-
pranacionalidade". Embora essas transformacóes se expliquem cultu- dos para combater?
ralmente, seria extravagante atribuir-lhes um significado providenci- Todos ja adivinharam que se trata do "economismo".
al. A sucessao dos grandes debates que marcaram o desenvolvimento
da filosofía política apenas reflete as metamorfoses da nossa socieda-
de, as mutacoes que incidiram sobre nossas "preocupacóes" — e até
As PRETENSÓES DA ECONOMÍA
sobre nossas "modas" intelectuais. A menos que sejamos completa- Curiosamente, quando falamos de "mudar" a sociedade, é com a tvo
mente hegelianos, nao afirmaremos que essas mutacoes expressam nomia que nos chocamos.
outra coisa a nao ser a própria contingencia da nossa historia. "O que vocé faz com as realidades económicas?" Essa é a prinioini
Quanto a saber se a filosofía política disporia de um método privi- objecáo (e a última, pois ela basta para destruir tudo) que nunca se c loi
legiado para produzir enunciados "verdadeiros", é melhor renunciar a xa de fazer aos que querem transformar o mundo. Como se a CH uno
esse sonho. mia fosse o "real" que resiste aos "sonhos" dos filósofos, o avesso
A política é, por excelencia, o assunto sobre o qual os homens nun- "serio" do seu "blablablá", o "rochedo" contra o qual estariam <Jr%!i
ca estaráo de acordó. Talvez porque a finalidade última de toda discus- nadas a naufragar as frágeis embarcacoes dos "utopistas".
sao política (ao contrario, por exemplo, de urna discussao sobre os Mais curiosamente ainda, esse discurso "economista" posMii,
méritos comparados do vinho bordeaux e do vinho bourgogne) seja como }ano, urna dupla face.
chegar a um acordó, gracas a (ou a partir de) concessóes recíprocas. E Ele é proferido, por um lado, pelos partidarios do capitali.suu» lil»r
"fazer concessóes" é urna coisa que os homens detestam. ral e, por outro, pelos últimos marxistas "ortodoxos".
De qualquer forma, os que querem se arriscar a navegar ñas aguas Para seus acólitos, a vitória do capitalismo possui um signifji ,»!> • i | u i
revoltas da filosofía política deverao se resignar a fazé-lo sem mapa se teológico. Ela faz do capitalismo o único sistema e c o n n m i < » > « < «u. • i ><
nem bússola. Urna teoría política que nos parece "verdadeira", assim vel. Que ele esteja longe de garantir a felicidade universal, < | i i t ' < - > > r \\\.\< >i
como observa corretamente Will Kymlicka no seu livro As teorías da definicao o pleno emprego, que o seu ritmo de crescinictilu ( l i m i M u t
justifa: urna introdufao (1990), é apenas, na melhor das hipóteses, constantemente, que va da "crise" a "quebra": nada disso ini|'iui < i «¡ '
urna teoría "que concorda com as nossas conviccóes mais bem estabe- os economistas "liberáis", o capitalismo se tornou um finí CIM • i
lecidas [our considered convictions], e que contribuí para esclare- Tornando-se"mundial" pelo desaparecimento do blot o '<> nii ¡ .
cé-las".2 Em resumo, vocé terá razáo se concordar comigo se defender imposto na Europa pelas instituÍ9óes comunitarias, la vi »in t> l. >
os mesmos "valores" que eu. resto do planeta pelos acordos do GATT, o "livro iiH'ii.iilu rt»M
Certamente, esse nao é um criterio muito racional. Mas talvez seja doravante o ponto de referencia de toda acáo. Á es<|uri«l,»«f»ill<
necessário contentar-se com ele, enquanto nao se encontrar outro me- reita, se ha urna tese que todos os partidos se acreditan) i >h n
lhor. tomar em coro, é a idéia segundo a qual os governos ilt-v» H DI
Isso significa que, decididamente, a filosofía política é indefmível? de se "imiscuir" nos fluxos económicos. Sabemos no .|in ¡I i >
Que nao tem lugar próprio? Que seu discurso nao tem motivo, suas no Ocidente (onde nao se discute mais política, nías ,t|>« H >
conclusóes nao tem interesse? veis "mercados" financeiros, que fazem tremer o n u n u f < > '
186 A FILOSOFÍA POLÍTICA HOJE QUEM TEM RAZAO? 187

