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GOIÂNIA
2009
ARON PILOTTO BARCO
Monografia apresentada em
cumprimento às exigências do Curso
de Comunicação Social – Habilitação
em Jornalismo – da Universidade
Federal de Goiás (UFG), para
obtenção do bacharel em Jornalismo.
GOIÂNIA
2009
ARON PILOTTO BARCO
______________________________________________________________________
Prof. Ms. Angelita Pereira Lima
Ao professor Daniel Christino, pelas conversas, por tanto me ensinar, por ser
o único (maluco) que daria suporte a esse estudo, pela amizade.
Aos amigos e colegas de universidade com quem convivi nesses anos de curso e que
fizeram parte da minha formação.
“Um jornal é um instrumento incapaz de discernir entre
uma queda de bicicleta e o colapso da civilização”
Bernard Shaw
Índice
Introdução 8
Capítulo 1 – A hermenêutica
1.1 – Introdução à hermenêutica 11
a) Gadamer e sua obra 11
b) Interpretação e compreensão 13
1.2 – A restituição da tradição 17
1.3 – A verdade como experiência 19
1.4 – A estrutura da compreensão 23
1.5 – Linguagem como meio 30
1.5.1 – Dialética da pergunta e resposta 35
Referências bibliográficas 68
8
Introdução
Capítulo 1 – A hermenêutica
de som a som
ensino o silêncio
a ser sibilino
de sino em sino
o silêncio ao som
ensino
Paulo Leminski
11
1.1– Introdução
1
Como auxílio ao esclarecimento do pensamento de Gadamer, consultamos a obra de Chris Lawn, Compreender
Gadamer (cf. LAWN, 2007) e a coletânea de textos do The Cambridge Companion to Gadamer (cf.
GRONDIN. 2002).
12
sub-tópico 1.2), são mal avaliadas, assim ele desconstrói a consciência histórica e a
consciência estética como formas de interpretação da história e da arte até, por fim, propor um
novo caminho para pensarmos ambas.
A segunda parte “A extensão da questão da verdade à compreensão nas ciências
do espírito”, traz a história das hermenêuticas, de suas origens teológicas até Friedrich
Schleiermacher, passando por Wilhelm Dilthey na História, apropriando-se da fenomenologia
de Husserl até chegar em Heidegger. Um percurso necessário para construir uma nova
hermenêutica somando as partes sólidas que as anteriores acrescentaram. Depois, Gadamer
trabalha a restituição da tradição, dos preconceitos e da autoridade, traça os conceitos de
história efeitual e fusão de horizontes, explora o problema da aplicação da hermenêutica e
constrói a dialética da hermenêutica filosófica a partir da dialética de pergunta e resposta.
Na terceira e última parte, “A virada ontológica da hermenêutica no fio condutor
da linguagem”, Gadamer estabelece a linguagem como o campo onde tudo que foi
apresentado anteriormente acontece: é o meio da experiência hermenêutica e o horizonte da
ontologia hermenêutica. Ao final, mescla todos os elementos apresentados para lançar a
síntese da obra sobre a compreensão humana.
b) Interpretação e compreensão
cristã, para quem a Bíblia precisava de nova interpretação, visto que a tradicional estava
obscurecida pela dogmática de Roma (GADAMER, 2008, p. 242). No veio filológico, o
desenvolvimento da hermenêutica ocorreu com a tentativa dos estudos humanísticos do
renascimento de redescobrir a literatura clássica (ibidem, p. 241). O objetivo era retornar a
atenção para tais textos que, mesmo básicos à tradição ocidental, acabaram classificados
como estranhos e inacessíveis, visto a distância cultural que havia se instalado entre o
renascimento e a antiguidade clássica. Essa literatura clássica se encontrava deformada pela
tentativa de encaixe forçado no mundo cristão, para que servisse a fins teológicos
(GADAMER, 2008, p. 242).
Podemos observar que a hermenêutica era a ferramenta para desvendar trechos
truncados ou de difícil digestão, ou ainda com um significado que só se revela com auxílio de
recursos além da leitura, como um conhecimento específico (uma equação, uma constante, um
língua, o domínio do sentido de um símbolo, etc.). Então, desde sua origem, o objetivo da
hermenêutica foi buscar o melhor entendimento, e nesse caminho, adaptar o sentido da
mensagem (texto) à situação presente do intérprete. Especialmente no caso do intérprete da
mensagem divina. Essa noção permanece até hoje na hermenêutica filológica e na jurídica
(GADAMER, 2008, p. 407).
Com Friedrich Schleiermacher a hermenêutica expandiu-se em busca da
universalidade, no rastro dos problemas da compreensão. A hermenêutica clássica entendia
que quando lemos um texto entendemos prontamente o que ele nos transmite e somente há
mal-entendido ou não-entendido quando este texto não é claro o suficiente, ou falta ali alguma
peça para o entendimento – seja por parte do leitor ou do texto. Mas “o princípio antigo
hermenêutico de que nós podemos, mais rapidamente, atribuir entendimento do que não-
entendimento a um texto estava errado” (LAWN, 2007, p. 67). No trabalho de
Schleiermacher, não somente os trechos complicados, mas todas as sentenças exigem
compreensão: todas as sentenças têm possibilidades de entendimento e não-entendimento.
Não somente os textos difíceis demandam interpretação, antes isso é característica de todo e
qualquer entendimento (ibidem, p. 67). Pela primeira vez entendimento e interpretação foram
vistos casados.
A hermenêutica romântica de Schleiermacher entende que a compreensão (como
intelligere) e a interpretação (como explicare) compõem uma unidade interna. A interpretação
não vem depois, complementando a compreensão, não é uma fase distinta: “compreender é
15
“Para Gadamer, a tradição é uma força vital inserida na cultura; nunca pode ser
obliterada e reduzida a uma mixórdia de crenças não-racionais ou irracionais” (LAWN, 2007,
p. 54-55). O que é entendido por tradição aqui é mais do que nosso passado ou nossos
valores: a tradição é o solo de onde se levantam nossos preconceitos. Aquele que se lança à
compreensão, como sujeito histórico que é, não tem como se desvincular de sua posição
histórica, cultural, social, enfim, jamais poderia abandonar sua tradição.
Mas a tradição teve de ser restituída por Gadamer porque foi desacreditada: não
há espaço para a tradição e os preconceitos no método cartesiano. Com o iluminismo
(Aufklärung) a tradição deixa de ser fonte de verdade e é submetida, junto de qualquer senso
provindo dos preconceitos, ao julgamento da razão (GADAMER, 2008, p. 363). Visto que
não há como desligar-se ou separar-se da tradição, então não há como livrar-se de seus
preconceitos e pré-julgamentos para aplicar a razão sobre eles como se estivessem fora, sob a
mesa, prontos para serem analisados (LAWN, 2007. p. 58). A história, por exemplo, não se
faz através do método das ciências da natureza pois não se trata de pura investigação, e nem
poderia, pois é feita por sujeitos históricos, imersos no próprio objeto de estudo. Os
preconceitos são exatamente a forma de pertencer-mos à tradição.
O intérprete não está em condições de selecionar por si quais preconceitos são
produtivos e quais o levarão a mal-entendidos, pois todas suas noções prévias vêm deles: os
preconceitos constituem a realidade histórica do ser de um indivíduo muito mais que seus
juízos (GADAMER, 2008, p. 368). Antes de construir juízos, o indivíduo parte de seus
preconceitos, dados pela tradição. Gadamer assim vai contra a autonomia do eu, do sujeito
pressuposto no método cartesiano.
Os indivíduos estão incrustados no seu ambiente cultural, enraizados no seu
tempo, perpassados pelo passado. Se o indivíduo não tem – e nem pode ter – o discernimento
dos seus preconceitos, então ele não é capaz de lançar o olhar distante e objetivo que o sujeito
cartesiano deve lançar, com a segurança das normas de um método. “A idéia de que, como
força genuína e um teste neutro, a razão pode investigar o status e as credenciais da tradição é
questionável, pois aquilo que definimos como racional é sempre definido nos padrões da
tradição” (LAWN, 2007, pg.54).
18
ou da ciência fica clara não só por aquela assumir os preconceitos como condição do
conhecimento, mas também pela postura quanto a experiência. Na hermenêutica, aquele que
vive a experiência não é tão somente um observador longínquo, já que seus preconceitos estão
em sua constituição e agindo durante toda a experiência. E, em Gadamer, a maior validade da
experiência não é a sua capacidade de ser repetida, mas sua capacidade de ser única. Não se
trata do saber pela infinita repetição afirmativa da experiência, mas da revelação única que
uma experiência contém. Até por que: “Quando se fez uma experiência, isso significa que a
possuímos” (GADAMER, 2008, p. 462). Não se pode fazer duas vezes a mesma experiência
pois as condições do observador mudam: o que inicialmente era inesperado passa a ser
previsto.
