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Amazônia: Pescadores

contam histórias
Ministério do Meio Ambiente – MMA
Marina Silva

Secretaria de Coordenação da Amazônia


Muriel Saragoussi

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis


Marcus Luiz Barroso Barros

Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil


Alberto Carlos Lourenço Pereira

Diretoria de Fauna e Recursos Pesqueiros


Rômulo José Fernandes Barreto Mello

Coordenação Geral de Gestão de Recursos Pesqueiros


José Dias Neto

Projeto Manejo dos Recursos Naturais da Várzea – ProVárzea/Ibama


Coordenador: Mauro Luis Ruffino
Gerente Executivo: Benedito A. Pessoa Reis
Perito: Darren Andrew Evans (DFID)
Perito: Fery Shodjai (GTZ)
Assessoria de Comunicação: Aparecida Heiras, Manuel da Silva Lima, Marinês da Fonseca Ferreira

Equipe ProVárzea/Ibama
Adriana Melo, Albermaya Xabregas, Aparecida Heiras, Anselmo de Oliveira, Alzenilson Aquino,
Antônia Barroso, César Teixeira, Cleucilene Nery, Emerson Soares, Evandro Câmara, Flávio Bocarde, Joelcia Figueiredo,
Kate Anne de Souza, Luiz Alexandre Voss, Manuel Lima, Marcelo Derzi, Marcelo Parise, Marcelo Raseira, Márcia Escóssio,
Márcio Aguiar, Maria Clara Silva-Forsberg, Marinês Ferreira, Mário Thomé, Natália Lima, Núbia Gonzaga,
Raimunda Queiroz, Ricardo Lima, Rosilene Bezerra, Simone Fonseca, Tatianna Silva, Tatiane dos Santos,
Urbano Lopes, Willer Hermeto Almeida

Financiadores
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Amazônia: Pescadores
contam histórias

Santarém - PA
2004
Copyright © 2004 – ProVárzea/Ibama

Coordenação editorial Mauro Ruffino

Edição de texto Thais Helena Medeiros

Revisão Regina Glória Pinheiro Cerdeira


Hélcio Amaral de Sousa
Paulo Roberto Spósito de Oliveira - Magnólio
Vinícius Xavier Zammataro
Ilustrações Eduardo Clemente - Santarém-PA

Fotos Thais Helena Medeiros

Foto da capa Arquivo PróVárzea/Ibama/L.C. Marigo

Projeto gráfico e Editoração eletrônica Fábio Martins

Revisão de texto Peta Teixeira


Marinês Ferreira

Foto da capa: Pirarucu (Arapaima gigas).

Catalogação na Fonte
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

G146a Galúcio, Dorenilce Maria Rodrigues.


Amazônia: Pescadores contam histórias / Dorenilce Maria Rdorigues
Galúcio. – Manaus: Ibama/Provárzea, 2004.
132p. : il.; 29 cm. – (Coleção Retrato Regional)
ISBN 85-7300-178-X
1. Literatura. 2. Pesca. 3. Conservação da natureza. I. Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. II.
Projeto Manejo dos Recursos Naturais da Várzea – Provárzea. III. Título.
IV. Coleção.
CDU (2.ed.) 502

É proibida a reprodução total ou parcial deste livro. Todos os direitos reservado à autora.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Agradecimentos

M Meus agradecimentos a todos, por que não dizer, co-autores deste livro. Sim,
porque sem a colaboração muito especial desses pescadores e pescadoras maravilho-
sos e suas histórias sem limites, esta obra não existiria! Pescadores(as), pilotos(as),
parceiros(as)...
Região Cidade, Santarém: Esaltino dos Santos Costa (Quebra-Gelo), Manuel
Jorge Pereira dos Santos, Jonas Ferreira, Benedito Monteiro Galúcio, Moacir O. Ferreira
– comunidade do Juá, rio Tapajós: Raimundo Nonato de Sousa, Maria Ornelinda Cae-
tano, Raimunda dos Santos Ferreira, José Maria Gomes (Pelé) – comunidade do
Cucurunã, rio Tapajós: Lorivaldo Rebelo Miranda, Wilson Sousa dos Santos – Comércio
de Peixe Tablado : Sebastião de Sousa, Raimundo Ferreira Pereira
5

– comunidade do Maracanã, rio Tapajós: Maria Luiza Pinto Sousa, Reginaldo Costa
Correia, Acyr Correia Amaral, Carlos Augusto dos Santos Moraes, Domingos Adalberto
Ribeiro dos Reis.
Região do Maicá, várzea do rio Amazonas: – comunidade de Urumanduba/
Mararu: Renato dos Santos Ribeiro, Eurides dos Santos Pereira – comunidade de Bom
Jardim: Dileudo Guimarães dos Santos.
Região do Lago Grande do Curuai , várzea do rio Amazonas, Vila Curuai: Enéias
da Silva Nogueira, Emerson Feleó, Lourenço de Sousa Rodrigues, Sebastião Aires Fari-
as, Sérgio Duval dos Santos Pereira (o Basinho), Sansão Bento Lourido, Pedro Figueira
de Sousa, Rita Maria Silva de Sousa – comunidade do Inanu: Valdemir da Silva, Raimundo
Nonato de Sousa Galúcio, José Edimilson Galúcio Rodrigues, Olavo Afonso Galúcio
Rodrigues, Miguel Galúcio, Adenil Rodrigues de Sousa, Raimundo Galúcio, Rainério
Batista, José Monteiro Guimarães, Dorinelson Lopes Barbosa, Raimundo Ester Sousa
Sobrinho – comunidade de Torrão do Papa Terra: Maria Lázara Reis dos Santos, Jocelina
Rodrigues de Licata, Genildo, Edivaldo Campos Licata, Wilson Mota de Sousa – comu-
nidade de São Jorge: Haroldo Viana dos Santos, Delmas Rocha, Maria do Carmo,
Pedro Santos do Amaral, Renato Santo, Manuel Idalécio Borge Rocha, Raimunda Duarte
dos Santos, Hélio Rodrigues Pereira dos Santos – comunidade de Uruari: José Raimundo
de Sousa, Silvio Nogueira do Carmo – comunidade de Peré Boa Vista: Manuel Pedroso
de Lima Ferreira, Valci Sousa, Nestor Mota Leal, Maria Nanci Castro Leal – comunidade
de Peré Salvação: Raimundo Nicolino de Sousa – comunidade de Jacaré: Edmundo
Branches Prata – comunidade de Acutireça: Vilfredo Soares, Maria Ester Gonçalves,
Francisca Gonçalves – comunidade de Ajamuri: José Caldeira, Tobias Figueira da Costa
Filho – comunidade de Cururú: Aureliano Branches.
Amazônia: Pescadores contam histórias

Região do Ituqui, várzea do rio Amazonas: – comunidade de São José: Vera


Lúcia dos Santos, José Luis dos Santos, Inaíde Silva dos Santos – comunidade de
Aracampina: José Orivaldo Silva Coelho – comunidade de Fé em Deus I: Dilza Maria
6 Ferreira dos Santos, Antonio Osmar de Oliveira Didiet.
Região do Aritapera, várzea do rio Amazonas: – comunidade Ilha de São Miguel:
José Eli Rocha Sá.
Região do Tapará, várzea do rio Amazonas: Manuel Jorge Pereira dos Santos –
comunidade Costa do Tapará: Manuel Pereira.
Região do Urucurituba, várzea do rio Amazonas: – comunidade Fátima do
Urucurituba: Eduardo José da Costa Maia, Haroldo Santos, Aílton José, Erivan Ademar
Santos – comunidade de Saracura: Aldo Santos.
Vila Barbosa, rio Amazonas, Óbidos: João Antonio Barbosa, Divair Barbosa
Ramos, Evaldo Venâncio, Emerson Marinho Barbosa, Manuel Barbosa, Maria das Gra-
ças Magno, Juciê Perdeira Venâncio, Papão.
A Raimunda Rilza de Sousa e Jorge Joaquim Costa da Silva por terem me aju-
dado na primeira versão do projeto deste livro.
A Laurimar Leal, pela participação devotada na cultura santarena.
Aos companheiros de viagens Rionaldo, Isaac, Dinho e Manan.
Também agradeço:
Roberto Cardoso Marinho e a todos os diretores da Colônia de Pescadores Z-20.
Sônia Maria Leão Pereira/ Associação das Mulheres Pescadoras, Artesãs e
Agricultoras (Amupaa)
Marcelo Apel e Alcilene Cardoso/ Instituto de Pesquisa da Amazônia (Ipam)
A meus filhos Vera Claudia, Kelly, Elton, George e Aleandro Afonso.
Meu esposo Benedito Monteiro Galúcio.
Meus irmãos José Edimilson, Dorilda, Dorina, Antonio Matias, Lorença, Olavo
Afonso e minha cunhada Maria Dacilene Farias Rodrigues e à Firma dos Santos Rodrigues,
de todo meu coração!
Fery Shodjai, a você meu muito obrigada por ter acreditado nessa idéia e ter
me subsidiado para realizá-la.
A minha Senhora Mãe D’Água e Protetora Divina.
A meu São Lázaro, a meu Deus!
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Sumário

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
7
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
A autora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Dedicatória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Meio ambiente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Os pescadores(as) falam da pesca no passado e nos dias de hoje . . . . . . . . . . . . 17
Arreios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
As doenças do pescador(a) adquiridas na pesca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
A salga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
A farinha de piracuí . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
A mulher amazônida e sua relação com a pesca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .36
Contadores de histórias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
Os pescadores(as) e suas regiões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
Uma região: Lago Grande do Curuai . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
Outra região: igarapé do Irurá e Igarapezinho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
Mapiri, tu fostes um encanto! Hoje, ouço teu pranto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Pescadores e suas histórias imortais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70
De boca em boca, a imortalidade continua... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
Três peixes na Amazônia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
Pirarucu, o gigante pré-histórico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83
Jaraqui, o cardume listrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
Peixe-boi, o mamífero aquático . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Como surgiu a Colônia de Pescadores Z-20 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
Núcleo de Base . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
Acordos e Conselhos de Pesca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98
A Colônia que sonhei Uma Colônia, um sonho... uma possível realidade? . . . . 99
O poder da fé e da magia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
Crenças . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
Crendices . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .102
Cobra grande . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
Boto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
Visagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122
Glossário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Apresentação

O O Projeto Manejo dos Recursos Naturais da Várzea - ProVárzea/Ibama é um


projeto do Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil – PPG7,
executado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
- Ibama, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente - MMA e financiado com
recursos do Fundo Fiduciário para a Floresta Tropical - RFT do Banco Mundial, Depar-
tamento do Desenvolvimento Internacional - DFID do Reino Unido, Agência de Coo-
peração Alemã - GTZ, Banco de Reconstrução do Governo Alemão - KfW e o Governo
Brasileiro.
O objetivo do ProVárzea/Ibama é estabelecer bases científica, técnica e política
9

para a conservação e o manejo ambiental e socialmente sustentável dos recursos na-


turais da várzea, na calha central da bacia amazônica, com ênfase nos recursos pes-
queiros. Ao fim de sua execução o Projeto prevê que seus resultados tenham influenci-
ado mudanças nas políticas públicas ambientais, além de favorecer o desenvolvimento
de meios de vida sustentáveis e o melhoramento dos sistemas relacionados ao
monitoramento e controle e a promoção de co-gestão em áreas de várzea.
Previsto inicialmente para ter duração de cinco anos (2000-2005), o ProVárzea/
Ibama teve início em julho de 2000 e em função dos seus ótimos resultados foi prorro-
gado até final de 2007. O projeto vem sendo executado em parceria com instituições
governamentais e não-governamentais, organizações pesqueiras e comunitárias.
Para a execução do Projeto, o ProVárzea/Ibama adotou a abordagem dos Mei-
os de Vida Sustentáveis porque é centrada nas pessoas, valoriza o potencial e os recur-
sos das pessoas, é participativa, é holística, vincula micro e macro, é dinâmica e flexível,
é voltada para impactos, é voltada para a sustentabilidade, busca a inclusão social,
reconhece questões de gênero e outras formas de diferença social e reconhece as
relações de poder.
A abordagem é centrada nas pessoas porque o processo é iniciado com a aná-
lise dos meios de vidas delas e da forma como esses meios de vida mudam no decorrer
do tempo. Envolve as pessoas e respeita suas opiniões. Apóia as pessoas para que
alcancem seus próprios objetivos quanto aos seus meios de vida. Valoriza o potencial
e os recursos das pessoas, não observa somente o que falta. Desperta o potencial de
cada um e é participativa porque utiliza metodologias para estimular à participação.
Busca a inclusão social quando promove a melhoria da qualidade de vida dos menos
favorecidos. Promove a redução das desigualdades sociais (gênero, raça, etnia, classe,
idade, orientação sexual, religião, localização geográfica, entre outras). Reconhece e
valoriza as diferenças sociais, combatendo a discriminação. Reconhece questões de
gênero e outras formas de diferença social quando analisa a situação local. Busca a
eqüidade nas relações de gênero. Promove o exercício da cidadania e dos direitos.
A Coleção Retrato Regional busca justamente resgatar e documentar os cinco
recursos utilizados pela abordagem dos Meios de Vida Sustentáveis adotada pelo
ProVárzea/Ibama que são: recursos humanos, como habilidades, conhecimento, edu-
cação, saúde, auto-estima, integridade, ética, fé, esperança, espiritualidade e outros.
Recursos sociais e políticos, como família, amigos, colegas, associações formais e infor-
mais, contatos, sindicato, capacidade de influência, participação, mobilização e ou-
tros. Recursos físicos, como casa, escola, centro de saúde, transporte (público ou pri-
vado), água encanada, eletricidade, meios de comunicação, terreno (propriedade) e
outros. Recursos financeiros, como poupança, salário, crédito, bens com valor de troca
e outros. E, finalmente, recursos naturais, flora, fauna, qualidade do ar, água, solo,
ciclos naturais e outros.
A presente publicação resgata e documenta as histórias de pescador, mas so-
bretudo registra e descreve a cultura e o saber popular amazônico, as lendas, a geo-
grafia, as paisagens, a biodiversidade, as práticas e os meios de vida das pessoas que
vivem na várzea. Documenta a luta pela sobrevivência e o direito à cidadania, as
vulnerabilidades e estresses a que estão sujeitos os habitantes da várzea. Registra a
divisão de trabalho e gênero, as relações de poder, a organização social, os movimen-
tos políticos e as relações institucionais a que estão ligados os pescadores do médio
Amazonas paraense, na região de Santarém.
Mauro Luis Ruffino
Coordenador do ProVárzea/Ibama
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Prefácio

C Contar histórias dos povos da Amazônia é, sobretudo, ouvi-los. Mais do que


isso, vivenciar o habitat, andar nas águas barrentas do grandioso rio Amazonas e sua
várzea, lagos, canais, paranás, igapós e milhares de igarapés e outros rios -como o
Tapajós- que deságuam em seu curso rumo ao Oceano Atlântico.
É também se emocionar com rostos marcados pela luta a céu aberto; tão pare-
cidos uns com os outros, talvez por carregarem a mesma mistura étnica brasileira. É se
envolver pela cultura e comer peixe “amassado” com a mão, subir as palafitas de suas
moradias... É também conviver com pescadores(as).
Neste livro, Dorenilce Galúcio que é pescadora na região de Santarém, baixo
Amazonas e Oeste Paraense, apresenta e organiza histórias de pescadores(as) colhidas
11

em localidades pesqueiras diferenciadas. Grupos sociais que abraçam formas distintas


no linguajar popular, fazendo-nos perceber o quão fragmentado por dialetos é a lín-
gua portuguesa. Assim, de um lago pesqueiro para outro você identifica maneiras,
arreios e peixes distintos num mesmo espaço geográfico.
Aqui como em qualquer lugar do planeta a luta pela terra e pela sobrevivência e o
direito à cidadania se intensificam em função da grandiosidade territorial e dos interesses
políticos e econômicos ligados à Amazônia. Após muitos anos de exploração e domínio
dos que aqui chegaram e chegam, as populações tradicionais têm desencadeado movi-
mentos de base pela manutenção de suas terras de direito e pela Amazônia sustentável.
Falar de pescadores(as) na região de Santarém é falar também da Colônia de
Pescadores Z-20. Entidade que há tempos ampara as lutas e conquistas da categoria.
Hoje, talhada pelas mãos calejadas dos próprios pescadores e pescadoras, incentiva e
apóia de fato a classe que representa.
É em função da Colônia que nasceu este livro. Dorenilce Galúcio foi diretora de
Relações Públicas e Cultura da entidade, nos anos entre 2001 e 2003. Uma das tarefas
estatutárias desse departamento diz que a diretoria tem a missão de registrar e difun-
dir a cultura dos pescadores(as) de sua área de abrangência. Dora quis realizar um
pouco dessa proposta. Idealizou o livro e foi à luta em busca de financiamento para a
produção literária cultural dos pescadores(as). Foi então que lançou a idéia para Fery
Shodjai, coordenador da GTZ, uma agência de coooeração alemã no Brasil através do
ProVárzea/Ibama. Fery acreditou! E aqui estamos anunciando o livro Amazônia: Pesca-
dores contam histórias, o resultado de um contrato de desejos mútuos em propagar a
Amazônia através de seus povos.
Amazônia: Pescadores contam histórias

Dora, você que também é uma guerreira valente e laboriosa articuladora e


pescadora, me mostrou que vida de pescador(a) não é fácil. Como muitos, eu já sabia
que pescador(a) gosta de inventar e aumentar histórias. Mas você me demonstrou que
além dessas histórias (e/ou estórias na grafia passada) os pescadores e pescadoras se
expõem às intempéries amazônidas como nenhum outro profissional, que apesar da
pesada rotina sazonal da várzea, das dificuldades de transporte, educação e saúde que
passam, mostram uma imponente hospitalidade, um carinho inocente natural e curio-
sidade pelas pessoas de fora.
Amazônia: Pescadores contam histórias é uma compilação de encontros e
12 desencontros de uma classe social. Muitos que amam de paixão o que escolheram para
praticar, outros que não aconselham nem para seus filhos. Outros ainda, se instalaram
nas águas e, como piratas, fazem de suas embarcações e da pescaria a razão de viver.
Acompanhar Dorenilce rio acima, rio abaixo, entrevistando os pescadores(as)
por ela selecionados a partir de suas regiões pesqueiras, foi viver um momento muito
especial. Muito além das expectativas que uma matogrossense do sul poderia viver
neste Brasil. A Amazônia nos enlaça por entre seus cipós gigantes assim como somos
seduzidos por seus encantadores povos! Foi uma tarefa bem difícil selecionar as melho-
res histórias, os bons contadores. Pois, todos são edificadores de vida legítima entre a
floresta e as águas amazônicas!
Dora me ofereceu a oportunidade única de conhecer um pouquinho do universo
dos pescadores e pescadoras das regiões pesqueiras da cidade, do Ituqui, do Urucurituba,
Aritapera e Tapará. Todas carregam potentes profissionais e uma beleza natural rara. Mas
foi no Lago Grande do Curuai que eu conheci a arte perspicaz da pesca de um peixe
tinhoso: o pirarucu. Ouvi e transcrevi emocionada, relatos de lendários pescadores em
busca do maior peixe de escama da água doce que se entregaram e se entregam sem
pudor aos perigos reais e mitológicos que habitam as águas. Nomes como o de seu pai,
Olavo Rodrigues, e seus parentes Oscar e Tito Galúcio são perpetuados pelos pescadores(as)
contadores(as) que os respeitam pelos profissionais que foram.
Dora, no início desse projeto, você me disse que este livro era para todos. E para
tal, nós formatamos a estrutura e linguagem pertinentes respeitando o contexto cultural
da região. Eu espero que nessa missão nós tenhamos chegado com sucesso. Espero que
essa literatura expanda as linhas tênues do território da Amazônia. Que seja capaz de
mostrar um pedacinho da cultura santarena pesqueira através de histórias contadas pe-
los próprios pescadores(as).
Amazônia: Pescadores contam histórias ajude a sensibilizar para o quão importan-
te é a preservação e conservação dos recursos naturais e humanos na Amazônia. Que não
só os pescadores e pescadoras necessitam dela, mas todos nós, o planeta Terra!

Thais Helena Medeiros


Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

A autora

13

D Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio, Dora, nasceu em 1o de janeiro de 1963, na


comunidade do Inanu, região do Lago Grande do Curuai, município de Santarém. É
filha de Olavo Rodrigues (†1999) e Pureza Galúcio Rodrigues (†1974). Saiu do Inanu
com 14 anos para estudar em Santarém. Em 1980, casou-se com Benedito Monteiro
Galúcio com quem tem quatro filhos.
Desde 84, é defensora dos di-
reitos do cidadão atuando como re-
presentante e fundadora de associa-
ções de bairros onde efetivou parce-
rias com o poder público municipal,
poder judiciário e iniciativas privadas.
Continuou os trabalhos comunitári-
os na igreja católica através da Coor-
denação Pastoral da comunidade São
Sebastião.
Como pescadora, apoiou as
lutas em defesa do lago do Papucu
em conjunto com a escola munici-
pal e pescadores(as), incluindo o re-
florestamento. Além de colaborar na
preservação e conservação dos lagos
Amazônia: Pescadores contam histórias

do Mapiri e Juá. Foi uma grande articuladora na construção da torre de observação


situada na praia do Maracanã.
Em 94, associou-se à Colônia de Pescadores Z-20, onde trabalhou como Coor-
denadora do Núcleo de Base do bairro do Maracanã, período entre 1997 e 2000.
Apoiou a organização dos pescadores(as) das comunidades do Inanu e Torrão do Papa
Terra, no Lago Grande do Curuai. Desse trabalho, originaram-se dois Núcleos de Base.
Em 2001, assumiu o cargo de diretora de Relações Públicas e Cultura da Colô-
nia de Pescadores Z-20, permanecendo até 2003. Atualmente, é presidente do Conse-
lho Fiscal do Movimento dos Pescadores do Baixo Amazonas (Mopebam).
14
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Dedicatória

15

Aos pescadores e pescadoras da Colônia de Pescadores Z-20,


pela vida corajosa, cultura e permanência em seus locais de origem!
Para os povos da Amazônia, pela valentia e perseverança na luta
pelo direito aos recursos naturais da maior floresta tropical do planeta!
Em especial ao meu pai Olavo e minha mãe Pureza, em memória.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Meio ambiente

P
Os pescadores(as) falam da pesca no passado e nos dias de hoje

Pescador(a) tem fama de inventar histórias sobre sua pesca. Ele sempre pega
peixes muito grandes, mesmo se o peixe for um simples charutinho. Isso é uma meia
verdade. Sim, porque existem histórias e estórias na profissão.
Na pescaria, passamos a maioria do tempo à espera do peixe, dias, semanas
fora de casa. As noites são recheadas de conversas para amenizar a tristeza, a solidão,
a saudade da família.
Quem sabe, não é daí que vem a nossa fama de contadores de histórias? Pois
é, vamos contar muitas histórias, um pouco do resgate cultural dessa profissão vital na
Amazônia, contada pelos próprios pescadores(as) que fazem da pesca o principal eixo
de sobrevivência nos rios abundantes da região.
17

Eu sou pescadora e posso dizer que essa profissão é muito puxada. Debaixo do
sol e da chuva, o corpo é marcado. O preço do pescado nunca é o merecido. As
distâncias são longas, o combustível é caro, o gelo carece de acomodação específica e
ainda por cima tem o atravessador no meio do caminho.
Conversa entre pescadores(as):
—Você pesca?
— Não, eu trabalho...
Como outra profissão qualquer, o pescador(a) amazônida já tem sua categoria
reconhecida legalmente e é amparado(a) através das Colônias de Pescadores(as). Mes-
mo assim, nem todos os profissionais da pesca estão protegidos quanto a esses direi-
tos, além de, ainda sofrermos a discriminação.
Na Amazônia, é tradição começarmos na prática da pesca por influência de
nossos pais. Bem sabe Benedito Monteiro, nascido na comunidade do Inanu, Lago
Grande do Curuai, 54 anos, que viveu desde menino e vive ainda a exercício da pesca-
ria. Ele me disse que a criança do interior ia para o rio desde que desse conta de remar
na popa da canoa, não importava a idade. Isso se dá porque os pais que já se encon-
tram cansados e sem parceiros passam essa responsabilidade para seus pequenos fi-
lhos, não importa se é homem ou mulher.
Amazônia: Pescadores contam histórias

Apesar dos pais atualmente incentivarem seus filhos a irem para a escola, surpre-
ende-me Aleandro Afonso Rodrigues Farias, 7 anos, morador da comunidade do Inanu,
no Lago Grande do Curuai. Uma coisa muito importante ele sabe: dividir seu tempo
entre a pescaria e a escola. Aleandro não precisa pescar como tantas outras crianças
que, infelizmente, acumulam essa função mais a responsabilidade de cuidar de seus
irmãos. Mesmo pequeno Aleandro já revela um potencial de pescador-contador de
histórias que carrega em seu sangue.
A pescadora Raimunda Duarte dos Santos, 35 anos, lá da comunidade de São
Jorge, no Lago Grande do Curuai, também aprendeu a arte da pesca com seu pai que
18 hoje não pode mais exercer a atividade. Assim, Raimunda assumiu a economia da
casa, inclusive com a pesca mais difícil para uma mulher, a tarrafa! “Eu entendo tudo
de pescaria eu entendo tudo. Sei tarrafiá, sei pescá de malhadeira, sei pescá de anzol.
Sei tudo! É normal pescá de malhadeira é... anzol! Prá mim é. Prá mim é normal. Por-
que se eu não soubesse isso... Como agora, né? Meu pai não pode pescá... eu comigo
não tem essa não!”
No passado, os filhos não tinham muitas opções (como ainda acontece até hoje)
e acabavam sendo pescadores(as) como seus pais. Isso se dava em decorrência do isola-
mento das comunidades ribeirinhas tradicionais na Amazônia. Atualmente, apesar de
poderem contar com um suporte – ainda que precário – nas áreas de transporte, saúde
e educação (precários ainda), os amazônidas incentivam seus filhos a se deslocarem para
os centros urbanos em busca de melhoria na condição de vida futura.
Jorge Raimundo de Sousa, comunidade do Uruari, Lago Grande do Curuai, me
falou sobre sua vida de pescador. “Prá mim é porque eu acho que o... quando a pessoa
se dedica num ramo desse, né? Acho que ele vem com aquele dom, né? Prá se que...
que não era prá eu sê pescador que meu pai tinha com quê, né? Só que todo tempo
eu tava na pescaria. E tô na pescaria! Estudei, mas poco, só a terceira série. (...) Essa
época aqui, já os pais querem o estudo prus filho, né? Naquele tempo, o pai queria só
que o filho trabalhasse. O que aconteceu comigo foi isso! (...) É... agora... agora eu
não quero a minha profissão... que meus filhos... mexe, pros meu filho.”
O dom que o Jorge se refere, para muitos pescadores não é mais alternativa de
futuro para seus filhos, como ele mesmo disse. Lourenço de Sousa Rodrigues, 57 anos,
da comunidade de Ajamuri no Lago Grande do Curuai, conta também que “até que se
eu pudesse não pescar mais era melhor. Mas, era melhor. Mas só que ainda não sou
aposentado, eu preciso pescar prá sobreviver, né? E chega lá não pega o peixe. Aí,
quase que não dá prá nada. As veze só tira o dinheiro... aí não adianta pescar. Pescar é
prá perder. Num tá boa a pescaria não!”
Confiando na minha profissão, apresento o Sebastião Aires de Sousa, 90 anos
de Lago Grande do Curuai. Um grande contador de histórias, sentadinho em sua rede,
me expôs com muita disposição ainda a sua vida. Vida de um pescador que pulsa em
sua sabedoria.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

“Olha, eu pescava tambaqui! Quando é que eu ia puxar essas pescadinha um


pouco aqui. Puxava era tambaquizão! Naquele tempo, senhora não viu, criava capim,
primeiramente era muriruzar aí, que tapava por esse Lago Grande. Depois desse mureru,
deu de grelá cada pasto e nós, a gente ia parar na boca do lago. Se a senhora saía aí,
quando chegava a tardinha, assim quando o sol esquentava, tambaqui já tava chupando!
Pegava uns cinco e chega. (...) Surubim na beira, esse tempo passava a mão na minha
haste, ia andando pela praia e o bichão veio esparramado... E eu... toma! Pirarucu
deixava ele buiá duas vez. Se ele boi-
asse só num lugar, quando ele pesteja
ele tava na canoa. Era difícil errá. Ma- 19
tei bem pirarucu. Olha, essa (apontou
para sua esposa) não deixa minti. Olha,
contava mentira nada! Contava foi ver-
dade. Desde que eu tirei ela do pai, eu
não roubei, eu tirei ela do pai dela, ela
já comeu bem peixe. E hoje em dia,
nós já, nós tamo comendo acari. Pes-
quei até com 79 anos, mas gostava...
surubim, pirarucu e cujuba. Senhora
conhece cujuba, nunca viu? (referin-
do-se a autora) Pois é, tem aquelas
coisa do lado, aquelas escamazinha.
Cujuba... pirarucu, surubim, tambaqui.
Comecei no jacaré e depois dei a ma-
tar jacaré, minha irmã.”
Sebastião me descreveu a ri-
queza que foi o nosso Lago Grande
do Curuai. De um modo geral, em to-
das as regiões os pescadores(as) falam
da escassez dos recursos naturais de
O trato do peixe no jirau.
suas localidades.
Eu acredito que a Amazônia só
vai dar certo a partir do desenvolvi-
mento sustentável. E que é através de seus povos, povos da floresta, que isso poderá
se concretizar. Temos o maior potencial de água doce do planeta, e uma variedade
intocada de plantas e animais que ainda não foram descobertos. Aqui, podem estar
ocultos ainda remédios e vacinas para tantas enfermidades mortais do ser humano.
No conhecimento popular reside muita sabedoria. E o que os amazônidas es-
tão fazendo com isso? Estamos muitas vezes importando conhecimento para cuidar
de nossa saúde e alimentação. É possível aliar nossos conhecimentos tradicionais à
tecnologia do mundo.
Amazônia: Pescadores contam histórias

Desta forma, estaríamos também mantendo nossas culturas. Sim, nosso lega-
do cultural está ameaçado como o peixe-boi, o pirarucu e tantas outras espécies da
fauna e da flora na Amazônia.
Como amazônida, gostaria muito que os governos federal, estadual e muni-
cipal voltassem mais seus olhares para a riqueza florestal e humana existente na
Amazônia. Como nossos povos vão defender suas riquezas naturais se não tiverem
acesso às novas tecnologias? O conhecimento científico, gerado pelas pesquisas,
ainda não chega com eficiência aos transformadores de fato dos recursos naturais. A
reciclagem ambiental do conhecimento tradicional através das pesquisas é vital para
20 a continuação da Floresta Tropical da Amazônia. Como é possível falar em preserva-
ção e conservação, havendo uma disponibilidade precária nas áreas de educação,
saúde e saneamento básico?
Não preciso, aqui, falar muito sobre os problemas ambientais que o planeta Terra
está sofrendo através da ação descontrolada dos seres humanos. Pois, isso está bem
representado através da mídia e, para os amazônidas também refletido no seu dia-a-dia.

Comendo peixe amassado com a mão.


Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Foi Osmar Didiet que me falou sobre o “iaiú”. Na época em que o rio sobe, a
água fresca das chuvas (natural) se encontra com as águas dos lagos e canais represa-
dos (choca). Para Didiet, a diferença de temperaturas faz com que os peixes se assus-
tem com o choque. Aí, eles procuram a superfície e ficam de cabeça de fora. Se não
chover bastante para destemperar, os peixes podem até morrer. Eles denominam esse
fenômeno de “uaiú” ou “iaiú”.
Onde o fenômeno acontece, os peixes ficam disponíveis para serem flechados
com facilidade pelos pescadores(as). Todos os peixes que estão nesses locais vão à tona.
Só o pirarucu que ainda não veio à superfície, e o acari. Mas os peixes como a pirapitinga,
o tambaqui, o carauaçu, a matrinchã, o reque-reque, a sardinha, bacu, aracu, pacu, 21
curimatã, o tucunaré também, esses ficam de “iaiú”. Ficam como se estivessem de porre,
bêbados, também chamados de peixes de beiço inchado.
Osmar ainda me disse que isso se dá pelas transformações oriundas da ação do
ser humano no meio ambiente. O “iaiú” se manifesta quase todos os anos em certos
canais e lagos na região do Ituqui.

Vendedores de peixe na Feira Tablado, Santarém.


Amazônia: Pescadores contam histórias

22

A pescaria está refletida por inteiro na vida do pescador.

Miguel Galúcio, 54 anos, pescador da comunidade do Inanu, Lago Grande do


Curuai também relata a exuberância da pesca alguns anos atrás. “Uma vez, nós mora-
va na colônia e aí descemo de lá com papai. Fumo pescá aqui numa... ponta que tem
aí chamada Portão. Nós chegamo lá dez horas da manhã e nós não tinhamos nada. Aí,
fomo numa praia lá. Vê, nesse tempo... surubim deitado na praia. Prá encurtá a con-
versa, chegamo lá tinha surubim que a senhora nem faz uma idéia como era que
estava estivado. Ele foi escolhendo só. Picamo onze, só daquele que não crescia mais.
Aí, pronto, era suficiente. Mas, aí como não dava prá gente voltá... que era tarde e aí
ele passô a cuidá. Quando terminô de cuidá, isso era umas cinco horas, mas naquele
tempo tudo era mais fácil, né? Cinco hora da tarde, e fomo colocá os espinhel. Quan-
do foi no outro dia, umas quatro hora, levantamos, fumo ver o espinhel tinha doze
tambaqui. Era muito bom, aquele tempo...”
Com todas as variações da vida marítima – do pescador(a) que está embarcado
e armado para a pesca – e das transformações da natureza, do trabalho árduo, e nem
sempre bem recompensado, não tira do profissional da pesca a paixão pela arte. O
que o faz viver como um observador atento. Ezaltino dos Santos Costa (o Quebra-
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Gelo), famoso pescador de charuto na praia do Maracanã, me disse que “pescador


tem que ser inteligente. Conhecer a natureza da profissão. A maré, o melhor porto,
qual é o tipo da água que o peixe desejado gosta, o tipo da rede que o peixe não
sente, como colocar a rede que ele não sente.”
Atento na maré, na lua, no conhecimento das variedades de peixes. Como são
eles e o que comem, como bóiam, a desova e todas as especificações de uma profissão
como qualquer outra! Como bem disse o pescador do bairro do Maracanã, Carlos
Augusto dos Santos Moraes, “pescaria não é para todos, pois só é pescador quem
agüenta o trampo. Pescar não é esporte, mas sim profissão que às vezes ninguém dá
valor. Eu já sou pescador há 21 anos, não me arrependo, mas gostaria de ter outra 23
profissão menos estressante.”
José Caldeira, da comunidade de Ajamuri, no Lago Grande do Curuai, ressalta
a vida do pescador com um pouco de amargura, mas muita paixão. “Um dia a gente tá
bom, tá bem na pescaria. Outro dia, a gente tá embaixo de temporal, chuva, relâmpa-
go. Uma hora por cima d’água, por baixo de água (...). É um trabalho meio perturba-
do, mas é divertido. Na hora da pescaria, o cidadão come bem, come assado, come
cozido, o que ele escolhe. Uma hora ele é puxado pelo curto, uma hora ele passa a
noite inteira n’água cuidando da embarcação. Uma hora dá dinheiro, perde arreio...
Arreio na flor d’água. Agora, vai lá no fundo prá pegá peixe. Os peixe estão lá no
fundo. No passado, o peixe era na superfície.”
Tem muito pescador descrente da profissão. Tem muito pescador(a) que não
deseja nem para seus filhos essa prática. Assim como têm grandes amantes da pescaria
ainda. Eu vejo que é possível ainda sermos pescadores(as) e vivermos dignamente da
pesca. Futuramente vamos ter de viver dos lagos manejados, da criação de espécies
como o pirarucu, tambaqui e o tucunaré. Peixes que estão ameaçados, mas que por
outro lado bastante requisitados pelo mercado de consumo.
Na Amazônia, já existem experiências nesse sentido. O foco agora é replicar, pois
somente assim, esses trabalhos estarão abertos para todos. Mesmo em Santarém, ações
ainda tímidas já estão sendo empreendidas. O que me parece é que as informações sobre
linhas de créditos governamentais e não-governamentais não chegam às bases de fato.
E quando chegam, os pescadores(as) não tem amparo logístico e nem técnico
para desenvolverem as ações de incremento e fomento do estado pesqueiro em suas
localidades. Temos como fazer acontecer as mudanças. Para nos tornarmos “fazendei-
ros” da pesca é necessário buscarmos mobilização e organização comunitárias através
de projetos. Parcerias são fundamentais!

