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FERDINAND DE SAUSSURE CURSO DE LINGUISTICA GERAL Organizado por Cuarves BALLy e ALBERT SECHEHAYE com a colaboragio de ALBERT RIEDLINGER Prefacio 4 edicao brasileira: Isaac Nicotau SALuM (da Universidade de S. Paulo) > EDITORA CULTRIX So Paulo Titulo original: Cours de Linguistique Générale. Publicado por Payot, Paris. Tradugao de Ant6nio Chelini, José Paulo Paes ¢ Izidoro Blikstcin. Dados Internacionais de Catalogagio na Publicacio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Saussure, Ferdinand de, 1857-1913. Curso de lingitistica geral / Ferdinand de Saussure ; organizado por Charles Bally, Albert Sechehaye ; com a colaboragao de Albert Riedlinger ; prefacio da edicfo brasileira Isaac Nicolau Satum ; tradugdo de Anténio Chelini, José Paulo Paes, Izidoro Blikstein. -- 27. Ed. -- Sdo Paulo : Cultrix, 2006. Titulo original : Cours de linguistique générale ISBN 978-85-316-0102-6 1. Linguistica I. Bally, Charles. Il. Sechehaye, Albert. III. Riedlinger, Albert. IV. Salum, Isaac Nicolau. V. Titulo. 06-3514 indices para catélogo sistemitico 1. Lingiistica 410 © primeiro nimero a esquerda indica a edigSo, ou reedigfo, desta obra. A primeira dezena a direita indica o ano em que esta edigfo, ou reedig&o foi publicada. Edigao Ano 28-29-30-31-32-33-34 07-08-09-10-11-12-13 Direitos de tradugdo para o Brasil adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX ETDA. Rua Dr. Mario Vicente, 368 - 04270-000 - Sto Paulo, SP Fone: 6166-9000 ~ Fax: 6166-9008 E-mail: pensamento@ecultrix.com.br http:/Avww.pensamento-cultrix.com.br que se reserva a propriedade literdria desta traduso. INDICE PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA XIII Prerdcto A PRIMEIRA EDIGAO. 1 PrerMcio A SEGUNDA EDICAO. 4 PrerAcio A TERCEIRA EDICAO. 5 INTRODUCAO Capfruto I — Visto geral da bistéria da Lingiistica, 7 Capfruto Il — Matéria e tarefa da Lingiiistica; suas relagdes com as ciéncias conexas. 13 Capiruto III — Objeto de Lingdistica. S$ 1. A Mngua; sua definicio. 15 S 2. Lugar da Hngua nos fatos da linguagem. 19 $3. Lugar da Ingua nos fatos humanos. A Semiologia. 23 Cartruto IV — Lingiistica da lingua ¢ lingiltstica da fala. 26 CapituLo V — Elementos internos e elementos externos da lingua. 29 Cariruto VI — Representacao da lingua pela escrita. S 1. Necessidade de estudar este assunto. 33 5 2. Prestigio da escrita: causas de seu predominio sobre a forma falada. 34 $ 3. Os sistemas de escrita, 36 $ 5. Efeitos desse desacordo. 39 Carfruzo VII — A Fonologia. $ 1. Definigao. 42 § 2. A escrita fonoldgica. 4B $ 3. Critica ao testemunho da escrita. 44 VII APENDICE PRINCIPIOS DE FONOLOGIA Carftuto I — As espécies fonoldgicas. $k. $ 2. S 3. Definicgio do fonema. O aparelho vocal e seu funcionamento. Classificagéo dos sons conforme sua atticulacao bucal. Capfruto Lk — O fonema na cadeia falade. wenn wane 1. 2. 3. MO We Necessidade de estudar os sons na cadeia falada. A implosio ¢ a explosio. Combinacdes diversas de exploses e implosies na cadeia, Limite de sflaba ¢ ponto vocilico. Criticeas as teorias de silabacio. Duracio da implosio e da explosio. Os fonemas de quarta abertura. O ditongo. Ques- tdes de gratia. PRIMEIRA PARTE PRINCIPIOS GERAIS Capiruvo. I — Natureza do signo lingiistico. sh § 2. Signo, significado, significante. Primeiro principio: a arbitraiedade do signo. § 3. Segundo princtpio: cardter linear do significante. Capfruto Il — Imutabilidade e¢ mutabilidade do signo. $1. Imutabilidade. § 2. Mutabilidede. CapiruLo HI — A Lingiitstica estdtica e a Lingiilstica cvolutiva. wan A mw Dualidade interna de todas as ciéncias que operam com valores, A dualidade interna e a histéria da Lingiifstica. A dualidade interna ilustrada com exemplos. A diferenca entre as duas otdens ilustrada por com- paragGes. As duas Lingiifsticas opostas em seus métodos e em seus ptincfpios. Lei sincrénica ¢ lei diacrénica. Existe um ponto de vista pancténico? VII it $ 8. Conseqiiénciss da confuséo entre sincrénico e dia- crénico. $ 9. ‘Conchusies. SEGUNDA PARTE LINGUISTICA SINCRONICA Capfruto I — Generalidades. Carfruto Il — As entidades concretas da lingua. § 1. Entidades ¢ unidades. Definicdes. § 2. Métodos de delimitacio. $ 3. Dificuldades priticas da delimitacgo. S$ 4. Conclusio. Capiruto III — Identidade, realidades, valores. Capiruco IV — O valor lingiiistico. $1. A Hogue como pensamento organizado na matéria § 2. ©. lb igsizo considera em teu ape co $3. © nl Iingtize connidersdo sm sou especie te $ 4. © signo considerado na sua totalidade. Capiruto V — Relacdes sintagméticas e relagées associativas. $ 1. Definigdes. S$ 2. Relacdes sintagmaticas § 3. As relagdes associativas. Carfruto VI — Mecanismo da lingue. S 1. As solidatiedades sintagmdticas. § 2. Funcionamento simultineo de duas formas de agru- to pament S$ 3. O arbitrério absoluto ¢ 0 arbitririo relativo. Carfruzto VII — A Gramética e suas subdivisdes. § 4. Definigdes: divisdes tradicionais. § 2. Divisdes racionsis. Carfruto VIII — Papel das entidades absiratas em Gramitica. IX 112 4 7 119 121 122 123 125 130 132 136 139 142 143 145 148 149 152 156 158 160 TERCEIRA PARTE LINGUISTICA DIACRONICA Cariruto I — Generalidades. 163 Capiruco II — As mudangas fonéticas. 187 $ 1, Sua regularidsde absoluta: 167 $ 2. Condigdes das mudangas fonéticas, 168 S 3. Questées de método. 169 $ 4. Causas das mudangas fonéticas. 171 $5. A acio das mudancas fonéticas € ilimitada. Ws Cariruzo Ill — - Conseqiitncias gramaticais da evolucdo fonética. § 1. Ruprura do vinculo gramatical. 178 $ 2. Obliteragio da composicio das palavras. 179 § 3. Nao existem parelhas fonéticas. 180 S$ 4. A alternancia. 182 § 5, As leis de alternancia. 183 S 6. A alternancia ¢ o vinculo gramatical. 185 Carituro IV — A analogia. $ 1. Definigio e exemplos. 187 $ 2. Os fenédmenos analdgicos nfo sio mudancas. 189 S 3. A analogia, principio das criagdes da Mngua. 191 Carfruto V — Analogia e evolugao. § 1. Como uma inovagio analdégica entra na lingua. 1% S 2. As inovagdes analégicas, sintomas de mudangas de interpretagio. 197 $ 3. A analogia, principio de renovasdo ¢ de conserva- So, 199 CapiruLo VI — A etimologia popular. 202 Cariruco VIL — A aglutinagao. $ 1. Definigao. 205 § 2. Aglutinaciio ¢ amalogia. 206 Capituto VIII - Usidades, identidades e realidades diacrénicas. 209 Apéndices. A. ‘Andlise subjetiva e andlise objetiva. 213 B. A andlise subjetiva e a determinagio das subunidades. 215 C. A etimologia. 219 x QUARTA PARTE LINGUISTICA GEOGRAFICA Carituzo I — Da diversidade das linguas. 221 Cariruro Il — Complicagdes da diversidade geogréfica. § 1. Coexisténcia de virias Mnguas num mesmo ponto. 224 S$ 2. Lingua literdria e¢ idioma local. 226 Capfruto III — Causas da diversidade geogrdjica. §$ 1. O tempo, causa essencial. 228 § 2. Acdo do tempo num territério continuo. 230 $ 3. Os dialetos nio tém limites naturais. 233 Capfruto 1V — Propagagéo das ondas lingiiisticas. $ 1. A forga do intercurso e 0 espfrito de campandtio. 238 $ 2. As duas forgas reduzidas a um princfpio unico. 240 § 3. A diferenciagdo lingiifstica em tertitérios separados. 234 QUINTA PARTE QUESTOES DE LINGUISTICA RETROSPECTIVA CONCLUSAO Carituzo 1 — As dues perspectivas da Lingiiistica diacrénica. 247 Capiruto II — A dingua mais antiga e 0 protdtipo. 251 Carfruto II] — As reconstrugées. $ 1. Sua natureza e sua finalidade. 255 § 2. Grau de cetteza das reconstrugies. 257 Cariruto IV — O testemunbo da lingua ent Antropologia ¢ em Pré-Histéria. § 1. Lingua ¢ raca. 260 $ 2. Etnismo. 261 § 3. Paleontologia lingiifstiza. 262 § 4. Tipo lingiiistico ¢ mentalidade do grupo social. 266 Capfruto V — Familias de linguas € tipos lingilsticos. 268 Inpice ANAL{tICo. 273 XI PREFACIO A EDIGAO BRASILEIRA Estas palavras introdutérias 4 edicgao brasileira do Cours de linguistique générale nao pretendem expor ou discutir as doutri- nas lingiiisticas de Ferdinand de Saussure, nem tampouco apre- sentar a versio portuguesa no que ela significa como transposi- g&o do texto francés. Visam a uma tarefa bem mais modesta, mas, talvez, mais util ao leitor brasileiro, estudante de Letras ou simples leigo, interessado em Lingiiistica: fornecer informagoes sobre o famoso lingiiista suigo e sobre a sua obra e indicar algu- mas fontes para estudo das grandes antinomias saussurianas, ainda na ordem do dia, meio século depois da 1.* edigao do Cours, embora provocando ainda hoje didlogos mais ou me- nos calorosos. A 1. edigio do Cours é de 1916, e 6, como se sabe, “obra péstuma”, pois Saussure faleceu a 22 de fevereiro de 1913. A versio portuguesa saj com apenas 54 anos de atraso. Mas nesse ponto néo somos s6 nds que estamos atrasados. O Cours de linguistique générale no foi um best-seller, mas foi em francés mesmo que ¢le se tornou conhecido na Europa e na América. A 1} edicao francesa, de 1916, tinha 337 pdginas; as seguintes, de 1922, 1931, 1949, 1955, 1962... ¢ 1969, tm 331 paginas. No- te-se, porém, como crescem os intervalos entre as edicdes até a 4.2, de 1949, e depois se reduzem a constante de 7 anos, 0 que mostra que até a edigao francesa teve a sua popularidade aumen- tada nestas duas ultimas décadas. Uma vista de olhos sobre as tradugGes é bastante elucidati- va. A primeira foi a versio japonesa de H. Kobayashi, de 1928, reeditada em 1940, 1941 e 1950. Vem depois a alema de H. Lom- mel, em 1931, depois a russa, de H. M. Suhotin, em 1933, Uma divulgou-o no Oriente, ¢ a outra no mundo germ4nico (e nér- dico) e a terceira no mundo eslavo. A versio espanhola, de XII Amado Alonso, enriquecida com um excelente prefacio de 23 pa- ginas, saiu em 1945, sucedendo-se as edigdes de 1955, 1959, 1961, 1965 e 1967, numa cerrada competicgio com as edigdes france- sas, Sao as edigées francesa e espanhola os veiculos de maior divulgago do Cours no mundo romanico, A versdo inglesa de Wade Baskin, saida em Nova Iorque, Toronto e Londres, é de 1959. A polonesa é de 1961, e a hiingara, de 1967, Em 1967 saiu a notavel verso italiana de Tullio De Mauro, tradugio segura e fiel, mas especialmente notdvel pelas 23 pagi- nas introdutérias ¢ por mais 202 paginas que se seguem ao texto, de maior rendimento, em virtude do corpo do tipo usado, osten- tando extraordindria riqueza de informag6es sobre Saussure € sobre a sorte do Cours, com 305 notas ao texto e uma bibliogra- fia de 15 paginas (cerca de 400 titulos) (1). Tullio De Mauro por essa edigdo se torna credor da gratiddo de todos os que se interessam pela Lingiiistica moderna (?). Mas a freqiiéncia das reedigdes e tradugdes do Cours nesta década de 60 que acaba de expirar mostra que jd era tempo de fazer sair uma versio portuguesa dessa obra cujo interesse cresce com o extraordindrio impulso que vém tomando os estudos lin- gitisticos entre nés e em todo o mundo, Ja se tem dito, e com razZo, que a Lingiiistica é hoje a “vedette” das ciéncias huma- nas. Acresce que o desenvolvimento dos curriculos do nosso es- tudo médio nestes ultimos anos impede que uma boa percentagem de colegiais e estudantes do curso superior possam ler Saussure em francés, Verdade é que restaria ainda a versio espanhola, que é excelente, pelo prélogo luminoso de Amado Alonso, Mas, agora, o interesse piiblico em Saussure cresce, e uma edigao por- tuguésa se faz necessdria para atender 4 demanda das universi- dades brasileiras. (1) Ferdinand de Saussure, Corso di linguistica generale — Intro- duzione, traduzione e commento di Tullio De Mauro, Editori Laterza, Bari, 1967, pp. XXIII +488 pp. (2) As pp. V-XXIII dio uma boa introdugio, ¢ as pp. 3-282 tra- zem o texto, numa vetsao muito fiel. Da p. 285 a 335 vém informactes abundantes sobre Saussure ¢ sobre o Curso; da p. 356 4 360 se exami- nam as relagdes entre Noreen ¢ Saussure. Seguem-se, pp. 363-452, 305 notas, algumas longas. As pp. 455-470 trazem cerca de 400 titulos bi- bliogrdficos, alguns gerais, outros especialmente ligados a Saussure ¢ 20 Cours, As demais so de indices. XIV Se é verdade que a Lingijistica moderna vive um momento de franca ebulig&o, quando corifeus de teorias lingiiisticas numa evolugdo répida de pensamento e investigacdes se vao superan- do a si mesmos, quando nfo s4o “superados” pelos seus discipu- los, o Cours de linguistique générale € um livro classico. Nao é uma “biblia” da Lingiiistica moderna, que dé a Gltima palavra sobre os fatos, mas é ainda o ponto de partida de uma proble- matica que continua na ordem do dia. Nunca Saussure esteve mais presente do que nesta década, em que ele é As vezes declarado “superado”, S6 h4, porém, um meio honesto de superd-lo: é lé-lo, repensar com outros os pro- blemas que ele propés, nas suas célebres dicotomias: lingua ¢ fala, diacronia e sincronia, significante e significado, relagao as- sociativa (= paradigmdtica) e sintagmdtica, identidade e opo- sigdo etc. E bem certo que a Lingiiistica americana moderna surgiu sem especial contribuigao de Saussure; nao deixa, porém, de causar espécie a onda de siléncio da quase totalidade dos lin- giistas americanos com relagaéo ao Cours. Bloomfield, fazendo em 1922 a recensio da Language de Sapir, chama o Cours “um fundamento teérico da mais recente tendéncia dos estudos lin- giiisticos”, repete esse juizo ao fazer a recensio do préprio Cours, em 1924, fala em 1926, do seu “débito ideal” a Sapir e a Saus- sure, mas nao inclui o Cours na bibliografia de sua Language, em 1933 (3). Como a Lingiiistica norte-americana teve desenvolvimento proprio, isso se entende. Mas é conveniente que numa edigio brasileira do Curso se note o fato, para que nossos estudantes nao sejam tentados a “superd-lo” sem té-lo lido diretamente. E verdade que entre nés o que parece ter acontecido é uma (3) GE. De Mmuroy Corso, p. 339. De Mauro lembra algumas exce- goes -(1) “um dos. melhores. enssios de conjunto sobre Saussure é de R. S. Wells, "De Saussure’s System of Linguistics", in Word, IU, 1947, pp. 1-31: -(2) J. T. ‘Waterman, “Ferdinand de Saussure, Forerunner of Modern Structuralism”, in Modern Language Journal, 40 (1956), pp. ors -G) Chomsky, “Current Tesues in Linguistic Theory”, in J. Fodar, J. J. Katz, The Structure of Language. Readings in Philo peri ize, Englewood Cliffs, N. J., 1964, pp. 52, 53, 39 ¢€ ss. © 86. (Ver orto, pp. 339-340, ¢ Bibl., pp. 470 ¢ a. XV supervalorizacio do Cours, transformado.em fonte de “pesquisa”. As vezes 4 pergunta feita a estudantes que j4 onseguiram apro- vagio em Lingiiistica se j4 leram Saussure, obtemos a resposta sincera de que apenas “fizeram pesquisa” nele. E a pergunta sobre o que querem dizer com a expressio “pesquisa em Saus- sure”, respondem que assim dizem porque apenas leram o que ele traz sobre lingua ¢ fala! Entretanto, hoje nZo se pode deixar de reconhecer que 0 Cours levanta uma série intérmina de problemas. Porque, no que toca a eles, Saussure — como Sécrates e Jesus — é rece- bido “de segunda mao”. Conhecemos Sécrates pelo que Xeno- fonte e Plato escreveram como sendo dele. © primeiro era muito pouco filésofo para entendé-lo, € o segundo, filésofo de- mais para no ir além deie, ambos distorcendo-o, Jesus nada es- creveu sen3o na areia: seus ensinos so os que nos transmitiram os seus discipulos, alguns dos quais nao foram testemunhas oculares, Dé-se o mesmo com o Gours de Saussure. Para comegar, foram trés os Cursos de Lingiistica Geral que ele ministrou na Universidade de Genebra: 1" curso — De 16 de janeiro a 3 de julho de 1907, com 6 alunos matriculados, entre os quais A. Riedlinger e Louis Caille. A matéria fundamental deste curso foi: “Fonolo- gia, isto é, fonética fisiolégica (Lautphysiologie), Lin- giiistica evolutiva, alteragdes fonéticas e analdgicas, rela- ¢&o entre as unidades percebidas pelo falante na sincro- nia (anélise subjetiva) e as raizes, sufixes e outras unida- des jsoladas da gramAtica histérica (andlise objetiva), etimologia popular, problemas de reconstrugio”, que os editores puseram em apéndices e nos capitulos finais. 2.¢ curso —- Da 1.* semana de novembro de 1908 a 24 de julho de 1909, com onze alunos matriculados, entre os quais A. Riedlinger, Léopold Gautier, F. Bouchardy, E. Constantin. A matéria deste foi a “relacdo entre teo- ria do signo e a teoria’ da lingua, definigdes de sistema, unidade, identidade e de valor lingitistico. Daf se deduz a existéncia de duas perspectivas metodoldgicas diversas dentro das quais colocou o estudo dos fatos lingiiisticos; a descrigZo sincrénica e a diacrénica”. Saussure varias XVI vezes se mostra insatisfeito com os pontos de vista a que tinha chegado, 3.7 curso — De 28 de outubro de 1910 a 4 de julho de 1911, com doze alunos matriculados, entre os quais G. Dé- gallier, F. Joseph, Mme, Sechehaye, E. Constantin e Paul-F. Regard. Como matéria, “integra na ordem de- dutiva do segundo curso a riqueza analitica do primeiro”. No inicio se desenvolve o tema “das linguas”, isto é, a Lingiiistica externa: parte-se das linguas para chegar & “Jingua”, na sua universalidade e, dai, ao “exercicio e faculdade da linguagem nos individuos” (4). Os editores do Cours — Charles Bally, Albert Sechehaye, com a colaboracao de A, Riedlinger — sé tiveram em mios as anotagées de L. Caille, L, Gautier, Paul Regard, Mme. A. Se- chehaye, George Dégallier, Francis Joseph, e as notas de A. Riedlinger (5), E, tal qual ele foi editado, com a sistematizagao € organizacZo dos trés ilustres discipulos de Saussure, apresenta varios problemas criticos, 1.° — Saussure nfo estava contente com o desenvolvimento da matéria, Nao s6 tinha que incluir matéria ligada as nguas indo-européias por necessidade de obedecer ao programa (*), mas também ele proprio: se sentia limitado pela compreensio dos estudantes e por no sentir como definitivas as suas idéias. Eis o que ele diz a L, Gautier: “Vejo-me diante de um dilema: ou expor o assunto em toda a sua complexidade e confessar todas as minhas dividas, 0 que nZo pode convir para um curso que deve ser matéria de exame, ou fazer algo simplificado, melhor (4) Nao tendo tido acesso direto a obra de R. Godel, Les sources manuscrites du Cours de linguistique générale de Ferdinand de Saussure, Genebra — Paris, Droz, 1957, resumo 0 apanhado daf faz De Mauro, no Corso, pp. 320-321, ¢ o que diz o ptéprio R. em Cabiers Fer- dinand de Saussure, no. 16 (1958-1959), pp. 22-23. (5) Cf. “Préface de la premiére edition”, p. 8 (3.° ed.), 3° pa régrafo, (6) CE. Préface, p. 7. 1° pardgrafo (fim). XVII adaptado a um auditério de estudantes que no sao lin- gilistas, Mas a cada passo me vejo retido por escri- pulos (1).” 2.2 — Os apontamentos dificilmente corresponderiam ipsis verbis &s palavras do mestre, Como nota R. Godel, “sdo no- tas de estudantes, e essas notas sio apenas um reflexo mais ou menos claro da exposigao oral” (*). 