Hegel fala que a consciência faz experiências para “adquirir certeza de si mesma”,
como que tocando e apreendendo o mundo para saber de si (GADAMER, 2008, p. 463). A
consciência está em busca do em-si numa “auto-realização do ceticismo” (loco citato). Devido
aos nossos preconceitos (nossa forma de pertença à tradição), entramos na experiência,
sempre, carregados de expectativas. Há a experiência que confirma essas expectativas,
mantendo nossos preconceitos intactos, mas a verdadeira experiência quebra com o típico, ou
seja, desfaz falsas universalizações. A experiência tem um caráter essencialmente negativo, e
ao modificar nossos preconceitos será única, pois nossos preconceitos sempre se alteram. A
consciência, buscando certeza de si e encontrando o que não esperava, se transforma. E cada
experiência será diferente, pois nós estaremos também diferentes.
Essa é a autêntica experiência hermenêutica, a que rompe com o previsto, que se
dá quando somos surpreendidos e insatisfeitos (LAWN, 2007, p.87). É na frustração das
expectativas que melhor podemos aprender: “Quando fazemos uma experiência com um
objeto significa que até então não havíamos visto corretamente as coisas e que só agora nos
damos conta de como realmente são. Assim, a negatividade da experiência possui um sentido
marcadamente produtivo” (GADAMER, 2008, p. 462).
Boa parte das experiências, como é o caso da cientifica, não ocorre ao acaso. Ela
vem do contato com uma situação e objetos determinados e escolhidos. Gadamer fala que tais
elementos podem ser selecionados para proporcionar-nos um saber melhor, principalmente
sobre aquilo que se acreditava saber antes da experiência. Assim, a negação vinda na
experiência será determinada – e aqui Gadamer, apoiado em Hegel, lembra que tal aspecto da
experiência é a própria dialética (GADAMER, 2008, p. 462). “Somente um novo fato
21
inesperado pode proporcionar uma nova experiência a quem já possui experiência” (ibidem,
p. 463).
No desapontamento das expectativas, como impactos contra o mundo,
modificamos algo em nós e iniciamos a relação dialética da experiência, da consciência
consigo mesma: “para aceitar e admitir um conteúdo por verdadeiro o próprio homem deve
estar nele, ou, mais precisamente, deve encontrar esse conteúdo em acordo e em unidade com
a certeza de si mesmo” (HEGEL apud GADAMER, 2008, p. 464). A consumação da
experiência é “a certeza de si mesmo no saber” (GADAMER, 2008, p. 464). Se não há esse
bate-e-volta, se a experiência não nos toca em retorno, a experiência não nos atinge no sentido
de estarmos nela, assim não será verdadeira experiência.
Se a consciência volta-se para si na experiência, aquele que experimenta não só já
está aberto às experiências como também já está se modificando com elas. E como se
modifica nelas, sabe que novas experiências podem vir e modificá-lo novamente. “A dialética
da experiência tem sua própria consumação não num saber concludente, mas nessa abertura à
experiência que é posta em funcionamento pela própria experiência” (GADAMER, 2008, p.
465).
Para a hermenêutica, compreender não é um ideal da experiência da vida humana,
ou, como em Husserl, um ideal metodológico frente à vida, nem uma operação posterior do
impulso da vida rumo à idealidade, segundo a hermenêutica histórica de Dilthey
(GADAMER, 2008, p. 347). A compreensão é mais essencial ao homem. Heidegger, ao trazer
a perspectiva existencial à questão e estabelecer a hermenêutica da facticidade, se opõe a
separação entre fato e essência que vem da fenomenologia de Husserl. Para ele, a existência
deve ser a base ontológica da fenomenologia e não o “puro cogito” do sujeito (ibidem, p.
341); lembrando a máxima cartesiana “cogito, ergo sum” 2.
O Dasein3, por sua presença no mundo, compreende o mundo: a compreensão é
“a forma originária de realização da pre-sença, que é ser-no-mundo” (GADAMER, 2008, p.
347). Toda a hermenêutica de Gadamer gravita em torno do pensamento central que expôs
Heidegger de que “compreender é o caráter ontológico original da própria vida humana”
2
Penso, logo existo.
3
Dasein: Da ≈ aí; Sein = ser; ser-aí – a existência do homem como acontecimento do ser no tempo, já que o
horizonte do ser é o tempo (GADAMER, 2008, p. 345). O termo é encontrado nos textos de Heidegger para
tratar a existência humana, distinto dos outros seres por que se apresenta no seu próprio ser (LAWN, 2007,
p.188). É importante observar que o “Da” nem sempre significa “aí”, pode significar “nem aqui e nem lá,
mas algumas vezes entre” (loco citato). O Dasein é essencialmente ilimitado, pois não temos capacidade para
tal.
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só a consciência histórica que absorve os sentidos da obra. A verdadeira obra de arte supera
seu tempo por fazer seu sentido estar sempre presente – assim podemos compreender textos
antigos. Se deixar de fazer sentido no presente, não será mais arte, no sentido de como
olhamos para utensílios e artesanato pré-históricos ou de uma sociedade extinta: não as os
vemos como arte, mas como fragmentos históricos (GADAMER, 2008, p. 264, 265).
Gadamer aplica Hegel à questão, que pensa não ser possível a reconstrução da
obra de arte, pois, como “frutos arrancados da árvore”, o que sai do seu contexto gerativo e
ganha novos horizontes não pode retornar como se nada tivesse acontecido. Forçar a relação
de uma obra ao seu contexto histórico – o fruto à árvore – não a faz revelar as relações vitais
com seu tempo, pois tal relação sempre permanecerá apenas imaginativa – o fruto não voltará
à árvore (GADAMER, 2008, p. 235). Também a reconstituição do passado será sempre forçar
peças que não se encaixam mais, pois é um labor exterior – assim como todo comportamento
histórico, visto que nossa ação só existe no presente. Em Hegel, a tarefa do “espírito
pensador” é, antes, pensar filosoficamente a história, principalmente com respeito ao passado.
A essência do espírito histórico não é restituir o passado, mas mediá-lo com o presente e a
vida atual (ibidem, p. 236).
O problema para o entendimento não é reconstruir o passado – visto que a
reconstrução é impossível –, é como acessá-lo. O que é possível pois o texto não é só uma
forma morta que traz ao leitor o que lhe estava fora de alcance, ele traz sempre um discurso
contido em si. “O entendimento não é o caso de um sujeito ativo projetar um significado num
objeto inerte e morto; pelo contrário, ambos, presente e passado, têm horizontes que podem
ser juntados produtivamente” (LAWN, 2007, p. 109). O texto traz o seu horizonte4 do passado
ao horizonte do leitor, no presente: o horizonte que está sempre em formação, transformado
quando colocamos nossos preconceitos à prova (GADAMER, 2008, p. 404).
A hermenêutica tem o dever de desenvolver a tensão entre horizontes, destacando
do horizonte presente o horizonte do passado (mesmo que ambos continuem sempre
conectados por constituírem a mesma tradição) formando algo novo: um horizonte único e
mais elevado que, mesmo sendo artificial, engloba esses dois anteriores (também este é posto
sobre a tradição, ainda e sempre atuante) (GADAMER, 2008, p. 405). Por exemplo, para
4
Gadamer propõe a metáfora do “horizonte” pois este é o limite do alcance de nossa visão e que acompanha
nosso caminhar sempre à frente e no fim. Se temos visão também temos um horizonte, pois nossa visão não é
absoluta, e também ter um horizonte é aprender a ver o mais longe (GADAMER, 2008, p. 403). O termo foi
primeiramente empregado por Friedrich Nietzsche, adotado também por Edmund Husserl, para se referir a
pontos de vista ou perspectivas.
26
5
Quando Heidegger fala “assegurar o científico” refere-se à atenção necessária para com cargas negativas e/ou
positivas que se dão aos preconceitos. Os preconceitos remetem à tradição e não significam juízos mal-
formados, como também não significam um bom juízo (GADAMER, 2008, p. 360 - 361). São,
simplesmente, as condições iniciais que todos os que interpretam tem de por à prova. Aplicar cargas ou
moralismos aos preconceitos, polarizá-los, é prejudicial para o entendimento pois o obscurece. Estar aberto à
experiência traz muito mais ao indivíduo do que se estivesse fechado. Por isso, é preciso assegurar os
“conceitos a partir da coisa, ela mesma” (HEIDEGGER apud GADAMER, 2008, p. 355).