países em via de desenvolvimento (onde as populacóes pagam, cotidi- Ele será o que os homens, coletivamente, faráo dele.
anamente, pelos erros de análise do FMI e do Banco Mundial). Será o resultado de seus atos políticos.
Para os últimos "marxistas", o momento histórico que atravessa- Tanto é verdade que a política nao é nada mais, afinal, do que nina
mos pode, evidentemente, ser decifrado de maneira diferente. O fato especie de "antieconomia". E a razáo de ser da filosofía política, pelo
de que o capitalismo, tornando-se mundial, nao possa impedir nem as menos ha dois séculos, nao é nada mais senao a necessidade de ajudar
tormentas financeiras, nem a recessao, nem o desemprego faz pensar a política a afirmar-se contra o economismo.
que ele está, finalmente, condenado a morrer: a "crise", necessaria-
mente, acarretará a "revolucáo" (fórmula que, note-se, esquematiza
AS VICISSITUDES DA POLÍTICA
consideravelmente o auténtico pensamento de Marx, que era muito
menos "determinista", e muito mais sensível ao "político", do que em Mas, pergunta-se cada vez mais, a política ainda tem futuro? Ela nao
geral se acredita). está, em todos os sentidos do termo, "acabada", "superada" por novas
Pouco importa, nesse estágio, a incerteza na qual se encontrara os formas de conflitos e de comprometimentos nos quais a democracia,
defensores de um marxismo "científico" sobre a natureza exata (Capi- no sentido clássico do termo, nao se reconhece mais?'
talismo de Estado? Cogestao? Socialismo moderado?) do regime econó- Essa preocupacao é compreensível. De fato, graves suspeitas pesam
mico que deveria substituir o capitalismo liberal. O importante é sobre a política. E nao sao so os políticos que as suscitara, porque o ni-
admitir (como aínda fazem, na Europa, os partidos de extrema esquer- vel de sua moralidade caiu muito, ou porque seus discursos soam fal-
da) que urna transformado é simultáneamente possível e necessária — so, ou porque suas manobras esteréis nao interessam a mais ninguém.
em virtude das próprias leis da economía, que exigem que as "contradi- Nao é apenas a democracia que nos decepciona, porque o processo
^oes" sejam resolvidas de maneira "dialética". Axioma de que resulta emancipador lanzado pelo Século das Luzes nos da hoje a impressSo
que a mudanca política acabará se fazendo, mas que será o efeito e nao a de estar totalmente em pane.
causa das muta^óes económicas. Em resumo, que a esperanca continua, É a própria acáo política que parece ter-se tornado va.
mesmo que nao seja possível queimar etapas, nem, por enquanto, fazer O que se chamava outrora de "militantismo" é agora percrlüilu
outra coisa senao conviver com o sistema tal como ele é — esperando como arcaico, ou mesmo "fora de moda". Os jovens, preocupados muí
pacientemente que ele decida autodestruir-se. suas dificuldades parainserir-se no mundo, nao acreditam ruáis na | H. ,
É contra esse duplo "economismo", dos liberáis e dos marxistas, sibilidade de transformá-lo. Seus antecessores se abrigam confuí l.ivr)
que é necessário insurgir-se. mente no casulo de seu conforto individual. Quem ainda íic>|tn ni.i i ,
Efetivamente, ao contrario do que acreditam uns e outros, nao é de reunióes do partido ou do sindicato? Quem distribui panflcit»-, «t|.i
pretensas "leis" da historia, da economía ou do "mercado" que deve- cartazes, vai as manifestacóes? Nem as grandes pesquisas dcilui.u. i.¡
mos esperar a salvacao. zem mais sucesso. O absenteísmo nao para de crescer. "I-a/ci « >\n>-
A historia nao tem leis. O "mercado" também nao. A economía é, Essa é a grande pergunta, no bojo da qual prosperan! os p a n u l » ' , «i.
por excelencia, urna falsa ciencia. Do capitalismo, como do Estado, trema direita w— que, mesmo quando apenas repetem uní a n i i | M t ! i
pode-se dizer, com razáo, que ele existe; mas nada prova que ele deva mentarismo desgastado, aparecem algumas vezes t:onn> m u l i i H . . ^
durar eternamente — como também nada prova, atualmente, que ele (para nao dizer os únicos) a fazer aínda, "verdadeiramenir". \»<\\ii< t
deva desaparecer, nem que ele possa ser substituido por urna organiza- É preciso mudar tudo isso.
cao da producáo que nao resulte, sob urna forma diferente, na recria- Como?
cao dos "pobres" e dos "ricos". Nao deixando de lembrar (como ja faziam, ñas pcgíida> «I. A » . <
Em suma, o futuro nao caira do céu. teles, Hannah Arendt e Leo Strauss) que o homeni r, a u M ; <(* <•>• |*í
188 A FILOSOFÍA POLÍTICA HOJE QUEM TEM RAZÁO? 189