4.2 — Sobre essas duas deformagdes do pensamento de Saussure — a que ele fazia para ser simples para os estudan- tes e a que eles faziam no anotar aproximadamente — soma- -se a da organizagio da matéria por dois discipulos, ilustres, mas que declaram nao terem estado presentes aos cursos (*). Ajunte-se coma trago anedético, que a frase final do Cours tdo citada — @ Lingilistica tem por iinico e verdadeiro objeto a Ungua encarada em si mesma e por si mesma — nao é de Saussure, mas dos editores (1°). Ai esti um problema critico com triptice complicagio. Problema critico grave como o da _exegese platénica ou o problema sinético dos Evangelhos, Naturalmente, as notas dos discipulos de Saussure foram apanhadas ao vivo na hora, como cada um podia anotar. Os editores esperavam muito dos apontamentos de Saus- sure. Mme Saussure no Ihes negou acesso a estes. Mas “grande foi a sua decepgdo: nada, ou quase nada, encontra- ram que correspondesse as anotagdes dos seus discipulos, pois Saussure destruia os seus rascunhos apressados em que ia tra- gando dia a dia o esbogo da sua exposigao” (14), Além disso, embora tivessem reunido apontamentos de sete ou oito discipulos, escaparam-lhes outros que foram depois editados por Robert Godel em mimeros sucessivos dos Cahiers (7) Les sources manuscrites, p. 30, apud De Mauro, Corso, p. 321. (8) Cabiers Ferdinand de Saussure, n* 15 (1957), p. 3. (9) CE. Préface, p. 8, 2.° pardgtafo. (10) Cours, p. 317. R. Godel, Les sources manuscrites, pp. 119 e 181, apud De Mauro, Corso, p. 451 (nota 305 in initio). (11) Cours, Préface, pp. 7-8. XVIV Ferdinand de Saussure e, depois, na publicagio atras citada — Les sources manuscrités du Cours de linguistique générale de Ferdinand de Saussure — a que Benveniste, em conferén- cia pronunciada em Genebra a 22 de fevereiro de 1963, em comemoragao ao cingiientendrio da morte de Saussure, cha- mou “obra bela e importante” (14), Os Cahiers Ferdinand de Saussure comegaram a ser pu- blicados em 1941. Mas a publicagio de inéditos de Saussure e de outras fontes do Cours s6 comegaram a aparecer, ali, em 1954, a partir do n.* 12, publicadas por Robert Godel: 1) “Notes inédites de Ferdinand de Saussure”. Sao 23 notas curtas anteriores ao ano de 1900 (Cahiers n.° 12 (1954), pp. 49-71). So as que se mencionam no Préface do Cours, nas pp. 7-8. 2) “Cours de linguistique générale (1908-1909): Intro- duction” (Cahiers n.° 15 (1957), pp. 3-103). Usaram-se trés manuscritos; o de A. Riedleger (119 pp.), © de F. Bouchardy e 6 de Léopold Gautier (estes. dois ultimos mais breves). Nesse ano, antes do n.° 15, j4 tinham saido como livro, publicado por Robert Godel: Les sources manuscrites du Cours de linguistique générale, Genebra, Droz, e Paris, Minard, 1957, com 263 pp. 3) “Nouveaux documents saussuriens: les cahiers E. Constantin” (Cahiers n° 16 (1958-1959), pp. 23-32). 4) “Inventaire des manuscrits de F. de Saussure remis a la Bibliothéque publique et universitaire de Ge- néve” (Cahiers n° 17 (1960), pp. 5-11). SZo manuscritos numerados de 3951 a 3969, de assuntos varios, lingiiisticos ¢ filolégicos. Publica-se apenas a relacio dos assuntos e outras informagdes. O ms, 3951 traz notas sobre a Lingiiistica Geral. O ms. 3952, sobre as linguas indo- -européias, o 3953 sobre acentuagao lituana, o 3954, no- (12) Cf. E. Benveniste, “Saussure aprés um demi-sitcle”, cap. IIL de Problémes de linguistigue générale, Gallimard, 1966, p. 32. Infeliz- mente, néo pudemos ainda ter em miaos Les sources manuscrites... XIX tas diversas, 0 3955 traz notas e rascunhos de artigos publi- cados, 0 3956 nomes de lugares ¢ patuds romanos. O ms. 3957 traz documentos varios entre os quais um Caderno de Recordagses — 0 nico cujo texto é publicado logo a seguir (pp. 12-25), e rascunhos de cartas e cartas recebidas. Os ms. 3958-3959 constam de 18 cadernos de estudos dos Niebelungen, os ms. 3690-3692 tratam de métrica védica e do verso saturnino (46 cadernos), Os ms, 3963-3969 trazem os estudos sobre os anagramas ou hipogramas (99 cadernos), sobre os quais Jean Starobinski publicou dois estudos em 1964 e 1967 3). Os Souvenirs de F. de Saussure concernant sa jeunesse et ses études atras mencionados (Ms. fr. 3957) so ricos de in- formagées acerca das suas relagdes com os lingiiistas alemdes e sobre a famosa Mémoire sur le systéme primitif des voyelles dans les langues indo-européenes, Leipzig, Teubner, 1879, 302 pp., escrita aos 21 anos. 5) A essas quatro publicagdes de R. Godel juntem-se as “Lettres de Ferdinand de Saussure a Antoine Meillet”, publicadas por Emile Benveniste (Cahiers n° 21 (1964), pp. 89-135). Se a isso se acrescentar o conjunto de obras editadas em 1922 por Charles Bally © Léopold Gautier sob o titulo de Recueil des publications scientifiques de Ferdinand de Saussure, num grosso volume de VIII + 641 pp. (%*), teremos tudo o (13) J. Starobinski, “Les anagrammes de Ferdinand de Saussure, tex- tes inédits”, Mercure de France, fevt. 1964, pp. 243-262; idem, “Les mots sous les mots: textes inédits des cahiers d’anagrammes de Fetdinand de Saussure”, in To Honor Roman Jakobson: Essays on the Occasion of his Seventieth Birthday, 11-10-1966, vol. III, Mouton, Haia, Paris, 1967, pp. 1906-1917, R. Godel nio se mostra muito entusiasta com essas pesqui- sas. Eis o que le diz: "Na época em que Saussure se ocupava de mi- tologia germinica, apaixonou-se também por pesquisas singulares. (...) Os e os quadros cm que ele consignou os resultados dessa lon- sa estéril investigacio formam « perte mais considerdvel dos manus- critos que ele deixou” (Cabiers, n° 17 (1960), p. 6). (14) Bditions Sonor de Genebra e Karl Winter de Heidelberg. E curioso notar que Tullio De Mauro, tio rico de i Ges, © que cita ¢ usa tanto o Recueil como Les souces manuscrites, ndo os tenha incluido no seu inventério bibliogrifico final, de cerca de 400 titulos. XX que Saussure publicou ou esbogou ou escreveu. Apesar, po- rém, do valor excepcional da Mémoire, 0 que consagrou real- mente o seu nome é 0 Cours de linguistique générale, que — a julgar pelas palavras suas atras citadas dirigidas a L. Gau- tier — ele, se vivesse, nao permitiria que fosse editado. Mas foi a publicagdo de todos esses documentos — espe- cialmente a de Les sources manuscrites — que acentuou o sen- timento da necessidade duma edigao critica do Cours. Alias, © Préface de Ch, Bally © A. Sechehaye denuncia uma espécie de insatisfagio com a edicao, tal qual a fizeram, mas que era @ modo mais sensato de editar anotagdes de aula. E nés ain- da hoje devemos ser-lhes gratos. Apesar de tudo, porém, era desejavel uma edigfo critica. O estudo sincrénico dum estado atual de lingua, especial- mente na sua manifestagio oral, atenua, quase dispensando, o trabalho filolégico. Mas, paradoxalmente, a obra do lingitis- ta que insistiu na sincronia constitui-se agora um notavel problema filolégico: o do estabelecimento do seu texto, A edig&o critica saiu em 1968 (5), num primeiro volu- me de grande formato, 31 x 22 cm, e de 515 + 515 Paginas. uma edicdo sinética, que da as fontes lado a lado em 6 colu. nas. A primeira coluna reproduz o texto do Cours, da 1.2 edi- Gao de i916, com as variantes introduzidas na 22 e na 3% edigdes (de 1922 © 1931). As colunas 2, 3 e 4 trazem as fontes usadas por Charles Bally e Albert Sechehaye, As colunas 5 © 6 trazem as fontes descobertas e publicadas por Robert Godel em disposi¢ao sinética. E evidente que nao é uma edicio de facil manejo. Ain- da aqui, o Cours de Saussure apresenta semelhanga com o problema sinético dos Evangelhos. Nessa edigio critica, de formato um pouce maior que a Synopsis Quattuor Evange- forum de Kurt Aland, com o texto grego, ou que a Synopse (13) Ferdinand de Saussure, Cours de linguistique générale, Edition critique par Rudolf Engler, tome I, 1967, Otto Harressowitz, Wiesbaden. Um vol. de 31x22 cm, de 515 +515 péginas. (Nio tendo tide oca sido de ver o volume, resumo as informagdes de Mons. Gardette na ré- pida recensio que faz da edicio em Revue de Linguistique Romane, to- mo 33, nos. 129-130 de jan-junho de 1969, pp. 170-171). XXI des quatre évangiles en frangais de Benoit e Boismard, o fa- moso livro de Saussure, que ele nao escreveu, poderd ter também o seu interesse pedagdgico: sera uma fotografia fiel.de como é apreendido diversamente aquilo que é trans- mitido por via oral. Mas essa renovacio de interesse no Cours de linguistique générale, especialmente a partir da década de 50 — que é quando se aceleram as edigdes e tradugdes ¢ quando Robert Godel comega a aprofundar a critica de fontes — € a garan- tia de que, ainda que novas solugGes se oferegam para as opo- sigdes saussurianas, Saussure esta longe de vir a ser superado. A edigdo a ser oferecida a um publico mais amplo sé pode ser a que consagrou a obra: a edi¢do critica, de leitura pesada, serd obra de consulta de grande utilidade para os es- pecialistas e para os mais aficionados, Seria também de interesse ajuntar a essas informagdes uma enumeracao de estudos de anilise e critica do Cours para orien- tagdio do leitor brasileiro. Mas éste prefacio jA se alongou de- mais, Além disso, os trabalhos-de andlise da Lingitistica moderna como Les grands courants de la linguistique moderne, de Le- roy (18), Les nouvelles tendances de la linguistique, de Malm- berg (""), Lingiiistica Romdnica, de Iorgu lordan, em versao espanhola de Manuel Alvar (pp. 509-601), os estudos de Meillet em Linguistique historique et linguistique générale Il (pp. 174-183) e no Bulletin de la Société de Linguistique de Paris (#*), 9 de Benveniste em Problémes de linguistique géné- vale (pp. 32-45), o de Lepschy, em La linguistique structurale (pp. 45-56), 0 prélogo da edigao de Amado Alonso (pp. 7-30), a excelente edicgo de Tullio De Mauro, atras mencionada — especialmente nas pp, V-XXIII e 285-470 — sio guias de grande valor para o interessado. A_ estes acrescente-se 0 ex- celente trabalho de divulgacdo de Georges Mounin, Saussure ou le structuraliste sans le savotr — présentation, choix de tex- (16) Edigio brasileira: As Grandes Correntes da Lingiiistica Mo. derna, S. Paulo, Cultrix: Editora da USP, 1971. (17} Edigao brasileira: As Novas Tendéncias da Lingiitstica, S. Paulo, Cia. Editora Nacional-Editora da USP, 1971. {18} Transcrito por Georges Mounin, in Saussure ow le structura: liste sans-le savoir, ed. Seghers, 1968, pp. 161-168. XXIE tes, bibliographic (**), que, a nosso ver, tem defeituoso apenas © titulo, pois Saussure foi antes “estruturalista antes do termo”, que Mounin poderia dizer a francesa le structuraliste avant ta lettre. Ficam assim fornecidas ao leitor algumas das informa- ges fundamentais para que ele possa melhor compreender o texto do lingiiista genebrino, Acrescentaremos apenas um qua- dro dos principais fatos na vida de Ferdinand de Saussure, Isaac Nicotau Satum (19) Edigio brasileira em preparacao. XXIII QUADRO BIOGRAFICO 26-11-1857 — Seu nascimento em Genebra. 1867 — Contacto com Adolphe Pictet, autor das Origenes Indo-européenes (1859-1863). 1875 — Estudos de Fisica e Quimica na Univ. de Genebra. 1876 — Membro da Soc. Ling, de Paris, 1876 — Em Leipzig. 1877 — Quatro memérias lidas na Soc. Ling. de Paris, especialmente Essai d’une distinction des diffé- rents a indo-européens. 1877-1878 — Mémoire sur les voyelles indo-européenes (pu- blicada em dezembro de 1878 em Leipzig). 1880 —- Fevereiro — Tese de doutorado: De l'emploi du genitif absolu en sanskrit, Viagem 4 Litua- nia, Em Paris segue os cursos de Bréal. 1881 — “Maftre de conférences” na Ecole Pratique des Hautes Etudes com 24 anos, 1882 — Secretério adjunto da Soc, Ling, de Paris e di- retor de publicagao das Memérias. Fica conhe- cendo Baudoin de Courtenay. 1890-1891 — Retoma os cursos da Ecole Pratique des Hautes Etudes, 1891-1896 — Professor extraordindrio em Genebra, 1996 — Professor titular em Genebra. 1907 — 1.° Curso de Lingiiistica Geral. 1908 — Seus discipulos de Paris e de Genebra oferecem- -lhe uma Miscelénea comemorativa do 30.* ani- versirio da Meméria sobre as vogais. 1908-1909 — 2.° Curso de Lingiiistica Geral. 1910-1911 — 3.%Curso de Lingiiistica Geral. 27- 2-1913 —- Seu falecimento em Genebra, PREFACIO A PRIMEIRA EDIGAO Repetidas vezes ouvimos Ferdinand de Saussure deplorar a insuficiéncia dos principios e dos métodos que caracterizavam a Lingitistica em cujo ambiente seu génio se desenvolveu, e ao longo de toda a sua vida pesquisou ele, obstinadamente, as leis diretrizes que the poderiam orientar' o pensamento através des- se caos. Mas foi somente. em 1906 que, sucedendo a Joseph Wertheimer na Universidade de Genebra, péde ele dar a co- nhecer as idéias pessoais que amadurecera durante tantos anos. Lecionou trés cursos de Lingiifstica Geral, em 1906-1907, 1908-1909 ¢ 1910-1911; é verdade que as necessidades do pro- grama o obrigaram a consagrar a metade de cada um desses cursos a uma exposigGo relativa as linguas indo-européias, sua historia e sua descrigdo, pelo que a parte essencial do seu te- ma ficou singularmente reduzida. Todos quantos tiveram o privilégio de acompanhar tao fecundo ensino deploraram que dele nao tivesse surgido um livro, Apés a morte do mestre, esperdvamos encontrar-lhe nos manuscritos, cortesmente postos d@ nossa disposigdo por Mme de Saussure, a imagem fiel ou pelo menos suficientemente fiel de suas geniais ligdes; entreviamos a possibilidade de uma publi- cagao fundada num simples arranjo de anotagées pessoais de Ferdinand de Saussure, combinadas com as notas de estudan- tes. Grande foi a nossa decepedo; nao encontramos nada ou quase nada que correspondesse aos cadernos de seus discipulos; F, de Saussure ia destruindo os borradores provisérios em que tragava, a cada dia, o esbogo de sua exposigao! As gavetas de sua secretdria néo nos proporcionaram mais que esbogos assaz antigos, certamente nao destituidos de valor, mas que era im- possivel utilizar e combinar com a matéria dos trés cursos, Essa verificagéo nos decepcionou tanto mais quanto obriga- ges profissionais nos haviam impedido quase completamente de nos aproveitarmos de seus derradeiros ensinamentos, que as- sinalam, na carreira de Ferdinand de Saussure, uma etapa tao brilhante quanto aquela, jd longingua, em que tinha aparecido a Mémoire sur les voyelles. Cumpria, pois, recorrer ds anotagées feitas pelos estudan- tes ao longo dessas trés séries de conferéncias. Cadernos bas- tante completos nos foram enviados pelos Srs. Louis Caille, Léo- fold Gautier, Paul Regard e Albert Riedlinger, no que respei- ta aos dois primeiros cursos; quanto ao terceiro, 0 mais impor- tante, pela Sra, Albert Sechehaye ¢ pelos Srs. George Dégallier e Francis Joseph. Devemos ao Sr. Louis Briitsch notas acerca de um ponto especial; fazem todos jus a nossa sincera gratidéo. Exprimimos também nossos mais vivos agradectmentos ao Sr. Jules Ronjat, 0 eminente romanista, que teve a bondade de rever 0 manuscrito antes da impressio ¢ cujos conselhos nos foram preciosos. Que irtamos fazer desse material? Um trabalho critico preliminar se impunha: era mister, para cada curso, e para cada pormenor de curso, comparando todas as versées, chegar até o pensamento do qual tinhamos apenas ecos, por vezes discordan- tes. Para os dois primeiros cursos, recorremos a colaboragao do Sr, A, Riedlinger, um dos discipulos que acompanharam o pen- samento do mestre com o maior interesse; seu trabalho, nesse ponto, nos foi muito util. No que respeita ao terceiro curso, A, Sechehaye levou a cabo 9 mesmo trabalho minucioso de co- lagdo € arranjo. Mas e depois? A forma de ensino oral, amitde em con- tradigdo com o livro, ‘nos reservava as maiores dificuldades. E, ademais, F. de Saussure era um desses homens que se reno- vam sem cessar; seu pensamento evoluia em todas as diregées, sem com isso entrar em contradigéo consigo proprio. Publicar tudo na sua forma original era imposstvel; as repetigoes ine- vitdveis numa exposigao livre, os encavalamentos, as formula- ges varidveis teriam dado, a uma publicagao que tal, um as- pecto heterdclito. Limitar-se a um sé curso — ¢ qual? — seria -empobrecer o livro, roubando-o de todas as riquezas abun- dantemente espalhadas nos dois outros; mesmo o terceiro, o 2 mais definitivo, nao teria podido, por si sé, dar uma idéia com- pleta das teorias e dos métodos de F. de Saussure. Foi-nos sugerido que reproduztssemos fielmente certos tre- chos particularmente originats; tal idéia nos agradou, a prin- cipio, mas logo se evidenciou que prejudicaria o pensamento de nosso mestre se apresentdssemos apenas fragmentos de uma construgao cujo valor sé aparece no conjunto. Decidimo-nos por uma solugdo mais audaciosa, mas tam- bém, acreditamos, mais racional: tentar uma reconstituiggo, uma sintese, com base no terceiro curso, utilizando todos os mate- riais de que disptinhamos, inclusive as notas pessoais de F. de Saussure, Tratava-se, pois, de uma recriagdo, tanto mais drdua quanto devia ser inteiramente objetiva; em cada ponto, pene- trando até o fundo de cada pensamento especifico, cumpria, @ luz do sistema todo, tentar ver tal pensamento em sua forma definitive, isentado das variagoes, das flutuagées inerentes @ ligdo falada, depois encaixd-lo em seu meio natural, apresen- tando-lhe todas as partes numa ordem conforme a intengdo do autor, mesmo quando semelhante intengao fosse mais adivi- nhada que manifestada. Desse trabatho de assimilagao ¢ reconstituigéo, nasceu o livro que ora apresentamos, nao sem apreensio, ao piblico eru- dito e a todos os amigos da Lingiiistica, Nossa idéia orientadora foi a de tragar um todo orgdénico sem negligenciar nada que pudesse contribuir para a impressiio de conjunto. Mas é precisamente por isso que incorremos tal- vez numa dupla critica, Em primeiro lugar, podem dizer-nos que esse “conjunto” é incompleto: o ensino do mestre jamais teve a pretenséo de abordar todas as partes da Lingilistica, nem de projetar sobre todas uma luz igualmente vive; materialmente, néo o poderia fazer. Sua preocupagdo era, alids, bem outra. Guiado por al- guns principios fundamentais, pessoais, que encontramos em todas as partes de sua obra, ¢ que formam a trama desse teci- do tao sdélido quanto variado, ele trabalha em profundidade ¢ 56 se estende em superficie quando tais principios encontram Gplicagées particularmente frisantes, bem como quando se fur- tam a qualquer teoria que os pudesse comprometer, Assim se explica que certas disciplinas mal tenham sido afloradas, a semantice, por exemplo. Ndo nos parece que essas lacunas prejudiquem a arquitetura geral, A auséncia de uma “Lingiiistica da fala” é¢ mais senstvel. Prometida cos ouvintes do terceiro curso, esse estudo teria tido, sem divida, lugar de honra nos seguintes; sabe-se muito bem por que tal promessa nao péde ser cumprida. Limitamo-nos a recolher e a situar em seu lugar natural as indicagées fugitivas desse programa apenas esbogado; ndo poderiamos ir mats