28
sem expor-se a visão contrária ou ao embate dialético. Como se, num jogo, estivesse limitado
a usar apenas alguns movimentos invés de todos possíveis. Então, para entender é preciso
receptividade, além da já mencionada alteridade (ibidem, p. 358).
Antes da estrutura de Heidegger, a relação de vai-e-vem entre parte-todo no
círculo hermenêutico de interpretação era entendida como crescente, na medida em que o
entendimento do todo e das partes vai tornando-se sólido até que o movimento cesse com a
compreensão total e o círculo é suspenso (GADAMER, 2008, p. 388). Em Schleiermacher,
isso acontece quando uma parte consegue espelhar perfeitamente a outra: “o intérprete se
transporta inteiramente no autor e resolve, a partir daí, tudo o que é desconhecido e estranho
no texto” (loco citato).
Já a partir da estrutura heideggeriana, quando a compreensão realiza-se o círculo
atinge sua “realização mais autêntica”, invés de dissolver. Ou seja, o caráter essencial do
círculo, sua forma mais legítima, constitui-se quando se pensava que este deveria cessar. Isso
se dá porque o círculo não é um caminho ou mesmo uma estrutura para chegar-se à
compreensão, antes é o desenho da própria compreensão (GADAMER, 2008, p. 389). Por
isso, Gadamer também nega o círculo como armadura formal, e, lembrando que trilha seu
pensamento fugindo da rigidez, no caminho das possibilidades e probabilidades, vê o círculo
como um jogo entre a tradição e o intérprete – que não atribui sentidos a partir de sua
subjetividade, sejam prévios ou póstumos, mas sim em comunhão com a tradição (ibidem, p.
388).
O agir da tradição não pode ser confundido com meras pressuposições que
irrompem quando falamos ou refletimos sobre algo. Nós que vamos trazendo a tradição à
tona, num processo contínuo de formação. “Nós mesmos vamos instaurando-a na medida em
que compreendemos, na medida em que participamos do acontecer da tradição e continuamos
determinando-o a partir de nós próprios” (GADAMER, 2008, p. 388 - 389). O círculo, então,
não é metodológico, é a estrutura ontológica da compreensão.
Como circular, a compreensão supõe a constante possibilidade de retorno do
intérprete, garantida por sua vez pelo meio onde tudo isso acontece, onde a tradição se faz
presente, onde a compreensão se torna possível, onde os horizontes se fundem: a linguagem.
A linguagem é polissêmica: cada palavra refere vários sentidos, “ascende” a uma
teia de sentidos da linguagem; então seu sentido não está preso (GADAMER, 2008, p. 389).
Como uma “solidariedade lingüística”, uma rede de acordos explícitos e implícitos que regula
29
6
Tradição iniciada pelo filósofo Johann Georg Hammann no século XVIII, seguida por Johann Gottfried von
Herder e Wilhelm von Humboldt, estendendo-se até Heidegger e Gadamer.
31
2007, p. 107):
A linguagem não é somente um dentre muitos dotes atribuídos ao homem que está
no mundo, mas serve de base absoluta para que os homens tenham mundo, nela se
representa mundo. Para o homem, o mundo está ai como mundo numa forma como
não está para qualquer outro ser vivo que esteja no mundo. Mas esse estar-aí do
mundo é constituído pela linguagem (GADAMER, 2008, p. 571; grifo do autor).
Esse mundo de que Gadamer fala não é o mundo circundante, o espaço físico ou o
ambiente – esse com qual interagimos assim como o faz qualquer forma de vida. Mundo aqui
é entendido como esse que erguemos sobre o ambiente e que se confunde com este; se
fundem, se tornam uma unidade mais complexa. Estar no mundo não é apenas estar com os
corpos simplesmente dados, é também estar com todos os sentidos que atribuímos. Como “o
que podemos compreender é linguagem”, só o que compreendemos torna-se parte mundo.
“Não só o mundo é mundo apenas quando vem à linguagem, como a própria
linguagem só tem sua verdadeira existência no fato de que nela se representa o mundo”
(GADAMER, 2008, p. 572). E por representação, Gadamer não entende simples imitação
repetitiva, como no pensamento platônico7. Representar é muito mais que imitar: representar é
interpretar e, por isso, entender, trazer à luz – a mimeses, a representação, demonstra o próprio
conhecimento da essência (ibidem, p. 170). Não se chega à representação sem saber o
representado. Então, quando sabemos “usar” a palavra (como usamos as peças de xadrez),
acessamos e entendemos algo do seu ser.
E tal “uso” não se dá numa relação subjetiva, pois a linguagem guarda sua
objetividade (Sachlichkeit) na relação inerente que mantém com o mundo (GADAMER,
2008, p. 574). Quando o estado de coisas vem à fala, resguardamos nosso distanciamento para
com tais coisas nos reconhecendo como estrangeiros, pois: “A determinatividade de todo e
qualquer ente consiste precisamente em ser tal coisa e não outra.” (GADAMER, 2008, p.
575). Já que estamos de fora para poder ver em perspectiva, transformamos aquele acontecer
em conteúdo de um enunciado que pode ser entendido por outrem (loco citato).
Mas isso não implica que o mundo se torne objeto da linguagem (GADAMER,
2008, p. 581). Antes, tudo que é objeto das nossas sentenças e enunciados já está dentro do
horizonte total da linguagem (loco citato). Não é possível a nós, que “somos conversação”
(HÖLDERLIN apud LAWN, 2007, p. 109), olhar a linguagem como se estivesse num tubo de
7
Na República, Platão expõe a visão de que a arte – essencialmente representativa – engana e distancia-se da
verdade pois depende da mimesis, no sentido de imitação ou falsa impressão. Assim a verdade dos artistas
seria nada além da pura ilusão, enquanto o tratamento da realidade ficaria para os filósofos (LAWN, 2007, p.
118).
33
ensaio, pois não existe nenhuma experiência de mundo fora dela, nenhum ponto de onde
poderíamos converter-la em objeto (GADAMER, 2008, p. 584).
Somos conversação: fazemo-nos com a herança da tradição, que se faz presente
pela linguagem. Ela é anterior e posterior ao que podemos experienciar e exteriorizar, pois
estamos “imersos em linguisticalidade” (LAWN, 2007, p. 109). Podemos observar isso
sutilmente até em uma simples conversa, onde há muito mais em jogo do que as
individualidades dos envolvidos. Remetendo novamente ao “comum acordo” que se realiza
quando há entendimento, a conversa autêntica não é a que queremos levar, é a que nos leva –
na própria conversação que a linguagem possui seu autêntico ser, no realizar do entendimento
mútuo (GADAMER, 2008, pg. 575).
Quando envolvidos numa autêntica conversa mais somos levados por ela do que a
conduzimos onde queríamos chegar – isso é claramente dominá-la, e por isso limitá-la
(GADAMER, 2008, p. 497). Não dominamos ou controlamos seus caminhos e destinos pois é
a língua que fala através de nós e não o contrário (ibidem, p. 598).Tanto o é que ninguém sabe
como ou porque a linguagem muda (LAWN, 2007, p. 114). O uso da linguagem e sua
contínua modificação é um processo que nenhuma consciência individual pode dominar ou
controlar, seja pelo saber ou pela escolha (GADAMER, 2008, p. 598).
Na autêntica experiência hermenêutica, a linguagem abre as portas para a tradição
se comunicar com o presente, lembrando da fusão de horizontes e o círculo agindo na relação
entre intérprete (presente) e a tradição. Na fusão, é preciso estar aberto e deixar que o outro –
seja texto, fala, qualquer mensagem em qualquer linguagem – se expresse, e só assim a
experiência pode se tornar verdadeiramente hermenêutica: ouvindo a tradição (GADAMER,
2008, p. 597).
Como a experiência hermenêutica deve assumir tudo o que se faz presente nela (e
a tradição se faz presente pela linguagem), o que é experienciado e a tradição se comunicam
abrindo caminho para a compreensão (GADAMER, 2008, p. 597). É vital para que a
experiência seja hermenêutica o acontecer da linguagem, o “vir à fala do que foi dito na
tradição” (GADAMER, 2008, p. 598) – um acontecer que, com certeza, não se dá devido a
nossa ação, “mas a ação da própria coisa” (GADAMER, 2008, p. 598): a linguagem falando
através de nós.
Lembrando novamente da conversa autêntica, a sensação de estarmos à deriva ao
34
chegarmos a assuntos não previstos vem do caráter especulativo8 da linguagem: dizer o que se
tem em mente buscando ser entendido é manter o dito junto à infinitude do não-dito
(GADAMER, 2008, p. 605). Como observado acima, as palavras remetem à uma teia de
sentidos que estabelece inúmeras ligações à sombra do não-dito. Assim, formação prévia,
realização de sentido, o acontecer do discurso, o entendimento, a compreensão, são todos
especulativos (GADAMER, 2008, p. 605).
