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Este documento discute a literatura de relatos de naufrágios portugueses do século XVI ao XVIII. Abrange a popularidade deste gênero literário, como surgiu após sobreviventes contarem suas experiências, e como Bernardo Gomes de Brito compilou doze desses relatos na "História Trágico-Marítima" no século XVIII. Também discute fontes manuscritas não publicadas que fornecem novas perspectivas sobre naufrágios conhecidos e podem modificar opiniões estabelecidas
Este documento discute a literatura de relatos de naufrágios portugueses do século XVI ao XVIII. Abrange a popularidade deste gênero literário, como surgiu após sobreviventes contarem suas experiências, e como Bernardo Gomes de Brito compilou doze desses relatos na "História Trágico-Marítima" no século XVIII. Também discute fontes manuscritas não publicadas que fornecem novas perspectivas sobre naufrágios conhecidos e podem modificar opiniões estabelecidas
Este documento discute a literatura de relatos de naufrágios portugueses do século XVI ao XVIII. Abrange a popularidade deste gênero literário, como surgiu após sobreviventes contarem suas experiências, e como Bernardo Gomes de Brito compilou doze desses relatos na "História Trágico-Marítima" no século XVIII. Também discute fontes manuscritas não publicadas que fornecem novas perspectivas sobre naufrágios conhecidos e podem modificar opiniões estabelecidas
Quando a tragdia permitia que os nufragos chegassem a alguma terra ou
ilha e dali voltassem ndia ou atingissem, caminhando, algum local onde pudessem recorrer a outro navio, o acontecimento, depois de ter sido contado pelos sobreviventes, ficava registado pelas prprias testemunhas ou por algum que tivesse mais habilidade na redaco. Nas pginas das narrativas enumeravam-se as causas dos naufrgios, como a largada fora da poca regulada pelas normas, as excessivas dimenses e a m construo dos navios, utilizando madeiras inadequadas e calafetagem insuficiente: o exagero das cargas e a sua m distribuio; as tempestades, a deficincia das bombas de gua, a carncia de velas sobressalentes, a inexperincia, a ignorncia e a incapacidade dos pilotos, a falta de solidariedade entre os navios, em virtude de ambio de chegar primeiro aos portos de destino e os ataques de inimigos piratas, corsrios e navios de frotas adversas (francesas, inglesas, holandesas e turcas). Tambm se revelavam as situaes psicolgicas dos tripulantes e passageiros desorientados e desesperados e o comportamento dos homens que tinham enfrentado os perigos, a agonia e a morte, tanto na aflio do naufrgio, em que gritavam e recorriam ao socorro divino na confuso do momento extremo, mostrando o individualismo dos homens exposto na tentativa de salvao, como no sofrimento da peregrinao fatigante e perigoso em terras africanas inspitas. Desta forma nasceu um gnero literrio caracterstico, que se baseia em experincias verdadeiras e que consistia nos relatos de naufrgios, cativando os leitores com os seus episdios impressionantes e aterrorizadores e circulando sob a forma de folhetos avulsos como literatura de cordel.
Todavia, os naufrgios de que se fez redaco foram, evidentemente,
apenas uma ponta do icebergue. Em quase 40% dos casos, desconhecemos por que razes naufragaram estes navios, pois perderam-se com todos os tripulantes, passageiros e cargas sem deixarem sobreviventes, testemunhas ou vestgios. Ainda que este desaparecimento total no tivesse originado nenhuma narrao, em que se descrevesse a desgraa no mar, considera-se mais calamitoso do que aqueles que foram alvo de relaes e se tornaram clebres. Os empreendimentos hericos e as faanhas prestigiantes dos Portugueses deram origem s crnicas laudatrias. Em contrapartida, afirma-se que a Histria Trgico-Martima se salienta de um modo especfico na Cultura Portuguesa, apresentando o seu lado escuro/sinistro, constituindo o reverso da viso pica/herica, mostrando-nos o aspecto srdido do comrcio, da conquista e da navegao perpetuados nas Dcadas e nos Lusadas e podendo ser considerada como uma anti-epopeia dos Descobrimentos.