longe. Inversamente, censurar-nos-Go talvez fror termos reprodu- zido desenvolvimentos relativos a pontos jd adquiridos antes de F. de Saussure. Nem tudo pode ser novo numa exposigéo as- sim vasta; entretanto, se principios jé conhecidos sao necessd- rios pata a compreensde do conjunto, querer-se-d censurar-nos por nao havé-los suprimido? Dessarte, o capitulo acerca das mudangas fondticas encerra coisas jd ditas, e quigd de maneira mais definitiva; todavia, além do fato de que essa parte oculte numerosos pormenores originais e preciosos, uma leitura mesmo superficial mostrard o que @ sua supressio acarretaria, por con- traste, para a compreensao dos principios sobre os quais F. de Saussure assenta seu sistema de Lingiiistica estdtica. Sentimos toda a responsabilidede que assumimos perante a critica, perante o préprio autor, que no teria talvez autori- zado a publicagao destas péginas. Aceitamos integralmente semethante responsabilidade ¢ queremos ser os tinicos a casregd-la, Saberd a critica distinguir entre o mestre e seus intérpretes? Ficar-lhe-lamos gratos se dirigisse contra nés os golpes com que seria injusto oprimir uma meméria que nos é querida, Genebra, junho de 1918. Cu, Batty, Avs. SecHEHAYE PREFACIO 4 SEGUNDA EDIGAO Esta segunda edigdo néo introduz nenhuma modificagdo essencial no texto da primeira, Os editores se limitaram a 4 modificagdes de pormenor, destinadas a tornar a redagdo mais clara € mais precisa em certos pontos, Cu. B. Aus, S, PREFACIO A TERCEIRA EDIGAO Salvo por algumas corregbes de pormenor, esta edig&o estd conforme a anterior, Cu. B. Aus. S. INTRODUGAO capiruLo 1 VISAO GERAL DA HISTORIA DA LINGUISTICA A ciéncia que se constituiu em torno dos fatos da lingua Passou por trés fases sucessivas antes de reconhecer qual é o seu verdadeiro e tinico objeto. Comegou-se por fazer o que se chamava de “Gramética”. Esse estudo, inaugurado pelos gregos, ¢ continuado principal- mente pelos franceses, é baseado na légica e est& desprovide de qualquer visio cientifica e desinteressada da propria lingua; visa unicamente a formular regras para distinguir as formas Corretas das incorretas; é uma disciplina normativa, muito afas- tada da pura observagie e cujo ponto de vista ¢ forgosamente estreito, A seguir, apareceu a Filologia, Ja em Alexandria havia uma escola “filolégica”, mas esse termo se vinculou sabretudo ao movimento criado por Friedrich August Wolf a partir de 1777 © que prossegue até nossos dias. A lingua nao é o tnico objeto da Filologia, que quer, antes de tudo, fixar, interpretar, comentar os textos; este primeiro estudo a leva a se ocupar também da histéria liter4ria, dos costumes, das instituigdes, etc.; em toda parte ela usa seu método proprio, que é a critica. Se aborda questées lingijisticas, {4-lo sobretudo para comparar tex- tos de diferentes épocas, determinar a lingua peculiar de cada autor, decifrar e explicar inscrigdes redigidas numa lingua ar- 7 caica ou obscura. Sem diivida, essas pesquisas prepararam a Lingiiistica histérica: os trabalhos de Ritschl acerca de Plauto podem ser chamados lingiiisticos; mas nesse dominio a critica filolégica é falha num particular: apega-se muito servilmente & lingua escrita e esquece a lingua falada; alids, a Antiguidade grega e latina a absorve quase completamente. O terceiro periodo comegou quando se descobriu que as linguas podiam ser comparadas entre si. Tal foi a origem da Filologia comparativa ou da “Gramdtica comparada”. Em 1816, numa obra intitulada Sistema da Conjugagdo do Sans- crito, Franz Bopp estudou as relagdes que unem o sAnscrito ao germanico, ao grego, ao latim, etc. Bopp nao era o primei- ro a assinalar tais afinidades e a admitir que todas essas linguas pertencem a uma tnica familia; isso tinha sido feito antes dele, no- tadamente pelo orientalista inglés W. Jones (t 1794); algumas afirmagdes isoladas, porém, nao provam que em 1816 j4 houves- sem sido compreendidas, de modo geral, a significagao e a impor- tancia dessa verdade. Bopp nao tem, pois, o mérito da desco- berta de que o sanscrito é parente de certos idiomas da Europa c da Asia, mas foi ele quem compreendeu que as relagGes entre linguas afins podiam tornar-se matéria duma ciéncia auténoma. Esclarecer uma lingua por meio de outra, explicar as formas duma pelas formas de outra, eis o que nZo fora ainda feito. E de duvidar que Bopp tivesse podido criar sua ciéncia — pelo menos tio depressa — sem a descoberta do sAnscrito. Este, como terceiro testemunho ao lado do grega e do latim, for- neceu-lhe uma base de estudo mais larga e mais sélida; tal van- tagem foi acrescida pelo fato de que, por um feliz e inesperado acaso, o sAnscrito estA em condigdes excepcionalmente favord- veis de aclarar semelhante comparagao. Eis um exemplo: considerando-se o paradigma do latim genus (genus, generis, genere, genera, generum, etc.) e o do grego génos (génos, géneos, génei, génes, genéGn, etc.) estas séries nao dizem nada quando tomadas isoladamente ou com- paradas entre si. Mas a situacgao muda quando se lhe aproxi- ma a série correspondente do sAnscrito (ganas, ganasas, ganasi, fanassu, ganasam, etc.). Basta uma rapida observagdo para perceber a relacado existente entre os paradigmas grego e la- tino. Admitindo-se provisoriamente que ganas represente a 8 forma primitiva, pois isso ajuda a explicagao, conclui-se que um s deve ter desaparecido nas formas gregas géne(s)os, etc., cada vez que ele se achasse colocado entre duas vogais. Con- Clui-se logo dai que, nas mesmas condigées, o s se transformou em rem latim, Depois, do ponto de vista gramatical, o para- digma sanscrito d4 precisio A nogdo de radical, visto corres- ponder esse elemento a uma unidade (ganas-) perfeitamente determindvel e fixa. Somente em suas origens conheceram o grego e latim o estado representado pelo sAnscrito. &, entdo, pela conservagdo de todos os ss indo-europeus que o sAnscrito se torna, no caso, instrutive. Nao hé divida que, em outras partes, ele guardou menos bem os caracteres do protétipo: as- sim, transtornou completamente o sistema vocalico. Mas, de modo geral, os elementos origindrios conservados por ele aju- dam a pesquisa de maneira admiravel — e 0 acaso o tornou uma lingua muito prépria para esclarecer as outras num sem: -ntimero de casos, Desde o inicio vé-se surgirem, ao lado de Bopp, lingiiistas eminentes: Jacob Grimm, o fundador dos estudos germnicos (sua Gramdtica Alemd foi publicada de 1822 a 1836); Pott, Cujas pesquisas etimoldgicas colocaram uma quantidade con- siderdvel de materiais ao dispor dos lingiiistas; Kuhn, cujos trabalhos se ocuparam, ao mesmo tempo, da Lingitistica e da Mitologia comparada; os indianistas Benfey e.Aufrecht, etc. Por fim, entre os ultimos representantes dessa escola, me- recem citagéo particular Max Miller, G. Curtius e August Schleicher. Os trés, dé modos diferentes, fizeram muito pe- los estudos comparativos. Max Miiller os popularizou com suas brilhantes conferéncias (Ligdes Sobre a Ciéncia da Lin- guagem, 1816, em inglés) ; nao pecou, porém, por excesso de consciéncia. Curtius, filélogo notdvel, conhecido scbretudo por seus Principios de Etimologia Grega (1879), foi um dos primeiros a reconciliar a Gramdtica comparada com a Filologia classica, Esta acompanhara com desconfianga os progressos da nova ciéncia e tal desconfianga se tinha tornado reciproca. Schleicher, enfim, foi o primeiro a tentar codificar os resulta- dos das pesquisas parciais. Seu Brevidrio de Gramdtica Com- parada das Linguas Indo-Germénicas (1816) & uma espécie de sistematizagio da ciéncia fundada por Bopp. Esse livro, que durante longo tempo prestou grandes services, evoca melhor 9 que qualquer outro a fisionomia dessa escola comparatista que constitui o primeiro periodo da Lingiiistica indo-européia. Tal escola, porém, que teve o mérito incontestavel de abrir um campo novo e fecundo, nao chegou a constituir a verdadei- ra ciéncia da Lingiiistica. Jamais se preocupou em determinar a natureza do seu objeto de estudo. Ora, sem essa operagao elementar, uma ciéncia é incapaz de estabelecer um método para si prépria. © primeiro erro, que contém em germe todos os outros, é que nas investigaces, limitadas alids As linguas indo-européias, a Gramatica comparada jamais se perguntou a que levavam as comparacgées que fazia, que significavam as analogias que descobria. Foi exclusivamente comparativa, em vez de hist6- rica. Sem davida, a comparago constitui condig&o necessdria dé toda reconstituigio histérica, Mas por si s6 nao permite concluir nada, A conclus%o escapava tanto mais a esses com- paratistas quanto consideravam o desenvolvimento de duas lin- guas como um naturalista o crescimento de dois vegetais. Schleicher, por exemplo, que nos convida sempre a partir do indo-europeu, que parece portanto ser, num certo sentido, deveras historiador, no hesita em dizer que em grego ¢ ¢ o sao dois “graus” (Stufen) do vocalismo, & que o s4nscrito apre- senta um sistema de alternfncias vocdlicas que sugere essa idéia de graus. Supondo, pois, que tais graus devessem ser venci- dos separada e paralelamente em cada lingua, como vegetais da mesma espécie passam, independentemente uns dos outros, pelas mesmas fases de desenvolvimento, Schleicher via no o grego um grau reforcado do ¢ como via no d sanscrito um reforgo de 4. De fato, trata-se de uma alternancia indo-euro- péia, que se reflete de modo diferente em grego e em sAnscri- to, sem que haja nisso qualquer igualdade necessdria entre os efeitos gramaticais que ela desenvolve numa e noutra lin- gua (ver p. 189 ss.). Esse método exclusivamente comparativo acarreta todo um conjunto de conceitos err6éneos, que nao correspondem a nada na realidade e que sao estranhos as verdadeiras condi- ges de toda linguagem. Considetava-se a lingua como uma esfera & parte, um quarto reino da Natureza; dai certos modos de raciocinar que teriam causado espanto em outra ciéncia. 10 Hoje nao se podem mais ler oito ou dez linhas dessa época sem se ficar surpreendido pelas excentricidades do pensamen- to e dos termos empregados para justificdlas, Do ponto de vista metodolégico, porém, ha certo interesse em conhecer ésses erros: os erros duma ciéncia que principia constituem a imagem ampliada daqueles que cometem os indi- viduos empenhados nas primeiras pesquisas cientificas; teremos ocasiao de assinalar varios deles no decorrer de nossa exposi¢ao. Somente em 1870 aproximadamente foi que se indagou quais seriam as condigdes de vida das linguas, Percebeu-se en- t8o que as correspondéncias que as unem nao passam de um dos aspectos do fenémeno lingiifstico, que a comparagZo nao é senio um meio, um método para reconstituir os fatos, A Lingiifstica propriamente dita, que deu & comparagio © lugar que exatamente lhe cabe, nasceu do estudo das linguas romanicas e das linguas germanicas. Os estudos romAnicos, inaugurados por Diez — sua Gramdtica das Linguas Romé- nicas data de 1836-1838 —, contribuiram particularmente para aproximar a Lingijistica do seu verdadeiro objeto. Os roma- nistas se achavam em condigdes privilegiadas, desconhecidas dos indo-europeistas; conhecia-se o ‘atim, protétipo das linguas rom4nicas; além disso, a abundancia de documentos permitia acompanhar pormenorizadamente a evolugio dos idiomas, Es- sas duas circunsténcias limitavam o campo das conjecturas e davam a toda a pesquisa uma fisionomia particularmente con- creta. Os germanistas se achavam em situagao idéntica; sem davida, 0 protogerm&nico nfo é conhecido diretamente, mas a histéria das linguas que dele derivam pode ser acompanha- da com a ajuda de numerosos documentos, através de uma Jonga seqiiéncia de séculos, Também os germanistas, mais pré- ximos da realidade, chegaram 2 concepgoes diferentes das dos primeiros indo-europeistas. Um primeiro impulso foi dado pelo norte-americano Whitney, autor de A Vida da Linguagem (1875). Logo apés se formou uma nova escola, a dos neogramaticos (Junggram- matiker) cujos fundadores eram todos alemaes: K. Brugmann, H. Osthoff, os germanistas W. Braune, E. Sievers, H. Paul, o eslavista Leskien etc. Seu mérito consistiu em colocar em pers- pectiva histérica todos os resultados da comparacdo e por ela VW encadear os fatos em sua ordem natural. Gragas aos neogra- mAticos, nao se viu mais na lingua um organismo que se desen- yolve por si, mas um produto do espirito coletivo dos grupos lingiiisticos. Ao mesmo tempo, compreende-se quo erréneas e insuficientes eram as idéias da Filologia e da Gramatica com- parada.! Entretanto, por grandes que sejam os servigos pres- tados por essa escola, nao se pode dizer que tenha esclarecido a totalidade da questdo, e, ainda hoje, os problemas fundamen- tais da Lingiistica Geral aguardam uma solugao. (1) A nova escola, cingindo-se mais a realidade, fez guetta 4 termi- nologia dos comparatistas e notadamente as metdforas ilégicas de que se servia, Desde entio, nao mais se ousa dizer: “a Mngua faz isto ou aquilo” nem falar da “vida da lingua” etc., pois a lingua nao € mais uma entidade nfo existe senio nos que a falam. Nio seria, portanto, necessério ir muito longe ¢ basta entender-se. Existem certas imagens das quais nao se pode prescindir. Exigir que se usem apenas termos correspondentes a realidade da linguagem é pretender que essas realidades nado tém nade de obscuro para nés. Falta’ muito, porém, para isso; também nio hesita- taremos em empregar, quando se ofereca a ocasido, algumas das expresses que foram reprovadas na época. J2 caPiTULo MATERIA E TAREFA DA LINGUISTICA; SUAS RELAQOES COM AS CIENCIAS CONEXAS A matéria da Lingijistica é constituida inicialmente por todas as manifestagdes da linguagem humana, quer ser trate de povos selvagens ou de nagées civilizadas, de épocas arcaicas, classicas ou de decadéncia, considerando-se em cada periode nao 86 a linguagem correta e a “bela Jinguagem”, mas todas as formas de expressio. Isso no é tudo: como a linguagem escapa as Mais das vezes 4 observacao, o lingiiista deverd ter em conta os textos escritos, pois somente eles lhe farao conhecer os idiomas passados ou distantes. A tarefa da Lingiiistica sera: a) fazer a descrigago e a historia de todas as linguas que puder abranger, o que quer dizer: fazer a histéria das familias de linguas e reconstituir, na medida do possivel, as linguas-maes de cada familia; * 6) procurar as forgas que estao em jogo, de modo perma- nente e universal, em todas as linguas e deduzir as leis gerais As quais se possam referir todos os fendmenos pe- culiares da histéria; ¢) delimitar-se e definir-se a si propria. A Lingiiistica tem relagdes bastante estreitas com outras ciéncias, que tanto lhe tomam emprestados como lhe fornecem dados. Os limites que a separam das outras ciéncias nao apa- recem sempre nitidamente. Por exemplo, a Lingiiistica deve 13 ser cuidadosamente distinguida da Etnografia e da Pré-Histé- ria, onde a lingua nao intervém senao a titulo de documento; distingue-se também da Antropologia, que estuda o homem so- mente do ponto de vista da espécie, enquanto a linguagem é um fato social. Dever-se-ia, ent&o, incorpord-la 4 Sociologia? Que relagdes existem entre a Lingiiistica e a Psicologia social? Na realidade, tudo é psicolégico na lingua, inclusive suas ma- nifestagdes materiais ¢ mecanicas, como a troca de sons; e ja que a Lingiiistica fornece A Psicologia social tao preciosos da- dos, nao faria um todo com ela? Sao questdes que apenas mencionamos aqui para retomé-las mais adiante. As relagdes da Lingijistica com a Fisiologia n&o sao tao difi- ceis de discernir: a relagdo é unilateral, no sentido de que o estu- do das linguas pede esclarecimentos 4 Fisiologia dos sons, mas nao Ihe fornece nenhum. Em todo caso, a confusdo entre as duas disciplinas se torna impossivel: o essencial da lingua, como veremos, é estranho ao carter fénico do signo lingiiistico. Quanto a Filologia, j4 nos definimos: ela se distingue ni- tidamente da Lingiiistica, malgrado os pontos de contato das duas ciéncias e os servicos mtituos que se prestam. Qual é, enfim, a utilidade da Lingiiistica? Bem’ poucas pessoas tém a respeito idéias claras: nao cabe fixd-las aqui. Mas é evidente, por exemplo, que as questées lingiiisticas interessam a todos — historiadores, filélogos etc. — que tenham de ma- nejar textos. Mais evidente ainda é a sua importancia para a cultura geral: na vida dos individuos e das sociedades, a lin- guagem constitui fator mais importante que qualquer outro. Seria inadmissivel que seu estudo se tornasse exclusivo de al- guns especialistas; de fato, toda a gente dela se ocupa pouco ou muito; mas — conseqiéncia paradoxal do interesse que suscita — nao ha dominio onde tenha germinado idéias tio absurdas, preconceitos, miragens, ficgdes. Do ponto de vista psicolégico, esses erros nao sao despreziveis; a tarefa do lin- giista, porém, ¢, antes de tudo, denuncid-los e dissipd-los to completamente quanto possivel, M4 caPiruLo ut OBJETO DA LINGUISTICA $1. A Lincua: SUA DEFINIGAO. Qual é © objeto, ao mesmo tempo integral € concreto, da Lingiistica? A quest&o é particularmente dificil: veremos mais tarde por qué. Limitemo-nos, aqui, a esclarecer a di- ficuldade. Outras ciéncias trabalham com objetos dados previamen- te e que se podem considerar, em seguida, de vArios pontos de vista; em nosso campo, nada de semelhante ocorre. Alguém pronuncia a palavra nu: um observador superficial sera tenta- do a ver nela um objeto lingiiistico concreto; um exame mais atento, porém, nos levard a encontrar no caso, uma apés outra, trés ou quatro coisas perfeitamente diferentes, conforme a ma- neira pela qual consideramos a palavra: como som, como ex- pressio duma idéia, como correspondente ao latim niidum etc. Bem longe de dizer que 0 objeto precede 0 ponto de vista, dirfa- mos que é 0 ponto de vista que cria o objeto; alids, nada nos diz de antem&o que uma dessas maneiras de considerar 0 fato em questZo seja anterior ou superior 4s outras. Além disso, seja qual for a que se adote, o fenémeno lin- giiistico apresenta perpetuamente duas faces que se correspon- dem e das quais uma njo vale senZo pela outra. Por exemplo: 1° As silabas que se articulam sdo impressdes acisticas percebidas pelo ouvido, mas os sons nao existiriam sem os ér- S4os vocais; assim, um n existe somente pela correspondéncia desses dois aspectos. Nao se pode reduzir entdéo a lingua ao is som, nem separar o som da articulagdo vocal; reciprocamente, nJo se podem definir os movimentos dos érgios vocais se se fizer abstracgio da impressdo acistica (ver p. 49 ss.). 