A linguagem esconde dentro do seu mecanismo de funcionamento o próprio
mecanismo do jogo – que é, em seu âmago, representação do mundo por excelência, assim
como a linguagem (GADAMER, 2008, p. 631). Johan Huizinga em Homo Ludens (2008),
trouxe uma perspectiva única sobre o que é o jogo e a sua importância na constituição
humana. A tese central da obra é de que o jogo é mais primitivo ao homem que a própria
cultura, sendo inclusive de onde esta surgiu. “As grandes atividades arquetípicas da sociedade
humana são, desde início, inteiramente marcadas pelo jogo” (HUIZINGA, 2008, p. 7). O
elemento lúdico precederia também a razão e por isso não pode ser fundamentado em
qualquer elemento racional (HUIZINGA, 2008, p. 6).
Em poucas palavras, o jogo se caracteriza por ser movimento suspenso num
tempo próprio e com ordem própria, representando a vida fora dele mas contido e voltado
para si. Esse movimento do jogo é repetitivo e incerto, não tem alvo, um vaivém complexo
que se torna atrativo (ou belo) por ser imprevisível, tanto o é que falamos em jogo das ondas,
das cores, da dança, todos que tem em comum o movimento. Também falamos em jogo de
palavras: as expressões abstratas pressupõem a metáfora, que é por si um jogo de palavras
(HUIZINGA, 2008, p. 7).
Em Huzinga, é o jogo (das palavras, das metáforas) que originou a linguagem:
“Ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da
natureza” (HUIZINGA, 2008, p. 7). Como observado acima, temos mundo por causa da
linguagem, e esse mundo se ergue sobre o ambiente circundante se misturando com ele – não
há mais como separá-los. Também como observado na linguagem, o jogo também não é feito
pelos jogadores, o jogo é que ganha representação e realização no acontecer: ou seja, ele se
faz através dos jogadores (GADAMER, 2008, p. 157).
8
Gadamer usa “especulação” retomando a idéia de espelhamento: “É especulativo quem não se entrega direta e
imediatamente à estabilidade disponível dos fenômenos ou ao que se tem em mente enquanto se mantém
numa determinação fixa, mas que sabe refletir, ou, dito hegelianamente, que reconhece o ‘em si’ como um
‘para mim’” (2008, p. 601).
35
O jogo contém suas regras, sua ordem particular diferente da “vida normal” fora
dele, e os jogadores devem se submeter a essa ordem para o jogo não perder sua configuração,
pois sem ela não passaria de brincadeira9: “o jogador que desrespeita ou ignora as regras é um
‘desmancha-prazeres’” (HUIZINGA, 2008, p. 9 - 10). Trazendo novamente a comparação, na
linguagem aquele que usa uma palavra que só faz sentido pessoal nunca será entendido, é
necessário remetermos a um sentido comum.
A melhor maneira de determinar o que significa a verdade será, também aqui,
recorrer ao conceito de jogo; o modo como de certo modo se coloca em jogo o peso
das coisas que nos vêm ao encontro na compreensão é ele mesmo um processo de
linguagem, por assim dizer, um jogo com palavras que pelo jogo transpõem o que se
tem em mente. São também jogos de linguagem os que nos permitem chegar à
compreensão do mundo na qualidade de aprendizes – e quando deixamos de ser
aprendizes? (GADAMER, 2008, p. 630).
9
A brincadeira não é levada a sério pelos jogadores por ser essencialmente cômica, tanto que suas regras podem
ser alteradas em prol da comicidade (HUIZINGA, 2008, p. 9). O jogo, pelo contrário, assim que abraçado
pelos jogadores deve ser levado a sério pois todos estão adotando verdadeira e totalmente as regras para
deixarem-se levar pelo jogo (ibidem, p. 11).
36
10
Por dialética este estudo entende a definição de Gadamer (apoiado em Hegel) de um sistema com caráter da
experiência em que sofremos uma negação que se torna produtiva, pois a negação quebra dos conceitos
anteriores e assim podemos expandir e amplificar nosso conhecimento. A tensão e oposição de forças
fortalece, melhora ou mesmo edifica, um conhecimento mais resistente.
37
perguntar, que transforma o potencial de pergunta que ali estava em uma pergunta real
(GADAMER, 2008, p. 488). “Compreender a questionabilidade de algo já é sempre
perguntar” (idem, p. 489; grifo do autor). Na estrutura da pergunta reside a real dimensão da
experiência hermenêutica: a pergunta suspende a verdade que temos em mente, esta que é
extraída dos preconceitos, dada pela posição, visão e concepção prévias (ibidem). Então
“quem quiser pensar, deve perguntar”, pois quando se pergunta abrem-se possibilidades de
sentido (GADAMER, 2008, p. 489).
Como obtemos essa pergunta também é um problema hermenêutico, uma vez que
é necessidade da hermenêutica sempre ir além da reconstrução: não se pode deixar de pensar
no que o texto não representou, que é parte do não-dito (GADAMER, 2008, p. 488). O
entendimento que se busca através da hermenêutica deve manter a consciência do caráter da
linguagem ser inexata, “uma das coisas mais obscuras com que já se deparou a reflexão
humana” (GADAMER, 2008, p. 492). Gadamer afirma isso pois a linguagem é algo tão
próximo do nosso próprio pensar – sua própria concretização – que não há ângulo para o
pensar voltar seu olho à linguagem. Afinal, o que nos resta para entender a linguagem também
é por meio dela: “A partir da conversação que nós mesmos somos, buscamos nos aproximar
da obscuridade da linguagem” (GADAMER, 2008, p. 492).
38
Fernando Pessoa
39
1
Por lead este estudo entende, seguindo a definição de Nilson Lage, a introdução ao texto que, informando em
ordem direta e em único período, traz a informação tida como mais interessante e que puxa o restante
(LAGE, 1979, p 74). Por pirâmide invertida o estudo toma o resumo de Gaye Tuchman: “The most important
information concerning an event is supposed to be presented in the first paragraph, and each succeeding
paragraph should contain information of decreasing importance. The structure of a news theoretically
resembles an inverted pyramid” (1972, p. 670). O lead então é a base da pirâmide (analogia às pirâmides
egípcias, onde o faraó mumificado ficava na base) que, como está invertida, aparece no início.
40
2
Considerando a possível confusão de termos, seguimos neste estudo a definição de Vitor Necchi, professor da
PUC-RS: “Quando se fala em jornalismo literário, eventualmente há uma tendência equivocada de confundir
o gênero com o 'novo jornalismo', como se fossem sinônimos. Na verdade, novo jornalismo é um momento
específico, uma fase do jornalismo literário verificada nos anos 1960 e ancorada, principalmente, no
surgimento de obras de autores como Truman Capote, Norman Mailer, Gay Talese e Tom Wolfe” (NECHI,
2007, p.6).
41
3
Johann Wolfgang von Goethe, autor de Fausto e Os sofrimentos do jovem Werther, entre outras obras, é uma
das maiores personalidades da literatura alemã e precursor do romantismo. Também poeta, dramaturgo,
romancista e ensaísta. Goethe defendia, partindo do idealismo do artista proposto por Kant, que a arte é um
produto do inconsciente do gênio artístico (GADAMER, 2008, p. 102).
42
4
Thompson faria fama com histórias parecidas. Na reportagem The Kentucky Derby Is Decadent and Depraved
ele abandonou todos os critérios de imparcialidade e objetividade jornalística e construiu uma narrativa
participativa e em primeira pessoa. O resultado foi o que ele mesmo chamou de Jornalismo Gonzo: agora não
mais faria a cobertura como repórter, passou a se infiltrar como um ator, como parte ou membro do ambiente.
O termo gonzo foi adotado por Thompson depois de receber uma carta de um amigo que escreveu: “Eu não
sei que porra você está fazendo, mas você mudou tudo. É totalmente gonzo”. O termo originou-se da gíria
franco-canadense gonzeaux, que significa algo como “caminho iluminado”. cf. CZARNOBAI, 2003.
43
Capote. O escritor passou mais de um ano em Holcomb, Kansas, cidade onde se deu o
assassinato da família Clutter, caso exposto em seu livro-reportagem. Ele entrevistou muitos
moradores da região, estudou a história da família e se manteve perto dos investigadores
policiais, tudo sem gravador ou bloco de notas (se dizia capaz de memorizar e reproduzir 95%
das informações que lhe eram faladas. Isso segundo testes que fez com um amigo, nos quais
este lia trechos de livros e, mais tarde, Capote repetia o que foi lido). Mas o trunfo de Capote
foi ter convivido com os condenados no corredor da morte conquistando a amizade dos dois e
obtendo confissões únicas (CAPOTE, 2003).