Arreios

As mudanças na pesca têm origem em vários acontecimentos. Podemos dizer


que, no passado, quando os rios e lagos amazônidas eram abundantes de pescado, a
Amazônia: Pescadores contam histórias

pesca de subsistência era a mais praticada. Benedito Monteiro lembrou que antes dos
barcos a motores se popularizarem na região, “o meio de transporte era a canoa à
vela. Do Lago Grande, comunidade do Inanu, prá cá, que hoje se faz em média quatro
horas, naquele tempo se fazia em um dia ou dois, na baixa. Na subida, dependia do
vento.” A cobertura dessas canoas grandes e possantes, onde cabiam até trinta paneiros
de farinha mais algumas pessoas, eram feitas de palha. O japá é um tecido de palha
forrado com sororoca (uma bananeira selvagem).
O japá era um complemento da tolda. Osmar Didiet, comunidade de Fé em
Deus I, região do Ituqui me explicou que “para montar o japá você cortava e você
24 forrava. Você fazia o teçume da primeira camada, depois fazia o teçume da outra
camada. Aí, você colocava as palhas de sororoca por dentro, aí que você jogava a
outra camada e fechava. Aí, você apertava esse teçume de palha em cima dos arco de
cipó. (...) Você ia amarrando essas palha tecida em cima desses arco. Isso aí servia prá
quê? Prá você dormi, o pescador dormi debaixo dessa tolda. Quando era em número de
dois, o outro colocava o japá por baixo da tolda e ficava dormindo... um dormia na popa
da canoa, e o outro na parte da proa da canoa, certo? E armazenava o peixe também lá.
Só que não dava prá trazê grande quantidade, né? “

O bote ou a canoa (feita de madeira e movidas à vela ou no remo) é a casa do


homem que trabalha nas águas. Café, água, sal, farinha. Nas paragens de pescaria, é
na canoa ou em redes nas embarcações que o pescador(a) descansa. Lá não pode
faltar a cuia, é com ela que ele se livrará do naufrágio. O remo ou a vela, que o faz
deslizar à procura de paragens pesqueiras. A faca, que ele vai cuidar do peixe, se defen-
der, migar o tabaco. O uru é o lugar onde se guardam o fósforo, o tabaco e o papelinho,
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

a pinga (que geralmente não falta na pescaria), a lanterna e até a roupa para não
molhar na chuva. Também servia – e servem ainda – para o pescador(a) sentar na
popa da canoa.
Os arreios dessa pescaria eram o espinhel, a tarrafa, a garateia, o arpão, o arco e
flecha e a zagaia. Ainda existem pescadores(as) que utilizam esses arreios, que o fabri-
cam, tecem suas redes, cuidam de seus arpões, limpam suas canoa e botes. E, sobretu-
do, tratam do mal-olhado que pode levá-los a panemice, falta de sabedoria na pesca.
Lorivaldo Rebelo Miranda é aposentado pela Colônia de Pescadores Z-20 e
morador do Cucurunã, mas pescador do lago do Juá. Ainda hoje, ele anda uma hora
para pescar no lago e me contou que o “Juá está com uma diferença muito grande. 25
Porque naquele tempo, o que tinha de... de material prá gente pescá, que a gente
achava que já estava nos prejudicando só a lanterna de carboreto, né? E... mas não
tinha tanta malhadeira, não tinha negócio da bomba, arrastão essas coisas.
A natureza chega a ser bondosa com o ser humano. Mas, assim mesmo, o lago
do Juá ainda tem peixe, né? Bastante peixe. Pega todo tipo de peixe, curimatá, aracu,
jutuara, tucunaré. Ainda tem peixe, a gente nem
conta, tem peixe.
Hoje em dia, há a invasão de tipo de pesca.
Como nós temo o arrastão de noite. Não é toda
noite que a gente tá pescando. Quando é noutro
dia que a gente vai pescá a gente percebe que hou-
ve arrastão no lago. A pescaria de flechá no fundo
com aquela máscara, aí também invade muito.”
Eurides dos Santos Pereira, 73 anos, pes-
cador da região do Maicá, e morador do
Urumanduba, também fez um breve relato de sua
região. “O pescador, existe também esse negócio
de arrastão, tá deixando o coração... quase infarta.
Ali prá baixo, daqui prá baixo existia muito pirarucu.
Hoje em dia, no inverno, você não vê mais pirarucu
por aqui. Eu matava pirarucu aqui. Agora, não vê
mais pirarucu. Por causa de quê? Quando tem
pirarucu lá nu... ali no Jinitatuba, longe... muito
arrastão, sabe, ele puxa o peixe. O peixe que pula
do arrastão, ele não volta mais ali. E o peixe que
volta é mesmo que nós três aqui: — Fulano, não
vai mais prá lá que o negócio lá... perigoso!”
E continuou... “ Era na frente da cidade, era
aqui nesse lago... ia até o poção... tambaqui,
tucunaré... Nessa idade que eu comecei a pescar eu... A canoa, a cuia e o uru.
Amazônia: Pescadores contam histórias

esse igarapé aqui era muito farto. Mui-


to peixe. Esse Vira Sebo aqui, a gente
jogava tarrafa, tucunaré pulava. Eu di-
zia assim: — Olha esse aí não vai dar
certo. É isso que está acontecendo
hoje na nossa comunidade. Então, eu
espero que as pessoas entenda isso.”
Renato dos Santos Ribeiro é
companheiro de Eurides e falou so-
26 bre tempos passados. Ele gostou
muito de “pescá o aracu e o
tambaqui porque é mais fácil. Olha,
eu ia pescar, eu deixava minha
malhadeira n´água e vinha prá casa.
E quando ia olhá, o menos tambaqui
que eu pegava todo dia era vinte. O
menos que eu pegava. Eu fazia uma
caixa grande (de madeira) e deixava
o peixe na caixa e deixava lá no fun-
do e trazia só prá comê. Aracu, eu ia
botá minha malhadeira e o menos
que eu pegava era treze, quinze cam-
bada. Todo santo dia, e só colocava
Arreios do pescador artesanal de subsistência. uma vez. Aí eu pegava aquela quan-
tia e vinha embora prá casa. Vendia
o peixe. Eu gostava de pescar, sempre gostava de pescar. Sempre fui pescador.”
Ele conta com a sabedoria do profissional das águas sobre as ovas. “Você acre-
dita que o cará, ele desova duas, três vezes no ano? Você acredita nisso? O peixe, ele
desovar, ele acompanha a natureza. Se a curimatá, a branquinha, aquele cascudo e
aracu ele desova conforme a chuva. Se a chuva for atrasada, ele não desova não! Ele só
desova quando vai chover. Quando a chuva é forte, mesmo que ele vai desovar. E o
aracu, ele já vai largar a ova dele em terra. Você acredita?
O cascudo desova três vezes ao ano. A curimatá só desova uma vez. O tambaqui
é difícil porque a gente não vê a ova dele. Você acredita nisso aí? Você já viu ova de
tambaqui? Mudou muito, você sabe por que mudou? Porque na época, isso tá com
vinte anos atrás, aqui num lugar chamado Vira Sebo, a gente andava bem devagarzinho
com a canoa porque o tucunaré era sujeito a pular na gente. Ele pulava, pulava, pula-
va... quando ele sentia a canoa, ele pulava! Aí, a gente ia bem devagarzinho prá ele
não bater a gente.
E hoje, isso tá diferente. Hoje, prá gente pegá um tucunaré grande, tá difícil.
Por quê? Porque o pessoal tá arrastando muita malhadeira, tão boboiando, batendo
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

capim, tão acabando. E tem a proibição e a gente não vê que tem a proibição. Mas
não tem a fiscalização. Se tivesse a fiscalização, aí não acontecia. Tem problema, tá?
Tem a proibição, mas não tem a fiscalização. Aí, foi um descuido nosso. Aí, foi um
descuido porque se a gente pensasse e tentar se organizar, proibir o modo de pesca,
isso não tava acontecendo.
Acho que a gente deixou prá os outros tomá conta. Deixou prá o Conselho de
Pesca da Z-20, prá o Ibama, prá polícia... ou a população aumentou? Uma nova gera-
ção, cabeça nova. Não, a gente não fala da população porque se tivesse ordem, o
respeito e o zelo isso não tava acontecendo.
Continuava sempre a mesma fartura, né? É por que a gente aí pegava o que 27
era necessário. E hoje não. Antigamente, o pessoal pescava, pegava o que queria. E
hoje não! Vai pescar... é difícil pegá. Tá difícil mesmo. A gente ia no verão, pegava o
tucunaré graúdo, o surubim... a gente não vê mais. Se não for o mafurá prá gente
puxá, só a piranha preta.”
Existia tanto pescado, mas tanto peixe, que no tempo do inverno (estação das
chuvas na Amazônia), eles se batiam nas margens dos rios. Ainda meio sonolentos
com o impacto, os pescadores(as) os pegavam facilmente com seus paneiros. Daí, essa
pescaria receber o nome de pesca de paneiro.
Eu vivi esse grande momento na minha vida. Com sete anos de idade, peguei
a minha primeira ferrada de arraia praticando esse tipo de pescaria. Eu vi a fartura de
pescado no Lago Grande do Curuai, assim como todos os meus antepassados.
Delmo Rocha, 47 anos, da comunidade de São Jorge, Lago Grande do Curuai,
me relatou como ele pescava no passado. “ Porque, na minha época, só era mesmo o
arpão, a flecha, nem a zagaia (quis dizer que a zagaia também era arreio de sua época).
Depois, isso foi reduzindo
essas coisas. Naquela época,
não tinha malhadeira, não
existia. Já de... um certo tem-
po que foi existi a malha-
deira, aí foi afugentando o
peixe. Agora tá... nóis já não
pega divido a tanta malha-
deira, arrastão...”
Foi então que, com
as transformações sócio-eco-
nômicas, o crescimento
populacional e a disputa
crescente dos pontos pes-
queiros – entre a pesca
artesanal de subsistência e a Pescador do lago do Juá consertando sua rede.
Amazônia: Pescadores contam histórias

28

Lago do Juá: Geograficamente urbano, socialmente rural.

pesca artesanal comercial – influenciaram a adoção de novas práticas na captura do


pescado. Práticas legais como a malhadeira (70cm), a tarrafa (50cm de malha permiti-
da), e ilegais como o arrastão, a cercadeira, a bubuieira. Arreios usados principalmente
na pesca comercial.
Assim, as canoas modestas de antigamente foram substituídas pelos barcos mo-
tores, bajaras e grandes barcos chamados de geleiras. As canoas servem como coletoras
dos peixes. São com elas que o pescador coloca e tira as redes de pesca. As geleiras são
os depósitos de conservação do pescado. Todo o tempo, o pescador tem que estar na
medida da lei. Através das toneladas permitidas em cada região, seguindo a legislação
pesqueira das portarias publicadas pelo Ibama/Ministério do Meio Ambiente.
“Hoje o povo compra malhadeira com mais facilidade. Vou dá um exemplo.
Esse tempo, o tucunaré. O tucunaré, a gente vê muito tucunaré de filho. Muitos
pirarucu. Mas devido a situação tá muito difícil, muitos se arriscam a pegá o tucunaré,
a pegá o pirarucu que tá com filho. Até o peixe do defeso. Por causa da situação, né?
Porque nem todo... nem todas as pessoas, ele tem terra prá trabalhá, né? E mesmo a
pessoa não tendo terra prá trabalhar ele vai sobrevivê da pesca, as vezes só do
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

extrativismo. Então, quando ele passa a viver só dessas coisas, então muitas vezes ele
deixa de obedecer, né? As leis“. Depoimento do pescador Dileudo Guimarães dos
Santos, comunidade do Bom Jardim, da região do Maicá.
Atualmente o pescador(a) como qualquer cidadão precisa respeitar as leis. En-
tretanto, as mudanças ocorridas na categoria abriram um abismo entre o pescador(a)
de subsistência e o comercial. Em função da escassez de recursos, o primeiro se torna
muitas vezes empregado do pescador(a) comercial. A autonomia do passado, de um
mercado de escambo pode-se dizer assim, retrata na atualidade que, para viver da
pesca o profissional tem que se aliar ao mercado de trabalho existente. Ele não pode
crescer na competitividade usando somente os arreios de tempos atrás. 29
Em função do precário estado econômico que vive o pescador(a), ele acaba
tendo que entregar o seu produto para o atravessador. Por que ele entrega? Porque
ele não tem dinheiro para pegar o gelo, não tem condições de atualizar seus arreios e
nem de adquirir embarcações pertinentes que estejam dentro dos acordos de pesca.
O atravessador – que é um tipo de financiador – fornece o isopor, o gelo e o combus-
tível para auxiliar o pescador(a). Mas, e se ele não pegar o peixe?

Barco motor e bajara: transportes utilizados na pesca artesanal comercial.


Amazônia: Pescadores contam histórias

Para Rainério Batista, comunidade do Inanu, Lago Grande do Curuai ainda se


encontra pescador(a) que não tem ganância. Ajuda aqueles que não são sócios da
Colônia de Pescadores e que não podem possuir uma rede ou arreio semelhante para
aprimorar a pesca. Ou que não tem a habilidade da pesca artesanal de arpão ou fle-
cha. Assim como tem pescadores(as) que só estão interessados na comercialização e
nada mais.
Já ouvi dizer que o pescador(a) não vende o pescado porque ele tem preguiça
de esperar o consumidor. Será verdade ou ele é induzido? Bem pertinho dele está o
atravessador com todos os aparatos para a venda! Quem perde é o pescador(a) e o
30 consumidor? Só quem ganha é o atravessador e os frigoríficos? Como reverter essa
situação em favor do pescador(a)?
Raimundo Nonato de Sousa, comunidade do Juá, região da Cidade comentou
sobre essa questão. “É bom deixar bem claro, que o pescador vende o peixe muito
barato. Quem prejudica, na verdade o consumidor com os preços elevados é o
atravessador. Pescador não rouba consumidor! “ A Colônia é quem poderá salvar a sua
categoria, implementado cooperativas para que o pescado possa chegar a mesa do
consumidor num preço menor. Ainda mais porque o peixe é a base da alimentação na
Amazônia, junto com a farinha de mandioca.
O defeso, as leis de acordos comunitários e portarias de pesca servem para a
preservação e conservação do estado pesqueiro nas regiões. Isso é que vai garantir a
economia do pescador(a) e do pescado. No caso do pirarucu, quando entra o defeso,
de dezembro a maio, paraliza a pesca. O que faz o pescador(a) que só sabe pescar o
pirarucu?
Quem responde essa pergunta é José Orivaldo Silva Coelho, 40 anos, comuni-
dade de Aracampina, região do Ituqui. “De certo tempo prá cá quem vivia só da pesca,
atualmente não vive mais. Então a gente tem que ter outro lado, alternativa, a criação
e a agricultura. E assim, dá o tempo para a conservação dos lagos, obedecer as leis de
defeso, acordos e portarias de cada região. Melhora a situação para quem vive das três
variedades que é a pesca, a agricultura e a criação. Lá em casa, quando a gente traba-
lha assim em grupo e então a gente faz o seguinte... Porque tem o tempo do defeso.
Então, é o tempo que a gente quase... fica na parte da agricultura e um pouco na
criação, ajeitando a criação. E quando é agora, que abre, a gente pesca um pouco e
também é o tempo que a agricultura já tá eliminando, que vai enchê.“
A pesca predatória e o atravessador são grandes inimigos do pescador(a). Mas
não são os únicos. Pescador(a) tem inimigos nas águas também. Esses são os botos,
piranhas, traíras, o mandií, o puraqué, jacarés e a arraia. O boto ataca as malhadeiras
tirando os peixes e rasgando, acabando a pescaria. A piranha entra na malhadeira e se
o pescador(a) não tiver cuidado pode sair sem seu dedo. Tem jacaré que come um
pescador(a) adulto de dentro da canoa. Ameaçam os filhos e até comem mesmo. A
sucurijú, a cobra grande, e os grandes temporais e seus raios mortais podem também
ceifar a vida do pescador(a).
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

O pescador Aldo Santos, 56 anos, da região do Tapará, comunidade de Saracura,


falou de outro inimigo do pescador(a). Com doze anos já arpoava pirarucu quando
roubou a canoa de vela de seu pai. “Saí e me alaguei lá fora, por descuido. O que mais
me mata nesse naufrágio, é que o homem que me apanhou é o pai de minha mulher
hoje. Ele que me tirou do naufrágio. Eu tava lá no meio do Amazonas e ele viu e foi me
buscá lá no meio do Amazonas. E me levou pro meu pai e recomendando pro meu pai
não me batê. E hoje eu faço parte da família dele. E eu me dou bem com ele.“

As doenças do pescador(a) adquiridas na pesca


31
Em função das carências alimentares – o não tratamento da água de beber e o
descuido com a higiene do corpo aliado às condições de trabalho precário – o pescador(a)
é atingido por muitas enfermidades. As dores musculares também são freqüentes devido
aos movimentos repetitivos de remar e da forma como se acomodam na canoa, na postu-
ra de sentar. Rita Maria Silva de Sousa, Vila do Curuai me despertou para essas dores que
atormentam a pescadora(o), “dói as cadeiras passando horas à espera do peixe.”
Delmo me lembrou que talvez o maior problema do pescador(a) sejam as doenças.
“O pescador efetivo, ele tando mesmo na atividade ele não dorme. Toda hora da noite ele
tá... vigiando malhadeira, fazendo tudo, não dorme a noite inteira. Por isso que a gente
fica muito maltratado com esse negócio de pescaria. As cadera... tudo, tudo, tudo...“
Grande pescador artesanal de subsistência, Dorinelson Lopes Barbosa, 29 anos,
morador da comunidade do Inanu, Lago Grande, me revelou o que ele as vezes come
na pescaria. “A gente não come o dia intero... A gente vai fazê comida, muitas vez tá
chovendo... não dá certo de fazê o fogo... chuva vem, apaga. Não tem lenha enxuta.
Aí, sabe o que a gente faz? Pega um pouco de farinha coloca numa cuia. Toma chibé!
Agüenta o dia inteiro. Aí, tu já pensô o alimento prum... pescador? Que tá ali direto...“
Dorinelson começou na pescaria com uns cinco anos e teve um grande mestre
na arte de pescar o pirarucu, o pescador Olavo Rodrigues. Apesar de ter momentos
duros na profissão não deixa de revelar sua paixão pelas águas amazônidas e pescar
seus maravilhosos peixes. “ Gosto de pescá. Eu me dô melhor no rio do que em casa.
Mas mil vezes no rio do que em casa! A gente pesca, porque a gente gosta. Mas, a
pescaria, nunca ouvi dizê que a gente ficava rico, não! Eu gosto dela. Eu não abro dela
nem um segundo! “
Arreios errados podem também contribuir na má qualidade da saúde do pes-
cador, não só na do peixe. Que o diga José Maria Gomes, também conhecido como
Pelé, comunidade do Juá, região Pesqueira da Cidade de Santarém. “O papai pescava
muito de lanterna de carboreto, né? Mas, só com... a pescaria dele era só com lanterna
de carboreto. Daí, nóis ia pescá com ele. E aquilo me prejudicô muito a vista. Aquele
fogo da lanterna, né? Problema dos rim. E aquela... pegava muito temporal, vento,
chuva. Pegava a noite todinha com ele. Eu era novo, né? Não sentia nada. Mas,
Amazônia: Pescadores contam histórias

depois, agora com idade de 40 prá 46, que eu tenho... Ontem eu cheguei lá em casa,
tava pescando. Eu cheguei prá jantá. Disse ela:
— Vamo jantá!
Eu disse:
— Não, não quero jantá, não. Vou me deitá ali.
— Que que tu tem?
— O problema na coluna.
Disse ela:
32 — Eu não ti disse prá ti não pescá, rapá!
Aí, eu fico... sinto muita dor de cabeça... que prejudica muito a gente, né? A
pescaria. A gente que é já acostumado pescá. Os meus filhos não, que não estão
acostumado pescá. Chuva, eles não querem pegá uma chuva. Não querem saí prá
pegar um temporalzinho! Eu não, eu com idade de três anos quase que fomo comido
pela cobra grande.”
Apetrechos de pesca predatória também são nocivos à saúde do pescador(a).
Em Santarém, existem muitas pessoas mutiladas pelas bombas caseiras. Sem braços,
pés ou mãos. Tempos passados espelhados no presente. Uma vez, eu estava pescando
no lago do Papucu, embaixo de uma árvore em meio a uma piracema de jaraqui. Ela
cobria a minha canoa e me escondia em seus galhos. Quando eu vi que se aproximava
um pescador bombeiro. Aí, me movimentei na canoa para que ele percebesse que eu
estava ali. Eles costumam acender o pavio de suas bombas explosivas com o cigarro.
Mas, quando ele me viu ele não tocou no pavio da bomba. Se ele tocasse, eu não
estaria escrevendo este livro.
Outra vez, pude perceber o grande impacto ambiental que causa essa pesca
predatória. Estava pescando e minha garateia prendeu-se lá no fundo. Mergulhei para
resgatar. Foi na hora que soltaram uma bomba distante de onde eu estava, pois eu
ouvi lá do fundo a grande explosão, a terra estremeceu e as árvores balançaram. Na
superfície, notei que estava surda e assim fiquei por alguns minutos.
A partir desse acontecimento, pensei: vou ficar pegando bomba na minha cara?
Não. Começamos, então buscar nossos direitos onde de fato existiam. Isso em 1997,
por que essa prática de pesca com bomba já existia desde o final da década de 50. A
bomba caseira foi usada em exaustão dentro da cidade de Santarém, no bairro do
Maracanã. Exatamente no local onde os dois lagos urbanos se encontram, Mapiri e
Papucu, região típica do peixe chamado jaraqui.
Somente em 1999, após uma mobilização dos pescadores(as), conseguimos
exterminar essa pescaria nos lagos. Apesar da existência de uma torre de observação,
outros tipos de crimes ambientais continuam adotados no tempo da seca, nos dois
lagos. É nessa estação que os dois lagos se unem através das praias. Me entristece ver
ainda hoje, pescadores(as) utilizando práticas predatórias na pescaria como a bomba
caseira.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

A salga

A salga era muito praticada no passado para conservar o pescado. Pois, na


época não existia outra forma de conservação. E para contar sobre a salga, eu visitei a 33
região do Ituqui, na comunidade de Fé em Deus. Lá fui recebida com muito carinho
pelo meu amigo Antonio Osmar de Oliveira Didiet, 45 anos, e sua esposa Dilza Maria
Ferreira dos Santos, 40 anos.
O Ituqui é muito famoso na tradição da pesca e consumo do acari. Peixe com
cara de pré-histórico muito consumido pela população amazônida, onde cada estado
tem seu sabor peculiar.
Osmar é quem conta a salga! “São três tipos de salga. Existe a salga seca, existe
a salga mista e existe a salga molhada. A salga seca é essa quando você abre o peixe,
você lava o peixe, você coloca esse peixe prá ele escorrê. Toda aquela água, entende.
Então, não tem nenhum tipo de água ali. Aí sim, aí você pega o sal grosso, o sal bem
sequinho que tá ali, né? Aí sim, você vai salgá aquele peixe. Você usa ele no sistema de
varal, fora. Prá ele pegando um pouco de sal e o ar. Aí, você tem o trabalho de virar
esse peixe. Ele já pegou aqui, vamos dizê assim, duas horas de sol de um lado, aí pega
mais duas do outro. Você também tem que tê cuidado, né? Esse é só pra salga seca.
Chama-se secagem de peixe.
E como... a gente na época, a gente não tinha é... é...não tinha conhecimento,
não tinha técnica de salga seca, salga mista e salga molhada, então a gente usava
conforme nossos antepassados iam dizendo prá gente como seria a forma.
A salga seca era a mais usada no passado, a tradicional. Ia pro varal, certo? Aí,
você tinha que ter o cuidado. Olha, no mínimo, se for bastante sol, três dias é o suficien-
te. De sol mesmo intenso, três dias é o suficiente. A durabilidade fica na facha de seis
meses, se for bem feito o processo, bastante sal e a mão boa pra salgá, a ciência.
A salga era feita na própria comunidade e nos locais de salga também. No
Igarapé do Santíssimo, tinha local de salga. Outros faziam a barraca em determinado
local aonde seria mais próximo do peixe que tava prá ser pego. Então, eles traziam esse
peixe de lá já todo cuidado aí eles pesavam com o patrão que já tava lá prá comprá
esse peixe.”
Ou levavam o peixe salgado para os compradores na cidade depois que já
tinham uma carga em torno de 100 quilos. Nas paragens de salga os pescadores(as)
montavam o jirau para secar o peixe, acampamento de salga. O peixe pequeno em
Amazônia: Pescadores contam histórias

geral perde metade de seu peso na


salga. Um pirar ucu fresco de
50 quilos quando salgado, bem se-
quinho, fica em torno de 25 qui-
los.
Os peixes da salga que tem
mais durabilidade são o pirarucu,
surubim, dourada, cujuba e o
tambaqui. Tirando o pirarucu e o
34 surubim como os mais vendáveis.
Mas, o caboclo salga qualquer tipo
de peixe para seu consumo. Atual-
Manta de pirarucu seco. mente a salga na região escasseou
em função da vinda do gelo para
conservar o pescado.
“A salga mista ela já foi introduzida já há um tempo prá cá. Deve tá mais
ou menos com uns 10 anos que foi entroduzida. E já era uma técnica já usada
por até por outras cidades, né? Até mesmo por Santarém, mas nem todos, não
era do conhecimento. Ela é mista porque é usado dois tipos de sal. Ela é usada o
sal grosso e o sal fino. Fica num depósito não precisa você colocar no sal. Quan-
to mais a água tivé ali na salga mista melhor ainda. Então você tira o peixe dali
parece que ele tá fresquinho. A salmora vai conservar o peixe, durando em torno
de 15 dias.
A salga molhada, ela é uma salga onde você mistura também o sal gros-
so com o sal fino em um recipiente, um tanque ou uma bacia. Aí, você coloca
água. Aquela água tem que ser água de sal mesmo. Aí, você pega o peixe de-
pois do peixe bem cuidado, depois do peixe tirado todo aquele sarro que tem
no peixe. Porque o peixe, ele tem uma parte que fica aquele sarro, que é o
sangue que fica ali preso, sabe? Tipo uma veia assim. Se você não tirá bem
aquilo, não limpá bem ele pode estragá. Aí, você mergulha ele naquela água.
Você mergulhô pronto. Tá prontinho o peixe ali dentro. O peixe na salga mo-
lhada também dura por 15 dias.”
A que dura mais é a seca. Infelizmente não tá mais se fazendo isso. Com a
chegada de gelo prá Santarém, lá por volta, acho que desde 60, no famoso Bar Mas-
cote, a fábrica de gelo.
Primeiro chegou o gelo em barra, depois o triturado e em seguida o de escama.
E com isso vieram também os grandes compradores, indústrias, filetagem do pirarucu
fresco realizado pela indústria do pescado.
O mercado de consumo incentivou a invasão?
Sim, porque a demanda é maior que a produção do pescado.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

A farinha de piracuí

A farinha de peixe é geralmente


feita do acari, como também do
tambaqui, da pescada, do cujuba. Tem
muita gente que faz até do jacaré. A tra-
dicional e apreciada é a do acari. A mais
saborosa, no meu paladar, é a do
tambaqui.
A pescadora Rita Maria Silva de 35
Sousa, 53 anos, moradora na Vila do
Curuai, no Lago Grande, já fez muito
piracui na várzea do rio Amazonas. E é Acari.
ela que conta como faz a farinha de
peixe. Depois de pegar o acari, “limpa bem. Bota prá assá. Depois de assado, dispilico
tudo. Coloco no forno... Corto tudo miudinho e boto prá cozinhá o peixe no forno. Até
que ele vá se dividindo todo prá fazê o piracui. A farinha. Tem que escolhê bem, tirá bem
aquela espinha, aquele sarro do peixe, tirá aquele sarro do lombo prá não ficá cheio de
farelo preto e gordura. Porque senão com, poucos tempo, dá o ranso.“
Também dá para fazer do acari cozido, sendo o processo mais rápido. A farinha
fica mais limpa e mais branca. Mas, é do acari assado que a farinha é mais protéica,
mais pesada e mais durável.Após o processo de transformação do peixe em farinha,
aumenta o valor econômico e é uma forma de poupança para o pescador(a). Ele fabri-
ca no verão, estação da seca amazônida e vende com um preço mais elevado na cheia,
época do inverno na Amazônia, tempo das chuvas. E também é segurança da alimen-
tação familiar dos povos tradicionais. Por ser bem leve rende bastante!
É muito apreciado na culinária. Assume variações gastronômicas na mesa do
caboclo e nos restaurantes típicos da região. Assim como pode ser consumido natural-
mente com farinha!

Receita do Bolinho de Piracuí


• 400g de farinha de piracuí
• 200g de mandioca ou aipim
• Uma pitada de pimenta do reino
• Coentro, salsinha e cebola a vontade
• Pouco sal, porque a farinha já é salgada
Misture tudo amassando bem com as mãos. Faça bolinhas e leve para a fritura.
Numa versão mais leve, coloque as bolinhas numa forma refratária e leve ao forno
até ficar bem tostadinho. Pode servir acompanhado de pimenta no tucupi ou outro
molho que seja adequado para peixes.
Amazônia: Pescadores contam histórias

A mulher amazônida e sua relação


com a pesca

36
Falar de mulheres pescadoras na Amazônia não é fácil. Encontrá-las também
não é. Por quê? Elas, assim como eu, acumulam muitas outras funções na vida familiar.
São mães muito cedo e segundo dados de pesquisas estatísticas na região, têm em
média, cinco filhos vivos. Mas, encontram-se facilmente mulheres que têm dez, doze,

quinze filhos. Eu conheço uma mulher que teve vinte filhos. Deixando transparecer
claramente uma ausência total de planejamento familiar.
Rita Maria Silva de Sousa, Vila do Curuai, é filha de pescador, mulher de pescador
e pescadora. No começo de sua vida com Pedro Figueira de Sousa, o Pedro Cobra, seu
marido, ela pilotava a canoa. Não tendo com quem deixar seu primeiro filho, levava na
pescaria. “Tinha um filho que hoje ele é cabo do exército em Manaus. Eu levava ele no
meio da perna. Ele tava assim, parece quase dum ano. Butava ele no meio da perna, ele
dormiazinho lá... E eu... empurrando aqui na popa. Quando clareava o dia, ele acorda-
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

va, já ficava animadinho com peixe que tava na canoa. Ele passô... ele sofreu muito
comigo, aquele menino, muito mesmo. Prá não deixá ele só. Ele mamava.”
Como Rita, as mulheres sabem tecer, consertar malhadeira e tarrafa. Pescam de
caniço ajudando na renda familiar. “Eu já pesquei. Uma chuva dessa prá mim não era
nada (nossa entrevista aconteceu no início do mês de março, época de muita chuva na
região). Tava na popa da canoa, ele (seu marido Pedro Cobra) na proa... ia embora.
Saía duas horas da madrugada. Tarrafiá prá pegá o peixe. Cuidava. Salgava tudo. Quando
tava com umas caixa grande cheia, ele botava na canoa e vinha pegá o barco aqui prá
banda do Acai. Ia vendê o peixe em Santarém prá comprá nossa despesa. E assim, nós
ia levando a vida. Cansei, duas hora da madrugada na popa da canoa tarrafiando... As 37
vez ainda me ralhava comigo:
— Mas, endireita a canoa!
— Mas quando?! Eu tava meia... cochilando... Prá onde então?
— Prá cá, tu não tá vendo prá onde a tarrafa caiu?
Aí, eu puxava prá cá. “
Torrão do Papa Terra é uma comunidade dona de uma paisagem bela e diferen-
te no Lago Grande do Curuai. É a região de várzea, onde tem muitos criadores de
bovinos e bubalinos, em função das extensões de campo que cobrem sua terra. Casas
de palafitas marombadas, homens vaqueiros e mulheres pescadoras.
Lá, a pescadora Jocelina Rodrigues de Licata me informou que tem um grupo
de dez mulheres que ajudam na economia doméstica deixando-se levar pelas águas
puras que a Mãe D’Água lhes oferece. Mulher mãe da água e mulheres mães de ho-
mens e mulheres, esposas... pescadoras. Mulheres que também criam pequenos ani-
mais, fazem piracuí, fazem farinha, plantam o roçado, cuidam da horta, da família,
mulheres extrativistas, professoras...
Sofrem discriminação, violência doméstica e ainda tem homem que diz que
mulher não sabe nem pegar no remo! Mas, têm homens que valorizam a mulher. “A
nossa sociedade é machista. Se as mulheres não se organizarem, mais machista vai ser
a nossa sociedade”, falou meu amigo lá da comunidade de Saracura, Aldo Santos.
Hoje em dia, já existem muitas mulheres pescadoras associadas na Colô-
nia de Pescadores Z-20, o que no passado não ocorria. Isso não é garantia de
direitos na profissão. Aqui na região, a mulher pescadora já lutou muito no com-
bate à invasão, corpo a corpo na proteção do lago do Juá. Mulher como Maria
Ornelinda Caetano que colaborou muito junto com seu marido Raimundo Nonato
de Sousa.
A mulher pescadora na Amazônia soma as funções da sua vida doméstica e de
sua vida profissional de mulher do interior. Elas são acostumadas a uma pesada rotina
de trabalho. E ainda dizem que a vida é boa. Têm as mãos grossas, os pés rachados, a
pele marcada pela ação do tempo, chuva e sol. Mas, todas essas peculiaridades não
tiram sua alegria pela vida. Não tiram sua feminilidade, sua sensualidade. E isso está
Amazônia: Pescadores contam histórias

bem retratado na música “Mulher Pescadora”, de Francisco Cardoso Feitosa, o Chico


Malta, poeta e músico santareno.
“Vai, vai, vai mulher
Vai pescar nesse rio
Pois quem pesca é quem viu
Que você sabe pescar
Pode ir de canoa
De bote, barjara ou de motor
Leva também as crianças
38 Pra dá de mamá aonde for
Ela tece a tarrafa
Também a malhadeira
Inda pesca de anzol
Põe na costa a zagaia
Caniço, arco e flecha
É de chuva a sol
Ela cuida da casa
Dos filhos, do almoço, também do jantar.
Quando chega à noite
Tadinha cansada o marido inda quer amar.”

Maria Lázara Reis dos Santos, lá do Torrão, contou sua história de pescadora. “O
papai, no tempo dele, ele alumiava... tomei a zagaia dele e apontava prá lá, e lá vinha o
peixe. Só jaraqui. Eu tô dedicada mesmo. Porque prá mim não tem outro trabalho. Crio
pato, porco, galinha, horta. Vendo, como, dô pros meus vizinhos. Vendo pro Curuai (Vila).”
Wilson Mota de Sousa recordou com carinho a vida de pescadora que sua irmã,
Maria Nilza de Sousa, já levou. Ela foi pescadora de verdade. Imaginem que ela arpoava
pirarucu? Faceta bastante rara na pescaria feminina. O pirarucu tem que ter força para
arpoar. Maria Nilza tinha essa força. Seu irmão falou que, do conhecimento dele, ela
pescou três pirarucus. Hoje em dia, segundo ele, ela tomou outra direção na vida.
Como mulher e pescadora, atualmente exerço minha profissão no lago do
Papucu, no bairro do Maracanã. Portanto, sou pescadora urbana no meio de tantos
outros pescadores e pescadoras. Trago na veia a garra da pesca e, essa herança eu
ganhei de meu pai, o pescador imortal de pirarucu. Muito do que sei na minha pesca-
ria, também veio de uma pescadora, Maria Pinto de Sousa, senhora de 73 anos, mora-
dora do bairro do Maracanã. Ela me ensinou a arte de puxar jaraqui com garateia.
Maria é conhecidíssima no lago Papucu, onde todos a respeitam na profissão. Além
disso, ela também é parteira, benzedeira e consertadeira. Está sempre entre os pesca-
dores e todos a respeitam como pescadora.
Uma vez, eu e meu sobrinho de cinco anos estávamos pescando na praia do
Maracanã, puxando acaratinga com minhoca. Já havia puxado umas cinco acaratinga. No
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

meio das cinco, veio um mandií, um pequeno peixe que tem um esporão. Ele foi tão
rápido, que quando eu dei uma das galhas entrou na minha coxa, bem pertinho do joelho.
Como eu estava perto da torre de observação do Mapiri/ Maracanã perguntei ao vigia que
estava lá se ele não sabia como tirar. Não se mostrou interessado em me ajudar. Meu
sobrinho estava apavorado. A minha perna já estava começando a ficar roxa. Como não
saia nas minhas tentativas de puxar, eu quebrei o esporão do peixe e joguei-o para a canoa.
Meu sobrinho pegou o peixe com raiva e começou a cortá-lo com a faca. Resol-
vi sair remando aturando a dor que sentia. Remei até o Mapiri, onde deixei minha
canoa para os pescadores cuidarem.
Dirigi-me ao Posto de Saúde. Lá, tomei uma antitetânica e me encaminharam 39
para o Pronto Socorro Municipal de Santarém. Finalmente, retiraram o esporão da
minha coxa, como objeto estranho!
Amazônia: Pescadores contam histórias

Contadores de histórias

40 Nós, pescadoras(es) somos famosos contadores de histórias. Histórias reais vivi-


das por nós no dia-a-dia de nossas pescarias e histórias que são estórias de pescadores(as).
Os contadores começam a falar muito timidamente da pescaria. Mas, aos poucos se
soltam quando falam do sobrenatural e dos contratempos existentes na pescaria.
Um desses contratempos é a sucuriju. Dizem que ela pode crescer muito ficar
muito grande, mas não é venenosa. Ela enrola, machuca e quebra o bicho grande
matando-o e engolindo-o. Tem dentes fortes, e solta uma substância grudenta para
poder engolir.
Quando pega uma presa grande, como a capivara, ela procura uma região
seca e fica quieta. A presa apodrece partindo a sua barriga para execrar os ossos. Fica
hibernando até grudar sua pele e é quando ela torna a sair para caçar de novo.
A sucuriju é muito perigosa principalmente para as populações que moram ao
longo dos rios. O Edmundo Branches Prata, morador da comunidade do Jacaré, Lago
Grande do Curuai, me disse que quando tinha peixe, que pescava e salgava para levar
para suas famílias, após puxar o peixe, eles cuidavam para salgar e iam dormir em outra
parte por causa do pitiú do peixe que atrai a sucuriju.
Tanto ela quanto a jibóia são muito traiçoeiras. Ele já viu uma luta entre uma jibóia
e uma onça. Brigaram tanto que, na área da luta, derrubaram muito cerrado. Quem saiu
vitoriosa foi a onça que comeu a cabeça e uma parte do rabo da cobra. Edmundo Prata
lembrou que, ficou só o meio. A onça não voltou para comer o resto. A jibóia também
acende os olhos de noite e faz batuque igual à cutia no mato para atrair a presa.
Wilson Mota de Sousa me falou que já ouviu dizer por aí, que o sucuriju é o
caçador da Cobra Grande. O caboclo pensa mesmo que a cobra grande é a sucuriju
ou a jibóia, pois cresce muito. Tem alguns pescadores(as) que já a pegaram na malhadeira
pequena, média ou grande!
Foi ele também que me recordou que, se cortar a sucuriju no meio ela emenda
de novo. O conhecimento popular diz que se o corte for nas imediações ou entre seu
intestino, não emenda mais. Dizem que sara o corte e o bicho volta a crescer.
Então, vamos às histórias ou estórias?
Eurides dos Santos Pereira, é um pescador de 73 anos, bastante marcado pela
ação de sua profissão. E é ele que começa a contar histórias...
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