2.2 Mas admitamos que o som seja uma coisa simples: é ele quem faz a linguagem? Nao, nao passa de instrumento do pensamento e nio existe por si mesmo. Surge dai uma nova e temivel correspondéncia: o som, unidade complexa acistico- -vocal, forma por sua vez, com a idéia, uma unidade complexa, fisiolégica e mental. E ainda mais: 3.2 A linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impoisivel conceber um sem o outro, Finalmente: 4° A cada instante, a linguagem implica ao mesmo tem- po um sistema estabelecido e€ uma evolug’o: a cada instante, ela é uma instituigao atual e um produto do passado, Parece facil, & primeira vista,.distinguir entre esses sistemas e sua his- téria, entre aquilo que ele é e o que foi; na realidade, a relagéo que une ambas as coisas é tio intima que se faz dificil sepa- ra-las. Seria a questéo mais simples se se considerasse o fené- mene lingitistico em suas origens; se, por exemplo, comegdssemos por estudar a linguagem das criangas? Nao, pois é uma idéia bastante falsa crer que em matéria de linguagem o problema das origens difira do das condigées permanentes; nio se saird mais do circulo vicioso, entZo. Dessarte, qualquer que seja o lado por que se aborda a ques- tZo, em nenhuma parte se nos oferece integral o objeto da Lingiiis- tica. Sempre encontramos o dilema: ou nos aplicamos a um lado apenas de cada problema e nos arriscamos a nao perceber as dualidades assinaladas acima, ou, se estudarmos a linguagem sob varios aspectos ao mesmo tempo, o objeto da Lingiiistica nos aparecer4 como um aglomerado confuso de coisas heterécli- tas, sem liame entre si. Quando se procede assim, abre-se a porta a v4rias ciéncias —- Psicologia, Antropologia, Gramatica normativa, Filologia etc. —, que separamos claramente da Lin- gilistica, mas que, por culpa de um método incorreto, poderiam reivindicar a linguagem como um de seus objetos. Ha, segundo nos parece, uma solugio para todas essas dificuldades: ¢ necessdrio colocar-se primeiramente no terreno da lingua e tomd-la como norma de todas as outras manifesta- is ¢6es da linguagem. De fato, entre tantas dualidades, somen- te a lingua parece suscetivel duma definigéo auténoma e for- nece um ponto de apoio satisfatério para o espirito. Mas o que é a lingua? Para nés, ela nao se confunde com a linguagem; € somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente, £, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convengGes necess4- vias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercicio dessa faculdade nos individuos. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heterédclita; o cavaleiro de diferentes dominios, ao mesmo tempo fisica, fisiolégica ¢ psiquica, ela pertence além disso ao dominio individual e ao dominio social; nao se deixa classificar cm nenhuma categoria de fatos humanos, pois nao se sabe como inferir sua unidade. A lingua, ao contrério, é um todo por si e um principio de classificagao, Desde que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num con- junto que ndo se presta a nenhuma outra classificagao. A esse principio de classificagZo poder-se-ia objetar que o exercicio da linguagem repousa numa faculdade que nos é dada pela Natureza, ao passo que a lingua constitui algo adquirido e convencional, que deveria subordinar-se ao instinto natural em vez de adiantar-se a ele. Eis o que pode se responder. Inicialmente, nao esta provado que a fung3o da lingua- gem, tal como ela se manifesta quando falamos, seja inteira- mente natural, isto é: que nosso aparelho vocal tenha sido feito para falar, assim como nossas pernas para andar. Os lin- giiistas estio longe de concordar nesse ponto. Assim, para Whitney, que considera a lingua uma instituigdo social da mes- ma espécie que todas as outras, é por acaso e por simples ra- z6es de comodidade que nos servimos do aparelho vocal como instrumento da lingua; os homens poderiam também ter esco- lhido o gesto e empregar imagens visuais em lugar de imagens acisticas. Sem diivida, esta tese é demasiado absoluta; a lin- gua nao é uma instituigao social semelhante 4s outras em to- dos og pontos (ver pp. 88 € 90) ; além disso, Whitney vai longe de- mais quando diz que nossa escolha recaiu por acaso nos drgaos 7 vocais; de certo modo, ja nos haviam sido impostas pela Na- tureza. No ponto essencial, porém, o lingiista norte-americano Nos parece ter razao: a lingua é uma convengio e a natureza do signo convencional é indiferente. A quest&o do aparelho vocal se revela, pois, secund4ria no problema da linguagem, Certa definigfo do que se chama de linguagem articulada poderia confirmar esta idéia. Em latim, articulus significa “membro, parte, subdivisio numa série de coisas”; em maté-. ria de linguagem, a articulacgio pode designar nao sé a diviséo da cadeia falada em silabas, como a subdivisio da cadeia de significages em unidades significativas; é neste sentido que se diz em alemao gegliederte Sprache. Apegando-se a esta segun- da: definigao, poder-se-ia dizer que no é a linguagem que é natural ao homem, 1nas a faculdade de constituir uma lingua, vale dizer: um sistema de signos distintos correspondentes a idéias distintas. Broca descobriu que a faculdade de falar se localiza na terceira circunvolugdo frontal esquerda; também nisso se apoia- ram alguns para atribuir 4 linguagem um carater natural, Mas sabe-se que essa localizagio foi comprovada por tudo quanto se relaciona com a linguagem, inclusive a escrita, e essas verifica- ges, unidas 4s observacies feitas sobre as diversas formas de afasia por lesio desses centros de localizagZo, parecem indicar: 1.*, que as perturbagGes diversas da linguagem oral est&o enca- deadas de muitos modos As da linguagem escrita; 2.°, que, em todos os casos de afasia ou de agrafia, é atingida menos a facul- dade de proferir estes ou aqueles sons ou de tragar estes ou aqueles signos que a de evocar por um instrumento, seja qual for, os signos duma linguagem regular, Tudo isso nos leva a crer que, acima desses diversos érgaos, existe uma faculdade mais geral, a que comanda os signos e que seria a faculdade lin- gilistica por exceléncia, E somos assim conduzidos 4 mesma conclusio de antes, Para atribuir 4 lingua o primeiro lugar no estudo da lin- guagem, pode-se, enfim, fazer valer o argumento de que a fa-" culdade — natural ou nao — de articular palavras nao se exerce senio com ajuda de instrumento criado e fornecido pela coletividade; nao é, entio, ilusério dizer que é a lingua que faz a unidade da linguagem. 1g § 2. Lugar pA LINGUA NOs FATOS DA LINGUAGEM. Para achar, no conjunto da linguagem, a esfera que corres- ponde A lingua, necessdrio se faz colocarmo-nos diante do ato individual que permite reconstituir 0 circuito da fala, Este ato supde pelo menos dois individuos; é o minimo exigivel para que o circuito seja completo, Suponhamos, entio, duas pessoas, A e B, que conversam. © ponto de partida do circuito se situa no cérebro de uma delas, por exemplo A, onde os fatos de consciéncia, a que cha- maremos conceitos, se acham associados as representagdes dos sig- nos lingiifsticos ou imagens aciisticas que servem para exprimi- -los. Suponhamos que um dado conceito suscite no cérebro uma imagem actstica correspondente: é um fenémeno inteira- mente psiquico, seguido, por sua vez, de um processe fisiolégico: o cérebro transmite aos érgios da fonagdo um impulso correla- tivo da imagem; depois, as ondas sonoras se propagam da boca de A até o ouvido de B: processo puramente fisico. Em segui- da, © circuito se prolonga em B numa ordem inversa: do ouvi- do ao cérebro, transmissao fisiolégica da imagem acistica; no cérebro, associagio psiquica dessa imagem com o conceito cor- respondente. Se B, por sua vez, fala, esse novo ato seguira — de seu cérebro ao de A — exatamente o mesmo curso do pri- meiro e passarA pelas mesmas fases sucessivas, que representa- remos como segue: 19 Audigao Fonagao C= Conceito D=Imagem acistica Fonagao Audigao Esta andlise nZo pretende ser completa; poder-se-iam distin- guir ainda: a sensagao actstica pura, a identificagio desta sen- sagdo com a imagem acistica latente, a imagem muscular da fonagao etc. Nao levamos em conta senZo os elementos julga- dos essenciais; mas nossa figura permite distinguir sem dificul- dade as partes fisicas (ondas sonoras) das fisiolégicas (fonagio e audicio) e psiquicas (imagens verbais e conceitos). De fato, é fundamental observar que a imagem verbal nio se confunde com © préprio som e que é psiquica, do mesmo modo que c conceito que Ihe esté associado, © circuito, tal como o representamos, pode dividir-se ainda: a) numa parte exterior (vibragZo dos sons indo da boca ao ouvido) e uma parte interior, que compreende to- do o resto; 6) uma parte psiquica e outra ndo-psiquica, incluindo a segunda também os fatos fisiol6gicos, dos quais os ér- gaos sfo a sede, e os fatos fisicos exteriores ao in- dividuo; ¢) numa parte ativa e outra passiva; é ativo tudo o que vai do centro de associagio duma das pessoas ao ouvi- do da outra, e passivo tudo que vai do ouvido desta ao seu centro de associag3o; finalmente, na parte psiquica localizada no cérebro, pode- -se chamar executivo tudo o que é ativo (c —> #)e receptivo tudo o que é passivo (i > c). : Cumpre acrescentar uma faculdade de associagio e de co- ordenagiio que se manifesta desde que no se trate mais de sig- nos isolados; ¢ essa faculdade que desempenha o principal pa- pel na organizagao da lingua enquanto sistema (ver p. 142 ss.). Para bem compreender tal papel, no entanto, impGe-se sair do ato individual,‘que nao é senéo o embrido da linguagem, e abordar o fato social. Entre todos os individuos assim unidos pela linguagem, es- tabelecer-se-4 uma espécie de meio-termo; todos reproduzirao —— nao exatamente, sem divida, mas aproximadamente — 08 mesmos signos unidos aos mesmos conceitos, Qual a origem dessa cristalizagao social? Qual das partes do circuito pode estar em causa? Pois é bem provavel que to- dos nZo tomem parte nela de igual modo. A parte fisica pode ser posta de lado desde logo. Quando ouvimos falar uma lingua que desconhecemos, percebemos bem os sons, mas devide & nossa incompreensao, ficamos alheios ao fato social. A parte psiquica nao entra tampouco totalmente em jogo: © lado executivo fica de fora, pois a sua execugao jamais ¢ feita pela massa; € sempre individual e dela o individuo é sempre senhor; nés a chamaremos fala (parole). Pelo funcionamento das faculdades receptiva e coordena- tiva, nos individuos falantes, é que se formam as marcas que chegam a ser sensivelmente a’ mesmas em todos. De que ma- neira se deve representar esse produto social para que a lingua aparega perfeitamente desembaragada do restante? Se pudés- semos abarcar a totalidade das imagens verbais armazenadas em todos os individuos, atingiriamos 0 liame social que consti- tui a lingua. Trata-se de um tesouro depositado pela pratica da fala em todos os individuos pertencentes 4 mesma comu- nidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em ca- da cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de individuos, pois a lingua nZo esté completa em nenhum, e 36 na massa ela existe de modo completo. 2 Com 0 separar a lingua da fala, separa-se ao mesmo tempo: 1%, © que & social do que é individual; 2.°, o que é essencial do que é acess6rio e mais ou menos acidental, A lingua nio constitui, pois, uma fungSo do falante: € © produto que o individuo registra passivamente; nao supde jamais premeditagao, e a reflexdo nela intervém somente para a atividade de classificagao, da qual trataremos na p. 142 ss. A fala é, ao contrario, um ato individual de vontade e in- teligéncia, no qual convém distinguir: 1.°, as combinagdes pelas quais o falante realiza o cédigo da lingua no propé- sito de exprimir seu pensamento pessoal; 2.°, 0 mecanismo psico- -fisico que the permite exteriorizar essas combinagées. Cumpre notar que definimos as coisas e no os termos; as distingdes estabelecidas nada tém a recear, portanto, de cer- tos termos ambiguos, que nao tém correspondéncia entre duas linguas. Assim, em alemio, Sprache quer dizer “Ingua” e “linguagem”; Rede corresponde aproximadamente a “palavra”, mas acrescentando-lhe o sentido especial de “discurso”. Em latim, sermo significa antes “linguagem” e “fala”, enquanto lingua significa a lingua, e assim por diante, Nenhum termo corresponde exatamente a uma das nogdes fikadas acima; eis porque toda definigio a propésito de um termo é va; é um mau método partir dos termos para definir as coisas. Recapitulemos os caracteres da lingua: 1.8 Ela é um objeto bem definido no conjunto heterécli- to dos fatos da linguagem, Pode-se localizd-la na porgao deter- minada do circuito em que uma imagem auditiva vem asso- ciar-se a um conceito, Ela é a parte social da linguagem, ex- terior ao individuo, que, por si sé, nao pode nem crié-la nem modificd-la; ela nao existe senio em virtude duma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade. Por outro lado, o individuo tem necessidade de uma aprendiza- gem para conhecer-lhe o funcionamento; somente pouco a pou- co a crianca a assimila. A lingua é uma coisa de tal modo dis- tinta que um homem privado do uso da fala conserva a lingua, contanto que compreenda os signos vocais que ouve. 2. A lingua, distinta da fala, é um objeto que se pode estudar separadamente.’ Nao falamos mais as lnguas mortas, 22 mas podemos muito bem assimilar-lhes o organismo linglifstico, Nao s6 pode a ciéncia da lingua prescindir de outros elemen- tos da linguagem como 3 se toma possivel quando tais elemen- tos nao estio misturados. 3.2 Enquanto a linguagem é heterogénea, a lingua assim delimitada € de natureza homogénea: conititui-se num sistema de signos onde, de essencial, s6 existe a unido do sentido ¢ da imagem acistica, e onde as duas partes do signo sao igualmen- te psiquicas. 4.° A lingua, nao menos que a fala, é um objeto de na- tureza concreta, o que oferece grande vantagem para o seu estudo. Os signos lingiiisticos, embora sendo essencialmente Ptiquicos, nao sao abstragdes; as associagées, ratificadas pelo con- sentimento coletivo e cujo conjunto constitui a lingua, sio rea- lidades que tém sua sede no cérebro. Além disso, os signos da lingua s4o, por assim dizer, tangiveis; a escrita pode fixa-los em imagens convencionais, ao passo que. seria impossivel foto- grafar em todos os seus pormenores os atos da fala; a fonacgao duma palavra, por pequena que seja, representa uma infini- dade de movimentos musculares extremamente dificeis de dis- tinguir e representar. Na lingua, ao contrario, nao existe se~ ‘ndo a imagem acustica e esta pode traduzir-se numa imagem visual constante. Pois se se faz abstragao dessa infinidade de movimentos necesédrios para realizd-la na fala, cada imagem acistica nao passa, conforme logo veremos, da soma dum nime- ro limitado de elementos ou fonemas, suscetiveis, por sua vez, de serem evocados por um nimero correspondente de signos na escrita. E esta possibjlidade de fixar as coisas relativas 4 lin- gua que faz com que um diciondrio e uma gramdtica possam representd-la fielmente, sendo ela o depésito das imagens acisti- cas, e a escrita a forma tangivel dessas imagens. $3. Lucar pa LINGUA NOs FATOS HUMANOS. A SemroLosia. Essas caracteristicas nos levam a descobrir uma outra mais importante. A lingua, assim delimitada no conjunto dos fatos de linguagem, é classificdvel entre os fatos humanos, enquanto que a linguagem nao o é. 23 Acabamos de ver que a lingua constitui uma instituigao social, mas ela se distingue por varios tragos das outras institui- gées politicas, juridicas etc. Para compreender sua natureza peculiar, cumpre fazer intervir uma nova ordem de fatos, A lingua € um sistema de signos que exprimem idéias, e é comparavel, por isso, 4 escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbélicos, as formas de polidez, aos sinais milita- res etc., etc. Ela é apenas o principal desses sistemas. Pode-se, entio, conceber uma ciéncia que estude a vida dos signos no seio da vida social; ela constituiria uma parte da Psicologia social e, por conseguinte, da Psicologia geral; cha- mé-la-emos de Semiologia’ (do grego sémefon, “signo”). Ela nos ensinard em que consistem os signos, que leis os regem. Como tal ciéncia nao existe ainda, no se pode dizer o que sera; ela tem direito, porém, a existéncia; seu lugar esté determina- do de antemao. A Lingitistica nio é sendo uma parte dessa ciéncia_geral; as leis que a Semiologia descobrir serio aplic4- veis & Lingiiistica e esta se achard dessarte vinculada a um do- minio bem definido no conjunto dos fatos humanos. Cabe ao psicélogo determinar o lugar exato da Semiologia ?; a tarefa do lingiiista é definir o que faz da lingua um sistema es- Pecial no conjunto dos fatos semiolégicos. A questao ser4 reto- mada mais adiante; guardaremos, neste ponto, apenas uma coi- sa: se, pela primeira vez, pudemos assinalar A Lingiifstica um lugar entre as ciéncias foi porque a relacionamos com a Se- miologia. Por que nao é esta ainda reconhecida como ciéncia auté- noma, tendo, como qualquer outra, seu objeto proprio? £ que rodamos em circulo; dum lado, nada mais adequado que a lingua para fazer-nos compreender a natureza do problema se- miolégico; mas para formuld-lo convenientemente, necessdrio se faz estudar a lingua em si; ora, até agora a lingua sempre (1) Deve-se cuidar de néo confundir a Semiologia com a Seméntica, que estuda as alteragdes de significado e da qual F. de S. ndo fez uma ex- posigéo metédica; achar-se-4, porém, o principio fundamental formulado na p. 89 (Urg.). (2) Cf. Ap, NaviLte, Classification des sciences, 2° ed., p. 104. 24 foi abordada em fungao de outra coisa, sob outros pontos de vista. Ha, inicialmente, a concepgio superficial do grande pi- blico: ele vé na lingua somente uma nomenclatura {ver p. 79), © que suprime toda pesquisa acerca de sua verdadeira natureza. A seguir, ha o ponto de vista do psicélogo, o qual estuda © mecanismo do signo no individuo; € 0 método mais facil, mas n&o ultrapassa a execugao individual, nao atinge o signo, que é social por natureza, : Ou ainda, quando se percebe que o signo deve ser estuda- de socialmente, retém-se apenas os caracteres da lingua que a vinculam as outras instituigdes, As que dependem mais ou me- nos de nossa vontade; desse modo, deixa-se de atingir a meta, negligenciando-se as caracteristicas que pertencem somente aos sistemas semiolégicos em geral e 4 Iingua em particular, O sig- no escapa sempre, em certa medida, 4 vontade individual ou social, estando nisso o seu cardter essencial; é, porém, o que menos aparece 4 primeira vista. Por conseguinte, tal cardter s6 aparece bem na lingua; mani- festase, porém, nas coisas que sio menos estudadas e, por outro lado, no se percebe bem a necessidade ou utilidade particular duma ciéncia semiolégica. Para nés, ao contrério, o problema lingiiistico é, antes de tudo, semiolégico, e todos os nossos de- scnvolvimentos emprestam significagdo a este fato importante. Se se quiser descobrir a verdadeira natureza da lingua, sera mister considera-la inicialmente no que ela tem de comum com todos os outros sistemas da mesma ordem; e fatores lingijisti- cos que aparecem, 4 primeira vista, como muito importantes {por exemplo: o funcionamento do aparelhp vocal), devem ser considerados de secundéria importincia quando sirvam somente Para distinguir a lingua dos outros sistemas. Com isso, nao apenas se esclarecera o problema lingiistico, mas acreditamos que, considerando os ritos, os costumes etc. como signos, esses fatos aparecerio sob outra luz, e sentir-te-4 a necessidade de agrupé-los na Semiologia e de explicd-los pelas leis da ciéncia. 