Os relatos de naufrgios lograram grande popularidade, de tal forma que o
do galeo So Joo que naufragou em 1552, afamado como o naufrgio de Seplveda, foi reeditado diversas vezes, e a primeira edio do da nau Santo Antnio, surgido em 1565, teve mil exemplares numa poca em que a tiragem mdia era mais ou menos de trezentos. A vasta divulgao fez com que, nos anos de 1735 e 36, doze desses folhetos e manuscritos fossem coligidos em dois tomos pelo erudito Bernardo Gomes de Brito, com o ttulo da Histria Trgico-Martima, incluindo os seguintes naufrgios: 1. galeo grande So Joo (1552), 2. nau So Bento (1554), 3. nau Conceio (1555), 4. naus guia (1560) e Gara (1559), 5. nau Santa Maria da Barca (1559), 6. da nau So Paulo (1561), 7. da nau Santo Antnio (1565), 8. nau Santiago (1585), 9. nau So Tom (1589), 10. nau Santo Alberto (1593), 11. nau So Francisco (1597), 12. galeo Santiago (1602) e nau Chagas (1594).
Embora Bernardo Gomes de Brito tivesse pensado reunir as narrativas de
naufrgios em cinco volumes (de acordo com Inocncio Francisco da Silva), saram apenas dois. Por outro lado, conhecemos um terceiro. No entanto, em vez de ser uma nova compilao, todos os exemplares do terceiro volume diferem por no ser mais que a encadernao dos folhetos avulsos j publicados, pois mantm a numerao separada de cada brochura sem a folha de rosto interna, alguns no os coligem cronologicamente, h casos em que se misturam os relatos includos e no includos na Histria TrgicoMartima, existem as compilaes em que se juntam as duas ou trs edies diferentes da mesma narrao, h encadernaes no s das relaes de naufrgios como tambm de outros temas, etc. Baseando-se na investigao de Charles Ralph Boxer e na nossa consulta da variedade do terceiro volume, consideramos as seguintes seis narrativas dos naufrgios como sendo do gnero idntico aos doze da Histria Trgico-Martima, pela frequncia do seu aparecimento no terceiro, pelo seu valor literrio e pela sua analogia com os outros da compilao britiana; 13. nau Nossa Senhora da Conceio (1621), 14. nau So Joo Baptista (1635), 15. nau Nossa Senhora do Bom Despacho (1630), 16. nau Nossa Senhora de Belm (1635), 17. naus Sacramento e Nossa Senhora da Atalaia (1647) e 18. galeo So Loureno (1649).
Este gnero de literatura satisfez o gosto do pblico por diversas razes. Em
primeiro lugar, o dramatismo do relato mais antigo, ou seja, o do naufrgio do galeo grande So Joo, impressionou os leitores de tal forma que, alm de ter despertado o interesse por narraes deste tipo, ficou conhecido como um paradigma do gnero. Em segundo lugar, uma vez que todos os portugueses participavam quer directa quer indirectamente na aventura do ultramar e nas suas catstrofes, desejava-se ansiosamente saber a descrio dos acidentes em que poderia estar envolvido algum familiar, conhecido ou amigo. Como terceira finalidade, podemos considerar a didctica, pois as causas dos sucessivos infortnios cruamente apontadas
serviriam de manual de naufrgios, para que outros se acautelassem contra
futuros desastres e soubessem no s os perigos que poderiam vir a enfrentar, dando nfase aos riscos evitveis, resultantes da enorme ganncia e da irresponsabilidade dos homens, como tambm s possveis atitudes a tomar em caso de perdio e de peregrinao em terra desconhecida. Alm disso, por descreverem o comportamento humano, em que se misturam o orgulho, a arrogncia, a cupidez, o egosmo, o altrusmo e a renncia, mostravam vivamente tanto a brutalidade como o herosmo nas situaes que relatam.
Os desastres no mar e a caminhada em lugares distantes e ignorados, que
foram escrupulosamente registados e que cativaram o interesse do pblico da altura continuam a chamar a nossa ateno, pois, alm de no cessarem de aparecer as adaptaes literrias baseadas na Histria Trgico-Martima, a sua reedio e os trabalhos a esse respeito encontram-se hoje nas livrarias, tendo sido elaboradas, na ltima dcada, meia dzia de teses de mestrado e de doutoramento. No entanto, os estudiosos no centraram muita ateno na documentao no publicada, embora os investigadores pioneiros como Charles Ralph Boxer e Giulia Lanciani j tenham referido alguns dos manuscritos no includos na antologia setecentista. As fontes, que estavam inditas at h pouco tempo, no s nos proporcionaram outros pontos de vista para os naufrgios que j conhecamos como tambm permitem modificar algumas opinies geralmente aceites.