“Um sucuriju que eu vi no aningal. Gostava muito de entrar no aningal, só eu


e Deus. Então, fiz eu entrar muito dentro do aningal e depois... tem aquele sentido,
né? Lá prá dentro se acontece alguma coisa eu... Ninguém me acha. Não acha nem a
canoa porque fica aquele esconderijo, ninguém sabe por onde eu entro. Aí, eu convi-
dei um parceiro prá ir prá lá. Aí, a casa assim... ficava um buracão dele, no barranco!
Eu vi aquele... fazê assim, assobiá fiiuuu... Peguei uma aninga, uma folha de aninga e
joguei prá lá. Não vi nada, né?
E quando foi no outro dia, fui prá lá de novo.
Que eu presta atenção prá trás, aquilo foi engrossando: uuuuu... Era um bicho
dessa grossura, assim (mostrou com as mãos fechando um círculo de uns dois pal- 41
mos), cabeça enorme. Aí, fui voltando assim... Empurrei um bucadinho com o arpão,
ele recolheu um bucado assim e voltô. Quando voltô, amassei com o arpão, mas com
força assim! Prá mim deu no olho do bicho, né? Bréééé... Rah...Quando voltou foi
aquele estrupício prá trás. Aquele estrondo no aningal e eu me atraquei numa
mugumbeira lá. Bateu logo aquela catinga dele, de sucuriju e aquele... olhava assim o
vento forte mesmo, olhava o aningal... saia assim (fez com os braços)... balançando os
matos... o aningal assim.
E aí, eu lá atracado na mucumbeira, em cima. De lá, eu olhava (deu risada). Aí,
não... o parceiro saiu pro outro lado, ele tava na mucumbeira esperando o pirarucu.
Aí, de lá eu olhava e o parceiro nada! Até que chegou, tá... só fartava me jogá lá de
cima, hum... de nervoso, sabe?
Aí, ele chegou:
— Rapaz, pega lá a canoa que eu tô aqui quase... sujo aqui!
Aí, ele trouxe e fui contando. Aí, por onde nós saia do aningal pro barranco, a
gente ia de varejão. Com três dias, nós fumo lá, aquilo tava sentado... a passagem da
canoa sentô! Ninguém sabe se foi o bicho que saiu no caminho da canoa, sai prá fora,
né? Pro igarapé. A gente pensa que foi isso. A gente sempre saia de vara e entrava de
varejão e saia de varejão. Que a gente vimo tava já prá entrá só de remo prá lá. Era
muito grande já... mesmo!
É porque eu não queria arpoá, porque se arpoasse me levava com tudo, tava
amarrado, era capaz de levar até a mucumbeira! A mucumbeira era pequena. Me
jogava com tudo prá água. A catinga é muito forte, forte demais.”
Conheço um sócio da Colônia de Pescadores Z-20, morador da comunidade
de Ilha de São Miguel, região do Aritapera, Dacildo Bertino, atual coordenador do
Núcleo de Base. Ele sofreu um ataque de sucuriju. Ia sendo devorado mesmo pela
cobra. Em seu corpo, hoje, ainda existem marcas do acidente. Ele é um homem cora-
joso, mas não gosta de se recordar dessa tragédia em sua vida. Até se sente mal
quando as pessoas brincam com ele chamado-o de “Resto de Cobra”.
Edmundo Prata contou outra história triste:
Amazônia: Pescadores contam histórias

“Ali, na boca do que a gente vara acima de Óbidos, na boca do Muratuba. Lá


onde... tava tempo de cheia, não é? Casa marombada. E aí tinha, morava lá um casal,
um homem com uma mulher, a mulher dele. Aí, ele não tinha farinha, ele veio pro
Piraquara, comprá farinha. E ela tava gestante. Aí, quando foi, que ele veio de tardi-
nha, quando foi cedo (pois ele dormiu por lá em função da distância) ele travessô...
Quando ele chegô lá, ele chamô, chamô... nada! Que ele entrô, tava dessa
artura (mostrou com a mão do chão até sua cintura) lá dentro da casa dele. Ele (o
sucuriju) pegô a mulher, matô com tudo a criança. Aí, ele foi embora prá chamá gente
prá... irem matá o bicho. Engoliu com todinho!”
42 Sebastião Areis Farias, Vila Curuai, Lago Grande, senhor de 90 anos, ainda
conserva em sua memória invejável as histórias que vivenciou. Elas realçam bem a
diversidade econômica do pescador. Extrativista, criador, agricultor...
“Tava lá em casa, era um mulecotinho. Mais já trabalhava já. Pilotava bem,
varejão... aí, por esse baixão aí. Aí, chegou um parente meu e disse:
— Eh, Roxo (apelido de Sebatião) umbora matá surubim prá nóis vendê hoje.
— Rapaz, hoje é domingo!
— Oh, domingo a gente come também. Nóis vende a carne e come.... as
cabeça, o espinhal.
Uam... chamamo o varejão! Nós viemo saindo e fumo... atravessamos prá ali,
pro lado do Turrão. Viemo beirando... viemo até longe. E (...) aquele desgosto na
minha vida!
Aí, saímo, fumo, fumo, fumo, fumo... Lá topemo um surubinzinho. E... arpoemo,
jogô pro limpo, tuff... e saimo.
E chegamo lá de frente do finado Mereré, naquele baixão, vinha uma coisa
assim turururru... Aí rapaz... vai purrudo. E, então naquele tempo, (...) tava o surubim
prá arpoá, que... ele corria era todo baixo.
Ah, é, ele viu a gente. Aí ele viu, deixou ele se espantar e jogou o varejão e
teeppei... Ichiii, minha irmã, olha o monstro de jacaré, (...) vinte e dois parmo. Abriu a
boca e partiu direto no proeiro. A canoa era nova. Era uma canoinha nova. Ele meteu
a boca crauu... Quebrou dois dentes (...) Foi a minha valência e o companheiro tiobô
praquele lado (...). Ele meteu... foi embora, ele era mais velho né?
E eu fiquei, ali na popa sem ação, nem nada.... Olha, aquele monstro animal!
O olho chegava a tá... Mas é que... eu digo que a história não foi em cima de mim,
deixou ele lá prá que... quebrou dois dente na madeira. Ficou de fora prá dentro.
Aí, esse bichão ficou lá e aí... E que mal a mal que eu me acordei de um sonho!
E aí eu... meti o pé, baixei, meti o pé, veio dos pé. Viichi Maria, até hoje quando me
lembro daquele animal. Aquele animal ia me comê.
Mas... Deus... Deus é bom demais, só pode ser! (...) Com a raiva que ele mor-
deu, uma boca enorme que ele agarrou com a canoa, tudo. Tchauuu... alagou com a
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

canoa, ficou com meio d’água. E ai, ficou lá, assim eu disse: aqui vou embora (...) o
companheiro me largou... tirava o chapéu da cabeça, que tinha um cordão assim...
Aquele cordão embaraçava e eu fui me puxando assim... Pois não é Deus? E graças a
Deus (...). Aaaa, companheiro, foi... buiô muito dentro (...). Dentro d’água? Porque ele
quebrou as duas presas. E adormeceu o indivído. Porque senão ele tinha me comido.
Eu tava ali perto dele – peixe nenhum – só o surubinzinho. Mas... santificado, né?”
Os pescadores(as), os grandes pescadores(as) santificam um dia da semana
para seu descanso. Geralmente é o dia de domingo. E essa história do Seu Sebastião é
realidade. Ainda acontece com muitos pescadores(as) até hoje.
“ Outra. Vou contar mais uma! Bom, essa... eu escapei de chorar daquela e dessa eu 43
não choro. Porque assim como tem gente bom tem gente ruim. E deixo pra lá... pois o
individo não vai... Eu tava com quatorze ano. Eu e esse rapaz fomo catá castanha (Castanha
do Brasil, Bertholletia excelsa, mais conhecida como Castanha do Pará). Castanha, naquele
tempo, dava dinheiro. Hoje em dia a gente não pode porque tudo tem dono.
Aí, me convidaram de me levar no castanhal. Quatro, cinco comigo, já gitinho eu
fiquei sem um par, né? Meu par era Deus. Uchi, fui embora. Fomo, chegamo lá, o patrão
mandou nóis subir numa estradinha que tem na beira do igarapé. Uma barraquinha
véia. Aí, nóis consertamo a barraquinha véia, veia assim um... palha que tinha.
E trabalhemo! Primeiro, segundo, terceiro... quando foi na outra... terça-feira
da outra semana, eles me levaram prá mata. Vê, sabe o que eles fizeram, os quatro? Se
eles queriam um inocente? Eu era inocente memo, né? E eles já estavam acostumado
no mato. Aí, nóis fumo numa estrada que chegava numa parte (...) que tinha uma
castanheira lá. Pegaram castanha e eles ficaram... adentraram ali. E eu certo com eles.
Pois, a senhora sabe que aí, quando eu vi, quando deu um monstro de tempo-
ral... esses homens não me largaram lá? Oh, Senhor, eu quis sair, um monstro de um
ananizal feio, eu quis sair... E peixe que eu perdi de dentro das matas!
Tar de Cachoeirinha... eiii... muito dentro. E eles... olha, foram embora se deitá
na rede, fumá o cigarro deles prá lá. E agora acha tapiri. E tive que ir no rumo. Eu ia no
rumo, e fui me embora naquele rumo da onde eu tinha vindo. Quando foi três horas
da tarde, que o sor tava querendo abri, a chuva tava querendo passá... pois eu não fui
vará bem mesmo no tapiri? Lá de detrás... eu ia lá (...). A castanha que eu tinha ajun-
tado, tinha jogado tudo fora. Disse:
— É verdade, vocês me largaram no mato de manhã, fui vará três horas da
tarde. Isso pára, isso pára! (...)
Sujeito perverso, mardito, marvado, eles fizeram marvadeza. E aí... a sezão me
abraçou. Eles iam me olhá lá na rede e eu tremia assim (...). A sezão é uma febre, mas
um monte de febre. É sezão, agora é malária, não é? Chama malária, mas naquele
tempo era sezão. (...) Tremia... Quando foi um dia, um cearense que tinha uma mulher,
bonita a mulher, mas as perna dela era só ferida! E eu estava... carreguei um montão
de castanha assim. Me meti lá prá mim comê... Aí, disse assim:
Amazônia: Pescadores contam histórias

— Esse menino tá bom de morrê.


(...) Aquele homem me disse:
— Por que que não morre logo?!
Foi embora prá lá com a mulher dele. Que de... aí nóis baixamo um pouquinho,
né? E eles ficaram prá lá. A sezão era muito comigo lá dentro do mato. Aí, me levaram
prá lá, prá onde passa os barco, né?(o cearense morava com sua mulher nesse local
onde os barcos chegavam. De lá para diante, somente em canoas pelo igapó) E eles
ficaram trabalhando. Não foi nada não! Aí, quando tava perto, eles disseram:
44 — O gitinho sai prá lá de morto.
Tá com três dias prá lá na casa desse homem. Eu disse:
— Vou me embora prá lá.
Ele disse:
— Pode ir.
Ele não tinha jeito de sair. Me meti dentro da canoa, fui embora ajudando ele
remar. Cheguei lá, eles já tinham baixado. Tavam só esperando parece que eu chegar
lá. Aí, eu cheguei lá. Ei, eu cheguei... malária, sezão, eles tremiam... castigo... E a
canoa tava encalhada, bem na beira do barranco.”
Sebastião falou como era a alimentação nos castanhais. “Primeiro a gente ficava
ruim da barriga, depois ia consertando, quando eu vinha de lá, tava gordo! Muito forti-
ficante. Vou lhe falar... aí, não tem jeito, doença nenhuma... cada monstro de castanhal!”
Contadores de histórias... Valdemir da Silva, pescador e morador da comunida-
de do Inanu, Lago Grande!
“Vou contar uma história de um camarada, que... que quando eu me entendi,
ele já existia! Então, ele era um pescador aqui da região. Era Manuel Ferreira. É... aqui
da comunidade. Todo mundo conheceu. Aí, foi prá uma pescaria pro Jauarari, bem
daqui de fronte do Inanu. Aí, ele chegou lá, colocou tudo a malhadeira.
Aí, afincou o moirão, (...) e entrou prá baixo da tolda, né? Quando ele se espan-
tou; foi cantiga de galo corococo, corococo... Aí, sai...
— Ah, aonde eu tô?
Que ele saiu de baixo da tolda, que ele olhou... claro prá todo lado!
— Onde eu tô, meu Deus...
Caboco do sítio...
— Onde eu tô...
Ele olhou, ele tava em Santarém. Ele tava em Santarém. Tava, chegou na Ponta
Negra, ali naquela região, ali do... Zé Maria. Tinha a fazenda do Zé Maria, ele tava
chegando por lá. Aquele claro que ele enxergava era a Ponta Negra. Aí, era... era por
causa da cidade que ele enxergava. E aí... que ele fez? Foi, que foi dá fé ele tinha
fincado o moirão na costa de uma raia. E a raia levou ele e ele foi embora.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Daí, chegou lá, ai vendeu os peixe que ele já tinha, por lá. Aí, vendeu os peixe
que ele já tinha por lá e... ficou por lá. Depois ele veio embora. Comprou sal, comprou
negócio prá pesca. Aí, veio embora.
E quando ele tá na Ponta Negra, quando ele viu um boto... boiô... Aí, quando o
boto boiô... Aí, ele olhou... Aí tava escrito Óbidos direto. Aí, ele subiu em cima e arriô o
ferro. O ferro é o arpão que a gente fala, né? Arpôo o boto, amarrou na... rodela na canoa,
entrô debaixo na... na tolda e deixou o pau correr frouxo. Esse boto se mandou direto.
Quando ele sintiu que tava chegando na boca da Santaninha (...) de fronte de
Óbidos, Aí lá ele defendeu... tinha o arpão dele ali todinho direto e embarcou na
canoa e caminho... direto do Lago Grande (ele sacou o arpão do boto que o tinha 45
trazido de Santarém). Ele entrou no paraná. Quando ele vai na boca do paraná...
daqui... de lá era boto, boto buiando, era boto prá todo lado. E quando ele viu um
boto, boto assim... Aí, olhou... com placa... Esse boto ai... Jauarari direto.
Aí, ele ficou olhando, continuou remando quando o boto boiô di novo, Jauarari
direto. Subiu em cima do boto e arreio o ferro, o arpão. Arpôo e amarrou lá. E o boto...
tomô viagem afora.
Quando ele chegou... Que foi que ele fez: tirou o arpão, chegou na malhadeira
dele, já no outro dia, tinha dois surubim e um cujuba. E ele fez tudo o percurso em
menos de dois dias. E hoje... a malhadeira dele tava em Jauarari.
Essa história eu tô contando aqui prá você porque veio dele, quando ele ainda era
jovem que ele me contou, e quando eu era moleque... Manuel Ferreira daqui do Inanú.”
Histórias de pescadores(as)... Conta Pedro Santos do Amaral, pescador e mora-
dor da comunidade de São Jorge, no Lago Grande do Curuai que “da outra vez, ele
(Braço Forte era o nome desse pescador, que andava por todo canto na região do rio
Amazonas como Santarém, Alenquer, Prainha) foi pescá, lá memo (lago do Camapú, na
cidade de Prainha). Aí, ele já tinha mulhé. Aí ele tava pescando. Aí, ele ferrava o peixe, ele
tinha muita força, né? Quando ele ferrava o peixe, o peixe subia, quando via no anzol,
vinha só a cabeça, né? Do peixe. Aí, diacho (...) Aí ele só tirava e ai botando na canoa...
Só vinha as cabeça, mas que troço é esse? Aí, já tava só com aquele monte de cabeça na
canoa, ele foi embora prá casa dele. Aí, chegô lá, a mulhé dele tava com um monte de
peixe. Quando chegô lá, trouxe só as cabeça (risada). Era o corpo dos peixe que... que ele
ferrava, caia... ficava a cabeça no anzol, ia cai na casa dele. Na casa dele.”
***
“Pegava curimatá, né? E jaraqui. Baixei o caniço e fui me embora. (...) E o Décio
tava puxando o barco em terra ali. Digo:
— Mas, vou robá este peixe!
Mas nem prá mim conhecê que era meu o traste da malhadeira. Sacanagem.
Aí, eu... gritei prá Raimundinha.
— Rapá, busca uma faca que eu vou robá esse peixe dessa malhadeira.
Amazônia: Pescadores contam histórias

Chegô lá, correu foi buscá uma faca aqui. Eu tinha uma faca só de descascá
inajá, aquela gitinha. Levô a faca prá lá. Cheguei lá, fui puxando a malhadeira devagar
assim por baixo, era um purrudão, purrudo de um cujuba. (...) Botei a cujuba passei-
lhe a faca. A malhadeira embaixo tinha a cujuba. E ela tava ali atrás daquela árvore que
tem. E lá eu joguei o cujuba (...) lá prá terra. Aí, fui embora. Quando eu voltei digo:
— Mas... vou espiá minha malhadeira...
Aí, que eu fui me alembra da minha malhadeira. Eu:
— Será que não caiu algum peixe?
46 Fui lá não era a porra, não tinha feito tamanho buraco na minha malhadeira?
(risadas) Deu trabalho prá mim consertá, sabe? Diz que é o ladrão sujo! Porco!”
***
“Uma vez, eu tava pescando com o Décio. O Décio, quando chegamo lá, era o
mapará. E a mulhé disse:
— Oh, eu não compro mapará com barba.
(...)Tavam tudo morto, peixe que morre logo, né? Eu digo:
— Rapaz, isso aí não joga não, pô? Eu vou é barbeá esses filhas da puta! Faquinha
bem amolada, cheguei lá psiiiii, psiiiii... Tirei as barba de tudinho os mapará ! Quando
foi de noite, chegamo lá fomo pesá o peixe... o Décio disse:
— Pegaram o mapará?
Digo:
— Nós pegamo seu mapará mesmo, de lei mesmo.
Butamo na saca, pesamo...
Ele levô prá Santarém. Quando ele chegô lá, ele foi dá com os mapará.
E ela:
— Pô, Décio, diga-me uma coisa, tu tem algum pescador barbeiro, lá?
Ele disse:
— Por quê?
— Pô, os mapará tão tudo sem barba ...
Quando o Décio chegou disse:
— Pô, Mazinho tu é muito artista.
— Ah, tu não queria mapará sem barba, cara?!
Eu... barbiei, os filha da puta. (Risadas)”
Essas duas últimas histórias me foram relatadas pelo pescador aposentado da
comunidade do São Jorge, Hélio Rodrigues Pereira dos Santos, 62 anos.
“Vou contá uma de quando eu pescava de lanterna. Lanterna era de carbureto!
Eu usava... a minha zagaia era grande cumprida, aquele pau, né? E eu gostava de
pegá aquelas estradas que vinha da beira do mato pro campo. E, as vez eu topava
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

pirarucu; e surubim gostava de ir nessas estradinhas atrás daquele cará. O cará é uma
raça da acaratinga, né? É aquele cará barrasco que chama. E eu picava. Eu era bonzi-
nho de lanterna, de zagaia, que desde sardinha eu picava. E eu gostava desses cará.
Quando eu alumiei assim na estrada, de longe, eu enxerguei o cará. Vinha de lá prá cá,
né? Aí que quando ele chegou na posição, eu... carreguei a zagaia prá picá o cará. No
que eu ia saltando aí eu... peguei um surubim que ia atrás dele. Um surubim-lenha.
Mas era grande, um surubim-lenha duns oito quilo mais ou meno. Aí, quando eu ia
saltando prá pegá o cará eu enxerguei o surubim, arrecuei o braço e piquei o surubim.
Só que deu na morte dele mesmo. Torô assim o espinhaço atrás da cabeça. Aí eu
embarquei. E quando eu embarquei, ele abriu a boca. O cará caiu da boca dele. Ele 47
tinha pego o cará na hora que eu piquei. Que quando eu embarquei o cará tava
dentro da boca dele. Aí caiu na canoa. Então, peguei os dois, né? O cará e o surubim.”
Amazônia: Pescadores contam histórias

Os pescadores(as) e suas regiões

48

N
Uma região: Lago Grande do Curuai

Num passado não muito distante o lago era muito fértil. Até os anos 60 e 70, a
pesca era muito rica no Lago Grande. Via-se muitos cardumes de peixes, vários tama-
nhos e variedade de espécies, principalmente no verão, os apetrechos da pesca eram a
tarrafa, o arpão, a zagaia, o espinhel e a linha comprida.
Silvio Nogueira do Carmo, 67, ficou cego em 92 na pescaria. No início da entre-
vista ele estava meio tímido, mais em função de uma vida no escuro. Quando ele
percebeu que tinha uma oportunidade de contar seus conhecimentos sobre a pesca,
ele alegrou-se. A varanda de sua casa, onde me recebeu, então vazia, de repente
encheu-se de uma platéia de netos, bisnetos, filhos, esposa e vizinhos.
O contador de histórias estava no palco. Suas cantorias pegaram todos de
surpresa. Ele começou falando do seu Lago Grande do Curuai. E você, leitor, ainda vai
ouvir neste livro mais histórias contadas por ele.
“O Lago Grande era tanto peixe que arauanã, que chamam também de peixe-
macaco, molhava os pescadores de lambada, pela quantidade existente. De madruga-
da, a gente levantava, pescando pirarucu, fisgando, né? Tem o negócio da fisga, pois
fisgá pirarucu, a gente ficava tudo molhado, aqueles peixe, rapaz, quando se espanta-
va era cardume (arauanã) e jogava com o rabo água tudo na gente.
Agora tem o negócio do arrastão. Aquele arrastão que é uma desgraça, viu?
(...) Ele leva tudo que tá na frente! O arrastão, por isso que tá proibido, né? Agora, a
malhadeira parada, o peixe só entra se quizé. Antigamente era bom, que o peixe ainda
estava tolo, né? Agora, eles são sabido, já! O peixe agora estão sabido... E é por isso
que apelaram pro arrastão aqui. Prá vê se pegam mais prá... por causa da da... da
ganância, querem ganhar muito dinheiro (...).”
Nos comércios, trocavam-se peixes por mercadorias, o pescado era pratica-
mente dinheiro. O pescador(a) pegava o peixe, pesava e entregava para o comercian-
te. Ir para cidade era difícil, pois não tinha embarcação constante, era apenas canoa à
vela. Os pescadores(as) salgavam o peixe já reservado para os comerciantes da cidade
que iam buscar. Esses peixes eram o pirarucu e o surubim.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Silvio lembra ainda o que faziam com tanto peixe no Lago Grande do Curuai.
“Olha, esse pirarucu que a gente matava, tinha a taberna lá no igarapé. Tinha a taber-
na prá comprá os peixe... deixava tudo lá. (...) Porque prá trazê pra cá, era dificuldade,
sabe? Então, vendia logo tudo lá. Comprava a farinha, comprava a despesa... Trazia
(produto), mas a gente pegava dinheiro (...).”
Neste século, tudo é diferente! Não se encontram peixes grandes com facilida-
de, é o caso do pirarucu que está ameaçado. Isso tudo porque começaram os conflitos,
as grandes redes de arrastão e as malhadeiras. Também os criadores de búfalos contri-
buíram na diminuição do pescado. Os búfalos acabam com os anigais, locais de procri-
ação dos peixes. 49
Hoje em dia, existem criadores de bubalinos que controlam sua criação e não
prejudicam completamente o ecossistema. Também existem criadores que largam es-
ses animais por conta da natureza. Sem um preparo de manejo coerente, pois os búfa-
los são muito selvagens.
Conheço criadores que tratam desses animais de forma manejada, tornando-
os dóceis iguais ao gado branco. É também fonte de renda para o pescador criador.
Eles consomem e comercializam o leite, o queijo e a manteiga.
Voltando no tempo de novo, na época da grande fartura, quando a pesca era
totalmente artesanal de subsistência. Haroldo Viana dos Santos, pescador e morador
da comunidade do São Jorge extremando com Inanu, me levou para um lugar mágico,
desconhecido para muitos moradores do Lago Grande. Eu mesma, depois de 40 anos
é que conheci. Contam os antigos da região, que é uma construção que data da época
dos jesuítas, mas não tem estudo arqueológico ainda. As informações são bastante
desencontradas.
O fato é que Haroldo preservou esse lugar que fica entre o roçado dele e o
cemitério do Inanu, o qual recebeu o nome de Ponto, pois é o pedaço de terra mais
alto na localidade, onde se tem uma visibilidade muito aberta da região.
Foi lá, então, que gravamos a entrevista. Haroldo também se mostrou um
grande contador de histórias. Quando percebi, sua família também estava lá com a
gente. Dei o gravador para ele porque senti uma força me puxando para visitar o
lugar. Mas, só encontrei o abismo do barranco. Só se ouvia o canto da floresta e sua
voz. O cenário era muito lírico. “Eu sou filho do Lago Grande, nasci aqui nesse lugar
e ainda vi muita fartura. Eu me lembro, eu era jovem, eu ia com meu pai... Naquela
época, não existia nenhum tipo de proibição ainda, ele era um matador de pirarucu
e hoje, tá muito raro nosso Lago Grande em termo de... de pescado. (...) Nós quere-
mos assim... ver nossos filho não passando necessidade, não passando fome. Aliás,
tem, criança que... nossos filhos que não viram mais o que nós vimos, quando nós
éramos jovens, quando nós era garoto... Então, hoje, por exemplo, tracajá hoje, prá
gente vê um tracajá é muito difícil. Prá gente vê um pirarucu hoje é muito difícil
também. E... e outros e outros peixe. Em termo de caça também. Então, nosso Lago
Amazônia: Pescadores contam histórias

Grande tá explorado... mas, mesmo assim nós tamo sobrevivendo aqui. Temos sido
também muito abençoado.”
É, muita coisa mudou no Lago Grande. comunidades divididas em decorrência
de atritos religiosos, carência de lideranças para encampar idéias e o desejo de lutar,
descuido com as leis.
Lamentavelmente, o ser humano tem uma tendência a infringir as regras. Daí,
surgirem os conflitos. E quando se fala em Amazônia esses conflitos se tornam mais
abrangentes em função dos interesses políticos e econômicos. Momentos tortuosos e
conflitantes não cabem aqui neste livro, onde pelo título, supõem-se histórias para se
50 divertir, não é mesmo? No entanto, eu não posso deixar de contar para vocês o impasse
do Lago Grande do Curuai. Mesmo porque, eu sou filha da comunidade do Inanu.
Como disse bem Haroldo Viana dos Santos, o lugar foi abençoado por Deus
em muitos sentidos, apesar do castigo que sofre na época da seca. É, porque na Ama-
zônia vivem-se duas estações. O inverno, caracterizado pelas águas volumosas que se
debruçam sob a floresta e seus povos, fazendo com que os rios transbordem em abun-
dância do líquido precioso. Esse período varia entre dezembro e junho. Nesse período,
o transporte é basicamente fluvial.
E o verão, quando as águas descem, descem, descem... E que percorre os meses
entre julho a dezembro. Essas estações são bastante variáveis. Dependemos muito da
colaboração do ser humano no sentido da preservação e conservação dos recursos
naturais para que as variações climáticas não ocorram bruscamente no planeta.
Então, onde antes era o Lago Grande do Curuai, no verão forma-se um cam-
po muito extenso salvaguardando uma quantidade de água inimaginável para quem
o vê no inverno. Nesse tempo, o transporte é realizado através de barcos até a
Rodovia Estadual Translago (PA–275). Por onde a população chega através de ôni-
bus, motos, e carros.
Aí, temos outra ingerência da natureza humana. O lago está na ilharga de três
municípios: Santarém, Óbidos e Juruti (no que se refere a ecossistamas, pois, afinal
peixe não tem RG nem CPF). A pergunta que não quer calar: como definir uma portaria
de pesca para os três municípios?
Eu compararia o Lago Grande a uma cobra grande. Sua cabeça está no rumo
de Óbidos (a ganganta da cobra grande) e Juruti. Seu corpo é o meio do Lago Grande
e seu final, no início do lago, em Santarém. Percorri os três municípios em pensamento
e vi que estamos todos ligados com um propósito só: o bem-estar dos três municípios
e de suas populações.
Lá, os três municípios se encontram, uma área só com um enorme potencial
pesqueiro. As águas se entranham através de canais, furos e igarapés. O peixe do rio
Amazonas entra e sai no lago através desses caminhos. Assim como os pescadores(as)
entram e saem... Inclusive pescadores(as) de outras regiões. E aí, está configurado o
conflito. É um conflito que está ligado a interesses econômicos e políticos.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Antes de continuar essa história, vamos ver o que a pescadora Sônia Maria
Leão Pereira, presidente da Associação das Mulheres Pescadoras, Artesãs e Agriculturas
(Amupaa ) comentou muito sabiamente. “Os conflitos, eles se dão devido a... parte de
educação que as vezes as pessoas não tem. Um trabalho educativo! Prá nós aqui, em
lugar nenhum nunca houve uma escola profissionalizante prá filho de pescador. Prá
que ele entrasse de manhã naquela escola e saísse a tarde com toda sua alimentação
correta. Prá que, amanhã, ele fosse um pescador que soubesse tratar dos conflitos...
prá não haver conflito na pesca, que soubesse respeitar o meio ambiente, que soubes-
se também conversar com seus pais lá em casa, o que é prejudicial ao meio ambiente.
Que a maior parte desses conflitos é porque as pessoas, eles ainda também, ainda não 51
tem condições de tê recebido assim... uma informação correta! (...) A gente tem que
sabê mediá esses conflitos, que nós não podemos tomá parte do conflito (...) prá que
haja uma solução!”
E é exatamente mediação o que o impasse no Lago Grande precisa. Sendo o Con-
selho de Pesca a instituição com o maior poder de articulação na região, caberia a ele a
mediação dos conflitos. A história mostra que anterior à criação do Conselho de Pesca já
vigoravam acordos comunitários. Com o desempenho da Colônia de Pescadores Z-20
fortalece a categoria e começa-se a desenvolver um trabalho mais consistente. Foi quando
em 1999, elaboraram a portaria de pesca e sua posterior publicação pelo Ibama.
Roberto Cardoso Marinho, um líder importante na organização do Conselho
de Pesca do Lago Grande e atual diretor da Colônia de Pescadores Z-20 me disse que
“a portaria é importante para o crescimento pesqueiro e infelizmente, por falta de
experiência na época, a portaria foi feita por tempo determinado. E com isso, a porta-
ria se revogou e até hoje ainda tamos esperando.”
As portarias por tempo determinado de certa forma incentivam ou “obrigam”
os envolvidos a realizarem uma avaliação. E para se chegar a isso, a mobilização e
organização comunitária são indispensáveis!
Emerson Batista Feleó, vice-presidente do Conselho de Pesca da região do Lago
Grande do Curuai, me explicou em que situação se encontra a portaria de pesca hoje.
“A portaria até hoje nóis temo tendo dificuldade com a portaria nossa porque era pra
ela ter entrado em vigor, né? Mas, só que até agora a gente não tem uma solução
certa. Não sei se hoje (reunião do Conselho de Pesca do Lago Grande, dia 14/02/04),
né? Porque hoje a gente ainda vai esperar o Ibama prá ele divulgá o que está aconte-
cendo. A gente quer saber hoje, então hoje a gente vamo tê uma decisão certa. Saí
daqui já com uma decisão (o Ibama não compareceu à reunião).”
E os conflitos que com portaria de pesca já eram difíceis de se controlar, agora
deslancham. Existe um grande mal-estar entre os pescadores(as) na região principal-
mente quanto às invasões, assim como desrespeito às leis ambientais e do Conselho.
Tanto entre as comunidades que estão instaladas dentro do lago como entre os
pescadores(as) de Santarém, Óbidos e Juruti.
Amazônia: Pescadores contam histórias

Emerson Batista Feleó, disse que ”o município de Óbidos, já não tem essa
intimidade muito, né? Porque você vê que a dificuldade maior que nóis enfrentamos
nessa região é Óbidos, né? Então, a... a maioria dos pescadores não querem respeitar
nossa região. Então, com isso vem trazendo é... dificuldade pra nós se acerta, né?
Todas as comunidades elas (...). Olha, não tem a... o tem uma comunidade aí de Baixo
aí que ela é meia, não gosta muito de respeitar. De vez em quando, ela tá furando os
acordos, né? Que tem o acordo, tem a portaria mas eles pensam que... ficam pouco a
fiscalização, né? Eles acham que demoram um pouco, aí eles fazem o tipo de pesca
predatória, né? Não querendo considerar, né?”
52 O pescador Jorge Raimundo de Sousa, 43 anos, pesca desde os sete anos de
idade, e é sócio da Z-20 há seis anos. Mora na comunidade de Uruari e dá força para as
decisões do Conselho de Pesca do Lago Grande do Curuai. ”Prá mim o que eles estão
fazendo é bom. Agora o que falta é eles expulsarem essas grandes geleira que tão aí
dentro, né? Olha agora, não tão respeitando... a pescaria do mapará tá proibida, do
aracu tá proibida, malhadeira de mica tá proibida, mas só... tá proibida prá nós aqui.
Mas, esse de fora vem invadí ai, como eles estão invadindo. Aí, não tem condição!”
Já João Antonio Barbosa, 41, pescador sócio da Colônia de Pescadores Z-19 de
Óbidos é agente ambiental não credenciado pelo Ibama ainda. Morador da Vila Bar-
bosa na beira do rio Amazonas, me contou como está a relação dos pescadores(as) do
Lago Grande da Franca como chamam o Curuai naquela região. Foi o primeiro nome
dado à região em função da Vila Franca, situada nas imediações da boca do lago,
onde foi a base governativa na época da colonização, antes de passar para a cidade de
Santarém. O nome Curuaí se deve aos primeiros habitantes indígenas da localidade.
”A raiva deles (dos pescadores do Lago Grande do Curuai) é que nós pesca só
de bajara. Nós pesca só de bajara. Nós teve uma reunião aqui em Santarém. (...) Sabe,
nós espera eles prá discutir isso aí, não vieram!
Ela (a bajara) tem uma rapidez. E a gente tem de pescar de... já pensou?! O cara
lascado do interior, compra um motorzinho prá ver se facilita mais a vida dele. Aí, os
cara querem que a gente deixa o motor parado na beira e saia prá dentro. Ah, não tem
condições! De canoa eu acho que economiza o peixe e mata o pescador! Porque... ele
fica baquiado e não tem condições de enfrentar uma ventania a remo. Eu acredito que
economiza e mata o pescador. De bajara... as vez não pega nada... é pouco.
Olha, veio um pessoal de Monte Alegre, trás um negócio de trinta bajara, e sai
aqui nesse Lago Grande aí. (...) Aí, não existe lei prá eles, lógico. Porque... sei lá... Eles
já sabem o dia que o cara vem.. Eu acho que tem uma jogada nisso aí. Ali... ele sai,
quando os cara sai, eles entram... aí pegam aqueles porque que tão – no varejão – no
rebojo deles. Eles levaram tudo (...). Todo ano tem. (...) Eles só pescam negócio de
quinze panos prá frente. Negócio de cinco palmo que a gente pesca aí não é nada.
Aí tem esse pessoal do Urucurituba. Eles não pescam de bajara, mas eles pes-
cam de canoa e é muita malhadeira. É negócio de quinze, vinte palma emendado.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Muito barco e muita canoa também. Todo jeito... É no meio do rio, é em cima do
mato, é de todo jeito. Eles não consertam a rede deles, pegam e vão levando.”
Interesses alheios aos interesses coletivos estão em jogo. Basta saber o que o
poder público vai fazer para arrefecer os ânimos alterados dos pescadores(as) do Lago
Grande do Curuai. Sim, porque a ausência da portaria de pesca poderá gerar deman-
das complexas em função de sua geografia.
O pescador Emerson Marinho Barbosa, da Vila Barbosa, em Óbidos me contou
que eles estavam pescando no Juquiri. ”Era eu com meu irmão. E aí, nós fomo revistá
a malhadeira de manhã. Tinha peixe lá. Tiremo e butemo na caixa. Aí, quando fui de
tarde, esta hora assim, fomo vê a malhadeira. Tinha um tambaqui lá. Aí, meu irmão 53
disse bem assim:
— Pô, nós leva esse tambaqui prá nós comê lá em casa.
E aí... aí... tá a gente ia levar.
Butemo na caixa, dava uns quinze quilos o tambaqui. E aí, quando nóis nem...
tava lá no barco (...). quando nós demo, lá vem o pessoal do Curuai, pessoal do Curuai
não, nós pensamo que não era. E aí, nós vimo em barco em barco, aí nós fiquemo já
aguniado. Lá do barco. Aí,... e aí, eles foram lá com nós. Pediram licença prá abrir a
caixa. Dissemos:
— Pode abrir!
Olharam lá os peixe.
— Não tem peixe proibido aqui. Só esse tambaqui que tá proibido aqui.
Eu disse:
— Mais, tambaqui acho que não é proibido, que já é grande já.
E aí...
— Não, mas tá proibido, estão... Isso é uma multa muito grande prá vocês.
— Ah, então se for por isso...
Aí, meu irmão disse:
— Deixa logo eles levarem.
— Então leva o peixe, leva o tambaqui...
Pegaram assim... quinze quilos, um tambaquizão, purrudo, aqueles pretão,
mesmo, aquele... Aí, eles pegaram butaram o tambaqui lá no barco, na voadeira,
voadeira, o nome dela até Mapará, o nome da voadeira. E aí, eles estavam nessa
voadeira mas num barquinho. E aí... eles pegaram...
Eles pediram licença prá abrir a caixa. Eu disse tá... Não deram o nome prá nóis.
Eles disseram que eles eram do Curuai! É uma voadeira chamada Mapará. E eles pega-
ram e levaram e nóis fiquemos só olhando.”
Enquanto a portaria de pesca não sair, os conflitos continuarão... A esperança
também reside no diálogo e na vontade de se chegar a um entendimento. O que implica
recuos de opiniões individuais ou interesses em função da opinião e interesses coletivos.
Amazônia: Pescadores contam histórias

Outra região: Igarapé do Irurá e Igarapezinho

O pescador Moacir O. Ferreira, do Núcleo de Base do bairro do Maracanã,


pertencente à Colônia de Pescadores Z-20, é uma liderança que guarda lembranças da
pesca urbana em Santarém. Ele me falou muito das riquezas dos recursos naturais que
já não existem mais. Ele me descreveu um cenário que ninguém mais vai ver. Pois, está
completamente transformado pela ação descontrolada do ser humano.
Conheço os mesmos desde 1953. O mesmo nasce na Rocha Negra e Ponte
Alta, passa pela Cambuquira se encontra com o Igarapezinho próximo ao Seminário
54 São Pio X estas duas maravilhavas que Deus preparou com tanto amor e carinho para
o homem zelar, esta aí o resultado negativo. Onde os peixes paravam para se alimen-
tar, desovar, como também os tracajás, tatus, peixe-boi, pacas, cutias, porco catitu,
lontras, ariranha, sucuriju, onça d’água ou tapirauara e a capivara, os macacos, patos,
marrecas, malaris, papagaios, maracanãs, santa cruz, a nanai e mergulhão, a garça, o
veado e outros. Hoje está na extinção por causa da ganância do homem.
Esses dois igarapés tão lindos, tinham uma água tão limpa e gelada e a profun-
didade dava em certos lugares até sete metros. Os mesmos tinham e ainda têm muita
riqueza, como o caranã para fazer o tipiti, a cesta, a peneira, o paneiro. O tucumã para
fazer o chapéu, a bolsa, o leque e outros artesanatos também serve para fazer camba-
das de peixes miúdos. Temos também o buriti, a bacaba, o açaí, o jará e outros que
servem de alimento rico em vitamina como o bacuri.
Não esquecendo da beleza natural, o clima legal, a vista bonita, apesar das
bombas terem matado muitas árvores, mas ainda é bonito. E com uma política da
pesca e da caça nós ainda vamos ver riqueza, não de tudo mas o que ainda resta.
Podemos sim com ajuda de Deus fazer essa fartura.
De 1960 em diante, começou o desastre ecológico e ambiental. A bomba, o
ataque as casas, os desmatamentos. Criação de porco na margem do igarapé, esgoto
da Seletto (indústria de produção do frango) e de outras residências, canaletas e outros
tipos de ataque contra a natureza. Fizemos uma luta e conseguimos fechar o esgoto
deles, já foi uma vitória. Só que aumentou a população e residência e posto e serrarias
e terminal de ônibus e aí fica difícil, que o poder público não faz nada
Se não bastasse tudo isso a Fernando Guilhon (grande rua que liga o aeroporto
ao centro da cidade) e o viaduto foram dois ataques à natureza imperdoável.
E hoje, o desastre esta aí para todos nós ver, as maravilhas desaparecendo mas
60%. Os igarapés que tinham de 4 a 7 metros fundura, hoje nós temos o Igarapezinho
que não cobre o nosso pé. Só vemos os donos de serrarias ricos e os nossos igarapés
acabados pedindo socorro, até a saída desses igarapés no igarapé do Mamiri esta aterra-
do. Acabou aquela beleza, aquela disputa dos dois igarapés no encontro dos mesmos.
Então eu pergunto ao povo de Santarém: nós precisamos de água boa para
nós matarmos nossa sede e que os peixes não fiquem contaminados.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

O que fazer? Vamos para a luta ou não?