25 caPiruULO Iv LINGUISTICA DA LINGUA E LINGUISTICA DA FALA Com outorgar a ciéncia da lingua seu verdadeiro lugar no conjunto do estudo da linguagem, situamos ao mesmo tempo toda a Lingilistica. Todos os outros elementos da linguagem, que constituem a fala, vém por si mesmos subordinar-se a esta primeira ciéncia e & gragas a tal subordinagao que todas as partes da Lingijistica encontram seu lugar natural. Consideremos, por exemplo, a produgao dos sons necessd- rios A fala: os 6rgaos vocais so to exteriores 4 lingua como os aparelhos elétricos que servem para transcrever o alfabeto Morse sao estranhos a esse alfabeto; e a fonag&o, vale dizer, a execugSo das imagens acusticas, em nada afeta o sistema em si. Sob esse aspecto, pode-se comparar a lingua a uma sinfonia, cuja realidade independe da maneira por que é executada; os er- ros que podem cometer os musicos que a executam nao com- prometem em nada tal realidade. A essa separacgio da fonagao e da lingua se oporio, talvez, as transformagées fonéticas, as alteragées de sons que se produ- zem na fala, e que exercem influéncia tio profunda nos desti- nos da propria lingua. Teremos, de fato, 0 direito de preten- der que esta exista independentemente de tais fenédmenos? Sim, pois eles no atingem mais que a substincia material das pa- lavras. Se atacam a lingua enquanto sistema de signos, fazem- “No apenas indiretamente, pela mudanga de interpretagdo que dai resulta; ora, esse fendmeno nada tem de fonético (ver p. 100 s.). Pode ser interessante pesquisar as causas de tais mu- dangas e 0 estudo dos sons nos ajudar4 nisso; todavia, nio é 26 coisa essencial: para a ciéncia da lingua bastard sempre com- provar as transformagées dos sons e calcular-lhes os eteitos. E o que dizemos da fonacdo ser4 verdadeiro no tocante ® todas as outras partes da fala. A atividade de quem fala deve ser estudada num conjunto de disciplinas que somente por sua relagéo com a lingua tém lugar na Lingilistica, O estudo da linguagem comporta, portanto, duas partes: uma, essencial, tem por objeto a lingua, que é social em sua esséncia e independente do individuo; esse estudo é unicamente psiquico; outra, secundéria, tem por objete a parte individual da linguagem, vale dizer, a fala, inclusive a fonagio e é psico- -lisica, Sem divida, esses dois objetos esto estreitamente ligados e se implicam mutuamente; a lingua é necesséria para que a fala seja inteligivel e produza todos os seus efeitos; mas esta & necessfria para que a lingua se estabeleca; historicamente, o fato da fala vem sempre antes, Como se imaginaria associar uma idéia a uma imagem verbal se nfo se surpreendesse de inicio esta associagéo num ato de fala? Por outro lado, é ou- vindo os outros que aprendemos a lingua materna; ela se de- posita em nosso cérebro somente apés intimeras experiéncias. Enfim, é a fala que faz evoluir a lingua: sio as impressdes re- cebidas ao ouvir os outros que modificam nossos hdbitos lin- gilisticos. Existe, pois, interdependéncia da lingua e da fala; aquela € ao mesmo tempo o instrumento e o produto desta. Tudo isso, porém, nao impede que sejam duas coisas absoluta- mente distintas. A lingua existe na coletividade sob a forma duma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um diciondrio cujos exemplares, todos idénticos, fossem repartidos entre os individuos (ver p. 21), Trata-se, pois, de algo que esté em cada um deles, embora seja comum a todos e indepen- da da vontade dos depositdérios. Esse modo de existéncia da lingua pode ser representado pela férmula: 1+ 1+ 1+ 1... =I (padrao coletivo) De que maneira a fala est4 presente nessa mesma coleti- vidade? E£ a soma do que as pessoas dizem, e compreende: 27 a) combinagées individuais, dependentes da vontade dos que falam; 6) atos de fonagdo igualmente voluntérios, necess4rios para a execugao dessas combinagoes. Nada existe, portanto, de coletivo na fala; suas manifesta- gSes sio individuais e momentaneas. No caso, nao ha mais que a soma de casos particulares segundo a férmula: Gere erry Por todas essas razées, seria ilusério reunir, sob o mesmo ponto de vista, a lingua e a fala. O conjunto global da lingua- gem € incognoscivel, j4 que nZo é homogéneo, ao passo que a diferenciagao e subordinagZo propostas esclarecem tudo. Essa é a primeira bifurcagdo que se encontra quando se procura estabelecer a teoria da linguagem. Cumpre escolher entre dois caminhos impossiveis de trilhar ao mesmo tempo; devem ser seguidos separadamente. Pode-se, a rigor, conservar o nome de Lingiiistica para cada uma dessas duas disciplinas e falar duma Lingiiistica da fala. Serd, porém, necessério nZo confundi-la com a Lingiiis- tica propriamente dita, aquela cujo tinico objeto é a lingua. Unicamente desta ultima é que cuidaremos, e se por acaso, no decurso de nossas demonstragdes, pedirmos luzes ao estudo da fala, esforgar-nos-emos para jamais transpor os limites que separam os dois dominios. 28 caPiTULO V ELEMENTOS INTERNOS E ELEMENTOS EXTERNOS DA LINGUA Nossa definic&éo da lingua supde que eliminemos dela tu- do o que She seja estranho ao organismo, ao seu sistema, numa palavra: tudo quanto se designa pelo termo “Lingiiistica ex- terna”, Essa Lingiiistica se ocupa, todavia, de coisas impor- tantes, e € sobretudo nelas que se pensa quando se aborda o estudo da linguagem. Incluem elas, primeiramente, todos os Pontos em que a Lingiustica confina com a Etnologia, todas as relagdes que podem existir entre a histéria duma lingua e duma raga ou civilizagao. Essas duas histérias se associam e mantém rela- Ses reciprocas, Isso faz recordar um pouco as correspondén- cias verificadas entre os fenémenos lingiisticos propriamente ditos (ver p. 15 s.). Os costumes duma nacgado tém repercussdo na lingua e, por outro lado, é em grande parte a lingua que constitui a Nagao. Em segundo lugar, cumpre mencionar as relagdes existen- tes entre a lingua e a histéria politica, Grandes acontecimen- tos histéricos, como a conquista romana, tiveram importancia incalculavel no tocante a intimeros fatos lingiiisticos. A colo- nizagio, que nao & sendo uma forma de conquista, transporta um idioma para meios diferentes, 0 que acarreta transformagées nesse idioma. Poder-se-ia citar, como prova, toda sorte de fatos: assim, a Noruega adotou o dinamarqués quando se uniu politi camente 4 Dinamarca; é verdade que, hoje [cerca de 1910}, os no- ‘wegueses procuram libertar-se dessa influéncia lingiiistica. A 29 politica interna dos Estados nao tem menor import&ncia para a vida das Knguas: certos governos, como a Suica, admitem a coexisténcia de varios idiomas; outros, como a Franga, as- piram & unidade lingijistica, Um grau avangado de civiliza- Ho favorece o desenvolvimento de certas linguas especiais (lin- gua juridica, terminologia cientifica etc.). Isto nos leva a um ‘terceiro ponto: as relagdes da lingua com instituigdes de toda espécie, a Igreja, a escola etc. Estas, por sua vez, estio intimamente ligadas ao desenvolvimento literdrio de uma lingua, fenémeno tanto mais geral quanto é insepardvel da histéria politica. A lingua literaria ultrapassa, em todas as partes, os limites que Ihe parece tragar a litera- tura: recorde-se a influéncia dos salées, da corte, das acade- mias, Por outro lado, suscita a avultada questo do conflito que se estabelece entre ela e os dialetos locais (ver p. 226); © lingitista deve também examinar as relagGes reciprocas entre a lingua literdria e a lingua corrente; pois toda lingua literdria, produto da cultura, acaba por separar sua esfera de existéncia da esfera natural, a da lingua falada. Enfim, tudo quanto se relaciona com a extensdo geografica das linguas eo fracionamento dialetal releva da Lingiiistica externa, Sem diivida, é nesse ponto que a distingado entre ela e a Lingiiistica interna parece mais paradoxal, de tal modo © fenémeno geogrdfico esta intimamente associado a existén- cia de qualquer lingua; entretanto, na realidade, ele nfo afeta 0 organismo interno do idioma. Pretendeu-se ser absolutamente impossivel separar todas essas questées do estudo da lingua propriamente dita. Foi um ponto de vista que prevaleceu sobretudo depois que tanto se insistiu sobre tais “Realia”. Do mesmo modo que a planta é modificada no seu organismo interno pelos fatores externos (terreno, clima etc.) assim também no depende o organismo gramatical constantemente dos fatores externos da modifica~ ¢Ho lingiiistica? Parece que se explicam mal os termos téc- nicos, os empréstimos de que a lingua esta ingada, quando se dei- xa de considerar-lhes a proveniéncia. Ser4 possivel distinguir © desenvolvimento natural, organico, dum idioma, de suas for- mas artificiais, como a lingua literéria, que sao devidas a fa- tores externos, por conseguinte inorgdnicos? Nao se vé cons- 30 tantemente desenvolver-se uma lingua comum a par dos dia- Tetos locais? Pensamos que o estudo dos fendmenos lingiifsticos é mui- te frutuoso; mas é falso dizer que, sem eles, nao seria possivel conhecer 0 organismo lingiifstico interno, Tomemos, por exem- plo, o empréstimo de palavras estrangeiras; pode-se comprovar, inicialmente, que nio se trata, de modo algum, de um elemen- to constante na vida duma lingua. Existem, em certos vales retirados, dialetos que jamais admitiram, por assim dizer, um 86 termo artificial vindo de fora. Dir-se-4 que esses idiomas estao fora das condigées regulares da linguagem, incapazes de dar-nos uma idéia da mesma, e que exigem um estudo “tera- tolégico” por nao terem jamais sofrido mistura? Cumpre so- bretudo notar que o termo emprestado nao é considerado mais como tal desde que seja estudado no seio do sistema; ele existe somente por sua relagdo € oposig¢ao com as palavras que lhe esto associadas, da mesma forma que qualquer outro signo autéctone. Em geral, nado é nunca indispensdvel conhecer as circunstancias em meio as quais se desenvolveu uma lingua. Em relagio a certos idiomas, como o zenda e o p4leo-eslavo, no se sabe exatamente sequer quais povos os falaram; tal igno- rancia, porém, de nenhum modo nos obsta a que os es- tudemos interiormente e a que nos demos conta das transfor- magées que sofreram. Em todo caso, a separagio dos dois pontos de vista se impSe, e quanto mais rigorosamente for ob- servada, melhor sera. A melhor prova disso é que cada um deles cria um métode distinto. A Lingiiistica externa pode acumular pormenor so- bre pormenor sem se sentir apertada no torniquete dum sis- tema. Por exemplo, cada autor agrupard como Ihe aprouver os fatos relativos 4 expansio duma lingua fora de seu territério; se se procuram os fatores que criaram uma lingua literdria em face dos dialetos, poder-se-A sempre usar a enumeragio simples; se se ordenam os fatos de modo mais ou menos sisteméatico, isto é feito unicamente devido a necessidade de clareza. No que concerne a Lingiiistica interna, as coisas se pas- sam de modo diferente: ela nao admite uma disposi¢io qual- quer; a lingua é um sistema que conhece somente sua ordem prépria. Uma comparagio com o jogo de xadrez far4 com- 31 preendé-lo melhor. Nesse jogo, é relativamente facil distin- guir o externo do interno; o fato de ele ter passado da Pérsia para a Europa é de ordem externa; interno, ao contrario, é tudo quanto concerne ao sistema e as regras, Se eu substituir as pecas de madeira por pecas de marfim, a troca sera indife- rente para o sistema; mas se eu reduzir ou aumentar o numero de pegas, essa mudanga atingird profundamente a “gramatica” do jogo. Nao é menos verdade que certa atengiio se faz ne- cess4ria para estabelecer distingdes dessa espécie. Assim, em cada caso, formular-se-4 a questéo da natureza do fenémeno, e para resolvé-la, observar-se-d esta regra: é interno tudo quan- to provoca mudanga do sistema em qualquer grau. 32 capfruLo vt REPRESENTAGAO DA LINGUA PELA ESCRITA § 1. NEGESSIDADE DE ESTUDAR ESTE ASSUNTO, O objeto concreto de nosso estudo ¢, pois, o produto so- cial depositado no cérebro de cada um, isto é, a lingua. Mas tal produto difere de acordo com os grupos lingitisticos: o que nos é dado sao as linguas. © lingilista est4 obrigado a conhe- cer o maior numero possivel delas para tirar, por observacao e comparagao, o que nelas exista de universal. Ora, geralmente, nés as conhecemos somente através da escrita, Mesmo no caso de nossa lingua materna, o documen- to intervém a todo instante. Quando se trata de um idioma falado a alguma distancia, ainda mais necessdrio se torna re- correr ao testermunho escrito; e com mais forte razio no caso de idiomas que no existem mais. Para poder dispor, em todos os casos, de documentos diretos, seria mister que se tivesse feito, em todas as épocas, aquilo que se faz atualmente em Viena e Paris: uma colegao de amostras fonograficas de todas as linguas. Seria preciso, outrossim, recorrer a escrita para dar a conhecer aos outros o$ textos registrados dessa maneira. Dessarte, conquanto a escrita seja, por si, estranha ao sis- tema interno,, é impossivel fazer abstragdo dum processo por via do qual a lingua é ininterruptamente representada; cumpre conhecer a utilidade, os defeitos e os inconvenientes de tal processo. § 2. Presticio DA ESCRITA: GAUSAS DE SEU FREDOMINIO SOBRE A FORMA FALADA. Lingua e escrita sio dois sistemas distintos de signos; a unica razao de ser do segundo é representar o primeiro; o obje- to lingiiistico nao se define pela combinagio da palavra escrita e da palavra falada; esta dltima, por si 86, constitui tal objeto. Mas a palavra escrita se mistura to intimamente com a pala- vra falada, da qual é a imagem, que acaba por usurpar-lhe © papel principal; terminamos por dar maior importancia 4 representacio do signo vocal do que ao préprio signo. £& como se acreditéssemos que, para conhecer uma pessoa, melhor fos- se contemplar-Ihe a fotografia do que 0 rosto. Semelhante ilusio existiu em todas as épocas e as opinies correntes acerca da lingua esto influenciadas por ela. Assim, acredita-se, de modo geral, que um idioma se altere mais rapi- damente quando njo exista a escrita: nada mais falso. A es- crita pode muito bem, em certas condigées, retardar as modi- ficagdes da lingua, mas, inversamente, a conservacao desta nao é, de forma alguma, comprometida pela auséncia de escrita. O lituano, que se fala ainda hoje na Prissia oriental e numa parte da Riissia, s6 é conhecido por documentos escritos a par- tir de 1540; nessa época tardia, porém, ele oferece, no con- junto, uma imagem to fiel do indo-europeu quanto o latim do século ITI antes de Cristo. Isso basta para mostrar o quan- to a lingua independe da escrita. Certos fatos lingiiisticos deveras ténues se conservaram sem 0 auxilio de qualquer notag’o. Durante todo o periodo do alto alemZo antigo, escreveu-se tdten, fuolen e stézen, a0 passo que, nos fins do século XII, aparecem as grafias téten, fiielen, em contraposigao a stdzen, que subsiste. Donde pro- yém esta diferenga? Em todos os casos em que se produziu, havia um y na silaba seguinte; 0 protogerm4nico apresenta- va *daupyan, *folyan, mas *stautan. No limiar do periodo literrio, por volta de 800, esse y se enfraqueceu tanto que a escrita nZo conservou nenhuma lembranca dele durante trés séculos; ele deixara, no entanto, um ligeiro trago na pronincia; e eis que, por volta de 1180, como se viu acima, reaparece mi- lagrosamente sob a forma de metafonia! Dessarte, sem o re- Red curso da escrita, esse matiz de prontincia se transmitiu ¢om exatiddo. A lingua tem, pois, uma tradicZo oral independente da escrita e bem diversamente fixa; todavia, o prestigio da forma escrita nos impede de vé-lo, Os primeiros lingilistas se enga- naram nisso, da mesma maneira que, antes deles, os huma- nistas, O préprio Bopp nao faz diferenga nitida entre a letra ® 0 som; lendo-o, acreditar-se-ia que a lingua fosse insepard- vel do seu alfabeto. Os sucessores imediatos de Bopp cafram na mesma cilada; a grafia th da fricativa p fez crer a Grimm, no somente que esse som era duplo, mas, inclusive, que era uma oclusiva aspirada; dai o lugar que ele the assinala na sua lei_da transformagdo consonantica ou “Lautverschiebung” (ver p. 168). Ainda hoje, homens esclarecidos confundem a lingua com a sua ortografia; Gaston Deschamps nio dizia de Berthelot “que ele preservara o francés da ruina” porque se opusera A reforma ortogrAfica? . Mas como se explica tal prestigio da escrita? 1° Primeiramente, a imagem grafica das palavras nos im- pressiona como um objeto permanente e solide, mais adequade do que o som para constituir a unidade da lingua através dos tempos. Pouco importa que esse liame seja superficial e crie uma unidade puramente facticia: ¢ muito mais f4cil de apre- ender que o liame natural, o dnico verdadeiro, 0 do som. 2° Na maioria dos individuos, as impressdes visuais sio mais nitidas e mais duradouras que as impressdes acisticas; dessarte, eles se apegam, de prefer€ncia, as primeiras. A ima- gem grafica acaba por impor-se & custa do som. 3° A lingua literéria aumenta ainda mais a import&ncia imerecida da escrita. Possui seus diciondrios, suas graméti- cas; € conforme o livro e pelo livro que se ensina na escola; a lingua aparece regulamentada por um cédigo; ora, tal cédigo é ele préprio uma regra escrita, submetida a um uso rigoroso: a ortografia, e eis o que confere 4 escrita uma import&ncia pri- mordial. Acabamos por esquecer que aprendemos a falar an- tes de aprender a escrever, e inverte-se a relagZo natural. 4° Por fim, quando existe desacordo entre a lingua e a ortografia, o debate é sempre dificil de resolver por alguém que oS nao seja o lingitista; mas como este nfo tem voz em capitulo, a forma escrita tem, quase fatalmente, superioridade; a escrita Se arroga, nesse ponto, uma importancia a que nado tem direito. § 3. Os SISTEMAS DE ESCRITA. Existem somente dois sistemas de escrita: 1.° © sistema ideogrdfico, em que a palavra é represen- tada por um signo tnico e estranho aos sons de que ela se compée, Esse signo se relaciona com o conjunto da palavra, € por isso, indiretamente, com a idéia que exprime. O exem- plo classico deste sistema é a escrita chinesa. 