"animal político" (zóonpolitikon). E que, por isso, a acao política con- Entretanto, nada está perdido, pois, a cada vez que aparece um po-
tinua sendo, apesar das vicissitudes que a acompanham, urna das for- lítico "atípico", aparentemente indiferente á tirania das "pesquisas" e
mas mais elevadas da atividade humana — ou pelo menos urna das á dos "peritos", esse homem atrai para si, durante alguns momentos,
mais dignas de interesse. multidóes entusiásticas. Nao é isso urna prova de que bastaría um
Tese que, por sua vez, pode ser entendida de diversas maneiras, se- pouco de personalidade, ou de caráter, para inverter essa tendencia?
gundo se pense naqueles que fazem da política a sua profissao, ou en- Em suma, nao bastaría "querer" para impor á mídia e aos "lobbies"
tao nos "simples" cidadáos. outras regras de jogo?
Em um contexto diferente, e com palavras que eram suas, no fun-
Os "profissionais" da política atravessam urna crise de identidade. do Maquiavel nao dizia outra coisa: é preciso agir. E o seu desejo foi
ouvido, pois, tres séculos depois de sua morte, completou-se a unida-
Por um lado, sentem-se cada vez mais obrigados a obedecer as
pressóes que exercem sobre eles os "lobbies" (no sentido americano de italiana.
do termo). Representando grandes interesses privados, quer se trate
de interesses económicos (deste ou daquele grupo de empresas) ou de É verdade que os tempos mudaram. Hoje ou amanha, nada acontece-
interesses "categoriais" de todo género (da superestrutura "tecnocrá- rá, enquanto os "simples" cidadaos nao expressarem, primeiro, o seu
tica" que, de fato, controla o país, ou das diferentes "comunidades" re- desejo de mudan9a.
gionais, religiosas etc. que o compóem), esses "lobbies" se enfrentam Pelo voto, é claro. Mas também por outros tipos de acáo, clássicos
constantemente. Mas tém um traco comum: cada um deles tende, (greve, desobediencia civil etc.) ou a serem inventados.
abertamente, a confiscar para seu proveito o "interesse geral". Ou seja, Isso nao é fácil, porque o "simples" cidadáo, no seu "modesto" ni-
a dominar o poder público, a fiín de dirigi-lo para o sentido que Ihe vel, parece ainda mais convencido do que o político "profissional" da
convém. inutilidade de toda acáo.
Por outro lado, os políticos estáo cada vez mais preocupados com Assim, para fazer com que o cidadáo mudasse de opiniáo, seria ne-
sua imagem (pelo menos ñas situacóes em que dependem do sufragio cessário comecar por redefinir a cidadania.
universal). Ora, essa imagem é forjada pela mídia, que vive, por sua Redefinir a cidadania significa:
vez, sob a tirania do "índice de audiencia", que os leva a invadir, cada • primeiro, repetir que esta nao é um "brinquedo", mas urna dimen-
dia mais, a vida privada dos homens públicos. A política é apenas, nes- sao fundamental, provavelmente a dimensáo mais fundamental, mais
sas condicóes, urna forma de "espetáculo" (como anunciou, ja em intensa da existencia humana, na medida em que "viver" quer dizer,
1967, Guy Debord) e o político um simples ator em um "video game". antes de tudo, "viver junto", "viver com", compartilhar o espado de
O que ele faz tém muito menos importancia do que aquilo que os te- urna "cidade" comum;
lespectadores acreditam que ele fez. E mais aínda porque as "crencas" • depois, mostrar a realidade dos progressos conquistados, nos últi-
destes nao se refletem sementé, de lempos em tempos, nos resultados mos cinqüenta anos, no campo político (defesa dos direitos individu-
eleitorais, mas, de modo permanente, nos das "pesquisas" — que do- áis, repressao dos crimes de Estado, moralizacao das relacóes
minam, doravante, a vida pública. internacionais etc.), progressos que nao teriam sido possíveis sem a
Assim, encurralado entre "lobbies" e mídia, o político "profíssio- formidável pressáo exercida pela opiniáo pública dos países livres;
nal", condenado a suportar o peso de urna fadiga sobre-humana, tém • enfim, enfatizar que as vicissitudes inerentes a toda acao política
cada vez mais tendencia a cruzar os bracos, ou a "surfar" na onda, sa- nao devem nos desanimar de prosseguir a nossa a^ao, nem fazer-nos
bendo que isso nao durará para sempre. preferir á felicidade das geracóes futuras (pelas quais somos responsá-
Evidentemente, nao é assim que ele retomará o controle da situacáo. veis) o nosso conforto presente.
190 A FILOSOFÍA POLÍTICA HOJE