Mas eu tenho uma esperança muito grande de que, com ajuda de Deus, nós
vamos salvar nossos rios e igarapés e ter nossa cidade limpa. Todos os movimentos
que estão surgindo como o Fórum do Lixo e Cidadania, o Conselho de Pesca da
Cidade criado pela Z-20, as ONGs, temos a CPP (Comissão Pastoral da Pesca) e a CPT
(Comissão Pastoral da Terra). Temos que fazer alguma coisa que os grileiros estão aí
para fazer seus grandes roçados para plantar soja e, quem sabe, os transgênicos, e
com isso vão expulsando os donos da terra, e aí vai ter mais violência e os nossos
igarapés vão ficar envenenados, o nosso ar, o nossos rios estão... vai ... outro proble-
ma mais sério ainda. 55
Então, vamos se unir e partir para a luta, quem ganha com isso é o povo.
Se alguém precisar de mais informação eu estou à disposição.
A vontade é de refazer o igapó do Mapiri, já temos algumas árvores que já foi
plantado.
Quanto ao Conselho de Pesca da cidade, que Moacir se referiu no texto, quero
explicar que ele está em discussão. Não foi criado ainda! Eu sinto que em nome do
progresso nossas riquezas ambientais estão se acabando. O desenvolvimento é neces-
sário, mas desde que venha acompanhado de estudos de impactos sociais e ambientais.
Que sejam projetos de estruturas planejados, zoneados. Dessa forma, acredito que
possamos preservar nossas riquezas para nosso desenvolvimento e para nossas gera-
ções futuras.

Mapiri, tu fostes um encanto! Hoje, ouço teu pranto


Falei com o pescador Moacir O. Ferreira, 58 anos, sobre o livro que estava
escrevendo. Ele, meio sem jeito e desconfiado pelos anos de luta em favor de sua
região, me disse que me daria um relato por escrito. Tal como ele escreveu, eu trans-
crevo aqui. Relato apaixonado de um homem que lutou para tentar salvar um lago.
Um lago onde seu pai viveu e ele aprendeu a pescar com ele. Um relato de um aguer-
rido pescador!
“Eu conheci o Mapiri desde 1953. Até o ano de 1956 era muito difícil entrar uma
pessoa no Mapiri. Os pescadores só chegavam até a Ponta Grossa. Depois que viram o
papai pescando jaraqui, alguns curiosos investigavam para saber como era a pescaria.
Mas o papai não ensinava. Para dar um tempo aqui no Mapiri, nós íamos até o lago do
Juá para pescar jaraqui. Aí, os pescadores do Juá procuraram descobrir como a gente
estava pescando. Então, nós íamos para o outro lado, fazer outros tipos de pesca. Quan-
do manerava a curiosidade dos pescadores, nós voltávamos a pescar jaraqui.
Em 1958, roubaram nossos anzóis. O papai costumava deixar escondido na
canoa. Demorou umas quatro semanas para a gente ver três pescadores pescando o
jaraqui, João, Irdo e Ipifane. Com mais umas duas semanas, surgiram mais pescadores,
Amazônia: Pescadores contam histórias

Chandanga, Totó, Sizú, Nenê e Raimundo Lopes. Ipifane, Totó e Raimundo Lopes eram
acompanhados por seus filhos.
Isto foi até 1960. Desse tempo em diante, foi aumentando a quantidade de
pescadores e, hoje, até as mulheres pescam. Mas o papai foi o inventor da pesca de
anzol, hoje chama-se garateia. Também ele inventou o espinhel para pegar o jaraqui.
Mas, quero dizer que o Mapiri, no meu conhecimento da margem do Tapajós,
era (ou é ainda) o único local que nós encontrávamos todas as espécies de peixe.
Inclusive a tainha que não é da região. Enquanto que no lago do Juá não encosta ou
não entra certos tipos de peixes porque eu nunca peguei e nunca ouvi dizer que
56 alguém pegou. No Mapiri eu já peguei dourada, o filhote, pirarara e tainha. Essas
quatro espécies nunca vi por lá. Então o Mapiri não é um lago. Dentro do Mapiri nós
temos dois lagos. O primeiro é o Laguinho de formato redondo, e o segundo – que
também em tamanho é o maior em forma retangular – o lago Papucu.
Todos os lagos como os igarapés eram ricos em peixes de todas as espécies que
temos na região. Também muito farto em pássaros como mal-ari ou maguari, pato do
mar, pato da água ou mergulhão, marreca, arara, ananaí, coroca, papagaio, dois tipos
de curica, tucano, santa cruz, garça e bichos como tatu, cutia, paca, veado, porco,
catitú, capivara e macacos de diversas qualidades como a guariba, zogue zogue, mão
amarela e prego. Também nós tínhamos um bicho que não é muito comum, mas
botou muito pescador para correr, era a tapirauara, a onça d’água. Tinha ariranha e a
lontra. É bom ficar certo que dessas três marcas talvez a lontra ainda, em algum mo-
mento, entra nos lagos.
Nós temos a questão do Maracanã, qual foi a origem? É porque a Ponta de
Pedra era uma mata que metia medo de entrar na mesma. Com muito murucizeiros
e outras frutas que atraíam os maracanãs. Se juntavam em grande quantidade que
pela porta do amanhecer era aquele estrondo de maracanã, parecia temporal. A
santa cruz também ajudava, era em quantidade. Juntavam outros pássaros como a
gaivota e o mergulhão – muito bonito. Mas, quem predominava era o maracanã.
Então, ficou chamada de Ponta do Maracanã, hoje, chamam também de praia do
Maracanã.
O primeiro nome dado foi praia do Pau-Rico porque nessa praia tinha muitas
frutas como o tucumã, a piranga, o perauixí, caju, cajurana, camo camo, jauari, seringa
barriguda. Por causa dessa variedade de árvores frutíferas vinham também os bichos
como a cutia, a paca, o caititu, veado, a mucura, catipuru, os macacos, e as aves.
Todos vinham se alimentar e fazer a festa.
Como o papai sempre parava a pescaria para fazer comida, ele dizia:
— Esta praia perto da cidade é muito rica.
Um dia, conversando com dois ou três pescadores o papai comentou a ques-
tão do nome do lugar. Aí, começou a discussão: um dizia que era Praia Rica, outro que
era Pau-Rico. Eu sei que o papai então disse assim:
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

— Se tem praia e tem muita árvore, então é melhor praia do Pau-Rico. E até
hoje, eu digo para meus filhos: vamos lá no Pau-Rico pegar uns peixes. Nós vamos e
pegamos! Os pescadores antigos ainda se lembram que o nome continua esse.
Já falei das belezas e era, de fato, um paraíso. Já falei das farturas. Faltou uma
coisa, que é a principal: a água. Quando eu conheci o Mapiri, podia jogar uma agulha
com três ou quatro metros de profundidade que a gente enxergava com a luz do dia a
agulha lá embaixo. Hoje, é triste!
Mas, vamos falar... poluição primeiro. Começou a Petrobrás com as pesquisas,
em 1958 para 1959. Chegaram em Santarém e vieram se alojar no Mapiri. Fizeram um
campo para jogar bola e aí começou o problema. Primeiro jogaram uma bomba dina- 57
mite, próximo a saída do Mapiri. Depois, jogaram outra no lago do Papucu, e essas
duas bombas fizeram um grande estrago de peixes de todas as espécies. Com isso, a
nossa tapirauara ou onça d’água saiu rapidamente e foi procurar outro lugar.
Eu e papai vimos toda a fuga da mesma. Tivemos notícias de pessoas do Juá e
Pajuçara, que a mesma foi se alojar no lago da Pajuçara, que é um local que ninguém
entra por ser muito feio e coberto por aninga e outros tipos de cerrado. Então, se
supõe que a mesma se encontra lá. Com essas bombas, despertou os curiosos. Procu-
raram saber com os funcionários da Petrobrás, informaram que em vez da dinamite
que era proibido, é um material que só o exército usa. Mas, disseram que tinha outro
material que eles podiam fabricar a bomba caseira. Que era o colorato, o enxofre e o
carvão de cedro ou embaúba e o rastilho.
Aí, a dupla Dafinha e Jacaré, por sinal o primeiro jogava pedra na lua e corria
atrás de avião, aí fizeram a primeira bomba caseira e jogaram na entrada com o Mapiri,
em uma piracema de jaraqui.
Passou mais de um mês a fedentina de peixe podre já começou a poluição. Em
1959, pelo mês de maio, que era a força dos cardumes ou piracemas, esperaram ser
punidos, não saiu nada, aí continuaram.
A Petrobrás voltou a jogar suas dinamites. Demarcaram da Ponta das Caieiras,
hoje, Docas do Pará ou Cais do Porto, em direção a Ponta da Maria José. Eu não estou
bem certo se de 200 metros ou de 500 metros uma bóia da outra. Cada bóia era uma
bomba. Não sei a potência, mas não era menos de um quilo.
E então, o que aconteceu? Morreu bastante filhote, dourada, pescada e outras
espécies. Com isso, os predadores que já não era só a dupla e sim, tinha outros mais.
Mesmo assim, eu e papai nos cansamos de pegar jaraqui no paneiro. Eu ficava com
dois paneiros feitos pelo papai naquelas enseadas. Me colocava em uma posição bem
que eu sabia que o peixe ia passar. Aí, o papai saía com uma vara batendo na água, o
peixe saía correndo prá fora, o paneiro já estava na posição, só fazia suspender o
mesmo cheio de peixe.
Prá se ter uma idéia, ninguém naquele momento, naquela época não tinha
porque jogar bomba. Porque o pescador que jogava tarrafa ele pegava quantidade.
Amazônia: Pescadores contam histórias

Você até tinha privilégio, eu digo. Por isso, aconteceu muitas vezes comigo e o papai,
da gente ver cada piracema de peixe.
Aí, a gente olhava, aí o papai dizia: eu não vou jogar minha tarrafa porque é
pacu ou é jaraqui médio ou é aracu marinheiro. E tinha vezes que o papai não jogava
a tarrafa porque era cardume de tambaqui ou pirapitinga ou jutuara grande ou tucunaré
grande. Mas, a ignorância e a ganância falou mais alto. Mas, mesmo assim tinha fartu-
ra para pegar cinqüenta, cem ou mais jaraqui. Era fácil! E não só o jaraqui, o tucunaré,
o tambaqui, o pirarucu, a pirapitinga.
Agora vamos falar do resultado. Acabaram com os grandes igapós da frente,
58 do lado e dentro do Mapiri. Com isso, grandes quantidades de bomba foram jogado
por dia. Foram trinta e nove anos de bombardeios no Mapiri. Nas margens do rio
Tapajós, cabeceiras e lagos na várzea. E ninguém ligou para o estrago. Tinha dias de
jogarem mais de cem bombas de trezentos gramas no Mapiri.
Vamos fazer um cálculo: quantas toneladas foram jogadas em trinta e nove
anos? Isso só no Mapiri, (...) 252.720 toneladas. Isso por baixo. Eu pergunto aos en-
tendidos no assunto: qual foi o teor de poluição ou envenenamento que isto deixou?
Qual foi o saldo positivo e negativo? Gostaria de ter a resposta com todo respeito!
Uma coisa eu digo, que de positivo no meu pouco conhecimento não tem nada!
Agora, negativo, tem muita coisa. Primeiro, muitos bombeiros (Moacir nomeia os pesca-
dores que jogavam bombas caseiras como arreio de pesca, de bombeiros) acidentados
por bomba já se foram por causa das conseqüências. Outros estão aí, mutilados rece-
bendo uma aposentadoria irregular. Porque, no meu entender, foi um acidente abusan-
do da lei, enquanto que certas pessoas que vive sem condições de trabalho por causa de
acidente que ele não procurou. O INSS recusa, diz que a pessoa está boa, enquanto que
esses abusam da lei, ganham suas aposentadorias e ainda continuam fazendo crime.
Eu digo, provo, ok? E nenhum bombeiro daqueles mais perversos estão todos
na miséria. Não vejo nenhum rico. Então, não adiantou fazer um crime tão grande
contra a natureza. Então, está aí o porque da poluição, do extermínio dos nossos
igapós e igarapés.
Se não bastasse isso, veio a questão do garimpo para a poluição do nosso rio
maravilhoso (Tapajós). E hoje, está aí a praia do Pau-Rico (praia do Maracanã) com as
barracas que ficam submersas no inverno. E o lixo doméstico e outros tipos de lixo
jogado na água.
Está aí, a Ponta do Maracanã. Segundo pessoas, tem residência com tubulação
jogando os seus detritos para o rio ao lado das pedras. E aí, as pessoas, os banhistas
estão lá, muitas vezes até bebendo aquela água. Está aí nosso Mapiri com a poluição
daquele estaleiro jogando todo tipo de material que poluí, pedaço de madeira com
prego, com tinta, óleo e outros. Está aí o Candinho que aterrou a praia e hoje é uma
poluição total. Os barcos que param por lá jogam seus lixos na água, muitos vão lavar
seus barcos que vieram da pesca e óleo queimado.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

E tanta coisa que deixa a gente triste. Eu só penso nos meus filhos e netos e as
futuras gerações.Temos também outro estaleiro no lago do Papacu.
Aí, o leitor pode me perguntar, mas você fez alguma coisa em favor dessas coisas?
Já em 1977, começamos fazer reuniões no Núcleo de Base que, na época, era Capatazia.
O Lázaro era coordenador ou capataz e depois veio o João Bentes e o atual Raimundo
Góes. Eu, na época, não era sócio da Z-20 mas já fazia um serviço da entidade.
E, quando em 1980/1981/1982 comecei conversas com os bombeiros. Uns
aceitavam minha conversa, outros não. Até que chegamos a fazer um pega-pega de
bombeiro. E isso aconteceu em 84. Prendemos bombeiros, entregamos na marinha.
Aí, foi para a Polícia Federal e o resultado disso: os cinqüenta e sete pescadores que 59
estavam me dando apoio sumiu. Quem agüentou o pepino naquele momento foram
uns companheiros do São Ciríaco (comunidade).
Os dois que foram pegos por nós quando jogavam bomba, eles foram presos
de manhã e no início da tarde já estavam me procurando para me mandar pra cidade
do pé junto. Foram em casa, não me acharam. Mas eu fui perseguido quatro anos. Eu,
quando saia prá pescar, saia escondido. Mas, duas vezes correram atrás de mim para
jogar bomba na minha canoa.
Mais de um mês fui protegido da polícia federal por ordem do coordenador da
Sudepe/Pará, Dr. Edson Borges. O mesmo foi chamado pela diretoria da Z-20, e o
mesmo veio e manerou o problema. Falou que se acontecesse alguma coisa comigo, a
polícia seria responsabilizada. Mas eu não parei.
Conversei com a minha filha, que na época tinha quatorze anos, para fundar
um grupo de adolescentes. O grupo foi fundado com dezessete adolescentes. Era pra
ver se as autoridades pelo menos ouviam e se sensibilizassem com o problema. Eu já
tinha feito duas reuniões e não fui ouvido.
Então, foi criado o grupo para ver se resolvia a questão. Foi feito o convite
assinado pelas meninas e vieram atender o chamado. A reunião foi feita na Igreja de
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Aí, uma decepção para mim e mais bronca.
Eu fui na reunião, quando vi que todos os representantes estavam fazendo
jogo de vôlei, e ninguém queria segurar a bola, eu pedi a palavra. E comecei a colocar
o seguinte: que ninguém queria se responsabilizar com o problema e aí eu fui fazer a
colocação. Quando prendi bombeiro e entreguei prá Marinha e a Marinha entregou
prá Polícia Federal, com três horas mais ou menos os mesmos andavam atrás de mim
pra me matar.
O delegado da Polícia Federal se achou ofendido e levantou e veio em cima de
mim para me bater. Foi quando o representante da Marinha mandou o mesmo sentar e
garantiu minha falação. Mas acabou em nada. Para me safar dos bombeiros, eu conver-
sei com o Padre Leão e Eunice. Fizemos uma reunião com cento e quarenta e oito bom-
beiros e mais outras pessoas, na Praia do Pau-Rico. Eu passei a explicar, até porque dois
meses antes dessa reunião, mais de vinte bombeiros me peitaram e só não me mataram
Amazônia: Pescadores contam histórias

porque Deus não quis. Aí, eu mostrei para eles o prejuízo que estavam dando para eles
mesmos. Inclusive, no dia anterior, tinham morto dois casais de tucunaré, um casal esta-
va com os filhos de três centímetros e outro de cinco centímetros.
Então, nesse momento, houve um grande silêncio e da parte do chefe e mais
uns dois exaltados pediram desculpas, perdão. Houve lágrimas e entenderam que de
fato eu estava fazendo o bem prá eles mesmos. Então, nós tivemos quatro dias conse-
cutivos que ninguém jogou bomba. Aí, mais ou menos um mês e meio, ficaram jogan-
do bem espaçado. Mas ninguém ligou e aí correu solto.
Mas, eu não parei. Fiz um relatório e mandei prá Brasília, onde nós temos
60 representantes do Monape (Movimento Nacional dos Pescadores). Não sei se che-
gou... Quando foi um dia, o presidente do Monape chegou aqui. Aí, fiz outro relató-
rio. Ele levou e disse que o problema pertencia à Prefeitura.
Então, eu acredito que aquela torre de fiscalização foi o resultado. Que não
fiscaliza nada, inclusive o fiscal, segundo outras pessoas, foi quem matou um pirarucu
no lago do Papacu que pesou de 12 a 15 quilos. E todo ano pega os tambaquis
pequenos, ou seja, os bocós. Só este ano, fizeram o mesmo soltar oito peixes na base
de um quilo prá frente.
Então, hoje está aí os nossos lagos e igarapés... Cheios de lixo, óleo queimado,
pesca de arrastão e ninguém toma providência.
Quero dizer que já plantamos diversas árvores frutíferas como catauari, camo-
camo, bacuri e outros. Inclusive, eu plantei uma muncubeira. E cadê os vigias? Ibama,
o poder público? O Mapiri está dentro da cidade, não podemos aceitar esses tipos de
crimes e abusos contra a natureza!
Ainda guardo na mente Mapiri, tua beleza e as paisagens lindas que Deus te
deu. Os pássaros cantando e os peixes e a água saudáveis.
Aqui vou encerrando esse triste histórico com muita tristeza. Que nunca pas-
sou pela minha cabeça que as maravilhas que eu vi e conheci... Jamais pensei, hoje,
escrever tudo isso que aí está. Conte comigo Mapiri!”
As bombas caseiras transtornaram a vida dos moradores-pescadores das loca-
lidades urbanas do Mapiri, Maracanã e Juá. Complementando o relato do Moacir,
Raimundo Nonato de Sousa, da comunidade do Juá contou como eles se defenderam
dessa pesca predatória.
“Tivemos muito conflito. Não tinha segurança. Na época, a Z-20 não dava
apoio. A Z-20 nunca deu apoio aqui no Juá na época que nós tivemos conflito com a
bomba. Mas, nós fumo levando com o nosso poder. Que Deus nos ajudando, brigan-
do e fumo retirando e tirando eles daqui, levando lá pra fora.
E chegamo num consenso. Nossa arma era caniço e remo. Chegamo até... um
coronel, prendeu um bombeiro lá no Mapiri e veio fazê uma experiência no Juá. E
vieram de lancha, entraram, ancoraram... Aí saíram duas lanchas. Quando eles joga-
ram as bomba nós tava tudo dentro do mato. Quando nós saímo, prá pegá o bombei-
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

ro e... foi na hora que o coronel disse, pediu paz. Aí, nós fomo lá e conversamo. Então,
ele disse que aqui no Juá ainda tem educação de pescador. Tá. Então foi na hora que
nós chegamos aí, passamo até não sei. Mas até na Rede Globo nós passamos. Nós não
vimo porque na época ninguém tinha televisão. Passô prá lá, ninguém tinha. Então, a
partir daí, nós fomo respeitado aqui no Juá!
Nós tivemos também o apoio do Moacir. Apoiou muito nós. O Juá é muito
rico, tem pirarucu. O Juá vende no Mapiri. O Cucurunã vende no asfalto, ponte da
estrada para o aeroporto.
Na época da cheia, a praia do Maracanã e Salvação se ligam com o lago do Juá.
Mas, no verão estanca completamente sua ligação com o rio Tapajós e Maracanã. Os 61
pescadores do Juá têm suas próprias regras para o lago, seus acordos, sem apoio de
uma portaria de pesca. Mesmo assim, essas regras são muito respeitadas pelos pesca-
dores de fora. E todos conhecem as regras do Juá.
Conhecendo a garra, a força dos moradores do Juá, foi que fundamos a Asso-
ciação dos Moradores do bairro do Maracanã e comunidade do Juá. Raimundo esteve
na articulação da organização e é sócio-fundador assim como eu.”
Como ex-coordenadora do Núcleo de Base do Maracanã e ex-diretora da Z-20
e gostaria de esclarecer ao leitor que a Colônia de Pescadores Z-20 não é um órgão
fiscalizador. A Z-20 somos todos nós associados. O que muda é a condução de cada
diretoria que executa seu trabalho.
Amazônia: Pescadores contam histórias

62

Acyr Correia Amaral.

Dilza Maria F. dos Santos.


Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

63

Dorinelson Lopes Barbosa ladeado por seus filhos.

Edimilson Galúcio
Rodrigues.
Amazônia: Pescadores contam histórias

64

Eurides dos Santos Pereira.

Jocelina Rodrigues de Licata.


Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

65

José Luis dos Santos.

Maria Lázara Reis dos Santos.

Osmar de Oliveira Didiet.


Amazônia: Pescadores contam histórias

66

Maria Luiza Pinto Sousa.

Pedro e Rita de Sousa.


Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

67

Olavo Afonso e família.

Sansan Bento Lourido.


Amazônia: Pescadores contam histórias

68

Raimundo de Sousa e
Ornelinda Caetano.

Valdemir da Silva.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

69

Renato dos Santos Ribeiro.

Wilson Mota de Sousa.


Amazônia: Pescadores contam histórias

Pescadores e suas histórias imortais

70

V Vou contar histórias do passado mais do que do presente. Nesse tempo, existia
muita fartura do pescado, como também de animais silvestres como o tracajá, a marreca,
o pato, entre tantos outros que servem de alimento para o povo ribeirinho tradicional na
Amazônia. O pescador(a) variava o cardápio conforme a temporada de cada espécie.
Minha viagem começou no Lago Grande do Curuai, e foi lá que confirmei a
existência de um pescador imortal: Olavo Rodrigues. Muitos pescadores falam nele.
De suas qualidades na arte descarada de matar o pirarucu. Como Olavo é meu pai,
fiquei pensando muito se eu deveria escrever sobre ele. Eu sou pescadora também, de
onde eu herdei essa profissão?
Quando aconteceu minha segunda viagem, no meio dela já tinha decidido
que tinha que voltar para o Lago Grande à procura de pescadores(as) famosos na
pesca artesanal do pirarucu. Esse é o peixe que tem a pesca mais diferenciada na
Amazônia, então porque não escrever sobre ele, o peixe e seus amantes imortais? E
Olavo é um deles!
Nasceu em 21 de novembro de 1931, na comunidade de São Jorge, Lago
Grande do Curuai. Desde os sete anos dedicou sua vida à pescaria. Pescou de tudo,
várias espécies, mas uma sem comparação: o pirarucu, peixe gigante do rio Amazo-
nas. Assim como também gostava de pegar patos e marrecas, ovo de tracajá, tracajá...
Depois Olavo passou a morar no Inanu, também na mesma região. Bem cedo
ele saia junto com seu piloto, o ajudante da pescaria. Ficava no seu pesqueiro, uma
árvore bem grande, com belos galhos. Ali ficava só ele e o vento que batia em seu
rosto. Observava tudo calmamente; pássaros, capim e outros peixes. Ficava vendo a
tarde passar e a noite chegar ao redor da árvore em que estava. Vida de pescador(a) é
assim mesmo! Vários dias observando, vendo onde o peixe bóia.
Ficando sempre à espera com a hastia e seu arpão na mão, continuava Olavo a
observar as águas turvas do Lago Grande. Usava para tanto aquela paciência de
pescador(a) a espera do momento certo para agir.
A mão do pescador(a) está sempre ocupada. Não pode nem piscar, pois num
abrir e fechar de olhos perde sua grande oportunidade de capturar o maior peixe de
sua vida. Assim como Olavo, muitos outros pescadores(as) artesanais também saem
cedo e não tem hora e dia para voltarem.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Mais alguns minutos e ouviu barulhos. Nessa hora, quase que caia da árvore.
Com resistência arrumou seu corpo atento ao barulho. Aí, percebeu que a zoada não
passava de um cardume de aruanã. Desolado, pediu mais uma vez a ajuda ao seu
piloto que lhe trouxe café.
Agora não podia errar: o barulho era o dele! O pescador já sabia que a espera
estava no fim. Pegou o arpão e se ajeitou na árvore. Chegou a hora! Seu tão esperado
peixe deixou a cabeça aparecer por entre o capim. Olavo apontou o arpão em direção
a cabeça do pirarucu. Foi certeiro! Afrouxou a corda para que ele pudesse correr um
pouco. Chamou o piloto para trazer o outro arpão. Queria dar a segundona, a segun-
da arpoada, ter certeza de que o peixe estava seguro. 71
O pirarucu é um peixe tinhoso. Gosta de mostrar que é mais forte que o
pescado(a). Este em especial era grande, devia ter umas quatro postas e dois metros e
meio. As escamas apareciam avermelhadas e marrons.
O pescador Olavo pegou na canoa seu cacete de boteiro e deu umas cacetadas
na cabeça do pirarucu ao mesmo tempo em que caia na água acompanhando o peixe
que fora dominado por ele. Quando saiu da água, puxou o grande peixe para dentro de
seu pequeno bote com a ajuda de seu piloto. O cansaço era tanto como o tamanho do
pirarucu. Muitas vezes, quando ia pescar de bote e o peixe era grande que não dava no
seu pequeno transporte, ele o amarrava atrás do botinho com a linha.
E assim este pescador passou sua vida nas águas da natureza. Ele me contou
uma vez, que foi pescar e deixou seu filho dentro da canoa. Quando olhou procuran-
do por ele,viu que uma enorme sucuriju estava prestes a se enrolar nele.
Aí, Olavo foi lá com suas duas mãos e se agarrou no bicho. Deu um puxão na
cobra tirando-a de perto de seu filho!
Sérgio Duval dos Santos Pereira, conhecido como Basinho na Vila Curuai dei-
xou transparecer sua admiração por esse grande pescador de pirarucu.
“O finado Olavo era profissional prá matar pirarucu. Ele matava pirarucu, tanto
faz de choca como com filho, como picado do galho do pau. Prá ele não tinha proble-
ma. Ele matava pirarucu do jeito que o pirarucu aparecesse prá ele. Ele era profissional
prá arpoar pirarucu. E quando ele arpoava ele no mato, ele via que o peixe ia trançá, e
ele não ia tê vitória, ele saia no reboque da linha destrançando até o peixe chegá no
limpo. Quando ele via que o peixe já estava no limpo, aí, ele apertava a linha e gritava
o piloto prá vim buscar ele. Prá vim pegá que o peixe já estava numa paragem onde
não pudia mais enrascá. E lá o piloto chegava e ele subia prá proa da canoa e iam matá
o peixe. Era assim que ele fazia. Era matador de pirarucu profissional! Isso aí eu posso
garantir. Eu só vi dois profissional de pirarucu, prá matá pirarucu que foi o finado
Olavo e o velho Oscar Galúcio. Esses dois eu posso lhe garantir!”
Haroldo Viana dos Santos, aquele pescador que mora perto do cemitério do
Inanu, homem de fé, enalteceu a fama de Olavo com uma forma bastante respeitosa e
carinhosa.
Amazônia: Pescadores contam histórias

”O Olavo era o mais famoso aqui na região do Lago Grande prá matá pirarucu.
A pescaria dele só era pirarucu. Uma vez, ele me contou uma história muito emocio-
nante. Eu como pescador fiquei emocionado quando ele me contou aquela história.
Ele me contou um dia que ele viu, tava pescando e viu um pirarucu boiá. Dentro de
uma capoeira muito feia. Aí, ele pensou de todo jeito, quis pegá o peixe de todo jeito,
não dava certo... Aí, ele... teve uma idéia. Ele disse:
— Eu vou trepar naquela árvore onde é que aquele pirarucu bóia. Porque eu
tenho certeza, ele boiô embaixo de mim, eu mato ele! Eu arpôo aquele peixe.
Peixe muito grande com uns sessenta quilos. Aí, ele foi. Chegou lá trepou na
72 árvore, fez a espera. E não demorou o peixe veio. Ele picou o peixe. Aí, quando ele
picou aquele pirarucu muito grande, ele caiu com tudo lá de cima. Ele não esperô, o
peixe era tão grande, tão violento... Aí, ele foi no reboque da linha. Aí, foi destrançando
lá pelo fundo... E quando foi prá ele boiá, ele boiô embaixo de uma galhada, quase ele
não... não teve assim... suspiro prá, prá saí... debaixo daquela galhada. Aí, Deus deu...
pela sua misericórdia, ele bóiô mais na frente... Aí, ele conseguiu respirá. Aí, ele puxou
aquele pirarucu, matô ele. Sozinho, só ele e Deus. Então, ele me contou essa história.
Aí, eu disse assim:
— O senhor mergulha pelo fundo?
Ele disse:
— É, as vezes, quando dá certo eu posso mergulhar.
— E o senhor não tem medo de jacaré?
— Não.
— O senhor não tem medo de cobra grande?
Ele me falou também que não tinha medo de cobra grande. Que no momento
que ele tava com aquele peixe no arpão ele... ele tava passando por uma emoção
muito grande e a profissão dele era aquela. Ele sobrevivia daquilo.
Histórias não faltam desse homem fixado na pescaria do pirarucu. Pegava qual-
quer tipo de peixe. Mas não tinha muita paciência para peixes pequenos. Olavo pres-
sentia que o peixe estava para boiar. Quando o pirarucu está na choca que precisa ser
silencioso para capturá-lo, tem que estar bem caladinho. Mas, no pasto, no capim não
precisa tanto silêncio. Penso que Olavo tinha uma obsessão em arpoar. Ele o fazia de
todas as maneiras, mas o que mais gostava era a pescaria no galho do pau.”
Silvio Nogueira do Carmo, seu irmão, confirma a preferência de Olavo. ”Eu gos-
tava de vê a coragem daquele homem. Aí, nesse igapó do Iauara, onde a gente fazia a
barraca, né? No, inverno rapá, num casco, ia arpoá pirarucu do galho do pau. E ia
embarcá. Quase cai n’água, lá pelo fundo prá destrançá a linha... Só ele e Deus, né? Mas,
rapá, já pensô? Com tanto jacaré que tem naquele igapózão por lá! É muita coragem.
Embarcava aquele pirarucu naquele bote prá levá prá onde ele podia cuidá. Só
ele e Deus! Aquilo gostava de arpoá um pirarucu debaixo do pau no igapó. Gostava
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

memo, não tinha medo. Admirava que só ele! Embarcá um peixe num casquinho
daquele... (...) Mas ele tinha a canoa, tinha uma canoa grande, tinha... justamente.
Levava a canoa grande, amarrava lá fora e... pescava no bote. A canoa grande era prá
ele dormi dentro, salgá o peixe, agasalhá o peixe, lá era a casa dele. Pescava muito,
aquele meu irmão!”
”Olavo era muito calmo. Se desse com um pirarucu acabava a fome. De noite
assim, ele acordava cedo e escutava onde tinha o peixe. Com o luar, noite de luar, ele
ia, dava com o peixe e conseguia arpoá logo. Gostava de conversá, contá muitas
história. Ele era alegre.” Assim o descreveu José Monteiro Guimarães, 75 anos.
Apesar de gostar de pescar só, Olavo teve muitos pilotos. José Monteiro foi um 73
dos tantos pilotos de Olavo. Ele me revelou que ”o piloto vai levando e o proeiro vai com
a hastia ali no fundo, sabe? Quando encontra nele, ele conhece e...Olavo tinha o pirarucu
na mira de todo jeito. O piloto tem que saber a técnica da pescaria que está fazendo.”
Na fisga do pirarucu, o remador tem que ser bom. Quando o pescador precisa-
va de alguma coisa, chamava baixinho o piloto, sem barulho para não espantar. Cha-
ma para um pouco de água, café ou até mesmo comida. Coisas que Olavo esquecia
completamente quando estava na pescaria.
Olavo Afonso e Antonio Matias, seus filhos, também foram seus pilotos. Olavo
Afonso me contou que só conversavam quando não estavam na pescaria. ”Ninguém
falava pro lado do outro. Nem se mexia na canoa. Se você se mexesse, o peixe já sentia.
Meu pai tava prá Manaus. Deixô as hastia dele tudinho. Ele não gostava que
pegasse a hatia dele, linha, nada, né? Eu peguei, robei dele a linha, o arpão... robei o
arpão, a linha, a hastia tudinho e convidei meu tio. Eu dei com o peixe lá, né? Aí,
convidei meu tio Teodomiro prá ir atrás do peixe. Prá capturá o peixe. Aí, na hora ele...
ele foi comigo... Aí, eu disse como era tudinho. Eu sabia tudinho, como era o jeito de...
Aí, eu deixei meu tio lá na árvore... Aí, o peixe era tão grande que arpoô o peixe e o
peixe levô tudo. Levô a linha, levô o arpão, levô a bóia, levô tudinho... o peixe era
grande, né? Aí, ele gritô de lá. Eu deixei ele lá e vim prá cá, né? Prá tocá o peixe. Aí, ele
arpoô o peixe de lá e disse:
— Já foi, já foi tudo. Já perdi tudo. Já perdi a linha, o arpão, a hastia e o
pirarucu!
Aí, eu peguei ele lá e vim vim... viemo rápido, né? Só era só era o escumero prá
todo lado, né? Aí, vinha vindo lá, quando chegô no buraco da cobra grande a bóia buiô.
A bóia ia passan... buiô perto de mim, né? Aí, eu... teipei dentro d’água. Só deu tempo
deu pegá na bóia e o peixe me levô por baixo do capim deu uma volta lá... aí eu...
consegui pegá na no... com a mão no... no galho do pau, né? Aí, eu me segurei. O peixe
bateu. Aí eu consegui dominá o peixe. A gente matô o peixe, recuperemo tudinho, a
linha, o arpão, a hastia, tudinho foi recuperado e o peixe! Contamos para ele.”
Não importava se a cobra grande estava por perto, se ele morresse. O que
importava era salvar o arreio do pai. Olavo Afonso costumava fugir da aula para ir
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pescar com Olavo e tal como ele também não gosta que peguem em seus arreios.
Atualmente, vive da pesca comercial e é sócio da Z-20.
Muitos outros pilotiaram para Olavo. Dorinelson Lopes Barbosa, 29 anos, me
contou muitas histórias sobre suas pescarias. Ele me disse que começou a pescar de
piloto com cinco anos. E que tudo o que aprendeu dessa prática, nessa vida, foi com
o Lavico, como ele chama “o pescador”.
Repepinilo, como era chamado pelo seu mestre, também se tornou um exímio
pescador de pirarucu, assim como outros peixes também. Para sempre Repepinilo vai
guardar esse convívio que teve com o Olavo.
74
“A gente ficá lá namorando um peixe... Tu sabia que a gente namora peixe?
Namora peixe... Não é só mulher que a gente namora, não! Olavo namorava muito
bem. A hora que finca o ferro, acabô o carinho. Quando ele via um peixe assim, eu
sabia que tava morto. Não tinha jeito, não! Do jeito ou do outro, a gente ia vê ele. Ele
era muito bom de arpão, ele. Aí, a gente foi prá lá, e quando a gente chegô lá... só que
a gente pescava junto... que, o que eu dizia prá ele, ele aceitava. E o que ele me falava,
do mesmo jeito. Eu era moleque ainda na frente dele. Ele era velho, ele já. Idoso
mesmo assim. Mas, a gente se tratava de brincadeira parece assim... eu com uma
pessoa do meu tamanho. Arpoava, não tremia, não tinha nervoso, ele. Era muito bom
ele mesmo.
Eu matava surubim. Matava surubim. Surubim eu arpoava muito. Pirarucu eu
ainda não tinha matado depois dele morrê. Quando foi um dia, veio um amigo meu
ali daquele lado, que é um cunhado meu. Aí, ele veio. Quando um dia, ele chegô
cansado aí em casa. E... meu apelido é Piquê, tenho tanto apelido, né? Aí, ele disse:
— Piquê? Pô, tem um pirarucu muito grande ali no Santinho, cara. Eu queria
que tu fosse lá, prá gente matá ele.
— Mas, tá amarrado?
Eu disse prá ele. Aí, ele disse:
— Não rapá, ele não tá amarrado não. Ele tá só manso. Ele tá besta, ele...
Aí, eu disse:
— Ma... agora de noite, rapá?
Ele disse:
— Não. Não sei, tu que sabe aí!?
Aí, eu disse:
— Tu qué matá o pirarucu?
Ele disse:
— Eu quero.
— Então, tu passa aqui comigo quatro hora da madrugada. Eu tô te esperan-
do aqui.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