2° © sistema dito comumente “fonético”, que visa a re- produzir a série de sons que se sucedem na palavra. As escri- tas fonéticas sio tanto silabicas como alfabéticas, vale dizer, ba- seadas nos elementos irredutiveis da palavra. Além disso, as escritas ideogrdficas se tornam facilmente mistas: certos ideogramas, distanciados de seu valor inicial, ter- minam por representar sons isolados. Dissemos que a palavra escrita tende a substituir, em nosso espirito, a palavra falada: isso é verdadeiro quanto aos dois sistemas de escrita, mas tal tendéncia é mais forte no primeiro. Para o chinés, o ideograma e a palavra falada so, por idén-~ tico motivo, signos da idéia; para ele, a escrita é uma segunda Mingua, e na conversagao, quando duas palavras faladas tém © mesmo som, ele recorre amitide & palavra escrita para expli- car seu pensamento. Essa substituico, porém, pelo fato de poder ser absoluta, nio tem as mesmas conseqiiéncias deplo- raveis que na nossa escrita; as palavras chinesas dos diferentes dialetos que correspondem a uma mesma idéia se incorporam igualmente bem no mesmo signo grafico. Limitaremos nosso estudo ao sistema fonético, e especial- mente Aquele em uso hoje em dia, cujo protétipo é o alfabeto grego. No momento em que um alfabeto desse género se estabe- lece, ele reflete a lingua de maneira assaz racional, a menos que se trate de um alfabeto tomado de empréstimo e ja inqui- 36 nado de incoeréncias. No que respeita a légica, o alfabeto grego é particularmente notavel, conforme veremos na p. 50. Mas essa harmonia entre a grafia e a proniincia ndo dura. Por qué? Eis o que cumpre examinar. § 4. Causas DO DESAGORDO ENTRE A GRAFIA E A PRONUNCIA. Tais causas sio numerosas; cuidaremos apenas das mais importantes, Em primeiro lugar, a lingua evolui sem cessar, ao pass que a escrita tende a permanecer imével. Segue-se que a grafia acaba por nZo mais corresponder Aquilo que deve representar. Uma notag&o, coerente num momento dado, ser& absurda um século mais tarde. Durante certo tempo, modifica-se o signo grafico para conformé-lo As mudangas de pronincia, mas de- pois se renuncia a isso. Foi o que aconteceu, em francés, no tocante a oi. Pronunciava-se: Escrevia-se: no século XI. 1. ret, let rei, lei no século XIII . 2. roi, loi roi, loi no século XIV . 3. roé, loé roi, loi no século XIX . 4, rwa, twa roi, loi Desse modo, até a segunda época levaram-se em conta as muudangas ocorridas na pronincia; a uma etapa da historia da lingua corresponde uma etapa na da grafia. Mas a partir do século XIV, a escrita permaneceu estaciondria, ao passo que a lingua prosseguia sua evolugao, e desde esse momento houve um desacordo sempre mais grave entre ela e sua ortografia, Por fim, como se continuasse a associar termos discordantes, o fato Tepercutiu sobre o préprio sistema da escrita: a expresso gra- fica of assumiu um valor estranho aos elementos de que se formara. Poder-se-iam multiplicar indefinidamente os exemplos, As- sim, por que escrever mais (“mas”) ¢ fait (“fato”) quando pro- nunciamos mé-e fé? Por que o ¢ tem amitide em francés 0 37 valor de s? Porque conservamos grafias que nao tém mais ra- zo de ser. Essa causa age em todos os tempos; atualmente, o | pala- tal francés se converte em jod; os franceses pronunciam essuyer, éveyer, mouyer como essuyer, nettoyer; mas continuamos a es- erever éveiller, mouiller. Outra causa de desacordo entre a grafia e a pronincia: quando um povo toma emprestado a outro seu alfabeto, aconte- ce freqiientemente que os recursos desse sistema grafico nao se prestam adequadamente 4 sua nova fungio; tem-se de recorrer a expedientes; por exemplo, utilizar-se-o duas letras para desig- nar um % som. E o caso do # (fricativa dental surda) das Iinguas germanicas: como o alfabeto latino nao oferece nenhum signo para representd-lo, ele é expresso pelo th. O rei mero- vingio Chilperic tentou acrescentar as letras latinas um sinal ¢s- pecial para representar esse ‘som; todavia, nao teve éxito, e 0 uso consagrou o th. O inglés da Idade Média possuia um e fe- chado (por exemplo, em sed, “semente”) e um ¢ aberto (por, exemplo, em ied, “conduzir”): nao oferecendo o alfabeto sig- nos distintos para os dois sons, cuidou-se de escrever seed e lead. Em francés, para representar a chiante, 5, recorre-se ao signo duplo ch etc., etc. Existe ainda a preocupagio etimolégica; foi ela preponde- rante em certas épocas, por exemplo na Renascenga. Freqiien- tes vezes, inclusive, um erro etimolégico impde uma grafia; as- sim, introduziu-se um d na palavra francesa poids (“peso”), como se ela viesse do latim pondus, quando na realidade vem de pensum. Mas pouco importa que a aplicagéo do principio seja correta ou nio: é o proprio principio da escrita eti gica que est4 errado. As vezes, a causa nos escapa; certas excentricidades nao tém sequer a desculpa da etimologia. Por que se escreve em alemio thun em vez de tun? Afirma-se que o / representa a as- piraglo que segue a consoante; nesse caso, seria necess4rio intro- duzi-la sempre que semelhante aspiragao se apresente, e existe um grande nimero de palavras que jamais a receberam (Tugend, Tisch etc.). 38 § 5. Ergrros pessz DESACORDO, Seria demasiado extenso enumerar as incoeréncias da es crita. Uma das mais deploraveis ¢ a multiplicidade de signos Para representar um mesmo som. Assim, para o 2, temos em francés: j, g, ge (joli, geler, geai); para o z: ze s; para o 5, ¢, ge t (nation); ss (chasser), se (acquiescer), s¢ (acquies- gant), x (dix); para o k: c, qu, k, ch, ce, equ (acquérir). In- versamente, diversos valores sao representados pelo mesmo sig- no: dessarte, ¢ representa ¢ ou s, g representa g ou 2 etc. Assinalemos ainda as “grafias indiretas”, Em alemao, con- quanto ndo existam consoantes duplas em Zettel, Teller etc., es- creve-se tt, If com a 36 finalidade de indicar que a vogal pre- cedente é breve e aberta. & por via de uma aberragZo do mesmo género que o inglés acrescenta um ¢ mudo final para alongar a vogal precedente; comparem-se made (pronuncia-se méd) e mad (pronuncia-se mad). Esse e, que afeta na realidade a ini- ca stlaba, cria uma segunda silaba para o olho, Tais grafias irracionais correspondem ainda a algo na lin- gua; outras, porém, ndo significam coisa alguma. O francés atual nao possui consoantes duplas, salvo nos antigos futuros mourrai, courrai; nao obstante, nossa ortografia estd repleta de consoantes duplas ilegitimas (bourru, sottise, souffrir etc.). Acontece também que, por nao estar fixada e buscar sua regra, a escrita vacila; dai, essas ortografias flutuantes que re- presentam tentativas feitas em diversas épocas para figurar os sons, -Assim, ertha, erdha, erda, ou entao thri, dhri, dri, do alto alemio antigo, representam exatamente o mesmo elemento féni- co; mas qual? Impossivel sabé-lo por meio da escrita. Disso re- sulta a complicagZo de que, em face de duas grafias para uma mesma forma, nao se pode sempre decidir se se trata realmente de duas pronincias. Os documentos de dialetos vizinhos registram para a mesma palavra, uns asca, outros ascha; se forem os mes- Mos 06 sons, trata-se de um caso de ortografia flutuante; ou en- tio, a diferenga € fonolégica e dialetal, como nas formas gregas paizd, paizdd, paiddd. Ou ainda, trata-se de duas épocas suces- sivas; encontra-se em inglés primeiramente hwat, hweel etc., depois what, wheel etc.; estamos em presenga de uma mudanga de grafia ou de uma mudanga fonética? 39 O resultado evidente de tudo isso € que a escrita obscurece a visio da lingua; nao é um traje, mas um disfarce. Percebe- -se bem isso pela ortografia da palavra francesa oiseau, onde nenhum dos sons da palavra falada (wazo)}, é representado pelo seu signo préprio; nada resta da imagem da lingua, Outro resultado € que quanto menos a escritura represen- ta o que deve representar, tanto mais se reforga a tendéncia de tomé-la por base; 03 gramaticos se obstinam em chamar a aten- ¢4o para a forma escrita. Psicologicamente, o fato se explica muito bem, mas tem conseqiiéncias deploraveis. O emprego que se costuma fazer das palavras “pronunciar” e “pronincia” cons- titui uma consagragdo desse abuso e inverte a relacao legitima e real existente entre a escrita e a lingua. Quando se diz que cumpre pronunciar uma letra desta ou daquela maneira, toma- -se a imagem por modelo. Para que se possa pronunciar 0 of como wa, seria mister que ele existisse por si mesmo. Na reali- dade, é wa que se escreve of. Para explicar essa singularidade, acrescenta-se que, nesse caso, trata-se de uma prondncia excep- cional do o e do i; mais uma vez, uma expressao falsa, pois im- plica a dependéncia da lingua no tocante 4 forma escrita. “Dir- -se-ia que se permite tudo relativamente 4 escrita, como se o signo grafico fosse a norma. Essas ficcdes se manifestam até nas regras gramaticais, por exemplo na do A em francés. Temos palavras com inicial vo- c4lica sem aspiragao, mas que receberam h como reminiscéncia de sua forma latina; assim, homme (antigamente ome) por cau- sa de homo. Temos, porém, outras, vindas do germ4nico, em que o h foi realmente pronunciado: hache, hareng, honte etc. En- quanto existiu a aspiracao, esses nomes obedeceram 4s leis rela- tivas as consoantes iniciais; dizia-se: deu haches, le hareng, ao Passo que, segundo a lei das palavras iniciadas por vogal, dizia- se deu-z-hommes, Vomme, Nessa época, a regra: “diante do hk aspirado nao se fazem a ligagSo e a elisao” era correta. Atual- mente, porém, tal férmula é vazia de sentido; o A aspirado nao existe mais, a menos que se dé tal nome a essa coisa que nao € um som, mas diante da qual nao se fazem nem a ligagdo nem a elisio, Trata-se, pois, de um circulo vicioso, e 0 h nao passa de um ser ficticio, nascido da escrita. O que fixa a pronincia de uma palavra nao é sua ortogra- fia, mas sua histéria. Sua forma, num momento dado, repre- 40 senta um momento da evolugdo que ela se vé forgada a seguir e que é regulada por leis precisas. Cada etapa pode ser fixada pela que a precede. A tnica coisa a considerar, e a que mais se esquece, é a ascendéncia da palavra, sua etimologia. O nome da cidade de Auch é o§ em transcrigZ0 fonética. £ © tnico caso em que o ch da ortografia francesa representa { no fim da palavra. No constitui explicagéo dizer que o ch final 96 é pronunciado } nessa palavra. A tnica questdo é saber como o latim Auscii péde, com transformar-se, tornar-se of; a ortografia nao importa. Deve-se pronunciar gageure com 6 ou com ii? Uns res- pondem: gator, visto que heure se pronuncia ér. Outros dizem: nao, e sim gadiir, pois ge equivale a 2, em geéle por exemplo. Vo debate! A verdadeira questio € etimolégica: gageure se formou de gager, assim como tournure de tourner; pertencem ao mesmo tipo de derivagao: gaziir é a unica pronincia justificada; gazér € uma pronincia devida unicamente ao equivoco da escrita. Todavia, a tirania da letra vai mais longe ainda; a forga de impor-se 4 massa, influi na lingua e a modifica. Isso s6 acontece nos idiomas muito literdrios, em que o documento es- crito desempenha papel considerdvel. Ent&o, a imagem visual aleanga criar prondncias viciosas; trata-se, propriamente, de um fato patolégico, Isso se vé amitide em francés, Dessarte, para c nome de familia Lefévre (do latim faber) havia duas grafias, uma popular e simples, Lefévre, outra erudita e etimolégica, Lefébure, Gragas & confusio de v e u na escrita antiga, Lefébure foi lida Lefébure, com um 6 que jamais existiu realmente na palavra, e um u proveniente de um equivoco, Ora, atualmente esta forma é de fato pronunciada. E£ provavel que tais deformagGes se tornem sempre mais freqiientes e que se pronunciem cada vez mais as letras inuteis. Em Paris, ja se diz: sept femmes, fazendo soar o t: Darmesteter prevé o dia em que se pronunciardo até mesmo as duas letras fi- nais de vingt, verdadeira monstruosidade ortogrAfica. Essas deformagées fénicas pertencem verdadeiramente 3 lingua, apenas no resultam de seu funcionamento natural; sé0 devidas a um fator que lhe é estranho, A Lingijistica deve pé-las em observagdo num compartimento especial: so casos teratolégicos. 4 cariruLo va A FONOLOGIA § 1. Deriigio. Quando se substitui a escrita pelo pensamento, aqueles que so privados dessa imagem sensivel correm o risco de nao perceber mais que uma massa informe com a qual nZo sabemo que fazer. £ como se se tirassem os flutuadores de cortiga ao aprendiz de Ter-se-ia que substituir, de imediato, o artificial pelo natu- ral; isso, porém, é impossivel enquanto nao tenham sido estuda- dos os sons da lingua; pois, separados de seus signos graficos, eles representam apenas nogdes vagas, e prefere-se entdo o apoio, ain- da que enganoso, da escrita, Assim, os primeiros lingilistas, que nada sabiam da fisiologia dos sons articulados, caiam a todo ins- tante nessas ciladas; desapegar-se da Jetra era, para eies, perder © pé; para nés, constitui o primeiro passo rumo 4 verdade, pois € 0 estudo dos sons através dos préprios sons que nos proporcio- na o apoio que buscamos. Os lingilistas da época atual termina- ram por compreendé-lo; retomando, por sua prépria conta, pes- quisas iniciadas por outros: (fisiologistas, tedricos do‘ canto etc.), dotaram a Lingiiistica de uma ciéncia auxiliar que a libertou da palavra escrita, A fisiologia dos sons (em alem&o Lautphysiologie ou Sprach- physiologie) 6 freqiientemente chamada de “Fonética” (em ale- mio Phonetik, inglés phonetics, francés phonétique). Esse termo nos parece impréprio; substituimo-lo por Fonologia. Pois Fonética designou a principio, ¢ deve continuar a designar, o estudo das 42 evolugdes dos sons; nao se deveriam confundir no mesmo titu- Jo dois estudos absolutamente distintos. A Fonética é uma cién- cia histérica; analisa acontecimentos, transformagées e se move no tempo. A Fonologia se coloca fora do tempo, j4 que o me- canismo da articulagio permanece sempre igual a si mesmo, Longe de se confundir, esses dois estudos nem sequer podem ser postos em oposicZo. O primeiro ¢ uma das partes essenciais da ciéncia da lingua; a Fonologia, cumpre repetir, nao rsa de disciplina auxiliar e 86 se refere & fala (ver p. 26). divida, no vemos muito bem de que serviriam os Omen fonatérios se a lingua nio existisse; eles ndo a constituem, po- rém, e explicados todos os movimentos do aparelho vocal neces- s4rios para produzir cada impressio actstica, em nada se escla- receu o problema da lingua. Esta constitui um sistema baseado ha oposicao psiquica dessas impressOes acusticas, do mesmo mo- do que um tapete é uma obra de arte produzida pela oposigZo visual de fios de cores diferentes; ora, o que importa, para a and- lise, € © jogo dessas oposigdes e nao os processos pelos quais as cores foram obtidas, Para o bosquejo de um sistema de Fonologia, remetemo-nos ao Apéndice, p. 49; aqui, verificaremos tio-somente que oauxi- lio a Lingiifstica pode derivar dessa ciéncia para livrar-se das ilu- sdes da escrita. § 2. A EscriTa FoNoLécicA, O lingiiista exige, antes de tudo, que lhe seja fornecido um meio de representar os sons articulados que suprima qual- quer equivoco. De fato, indmeros sistemas gr4ficos foram pro- postos, Quais os principios de uma escrita fonolégica? Ela deve vi- sar a representar por um signo cada elemento da cadeia falada. Nem sempre se leva em conta essa exigéncia; assim, os fonolo- gistas ingleses, preocupados mais com a classificago do que com a andlise, tem, para certos sons, signos de duas e até mesmo trés letras, Além disso, a distingZo entre sons explosivos e sons implo- sivos (ver p, 26) deveria, como veremos, ser rigorosa- mente feita, 8 Haveria razGes para substituir por um alfabeto fonolégico a ortografia usual? Essa questZo tdo interessante pode apenas ser aflorada aqui; para nés, a escrita fonolégica deve servir ape- nas aos lingiiistas, Antes de tudo, como fazer ingleses, alemies, franceses etc., adotarem um sistema uniforme! Além disso, um alfabeto aplicdvel a todos os idiomas correria o risco de atravan- car-se de signos diacriticos; sem falar do aspecto desolador que apresentaria uma p4gina de um texto que tal, é evidente que, & forga de precisar, semelhante escrita obscureceria o que qui- sesse esclarecer e atrapalharia o leitor. Esses inconvenientes nao seriam compensados por vantagens suficientes. Fora da Ciéncia, a exatidao fonolégica nao é muito desejavel. Ha também a questZo da leitura. Lemos de dois modos: a palavra nova ou desconhecida é soletrada letra por letra; abar- camos, porém, a palavra usual e familiar numa vista de olhos, in- dependentemente das letras que a compdem; a imagem dessa pa- lavra adquire para nés um valor ideografico. Neste caso, a or- tografia tradicional pode reclamar seus direitos; é util distinguir em francés tant e temps, — et, est e ait, — du e di, — il devait e ils devaient etc. Aspiremos somente a ver a escrita desembara- cada de seus mais grosseiros absurdos; se, no ensino de linguas um alfabeto fonolégico pode ser util, nao se deveria generalizar- -lhe o emprego. § 3. Grfrica AO TESTEMUNHO DA ESCRITA, E, pois, um erro supor que, apés ter-se reconhecido o cara- ter falaz da escrita, a primeira coisa a fazer seja reformar a ortografia. O verdadeiro servigo que nos presta a Fonologia é permitir que tomemos certas precaugdes no tocante a essa for- ma escrita, pela qual devemos passar para chegar a lingua. O testemunho da escrita s6 tem valor com a condigao de ser inter- pretado. Diante de cada caso, cumpre tragar o sistema fono- légico do idioma estudado, isto é, 0 quadro dos sons de que ele se utiliza; cada lingua, de fato, opera com um nimero determi- nado de fonemas bem diferenciados. A tinica realidade que in- teressa ao lingilista é esse sistema, Os signos graficos consti- tuem apenas a imagem cuja exatidao cumpre determinar. A di- “4 ficuldade de tal determinagao varia contorme os idiomas e as circunstancias. Quando se trata de uma lingua pertencente ao passado, es- tamos limitados a dados indiretos; de quais recursos nos utiliza- Temos, entio, para estabelecer o sistema fonolégico? 1° Primeiramente, dos indicios externos, e, sobretudo, o tes- temunho dos contemporaneos que descreveram os sons e a pro- mancia de sua época. Assim, os gramaticos franceses dos séculos XVI e XVII, principalmente aqueles que se propunham a infor- mar os estrangeiros, deixaram-nos muitas observagies interes- santes, Essa fonte de informacao, porém, & pouco segura, por- que seus autores nao tém nenhum método fonoldgico. Suas des- crigées séo feitas com termos improvisados, sem rigor cientifico. Seus testemunhos tém de ser interpretados, por sua vez. Assim, os nomes dados aos sons fornecem indicios muito amiade ambi- guos: os gramaticos gregos designavam as sonoras (como b, d, g) pelo nome de consoantes “médias” (mésai) e as surdas (como pf, t, k) pelo nome de pstlai, que os latinos traduziam por tenués. 