Enfim, a pesquisa afiada, a variedade de temas e o trabalho exaustivo com o
material marcam todos os novos jornalistas. A pressão que exerciam sobre si mesmos para
escrever era tal que muitos seguiam dias a fio frente à máquina de escrever. Jimmy Breslin,
que trabalhava com Wolfe, tinha a rotina de sair cedo para a rua para procurar pautas. Voltava
às quatro da tarde, sentava à máquina com café e cigarros e datilografava incansavelmente,
sem parar (WOLFE, 2005, p. 24). Wolfe sintetiza essa postura, que faz parecer quase como
angústia:
A idéia de um dia de folga perdeu todo o sentido. Lembro-me de ficar furioso na
segunda-feira 25 de novembro de 1963 porque havia gente com quem eu
precisava desesperadamente falar, por causa de alguma história, e não conseguia
encontrar ninguém, porque todos os escritórios de Nova York pareciam estar
fechados, todos (2005, p. 29).
A geração do novo jornalismo tinha o sucesso com a escrita em alta conta, tanto
que muitos almejavam mais do que a simples coluna num jornal. Apesar da intensa
competição dos repórteres de reportagens especiais pela melhor e mais bem contada história,
era comum chegarem ao ponto de desistência do jornalismo, suspendendo essa angústia de
finalizar as reportagens para arriscarem o que consideravam ser o próximo passo: era o sonho
comum do romance (WOLFE, 2005, p. 15 - 16).
A aspiração a escritor era quase universal nas redações. Trabalhando no New York
Herald Tribune5, Wolfe viu de perto o desejo que perturbava a todos: o romance era o status
mor e absoluto do escritor, como se o romancista tivesse plenitude na escrita, fosse o “escritor
por excelência” (LIMA, 2004, p. 193). Como ironiza Wolfe, os romancistas tinham
“exclusividade de entrada na alma do homem, nas emoções profundas, nos mistérios
eternos...” (2005, p. 43 - 44). O sonho estava banalizado, redações por todo EUA eram
5
O jornal foi criado em 1924 em Nova Iorque. Foi o principal concorrente do New York Times, até que em 1967
o Times e o Washington Post adquiriram 30% de suas ações. Com a operação, o jornal se tornou o The
Internacional Herald Tribune. Em 2003, o Post vendeu sua parte para o Times.
44
compostas por quem não queria estar lá. Pensavam estar de passagem rumo ao olímpo da
literatura. “O Romance parecia um dos últimos desses grandes golpes de sorte, como
encontrar ouro ou achar petróleo, com que um americano podia, do dia para a noite, num
relance, transformar inteiramente seu destino” (WOLFE, 2005, p. 17). Mas, mirando o pódio
da literatura, esses jornalistas passaram a escrever muito (em quantidade) e alguns,
gradativamente, também melhoraram a qualidade.
Nos primeiros anos do século XX, os romancistas ainda não haviam ascendido a
guardiões supremos da arte literária e nem os jornalistas haviam resignificado sua função de
forma utilitarista6. Com a separação nítida da figura do escritor e do jornalista, as redações
perderam, gradativamente, seus escritores; aqueles que sonhavam com o romance acabavam
deixando a redação (WOLFE, 2005, p. 18). Foi no período do novo jornalismo que os
jornalistas que acreditavam em suas reportagens – também que não seriam ou queriam ser
grandes romancistas (como os citados Breslin, Thompson, Sack, e o próprio Wolfe) –,
voltaram o foco para suas reportagens e permaneceram na fumaça de cigarro das redações. Na
batalha cotidiana contra a máquina de escrever foram atingindo, por meio do próprio jogo da
linguagem e do jornalismo, por erro e tentativa, textos mais ricos e com narrativas mais
profundas (WOLFE, 2005, p. 53).
Os largamente-desconsiderados jornalistas de reportagens especiais estavam se
apropriando das técnicas do romance realista e resgatando aquilo que estava perdido nos
romancistas, preocupados com romances de idéias (WOLFE, 2005, p. 50). O espaço que
cederam para os jornalistas era imenso e vistoso, toda a turbulência dos anos 60 estava à vista
como combustível para a escrita – a década da exploração espacial, da Guerra do Vietnã, de
famosos assassinatos políticos, do feminismo, da “consciência” negra, enfim, de imenso
borbulhar sócio-cultural (ibidem, p. 51). E com tudo isso emergindo pelas ruas, facilmente
notado, as editoras buscavam por novos romances, novos autores, que falassem a essa
geração, escrevessem sobre esse “borbulhar” (ibidem, p. 52). Os romancistas estadunidenses
não estavam atentos a isso, então quem despontou foram esses jornalistas que há muito tempo
namoravam a literatura (loco citato).
6
Há uma condição de proximidade entre jornalismo e literatura que remonta à própria função de contar histórias,
tanto que até os primeiros anos do século XX a função era dos mesmos escritores (LIMA, 2003, p. 173).
Machado de Assis, Manuel Antônio de Almeida e José de Alencar são exemplos nacionais de escritores que
trabalhavam em jornais. Como disse Felix Pacheco: “Toda a melhor literatura brasileira dos últimos trinta e
cinco anos fez escala pela imprensa.” (1977 apud LIMA, 2003, p.175). Kramer vai mais adiante e levanta
nomes de escritores que escreviam ensaios narrativos em muito parecidos com o novo jornalismo. Entre esses
nomes estão Ernest Hemingway, Gabriel Garcia Marques e John Steinbeck, e, retrocendendo ainda mais,
Daniel Defoe (2007, p. 1 - 2). Muitos desses escritores viam o trabalho no jornal diário como um
aprimoramento dos seus textos, já que tinham que escrever em grande quantidade para os jornais.
45
Capote manteve firme a posição de que A Sangue Frio não era jornalismo, era um
“romance de não-ficção” (WOLFE, 2005, p. 61). Wolfe viu isso como uma estratégia já
realizada por Henry Fielding, quando este publicou o romance Joseph Andrews, em 1742. À
época, o romance era um sub-gênero e o poema épico era o topo, e Fielding colocou seu
romance na sombra do gênero principal ao falar que se tratava de um novo estilo, que chamou
“poema épico cômico em prosa” (WOLFE, 2005, p. 61). Capote repetiu a tática para ganhar o
respaldo do romance, mesmo usufruindo de qualidades do jornalismo.
Como colocado por Edvaldo Pereira Lima na citação acima, o livro-reportagem
traz novas margens, uma expansão de possibilidades que deram energia cinética para a jogada
de Capote. Fora do jornal, inserido na moldura do livro, a reportagem ganha mobilidade para
avançar sobre a literatura. O livro-reportagem foi o movimento definitivo para colocar o
jornalismo literário, através do novo jornalismo, no olho do furacão do universo da escrita.
7
A Sangue Frio, de 1966, é considerado o grande marco do gênero, mas, ainda em 1917, John Reed havia
lançado Os dez dias que abalaram o mundo, que marca as origens do formato.
46
A questão estética é um dos fortes pilares da defesa de Wolf ao que faziam seus
pares no novo jornalismo. O lead e a pirâmide invertida são formalizações e como tal
inevitavelmente uniformizam os textos. Segundo a crítica de Gaye Tuchman em Objectivity
as strategic ritual8, a padronização dos textos jornalísticos serve para atender às demandas da
objetividade:
(…) if every reporter gathers and structures 'facts' in a detached, unbiased,
impersonal manner, deadlines will be met and libel suits avoided (1972, p. 664).
8
“A objetividade como ritual estratégico”. cf. TUCHMAN, 1978
47
um problema, visto que o jornalismo não é absolutamente noticioso: o repórter tem vida
própria antes e depois de ser jornalista e não pode ser recortado do seu mundo, seu estar-no-
mundo. Sua identidade manifesta-se em todo e qualquer texto seu (PASSOS; ORLANDINI,
2008, p. 7).
Como vimos no capítulo anterior, em Gadamer, a tradição é inescapável, pois
mora na linguagem que usamos para pensar e se expressar. Nossa visão, posição e concepção
prévias estão sobre nossos preconceitos, que por sua vez desenvolvemos na relação com a
tradição. É impossível ao repórter a supressão de suas noções prévias. Mas, a objetividade no
jornalismo é mais escorregadia: apontar na mesma direção do senso comum é um também um
disfarce de objetividade, pois o senso comum determina o que será entendido como “fato”
(TUCHMAN, 1972, p. 674). Para Kramer, os textos acabam “sem vida, sem individualidade,
convencionalizados e, por isso, sob uma voz presumivelmente justa e neutra” (2007, p. 10).