— Tá.
Aí, eu dormi... quando foi quatro hora da madrugada eu varei prá fora. Fiz o
café tudinho... Coloquei na garrafa. Aí, ele chegô. Disse:
— Já tomô café?
— Ainda não.
— Então, toma logo aí!
Aí, ele tomô o café dele. Aí:
— Leva essas hastia prá mim. Aí, eu levo os arpão. E aí, nós fomo embora.
Baixamo... Aí, a gente rodamo rodamo rodamo nesse dia... Nós saímo era quatro hora
75
da madrugada. Aí, quando nós... isso deveria sê meio dia... ia dá meio dia... Onze hora
ia dá. Aí, nada de vim o pirarucu que ele tinha visto. Ele disse prá mim assim:
— Ma, rapá, eu vi o peixe aqui. A gente tarrafiava perto dele.
Eu digo:
— Pô, foi por isso cara! Tu tarrafiô perto dele, ele se espantô, foi embora. Por
que tu fez isso?
— Não, mas ele ficô aí.
Aí, eu disse:
— Então, o seguinte. Tu qué matá o peixe.
— Eu quero.
— Então, embora voltá, tu vai lá trabalhá...
Que ele tava é... batendo feijão, sabe?
— Aí, quando for uma hora tu vem daqui... daquele lado prá cá... Eu te pego
aí, nós vamo embora.
— Tá legal.
Aí, quando foi uma hora ele chegô aí. Aí, eu disse prá ele assim:
— Olha, sabe porquê nós não matemo o peixe? Não tem cachaça! Vão bora
levá cachaça?
— Vão bora.
Aí, eu:
— Aonde a gente pega? Tem crédito lá!
— Vá lá, pegue meia garrafa de cachaça prá mim.
Aí, ele foi lá, pegô meia garrafa de cachaça. Aí, agarrô, foi, pegô meia garrafa
de cachaça. A gente foi embora, sabe?
Quando chegô lá na... na onde ele tinha visto o peixe... Aí, eu disse:
— Me dá uma dose aí?
Aí, ele agarrô me deu uma dose lá. Eu tomei. Aí, ele tomô outra. Aí, eu disse:
— Olha, essa cachaça aqui nós só vamo tomá quando nós embarcá o pirarucu!
Aí, ele:
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— Tá legal.
— Tu viu ele aqui memo?
— Então o seguinte: das hora que tu viu ele ontem de tarde a gente vai vê ele hoje!
— Tá legal.
Aí, ficamo lá, colocamo uma malhadera lá. Aí, deu quatro horas, deu cinco
horas. Quando acho que deu umas... cinco e meia... quando eu vi, o peixe vinha
vindo, sabe? Com filho bem pequenininho. Aí, eu disse prá ele:
— O filho do peixe tava grande?
76 Aí, ele disse assim:
— Não, tava pequeno.
Eu digo:
— Rapaz, tira esse bote, tira essa malhadera daqui... tem tudo que lá vem ele ali, ó!?
Aí, ele disse:
— Porra, é ele mesmo, cara?
Aí, a gente agarrô, puxô a malhadera... É... ele vem com os filho dele assim.
Boiando assim... igual a escuminha assim. Ele vem vem... bóia aqui... bóia ali... bóia
aqui... bóia ali... De vez em quando eles bóia tudo os dois, vem os dois o macho e a
fêmea. Aí, eu agarrei, tirei a malhadera. Aí, nem terminô de ajuntá direito ela, joguei lá a
malhadera pro fundo. Lá tá amarrado lá no galho do pau. Eu digo depois a gente pega
a malhadera. Aí, eu garrei a haste, tava armado, eu molhei ela rapidinho. Aí, eu disse:
— Me dá essa cachaça aí, porra!
Aí, ele me deu a cachaça de lá, sabe? Eu tomei mais uma. Aí, eu me ajeitei
tudinho lá. Aí, quando eu vi, o peixe passô assim. Bem onde tava a malhadera pro
limpo. Aí, o peixe passô. Aí, eu disse prá ele:
— Leva, leva... leva, leva...
Aí, ele... tava remando devagazinho, sabe. Aí, eu chamei o nome prá ele.
— Mas leva, caralho! Porra, tu não tá vendo que o peixe vai boiá, porra?
Aí, ele agarrô e levô, né? Aí, ele deu uma remada, canoa chegô bem perto.
Quando ele chegô assim o peixe saiu, espalhô assim. Aí eu disse:
— Ih, rapaz, arrecua, arrecua, arrecua...
Aí, ele arecuô a canoa, sabe?
— Agora, quieta aí.
Aí, ele pegô de novo os filho. Quando pegô os filho. Aí, o peixe virô bem de frente,
assim, com o filho sabe? E veio pro meu rumo assim. Aí, eu disse prá ele arrecuá... eu disse
prá ele arrecuá. Aí, ele arrecuô a canoa. Aí, quando eu vi... o peixe boiô assim. Boiô primei-
ro um, aí era o macho. Quando eu vi, a fêmea boiô. Aí, eu levantei e disse assim:
— Olha, isso daqui que o finado Olavo me deixô de herança!
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Soltei! Aí, o peixe bateu prá lá, levô prá lá... ai, eu agüentei aqui. Aí, foi aquele
escumero lá no fundo. E aí, o peixe batia em cima d’água bem forte: quepei! Aí, eu
disse assim. Aí, eu disse assim:
— Ih, rapaz, acho que tá bem arpoado, porque o arpão é grande!
Aí, o peixe bateu prá lá:
— Me dá aqui essa outra hastia aí.
Ele deu. Eu armei outra hastia prá segundá o peixe. Aí, só que eu tinha aparpado
o peixe no fundo, né? Prá mim eu tinha aparpado na costa dele. Quando eu levei a
hastia assim, pegô no rabinho dele já no fim, bem no fim mesmo do rabo. Aí, eu 77
aparpei. Prá mim era na costa assim. Aí, eu aparpei, soltei... Rapaz, eu errei o peixe prá
segunda ele. Aí, o arpão... acho que devia tê entrado... acho que aquele ganho dele,
primeiro, acho que entro tudinho numa raiz (risos).
— Rapaz, eu errei o peixe, e agora?
Aí, o peixe correu de novo, sabe? Tava com o primeiro arpão. Aí, ele bateu de
novo. Aí, eu segurei. Aí, eu disse:
— Rapaz, ele não vai embora não. Ele tá seguro! Vá lá no fundo e tira meu
arpão lá.
Ele ficou olhando... Esse rapaz ficô me olhando... Aí, eu disse:
— Vá logo lá, pô!? Me trague lá, nem que seja enrolado que assim mesmo eu
segundo ele.
Aí, ele foi prá lá com medo... caiu, puxava o arpão, puxava... aí, saiu o arpão. Aí,
ele disse:
— Eu tirei, tirei cunhado, tá aqui ó!
— Tá enrolado?
— Não, tá inteirinho.
Eu digo:
— Então é marca boa! Me dá aqui ele.
Aí, meti na hastia. Aí, eu disse:
— Agora, eu vô segunda ele na linha. Não vou mais segundá aparpando não.
Aí, eu tezei a linha onde eu tinha arpoado e acertei ele. Segundei ele. É, joguei
o arpão assim tchá, lá pro fundo. Aí, eu acertei ele de novo. Aí, eu agarrei, puxemo ele.
Aí, eu disse:
— Agora, me dá o cacete!
Aí, ele me deu o cacete. Aí, ele já tava rindo já... meu cunhado tava rindo. Aí, eu
disse prá ele assim:
— Não acha graça não, pô! O peixe ainda tá no fundo... ainda não tá na canoa,
não!
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Aí, ele ficô sério comigo.


— O peixe ainda não tá morto!
Aí, ele ficô sério. Aí, ele agarrô me deu o cacete de lá. Aí, eu peguei o peixe
assim, meti meu... minha mão assim pelos olho... os dois olho dele assim, né? Segurei,
cacetei ele. Aí, ele disse:
— Pô, é grande...
— É, é grande... agora faz peso pro outro lado que eu vou embarcá ele na
canoa.
78 Aí, ele fez peso pro outro lado. Aí, eu dei um impulso no peixe, puxei com tudo
prá cima. Aí, eu embarquei ele. Aí, a gente chegô aqui já era de noitinha já. Aí, não deu
da gente cuidá ele... bem aí... nessa casa lá, passando essa daí, tem uma cozinha de
pau lá. Deu lá da cumieira, o rabo dele ficava assim na terra (mostrou que a ponta do
rabo arrastava no chão). Desde disso, pronto! De vez em quando a gente mata.
José Monteiro é incansável para falar de Olavo. “Ele pegava o pirarucu de
onda. Na seca, quando ele espanta, ele levanta a onda sabe? Aí, o pescador conhece
a posição que vai... e arpoa. No igarapé de salga, era na fisga. A fisga não pode ter
pressa nem muito devagar.
Era difícil de Olavo errá. Ele tinha muita coragem. Olha, quando... ia... nessas
cabeceira de igarapé assim, tinha pirarucu assim ele trepava no galho do pau. Ficava
lá. Olhando pro fundo. Certo ali. Quando o pirarucu passava ele ferrava-lhe o arpão.
E, quando lá via que o pirarucu ia com muita violência que ele... ele caia na... na água,
na ponta da linha. Não tinha medo. Tinha matupá, esse capim que dá matupá, aí ele
mergulhava aquilo... com a força que o peixe faz, né? Ele ia no reboque lá na frente.
Ele controlava, ele sabia controlá. (eram lugares fundos, em geral que não davam para
ficar em pé) Se pegava no galho do pau, mesmo no capim... chamava o piloto. O
piloto ia e aí ele matava.“
Histórias e mais histórias... Quem conta é Edimilson Galúcio Rodrigues, outro
filho de Olavo.
“Trabalhava numa fazenda lá prá cima, perto do Piracuara. Aí, sempre meu pai
ia prá lá. Pescá pirarucu. Chega... chegaram lá ele com meu primo Delmo, era o piloto
dele. Aí, mataram um pirarucu. Aí, tiraram a ventrecha, tiraram o... a cabeça, costela...
levaram pru... a carne lá pro meu patrão em terra.
Lá, eles trouxeram uma garrafa de pinga... Tornaram a pescá de novo mas não
conseguiram mais nada. Vieram embora de volta pro Inanú. Aí, deixaram as carne do
pirarucu lá em terra. Aí, ele tinha deixado prá mim uma hastia, com linha e arpão. Aí,
eu saí prá ir... eu trepei no galho do pau, arpoei o pirarucu. Aí, o pirarucu saiu do
arpão, foi embora. Aí, ficô só a escama do pirarucu no arpão.
Aí, eu tinha guardado as escama prá mostrá pro papai quando chegasse. Aí,
tornaram a voltá, eles dois de novo, Olavo e o Delmo. Aí...
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

— Cadê os peixe? Tem aparecido os pirarucu?


Disse:
— Rapaz, tem uns peixe aí mas... estão viaco. Eu arpoei um pirarucu. Só veio as
escama no arpão. Ele bateu... consegui só as escama. O peixe foi embora! O arpão
arrancô. Vou buscá as escama prá vocês vê ele aqui. Aí, fui lá dentro, peguei as escama
do pirarucu. Aí, mostrei pro papai com Delmo. Aí, disse:
— Mas rapaz, o peixe era grande! Picaste de mal jeito o pirarucu.
Aí, o Delmo ficô olhando prás escama e disse:
— Mentira, pai Olavo! Essas escama é daquele pirarucu que nós matemo no 79
mês passado. Que ele foi buscá lá na ilha e meteu aqui prá lhe enganá.”
***
“Tinha o Matias (que na época tinha uns sete anos) que tinha uma brincadeira
deles que ele... Matias foi pro galho do pau. Ele era pequeno... não... deixô primeiro o
papai no galho do pau. Aí, o Matias foi escondê o bote prá longe. E quando o papai
viu, só o barulho prá lá. Aí, ele gritou:
— Que foi?
— Seu peixe já tá no arpão!
Disse:
— Má rapá...
Disse:
— Não, mas fique prá lá mesmo que eu dô conta!
Aí, o papai ficô. Quando ele... E aí o papai não ficô conformado. Foi prá lá,
chegô lá tava... Matias tinha picado o pirarucu no galho do pau, e ajudô ele a matá.
Aí, Matias disse que era prá ele ficá mesmo ali no galho do pau e í prá lá que ele
ia picá mais um. Aí, o peixe tornô batê... Ele disse que não queria que papai ajudasse
ele, matava só ele. O peixe foi embora e ele não pegô nada. O primeiro ele conseguiu,
era pequeno.
Manuel Idalécio Borge Rocha, contou que uma vez ele foi pescar com seu ir-
mão Olavo. “Grande homem científico do pirarucu. Aí, nós ficamo lá mesmo, na casa
do velho Mereré, né? E quando foi cedo ele disse assim:
— Vão bora, vão bora vê um pirarucu com filho aqui que eu mato no Jauarari.
Aí, tinha um bote pequeno mas que só agüentava mal a mal duas pessoa, né? Aí ele se
acalcô lá pro lado da proa, né? É, com o famoso uru, aquele uru que o pescador usava
muito. É. Sento lá... eu aqui na popa, né? Eu meio desajeitado aqui, eu me desequili-
brava aqui ele ajeitava lá.
Aí, fomos, fomos, encostamo assim num pirantão. Ficando lá. Rapaz, de repen-
te ele se desequilibra lá em cima do uru e quando ele se desequilibra lá, né? Que ele lá
ele acompanhô, que ele teipei... prá água, eu... aí, o bote sentô comigo,né? De bun-
Amazônia: Pescadores contam histórias

da... Aí, ele pegô o uru e jogô em cima do matopá, do pirantão, muito rápido, né? Aí,
puxa vida, ajeitamo, puxamo o bote pro matopá... e com muito cuidado naquele uru,
né? Aí, desalagamos o bote, ele pegou, embarcô, né? Ajeitou a haste, tudo bem... ele disse:
— Umbora, umbora que não vai dá certo nada aqui. Umbora... Agora, lá na
frente, na enseada chamado... do Buieiro, lá eu vi um pirarucu com filho.
Aí, fumo embora prá lá. Chegamos lá, ele encostô assim, tinha um matupá
novamente, encostô o bote. E o pirarucu boiava lá prá dentro do matagal, lá dentro
do igapó, tinha um igapó grande lá. Aí, eu pensei só comigo “será muita burridade
daquele pirarucu vim prá cá... Prá lá nós não passa, porque não tem jeito. Ele prá vim
80 procurá macho, tá difícil. Ele sabe se defendê também, será que esse homem vai subi
por cima desse matupá prá i lá práquela árvore?” Eu pensando, né? Aí, ficamos lá, né?
Ele olhando lá pro lado do pirarucu. Tava sortando os filho, e eu aqui na popa, quieto,
né? Por incrível que pareça, quando eu vi o pirarucu solta os filhos bem no lado que eu
estava, mas ilharquinha de mim, ilharga do bote, sabe? Quando ele soltô os filho, que
ele vira de lá com a hastia, eu só vi meio disviá assim meio pro lado que modo o arpão
vinha no meu peito, sabe? E aí ele encontrô aqui, piii... Aí, o pirarucu correu prá baixo

“O porto de Olavo, Canarana, ainda é o porto de Olavo. Ele mesmo plantou esse capim que
seu porto leva o nome. Pode faltar peixe em outro lugar, mas lá não! Até mesmo o pirarucu vai
visitar... Se tornou um lugar preservado e solitário...Seu bote ainda está lá mas o marinheiro, o
pescador já não mais vai para a água...Ninguém pesca lá...Olavo partiu... não habita mais
Inanu... São Jorge... Lago Grande... “
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

do pirantão, ele agüentô, e agüentô, e agüentô... até que ele cansô e o peixe veio, né?
O peixe veio, aí pegô, cacetô e matô o peixe. Eu fiquei olhando, né? Eu disse assim:
— Mas Olavo, mas como foi que esse peixe veio se entregá? Porque esse peixe
tava difícil de se matá ele!?
Ele disse:
— Não, mano, é porque a cachaça tá embaixo dele (...). Você sabe que cachaça
tudo gosto, então ele veio por causa dessa cachaça. Isso é a traição do pirarucu.
Ele disse:
— É que cachaça tudo mundo gosta, a gente tem que usá a cachaça pro pirarucu vim! 81
Matô a charada!”
Olavo era matador de peixe, mas ele respeitava muito a natureza. Homem com
uma sabedoria popular inimaginável. Pegava o pescado que ele precisava no momen-
to. Muito cuidadoso, sabia que se matasse o macho e a fêmea do pirarucu, por exem-
plo, os filhos morreriam todos. Muitas outras histórias ouvimos desse pescador. Como
bem disse Idalécio, homem científico do pirarucu.

De boca em boca, a imortalidade continua...

O pescador Valdemir da Silva é um contador de história nato. Ele sabe explo-


rar muito bem as expressões faciais e tonalidades vocais. Não sabemos ainda se ele
vai ficar no imaginário coletivo do Inanu como um exímio pescador ou como um
fabuloso contador de histórias. Sim, porque entre os pescadores(as) também tem
muito talento oculto.
Assim como já divagou por outras artimanhas, ele lembra de Oscar Galúcio,
um grande pescador imortal.
”O Mané Galúcio, ele era um grande pescador também. O Oscar também. To-
dos esses eram velhos pescadores que fizeram a mídia deles quando ainda eram jovens.
Olha... o Oscar foi prá várzea matar pirarucu. Convidou o cunhado dele Antunico Silva.
Então, o problema era o seguinte: era matá pirarucu do galho do pau. Mas,
naquele tempo, tu sabe... dava muito pirarucu. Aí, o que ele disse, falava assim:
— (Afinando a voz) Olhe cumpadre, quem matá é seu. Se eu matá o peixe, é
meu; e se você matá é seu!
Aí, o Antunico Silva meio... (afinando a voz de novo):
— Tá bom.
Aí, foi embora. Sabe... disse (mais uma vez ele deixa a voz fina):
— Cumpadre, fique nessa árvore, fique nessa árvore que aqui é passagem do
peixe. Ele vai buiá. E eu vou prá li que o peixe num bóia aqui, bóia lá.
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Aí, o Antunico Silva, o amigo falou assim (de novo, afina a voz):
— Tá bom!
Ficou lá na árvore. Aí, chegou lá, na árvore. Trepou, se ajeitô bem. Com pouca
hora, o peixe boiô em baixo dele. E ele ferrô no peixe. Prá pegar o peixe, pegô o peixe,
não conseguiu matá. Aí, gritou:
— Ei cumpa...
Eles eram cumpadre. Disse:
— Ei cumpadre! Ei cumpadre Oscar, já piquei o peixe. Venha me ajudá a matá.
82 Ele saiu e foi lá.
— (Ele voltou a afinar a voz) O peixe é seu, buiô prá você, mate! Porque se você
não matá o peixe ele vai embora porque eu não vou lhe ajudá.
E aí, o... Antunico Silva só tinha um arpão que já tava fisgado o peixe. E pelejô, pelejô
com muita sorte conseguiu matá o peixe. Quando escutô o parceiro cacetando o peixe, disse:
— Já matou.
Veio embora. Embarcaram o peixe... do Jauarari aqui na Ponta do... lá no São
José, ali dentro. Ele não falou mais com o Antunico. O Oscar, que morava no São José
não falou mais com o Antunico Silva que era o piloto e que era cunhado dele, e que...
convidado dele. Aí ficou assim. Que não veio nada, prá ele, né? Mas, veio o peixe só
pro Antunico. Aí, o Antunico o que fez? Ele disse:
— Cunhado... umbora discorá o peixe que eu vou lhe dá uma banda do peixe.
Aí, ele respondia:
— (Retoma a voz fina) Não senhor, leve o peixe, o peixe é seu! Você arpôo, você
matô o peixe é seu! Não vou lhe ajudá discorá. Não vou fazê nada. Pode levá o peixe.
Ficou com muita raiva do Antunico Silva. Pois... quem tinha feito a proposta era ele,
e aí veio nada. Quem matô o peixe foi o Antunico Silva. Então, esse... tudo quanto pesca-
dor se lembra... Aí, o Oscar começou a contar por aí essa história. Ainda temo até hoje.
De um parceiro, né? Quando sai dois parceiro prá pescá... eu entendo diferen-
te né? Penso assim... porque a hora que... Se saio com um parceiro, nós já somos um
grupo, né? Então, nós vamo trabalhá juntos. Se nós perdemos, vamo perdê juntos, se
nós ganhamo, vamo ganhá juntos também. Se nós ganha dez reais, cinco dele, cinco
meu. Não vou embarcá um parceiro e dizê:
— Olha, se dé cinco... se tu consegui pega cinco é teu, se eu pegá cinco é meu. Não!
Então, no caso do Oscar, na época tinha muito peixe... Há trinta ano atrás. Que
eu tô com trinta e sete. Acho que ele pensou diferente, né?”
Benedito Monteiro me contou de outro imortal. Tito Galúcio. Era o maior
arpoador de pirarucu no baixo (ele se refere ao verão). Ele dava três oportunidades pro
parceiro dele arpoá sozinho. Se ele errasse nas três, ele arpoava por cima da canoa do
cara. Tito não errava não!
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Três peixes na Amazônia

U
Pirarucu, o gigante pré-histórico

”Um pirarucu, dois pirarucu, um casal de pirarucu, sabe? O cara butô a malhadeira
prá pegá eles. Na passagem deles, onde passava. Mas, só que eles... eles aram catequista,
sabe? Um pirarucu com a pirarucua. Eles andava... ele ia andando assim, ele ia com a
Bíblia embaixo do braço, da galha dele, aquela galha que ele tem, sabe? (Risadas) Aí,
chegô... quando ele enxergô a malhadeira ele escorrô... quando ele enxergô a malhadeira
ele escorrô... Ele ficô parado, aí veio a... a mulher dele, atrás, disse:
— O que foi? Disse:
— Rapaz, tem um negócio aqui. Puxô a Bíblia debaixo do braço e... espiô, né?
Contô lá o que era. Ele disse:
— Olha mulher, prá cá é fora e prá cá é bera. Vão bora vortá que este aqui é a
tal de malhadeira. Ele dobrô de volta e foi embora. (Muitos risos)”
83

Estória contada pelo Silvio Nogueira do Carmo.

O pirarucu é o maior peixe de escama da água doce. O pirarucu só existe na


Amazônia, e eu o comparo ao gado. Aproveita-se tudo desse peixe, da escama a lín-
gua. A pesca do pirarucu é permitida, por lei, de maio a novembro. O defeso, portan-
to, é entre os meses de dezembro a abril.
O pirarucu é uma espécie ameaçada! Na Ilha de São Miguel, na região do
Aritapera, tem uma experiência recente de manejo do pirarucu. José Eli Rocha Sá, 30
anos, é presidente da Associação Comunitária da Ilha de São Miguel me revelou que o
Amazônia: Pescadores contam histórias

acordo de pesca deles só permite caniço e arco e flecha. O espinhel estava prejudican-
do em baixo na fruteira e eles resolveram suspender essa pescaria também, assim como
a malhadeira.
José Eli Rocha Sá me disse ainda que ”eu até mesmo aproveito essa entrevista,
eu até mesmo fazê um apelo prá todas as comunidades, que elas colocassem na cabe-
ça que manejá, preservá, vivê com a natureza é muito importante, não teria esse con-
flito que hoje tá tendo, até mesmo com nós aqui. A natureza faz parte da vida do ser
humano! Hoje num lago onde tem um pirarucu com filho que tá com dois centíme-
tros, você matá o macho, você mata a fêmea, você vai acabá com mais ou menos
quinhentos pirarucu” (aproximadamente é esse número que tem uma desova). Um
84
pirarucu para reproduzir ele terá entre dois e três anos. Em um ano ele atinge 90
centímetros, conforme o crescimento, uns desenvolvem mais, outros não.
”Estamos pensando em parar a matança do pirarucu aqui na ilha. Depois que
ela desova a primeira vez ela vai direto, todo ano, o peixe anda pela área toda e o
trabalho não é só prá nós. Quando sai não volta mais. O pessoal mata. São poucos os
pescadores que sabem de arpoá. Por isso tá beneficiando um grupo, um pouco.” Eles
estão pensando em levar os melhores na arte do arpão para ensinar os outros. Os
jovens já arpoam, segundo José Eli Rocha Sá, estão arpoando mais que os antigos, que
vão parando.
A fêmea do pirarucu é maior que o macho, mais velhaca e sempre fica longe do
macho. Quando o macho tá com filho, ele é muito manso, ele pode ficar uns quinze
segundos em cima d’água.
Pedro Figueira de Sousa, 54 anos, é o pescador de pirarucu da Vila do Curuai.
Ele é mais conhecido como Pedro Cobra. Foi ele, diante de sua sabedoria popular
incomparável que me traçou o perfil desse cobiçado peixão da Amazônia.
“Ele é um peixe tão tranquilo, que se a senhora der com um casal de peixe com
filho aqui, a senhora errá, a fêmea, principalmente, vai batê água lá naquela ponta de
areia ali do outro lado. O macho começa de novo prá ali. Com poucas hora, os filhos... os
filhos ficam tudo aqui, espalhado, mas com poucas horas eles somem daqui. Se você
presenti que buiô... buia prá lá. Você pode ir lá. Chegá lá, eles estão tudinho prá lá.
Só dois que anda, só o casal. Muitos filhos andam juntos do casal. Quando ficam
de quilo, assim, no caí da água (característica do verão amazônico), eles abandonam.
Quando o pirarucu está gito, o pai guarda toda a ninhada dentro da boca. Ele cava
buraco na terra, mais ou menos com a fundura de um parmo. E assim, uns três parmo
assim... aquele buraco aberto, né? Aí, ela põe. Depois dela por aqueles... os ovos tudinho lá,
ela sai fora. Põe bago por bago de farinha. E, depois de tá no buraco, o macho é quem
encapa (o macho é que choca os ovos). Mas aquilo é muito bonito! É igual ova de aracu.
Aí, ele encapa, fica uma bola, maior que uma xícara dessa (apontou para uma
xícara de café). Igual, assim uma bola de siringa (de látex). Aquilo é só uma pelezinha,
não é? Tudinho, ele encapa tudinho aquilo! Ele agarra, pega... quando... se não mexe-
rem com ele, com poucos dias de... doze dia, quinze dia, vinte dia ele tá tirando os
filho. Sai aquela farisca. Senhora pressente só aquela fumaça.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Hoje, quando amanhece, a senhora já enxêrga aquele mosquito. Quando é


depois de amanhã, já está, já deixa aquela escuminha na coisa da água. Quando ele
sai, aquilo faz tiic. Também ele sai naquilo e e... o pai engoli, mete na boca. Ela (a
fêmea) só vive passiando.
Aí, de... nessas arrumação, ele méti na boca e vai, e vai, dali um... quando ele
fica meio grandinho ele não, não méti mais na boca. Sai aqui, no nível da água. E
também quando ele tá na boca, o peixe não anda duas braça, ele bóia.
Ele fica aqui, no nível da água, é minutos. E se ele for, se ele não tiver com filho,
ele leva mais de hora no fundo prá ele pudê vim suspirá. Ele só bóia... eu... os antigos
falavam, tio Ernesto e outros, cansaram de me dizê que ele só bóia quando... Pirarucu 85
tem um bofe... que acompanha o espinhaço, não tem? Diz que aquilo quando enche,
né? Ou seca o ar parece é que ele vem pegá o ar dele. E aí, torna a sentá.
Quando o pai bóia é que os filhotes já crescidinhos bóiam também, em qual-
quer idade o pirarucu respira. A função da mãe é fecundar e parir. Quem cuida é o pai.
Só se o pai morrer ou for capturado é que a mãe toma conta dos filhotes. Só se mata-
rem o macho que ela fica só ela chocando. Quando o pescador(a) mata o pai e a mãe
os filhotes morrem, os peixes e os pássaros são os predadores.
O pai e a mãe ficam em volta da ninhada. Se piranha ou outro peixe tentar
pegar naquela ocasião que eles estão ali, ele rimpa o rabo. Se a senhora tivé pescando
aqui e... tivé um ameaço deles assim, a senhora vê distância, como daqui mais longe
que essa cabeceira grande aí (a casa de Pedro está localizada na frente do Lago Gran-
de. Onde antigamente se chegava na Vila do Curuai) rimpá rabo. De manhã você
pode ir que você vai dá de carada com ele lá.“
Silvio Nogueira do Carmo, me contou sobre a fartura do pirarucu no passado e
a imponência do grande peixe. Assim como, dos tipos de pesca artesanal do pirarucu.
“A gente matava pirarucu, tinha muito, tinha muito, tinha muito, Dora, que até
aquilo... mulhava a gente, viu? Quando tava pescando ele. Eram fácil de boiá, respirar,
era toda hora, não tinha tempo.
Que quando a gente fisgava um, porque a gente... o negócio de fisga era assim,
sabe? Um arpãozinho desse tamainho (mostrou com os dedos da mão), metia numa
hastia grande e vai com, com ela lá no fundo, sabe? Lá no fundo. Aí, mede a fundura...
A procura do pirarucu é que é difícil, achar o peixe. Não, a gente vai procurar,
que a gente não vê não... Contava mais ou menos de... ele mede lá no fundo, quando
ele esbarra lá na terra, ele carrega mais o menos um palmo, que é a altura do pirarucu,
né? Mais ou menos um palmo e vai com aquilo, o piloto remando lá e o proeiro vai
aqui com o pau no fundo, sabe? Vai até quando esbarra nele e só faz amassá.
E aí, que quando um... um fisgava um, tinha outro arpão prá segundão, né?
Tem dois arpão. Aquela fisguinha era só prá ir guiando. Outro arpão, que era prá
segunda, é pra matá. E em vez dele arpoá aquele um que estava no arpãozinho, ele as
vezes já acertava no outro. E acertava no outro, e acertava no outro que quando um
curria pra cá, outro curria pra ali, sabe? Aí, ficava enrascado, disse:
Amazônia: Pescadores contam histórias

— Rapaz, já arpoei o outro.


Aí, chamava o cumpanheiro, né? Prá tumá conta dum e ele tumava conta do
outro. Já se viu que tinha muito peixe, né? Mas olha, com sinceridade que eu ainda vi
fartura aqui nesse Lago Grande.” A água dos lagos, em geral é turva.
Uma das características dessa pesca artesanal de subsistência é que o pescador(a)
não vê o peixe. Na pesca do pirarucu no galho do pau com o arpão, o pescador vai
dentro da canoa para a paragem onde ele sabe que o peixe bóia. Sim, porque o pirarucu,
dizem os pescadores(as), só suspira embaixo de uma árvore. Aí, ele deixa seu piloto(a)
ou proeiro(a) na canoa e vai prá árvore onde vai picar o peixe. Fica trepado esperando,
86 isso acontece no igapó, quando o pescador(a) sabe onde é a passagem deles. Ele trepa
no galho do pau só para picar o pirarucu. Tal como na fisga, o pescador(a) utiliza dois
arpões, um para dar a primeira fisgada e o outro para a segundona e certeira. Nesse
caso, o pescador(a) enxerga o peixe. A água é clara no igapó.
Silvio também comentou a pescaria no galho do pau. “(...) É assim no galho do
pau que o... Que o finado Olavo gostava, o pai dessa aqui (apontou para mim). Gos-
tava muito de picá no galho do pau. (...) É, não, não gostava de barulho, só ele mes-
mo. Só ele, era caladinho ali, o peixe não
sentia, (...) era por isso que gostava de pes-
ca só, gostava de pesca só.”
O mutá, muitá ou mutar no ga-
lho da árvore é um suporte para o pes-
cador picar o peixe no igapó. Essa pes-
caria é realizada na cheia das águas, no
inverno amazônida. Então, o pescador
arruma paus ou no próprio galho senta
e espera o peixe. A espera é longa. Ele
limpa as folhas somente para cima, para
não atrapalhar a hastia, não engatar por
entre a folhagem. A hastia tem em torno
de três metros de comprimento. O com-
primento da linha no arpão varia entre
20 e 50 metros. Arpão numa ponta e a
bóia na outra!
Para baixo, na direção da água eles
não limpam. Justamente para ficar escon-
dido, pois se o peixe ver o pescador ele se
assusta, ele enxerga o pescador(a) no ga-
lho da árvore. O pescador(a) tem que ser
bom de olho porque o peixe estranha.
Pesca de subsistência artesanal do pirarucu: Quando arpoa, o arpão sai por entre os
no galho do pau! galhos e folhas.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Inexperientes, às vezes, limpam tudo. Aí, o peixe não vem. Olavo Afonso me
disse também que o pirarucu bóia brabo se ver o pescador. E nunca mais volta naque-
la paragem. O peixe é muito arisco.
Pescar o pirarucu no galho do pau é uma observação. Dorinelson Lopes Barbo-
sa, me contou que “o pirarucu todo tempo ele vem torto, assim devagar, assim que ele
vem prá dá a volta, prá ele boiá em cima d’água, né? No que ele bóia, se a gente for
arpoá ele, a gente não consegue arpoá ele. Ele estranha. Ele é mais ligeiro de que
qualquer charutinho desses aqui que são piquinininho!
Aí, quando ele vem prá boiá aqui, a gente tem que deixá ele boiá, enfiá a
cabeça em baixo de alguma coisa prá podê a gente arpoá ele. 87
Aí, tem a árvore certa que ele bóia. Não bóia em todo lugar, não. Tem um
buraquinho certo lá, limpo. Aonde ele bóia assim sempre fica escumoso. Aí, ele vem
de lá... Quando ele vem a gente tem que ficá certo lá. A gente não pisca um segundo
sequer e nem pode se mexê, nem balançá. Tem que ficá quieto. Aí, no que ele vem ,
então a gente tem que tá certo lá, né? Que tem vezes que, quando a gente se espanta
ele já... boiô, já foi embora, a gente não viu. Lá ele... ele se muda, ele. Se a gente
começá a persegui ele lá. Ele saí prá fora. Aí, se a gente for persegui ele lá fora, ele vai
embora... Aí, a gente não vê mais ele. Outra pessoa que já vai matá ele em outras ilha
que ele vai se amoitá de novo.”
Pedro Cobra comentou como eram as duas formas de pescar o pirarucu com o
arpão. Arreio dos imortais, de pescadores que fazem da pesca uma arte!
”Numa época dessa (inverno), eu preferia era tá só eu de joão-de-pau. Amarra-
va joão-de-pau na canoa. No verão, na época de fisga, eu gostava de piloto. Na fisga,
a senhora... vamo dizê... é o canal, não é? (mostrou com um espaço no chão) Então,
a senhora nunca rema direto. Parece que vai fazendo um viagem... A senhora tem que
dá uma volta prá li, volta prá cá, vai prá li, volta a canoa prá li, volta prá cá... Você tá
brincando ali, só você remando eu tô com a hastia aqui no fundo, né?
Numa época desta, de inverno, então vamo dizê, você sai remando lento vai
embora remando sozinho! Se dé com o pirarucu, se tivé em posição, vamo dizê, de dá
uma maresia, fazê zoada na canoa... Eu , principalmente, eu tirava a camisa, usava
camisa de punho... tirava a camisa, pegava, amarrava na rodela da canoa prá água só
fazê pô pô. Não batia aquele plá plá. Quanto mais silêncio melhor se torna. Até um
capim, se aprendê na canoa, a maresia não bate.
Quando era em tempo de ficá, a gente andava fisgando. Até hoje... no passado
matei três de fisga. A fisga é pequena. E o arpão é grande. Então, esta fisga você mete no
pé de uma hastia grande. É porque ele é picado... o peixe, assim... Você não enxerga, só vê
aparpá, que ele estrala, né? Que o ferro estrala igual um vidro (na escama do peixe).
Olha, o peixe maior que eu já matei, foram três peixe. Durante eu pescá. Um,
com seis dias de sarmura, ele deu 113 quilo, só as duas manta (tirando a ossada e
cabeça).” O peixe vivo pesa muito mais que o salgado visto que perde toda a água,
Amazônia: Pescadores contam histórias

ossada, cabeça e buchada. “O outro, no sangue, deu 112 quilo, e o outro deu 106 quilo.
Foi os três peixe maior. Olha, o primeiro peixe, esse peixe que deu 113 quilo, com seis dias
de salmura, foi no intermédio da quaresma, eu matei até aqui na bera do Torrão, e eu
vendi... Só nessa época, eu matei parece que 12 ou 13 pirarucu. Nessa dita semana da
quaresma, eu vendi tudinho...“
Depois de morto, como colocar esse monstro dentro de um botinho? É simples
para o pescador(a). Trazem-no para o meio da canoa. Pegam com uma das mãos nos
olhos dele, e a outra pela bochecha. Aí, puxam o peixe de lado já. No que puxam ele,
que a cabeça dele sobe passando a bochecha pela beira da canoa, os pescadores(as)
88 amassam-no e ele sobe para dentro da canoa. Ele vem, ele corre prá dentro da canoa.
É liso! Agora, depois que seca aquela goma dele aí fica áspero.
A escama do pirarucu é semelhante a uma unha gigante. Quando seca, ela fica
muito dura e curva. Usa-se para fazer acessórios ornamentais, roupas e outros fins.
Para descamar o maior peixe de escama da água doce do planeta, o pescador(a) bate
com o terçado em seu corpo. Dessa forma, ela solta e fica mais fácil para limpá-lo. E,
nessa tarefa, o pescador(a) cuida do pirarucu montado por cima dele, para tirar o cou-
ro. Para abrir um peixe grande, leva-se em torno de duas horas. Dizem que a carne de
um pirarucu muito grande não é das melhores.O peixe passou de 60, 70 quilos a carne
não presta. É só nervo!
O pirarucu come outro peixe. Basta tá com fome, ele come o próprio filho dele,
é igual ao tucunaré. Igual ao baiano. O baiano é um peixe que cresce de todo tama-
nho. Ele pula que nem macaco, mais conhecido por aqui como aruanã. Seu Edmundo,
do Jacaré que pescou muito no Amazonas, me contou que lá eles também o chamam
de sulamba, e o tambaqui de fivela. Ele me contou, que já veio muita gente do rio
Arapiuns fazer piracui no Lago Grande, “de noite ficava tão claro que parecia Santarém
deles muquiarem o peixe. Hoje em dia, não tem mais nada! “
Olavo Afonso me lembrou que “hoje em dia, o pescador pega o pirarucu na
malhadeira. Eles não têm mais paciência, tempo prá ficar no galho do pau. Essa pesca-
ria é muito demorada. O pescador fica às vezes 10, 12 horas na espera. Prá você pescá
pirarucu tem que pescá pirarucu. Você não diz que vai colocá malhadeira na água e
matá um pirarucu. Você não mata. Quando peixe tá de filho ele é rápido. Ele sente a
sua canoa, ele pega os filhos e vai embora prá outra, cabeceira. Se é pescador de
pirarucu pesque só pirarucu.“
Um dos arreios mais usados na pesca atual do pirarucu é a cercadeira, que
também é pesca ilegal. Mas, mesmo assim, ainda é muito usada pelos profissionais. Na
cercadeira, eles pegam os dois peixes: fêmea e macho, diz o ensinamento tradicional.
Entretanto, já existe no mercado malhadeira apropriada para pegar pirarucu.
Penso eu, uma pescadora de jaraqui, um dia vir a dominar um peixe desse! Sem
medo de nada, me atirar na água em busca do domínio do pirarucu. Ser arrastada por
ele, entre canaranas, aningais e igapós!
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Jaraqui, o cardume listrado