Na verdade, o que é o nosso "conforto presente" senao um outro


nome ou um outro rosto para esse gosto masoquista pela morte, esse
fatalismo desiludido que nos domina as vezes — essa "servidáo volun-
taria", á qual nos é, decididamente, tao difícil de escapar?4 EPÍLOGO

Volto, pela última vez, á pergunta feita no capítulo precedente: quem


tem razao? Seria o filósofo que afirma que tudo poderia ser diferente,
ou o político que afirma o contrario?
Minha resposta é: o cidadáo, é claro. Porque so ele sabe, com um
saber incontestável, o que deveria, o que poderia mudar. E so ele pode
fazer com que, finalmente, "as coisas sejam diferentes".
Entretanto, eu nao desejaria que esse apelo a urna renovacáo da
"cidadania" fosse ouvido, no contexto atual, como um convite banal a
voltar aos valores "republicanos" — os do "melhor regime" aristotéli-
co (politeia), ou os da República romana, que ainda celebravam, dois
mil anos depois, os "pais fundadores" da na^áo americana, reunidos
em torno de "Publius", o autor imaginario dos Federalist Papers.
Sem negar a parte de saudade desses lempos idos que todo elogio
da "cidadania" comporta, nem contestar que o amor pela "coisa pú-
blica" seja urna louvável "virtude", eu preferiría entretanto que se ou-
visse outra coisa.
Primeiramente, um apelo á "amizade".
Virtude cardinal para Sócrates, Platao, Aristóteles, La Boétie, Pier-
re Clastres e Michael Sandel, virtude "filosófica" por excelencia, aphi-
lia é também urna virtude política. Ela é o laco que deveria unir
"cidadáos" preocupados em manter entre si, apesar de suas divergen-
cias, urna especie de "conversacáo" permanente. Em outros termos, é
porque o amigo deve se preocupar com o "bem" do seu amigo que os
amigos devem se preocupar, juntos, em fazer progredir o seu "bem"
comum—e até em "conspirar", quando for preciso, ou seja, quando o
interesse da cidade exigir.
Depois, um apelo á "imaginacao". Mais do que nunca, o espirito
cívico deve abandonar aos seus velhos esquemas a fím de estar pronto
a acolher o que está para chegar — e que, por sorte, ainda nao tem

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