A formação dos jornalistas há tempos é voltada para que suprimam toda e
qualquer pessoalidade e mantenham seus textos nos trilhos da objetividade jornalística
(PIERRE, 1999, p. 12). O veio de sentido do texto deve ser controlado e direcionado pelo
jornalista para um único local, como um holofote potente que ilumina determinado objeto e
não deixa dúvidas ou margens de que está tratando dele, enquanto o restante está invisível no
escuro. No trabalho sobre jornalismo literário de Mateus Yuri Passos e Romulo Augusto
Orlandini há uma comparação estrutural entre o jornalismo literário e do modelo lead:
Propusemos anteriormente9 uma comparação estrutural entre o jornalismo literário e
o modelo lead, com base em Roland Barthes. Podemos compreender a diferença
fundamental entre os dois modelos da seguinte maneira: no último prevalecem os
dados e ações primários de um acontecimento. No jornalismo literário, os mesmos
ainda são contemplados, mas há um procedimento de preenchimento, com a adição
de informações indiciais e ações catalíticas, menores, constituindo um registro
expandido da realidade. Assim, o modelo predominante se configura por um
procedimento que propomos denominar centrípeto, pois há um movimento em
direção ao núcleo informacional, com foco nos resultados imediatos do fato; em
contrapartida, o jornalismo literário é essencialmente centrífugo, partindo do mesmo
núcleo para encontrar correspondências anteriores e contemporâneas, tangenciais e
paralelas, inclusive possíveis desdobramentos futuros. O foco aí se dá nos processos,
na vida humana em movimento (2008, p. 6).
9
Em: Contando a história do presente: princípios para uma caracterização estrutural do jornalismo literário. In:
CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 2007, Santos. Anais. São Paulo:
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2007.
48
Se o lead está para facilitar a vida dos jornalistas e não necessariamente a dos
leitores, talvez não seja o melhor caminho para transmitir bem a informação. A estrutura do
10
Sérgio Vilas Boas em entrevista concedida ao site Observatório de Imprensa, 2006.
49
a fusão de horizontes ocorre em toda a compreensão e para chegarmos à fusão é preciso ouvir
o outro, é preciso alteridade e abertura, então não seria mais fácil chegar à fusão e ao
entendimento quando o outro também está aberto? Quando suas possibilidades se
multiplicam como numa estrutura centrífuga? Seguindo esse raciocínio, a rigidez e
padronização (cansativa) da narrativa bege, como defende Wolfe, acabam por dificultar o
entendimento ao invés de facilitá-lo.
A estrutura narrativa das informações não pode, pois, seguir um modelo estanque de
pirâmide invertida. O real pulsante não pode ser transposto para uma ata de ritmo
previsível da primeira à última informação. São necessárias variáveis para atender
ao momento vital a que nos referenciamos, por mais denotativos ou “objetivos” que
nos intitulemos. Tentar decifrar o real imediato e ser fiel a essa possível decifração
exige maleabilidade narrativa. Claro, tudo depende do contato, da observação, e da
relação primordial junto à realidade noticiosa ou noticiável. (MEDINA apud
MARÇOLLA & VIANA, 2007, p. 3)
51
nova de onde temos também um ângulo de visão novo. O jornalista para sentir a realidade
precisa experimentá-la nesse nível. Não se trata somente de captar. “É preciso confiança, tato,
firmeza e tolerância” (KRAMER, 2007, p. 3). E é necessário muito tempo para ingerir e
digerir os tantos elementos que compõe as histórias reais. Joseph Mitchell, por exemplo, ficou
famoso pela sua imensa capacidade de observação, como descrito no posfácio do seu livro O
Segredo de Joe Gould:
Certa vez, no Sul dos Estados Unidos, Joseph Mitchell apontou um binóculo na
direção de um pica-pau. O passarinho fazia o que fazem os pica-paus: martelava o
tronco de uma árvore. Mitchell acomodou-se no chão e ficou observando.
Laboriosamente o pica-pau avançou tronco adentro, rasgando a madeira de casca a
casca. A façanha durou quase duas horas e terminou com a árvore vindo ao chão.
Mitchell não arredou pé até o final. Mais tarde, disse: “Foi a coisa mais sensacional
que já testemunhei” (SALLES, 2003, p. 139).
O ideal de imersão foi tão forte para o novo jornalismo que dela derivou um filho
radical: o gonzo. Quando Hunter Thompson escreveu The Kentucky Derby Is Decadent and
Depraved (ver nota de rodapé 13), e depois afirmou que tinha um novo estilo que intitulou de
jornalismo gonzo, ele estava radicalizando a imersão do jornalismo literário (OTHITIS,
1994). Apesar de mudar constantemente a sua definição do jornalismo gonzo, Thompson
manteve-se firme na posição de que: “O verdadeiro gonzo jornalista precisa do talento de um
excelente jornalista, dos olhos de um fotógrafo e dos culhões de um ator” (THOMPSON apud
OTHITIS, 1994). É ao colocar o conceito de “ator” no meio que a radicalização da imersão
acontece. Não se trata mais de apenas observar atentamente a realidade, é preciso vivenciá-la.
No trabalho sobre jornalismo gonzo de André Czarnobai, a técnica de “atuação”
de Thompson é chamada de osmose – conceito proveniente dos estudos biológicos onde
corpos aproximados, com diferentes concentrações de algum elemento, tendem a equalização
através da distribuição do mais carregado para o menos (CZARNOBAI, 2003). Thompson
seria o agente com menor concentração, que desconhece a determinada realidade onde
pretende entrar e assim se mistura aos indivíduos de lá para tentar viver como eles, tentar se
tornar um deles a fim de captar ao máximo a experiência.
Avançando, a segunda característica de Kramer é o pacto firmado com leitores e
fontes pela exatidão no relato. O jornalismo em si traz o paradigma do discurso verdadeiro –
reporta os acontecimentos, leva a informação – como também o jornalismo literário, a
diferença é que no literário o repórter passa, geralmente, meses na rua para atingir a
profundidade necessária (KRAMER, 2007, p. 3). O próprio rigor de pesquisa é uma forma de
confirmar ao leitor da veracidade do que é apresentado. Se há tanta pesquisa por trás do texto,
a confiança na sua verdade aumenta (ibidem, p. 4). Ainda a estrutura do texto em si é
53
fundamental para a sua noção de verdade. É dentro do aspecto retórico do texto que a
aparência de verdade reside. Se o leitor não pode comprovar a informação, o que é provável,
ele deve adotar sua postura de como encarar o texto.
Kramer fala também que o jornalista deve manter a sinceridade e a honestidade
com leitores e fontes (KRAMER, 2007, p. 6). Não é critério exclusivo, é a postura ética que
todo e qualquer jornalista deve adotar. Mas como estilo diferente, há certas diferenças para os
jornalistas literários. Primeiro o contato que o repórter mantém com as fontes é
inevitavelmente maior, como também a dificuldade que enfrenta para ir além e extrair da
esfera privada seus conteúdos (ibidem, p. 7). Relacionamentos mais próximos podem surgir
como amizades, namoros, casamentos, o que traz problema para a posição de fonte, que deixa
de relatar como tal e passa a relatar para uma pessoa querida (loco citato). Todo envolvimento
traz vantagens e complicações. E não só problemas de relacionamento podem surgir com as
fontes, mas também problemas legais e jurídicos, além dos limites sociais que elas enfrentam,
resguardando-se da opinião pública em casos polêmicos (loco citato).
Com o leitor, Kramer fala que o repórter deve ter seu norte em atender ao “senso
de realidade” no seu texto (KRAMER, 2007, p. 4). E para manter esse senso, alguns
escritores, principalmente no início do novo jornalismo, incrementavam cenas para dar mais
impacto.
Outros pioneiros, incluindo George Orwell (em “Shooting an Elephant”) e Truman
Capote (em “A Sangue Frio”, 1966), claramente remodelaram acontecimentos, e
meu veredicto particular é absolvê-los, também em virtude da antecipação (e da
elegância) de seus experimentos, e pela possível ausência da real intenção de
ludibriar. Nenhum deles rompeu com as expectativas dos leitores em nome do
gênero, pois nem havia fortes expectativas — ou muito do gênero em si — para
romper. (KRAMER, 2007, p. 5)
de um lado para o outro, a escrita que busca se ascender à universalidade mira o todo – é o
também o aspecto de literatura do jornalismo literário. Mas sem tocar no que está próximo,
sem medir o tátil, o texto se perde em abstrações longe demais, é preciso falar do aqui, do que
o homem experimenta no seu “aí”, seu espaço – o caráter jornalístico do jornalismo literário.