89

O jaraqui é um peixe bastante apreciado na mesa dos santarenos e não tem


proibição para esse peixe. Ele costuma andar em cardumes. A pesca do jaraqui é tradi-
cional nos lagos do Mapiri, Papucu e Juá, onde ele aparece em dois tipos, o escama
fino e escama grossa. O primeiro é mais compridinho e o outro é mais chato e curtinho.
Encontra-se jaraqui até de um quilo.
Há três anos, é realizado no Mapiri, o Torneio de Pesca. Nossa pescadora Maria
Pinto de Sousa, no ano de 2003, ganhou o terceiro lugar no campeonato com um
jaraqui que pesava um quilo.
O jaraqui dos lagos a que me refiro, é pescado com um arreio que se chama
garateia: um feixe de sete anzóis, tipo uma mandala. É presa num caniço onde no
meio da linha tem uma bóia.
E sua isca é o fruto de uma palmeira chamada inajá, não muito alta, mas densa
em cachos de frutos e folhas. O cacho é protegido por uma casca que depois de seca
se transforma em uma barca, chamada carauatá. É bastante usada pelos povos tradi-
cionais como depósitos de comidas entre outras coisas.
Com uma faca bem amolada, é retirada a polpa da fruta que servirá de isca.
Uma linha de pesca fina molda-se a polpa na linha acima da garateia. A isca fica com o
formato do fruto, só que sem o caroço. O pescador(a) usa o caroço preso numa linha
que fica atada numa bóia solta no meio do rio ou presa numa árvore, chamado de
roedor. O roedor tem o objetivo de atrair o peixe para a garateia. A boca do jaraqui é
muito pequena, ele não morde, ele chupa o fruto!
No tempo da piracema, uma isca dessa pode pegar até cinqüenta jaraquis. O
pescador(a) não deixa o peixe morder a isca. Assim que ele chupa, o pescador(a) sente
e com os anzóis que estão abaixo da isca, fisca o jaraqui e... canoa!
Amazônia: Pescadores contam histórias

Lorivaldo Rebelo Miranda também é pescador de jaraqui. “A pesca de jaraqui é


de tarrafa também, O peixe que mais adorei pescá foi o jaraqui. Quando tá no tempo
de pescá jaraqui é tão rápido. É engraçada a pescaria do jaraqui. Me chamô a atenção,
quando eu não conhecia a pescaria do jaraqui, é o seguinte: se você tiver aqui conver-
sando, se você tivé dentro da canoa aqui conversando, você tivé achando graça, você
barulhando, pulando na água, pensa que ele corre? Ele não corre. Tanto prova, que o
jaraqui quando tem muito numa paragem, a gente na pescaria, a gente pega um
pedacinho de pau, com a mão mesmo, faz zoada n’água, ele vem vê! Ele não corre.
Não é como outro peixe que vê uma zoada, vê uma coisa assim, ele se afasta, ele vai
90 embora. Jaraqui não. E com essa arrumação de pegá ele no inajá, na garateia que a
gente chama.
Rapaz, quando você chega num lugar que tem ele, ele pega de repente, você
pega setenta, oitenta, cem, rápido, não é? Na garateia as vezes vem mais, as vezes até
três. Mas você consegue pegá mesmo só um, os outros soltam do anzol. Mas pega de
três, pega de dois.
Pelo memos aí, no Juá, nós temos uma maneira de pescá que você pega o
jaraqui. Pegou ele, a canoa tá com um pouco d’água, né? Dentro da canoa. Aí, você
pega, você usa um sangrador. Um ferrozinho apontado. Aí, você dá uma anestesia
nele. Já sabe a posição. Você mete ele (o ferrozinho) bem no lombo dele, no espinhaço
dele. Trisca a ponta dele numa veia que ele tem réz ao espinhaço, pronto! Ele fica
anestesiado. Aí, ele passa todo o dia naquela água. Só se ela esquentá muito que ele
morre. Aí, quando chega de tarde assim, na hora de vendê, você faz aquelas cambada
daquele peixe que estão vivo. Você chega no asfalto, em qualquer paragem, os que
vão comprá, olham e dizem assim:
— Esse peixe tá vivo, não tá? Manda aí, manda, manda... Eu quero esse vivo.
É o que eu digo pros companheiros:
— Esse pessoal aqui é engraçado, né? Eles compram mais o peixe pela vida.
Que o bichinho tá bem vivinho. Aí, não sobra nenhum. É muito bom assado.
Isso só mesmo os pescador que pescam ele é que sabem. Nós temos pessoas aí
que... Nós temos vários pescadores que não sangra porque não sabe, né? E quando
vai anestesiá, vai sangrá, fura fora da onde é, e ele morre.“
Raimundo Nonato de Sousa, aquele pescador do Juá, gosta mesmo é de
pescar tucunaré. Mas, como um bom pescador sabe a arte de pescar o jaraqui tam-
bém. “A garateia é uma ciência de pescar o peixe. No verão, a gente entoca a
malhadeira num saco e só puxa no inverno. Agora, no inverno mesmo a minha
pescaria mais, todo mundo me conhece, eu sou tucunarezeiro. Puxo mais é tucunaré.
A isca é xaperema, se nós dizê o nome daqui você... vai vocês vão até ignorá, é arari.
Um charutinho assim que tem o rabo vermelho. Puxa com a linha 0,40 e anzol
número sete.”
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Peixe-boi, o mamífero aquático

91

O maior mamífero das águas é o peixe-boi. Já foi muito combatido na Amazô-


nia, talvez por isso, está em extinção. Muitos projetos de preservação desse dócil ani-
mal já estão em desenvolvimento na região.
Os povos tradicionais, que o consumiam, já o respeitam como um peixe de
preservação. Lorivaldo Rebelo Miranda contou como os pescadores(as) do lago do Juá
passaram a proteger o peixe-boi.
“Entra muito peixe-boi no lago do Juá. E produzem aí dentro. Só que nós...
Tinha um cidadão que matava os peixe-boi aí no lago. Aí, eu era o capataz (do Núcleo
de Base da Z-20). A gente entrou num acordo, de não deixá ele matá, desde um dia
que nós vimo ele matando um peixe-boi, era a fêmea, como a gente chama, a vaca,
né? E ela estava com o filho pequeno, filhote pequeno, né? E quando ele estava ma-
tando a mãe, cacetando com um pau prá matá a mãe, o bichinho tava rodando assim,
rodando. Aquele bracinho, aquele bracinho dele, aquela mão dele assim...
Ah, mas aquilo... Nós era diverso lá olhando ele matando. Que não era proibi-
do, na época. Aí, o bichinho ficou por lá. Quando foi no outro dia que nós fomo
pescá, encontrava o bichinho por lá se batendo, boiava assim, aquele nariz dele pedin-
do socorro, com fome. Aí, foi que nós entramo num acordo e proibimo a matação de
peixe-boi no lago do Juá!”
Pronto, mês de maio, venha no Juá que você vê o peixe-boi, de certeza! E é
muito. Hora de meio-dia, uma hora da tarde ele bóia no meio do lago. Pirarucu que não
mata mesmo. Esses pessoal não sabe nem como mata um pirarucu. Tem muitos deles
que nem conhece o que é um pirarucu. Não sabe a arte da pesca e nem liga prá aquilo.”
Amazônia: Pescadores contam histórias

Infelizmente, ainda não podemos dizer que acabou definitivamente a captura


do peixe-boi na Amazônia. O importante é que os pescadores(as) mais antigos, e que
pegavam o peixe, já não o fazem mais. E isso, é um bom exemplo.
O Pedro Cobra, me falou também sobre a natureza desse belo animal aquático.
Tem uma parte de sua carne de peixe e outra parecida com a carne bovina.
“Olha, o peixe-boi é mais difícil de encostá nele do que o próprio pirarucu. Que
se a senhora cuspi na água ele desaparece. Se pegô a mão no fósforo tira... de repende
que for abrí a caixa de fósforo, cai um palito no fundo da canoa... já era. E também prá
embarcá ele depois de morto, ninguém pode embarcá ele de cabeça. Não vem. De
92 rabo, ele é o contrário do pirarucu.
O peixe, ele só anda, pode tê cinco metros de fundura, mais ou meno, mas ele
só anda depois dele boiá. Quando chega no nível da terra. Ele vai, puxa o fôlego dele
e volta. Quando ele deu na terra, aí... vai embora. Tem duas marca de peixe-boi que eu
conheci: o preto e o azeite, um malhado.”
Edmundo, da comunidade do Jacaré me disse que o peixe-boi “cisma com a
gente. Ele urra, o filho berra, o seio dela é embaixo do braço. Quando vaza, eles vão
embora, só param quando tem capim.”
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Como surgiu a Colônia de Pescadores Z-20

A As colônias de pescadores(as) foram criadas a partir de 1920 com o objetivo de


coletar informações para a defesa da costa brasileira, em nome da Marinha. Até 1988,
as colônias de pescadores(as) eram associação de todos: funcionários públicos de ór-
gãos reguladores ou de fomento de pesca, vendedores de peixe, donos de frigoríficos,
armadores, militares da marinha e outros. Assim, a associação colocava em último
plano os interesses dos pescadores(as).
O pescador Eurides dos Santos Pereira, 73 anos, aposentado pelo Sindicato
dos Trabalhadores Rurais, demonstrou na entrevista realizada com ele como era a Z-20
no passado. “Olha a Z-20 era a Z-24 (antes da Z-24 era a Z-11). Era comandada pelo
Mão-de- Borracha, presidente. Ele vinha todos os mês, ou as vezes de ano em ano, as
vezes três vezes por ano ele vinha fazer reunião. Ai, colocar aquelas coisas que a gente,
93

as vezes, o pescador não sabia, né? Regulamentos, uma base da pesca, longe do
terreno da margem do terreno, né? Você tem um terreno, né? Você tem um terreno
aqui. O que ele colocava prá gente era:
— O pescador, ele tem o direito!”
Antes de passar para as mãos do pescador(a), os estatutos das Colônias eram
aprovados por decretos do Ministério da Marinha. E eram eles que decidiam quem iria
presidir as colônias. A partir do final da década de oitenta, após uma grande organiza-
ção, vindo a democracia, a Colônia, através de seus associados, tomau a direção com
o apoio da igreja católica, da Federação dos Órgãos de Assistência Sócio Educacional
– Fase e Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Com a vitória da categoria pesqueira nas
eleições, um dos primeiros passos foi a eliminação de sócios não-pescadores e o come-
ço dos trabalhos diretamente voltada para a categoria dos pescadores(as).
A partir daí, através de articulações com outras iniciativas em diversas regiões
do Brasil, os pescadores(as) garantiram na Constituição Federal de 1988 a equiparação
das Colônias de Pescadores ao formato dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais. Então,
atualmente, as Colônias são associações sindicais dos pescadores(as) artesanais e de
âmbito municipal. Os associados eram tanto pescadores(as) de subsistência como
pescadores(as) comerciais, de pequena e média escala.
Assim, o estatuto foi reformulado e a direção da Colônia de Pescadores Z-20 é
formada por quatro diretores que trabalham diretamente em cima das decisões de um
Conselho Administrativo composto de vinte e seis conselheiros pescadores represen-
Amazônia: Pescadores contam histórias

tantes das dez regiões Pesqueiras: Lago Grande do Curuai, Aritapera, Tapará, Arapixuna,
Urucurituba, Ituqui, Maicá, Cidade, Tapajós e Arapiuns. Sendo que as duas regiões
maiores são Cidade e Lago Grande, geograficamente e em número de associados. A
diretoria é escolhida pelo Conselho. E o Conselho é escolhido através de eleições nas
suas regiões. A Assembléia é soberana e é realizada uma vez ao ano, no dia 29 de
junho, dia do padroeiro dos pescadores(as) São Pedro.
Roberto Cardoso Marinho, diretor de Organização e Meio Ambiente da atual
diretoria comentou sobre a importância do Conselho Administrativo. “Antes o presi-
dente que mandava em todas as atividades. O Conselho Administrativo delibera todas
94 as atividades, são da base. É o pulmão da Z-20, a responsabilidade está toda nele.”
A Colônia de Pescadores Z-20 aumentou seu poder de articulação e mobilização
em função de parcerias com órgãos governamentais, ONGs, igrejas, partidos políticos,
iniciativa privada. Um grande movimento também apóia as colônias, o Movimento
dos Pescadores do Baixo Amazonas – Mopebam e a Associação de Mulheres Pescado-
ras Artesãs e Agriculturas – Amupaa .
Entretanto, a Z-20 se mantêm financeiramente através das mensalidades de
seus sócios e da renda da Feira do Tablado, administrada pela entidade em parceria
com o município. Nos últimos dois anos, a Colônia recebe apoio financeiro, destinado
às atividades de logística para os trabalhos de base, do Projeto Manejo dos Recursos
Naturais da Várzea – ProVárzea/Ibama. Além do projeto de construção da sede com
estrutura para um centro de capacitação que tem o apoio técnico do Instituto de
Pesquisa da Amazônia – Ipam mas com suporte financeiro do ProVárzea/Ibama.
O pescador aposentado pela Z-20, Renato dos Santos Ribeiro relembrou o iní-
cio das lutas por uma Z-20 de pescadores(as). “Astésio (Manuel Astésio Rodrigues da
Mota), Coé (José Rodrigues Campos) e Valdomiro (Ribeiro) trabalharam direto com os
coordenadores de base, e foram os primeiros articuladores da Z-20. O trabalho, nesse
tempo era voluntário, para eu sair com eles, eu tinha que arrumar meu dinheiro para
sair. A família ficava por conta dos amigos aqui. Os pescadores daqui era que davam
comida para a nossa família.”
Aureliano Branches, da comunidade do Cururu, Lago Grande do Curuai tam-
bém se recordou da década de oitenta quando ajudou na organização da Z-20. Ele foi
um dos fundadores do Núcleo de Base da comunidade, da Associação de Pescadores
do Baixo Lago Grande e do Conselho de Pesca da mesma região.
Naquela época, os pescadores eram solidários uns com os outros. “Agora tá muito
bom. E mais bom vai ficá. Porque hoje a gente sai de casa, a gente tem aquela merenda
lá, tem o almoço, tem a refeição. E nesse tempo, nós não tínhamos. Se a gente quisesse
tinha que levar nossa merenda para poder comer.” Sobre o início da construção da
Z-20, do movimento de base, Renato contou que no bairro do Mararu (onde está a sede
do Núcleo de Base, apesar dele morar no Urumanduba, bairro situado próximo ao Mararu,
que está inserido na região do Maicá) “quando a gente começou aqui, nós começamos
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

a reunir por baixo das árvores. Depois, nós pensamos em fazer um barracão. A gente
conseguiu fazer um barracão de palha. Isso foi em 82, nós construímos o primeiro barra-
cão de palha. Mas depois, no decorrer... quando foi em 84, a gente foi que mudou prá
outro de telha. E agora, a gente tá tentando mudar. Se Deus quiser, com a ajuda de
Deus, a gente vai derrubar ele e fazer outro barracão agora.”
Pescador de grandes qualidades, Renato dos Santos Ribeiro fez um relato
comovente sobre sua paixão pela Z-20. “Eu vou ser franco prá vocês: eu gosto da
minha entidade. Eu amo ela! Prá mim... eu saí como representante da direção mas eu
continuo nela porque tenho amizade. Isso eu não nego. A Z-20 faz parte da minha
vida. Isso eu tenho dito! Eu já tenho dito prá meus colegas: 95
— Olha, quando eu morrer eu quero que vocês me levem lá prá parte da
minha sede velha.”
Tantos pescadores(a), tantos lutadores(as). Eurides dos Santos Pereira, “sou agar-
rado a duas entidade, sabe? Sempre sócio. Associei com 16 anos, mas com aquela idade
num dava pra associá. Então, eu aumentei minha idade prá podê se associá. Porque
naquela época, existia assim... clandestino, né? Hoje não sei nem como se chama.
Mas a maior parte deles são avacalhador. Sabe por que avacalhador? Porque
você tem um tipo de pescaria... você está acostumado a pescá de um jeito e o cara vai,
chega lá avacalha sua pescaria.”
Com a intenção de levar as informações da categoria até as mais longínquas
comunidades pesqueiras, a Colônia mantêm o Programa de Rádio, Sintonizando a
Z-20, na Rádio Rural AM. A programação e locução é realizada pelo(a) diretor(a) de
Relações Públicas e Cultura.
O modelo de gerenciamento das atividades relacionadas à organização e fo-
mento da pesca realizado pela Z-20, se tornou exemplo para outros municípios e suas
colônias. Mesmo assim, Z-20 ainda tem muito a conquistar. Ainda mais no que se
refere à questão de gênero, apesar de ter garantido seu lugar na associação em 30%
como relatou, Roberto Cardoso Marinho. E, de novo é a pescadora Sonia, da Associa-
ção das Mulheres Pescadoras, Artesãs e Agricultoras (Amupaa ) quem nos elucida so-
bre o assunto. “Os pescadores às vezes, muitas das vezes não querem associar às
mulheres dentro das Colônias de Pescadores. Eles, na hora de,... de... dá devido a... a
grande modificação que houve no estatuto da Z-20. Hoje, a... tem os artigo que tá
pedindo... que só pode associar mulheres se os pescadores derem todo um aval de
condições prá associá. E a maioria delas, elas tão enfrentando. Mesmo mulher de
pescadores que tão tecendo a malhadeira, consertando a malhadeira, elas tão nesse
conflito. Querendo também garantir seu espaço mas muitas das vezes os pescadores,
eles estão sendo muito machista junto com nossas companheiras.”
Isso também é uma forma de conflito na categoria. Os homens amazônidas são,
em geral, intolerantes com a equiparação das mulheres em profissões até então exclusi-
vas a eles. Mas, é a mulher cabocla que gera toda a família. É ela que cuida dos filhos e
Amazônia: Pescadores contam histórias

dos maridos, trabalha no roçado, pesca, lava, cozinha, como já abordamos aqui! E quan-
do, em plena sociedade contemporânea, ela vai requerer seus direitos, além de enfren-
tar oposição em casa ainda enfrenta o preconceito dentro de sua própria categoria!
Sônia, mulher de fibra, lutadora ardorosa na questão feminina, ainda releva
que a mulher é “maltratada pelos nossos próprios companheiros. (...) Até entre qua-
tro paredes as pessoas tão discriminando a gente, tão sendo machista com a gente,
entendeu? Então, nós temos que entendê que nós somos capazes. Nós temos que
enfrentá porque essa barra é pesada. Mas, nós mulheres vamos vencê. Nós tamos nos
organizando prá um dia vencê. Não prá tomá o lugar de nossos companheiros ho-
96 mens! Mas sim, para ocupar nossos lugares!”
É Aldo Santos quem toma a palavra, “através da Z-20, então podemos reinvindicar
todos os direitos que temos como pescador. A Colônia passou das mãos de não pesca-
dores para pescadores. E todos os diretores contribuíram para que a Z-20, hoje, tivesse
de uma maneira mais organizada. Então, praticamente todos trabalharam nesse rumo,
né? Por exemplo, o aspecto social mudou muito, né? De antes prá agora, e os nossos
diretores se atualizaram buscaram as alternativas. E hoje, a Colônia, eu vejo que já tem
um lugar mais previlegiado. Eu me orgulho de sê duas coisa: pescador e negro.“

Núcleo de Base

Os Núcleos de Base são veículos de grande valia na organização e mobilização


da Colônia de Pescadores Z-20. Os responsáveis por essa tarefa são coordenadores-
sócios escolhidos pelos próprios sócios de cada comunidade. Somente no Lago Gran-
de do Curuai, em função de sua grande extensão territorial é que tem dois coordena-
dores, um no baixo lago e outro no alto lago. Os coordenadores, através de sua
diretoria executiva, realizam o trabalho de encaminhamento dos sócios junto a seus
benefícios, coleta da mensalidade, associam novos sócios, além de serem a ponte de
informação entre a diretoria e os associados.
Os coordenadores de Núcleo de Base são voluntários. Se doam como sócios
para a organização de sua entidade. Apenas, do total da arrecadação de seus Núcleos
de Base, tem por direito estatutário um pró-labore de 20% e mais alimentação e trans-
porte nas atividades relacionadas a sua função.
Renato dos Santos Ribeiro, diante de seus 62 anos, vinte dos quais como Coor-
denador do Núcleo de Base da Z-20 no Mararu, hoje aposentado pela Colônia, co-
mentou que “sempre fui, sempre foi, todo tempo trabalhei, nunca deixei. E hoje, saí
agora, mas continuo com meus amigos. Nós tínhamos, nessa época, nós chegamos a
associar 58 pescadores.”
Essa dedicação o levou a São Paulo como representante da Z-20 na edificação
da maior de todas as entidades de trabalhadores do país, a Central Única dos Traba-
lhadores – CUT. Segundo ele, problemas estruturais do grupo afastaram os sócios.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

“Agora que nós estamos resgatando novamente, tamo nos associando de novo. Já
tem 22, já tem 22 pagando corretamente. E tamos nos associando, né? Já temos
quatro para associar. A gente vai associar esses quatro já em janeiro, se Deus quiser.
Teremos quatro novos associados.”
Lá no Lago Grande do Curuai, na comunidade de Peré Boa Vista, o pescador já
aposentado, Manuel Pedroso de Lima Ferreira, falou que a Z-20 insistiu para que ele se
tornasse um coordenador de base. Justamente por sua característica de líder, quem
sabe. Assim, ele cedeu e o levaram para Santarém onde agilizaram seus documentos
pessoais e a carteira da Colônia na coordenação da capatazia da localidade, onde ele
trabalhou 30 anos nessa função. 97
“A gente sabe que numa coordenação dessas a gente tem que orientá as
pessoas, tem muitas pessoas que eles num... Não tem assim uma idéia boa, né? Por-
que aqui sempre a gente foi, trazendo orientação das pessoas, porque a gente qué
que as pessoas... eles tenham assim se orientado de não ficá sem uma entidade. (...) E
a gente não ia dize: ‘oh, só prá Z-20’. Não, mas... dizia pro pessoal tudo, “oh, a gente
só qué que vocês não ficam sem uma entidade”. (...) Sabe que são duas entidade
que... elas são do pobre, né? (ele se referiu também ao STR) Como eu sempre digo;
olha a Z-20, ela é uma entidade formada por nós. Somos nós os dono dela. Se nós
fracassa com a nossa mensalidade, (...) a nossa entidade vai quebrar porque não tem
outra solução, né? Sempre dizia, a Z-20 é uma entidade de encaminhamento, o traba-
lho da Z-20 é o encaminhamento.”
O coordenador tem, também, a função de defender os diretos dos
pescadores(as) em suas localidades. Antes dos pescadores(as) conquistarem uma
Colônia que dedicasse sua causa em favor da categoria, muitos conflitos se passaram.
O pescador Renato me contou dois conflitos que vivenciou:
“Olha o primeiro conflito que nós tivemos foi num amigo, por causa de uma
terra. Tomaram a terra dele. E aí, ele chamava-se Capito. Aí o que foi que aconteceu?
Ele era sócio e nós, um dia, reunimos e decidimos receber a terra dele. Aí, quando foi
um dia ele mandou recado prá mim que o cara tava cercando a terra dele.
Aí, nós reunimos, nesse dia nós fomo trinta e dois pescador. Chegamo lá, tavam
cercando, nós fomo arrancando das estacas tudinho. Disporamo o arame e dissemos
pro cara que, daquele dia em diante, a propriedade era de nosso amigo pescador por-
que ele nasceu e se criou lá. E como era tudo uma terra dele, prá onde era que ele ia?
E desde esse dia foi... desde esse dia, o cara não foi mais lá e ele ficou sendo
dono da terra. Era terra central.
Aí, o outro conflito foi em 1981. Cercaram a nossa descida da estrada que a
gente pescava. Isso foi na beira do rio. E o que aconteceu... Nós tornamos a se reunir,
fomos pessoalmente falar com o dono da cerca. Ele diz que não abre a cerca. Aí, nós
demos um prazo prá ele de quinze dias. Se ele não abrisse a cerca, nós íamos abrir a
nossa passagem.
Amazônia: Pescadores contam histórias

Aí, nós levamo esse papo prá ele. Ele não tirô a cerca. Aí, nós reunimos, isso foi
de novo um trabalho de grupo, de muitos pescadores e a comunidade também.
Chegamo lá, nós abrimo a cerca. E está aberta até hoje, ele não se revoltou. Nessa
época, nós éramo organizado.”

Acordos e Conselhos de Pesca

A imensidão amazônica nos leva a pensar que não tem como regular, controlar
98 e fiscalizar todo aquele mundão de água e terra. Mas não é bem assim. A Amazônia
depende muito de seus povos assim como eles dela. É através das populações tradici-
onais que a preservação e conservação dos recursos naturais vão se concretizar.
Os acordos de pesca já existiam entre os pescadores(as) e suas comunidades
espontaneamente, e ainda existem. Só que, a partir dos incentivos ao setor pesqueiro,
esses acordos podem ser respaldados na legislação pesqueira. São representações
participativas, incluindo todos os grupos sociais, que tem a incumbência de elaborar
um ordenamento pesqueiro para suas regiões. Fica por conta do governo federal,
através do Ibama, transformar esses acordos em portarias, em leis.
São os Conselhos Regionais de Pesca como entidades jurídicas que colocam em
prática as portarias. Os acordos comunitários passam a vigorar através da portaria de
pesca de sua região.
Em Santarém, existem sete Conselhos funcionando em sete regiões: Conselho
do Maicá, do Ituqui, Lago Grande do Curuai, Tapará, Aritapera, Arapixuna e Urucurituba.
Está em discussão um futuro Conselho de Pesca da Cidade.
Essas instituições tem apoio logístico da Z-20. Os Conselhos são instituições co-
munitárias e se mantêm através de promoções. Roberto Cardoso Marinho me relatou
que os Conselhos encaminham as decisões através das assembléias comunitárias. A dire-
toria dos Conselhos também não é remunerada. Roberto diz que “se trabalha por amor!”
Enéias da Silva Nogueira, 49 anos, mais conhecido como Maguari, tem 15
anos de sócio na Z-20, e atualmente é presidente do Conselho de Pesca do Lago
Grande. Ele reitera a posição de Roberto. “Não, ele (o Conselho de Pesca do lago
Grande do Curuai) não tem apoio financeiro, realmente, porque agora (2004) nóis
fizemos um progresso debatendo alguma coisa prá ser aprovado, prá realmente vê se
daqui mais uns ano chegue mesmo um colabore para nossa região.
O Conselho (...), eu falo sobre meu Conselho, que aonde nós temo se manten-
do através de um bingo que a gente, que nóis sempre organizamo por assembléia.
Aonde sai 15 cartela pra cada comunidade prá ser comprado. Aonde sai os prêmios de
valores.
Eu creio que os Conselhos devam procurar apoio financeiro dos pescadores(as)
e comunitários(as). Porque, enquanto, esperam respaldo de fora, a população espera
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

que o Conselho faça aquilo que antes eles é que faziam. Agora, se os comunitários é
que estão envolvidos diretamente, colaborando com pequenas quantidades em di-
nheiro, haverá mais participação e mobilização de novo. O financiamento externo virá
com o trabalho já em desenvolvimento de cada Conselho.“
O envolvimento dos Agentes Ambientais Voluntários – AAV junto ao Conselho de
Pesca Regional é importante quanto à questão de educação ambiental. O que é preciso
para o pescador(a) praticar os acordos e portarias de pesca? É preciso incentivar opções de
geração de renda sustentável e mais do que tudo, criar opções de autogerenciamento
através de capacitação sobre legislação de crimes ambientais, pesqueira e meio ambiente.
Educação ambiental quanto ao uso da água e o que se retira da água. 99

A Colônia que sonhei


Uma Colônia, um sonho... uma possível realidade?

A Colônia com a qual eu sonho, e muito pescador(a) também sonha, é uma


instituição com assistência direta ao pescador(a). Com uma fábrica de gelo e uma
câmara fria de estrutura comercial do pescado, garantindo assim a exportação. Assim
como também, uma fábrica de beneficiamento do pescado. Por exemplo, a transfor-
mação do coro em tecido para indústrias. Que pense estrategicamente nos canais de
comercialização.
Do sonho para a realidade tem um grande caminho. Este que poderia determi-
nar através da legislação das terras de Marinha que, onde houver estados pesqueiros e
populações que dele dependam, sejam de uso exclusivo da categoria.
Uma Colônia que busque recursos direcionados para a diversificação da renda
familiar e da permanência do pescador(a) em seus locais de origem. Já que a Amazônia
tem tanto potencial turístico, por que não projetos de ecoturismo em áreas de pesca?
O sonho da Colônia seria a edificação de uma cooperativa para garantir um
preço justo tanto para o pescador(a) quanto para o consumidor. Um projeto de
marketing que envolva desenvolvimento de marca do pescado em escala comercial,
trabalhando de acordo com as leis de higiene e saneamento. Por que não pensar em
um restaurante com comidas típicas onde a matéria-prima venha diretamente do
pescador(a)?
Já que o pescador(a) devota uma grande parte de seu tempo na prática da
pescaria, também sonho com um barco-hospital e odontológico, e ambulâncias para
atender os sócios em suas localidades de origem. Linhas de créditos em supermerca-
dos, postos de venda de combustíveis, farmácias, plano de saúde próprio, entre tantos
outros benefícios para a categoria.
Uma Colônia que promovesse as relações públicas, não somente institucional,
mas também com relação a seus associados. Que proporcionasse canais de informa-
ção mais abrangentes. Que apoiasse e intensificasse a educação formal através de
Amazônia: Pescadores contam histórias

cursos de capacitação e reciclagem para seus líderes. Que incentivasse bem mais a
informação ambiental de tal forma que pudesse atingir crianças e jovens filhos(as) de
pescadores(as). Que como bem apontou Sônia Leão, uma escola para filhos de
pescadores(as). Mas, que tivesse currículos adaptados!
Uma Colônia que tratasse com mais igualdade a competência das mulheres
pescadoras. Incentivando o planejamento familiar e alternativas de geração de renda
diversificando a atividade econômica.
Isso é um sonho e sonhos realizam-se com ações!

100
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

O poder da fé e da magia

O
Crenças
O pescador(a) tem sua fé em São Pedro, o protetor dos pescadores(as). Na
época de Jesus, ele deixou a pescaria para evangelizar pessoas. Assim, na Semana
Santa, paixão e morte de Jesus, os pescadores não pescam, o fazem antes desses dias
para ter o pescado em abundância. Os pescadores(as) acreditam muito que São Pedro
intercede junto a Jesus pela boa pesca alcançada.
Na astrologia, São Pedro é representado pelo signo de sagitário. Esse apóstolo
tem “a chave do céu”, tamanha a importância de sua figura para a Igreja Católica.
Divide com quem é de sagitário, os princípios da generosidade e da fé. Quem conhece
Pedro, sabe que ele negou Jesus na sexta-feira da Paixão. Então, como o santo, nós
101

pescadores(as) também fraquejamos e porque não dizer que, algumas vezes, até nega-
mos que somos pescadores(as).
A história bíblica, também conta sobre o “pescador de homens”, na figura do
apóstolo André. Porque era ele quem recrutava novos discípulos para Jesus. Ele é re-
presentado na astrologia com o signo de capricórnio, sendo uma de suas qualidades a
disposição para o trabalho, responsabilidade e determinação.
Há muitos anos, a Colônia de Pescadores Z-20 realiza a Procissão de São Pedro
no final de sua assembléia ordinária, que acontece exatamente no dia 29 de junho, dia
do santo. Atualmente tem o apoio da gestão municipal, Diocese de Santarém, Delega-
cia Fluvial, Corpo de Bombeiros, as Polícias Militar, de Trânsito, entre outras parcerias
de âmbito privado.
Do local da assembléia, a procissão segue até o barco ornamentado especial-
mente para receber a imagem do santo. Os fiéis em suas embarcações acompanham
São Pedro que percorre toda a frente da cidade. Após a procissão fluvial, o bispo cele-
bra a missa campal solene na praça da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição.
Em seguida, os fiéis acompanham de novo São Pedro até a sede da Z-20, con-
siderada sua casa. O lugar é bastante visitado por seus devotos onde depositam os
agradecimentos de suas graças.
A crença na ajuda de São Pedro já não sensibiliza mais tanto o pescador(a)
como antigamente. Sim, porque o mundo espiritual das águas também mudou como
o mundo que gira atualmente em volta dele. A troca do arpão, a pesca artesanal de
Amazônia: Pescadores contam histórias

subsistência pela pesca artesanal comercial, dos grandes barcos pesqueiros, colaborou
nessa transformação.
Na minha gestão de relações públicas na Colônia de Pescadores Z-20, em 2003,
realizamos a procissão com o apoio da devota e professora de turismo Andréia Imbiriba
e da sociedade civil. O objetivo é justamente resgatar a cultura e a crença em São Pedro.

Crendices
O pescador(a) para ter uma boa pescaria se prepara na terra. A sabedoria po-
102 pular dita muitas crendices. A mais famosa, na região, é a panemice. A palavra panema,
que em tupi é pa’nema, significa a infelicidade na caça ou na pesca, azarado e vítima
de feitiço.
E o que o pescador(a) faz para se livrar disso, para se proteger? É o que vamos
ver agora!
Dorinelson Lopes Barbosa, me contou como Olavo se cuidava para afastar as
malícias da penemice. “Ele me convidô prá gente vim a pesca de novo. Aí pro... Jauarari.
Que isso daí é muito falado isso. Tem muito peixe. Aí, quando a gente foi... prá lá. Aí,
ele ia esmigalhando umas sete pimenta malagueta prá... passá nos braço. Aí, ele tava
esmigalhando tudinho. Aí eu disse:
— Prá que isso daí?
Disse:
— Ah, meu mano, isso aqui é prá tirá a panemice prá mim matá o peixe.
Tá bom. Aí, ele ia fazendo.
— Cadê tua hastia?
— Taí!
Aí, ele pegô, fez... jogô na hastia tudinho. Aí, passô no braço dele, né? Aí, eu
fiquei olhando prá ele. E aí:
— Eu vô passá no meu braço também. Quero vê... tirá a panemice.
Aí, eu passei. Rapá, não te conto nada. Ardeu! Quando eu atrepei no pau lá
rapaz, na mesma hora eu baxei prá água e fiquei de molho lá, quase umas meia hora lá.
E ele passava nas costas dele, no espinhaço dele, na pá dele, batia... não ardia, não!”
Dizem, que só sente a ardência aquele que tá com panema. Assim como falam
que a panema se pega quando o pescador dá um pedaço de seu peixe para uma
mulher grávida, principalmente se for de pirarucu. Depois disso, o pescador não pega
peixe, só vive querendo dormir, abrindo a boca.
Mais uma prova do machismo amazônico está nessa outra crendice, contada
por Osmar Didiet. Quando a mulher está menstruada:
Ela não pode passar por cima do arreio de pesca do marido, não pode pegá na
flecha, na hastia ou na linha, porque pode empanemá.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Pirarucu usa e abusa dele e ele não acerta. Peixe vira de folha para ele e não
acerta no peixe.
Prá pessoa voltar de novo a ser o pescador bom que pega bastante peixe ele
tem que tomar banho de curuatá e outros paus. Ir no pajé, no curandeiro e depois
fazer uma defumação de tauari nas mãos, pés e na linha de mão.
Osmar me relatou que “já aconteceu de caboco pegá espingarda, e dizê prá
fulana que se ela não mordesse no pé da hastia, ele matava ela. E a pessoa teve que
mordê. Porque ela tinha comido da embiara dele. Se a mulher tiver gestante nova,
pescador nenhum te dá embiara prá comê. Seja carne, seja peixe, não te dá porque
você pode empanemá.“ 103
Para tirar a panema, eles costumam também dar banho na canoa, na malhadeira,
nos arreios dele que é para ele sempre pegá bastante peixe.
E foi o Osmar que deu um exemplo real da crença do caboclo. “Fiquei chatea-
do mesmo, fiquei chateado com um próprio tio meu. E ele errava pirarucu bem pertinho
dele, eu pescava com ele. E ele disse que era minha esposa que tinha empanemado
ele. Quase eu brigo com ele.
Eu disse que eu não admitia isso porque minha mulher era uma mulher
trabalhadeira, não era uma mulher vadia, e eu acho que talvez se desse panema era da
mulher vadia. Cismou que ela tava grávida e ela podia ter comido do pirarucu que nós
matamos. Particularmente eu não acredito. Agora eu respeito a cultura. Se eu errei era
porque tinha que errá.“
Ele nega a crença quando diz que, “existem certos detalhes, certos detalhes em
cada rede. Se a rede não for bem talhada não pega peixe. A maré é muito influente
numa boa pescaria. A lua, se é quarto minguante não pega, pega no quarto crecente
e lua nova. É um fenômeno.“
Dorinelson, o Repepinilo ou mais conhecido como Piquê, lá do Inanu, não
permite nem que sua própria mulher toque em seus arreios. “Ela pode... usá as mão
dela prá outras coisa (sorriu ele). Passa panemice.“
Eu, como pescadora, não gosto também que pegue nos meus arreios. Quan-
do confeccionamos ou compramos um que não combinamos com ele abandonamos
ou queimamos até. Quanto à questão do peixe, quem vai consumir, já fica no meu
pensamento que não tem muito respaldo. Veja, o pescador(a) vende seu pescado,
como ele vai saber quem comeu? Pescador(a) é muito cuidadoso com seus arreios. O
ser humano vai continuar pescando. E é dessa forma que fica comprovada a competi-
ção entre a natureza e a humanidade!
A crendice popular amazônida reza que o pescador(a) tem, também, que ter
muito cuidado ao cuidar de seu peixe. Tem um pescador no Mararu, o Claudomiro
Perreira Dias, também conhecido como Codó, que não deixa ninguém jogar as espi-
nhas de sua pesca no quintal de sua casa. Ele queima tudo!
Assim como ele, os pescadores vão traçando sua cultura!
Amazônia: Pescadores contam histórias