2.9 Podem-se obter informagdes mais seguras combinando esses primeiros dados com os indicios internos, que classifi- caremog sob duas rubricas. a) Indicios extraidos da regularidade das evolugdes fonéticas, Quando se trata de determinar o valor duma letra, é muito importante saber qual foi, numa época anterior, 0 som que ela representava, Seu valor atual é 0 resultado de uma evolugao que permite descartar desde logo certas hipéteses, Assim, nao sabe- Mos exatamente qual era o valor do ¢ sAnscrito, mas como ele é continuagao do & palatal indo-europeu, esse dado delimita cla- ramente o campo das suposigées. Se, além do ponto de partida, se conhece também a evolu- ¢40 paralela de sons andlogos da.mesma lingua na mesma épo- ca, pode-se raciocinar por analogia e estabelecer uma proporgéo. O problema é naturalmente mais facil quando se trata de determinar uma pronincia intermedidria da qual se conhece, ao mesmo tempo, o ponto de partida e o ponto de chegada. O eu francés (por exemplo em sauter) era necessariamente um di- tongo na Idade Média, pois se acha colocado entre um af mais 45 antigo e o do francés moderno; e¢ se nos inteiramos, por outra via, de que, num dado momento, o ditongo au ainda existia, ficamos bem seguros de que existia também no periodo prece- dente, Nao sabemos com exatid’o o que representava o z de uma palavra. como o antigo alto alemao wazer; mas os pontos de referéncia s4o, de um lado, o mais antigo water e, de outro, a forma moderna wasser. Esse z deve ser entZo um som interme- diério entre ¢ e 5; podemos rejeitar toda hipétese que sd seja concilidvel com o ¢ e com o 5; é impossivel, por exemplo, acre- ditar que tenha representado uma palatal, pois entre duas arti- culagdes dentais nfo se pode supor senao uma dental. b) Indicios contemporfneos. Sao de varias espécies. _ Por exemplo, a diversidade das grafias: encontramos escri- to, numa certa época do antigo alto alemao: wazer, zehan, ezan, nunca wacer, cehan etc. Se, de outro lado, encontramos tam- bém esan € essan, waser e wasser etc., concluiremos que esse z tinha um som muito préximo do s, mas bastante diferente do que era representado por ¢ na mesma época. Quando, mais tar- de, encontrarmos formas como wacer etc., isso provara que esses dois fonemas, outrora nitidamente distintos, chegaram mais ou menos a confundir-se. "Os textos poéticos si0 documentos preciosos para o conheci- mento da pronancia: conforme o sistema de versificagio se ba- seie no numero de silabas, na quantidade, ou na conformidade dos sons (aliteragao, assondncia, rima), tais monumentos nos for- necem informacées sobre esses diversos pontos. Se o grego dis- tingue certas longas pela grafia (por exemplo 4, escrito w), em outras descura tal precisio; € nos poetas que devemos buscar informagées sobre a quantidade de a, ie u. No antigo francés, a rima permite conhecer, por exemplo, até que época eram dife- rentes as consoantes finais dé gras e faz (latim facié, “eu fago’’) ca partir de que momento se aproximaram e se confundiram. A rima e a assonfncia nos ensinam ainda que no francés antigo os €¢ provenientes dum a latino (por ex.: pére de patrem, tel de talem, mer de marem) tinham um som totalmente diverso dos cutros ¢e. Jamais esses termos rimam ou fazem assonancia com elle (de illa), vert (de viridem), belle (de bella) etc. Mencionemos, para terminar, a grafia dos termos empresta- dos de uma lingua estrangeira, os jogos de palavras, os despro- 46 pésitos etc. Assim, em gético, kewtsjo nos informa a prondncia de cautio em baixo latim. A pronincia rwé para roi é atestada, para os fins do século XVIII, pela seguinte anedota citada por Myrop, Grammaire historique de la langue frangaise, I*, p. 178: num tribunal revoluciondério pergunta-se a uma mulher se ela nao dissera, perante testemunhas, que fazia falta um roi (rei) ; a mulher responde “que nfo falara de um roi, como Capeto ou qualquer outro, e sim de um rouet maitre, instrumento de fiar”. Todos esses processos de informagio nos ajudam a conhe- cer, em certa medida, o sistema fonolégico duma época ¢ a reti- ficar o testemunho da escrita, tornando-o proveitoso. Quando se trata de uma lingua viva, o Unico método ra- cional consiste em: a) estabelecer o sistema de sons tal como é reconhecido pela observago direta; &) observar o sistema de signos que servem para representar — imperfeitamente — os sons. Muitos gramaticos se prendem, todavia, ao velho méto- do, criticado mais acima, que consiste em dizer como se pronun- cia cada letra na lingua que querem descrever. Por esse meio, € impossivel apresentar claramente o sistema fonolégico dum idioma. Entretanto, é certo que j& se fizeram grandes progressos nesse dominio, e que os fonologistas muito contribuiram para re- formar nossas idéias acerca da escrita e da ortografia, 4 APENDICE PRINCIPIOS DE FONOLOGIA caPiTULO 1 AS ESPECIES FONOLOGICAS $1. Derinigfo po FONEMA. (Para esta parte, podemos utilizar a reproducao estenogra- fica de trés conferéncias feitas por F. de S, em 1897 sobre A Teo- ria da Silaba, onde toca também nos principios gerais do pri- meiro capitulo; além disso, uma boa parte de suas notas pessoais st refere 4 Fonologia; em muitos pontos, esclarecem e comple- tam os dados ministrados pelos cursos I e II (Org.).] Muitos fonologistas se aplicam quase exclusivamente ao ato de fonagao, vale dizer, 4 produgo dos sons pelos érgaos (larin- ge, boca etc.), e negligenciam o lado actistico, Esse método nao é correto: nao somente a impressfo produzida no ouvido nos é dada tao diretamente quanto a imagem motriz dos érgios, como também € ela a base de toda teoria. © dado acistico existe j4 inconscientemente quando se abordam as unidades fonoldgicas; pelo ouvido, sabemos o que ¢ um 6, um ¢ etc. Se se pudessem reproduzir por meio do cine- matégrafo todos os movimentos da boca e da laringe ao executa- rem uma seqiiéncia de sons, seria impossivel descobrir subdivi- sdes nessa seqiiéncia de movimentos articulatérios; nao se sabe 49 onde um som termina e outro se inicia. Como afirmar, sem a impressao acistica, que em fal, por exemplo, existem trés uni- dades, e nfo duas ou quatro? EF na cadeia da fala ouvida que se pode perceber imediatamente se um som permanece ou nao igual a si proprio; enquanto se tenha a impressZo de algo homo- géneo, éste som é Unico. O que importa nao é sua duracgio em colcheias e semicolcheias (cf. fai e fal), mas a qualidade de impressio, A cadeia acistica nao se divide em tempos iguais, mas em tempos homogéneos, caracterizados pela unidade de im- Pressio, e esse € o ponto de partida natural para o estudo fo- noldgico. Nesse sentido, o alfabeto grego primitivo merece nos- sa admiragZo, Cada som simples é nele representado por um unico signo grafico, e, reciprocamente, cada signo correspon- de a um som simples, sempre 0 mesmo, E uma descoberta de génio, que os latinos herdaram. Na escrita da palabra bérbaros, “barbaro”, ; ‘ r pA ‘ ° %, cada letra corresponde a um tempo | homogéneo; na figura acima, a linha horizontal representa a cadeia fénica e as barras verticais, as passagens de um som a vutro, No alfabeto grego primitivo, nio se encontram grafias complexas como o “ch” francés por 3, nem Tepresentages duplas de um som tinico como no francés 0 “s” e “s” por s, nem um sig- no simples para um som duplo, como 0 “x” por ks. Esse princi- pio, necessdrio e suficiente para uma boa escrita fonolégica, os gregos o realizaram quase integralmente ?. Os outros povos nao perceberam esse principio, e seus alfa- betos nao analisam a cadeia falada em suas fases acisticas homo- (1) “EB verdade que escreviam X,@,@ , por kh, th, ph; SEPQ representa pherd; mas € uma inovacio Posterior; as inscrigdes arcaicas es- crevem KHAPIE e ndo XAPIZ. As mesmas inscrigdes oferecem dois signos para o &, o kappa ¢ 0 koppa, mas © fato é diferente: tratava-se de consignar dois matizes reais da prontincia, pois o & era umas vezes pala- tal, outras velar; além disso, o Eppa desapareceu mais tarde. Enfim — Ponto mais delicado —, a8 inscrigdes primitivas gregas e latinas costu- mem consignar freqiientemente uma consoante dupla com uma letra sim- ples; assim a palavra latina fuisse era escrita FUISE; portanto, infragao do principio, pois esse duplo s dura dois tempos que, como veremos, niio sio hamogéneos e dio impressdes distintas; erro desculpavel, porém, pois cues dois sons, sem se confundirem, apresentam uma caracterfstica comum p. 64s.). 50 géneas. Os cipriotas, por exemplo, se detiveram em unidades mais complexas, do tipo pa, ti, ko etc.; essa notacio se chama sil4bica, designagio um pouco inexata, pois a silaba pode ser formada de conformidade com outros tipos como pak, ira ete. Qs semitas s6 assinalavam as consoantes: um termo como bdrbaros teria sido escrito por eles BRBRS. A delimitagao dos sons da cadeia falada s6 se pode apoiar, entdo, na impressio acistica; mas, para sua descrig&o, proce- de-se de modo diverso, Ela sé poderia ser feita com base no ato articulatério, pois as unidades acisticas, tomadas em sua pré- pria cadeia, nfo sio analisdveis. Cumpre recorrer 4 cadeia dos movimentos de fonagZo; entdo se nota que ao mesmo som igual corresponde o mesmo ato: b (tempo acistico) = 6’ (tem- po articulatério). As primeiras unidades que se obtém ao di- vidir a cadeia falada estarao compostas de b e b’; chamam-se fonemas; o fonema & a soma das impressées actisticas ¢ dos mo- vimentos articulatérios da unidade ouvida e da unidade fala- da, das quais uma condiciona a outra; portanto, trata-se j& de uma unidade complexa, que tem um pé em cada cadeia. Os elementos obtidos primeiramente pela andlise da ca- deia falada sfo como os elos dessa cadeia, momentos irredu- tiveis que ndo se podem considerar fora do tempo que ocupam. Assim, um conjunto como ta sera sempre um momento mais outro momento, um fragmento de certa extensio mais outro fragmento. Em compensasio, o fragmento irredutivel t, toma- do & parte, pode ser considerado in abstrato, fora do tempo. Pode-se falar do t em geral, como da espécie 7° (designare- mos as espécies por maitisculas), do i como da espécie J, levan- do-se em conta apenas o carter distintivo e deixando de parte aquilo que depende da sucesso no tempo. Do mesmo modo, um conjunto musical, do, re, mi nao pode ser tratado senao como uma série concreta no tempo; se tomo, porém, um des- ses elementos irredutiveis, posso consider4-lo in abstracto. Depois de ter analisado um nimero suficiente de cadeias faladas pertencentes a diversas linguas, chega-se a conhecer e a classificar os elementos com os quais elas operam; entao se verifica que, postos de lado os matizes acusticamente indife- rentes, o nimero de espécies dadas nao é indefinido. A lista ¢ a descrigio pormenorizada podem ser encontradas nas obras il especializadas'; queriamos mostrar aqui em que principios constantes e muito simples se fundamenta toda classificagio desse género, Digamos, porém, antes de tudo, algumas palavras acerca do aparelho vocal, do jogo possivel dos érgios e do papel des- ses mesmos 6rgios como produtores de som. § 2. O APARELHO VOCAL E SEU FUNCIONAMENTO 2. 1. Para a descrigao do aparelho vocal, limitamo-nos a uma figura esquemiatica, onde A designa a cavidade nasal, B a cavidade bucal, C a laringe, que contém a glote ¢ entre as duas cordas vocais, Na boca é essencial distinguir os labios @ ¢ a, a lingua B-y (B designa o Apice e y todo o resto), os dentes superiores d, 0 Palato, que compreende uma parte anterior, éssea e inerte fh, © uma parte posterior, mole e mével ou véu palatal i, e por fim, a dvula 8, As letras gregas designam os érgios ativos na articulagao © as letras latinas as partes passivas. A glote ¢, formada por dois musculos paralelos ou cordas vo- cais, se abre ou se fecha conforme elas se separam ou se juntam. A ocluséo completa nao entra, por assim dizer, em linha de conta; quanto a abertura, ela pode ser mais larga’ ou mais estreita. No primeiro caso, o ar passa livremente e as cordas vocais nao vibram; no segundo, a passagem do ar determina as vibragGes sonoras. Nao ha outra alternativa na emissio nor- mal dos sons. (1) Cf. Sievers, Grundziige der Phonetik, 5+ ed., 1902; Jespersen, Lehrbuch der Phonetik, 2* ed., 1913; Roudet, Eléments de’ phonétique genérale, 1910, (2) A desctigio um pouco sumdria de F. de Saussure fol comple- tada conforme o Lebrbuch der Phonetik, de Jespetsen, do qual toma- mos emprestado também o principio segundo o qual serio estabelecidas a seguit as fSrmulas dos fonemas. Mas trata-se de questdes de forma, de ajuste, ¢ 0 leitor se convenceré de que essas mudancas nio alteram em nada o pensamento de F. de Saussure, (Org.) 52 A cavidade nasal é um 6rgao completamente imd- vel; a passagem do ar po- de ser impedida pelo le- vantamento da iivula &, nada mais; é uma porta aberta ou fechada. Quanto A cavidade bu- cal, ela oferece um jogo de muitas variagdes posstveis: pode-se aumentar o com- primento do canal por meio dos labios, encher ou afrouxar as bochechas, re- duzir e até mesmo fechar a cavidade por meio de movimentos infinitamente diversos dos ldbios e da lingua. © papel desses mesmos 6rgos como produtores do som est4 na razao direta de sua mo- bilidade: mesma uniformidade na fungao da laringe e da cavi- dade nasal, igual diversidade na fungao da cavidade bucal. O ar expulso dos pulmées passa primeiramente pela glote, ende ha uma produgao possivel de um som laringeo pela apro- ximagio das cordas vocais. Nao é, porém, o jogo da laringe que pode produzir as variedades fonolégicas que permitem dis- tinguir e classificar os sons da lingua; sob esse aspecto, o som laringeo é uniforme. Percebido diretamente, tal como emitido pela glote, ele nos apareceria quase invaridvel em sua qualidade. O canal nasal serve unicamente de ressoador as vibragdes vocais que o atravessam; nao desempenha, portanto, nenhum papel como produtor de som. Ao contrario, a cavidade bucal acumula as fungoes de ge- rador ¢ ressoador de som. Se a glote est4 muito aberta, nenhu- ma vibragio laringea se produz, e 0 som que se ouvir procede- rA somente da cavidade bucal (deixemos aos fisicos a tarefa de decidir se se trata de um som ou simplesmente de um ruf- do). Se, ao contrério, a aproximagio das cordas vocais faz 33 vibrar a glote, a boca intervém principalmente como modifi- cador do som laringeo, Dessarte, na produgao do som, os fatores que podem entrar em jogo sfo a expiragao, a articulacio bucal, a vibragdo da la- tinge e a ressonancia nasal. Mas enumerar esses fatores de produgio do som nio é ain- da determinar os elementos diferenciais dos fonemas, Para clas- sificar estes ultimos, importa menos saber em que consistem que saber o que os distingue uns dos outros. Ora, um fator negativo pode ter maior importncia para a classificagao que um fator positivo. Por exemplo, a expiracao, elemento positivo, mas que intervém em todo ato fonatério, nZo tem valor dife- renciador; ao passo que a auséncia de ressonancia nasal, fator negativo, serviri, do mesmo modo que sua presenga, para ca- racterizar os fonemas. O essencial ¢, pois, que dois dos fatores enumerados acima sao constantes, necessdrios e suficientes para a produg&o do som: a) a expiragao 6) a articulag%o bucal, enquanto os outros dois podem faltar ou sobrepor-se aos pri- meiros: ¢) a vibragio da laringe d) a ressonincia nasal. De outro lado, sabemos j4 que a, c e d sdo uniformes, en- quanto 6 comporta variedades infinitas. Além disso, deve-se lembrar que um fonema fica identifi- cado quando se determinou o ato fonatdrio, ¢ que, reciproca- mente, se terZo determinado todas as espécies de fonemas quando se hajam identificado todos os atos fonatérios, Ora, estes, como’ o mostra nossa classificagio dos fatores em jogo na produgio do som, acham-se diferenciados somente pelos trés dltimos, Ser4 necessdrio, ento, estabelecer para cada fonema: qual é a sua articulacao bucal; se ele comporta um som laringeo (~~) ou nfo ([]); se comporta uma resso- nancia nasal (...) ou no ([]). Quando um desses trés ele- 4 mentos no est& determinado, a identificagdo do som é incom- pleta; mas desde que sejam conhecidos os trés, suas combina- gies diversas determinam todas as espécies essenciais de atos fonatérios, Obtém-se assim o esquema das variagdes possiveis: a1 n = Art. bucal | Art. bucal | Art. bucal | Art. bucal do] 7 : A coluna I designa os sons surdos; a II os sons sonoros; a HI os sons surdos nasalizados; a IV 0s sons sonoros nasalizados. Mas uma incdgnita persiste: a natureza da articulagio bucal; importa, pois, determinar-lhe as variages possiveis. § 3. CLassimicagio DOs SONS CONFORME SUA ARTICULACAO BUCAL, Classificam-se geralmente os sons conforme o seu ponto de articulago, Nosso ponto de partida sera diferente. Seja qual for o ponto de articulagio, sempre apresenta uma certa aber- tura, isto é, um certo grau de abertura entre .os dois limites ex- tremos que sio: a oclusio completa e a abertura maxima. So- bre essa base, e indo da abertura minima a abertura méxima, os sons serfo classificados em sete categorias, designadas pelos mimeros 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6. E somente no interior de cada uma delas que repartiremos os fonemas em diversos tipos, conforme © seu ponto proprio de articulagao. Nés nos ateremos 4 terminologia corrente, se bem que ela seja imperfeita ou incorreta em varios pontos: termos como guturais, palatais, dentais, liquidas etc., sio todos mais ou me- nos ilégicos, Seria mais racional dividir o palato em certo nime- ow ro de dreas; desse modo, e levando-se em conta a articulagao lingual, poder-se-ia sempre dizer diante de que ponto se acha, em cada caso, o estreitamento principal. Inspirar-nos-emos nes- sa idéia e, utilizando as letras da figura da p. 53, simboliza- remos cada articulagao por uma formula em que o niimero de abertura se acha colocado entre a letra grega que assinala o érgao ativo (4 esquerda) e a letra latina que designa o érgi0 passivo (4 direita). Desse modo, B o ¢ quer dizer que, com 0 grau de abertura correspondente A oclusao completa, a ponta da lingua 8 se aplica contra os alvéolos dos dentes supe- riores em ¢. Finalmente, dentro de cada articulagio, as diversas espé- cies de fonemas se distinguem pelas concomitancias — som la- ringeo e ressondncia — cuja auséncia seré um elemento de di- ferenciaga’o tanto quanto sua presenga, # conforme esse principio que iremos classificar os sons. Trata-se de um simples esquema de classificagdo racional; nao devemos esperar encontrar nele fonemas de cardter cqmplexo ou especial, seja qual for sua import&ncia pratica, por exemplo as aspiradas (ph, dh etc.), as africadas (ts, di, pf etc.), as consoantes molhadas, as vogais fracas (9 ou ¢ mudo etc.), nem, inversamente, fonemas simples, desprovidos de importancia pra- tica_e que nfo entram em linha de conta como sons dife- renciados. A —~ Apertura