Avançando nos oito critérios que Kramer propõe, os quatro restantes tratam das
questões da narração e estrutura, e de forma tangencial, da compreensão do texto. Esses
critérios se aproximam muito, por isso vamos trabalhá-los em conjunto. São eles:
Gould tem a voz fanhosa e o sotaque de Harvard. O pessoal que trabalha nos bares
do Village se refere a ele como Professor, Gaivota, Professor Gaivota, Mangusto,
Professor Mangusto, Garoto do Bellevue. Ele veste roupas usadas que ganha dos
amigos. O capote, o terno, a camisa e até os sapatos invariavelmente são grande
demais, porém ele os usa com uma espécie de garbo desolado. “Olhe só para mim”,
costuma dizer. “A única coisa que me serve direitinho é a gravata.” Nos dias mais
terríveis do inverno, procura proteger-se do frio colocando algumas folhas de jornal
entre a camisa e a camiseta. “Sou esnobe: só uso o Times”, diz ele. Para cobrir a
cabeça gosta de peças incomuns – gorro de esquiador, boina, boné de marinheiro.
Numa noite de verão apareceu numa festa com um terno de anarruga, camisa pólo,
faixa escarlate, sandálias e boné de marinheiro – tudo doado. Tem uma piteira preta
e comprida e em boa parte do tempo fuma guimbas que cata nas calçadas.
(MITCHELL, 2003, p. 12-13).
O eixo que permeia todos esses cinco critérios é a constituição e o cuidado com a
narrativa. Lembrando que o jornalismo literário deve desenvolver o texto e torná-lo uma
narrativa agradável e elegante, segundo Wolfe, para atingir tal efeito há quatro recursos
freqüentemente apropriados da literatura: o registro dos detalhes, registro dos diálogos
completos, a construção cena-a-cena, e o esmero no ponto de vista (WOLFE, 2005).
As características se misturam, assim como as de Kramer, pois dentro da estrutura
do texto todos esses recursos se entrelaçam; O registro dos detalhes, gestos, maneirismos,
estilos, cores, movimentos alheios, são também elementos necessários para a construção da
cena com senso de realidade (2005, p. 55). Não são recursos de enfeite, simplesmente
cosméticos, pois contribuem pesadamente para o caráter imersivo e centrípeto do texto,
tornando a narrativa mais rica e conseqüentemente melhor condutora da história, abrindo
maiores possibilidades, como um fio maior para suportar maiores tensões.
Para tal, a função poética é essencial. Há sentimentos, por exemplo, que
compreendemos melhor através de metáforas. É a presença da função poética no jornalismo
narrativo, principalmente, que lhe dá características do texto literário.
De acordo com um dos representantes do formalismo russo, Roman Jakobson
(1971), a literariedade de um texto depende da predominância da função poética.
Dito de outro modo, entre as seis funções da linguagem possíveis, a função poética,
que coloca o acento sobre o trabalho com a linguagem a fim de fazer com que a
mensagem se volte para si mesmo, obrigando o seu receptor a tomá-la como fonte
de significações semânticas e fonte de fruição estética, ao mesmo tempo, é a que
mais se identifica com a literatura. Além disso, como Jakobson constata, não é
somente a presença da função poética que determina a literariedade do texto, mas
sim a sua predominância, face às outras funções, devemos ter em mente que,
portanto, é possível identificar o registro literário até em textos que originalmente
pertencem a outras categorias. (ANDRETTA, 2007)
57
“It´s a small cemetery,” he said, “and we´ve been burying in it a long time, and it´s
getting crowded, and there´s generations yet to come, and it worries me. Since I´m
the chairman of the board of trustees, I´m in charge of selling graves in here, graves
and plots, and I always try to encourage families to bury two to a grave. That´s
perfectly legal, and a good many cemeteries are doing it nowadays. All the law says,
it specifies that the top of the box containing the coffin shall be in at least three feet
below the level of the ground. To speak plainly, you dig the grave eight feet down,
instead of six feed down, and that leaves room to lay a second coffin on top of the
first. Let´s go to the end of this path and I´ll show you my plot”.
Mr. Hunter´s plot was in the last row, next to the woods. There were only a few
weeds on it. It was the cleanest plot in the cemetery.
58
“I never put up a stone for her. My first wife´s father, Jacob Finney, is buried in this
one, and I didn´t put up a stone for him, either. He didn´t own a grave, so we buried
him in our plot. My son Billy is buried in this grave. And this is my first wife´s
grave. I put up a stone for her” (MITCHELL, 2001 apud MARTINEZ, 2007, p. 7 –
8).
Kramer fala que o jornalismo literário precisa comunicar com uma voz
espontânea: o repórter narraria como se contasse, cara a cara, um incidente para alguém. As
vezes até assemelhando seu tom com o usual pra se contar piada em uma festa (2007, p. 12).
É preciso que o ritmo flua bem, de forma agradável – e para tal pode-se usar ironia, bom-
humor, o que for. “Leitores resistem à escrita pesada e fria muitas vezes sem saber o quê há de
errado” (KRAMER, 2007, p. 12).
59
Ludwig Wittgenstein
61
parecem não ter lugar (como por exemplo a Teoria do Espelho1). Lembrando os problemas da
objetividade jornalística observados no capítulo 2.2.
A linguagem certamente mantém objetividade em como se refere ao mundo, pois
o que vem à fala é o estado de coisas no mundo e cada ente é determinado por ser o que é e
não outra coisa (GADAMER, 2008, p. 575). Mas não podemos considerar a linguagem como
meio nítido e transmissor dos pensamentos, dentro da perspectiva designativa. Como se o que
falamos mantém relação direta com o mundo, independendo da nossa interpretação e
preconceitos que, segundo o círculo hermenêutico, sempre virão antes. A idéia da linguagem
transparente é amplamente negada no trabalho de Gadamer. Para ele a linguagem é muito
mais nebulosa, “uma das coisas mais obscuras com que já se deparou a reflexão humana”
(GADAMER, 2008, p. 492), pois decai nas possibilidades abertas do jogo lingüístico e sua
teia polissêmica.
Na fenomenologia de Husserl, que Gadamer utiliza em sua hermenêutica, já
encontramos o embate com a objetividade, entendida aqui como uma posição não-fixa:
A ingenuidade do discurso que fala de “objetividade”, que deixa totalmente fora de
questão a subjetividade e que experimenta, conhece e que produz de uma maneira
verdadeiramente concreta... a ingenuidade do cientista da natureza e do mundo em
geral, que é cego para o fato de que todas as verdades que ele conquista como
objetivas e o próprio mundo objetivo enquanto substrato de suas fórmulas são a sua
própria configuração de vida, que deveio mesmo... essa ingenuidade já não é
possível uma vez que se coloque a vida como o centro de perspectiva (apud
GADAMER, 2008, p. 335).
Certo que, como visto em Wolfe e Kramer, o jornalismo literário abre mão de
tentar ser “espelho” fiel e assume a voz do autor – automaticamente assumindo que ali, no
texto, estão as interpretações do mesmo. Assume que não há como contornar as interpretações
e limitações do repórter, mas sem deixar de ser jornalismo por isso: o objetivo ainda é retratar
o mundo da melhor forma possível. A questão que surge então é o que mantém o jornalismo
1
A Teoria do Espelho pressupõe a máxima objetividade no jornalismo. Nela, o repórter é aquele que “espelha” a
realidade para o leitor, sem alterar informações.
63
literário como jornalismo. Porque seus autores, para fugir da normatividade do modelo
jornalístico tradicional, não debandaram para a literatura, para a ficção?
A dúvida parece surgir devido a dificuldade de se definir com clareza o que
nesses textos é jornalístico e o que é literário, ou como é o caso, o que parece ser os dois ao
mesmo tempo. Os autores do jornalismo literário, especialmente os mais transgressores das
regras jornalísticas que apareceram no novo jornalismo, aplicaram diferentes e divergentes
empacotamentos ao que estavam escrevendo, por exemplo: Truman Capote chamou de
romance de não-ficção enquanto Hunter Thompson chamou de jornalismo gonzo. Críticos
chamaram de jornalismo narrativo, outra nomenclatura muito utilizada. Mesmo Kramer,
apesar de seu trabalho de caracterização que apresentamos anteriormente, diz que, afinal, o
que se entende por jornalismo literário é ainda indefinido e o termo só tem força de
designação devido a um quê de “você-sabe-quando-você-vê” (KRAMER, 2007, p. 2). Ou
seja, as fronteiras estão sendo desenhadas, ou são e serão sempre flutuantes. Mesmo assim,
todos os teóricos que vimos concordam que o elemento jornalístico essencial de reportar os
acontecimentos está ali abarcado, tanto que todas as nomenclaturas mais aceitas (jornalismo
literário, jornalismo narrativo) trazem o termo “jornalismo” consigo.