Não jogar a escama em qualquer lugar; para os pescadores, nunca passar de-
baixo de varal, ainda mais se tiver roupa íntima de mulher; fazer uma defumação com
pimenta malagueta; limão galego no corpo...
Carlos dos Santos Moraes, morador no bairro do Maracanã, é pescador de jaraqui
com tarrafa, tira a panemice limpando a tarrafa com galho de limoeiro para tirar o azar.
Os banhos também são potentes eliminadores de panemice, mas tem que usá-
los de acordo com cada panema.
A quantidade de pimenta malagueta, também varia conforme o tipo de
panemice. Deixar secar bem e passar no corpo, na canoa, nos arreios. Ela também é
104
um ótimo remédio para reumatismo. Junte-a com óleo de andiroba ou piquiá. Para o
galo lerdo, passar pimenta nas canelas; as galinhas botam prá valer!
Pataqueira, alho, pião-roxo, pião-pajé, tajá pirarucu, sacaquinha, sal grosso,
cipó cabi.
As puçangas são os feitiços que afastam ou atraem. Silvio Nogueira do Carmo,
lá do Uruari, me contou que ele foi pescar com seu parceiro. Pegaram um pirarucu e
voltaram para cuidar em casa. Foi quando deram a miudeza para outro pescador.
Em geral, o pescador(a) não costuma dar a miudeza de um grande peixe para
ninguém. E nada de pegar peixe mais. O parceiro de Silvio contou para a mulher dele que
eles estavam com panema em função das miudezas que eles deram para o pescador.
A mulher de Cacique, parceiro de Silvio, disse para ele que conhecia uma puçanga
para aquele feitiço. Silvio não queria contar essa receita. Insisti tanto com ele que dei-
xou a vergonha de lado e me contou: “Olha, eu vou contá sabe? Querem que eu
conto, eu conto. Olhe, a barba da mulhé, viu? A barba da mulher quando ela é muito
a safada por causa de homem, minha filha! Tira um poco, tira um poco. E essa uma, a
mulher do meu proero era parceira dessa mulher. Ela gostava muito do homem, sabe?
Gostava muito de homem e ela bibia uma pinga, sabe? Ela bibia uma pinga e ela...
Nós fumo numa festa lá na Vila Socorro. E aí... ela foi, sabe? Ela estava lá, esta dita
mulher tava lá. Lá ela se meteu na bebida e dormiu perto da, da conhecida memo, né?
Dormiu perto da mulher, dessa... até minha tia. Mulher desse meu proero, né? Dormiu
e aí ela se alembrô da puçanga que... ela sabia que era bom. Eles contavam, né? Que
era bom. Aí, ela pegô a tesoura muito bem, foi lá, tirô lá... um poco, né? Tirô um poco,
rapá! Embrulhô. Mas só, aquilo tem que embrulhá bem com cuidado que aquilo foge
que só... Num papel, bem embrulhado, rapaz, e aí deu prá ele... o nome dele era
Cacique, né? O marido dela. Tá bom. E nós enchia mesmo, rapá! Nós enchia se não
fosse essa, esse feitiço, né?(Veremos logo a seguir qual foi esse feitiço.)
Como é feita a puçanga? Aquele fio, aquele fio do cabelo que é a puçanga, né?
Amarra no arpãozinho, lança com outra linha por cima, passa uma cera de... uma cera
de mel, breia bem aqueles fiozinhos. Aí, passa uma linhinha por cima, aí estruva de
novo, e pronto. Só que não é prá contá prá ninguém. Não tem que contá prá nin-
guém, pois é?
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

— (Fez uma voz meio envelhecida e forte) Olha Cacique, tá aqui a puçanga!
Agora, tu vai enchê a canoa, meu velho.”
Silvio e Cacique tinham toda a sorte do mundo nesse feitiço. Não fosse, Caci-
que repartir a puçanga com outro pescador amigo seu. “E pro parceiro que nós demo
um poco, aí ele matô muito, ele matô muito pirarucu. E prá nós não prestô!”
Foi depois da puçanga, que eles descobriram que o pescador a quem deram a
miudeza também tinha feito maldade com eles. “Descobrimo que o cara que tinha
judiado, feito isso, essa judiaria. Que de formas, que, que não prestô prá nós. A miudeza
que é ciência, rapaz, e... E, o cara com inveja, pegô uma miudeza do nosso pirarucu foi
metê bem na casa onde tem tapecuim. Tem aquele buraco, né? Lá ele meteu aquilo lá 105
prá dentro. Tapô aquele buraco, pronto! Pois é um feitiço dos maiores aquele lá.”
Silvio se refere às pessoas malvadas como se elas nascessem diferentes das
demais. “Eu digo que... essas, essas pessoa que nascem diz que encapado, né?
Encapado, é que tem uma capa na cabeça quando vem... Tu nunca viu falá? É, diz que
é... venenoso. Sei lá, de que... sei que é uma capa, encapada a cabeça da criança.
Porque foi só, porque o primeiro que eu fui no primeiro dia que nós usamos a puçanga,
sabe? Que nós viemo pra terra firme. Se nós ficasse prá lá, então nós tinha pego muito
por onde que nós não vinha prá cá, o cara não ia judiá de nós, né? E essa puçanga, diz
que a gente não deve dá prá ninguém! Se dé prá outro, já fica ruim prá gente e vai
melhorá prá ele.“
Já ouvi falar de um ditado assim: por trás de grandes homens, existe uma
grande mulher. No passado, estávamos ocultas pela fama masculina. Acredito que
hoje, as grandes mulheres estão no mesmo patamar que os grandes homens. Preciso
justificar isso porque tem muitas puçangas e feitiços amazônidas onde a mulher é
colocada sempre como a vilã!
O que me entristece é que o homem, não conseguindo conquistar mulher com
sua própria sabedoria natural, usa do peixe para seduzi-la. Silvio, que não me passou a
imagem machista, se revelou um conhecedor dessas artimanhas masculinas. É o caso
da puçanga da acaratinguinha ou parapataca, como também acaratinga doida. Uma
pequena da espécie, que não cresce.
O pescador pega a acaratinga facilmente nos rios ou lagos. Põe para secar, mas
bem sequinha no sol. Aí, o pescador que quer conquistar vai a festa com a peixinho
morto e seco no seu bolso, pois ele atrai a mulher.
Já aconteceu, de um cara pegar a acaratinguinha e como ele não secou bem, o
peixe estava com mal cheiro. A puçanga ao invés de seduzir afastou a pretendida. O
efeito virou contra o feiticeiro.
O peixe de novo é alvo na conquista das mulheres, dessa por pequenos meninos
já habituados a conviver num universo machista. Quem conta é o pescador Valdemir da
Silva... “Nosso amigo de infância... aí foi pescá com o pai dele.. Aí, ele chegô lá, pegaram
um bocado de carauaçu... Salgaram, tempo que era de sal. Salgaram e trouxe.
Amazônia: Pescadores contam histórias

Quando foi de noite, o velho saiu prá casa da... da quenga dele... Afonso ficô
por lá. Aí, tinha uma... que mora ali na cabeceira, onde é a Maria Ciloca (risos)... E aí,
ele convidô meu primo Jorge e foram lá.
Aí, pegaram uma cambada de carauaçu do finado pai dele e levaram prá ela.
Aí, chegaram lá, ele chamô ela e... e ofereceram o carauaçu prá ela a troco de... passá
umas hora com ela. Ela aceitô a parada. Aí, quando eles tavam lá, tudo curumim, né?
Aí, fizeram a janta muito bem, arrumaram a mesa e quando... tavam jantando... Aí,
quando arrumaram a mesa aí chamô:
— Venham cá!
106
Aí, esse... meu primo Jorge, que ele era meio esperto disse... sentô e pegô um
prato e... começô... Comê junto com elas, né? Elas eram três.
Aí, o... Afonso ia lá e cutucava na costela dele assim com a mão e dizia:
— Sai daí! Sai daí! Não come! Isso é só prá ela porque nós vamo pegá...
Aí, o Jorge nada. Comeu. Comia lá com elas. Esse Afonso muito puto não quis
comê. Quando terminaram muito bem... Por lá andava outros com... outros compa-
nheiro mais velho, né? E quando eles tavam lá numa boa, chegô o... o chefe da véia,
mas um outro véio. Chegaram lá, deram com eles lá...
— O que esses curumim fazem aqui?
Passô a mão no terçado deu umas duas ripadas em cima de um banco que
tinha no terreiro... Esse Afonso mais o Jorge saíram quebrando mato na frente... E
deixaram os carauaçu do finado pai dele prá elas comê de graça.”

Cobra grande

A cobra grande aparece nas noites escuras, nos temporais. No rio, aparecem duas
grandes tochas de fogo em alta velocidade na direção das canoas. O pescador(a) tem que
remar depressa e, sem barulho, puxar a canoa para a margem. Aí fica quieto até amanhe-
cer. A cobra grande então se afasta para sua morada num grande aningal ou num buraco
em algum lugar dos rios ou lagos, ficando a espera de uma nova oportunidade.
Silvio Nogueira me relatou que os temporais seguidos da aparição da cobra
grande são muito violentos. “E aí, a gente pegava aquele grande temporal, né? A
gente foi já no barco, rapaz, o temporal arrastava a gente... no barco, lá naqueles (...),
a gente não conhecia por lá. Aí, de vez em quando eu carregava a saneva assim, do
barco prá vê se enxergava um pouco dela.” Hoje em dia, Silvio acredita que ela anda
escondida depois que apareceu o motor. Sebatião Aires Farias me descreveu o mons-
tro da Amazônia como um bicho que tem veneno, traiçoeira.
Ouvi muitas histórias sobre a cobra grande. Mas, aqui não vamos falar da len-
da propriamente dita. Para os pescadores(as) a cobra grande existe e são essas histórias
que vamos retratar aqui.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

107

Wilson Mota de Sousa é um pescador que passa o maior tempo de sua vida no
rio. O seu barco B/M Meu Torrão é sua casa. Lá, ele namora com sua mulher, Raimunda
Sueli, que também é pescadora. Eu costumo chamá-los de casal 20 da pesca. Quando
seu barco não está em Santarém, encontra-se ele no meio do Lago Grande, ancorado.
E ele vai nos contar uma outra história. Agora sobre a cobra grande.
“— Tinha um caçador... Nesse tempo, o tabaco ele não vinha moído assim. Era
cortado em molhe. Tinha que tê uma faca prá cortá assim, prá podê fazê o cigarro. Lá
o caçador, se perdeu. Se perdeu e começô a andá prá cá, prá li... Foi quebrando as-
sim... o mato. Que quando ele prestava atenção, tinha um pau grande assim. Grande
mesmo. Ele passava em cima daquele pau. Um pau... tava limento, devido chuva essas
coisa, no mato... tava limento aquele pau. Aí, ele tava no mesmo caminho. Daí, ele
tirava o rumo, quando ele dava ele tava naquele pau de novo. Numas três vez mais ou
menos...disse:
— Mas eu vou fazê um cigarro!
Amazônia: Pescadores contam histórias

O pau era alto, quase dava assim no peito dele. Pegô, tirô o tabaco, a faca da
bainha e raspô assim o pau prá saí aquele limo prá ele podê migá o tabaco. No que ele
raspô aquele limo, aí surgiu tipo um sangue. Tipo um sanguizinho. Disse:
— Mas que diacho é isso?
Limpô, limpô aquele sanguizinho, prestô atenção, era uma escama grande as-
sim. Daí, ele agarrô, não fez mais o cigarro. E saiu beradiando assim ele. Foi beradiando,
foi, foi... Aí, quando foi chegando assim prá banda da onde ele ia, foi afinando assim
um pouco aquele pau, né? Aí, ele foi se afastando também. De longe ele olhô assim
tinha aquelas pena de bicho, pêlo de animais... E ele foi se afastando, foi... Ele perce-
108 beu que ele tava na cabeça dela. E aquele limpo era onde ela atraia... Então ele pensa
que ele tava sendo atraído. Depois dessa altura que ele descobriu, ele tirô rumo, ele...
acertô prá onde ele tinha que ir.”
Quando você vai até o contador de histórias, você tem que estar preparado
para ouvir. Depois que ultrapassam os limites da timidez, desatam a contar muitas e
muitas histórias. Ouvir as histórias dos pescadores(as) é necessário ter tempo. Para os
povos indígenas, a história da criação do mundo não se conta num dia só... Haroldo
Viana dos Santos, do São Jorge extremando com Inanu, me contou duas histórias
desse ofídio encantado.
“Olavo certa vez, ele me contou uma história. Ele chegou cinco horas da tarde,
numa cabeceira chamada Buiar, aonde sempre ele fazia o paradeiro a noite. Aí, quan-
do foi lá por volta dumas nove horas, dez horas da noite, ele viu um fogo, um fogo no
rumo de outro lago. Aí, ele ficou olhando...
— Aquele fogo não é embarcação!
Era um fogo assim... bem vermelho e outro era bem azul. Aqueles dois fogos,
um na ilharga do outro. E quando ele prestou atenção, aquilo vinha parece um cami-
nhão, holofote de um caminhão, em direção dele. Aí, chegou meio próximo, aí deu
uma volta.
Aí, tem um lugar lá chamado Portão e tem outro local chamado Boca das Ga-
linhas. Nesse Portão tem um lugar muito fundo. Na Boca das Galinhas tem um poço
de novo muito fundo. Aí, aquele, aquela... aquela claridade foi em direção primeiro ao
Portão, deu a primeira volta, aí ficou lá... uma meia hora, em cima d’água. Os fogos,
eles abaixavam e eles hastiavam de novo. Parecia que ia acabá tudo!
E não tinha nada... nenhuma nuvem. Aí, começou um grande vento. De re-
pente. Aí, a cobra grande foi no rumo da Boca das Galinhas. Quando chegou na Boca
das Galinhas dobrou em direção a outro local que chama Poço das Pedras.
Tu lembra do Poço das Pedra!? Quando chegou no Poço das Pedras, que ficava
quase em direção a ele, o fogo parou lá. Aí, teve... uma hora mais ou menos. Aí, lá o
fogo correu em direção dele. Aí, ele se meteu por trás do mato. Aí, começou cai aquele
temporal e o fogo bem próximo dele. O fogo quase apagando, aí mesmo ele hastiava,
em direção dele, clareava tudinho ele e a canoa. E ele com muito medo lá.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Prá ele entrá foi muito fácil, mas quando ele tava lá, com muito medo, que ele
foi olhá, era muito feio prá ele voltá de volta, lá de dentro daquele mato. Aí, teve...
muitas horas... Aí, quando foi precisamente umas três horas da madrugada, o bicho
sumiu em direção ao Portão. E lá sumiu o fogo... e ele pode ir prá canoa dele de novo.”
Quantos fogos tem a cobra grande? Lourenço de Sousa Rodrigues, da Vila
Curuai, no Lago Grande, diz que ela tem um só fogo!
“Eu ainda estava no Preguiça ainda quando aconteceu. Eu... nós fumo pescar
lá do outro lado. Era eu, meu amigo Lúcio, o filho, João Galúcio, o Tcho, cria dele e o
Antonio, genro dele. Aí, nóis fomo chegando era umas cinco horas da tarde. Tinha
muita cujuba boiando, naquele tempo existia, né? 109
Arreamos as malhadeira lá. Aí, quando foi... umas sete horas nós fumo ver as
malhadeira, tiramo os peixes. Fomo fazer a janta lá. Jantamo, quando foi meia noite
que nós saímos prá pegar as malhadeira, os meninos saíram prá ver a deles, né? E nós
saímos prá ver a nossa. E quando, e quando nós chegamo (...) eu terminei prá tirar o
úrtimo cujuba, que tinha parece que cinco peixe lá, eu ouvi o barulho da lamparina
prá lá! Caiu lá no... eu disse:
— Meu Deus!
Aí, nessa hora foi que ele gritou:
— Parente, pelo amor de Deus que vai um bicho prá lá!
Eu vi que era um bicho aquilo que tinha assustado ele. Aí, ela veio e se aproxi-
mou do motor lá. Alumiava aquilo, clareava aquilo, clareava tudinho nas árvore lá.
Nóis (...) sabendo de tirar o peixe. Tirei o peixe. Aí, fui... embora prá beira.
Fui desviando daqueles paus e fui e fui até prá me aproximar lá do barco, né?
Tinha que rodar uma ponta era limpo, e eu ia com a lanterna de carboreto acesa assim.
Aí dei com aquele clarão. Eu virei a lanterna da minha mão. Aí, a bicha tá de fora lá. Aí,
enxerguei aquele brilho. Mas aquilo me deu uma coisa que caiu a lanterna da minha
mão. Eu soprava prá apagar e... e quando eu prestei atenção a canoa já tava de popa
lá na terra. Ele já tinha... deu coragem nele já tinha puxado a canoa.
E se nós mete a cara, ela tinha pego nós... Tava perto, próximo assim uns dez
metros. E aí, fiquemo lá. E ele de lá embarcou um menino, tinha um outrozinho que
tava durmindo essa hora (...) Embarcou e veio... aportou no meio do burizal com uma
boroca e se amontoamo lá na canoa. Ela clariava, ela boiava na beira do capim. Aí, ela
boiava lá fora... ficava lá... Aí, ela clariava... Aquilo clariava igual a um holofote. Nós
ficamo até cinco hora da manhã. Lá que ela acentou... E só aparece um fogo. Nóis não
vimos dois fogos, só um fogo. Acho que ela só bóia de lado. E foi o que aconteceu...
foi isso.” Isso foi uma verdade, eles ainda estão vivos.
Haroldo Viana dos Santos pede a palavra...”Um dia eu foi pescá, eu e um irmão
meu. E, as seis horas da tarde, nós saímos prá vê uma malhadeira. E quando nós
aproximamos da malhadeira, um fogo saiu na nossa direção. Aí, eu falei pro meu
irmão, eu disse assim:
Amazônia: Pescadores contam histórias

— Rapaz... tá vendo aquele fogo lá? Naquela direção ali...


Se levantou e disse:
— Tô vendo, mas aquilo é uma embarcação!
Aí, quando ele falou assim que era uma embarcação, eu avistei o fogo já vinha
na nossa direção. Mas, vinha muito próximo e... quando chegou próximo de nós, eu
falei o seguinte:
—Vão bora corrê em direção daquela ilha.
A ilha tava próxima. Aí nós... deslocamo em direção aquela ilha. Ficamos lá. Aí,
aquele fogo se aproximô, se aproximô e só não pegou nós porque nós entramos na
110 ilha. Aí, não tinha vento, não tinha nada. Não tinha sequer nenhuma nuvem no céu,
não aparecia. E de repente, tornou um grande temporal. Muito temporal. E o fogo lá
próximo de nós. Aí, eu falei assim, eu disse:
— Rapaz, o que que nós faz!?
A malha... a rede tava n’água. Ele disse:
— Eu vou arrancá o moirão da bera e vou puxá porque o moirão de fora ele vai
arrancá, e nós vamo consegui puxá a rede prá canoa.
E foi assim que nós fizemos. Depois de muito tempo, aquele fogo desapare-
ceu. Deu cinco voltas, próximo àquela ilha, depois desapareceu e se deslocou em
direção à Boca das Galinhas, onde... o povo fala que é o buraco dessa cobra grande.
É uma cobra grande muito atrevida. Nós escapemos nesse dia!
Nunca ninguém conseguiu pegar uma cobra grande. O fogo ele tava na água
mesmo, rente a água! (...) Agora, não sei se tem alguma energia. Não sei se ela tem
alguma energia, eu acho que tem, né? Porque prá dá um foco daquele muito claro, e
vai muito longe, e anda muito rápido.”
Seu Edmundo Prata, do Jacaré, e em seguida, Wilson Mota do Torrão compro-
vam a teoria de Haroldo que ninguém ainda conseguiu quebrar o encante capturando-
a. “Conta uma história da cobra grande que correu atrás de dois pescador. Eles eram só
numa canoa mas eles tinham um rifle. Aí, ele remaram, remaram, remaram encostaram
na bera. Puxaram a canoa em terra e ela veio. E quando ela veio, que ela encalhô, que
ela ficô de fora, o proero passô a mão no rifle deu um tiro nela... Aí, ela deu aquele
baque, fico aquela ruma grande lá. Aí, eles foram embora. Quando foi de manhã...
— Agora nós vamo vê que ela tá morta lá!
Chegaram lá, não era ela. Foi na hora do tiro que ela bateu, que ficô aquele
monte de barro, nessa artura (como estava sentado num banco ele dimensionou a
mão na sua cabeça) pro um lado e outro, pensavam que era ela, quando acaba, ela
vortô, foi embora, mas não pegô eles.”
***
“Uma cobra grande que tinha ali prá banda do Pução, né? Um fulano de tal,
Quintiliano, ele era destemido, né? Bebia umas cachaça. Aí, quando foi uma tardezinha
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

ele ia viajando prá atrevassá o Pução prá Pirapitinga. Um lugar que tem prá lá. E chegô
numa casa lá dum ribeirinho. Teve conversando.
Quando ia dando seis horas ele disse que já ia. A canoa dele tinha tolda. Uma
tolda de palha. Era canoa de pesca mas a gente usa uma toldazinha prá proteção da
chuva. Usava de primeiro. E, ele disse que ia. Não queriam deixá ele ír por causa da
cobra grande que quando era umas sete horas ela passava lá no lago, né? De cima prá
baixo, de baixo prá cima. Ele disse que ia. Ele usava vela. O vento tava bom.
E as velas, a gente sempre coloca um pau chamado mastro. Era de muraúba,
pau pesado, pau bom mesmo. E carregou a vela e saiu. Tomô lá a dose dele, levô na
cuia ainda. Levô a garrafa lá prá perto dele, só ele e Deus. E foi embora. Que quando 111
ele saiu assim uns cem metros da bera prá fora, ele enxergô um claro na vela dele.
Enxergô um claro na vela e disse:
— É a bicha que vem!
Pegô a cachaça, botô na cuia... tomô aquela dose... e esperô! Quando ele deu,
já vinha mais perto, ele levantou e... passou por baixo da tolda, arriou a vela, pegou o
mastro, né? Não tinha outra coisa, não tinha nenhuma arma diferente... o mastro. Aí,
a bicha veio. Ele dobrô a canoa bem de frente com ela. Quando veio, o mastro tem
sempre o pé meio apontado prá dá certo lá na sarlinga. Lá ele pegô com as duas mãos
e soltô. Direito no olho dela, do lado esquerdo. Aí, entrô assim um... diz que entrô
mais ou menos um palmo assim nos olho dela, né? Quando ele arpôo. Lá, ela mergulhô.
Quando ele arpoô ele puxô o mastro que era prá dá outra, ela mergulhô assim. Que o
corpo dela era muito grande, aí ele ficô arpoando assim nela tim tim... e ela passando
aqui. Ele arpoando ela como se tivesse socando café tim tim... até que ela passô.
Quando terminô, o mastro não deu mais nela.
— Acertei nela, ela foi embora agora.
Carregô a vela e foi embora. Atravessô... ela não veio mais atrás dele. Ih, mas
passô tempo. Os pescadores já tavam acostumados. Que não existia mais a cobra
grande. Também não acharam ela morta, né? Que quando foi um dia, o caboco já
tava acostumado com ela também, né? Que não via ela mais, não perseguia ninguém.
Aí, quando foi num dia, um ia atravessando a noite lá... lá vem só um fogo. Só um lado
aceso. Aí, quando chegô perto, o caboco não tinha o que fazê, né? Não tinha o
mastro que o Quintiliano tinha... Daí ele gritô:
— Lá vem o Quintiliano!
Aí, ela mergulhô... Pronto!”

Boto

Laurimar Leal, 65 anos, artista plástico santareno é muito arraigado à cultura


local. Ele me contou que “antigamente houve uma falta de comida muito grande.
Amazônia: Pescadores contam histórias

112

Tinha um índio que foi tentar pescar, quando chegou lá ele não pescou nada. Quando
viu tinha uns botos atrás da canoa, fazendo aquela arruaça. Ele levou aquilo como
uma gozação. O que ele fez? Pegou, arpoou o boto. E foi embora prá casa. E o boto
saiu nadando até a beira do rio. E lá ficou retorcendo. E o índio deixou o boto lá com
o arpão e tudo.
E foi embora prá casa. Quando ele chegou na casa dele, ele viu o filho que
estava doente se retorcendo, fazendo a mesma gesticulação, a mesma coisa que o
boto estava fazendo lá no rio.
Aí, ele achou que deveria ser qualquer coisa a ver com o boto que ele havia
arpoado. Ele voltou no rio. Quando ele chegou na beira do rio, ele puxou o arpão do
boto e o boto morreu. Ele disse:
— O boto morreu, tá bom!
Voltou para casa. Quando ele viu, o filho estava morrendo, fazendo a mesma
gesticulação que o boto. Então, em decorrência disso, a tribo todinha quando soube
começou a não querer comer boto. E isso vai até hoje! Ninguém come boto.”
Laurimar ainda falou sobre os dois botos que temos na região. O boto tucuxi
nunca foi garanhão, sempre foi o boto salvador. Porque se uma pessoa cai lá no meio
do rio, a tendência do tucuxi é empurrar a pessoa para a beira e não deixar morrer,
servindo de apoio.
Já o boto cor-de-rosa é um boto brabo ele vai até a beira do rio com a bota
para fazer suas transas. Então, na região quando aparece uma pessoa grávida e não
queria dizer qual era o pai, dizia que era do boto cor-de-rosa.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Ele acha fricote, falta de personalidade as pessoas se referirem ao boto branco,


ou vermelho, também chamado por alguns povos indígenas de Uiara, de boto cor-de-
rosa. Segundo Laurimar Leal, essa denominação foi criada pelo cientista francês Jacques
Costeau,que em suas andanças pela Amazônia, filmou o boto vermelho e passou a
chamá-lo de boto cor-de-rosa.
Os pescadores realmente não costumam comer boto. Eles dizem que a carne é
muito pitiu. E se comem é a carne do tucuxi.
Eu acredito que o boto encanta mesmo. Nas noites de luar ele costuma ir às
festas nas comunidades. Meu pai me contou uma vez, que ele viu um homem que
havia saído de uma casa. Ele ficou em cima de uma pedra e se transformou em boto. 113
Jogando-se ao rio, ele sumiu!
Contam que ele se transforma em homem nas noites de luar. Suas roupas são
brancas e chapéu branco, para não aparecer o buraco na cabeça dele. Uma das
caracteríscas do boto é o assobio fino que chama para o encante!
As gêmeas Francisca e Ester Gonçalves, da comunidade do Acutireça, no Lago
Grande do Curuai, me descreveram esse mito das águas amazônicas. ”Quando eles
saiam d’água, eles iam na festa, tratavam todo mundo bem e o sapato dele era um
bico, só que deram que ele era boto por que o calcanhar é prá frente. Ele era o moço
mais cheroso que tinha e por isso as moças dançavam e se encantavam com ele. Ele
saiu do encante naquelas horas e aí... aproveitava de dançá com elas. E dançava,
dançava até aquelas horas da madrugada. Aí, ele voltava pro encante.
Toda festa ele vinha misteriosamente. E as moças namoravam com ele pela
curiosidade de saberem quem era ele. Contavam os velhos que ele gostava de ir pros
campo, Tapajós, Tucumão, praí prá esses central. Eu ainda era criança, a vó da Zilda, ela
teve um filho de boto. Ela tava de parto, e a casa era na bera. (Elas disseram que a
mulher estava só, sem o marido). Quando foi de noite ele foi com ela, fez o filho. Ela
dormindo não sabia. O marido dela ia com ela e aceitava ele. Já estava gestante. Era
do marido. Quando ela teve era do boto. Tinha o buraco bem na cabeça dele. Era o
boto ligítimo... morreu! Era boto ligítimo, tinha as abinha, o rabinho.”
Ester me disse que uma vez ela vinha para Santarém. No caminho, presenciou
um cardume de botos. E lá, “eu já vi filho de boto. Ele traz o filho no queixo.”
Oscar Didiet me falou sobre o boto. Ele tem um sistema de computador, um
radar. Quanto mais confiança prá ele mais ele te sacaneia. Bate o rabo que nem bate
roupa, bate no remo, puxa o casco pela quilha, pula, borbulha. Se ele enxergar você
pegando um objeto para fazer mal para ele, ele não vem. Prá mim boto é um mistério,
com toda essa idade que eu tenho. Osmar não quer brincadeira com o boto, não.
O pescador Ezaltino, falou das peculiaridades para o boto não encostar:
“Amarra uma faca inox na ponta da rede; amarra uma cabeça de alho; um
molho de pimenta.”
Amazônia: Pescadores contam histórias

Falam que quando um homem fica com uma bota ele se apaixona. Não desfa-
zendo das mulheres, mas diz que é melhor que as mulheres.
O pessoal reclama que o boto rasga a rede e tudo o mais. Claro que ele rasga
se ele não consegue pegá um peixe solto, o peixe amarrado na rede ele pega. Então,
você faz uma proteção com uma rede mais malhuda, cerca a área onde, que você qué
pescá, coloca a rede mais fina e... Pesca tranqüilo sem preocupação de boto nenhum.
Uma pescadora contadora de histórias, Dilza Maria Ferreira dos Santos, 43 anos,
moradora da comunidade de Fé em Deus I, na região do Ituqui, é quem nos conta um
fato que aconteceu com um conhecido. “Pois é, era um pescador que ele tava pescan-
114 do lá no Retiro Vai Quem Qué, aí perto de Monte Alegre, atrás de Santa Rita. Aí, ele foi
botá as malhadeira e viu os boto boiando. Aí, ele disse que se a bota tivesse coragem,
que fosse dormi com ele de noite, lá na rede dele. Quando foi de noite, ele tava até
esquecido já da história que ele tinha falado. Aí, deitô, fez um travesseiro de lençol,
deitô em cima do assoalho. Ele sozinho na casa. Quando foi de noite, umas oito horas
da noite, ele escutou pra banda do caminho lá do porto da onde tava a canoa dele.
Aquela música de mulher, uma cantiga de mulher vinha cantando: na nana, nanam,
na, nana, nam, nana, nanam...
Ele começô ficá já crescido, cresceu o corpo dele, cresceu... o cabelo arrepiou
tudo. Aí, ele percebeu que aquela pessoa vinha no rumo da escada. Quando chegou
na escada, subiu. Subiu todo tempo cantando, na nanananam na nananam na
nananam... não mudava o jeito de cantá. Todo o tempo era o nananam. Quando ele
deu, chegô na porta. Era de palha, feito tipo japá, abriu a porta e ele quieto lá. Ele não
podia nem se mexê porque o corpo tava grande, cabeça tava crescida... Ali, ele ficô
todo arrepiado ali. Quando ele olhô assim, ele enxergô aquela mulher bem alta, toda
vestida de branco, muito bonita e o vestido dela brilhava. Aí, quando ele deu, ela
subiu em cima dele, atravessou a perna em cima da barriga dele (risada dela). Sentô
com as perna em cima da barriga dele.
Quando sentô, ele disse:
— Oh, meu Deus, valei-me!
Ela disse (afinando a voz):
— Oh, meu Deus, valei-me!
Ele disse:
— Livrai-me desse... desse bicho que tá aqui em cima de mim.
Ela disse (afinando a voz):
— Livrai-me desse... desse bicho que tá aqui em cima de mim.
— Credo Cruz Ave Maria!
— (afinando a voz) Credo Cruz Ave Maria!
Todo tempo, o que ele dizia ela respondia. E ela carinhava a cabeça dele, era o
rosto dele, era os pé, era por onde dava, ela carinhando. E ela só assim aberta em cima
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

115

dele, com as pernas pro lado e pro outro, né? E ele aperriado lá embaixo. Não podia
movê nada lá, quieto. Aí ele disse:
— Oh, meu Deus, me ajude nessa hora!
Aí, ela dizia:
— (Afinando a voz) Oh, meu Deus, me ajude nessa hora!
Tudo o que ele falava a mulher respondia. E assim ela ficou a noite inteira
perseguindo ele. Ela fazia carinho nele todinho, e ele não fazia nada, nada, nada! Ele
tava acabado ali. Por conta dele, tava ali... ela fizesse dele o que fizesse, né? Aí, ele
disse que quando foi chegando assim prás duas horas da madrugada, aí ela foi saindo
de cima dele. Olhando prá ele e ele sem podê dormi, sem nada. Passou a noite aperriado.
Aí, ela saiu de novo, foi no rumo da porta por onde ela entrô. Desceu a escada
todo tempo com a mesma música que ela chegô. Ela fazia na nanananam na nananam
na nananam... prá banda dele. Ele escutô até quando ela chegô prá banda da canoa.
No porto ele escutou ela cantando. Aí, foi se soltando. Levantô, pode andá, levantô e
Amazônia: Pescadores contam histórias

aí ele não dormiu mais. Com medo, com medo, ele disse. Prá nunca mais brincá com
boto. Ele jura prá gente que era uma bota fêmea que foi aperriá a vida dele. Ele tá vivo.
Ele conta prá gente, o Coló.”
Em minhas viagens de campo à procura de histórias de pescadores, tive o apoio
de meu amigo Rionaldo, dono da frota B/M Esperança. Só que na última, o barco foi o
B/M Paulo Victor no comando de Manuel Jorge Perreira dos Santos, 46, anos, filho da
região do Tapará. Homem acostumado a andar pelas águas do rio Amazonas carregan-
do gado, com certeza tem muita história para contar. E ele nos contou uma do boto que
ele mesmo vivenciou. Quando o boto se transforma em homem... “Isso aí, aconteceu lá
116 no interior onde nós morava, lá no Catauari. Apareceu esse... esse camarada lá, né?
Simpatizando as menina lá. Aí, primeiro foi com a Rosa do seu Gitico. Aí, a menina
começô a mudá de feição. Aí, o pessoal cismô que era ele, né? Aí... aí depois ele pegô
simpatizô já das minhas irmãs lá em casa, né? Elas eram bonita que só. Aí, simpatizô
das minhas irmãs. Aí, o pessoal não queria me contá, né? Aí, foi um dia, mamãe me
contou... aí eu... foi vê se era verdade. Aí, era verdade mesmo. Aí, eu foi... vou pegá o
cabra de jeito. Trepei numa cuieira.
Quando foi umas dez horas da noite ele apareceu lá. Aí, subiu, os cachorros já
conhecia ele mesmo, os cachorros já conhecia ele, né? Passava a mão na cabeça dos
cachorro e ia lá pro quarto das menina. Eram muito brabo! Deus o livre! Cê chagá lá,
tinha que trepá na cuieira e chamá. Se não, não encostava em casa. Aí, ele adomô os
cachorro de um jeito... adomô os cachorro e adomava as meninas também.
Aí, quando foi nessa noite ele... eu foi esperá ele lá na cuieira com o arpão. Aí
quando... umas dez horas da noite ele apareceu, lá. Uma hora mais ou menos, acho
que ele não conseguiu entrá, né? Aí, ele desceu pro porto, eu arpoei ele! A linha tava
amarrada no galho da cuieira. Ele esticô a linha todinha... (quando ele entrou dentro
d’água) Ele se transformô, não era mais um rapaz. Ah, metia medo boto. Aí, estronda-
va boto de todo jeito, lá ao redor. Acho que queria bem salvá, né? Mas, não tinha
condições...Aí quando foi de manhã, nós fumo vê, aí... tava morto.
Vi, matei, matei o boto gente. Camisa branca de mangas cumpridas e calça azul...
e chapéu branco na cabeça. Vi ele vestido, o rapaz mesmo. Vi ele sendo uma pessoa, um
rapaz qualqué. Igualmente um rapaz qualqué! Muito luar, bem luarzinho mesmo.”
Como ficam as mulheres que são namoradas de boto? É o Renato dos Santos
Ribeiro quem responde essa pergunta. “Eu gostava da minha esposa. Namorava com
ela, e eu saía daqui... ela morava longe, Cristo Rei, na Estrada Nova. Eu ia e voltava de
pés, de noite. As vezes, eu ia e escutava aquele assobio atrás de mim:
— Fiiiiiiiiiiiiii...
Era o boto, com toda certeza. Eu ia embora. As vezes eu conversava:
— Qué ir? Qué ir? Então vão bora...
Aí, ele passava por mim. Passava por mim, aquele vento dava ni mim. Aí, eu
ouvia ele assobiá mais prá frente.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Por ali, morava uma família. Segundo contavam, segundo contavam que ele
andava com a mulher do cara. E ela, se você visse, ela era uma mulher bem clara, mas
ela não tinha um pingo de sangue. De toda certeza. Ela era pálida, pálida a mulher
dele. Mas, era muito pálida! E diz que era ele que perseguia ela. De toda certeza. Ela
teve uns filho, mas não sei se era de boto. Não dava essa aparência não.
E outra vez, eu tava passando pro lado de lá, numa parte estreita, o boto não
deixou eu passar. Passava por baixo da minha canoa, suspendia a minha canoa e só
faltava me lambá. E foi que eu entrei no capim e só saí quando amanheceu o dia. Ele
fez isso comigo!”
Boto homem... boto mulher... Quem relata é Evaldo Venâncio, pescador e 117
morador da Vila Barbosa, em Óbidos. “Em outra viagem, em Terra Santa, eu morei
cinco ano em Terra Santa (município Paraense). Aí, nós pescava, eu e um colega meu.
Todo dia, nós ia e voltava, ia e voltava. E aí, esse boto acompanhava sempre nós,
sabe? Aí, nós ia bebe, nós ia bebendo um negócio de uma pinga. Sempre tomava. E
aí, a gente disse:
— Olha boto, se dá bastante peixe, nós vamo te dá uns pra ti comê aí.
Aí, nós ia aquele bicho acompanha a gente sempre. Aí, ele começou a aperrear
o meu colega, sabe? Ele não dormia de noite. Só enxergava aquela, aquela mulher
sentada, deitada ao lado dele e amortecia ele.
E aí, disse:
— Olha, não vamos mais pescar que eu tô me sentindo ruim. E bora parar com
a pescaria, não tô mais dormindo a noite.
Aí, ele disse:
— Olha, tem esses que mexem com negócio de... de... macumba. Sabe? Eu
vou com o curador, prá vê o que acontece.
É foi um trabalho prá espantar esse boto. E aí, ele foi lá com ele e me chamou
no trabalho que ele ia fazer. Mas olha, o homem se atuou lá e benzeu lá ele. Fumaçô e
aquilo igual boto mesmo: frrrrraaaa, frrrrraaaa...
Lá, invocado no curador que chama, curador, sabe? Curandeiro. E aí, fez aque-
les trabalho que eles tem de fazer e... aí afugentou ele. E ainda ele falou que a vontade
dele era me levar pro fundo prá mi encantá. Me puxá, que nós só ia bebendo cachaça
e dizia que eu ia dá peixe prá... prá ele... Não jogava nenhum no mar prá ele. É por isso
que ele ficou brabo. E também eu passei um mês sem pescar, nesse tempo (risadas).”
Ezaltino é quem conta mais uma do boto. Botos do Tapajós... “Dizem que o
boto se gera, dança, atrai mulheres... eu não sei afirmá. Só sei que uma vez eu tava
pescando e tinha uns botos boiando lá perto com uma bota eu acho... acredito que
no cio, né? E a festa era tão boa e eu fiquei olhando assim, intertido né? Com uma
mão segurando a rede e a outra a canoa.
Aí os botos pararam de boiar. Aí, eu até me espantei, né? Tão perto de mim lá. Aí,
eu olhei prá, prá beira... Tinha uma pedra alta assim, tinha um homem de branco. Cha-
Amazônia: Pescadores contam histórias

péu branco, uma bengala branca, tudo branco. Não dava prá notá direito, porque a
noite, no luar, mas dava prá vê a fisionomia de um homem branco, tipo um marinheiro.
Aquilo me arrepiou todo assim, eu baixei a vista... Que eu olhei, ele pulou
n’água, né? Pulou na água e lá na frente boiou, começou a boiar assim... Mais que
depressa eu tirei a rede, desloquei, cheguei lá em casa deu febre. Lá um negócio...
papai foi com a lanterna lá olhá e tal... mas não viu mais nada. Isso eu falo porque eu
vi, isso aconteceu lá no nosso interior, lá no Surucuá. Inclusive, essa pedra ela é meio...
cheia de mistério porque ela fica em frente ao cemitério. O cemitério fica próximo de
um barranco. E lá é uma parte que ninguém gosta de passá a noite sozinho. Eu tava
118 pescando lá que eu não tenho medo de nada, e eu vi esse fato!”
Estávamos ancorados no porto da Vila Curuai, quando meu padrinho, Sansão
Bento Lourido, gravou a entrevista comigo. Senhor de seus 85 anos, com a garra de
um jovem conhece muito bem a região do Lago Grande do Curuai. Muito já fez por lá!
Nesse dia, ele estava bastante inspirado e feliz. Viajou comigo de Santarém a Vila Curuai,
mas foi somente no porto de sua terra que ele abriu sua caixa de memória.
Ele contou que o Graciliano Silva morava no Aritapera e quando a epidemia da
malária chegou por aqui matou muita gente. Inclusive sua mulher. Então, ele se des-
gostou saiu por aí. Foi quando entrou no Lago Grande do Curuai. E lá, encontrou-se
com uma mulher, Almerinda, se juntou com ela e se casou. “Essa mulher tinha um
filho, se chamava Pedro. No apelido Pedro Fino. Graciliano casou com a mãe de Pedro,
Pedro ainda era pequeno. E Pedro se viciou a chamá-lo de tio Graciliano. Tratava como
pai. Obedecia. E ele tratava o Pedro como filho. Graciliano gostava de pescá. De vez
em quanto ele saia em pescaria. Ele se alagou sete vezes.
Um dia, ele chegava e tinha que entrar por aqui (mostrou por trás de suas
costas) a pé prá ir deixar a canoa lá... dentro. E... uma das vezes, ele chegou, já era
tarde, resolveu deixar a canoa aqui no porto da vila. Aí, de fronte daquela escola que
tem. Lá tem umas árvores. Ainda tem uma. Naquele tempo eram três.
Junto da escola, tinha uma mulher que se chamava Nenê Silva. E se dava com
tudo. Não tinha tempo mais de subi com a canoa, deixou aí. Encosto, tirou os arreio
tudo, juntô, enfiô os peixes frescos... na enfiada, e guardou os arreios na casa de Nenê.
E pendurou os peixes no pau-de-carga. Amarrou a saco com outros apetrechos aqui,
pegou o porongo e subiu.
Quando subiu a ribanceira, ele deparô... O prédio Antonio Figueira era novo,
estava novo e a luz elétrica também começava a funcioná. Sob a luz ele deparou com
dois homens que estavam sentados na calçada do Antonio Figueira. Vista boa. Ele
conheceu os dois. Um era Pedro, o enteado e outro era cunhado dele, Genézio. Eles
se levantaram, ele... a carga dele era pesada, se levantaram e vieram no rumo dele.
Aí, ele disse:
— Ei, cumpadre Genézio, prá onde o senhor vai.
— Nós tamo esperando o senhor.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

E ele ficou alegre, porque ele disse, com certeza esses vão me ajudá a levar a
carga. É longe. Graciliano tinha uma faca amolada aqui na cintura, na bainha, não? Ele
era homem valente, robusto, disposto, apesar de seus setenta anos ele era disposto.
Subiram. Chegaram nessa segunda rua, tinha um toco alto, ele deixou o pau-de-carga
e disse:
— Vamos lá na casa dona Benzinha, tomá um trago.
Chegaram no comércio de Sarmento, de dona Benzinha, ele pediu meio quar-
to de cachaça que era para os três. Ela botô. Ele pagô e chamô pelos companheiros.
Eles ficaram afastados assim numa escuridão.
119
— Ei, Genézio, vão bora cumpadre, vamo tomá um...
— Não, ninguém qué.
— Não qué, Pedro?
— Não.
— Puxa, é muito prá mim. Ele já tinha pago, tomô tudinho.
Voltô, se meteu no pau-de-carga e se empurraram nessa estrada. A estrada era
nova, essa estrada aqui, que vai aqui pro... ligá com a Translago. Quando chegaram
adiante do lugar Pajurá, ele diz pra o Pedro:
— Pedro, me ajuda a levá o cambada a... o pau-de-carga. Pesa.
Pedro não deu resposta. Quando chegou próximo de Magarati, outro lugar
onde eu tenho um terreno, ele disse:
— Pedro, mas me ajuda rapaz, leva um bucado desse pau-de-carga!
Nenhuma resposta. Aí, consigo mesmo ele diz, sortou uma enorme imoralida-
de, só com ele:
— Porra, também não chamo esses filha das puta. Corno, vão comê amanhã o peixe
que eu tô pegando. Não querem nem me ajudá a carregá! Também não chamo mais.
Passou uma área, um pedaço de estrada que aquele tempo não tinha, e até
agora, não tem moradores. A estrada era nova, derrubaram um pau e os galhos veio
na margem da estrada. O pessoal cortou aqui os galhos e ficou as pontas dos paus
assim. Quando chegou naquela ponta, naquele ponto, deu vontade dele fumá. Tava
cansado, contrariado porque os companheiros não queriam ajudá, não? Ele deu um
jeito pendurou o pau-de-carga aqui. Tinha... a tabaqueira. Foi prá ali focando com a
luz da poronga. Um pau ele lavrou, migô tabaco. Meteu o terçado na tabaqueira... na
na bainha. Estava migando tabaco, puxo o papelinho, butô no beco. Tava migando
tabaco. Que quando ele botô tabaco no papelinho, os dois se aproximaram. Um pela
frente outro por trás. E foram querê tirar-lhe as carças. (pausa) O que vinha na frente
foi direito aqui (mostrou na sua frente) e o de que veio atrás, querendo tirá...
Ele era um homem sério, moral e valente, não? Quando ele viu, tavam puxan-
do a carça ele retorceu e disse:
Amazônia: Pescadores contam histórias

— Que diabo já?! Cês querem tirá minha... minha carça!


E diz prá...
— Oh, cumpadre Genézio, você qué me enrabá? Que negócio já esse de vocês
quererem me enrabá?!
E diz pro pro filho pro...
— Puxa Pedro, tu sempre me respeitaste, rapaz! Como teu pai, tu sempre me
consideraste. Como é que agora já tu está querendo que... fazê com o cumpadre...
querendo já me enrabá?!
Se afastaram, aí quando ele vai...foram apertando... eles tornaram dá outro
120 assalto. Ele... foi o outro negócio, mano... Mas ele já tava prevenido. Ficou irado, não?
Ele retorceu o corpo, puxô pelo terçado e disse:
— Olha, seus filha das puta o primeiro que saí... que se aproximá morre! Que
corno! Pedro, mas eu me admiro de ti, rapaz! Tu não me considera mais já querendo
me enrabá. E o senhor meu cumpadre, meu amigo, sempre me tratou bem, tá queren-
do me enrabá? Primeiro que aproximá morre. Eu golpeio.
Nem mais fez o cigarro de aborrecido, não? Meteu o... saiu. Uns cinqüenta
metro, descia prá casa do amigo dele, José Lúcio. E a estrada passava aqui. Ele pensô:
vou escapuli pelo Zé Lúcio vou saí lá adiante prá esses corno irem embora. Porque se
eles tornarem a fazê essa bandalheira, eu corto! Aí, ele entrô pro caminho do Zé Lúcio.
Andô uns vinte metros deu uma pontada na... na espinha dorsal. Aí, parô, imobilizô.
Ficou lá. Depois ele foi enfraquecendo, ele foi pendendo o corpo prá cima da... do pau
de carga. E retorceu o corpo que ele ficô dobrado por cima do pau de carga. As
cambada de peixe deram deram... deram no chão. Que, já estavam seca, né? Que
apoiaram um pouquinho, ele ficou arriado. Imobilizando tudo o mais.
Aí, ele se lembrô de chamá pelo amigo dele Zé Lúcio. Dona Margarida, uma
senhora muito prestável, muito relacionada... Zé Lúcio que havia trabalhado no roça-
do, tava cansado, dormiu. E dona Margarida foi acordada com um chamado:
— Ei, Zé Lúcio! Zé Lúcio... Ei, Zé Lúcio...
Margarida acordô. Prestativa como era, não? Chamô...
— José! José!
José:
— O que é?
— Tão te chamando lá pro lado da estrada.
— É, esses caboco que tão porre passando por aí. Tu não sabe que eles pas-
sam...?! Só vem porre aí. Baixam porre...tão chamando!
— Mas, a modo que eles tão pedindo socorro.
— Ah, é porre que tá passando.
Dormiu. Aí, a voz:
— Zé Lúcio. Zé Lúcio... me acode!
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

E era o Zé:
— José, José tão te chamando. Vai vê quem é... tá te pedindo socorro.
Viviam bem, ele se levantou, deu luz no farol, saiu. Quando saiu na varanda da
casa dele, ele gritou:
— Ei, quem é?
Um já estava na frente dele e outro estava prá trás do... do Graciliano. Ele podia
bem vê um que estava prá frente... Quando o Zé Lúcio apareceu lá com a luz, esse que
tava aqui na frente, passou de novo prá trás, e os dois desapareceram. Aí, veio o Zé
Lúcio, chegou aqui... 121
— Ei, quem é?
— Sou eu, meu amigo.
— Graciliano, és tu?!
— Sou. Me acode tá me dando um problema aqui, rapaz.
Aí, Zé Lúcio, caboco também prestativo, ajudô ele, levou prá casa. Chamô a
mulher, tinham trabalhadoras. Aí, a mulher se levantô, foram assá os peixes do Graciliano.
Hum... Mandô fazê o café. Ele tomô e contô que... do caso que aconteceu. E da
irritabilidade dele. Tomô o café, disse;
— Olha, Graciliano tu vai dormí aqui.
Elas assaram o peixe...
— Vai dormí aqui, vai já de dia.
— Não, eu vou embora.
Enquanto os peixe se assavam, ele teve uma idéia esdrúxula.
— Eu vou matá-los! É muita sacanagem... É muita sacanagem esses filho da
mãe querê fazê de mim de moleque. Vou matá. Eu sou homem.
Pegou o terçado, amolou bem de novo. Afiou. Disse:
— Dona Margarida me dê um paneiro.
— Prá que?
— Prá mim botá meu peixe.
— Mas, tu já vai Graciliano?!
— Eu já vô.
— Não, fique seu Graciliano.
— Não, eu já vou Zé. Desculpe, eu já vou, cara.
— Bem, como você já qué...
Agasalharam ele, botô paneiro... Mas, com uma intensão. Com uma intensão.
Ele foi contrariado porque a vontade do dono da casa era prá ele ficá. Mas, ele foi com
uma intensão. De ir aquela hora prá se reencontrar com eles. Que agora, ele não ia
conversá. O terçado tava pronto prá ele...
Amazônia: Pescadores contam histórias

Quando ele se aproximava da casa, os cachorros ouviram o atropelo dele e


correram, né? Quando chegaram perto, era o dono da casa, não é? Aí, passaram a
agradar. A Arminda soube que era o marido. Ele chegô, naquele propósito firme de...
Agora era com Pedro que morava com ele. Primeiro que ia morrê era o Pedro, o ente-
ado. Deixou o paneiro em cima da mesa. A mulher veio, se cumprimentaram, fez o
fogo. Tava fazendo prá botá a chocolateira no fogo. Ele lá, assuntando. O que ele
escutava, se Pedro vinha chegando, qualquer remorso do Pedro.
— Tu aparece, eu te meto o golpe.
Mulher trouxe o café. Ele fez o cigarro. Puxô umas duas baforadas. Terçado
122 aqui (mostrou ao lado do corpo). E ficou pensando como ele ia fazê uma pergunta
emboscada para a mulher. Confiava na mulher, tinha sido boa amiga. Com o Pedro,
ficou pensando, imaginando como ele ia fazê...
— Aiii...”
A voz embargou na garganta.
Sansão, homem de voz pausada e muito expressivo, relembrou a história di-
zendo que Graciliano perguntou, então, para sua mulher Arminda, onde estava Pedro.
Ela disse que ele estava dormindo. Aí, perguntou pelo cumpadre Genésio. Arminda
respondeu que tinha ido para a casa dele. Os dois estavam cansados da lida que ele,
Graciliano, havia deixado ordem para fazerem.
Ele ficou surpreso com a revelação de sua esposa. Desde que ele saiu da casa
de seu amigo, ele alimentou uma ira tão grande que o impeliu a prosseguir a viagem
até sua casa. Pois, lá ele mataria os dois que haviam perturbado muito desrespeitosa-
mente sua caminhada. Trabalhou tanto na pescaria para depois, já tarde da noite,
carregando seus arreios e os peixes, no escuro... Como pode? O que era aquilo então?
Pensou, pensou... Não comentou nada com sua mulher. O que mais o intriga-
va agora era saber quem eram aqueles dois que se fizeram passar por Pedro e Genésio!
Quem poderia sair da água do mesmo jeito que ele saiu? Quem tem o poder de se
transformar em gente? O que ele fez de errado na pescaria?

Visagem
No respeito aos limites da natureza, sobressaem os elementos sobrenaturais. E
são eles que amenizam a convivência do ser humano com a natureza. Crenças e cren-
dices estão em volta do convívio entre pescador(a), as águas e as matas.
Eu acredito no poder espiritual que habita a natureza. O das águas é a Mãe
D’Água, Iara, Yemanjá, Minha Avó, Santa Bárbara entre tantas outras denominações
mais pessoais para essa entidade. Ela dá força e resistência para o profissional que vive
na superfície da água no planeta!
Por passarem muito tempo flutuando, tem muitos pescadores(as) que quando
morrem o seu espírito permanece por lá. Muitos outros pescadores(as) passam a vê-los e
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

escutar suas vozes. As histórias são contadas, os lugares se tornam sagrados e assombra-
dos, até recebem pedidos para uma boa pescaria. É o que os povos na região chamam
de visagem ou visão. Entidades que povoam de diversas formas o imaginário coletivo.
É tudo aquilo que é invisível. Eu acredito que devemos respeitar as matas, pelas
suas profundezas não tocadas pelo ser humano, como é na Amazônia. As entidades
protegem e expulsam aqueles que desejam explorar a floresta sem controle. Assim
como tem na mata tem nas profundezas das águas!
A história que segue, contada pelo sábio Sansão Lourido, demonstra bem o
poder que as entidades têm de protegerem a noite e o dia, do respeito que têm pela
ordem da criação do mundo! 123
“João, mora em Santarém, já velho também. Caçava aí. Por essa redondeza aí.
Um dia, caçava e... era muito distante da Vila Paissandu, nas matas né? Mas, eles
gostavam iam embora, não é? Corajoso mesmo, né? E João Viana caçava. Sabia. Se-
guro na pontaria. A arma boa. Lanterna. Chego lá, amarrô a rede dele, diz aqui, o
muitá. Amarrô a rede, prá descansá. Tá lá esperando a caça. Bóta uma perna prá cá,
bota a outra prá cá... não pode fumá, não pode cuspí. O animal sente. Aquilo é água,
mas se for um cuspe o animal sente a diferença.
Cada um... no seu habitat, não é? E ele ficou lá esperando. Quando deu umas
tanta, umas dez horas da noite. Lá vem... a caça! Ele acostumado a caçá, ele sabe se é onça
que vem. Ele sabe se é o veado, que o veado lá, ele... ele... quando ele ele está no meio da
roça, ele pisa devagar. Lá na mata ele só zou zou zou... pisa... E sabe se é capivara, ele sabe
se é paca e sabe se é um tatu que vem arrastando. Eles sabem tudo isso. E... e ele percebe
um passo diferente. Não é nem passo de veado nem de tatu, nem de paca nem de porco,
nem mesmo de onça. E percebe, tem a intuição ... que o caçador... ele é diferente.
Quando chegou no ponto que ele era acostumado a focá prá atirá. Eles metem
a lanterna por baixo do cano, fez a pontaria. Quando chegô naquele ponto ele focô!
Era uma tartaruga. Aqui na cara... carapaça da tartaruga, não é? Vem um pre-
tinho sentado. Seguro. Cabeça da tartaruga aqui no meio da perna e ele seguro aqui.
E a tartaruga andava e ele dava o passo dele. A tartaruga andava e ele dava o passo. O
preto... baixinho... sentado em cima da costa da tartaruga. Aí, teve muito medo. Nun-
ca tinha acontecido e ele não atirô, aquilo passô zaap zaap zaap zaap... Tartaruga
naquela lambada de mato. Nesse dia não veio mais nada prá ele. Quando foi quatro
horas da madrugada, ele cansado, deprimido com aquela aparição. Arriô a rede, des-
ceu, foi embora prá casa dele. Nair, a mulher dele lá... João Viana. Contô prá mulher.
Dois ou três dias, ele sonhô. No sonho dele, veio uma mulher idosa, perguntou o que
ele tinha... Ele contou, em sonho o que aconteceu. E ela disse que aquilo era um aviso.
Que nunca mais fosse caçá só. E nunca mais fosse prá lá, prá aquela imediação.
— Olha meu filho, isso ele me contou, cada um na sua casa é rei. Tudo tem o
seu dono. A mata tem o seu dono. Vocês tem o direito de trabalhá de dia. A noite é prá
vocês descansarem. E os animais tem o direito de procurar o que comê de noite.
Nunca mais. E ele deixou de caçá. Ele mora lá prá banda do Mararu.”
Visagem gosta de encostar nas pessoas. Eu creio que existem visagens do bem
e do mal. As primeiras gostam de assustar brincando. As outras gostam de malinar.
Isso varia de acordo com as pessoas as quais elas estão afrontando. Eurides dos Santos
Pereira viveu uma experiência como essa. “O que eu já vi, durante a minha vida, uma
visão, não sei se era uma visão, o que que era. Mas, eu... aconteceu. Tem até o parcei-
ro, ainda é vivo. Então, quando estava pescando, era seis horas mais ou menos. Man-
dei fazer um café (pediu para o parceiro. Nesse meio tempo, a visagem apareceu para
ele). Aí, ela bateu assim:
— Xeeee, xeeee, na canoa.
Vi que deu um gemido bem assim:
— Nheamm!
Mas, é uma pessoa que não espanta, né? (ele quis dizer que ele não se espanta)
Não me espantei. Aí, olhei para o parceiro... mudou de cor.
— Não, pode continuar, já vai sair daqui, graças a Deus, tenho fé em Deus. (o
parceiro estava assustado, com medo até de fazer o café.)
Ele disse:
— Não... vão bora sair daqui.
— Não... quieta aí no serviço.
Quando foi de madrugada, muito peixe, bom de peixe, bom de pegá peixe. E
aí, eu disse:
— Olha, o café prá não esfriá... a espinha...
Aí, nós encostamo, ficamo perto assim... o negócio. E a noite inteira lá gemen-
do. Eu não ligava. Aí, eu disse assim:
— Afinca visagem.
Aí a... que eu disse afinca visagem, um pouco... mais ou menos... foi prá lá e
prá cá, o espinhel foi prá lá e prá cá...
— Rapaz, agora vamo deixar o dia clareá prá lutar com esse peixe.
Aí, o dia clareou, passei a mão no espinhel e foi prá lá e cheguei lá uma coisa que
contando assim prá senhora, é mentira né? Eurides chegou lá no espinhel e ele foi puxar
para ver se tinha peixe. Quando puxou, percebeu que a linha estava muito pesada. Ficou
feliz porque pensava que seu peixe ainda estava lá. E o espinhel pesava para o fundo e
para os lados. Quando ele conseguiu puxar, tinha um peixinho somente.
Agora, a visão que fez essa bandalheira. Quando disse assim:
— Afinca visagem!
Ela brincou comigo puxando o anzol. Aí, saí e vim embora.
Bom, passou-se um tempo. Aí, no inverno, já um cunhado meu vai pescar
peixe-boi. Bem defronte assim (de onde tinha acontecido o caso da visagem com
Eurides). E aquilo veio... aquele gemido. O gemido veio e veio chegando perto, che-
gando perto e quando chegou perto da popa da canoa dele, deu aquele gemido. Aí,
disse assim:
— Rapaz, eu não tenho remédio prá dor de estômago, mas se tu quiser tomar
café, tem café quente aí.
Aí, deu aquela ferrada: xiissp... na cabeça dele. Se espantou, jogou a hastia,
meteu o remo e (...) chegou na casa dele... foi caindo... Então, naquela época, tinha a
Maria Farias ainda. Chegou aí, trouxeram ele, aquela hora da noite, chegaram de ma-
drugada. Veio amarrado, pulava... Aí, chegou aí, ela rezou e ela falou:
— É uma arma (alma)!”
Aí, uma colocação que... desde o primeiro lugar, se ficou alguma coisa que
ficou devendo é só pagar que pode ficar limpo!
Eurides deixou claro que com visagem não se brinca. Quando aparecer uma, a
gente costuma perguntar se ela precisa de alguma coisa. Se podemos fazer alguma
coisa por ela!
Renato dos Santos Ribeiro já viu muita visagem por esse Maicá aí. Ele conta:
“Eu saí daqui de casa e ía, seis horas, passando por uma rama de mata, sabe?
Eu sempre fui um cara corajoso, de visagem nunca tive medo porque visagem não
morde ninguém. Quem mata é o tal do homem, né? Aí, um negócio vinha caindo, ele
vinha caindo em cima de mim. Aí, só caiu mesmo aquela folha, aquela poeira. O bicho
ficou engatado. Foi... o homem ficou engatado lá! Aí, eu senti aquele arrepio no cor-
po, subiu do meu pé prá cabeça. Aí, que eu fiquei um pouquinho espantado, mas eu
não tenho medo e fui falar com ele. Eu fui falar...
— Olha Deus te dê sua salvação. Se tu precisares. Foi o que eu falei. Isso acon-
teceu muito.”
***
“Tinha um outro lugar chamado Jinitatuba. Também lá morou um homem. Era
conhecido por Argemiro ele. Ele morreu. Aí, os pescadores passaram a pernoitar lá na
casa onde ele morava. Ai, tinha o curral, lá no lugar do curral. Aí, quando era de noite,
vinha ele gritando com o gado, prindia o gado... o gado no curral.. Ele lá dentro do
curral. Aí, o pescador olhava prá vê quem era... não tinha nada. E ele prendia gado de
noite lá. Isso aconteceu muito com muitos pescadores.
Hoje, a gente não vê mais porque a gente já tá mais conscientizado, mais prepa-
rado, tem mais fé em Deus. Não tá mais acontecendo. Hoje, muitas vezes, muitas pesso-
as sai de casa preparado, já reza. Antigamente não, a gente não tinha essa idéia!”
***
“Tem um fogo fantasma que chama... Onde eu moro, lá na várzea, chama-se
Curicas (igarapé do Maicá), tem uma ilha lá na baixa, chamada ilha do Jacurutu. Eu
Amazônia: Pescadores contam histórias

moro na ilhas das Curicas. Quando eu tava lá, isso já foi uns vinte anos atrás. Aí,
chegou um colega meu e disse:
— Renato, rapaz, nós vimo um currido. Rapaz, tá pegando fogo na ilha do
Urubu todinho.
Eu digo:
— Mas como?
— Acorde, vou te mostrar agora de noite. Porque... vão bora atravessar o rio
prá gente olhá lá, prá tu vê como tá se acabando de fogo ali.
126 Aí, eu fui. Ele me levou, eu atravessei o rio, nós olhamo prá lá num tava mais
pegando, sabe? Só tava aquele resto de cinza caindo. Aí, quando amanheceu o dia
tava feito como era. Não tava nada queimado!”
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Glossário

127
Crendices

Miudeza: relativo ao pirarucu; ventrecha, espinhaço e costelas, cabeça.


Panema ou panemice: azar, pé frio, infelicidade na caça ou na pesca, azarado e
vítima de feitiço.
Tapecuim ou tapicuim: um certo tipo de formiga que faz o ninho de terra parecido
com o do cupim.

Elementos culturais
Os povos indígenas são os antepassados que plantavam, manufaturavam e
consumiam a farinha da maniva, do tupi mani’iwa, também conhecida como mandio-
ca-brava ou mandioca d’água. Assim como seus antepassados, os povos tradiconais
na Amazônia também utilizam a farinha de maniva como alimento básico de sua dieta
alimentar. Uma das comidas que fazem é o chibé, mistura da farinha com água e às
vezes com açúcar. Retiram a raiz da maniva e a deixam de molho na água em um
buraco na terra forrado e coberto de folhas especiais. Depois descascam, ralam para,
em seguida, espremem a massa no tipiti, tecido de tala ou fibra, cilíndrico e longo com
aberturas na ponta. Colocam a massa da madioca dentro e espremem-na até sair toda
a água. Esta água é chamada de tucupi, com o qual se faz comidas típicas no Pará, o
tacacá e o pato no tucupi. Os subprodutos são, além do tucupi, a farinha de tapioca
(que fazem a tapioquinha e três tipos de beiju, a goma que é utilizada no tacacá e a
croeira (restos da mandica que serve para fazer mingau e biscoitos).
Após sair do tipiti, a massa molhada é colocada na gareira, uma barca de ma-
deira. Usam-se também a barca do inajazeiro grande. Essa é a casca do cacho de
frutros do inajá, uma palmeira típica amazônica.
As gareiras, em geral, são tiradas do caule da Castanha do Brasil. Depois de
seca, são peneiradas para tirar o graúdo. As peneiras são tecidas de talas e fibras
(como o arumã; espécie de cipó dividido por canudos longos não muito grossos de
onde se tira a fibra). Enfim, são levadas ao forno para serem torradas. Uma grande
Amazônia: Pescadores contam histórias

chapa de madeira acondicionada a uma armação de barro com uma boca para a
lenha (esta pode ser carregada nos jamaxins, que é uma dessas cestas abauloadas
com uma abertura em um dos lados). Essas aberturas são fechadas com tiras da
casca da árvore. Com ela também se amarram os peixes em cambada ou na enfiada
para a venda. Nas cambadas ou enfiadas veêm entre dez e quinze peixes, varia com
o tamanho. Os jamaxins são carregados nas costas ou na testa. Os povos indígenas
usavam e ainda o usam muito. É visível a perda desse elemento cultural nas popula-
ções tradicionais.
Jápá: tecido de palha muito usado ainda nas moradias amazônidas. São utilizados
128 como portas, janelas e coberturas.
Jirau: armação de madeira utilizada para apoiar panelas, flores; ou para edificar as
casas na várzea. Cama de madeira.
Tecido ou teçume é a tecelagem de tramas oriundas da manufatura de palha e/ou
talas.
Terçado: facão grande; machete ou faca de mato.
Tolda é a cobertura das canoas e barcos. No passado era feita de japá.
Paneiro: cesto de vários tamanhos feitos de talas que servem para armazenar ali-
mentos e coisas afins.
Sororoca: palha de uma palmeira chamada popularmente de pariri. Serve de enchi-
mento entre as palhas que formam o japá que será utilizado como tolda.

Frutas, árvores e capim

Ananizal: área cheia de ananás (abacaxi selvagem).


Aninga: árvoré típica da várzea.
Aningal é o lugar onde tem muita aninga.
Bacuri: uma fruta muito azeda.
Cuieira: árvore típica da várzea; seu fruto assume diversas formas e serve como
prato ou tigela (cuia de tacacá) e artesanatos.
Mungubeira também denominado pelos povos tradicionais de mugumbeira: árvo-
re típica da várzea.
Muriruzal (muriruzar) ou mureru vem da palavra maruré: capim natural da várzea.
Matupá, também falado de matopá; agrupamento de capim (canarana, marurés e
outras plantas aquáticas) partido que encosta à beira dos rios ou lagos. Move-se
descendo com as enchentes.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Tauari: árvore típica da região. Dela de tira uma fibra que seve para enrolar o tabaco
assim como para fazer cambada ou defumação.

Medidas
Panos: mediada popular usada na medição das malhadeiras; um pano é correspon-
dente a cem metros de comprimento por três metros de altura
Uma braça: em torno de um metro e meio
Um palmo: comumente falado de palma ou parmo(a): a medida referente à distân- 129
cia entre o dedo polegar e o mínimo

Nome de comunidade
Piraquara: também chamada de Piracuara: nome de uma comunidade no Lago
Grande do Curuai

Outros
Aperriado no texto é sinônimo de amedrontado, desesperado.
Baixão: margens do rio no sentido em que as águas descem.
Baquiado é uma referência ao pescador que está fraco, sem alimentação.
Burizal: denominação popular para buritizal; área cheia da palmeira buriti.
Boroca: saco de carregar a roupa para a pescaria.
Colônia: é uma área de terra boa para o plantio. Ficam localizadas em terras altas,
distantes das margens dos rios onde os povos tradicionais moram.
Curuatá: tipo de bromélia parecida com o curauá, mas com espinhos .
Escumero: um monte de espumas.
Estrupício: estrondo na água seguido de um grande barulho.
Farisca vem de faísca; uma centelha de fogo.
Fazendeiros da pesca: administradores de sistemas de pesca manejados.
Gado branco é uma denominação dada a qualquer raça bovina.
Gito(a) ou gitinho(a): denominação popular para pequeno(a); pequenininho(a).
Grelá vem do verbo grelar que significa brotar, nascer.
Ilharga: flancos, beiras.
Amazônia: Pescadores contam histórias

Ilharguinha: pertinho, juntinho.


(...) local que ninguém entra por ser muito feio (...): feio, neste caso, foi usado como
sinônimo de matagal fechado, difícil acesso em decorrência do entremeado de ca-
pins, cipós, árvores, espinhos.
Marombada: é onde se coloca a criação na várzea; assoalho da casa típica da vár-
zea que sobe conforme a cheia do rio.
Molhe: no texto é uma referência popular para o fumo de rolo
Muraúba: espécie de árvore da terra firme
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Pirantão: capim agrupado numa área onde também tem árvores em seu interior
Purrudo: no linguajar caboclo é dado para tudo que é forte e grande
(...) que quando eu me entendi (...): deixou de ser criança para assumir sua própria
vida
Quenga: mulher da vida, prostituta.
Sezão: nome popular da malária.
(...) Quem agüentou o pepino (...): pepino é sinônimo de problema.
(...) _ Rapaz, pega lá a canoa que eu tô aqui quase... sujo aqui (...), quis dizer que de
tanto medo já tinha “quase” defecado na calça.
Taberna: entreposto de revenda ou mercearia.
Tapirauara é a denominação de uma onça. Na lenda, ela tem as patas traseiras
iguais aos do burro.
Tapiri: uma casa rústica coberta de palha na mato, acampamento.
Velhaco(a) no discurso falado e popular viaco .

Sobre pesca

(...) Aí, eu... teipei dentro d’água (...): caiu dentro d’água.
Agasalhá ou agasalhar: sinônimo popular para guardar o peixe.
Aparpado, parpei, aparpá vem do verbo apalpar que se refere a quando o pescador
coloca o arpão no peixe e força-o para arpoá-lo.
Arrastão: tipo de malhadeira que pesca de arrasto no rio.
Arrecua vem do verbo recuar ou de arrecuas (andar para trás).
Bajara: canoas motorizadas.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Bubuia: é um arreio de pesca muito grande, uma malhadeira, que é solta no meio do
rio. A água deve estar baixa para esse tipo de arreio. A canoa é usada somente para
fazer o cerco. Boboiando ou bubuiando é correspondente à bubuia.
Buiar e buiando vem do verbo boiar. No caso do pirarucu, quando usam o verbo
referem-se ao ato do peixe vir à tona para respirar.
Cacete de Boteiro: um pau cilíndrico que serve para matar o peixe.
Cará, acaratinga e cará barrasco são peixes típicos da região.
Casco: pequeno bote .
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Cercadeira: uma malhadeira própria para pegar o pirarucu.
Charutinho: é um peixe pequeno muito comum nos rios amazônicos.
(...) ele encapa, fica uma bola, maior que uma xícara dessa (...): é o macho quem
choca as ovas do pirarucu agrupando-as numa bola.
Embiara são pedaços do peixe ou carne.
Espera: tempo de aguardar o peixe chegar.
Estradinhas: passagens ou corta-caminhos em lagos ou no igapó.
Estrala éo ato do arpão de fisga bater na escama do pirarucu.
Geleiras: são barcos pesqueiros que levam canoas ou bajaras. Os pescadores(as) saem
nelas para jogar a malhadeira e pegar os peixes que os trazem para o barco deixando-
os no gelo. Daí, funcionarem como coletoras.
(...) ela tá furando os acordos, né? (...): furar nesse caso quer dizer violar, desrespeitar
as leis.
(...) Já deita aquela escuma (...): deixa aquela espuma.
Invasão: esse termo é usado quando se referem a pescadores que não fazem parte
do lago de referência e que estão usando arreios proibidos, número de canoas ou
bajaras acima do permitido pelo Conselho de Pesca. Enfim, que não respeitam a
portaria ou acordos comunitários de determinados pontos pesqueiros.
João-de-pau: pedaço de pau usado na popa da canoa como leme.
Lambada: é quando o peixe bate com o rabo n’água.
Lanterna de carboreto: instrumento de metal com uma pedra que quando misturada
na água vira fogo, serve para iluminar na pescaria
Mafurá: peixe de couro.
Mandií: peixe com três esporões afiados.
Mica é um tipo de linha industrial que tece a malhadeira.
Amazônia: Pescadores contam histórias

Moirão: vara que serve para segurar a malhadeira.


Mutá, muitá ou mutar lugar onde o pescador se aloja para captura o pirarucu sen-
tado no galho do pau. Tanto pode ser entre os galhos ou numa armação de paus
que ele mesmo constrói.
Puçanga são os feitiços que atraem ou afastam.
Talhada: maneira correta de tecer a rede ou malhadeira.
O Proeiro ou proero é o pescador(a), aquele que lança o arpão amarrado à haste ou
hastia, uma vara feita de pau d’árco ou ipê que serve para armar o arpão e picar o
132
peixe! O piloto é quem rema na popa da canoa. Um grande segredo, dizem os
pescadores(as), é saber tecer a linha no arpão de ferro, que eles denominam estruvar
o arpão, muito usado na pesca de pirarucu no galho do pau ou na fisga. Os
pescadores(as) pescam de arco e flecha nas águas límpidas dos igapó (quando a
água adentra a floresta, também chamada de floresta alagada).
Pau-de-Carga: pedaço de pau que serve para carregar coisas atadas em cada pon-
ta; balanciar o peso.
(...) peixe vira de folha (...): quer dizer que o peixe se mostra inteiro para o pescador
e ele não o captura.
(...) picado no galho do pau (...): uma das formas de se pescar o pirarucu no igapó
(na estação das chuvas o rio sobe e adentra na floresta. Com ele os peixes também
entram pelos igapós tornando presas fáceis para esse tipo de pesca.). O pescador
sabe onde o peixe bóia e lá escolhe uma árvore para fixar o mutar.
Picar: ato de fisgar o peixe com a zagaia ou com o arpão.
Pitiú: na região é o mal cheiro do peixe principalmente.
(...) Põe bago por bago de farinha (...): quer dizer que o peixe desova de ova em ova
e não é redonda, é alongada.
Porongo ou poronga: um tipo de lamparina.
Posta, banda ou manta: cada parte que se tira do pirarucu, do rabo ao início da
cabeça.
Puraqué: peixe elétrico da Amazônia.
Quepei: barulho forte do peixe batendo n’água.
(...) rimpa o rabo (...): no texto é sinônimo do ato do peixe bater o rabo na superfície
da terra.
Raia no linguajar popular vem de arraia.
Rodela da canoa: a proa da canoa, a frente.
Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

(...) saia no reboque da linha destrançando até o peixe chegá no limpo (...): em uma
das pontas o peixe arpoado e na outra o pescador que adentrava na água seguran-
do seu peixe arpoado, salvando a linha de se enrolar nos capins e paus até o peixe
sair para o limpo dentro d’água.
Sanefa: também denominada de saneva; lona de plástico que serve para fechar as
laterais do barco.
Sarlinga é a denominação popular para carlinda: tábua que serve para apoiar o
mastro da canoa.
Sarro do peixe: sangue coagulado que fica na barrigada do peixe. O sarro deixe um 133
gosto amargo na carne.
(...) Suspirá (...) vem de suspirar. No texto, é sinônimo de respirar.
(...) Tão boboiando, batendo capim (...): vem do arreio bubuia, bater o capim para
espantar os peixes e capturá-los.
Trançar: denominação popular dada ao ato do peixe arpoado correr e a linha enros-
car por entre o capim ou o mato no fundo do lago ou rio.
Uaiú ou iaiú é o nome dado pelos ribeirinhos para o fenômeno da friagem (inversão
térmica) na Amazônia.
(...) uma capoeira muito feia (...): capoeira é o termo usado pelos povos tradicionais
para aquela área que já sofreu a ação devastadora do ser humano. No lugar da
antiga vegetação brota muito mato, espinho, cipós formando uma mata densa e
baixa. Quando alaga o pescador vai buscar seu peixe nesses lugares.
Varejão ou vara: pedaço de pau cilíndrico e longo usado para empurrar a canoa.
(...) vinte palma emendado (...): referência a várias redes de vinte palmos emenda-
das umas nas outras.
Zagaia: lança curta de arremesso, muito usada pelos povos indígenas e tradicionais
para capturar peixes.

Verbos
(...) Breia (...): cobrir ou revestir de breu ou de outra coisa qualquer.
(...) Dispilico (...): na linguagem popular local é sinônimo de soltar ou tirar a pele de
alguma coisa.
(...) Disporamo (...) no linguajar local é sinônimo de arrancar estacas; tirar arame.
(...) migô (...) no discurso falado popular migar; esfarelar, esmigalhar o tabaco.
(...) malina (...) no popular vem de maligna. Malinar é fazer travessuras.
Amazônia: Pescadores contam histórias

(...) manerava (...) na linguagem popular falada é sinônimo de diminuir a velocidade


ou de curiosidade
(...)muquiarem (...) (moquia): secar ou defumar o peixe numa armação de varas
roliças
(...) pilotiar (...) no linguajar popular é remar, pilotar a canoa
Salmura ou sarmura: denominação popular para salmora

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A Amazônia, pescadores contam histórias é um conjunto de depoimentos
colhidos por Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio, pescadora e militante do
movimento de pescadores da região de Santarém. Dora, como é chamada pelos
amigos, tem uma extensa folha de serviços prestados à luta pela preservação de
lagos, pela cidadania e melhoria das condições de vida dos pescadores
artesanais. Participou da direção da Colônia de Pescadores Z-20
(2001-2003) e atualmente preside o Conselho Fiscal do Movimento dos
Pescadores do Baixo Amazonas (Mopebam). A seqüência de depoimentos
organizados pela autora forma um panorama da história tecida no cotidiano
das famílias de pescadores, cujas crenças, sonhos, decepções e esperanças são
reproduzidas na relação com o espaço e o tempo que caracterizam as áreas de
várzea. A história, todavia, narrada na linguagem do homem ribeirinho,
delineando seu modo de organização e interação com a natureza é também
a expressão de sua identidade cultural. Nesse sentido, o presente livro é uma
valiosa contribuição na reafirmação dos pescadores e pescadoras como sujeitos
de sua própria história. É, portanto, uma obra em sintonia com a filosofia
do ProVárzea, uma vez que valoriza os moradores da várzea e os esforços
de preservação dos recursos naturais.

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