Todos estes textos que enquadramos dentro do selo de jornalismo literário tem um
fazer próprio que, mesmo híbrido, não se deixa confundir – “você-sabe-quando-você-vê” –,
até por isso os trabalhos de Wolfe e Kramer são possíveis. Nos traços fundamentais
metodológicos do jornalismo literário o eixo gravitacional é a averiguação e a experiência: o
jornalista precisa conhecer bem sobre o que quer escrever, deve vivenciar o ambiente. Como a
experiência mais autêntica também é única, o repórter que busca captar o máximo de
elementos presentes na vivência deve adotar a abertura necessária para atingir uma
experiência hermenêutica. Esta, essencialmente negativa, levanta dúvidas por revelar a
verdade na direção oposta ao que apontavam os preconceitos do intérprete (no caso, repórter).
Tais dúvidas podem ser entendidas na estrutura da dialética de pergunta e resposta: são
perguntas que emergiram no confronto da experiência. E todas as perguntas só tomam corpo e
se realizam na linguagem, por isso também estarão transpassadas pela tradição, que se faz
presente através da linguagem.
É no autêntico experienciar que nós mais aprendemos e nos modificamos,
expandimos nossos horizontes. No “choque” com o ambiente estranho que o repórter seria
capaz de absorver o máximo que pode daquela atmosfera para trabalhar em seu texto. Mas,
seguindo o raciocínio, as limitações do jornalismo literário aqui também insurgem. A
experiência sempre terá um teto: por mais que o repórter vivencie os acontecimentos e o
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ambiente, mesmo no nível de “felt life”, ele ainda será um forasteiro, um elemento estranho
carregado de bactérias de outro lugar. O ambiente está para o repórter à mão, ele não tem
raízes ali, é apenas uma passagem e ele tem consciência disso. A técnica da imersão encontra
seu limite aqui, mesmo no jornalismo gonzo, com a tentativa de “tornar-se um deles”.
Cabe aqui lembrar que a limitação do “felt life”, apenas sentir a vida, estando
sempre à margem, é uma limitação do jornalismo. Gadamer ascende a hermenêutica à uma
experiência universal, pois a estrutura lingüística da compreensão é universal. A reflexão
hermenêutica vai além da experiência jornalística em direção à experiência existencial, pois a
compreensão é caráter ontológico do ser do homem, o Dasein. Neste ponto não temos uma
convergência, temos um afastamento entre os dois: o jornalismo não se propõe – nem poderia,
visto sua natureza prática – a tal ascensão.
Mas, se a linguagem tem caráter universal, também suas limitações são universais.
O jornalismo literário encontra aqui outra barreira: a limitação incontornável da capacidade de
descrever o estado de coisas. A linguagem não consegue abranger a totalidade do ser por estar
sempre atrás do ser, que é antes de poder ser dito. De forma mais simples, nossa capacidade
de falar do mundo nunca será maior que o próprio mundo, pois há muito fora do nosso
domínio e fora da linguagem. Por isso Kramer fala que o dever do jornalista é mais singelo
que trazer fatos ou acontecimentos, é mais uma “intenção de transmitir ao leitor um ‘senso’ de
realidade” (KRAMER, 2007, p. 4; grifo nosso).
O jornalista literário se faz numa escrita maleável, capaz de expandir-se para dar
conta de transmitir um bom “senso de realidade”, mas nunca superará as limitações da
experiência e da linguagem. Seria o caso entrar na ficção? Vale lembrar aqui da importante
defesa do realismo que Wolfe faz. Como jornalismo que é, o jornalismo literário nunca
poderia largar a sua matéria-prima (os acontecimentos) nessa tentativa de aprimorar o “senso
de realidade”. Segundo Wolfe, a literatura da década de 60 perdeu qualidade por tirar os pés
do chão e se distanciar do mundo; os autores permaneciam dando voltas em suas perspectivas
prévias, sem realmente vivenciar uma experiência e entrar no círculo hermenêutico de
modificação dos seus preconceitos (o que não significa de forma alguma que a literatura
ficcional seja fraca, o problema é o esgotamento dos temas que é inevitável quando os
horizontes não são expandidos, quando o autor não vê no mundo o que pode representar em
sua arte e queima todas as suas reservas em si mesmo). A força do novo jornalismo estava
exatamente na experiência que os jornalistas vivenciaram. O que, talvez, seja a essência e a
força de todo jornalismo: a qualidade da experiência do jornalista.
A literatura não tem a necessidade de senso de realidade pois não há a obrigação
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de falar dos acontecimentos do mundo: voltava-se para a escrita como finalidade, ou melhor,
para si mesma, porque toda “obra de arte é um mundo para-si” (GADAMER, 2008, p.131).
Tal diferença marca a separação vital de jornalismo e literatura. O jornalismo tem por
finalidade a função de informar a sociedade.
Enquanto o jornalismo utilizar a palavra como simples utilidade, então será
tampouco a literatura como o caso da palavra numa aula de ciência. Jornalismo só é
literatura enquanto empregar a expressão verbal com ênfase nos meios de expressão
(LIMA, 1969 apud FRANÇA, 2008, p. 31).
Para Gadamer, a arte não satisfaz uma função, ela é fechada em si, “não se
conecta com outras coisas para a unidade de um processo aberto de experiência, já que
representa o todo imediatamente” (GADAMER, 2008, p.131). O que é útil não tem por
finalidade a si, é um meio e não um fim. Quando em algo funcional há o que é considerado
arte, como o design de um carro por exemplo, tais características são configurações que estão
encerradas em si e não compõe a utilidade desse objeto – não necessariamente fazem parte da
função ou mesmo tem função: poderiam ser de outro jeito que não alterariam o resultado
funcional do carro.
Quando a finalidade é a própria escrita o importante não é só o que, mas também
o como: são maneiras e formas de dizer, disposições estéticas, que fazem a obra de arte ser
assim (GADAMER, 2008, p.133). Nisso encontramos uma pertinência que pode ser um
caráter do jornalismo literário: as pautas frias, a cotidianidade, os “enquadramentos”
diferenciados, a narrativa e as figuras de linguagem, todas essas características trazem o texto
mais perto da literatura, da arte e sua finalidade em-si, e distanciam um pouco a função e a
utilidade do jornalismo. Em especial, o elemento que mais aproxima é o uso de metáforas.
As metáforas são ferramentas à polissemia lingüística: com elas podemos
conscientemente ver de relance certos sentidos que ficam na penumbra, onde nossas sentenças
não alcançam com clareza. Admitir a metáfora como clarificadora é assumir uma área
cinzenta entre as sentenças descritivas e poéticas. Mas, afinal: “Não seria a linguagem literária
e poética tão poderosa e reveladora do mundo como aquelas sentenças que supostamente
descrevem o mundo?” (LAWN, 2007 p. 108).
Assim, pelo poder das metáforas, talvez seja mais “objetivo” – no sentido de
referir o mundo – o texto que se desprende da certeza das palavras (como se portassem miras
certeiras aos entes a que se referem). Sabendo que a fala é incerta, é jogo das palavras, manter
isso em vista pode garantir mais domínio do que se diz. A boa ficção literária nos diz muito
sobre o mundo, e ela não precisa fazer jornalismo para isso. E aplicar isso fora da ficção não é
questão de enganar ou ser incerto, ao expressarmo-nos através de boas metáforas, quem nos
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mundo do homem, e que esse falar seja abrangente para ser capaz de lidar com o jogo
lingüístico do entendimento.
A hipótese que levantamos, afinal, é que, aos olhos da hermenêutica, o que faz o
jornalismo literário ser como é vem da presença em texto do ser (sein) e do seu estar-no-
mundo (Da; Dasein: o ser-aí) de forma unitária, sem a falsa tentativa de desvincular um do
outro. Assim o critério jornalístico de relatar os sentidos do mundo está sempre presente,
independendo o grau de uso de metáforas e elasticidade na estrutura. Esse jornalismo não
desboca na literatura pois mantém essa relação com o mundo sempre em vista, o que não é
uma necessidade para a literatura.
O jornalismo literário seria a elaboração das vivências do jornalista na polissemia
lingüística, tentando por ela comunicar ao leitor não um dado ou fato, mas o próprio processo
de sua compreensão que esteve em jogo na sua experiência. Um jogo hermenêutico sobre a
existência: o Dasein em sua cotidianidade.
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