Zero: Octusivas, — Essa classe abrange todos os fonemas obtidos pelo fechamento completo, a oclusio hermética, mas momentinea, da cavidade bucal. Nao cabe examinar se o som é produzido no instante do fechamento ou no da abertura; em verdade, pode produzir-se dos dois mo- dos (ver p. 64 s.). Conforme o lugar de articulagao, distinguem-se trés tipos principais de oclusivas; o tipo labial (p, b, m), o tipo dental (t, d, 2), 0 tipo chamado gutural (k, g, %). O primeiro se ar- ticula com os dois ldbios; no segundo, a extremidade da lingua se aplica sobre o palato, na parte anterior; no terceiro, o dorso da lingua fica em contato com a parte posterior do palato, Em muitas linguas, principalmente no indo-europeu, dis- tinguem-se claramente duas articulagdes guturais, uma palatal, sobre j-h, outra velar, sobre i, Mas em outras linguas, como 56 no francés por exemplo, negligencia-se tal diferenga, ¢ 0 ouvi- do assimila um & posterior, como o de court, e um & anterior, como o de qui. © quadro seguinte mostra as férmulas desses diversos fo- nemias. As nasais m, n, i sio propriamente oclusivas sonoras na- salizadas; quando se pronuncia amba, a twula se ergue para fechar as fossas nasais, no momento em que se passa de m para b, Em teoria, cada tipo possui uma nasal sem vibragio glé- tica, isto €, surda; assim € que nas linguas escandinavas exis- te m surdo apés uma surda; encontrar-se-jam exemplos tam- bém em francés, mas os falantes no véem nisso um elemento diferencial. As nasais figuram entre parénteses no quadro; com efeito, se sua articulagZo comporta um fechamento completo da boca, a abertura do canal nasal thes confere um cardter de abertura superior (ver classe C). B — Asertura 1: FRricaTivas ou EXPIRANTES, carac- terizadas por um fechamento incompleto da cavidade bucal, que permite a passagem do ar. A designagio de expirante ¢ muito geral; a de fricativa, sem nada dizer de grau de fechamento, lembra a impressio de fricg3o produzida pela passagem do ar (latim: fricare). Nesta classe, n3o nos podemos ater a trés tipos como na Primeira categoria. Antes do mais, as labiais propriamente ditas (correspondentes as oclusivas pe b) sao de uso muito raro; fa- remos abstragdo delas; elas sio ordinariamente substituidas pe- las ldbio-dentais, produzidas pela aproximag3o do labio inferior a7 e dos dentes (f ¢ v, em francés) ; as dentais se dividem em mui- tas variedades, segundo a forma que toma a extremidade da Yingua no fechamento (oclusio); sem descrevé-las pormenori- zadamente, designaremos por 8, 8’ € B” as diversas formas que toma o dpice. Nos sons que afetam 0 palato, o ouvido distin- gue geralmente uma articulagao anterior (palatais) e uma ar- ticulago posterior (velares) }. . Existe nas fricativas o que corresponderia a m, a; n etc., nas oclusivas, a saber, um v nasal, um z (s sonoro) nasal etc.? & fAcil sup6-lo: assim, ouve-se um v nasal no francés inventor; mas, em geral, a fricativa nasal nfo é um som de que a lingua tenha consciéncia. C — Asertura 2: Nasats (ver acima, p. 57). D — AsertuRA 3: Liguipas. (1) Fiel a seu método de simplificagio, F. de Saussure nao acre- ditou dever fazer uma distingZo na classe A, malgrado a importincia con- siderdvel das dues séries Ki ¢ Ks, no indo-europeu. Ocorre no caso uma omisso voluntéria, (Org.) 58 Duas espécies de articulacao surgem nessa classe: 1) A articulag3o lateral: a lingua se apéia contra a par- te anterior do palato, deixando, porém, uma abertura a direita e 4 esquerda, posic¢io representada por um em nossas férmu- ‘las. Conforme o ponto de articulagao, distinguem-se | dental, ? palatal ou “‘molhado” e ¢ gutural ou velar. Em quase todas as linguas, esses fonemas sao sonoros como b, z etc. Entre- tanto, a surda nao é impossivel; ela existe mesmo no francés, onde um / apés uma surda ser4 pronunciado sem o som larin- geo (por exemplo, em pluie, por oposi¢zo a bleu); nao temos, porém, consciéncia dessa diferenga, Indtil falar de 7 nasal, muito raro e nao diferenciado, se bem que exista, sobretudo apés um som nasal (por exemplo no francés bralant). 2) A articulagao vibrante: a lingua se coloca menos préxi- ma do palato do que para o |, mas vibra com um nimero varidvel de golpes (signo y em nossa fSrmula), e assim-se obtém um grau de abertura equivalente ao das laterais. Essa vibragio pode ser produzida de dois modos; com a ponta da lingua aplicada A frente, sobre os alvéolos (r chamado “roulé” em francés), ou atrés, com a parte posterior da lingua (r “grasseyé” dos fran- ceses). Pode-se repetir, a respeito das vibrantes surdas ou na- sais, o que se disse das laterais, Além do grau 3, entramos noutro dominio: das consoantes passamos 4s vogais. Até agora, nao tinhamos previsto essa dis- tingo; € que o mecanismo da fonag%o permanece o mesmo. A férmula duma vogal.é exatamente comparivel & de qualquer consoante sonora. Do ponto de vista da articulacio bucal, nao existe distingo a fazer. Somente o efeito acistico é diferente. Passado um certo grau de abertura, a boca funciona principal- mente como ressoador, O timbre do som laringeo aparece ple- 359 namente e o ruido bucal desaparece. Quanto nais a boca se fecha, inais o som laringeo é interceptado; quanto mais se abre, mais diminui 0 ruido. £ assim que, de modo totalmente mecdnico, o som predomina na vogal. E — Abertura 4: i, u, i. Com relagZo 4s outras vogais, esses sons supdem um fe- chamento ainda considerdvel, bastante préximo do das consoan- tes, Disso resultam certas conseqiiéncias, que aparecerao mais tarde € que justificam o nome de semivogais dado geralmente a esses fonemas. O i se pronuncia com os labios retraidos (signo —) € ar- ticulagZo dianteira; 0 u com os labios arredondados (sinal °) e articulag3o posterior, & ‘com a posigao dos labios de u e ar- ticulago de Como todas as vogais, i, u, i tém formas nasalizadas; sio, todavia, raras, e podemos fazer abstragio delas, Deve-se notar que os sons escritos in e un na ortografia francesa correspon- dem a outra coisa (ver mais adiante). Existe um i surdo, vale dizer, articulado, sem o som da laringe? A mesma questo se coloca com referéncia a u e i, bem como para todas as vogais; essés fonemas, que correspon- deriam 4s consoantes surdas, existem, mas nao devem ser confun- didos com as vogais co- chichadas, isto é, arti- culadas com a_ giote relaxada. Podem equi- parar-se as vogais sur- das ao h aspirado pronunciado diante delas; assim, em ht se ouve, a principio, um i sem vibragdo, depois um i normal. F — Apertura 5: ¢, 0, 6, cuja articulagao corresponde respectivamente A de i, u, ii. As vogais nasalizadas so fre- qiientes: 2, 5, 5 (por exemplo em francés: pin, pont, brun). As formas surdas sio o h aspirado de he, ho, hé. N. B. — Muitas linguas distinguem aqui varios graus de abertura: assim, o francés tem pelo menos duas s¢ries, uma cha- 60 mada fechada: ¢, 3, 9 (por exemplo, em dé, dos, deux), a ou- tra aberta: ¢, 9, 9 (por exemplo, em mer, mort, meurt). ——— — eysi yay () (1 G — Apertura 6: a, aber- tura maxima, que tem uma forma nasalizada, um pouco mais fechada, certamente, @ {por exemplo em grand), e¢ uma forma surda, o h de ha. 61 caPiTULO 1 O FONEMA NA CADEIA FALADA § 1. NECESSIDADE DE ESTUDAR O05 SONS NA CADEIA FALADA, Podem-se encontrar nos tratados especiais, e sobretudo nas obras dos foneticistas ingleses, minuciosas andlises dos sons da linguagem. Bastam para que a Fonologia responda a seu destino de ciéncia auxiliar da Lingiifstica? Tantos pormenores acumula- dos nao tém valor por si sés; a sintese € 0 que importa. O lin. gitista nao tem necessidade alguma de ser um fonologista consu mado; ele pede simplesmente que the seja fornecide certo niime ro de dados necessérios para o estudo da lingua. Num ponte, o método dessa Fonologia ¢ particularmente defeituoso: no esquecer demasiadamente que na lingua nfo exis- tem apenas sons, mas extensdes de sons falados; tal Fonologia nao d& tampouco atengao suficiente as suas relagdes reciprocas. Ora, isso nfo € 0 que se nos oferece inicialmente; a silaba apa- rece mais diretamente do que os sons que a compéem, Ja vi- mos que certas escritas primitivas assinalaram as unidades sil4- bicas; foi sé mais tarde que se chegou ao sistema alfabético. Além disso, nao € nunca uma unidade simples que cria embaragos em Lingiifstica: se, por exemplo, em dado momen- to, numa determinada Ifngua, todo a se transformou em ¢, nada resulta dai; podemos limitar-nos a assinalar o fendmeno, sem pro- curar explicd-lo fonologicamente. A ciéncia dos sons nao adqui- re valor enquanto dois ou mais elementos nao se achem im- plicados numa relagéo de dependéncia interna; pois existe um 62 limite para as variagdes de um conforme as variagdes do outro; somente o fato de que haja dois elementos engendra uma rela- sao e uma regra, o que é muito diferente da simples verifica- g&o, Na busca do principio fonolégico, a ciéncia trabalha, en- t8o, em sentido contrério, com sua predilegio pelos sons isola- dos, Bastam dois fonemas para que nao se saiba mais onde se esté. Assim, no antigo alto alemao, hagl, balg, wagn, lang, donr, dorn, se tornaram mais tarde, hagal, balg, wagan, lang, donnar, dorn; desse modo, conforme a natureza e a ordem de sucesséo em grupo, o resultado é diferente: ora uma vogal se desenvolve entre duas consoantes, ora o grupo permanece com- pacto. Como, pois, formular a lei? De onde provém a dife- renga? Sem divida dos grupos de consoantes (gl, ig, gn etc.) contidos nessas palavras. EstA bem claro que se compéem de uma oclusiva que, num dos casos, € precedida, e noutro segui- da duma lIiquida ou duma nasal; mas que resulta disso? En- quanto se suponha sejam g e n quantidades homogéneas, nao se compreender4 por que o contato g-n produziria outros efeitos que no n-g. Ao lado da fonologia das espécies, existe, pois, lugar para uma ciéncia que tome como ponto de partida os grupos bind- tios e as seqiiéncias de fonemas, o que constitui coisa bem di- versa, No estudo dos sons isolados, basta verificar a posigio dos érgaos: a qualidade acistica do fonema nao entra em ques- tao; ela é fixada pelo ouvido; quanto & articulagiio, tem-se toda a liberdade de a produzir como se quiser. Mas quando se trata de pronunciar dois sons combinados, a questo é menos simples; estamos obrigados a levar em conta a discordancia pos- sivel entre o efeito procurado ¢ o efeito produzido; nao est& sempre ao nosso alcance pronunciar o que desejemos. A liber- dade de ligar as espécies fonolégicas é limitada pela possibi- lidade de ligar os movimentos articulatérios. Para nos darmos conta do que se passa nos grupos, necessdrio se faz fundar uma Fonologia onde eles seriam considerados como equacées algé- bricas; um grupo bindrio implica certo némero de elementos mec&nicos e€ acisticos que se condicionam reciprocamente; quando um varia, essa variacio tem, sobre os outros, uma re- Percussdo necessdria, que poderd ser calculada. Se algo existe no fenémeno da fonacdo com um cardter universal, que se anuncie como superior a todas as diversiday 63 des locais dos fonemas é, sem diivida, essa mecanica regula- da de que acabamos de falar. Por ai se vé a importancia que a fonologia dos grupos deve ter para a Lingiiistica Geral. En- quanto os fondlogos se limitam geralmente a dar regras para articular todos os sons, elementos varidveis e acidentais das lin- guas, essa Fonologia combinatéria circunscreve as_possibilida- des e fixa as relagdes constantes dos fonemas interdependen- tes. Assim, o caso de Aagl, balg etc. (ver p. 63) suscita a questo, tio discutida, das soantes indo-européias; ora, é esse o dominio onde menos se pode prescindir de uma Fonologia as- sim concebida, pois a silabagZo constitui, por assim dizer, o dni- co fato que tal Fonologia poe em jogo de comeco a fim, Nao é esse o nico problema a ser resolvido por tal método; um fato, todavia, € certo: torna-se quase impossivel discutir a questéo das soantes fora de uma apreciagac exata das leis que regem a combinagao dos fonemas. § 2. A mmpLosdo £ A EXPLOSAO. Partimos de uma observagio fundamental: quando se pro- nuncia um grupo appa, percebe-se uma diferenga entre os dois pp, dos quais o primeiro corresponde a um fechamento eo segundo a uma abertura. Essas duas impressdes sao bastan- te andlogas para que se tenha podido representar a seqiiéncia pp por um tinico p (ver p. 50, nota). Contudo, é essa dife- renga que nos permite distinguir, por meio de sinais espe- ciais (>> <<), 08 dois pp de appa (appa) e os caracterizar quando nao se seguem na cadeia (cf.: afta e atfa). A mesma distin- go pode ser levada a cabo além das oclusivas ¢ aplicar-se as fricativas (afja), 4s nasais (amma), as liquidas (alfa) ¢, em geral, a todos os fonemas, inclusive &s vogais (adda), exce- woa. . Chamou-se implosdo ao fcchamento e explosdéo 4 abertura; um f pode ser chamado de implosivo (p) ou explosiva (p). No mesmo sentido, pode-se falar de sons que se fecham ou se abrem. Sem divida, num grupo como appa, distingue-se, além da implosio e explosio, um tempo de repouso no qual a oclusio 64 se prolonga ad libitum, e, tratando-se de um fonema de abertu- ra maior, como no grupo alla, é a emissio do préprio som que se prolonga na imobilidade dos érgios. De modo geral, em toda cadeia falada existem essas fases intermedidrias, que cha- maremos tensdes ou articulagdes sustentadas, Mas clas podem ser equiparadas 4s articulages implosivas, pois seu efeito é and- logo; sé levaremos em conta, no que segue, implosdes ou ex- plosdes *, Esse _método, que nao seria admissivel num tratade com- pleto de Fonologia, justifica-se numa exposigfo que reduz a um esquema tao simples quanto possivel o fenémeno da sila- bacao considerado em seu fator essencial; nao pretendemos re- solver, com isso, todas as dificuldades que a divisio da cadeia falada em silabas apresenta, mas tZo-somente assentar uma base racional para o estudo desse problema, Ainda uma observagio: os diversos movimentos de abrir e fechar, necessérios para a emissio dos sons, nao devem ser confundidos com as diversas aberturas desses mesmos sons. Qual- quer fonema pode ser tanto implosivo como explosivo; mas é certo que a abertura influi na implosio e explosio, no sentido de que a distingZo de dois movimentos se torna tanto menos clara quanto maior for a abertura do som, Dessarte, com 07 e ii, percebe-se ainda muito bem a diferenga; em aia é possivel des- tacar um i que se fecha e um que se abre; do mesmo modo em aitia, auiia distingue-se nitidamente o som implosivo. do som explosivo que se segue, a tal ponto que a escrita, contra- riamente ao seu costume, assinala por vezes essa distingio; o w inglés, o j alem&o e amiide o y francés (em yeux etc.) re- Presentam sons que se abrem (i, #), em oposicgao a u e i, que (1) Este € um dos pontos da teoria que mais se prestam a discus- sio, Para prevenir certas objegées, pode-se fazer notar que toda arti- culagio sustentada, como a de um f, resulta.de duas forgas: 1.° a pressio do ar contra as paredes que se lhe opdem, e¢ 2.° a resisténcia dessas pare- des, que se estreitam para dar equilibrio A pressio. A tensio é, pois, apenas uma imploséo continua. Eis porque, se se seguirem uma impulsio ¢ uma tensio da mesma espécie, o efeito é continuo de principio a fim. Por tal motivo, nfo € ilégico reunir esses dois génetos de articulagio numa unidade mecdnica e actstica. A explosio se opde, ao contrério, a ome fore teunidas: €, por definico, um afrouxamento; ver também 6 (Org.). 65 sio empregados para i e 7. Mas num grau maior de abertura (€ e 0), a implosio e a explosio, teoricamente concebiveis (cf.: @éa, adéa), sao bastante dificeis de se distinguirem na pra- tica. Por fim, como vimos antes, em grau maior, 0 a j4 nao apresenta mais nem imploséo nem explosdo, pois para este fo- nema a abertura desfax qualquer diferenga desse género. £ necessdrio, pois, desdobrar o quadro dos fonemas, exceto para o a, estabelecendo como segue a lista das unidades irredu- tiveis: Pp, ete. zs ff etc. m in, etc. << r7, etc. =< Ty, ete. z= ee¢ ete, a Longe de suprimir as distingdes consagradas pela gra- fia (y, w), conservamo-las cuidadosamente; a justificagio deste ponto de vista se acha mais & frente, no § 7. Pela primeira. vez, saimos da abstraca4o; pela primeira vez, aparecem elementos concretos, indecomponiveis, ocupando um lugar e representando um tempo na cadeia falada. Pode-se dizer que P nfo era mais que_uma unidade abstrata reunindo as ca- racteristicas comuns de f e de f, as tnicas que se encontram na realidade, exatamente como B, P, M se retinem numa abs- tvagZo superior, as labiais. Fala-se de P como se se falasse duma espécie zoolégica; existem exemplares machos e fémeas, mas jamais um exemplar ideal da espécie. Sao essas abstragdes que até agora temos distinguido e classificado; é necessdrio, porém, ir mais longe e chegar ao elemento concreto, Foi um grande erro da Fonologia considerar como uni- dades reais essas abstragdes, sem examinar mais de perto a de- finigfo de unidade. O alfabeto grego chegara a distinguir ¢s- ses elementos abstratos, e a andlise que isso sup6e — como o 66 dissemos — era das mais notdveis; tratava-se, porém, de uma andlise incompleta, detida em certa etapa. Com efeito, que é um p, sem outra determinagao? Se © consideramos no tempo, como membro da cadeia falada, nao pode ser nem f, nem }, ainda menos $p, grupo claramente de- componivel; e se o considerarmos fora da cadeia falada e do tempo, nado é mais que algo sem existéncia propria e sem utili- zagZo possivel. Que significa em si um grupo como | + g? Duas abstragdes nao podem formar um momento no tempo. Outra coisa é falar de 7k, lk, tk, 1k, e reunir assim os verda- deiros elementos da fala. Vé-se porque bastam dois elemen- tos para confundir a Fonologia tradicional, e assim fica de- monstrada a impossibilidade de proceder, como ela o faz, por unidades fonoldgicas abstratas, Formulou-se a teoria de que, em todo fonema simples con- siderado na cadeia falada, por exemplo, p em pa ou apa, ocor- rem sucessivamente uma implosio e uma explosdo (Zfa). Sem diivida, toda abertura deve ser precedida de um fechamento; para considerar um outro exemplo ainda: se digo +P, apés ter feito o fechamento do r, deverei articular com a tvula um r* que se abre enquanto a oclusao do p se forma nos ldbios. Para respOnder, porém, a essa objecao, basta especificar bem qual é nosso ponto de vista. No ato fonatério que vamos analisar, leva- mos em conta apenas os elementos diferenciais, destacados para o ouvido e capazes de servir para uma delimitac’o das unida- de acusticas na cadeia falada, Somente essas unidades aciistico- -motrizes devem ser consideradas; assim, a articulagao do 1 ex- plosivo que acompanha a do p explosivo é inexistente para nés, pois nao produz um som perceptivel ou, pelo menos, porque nao conta na cadeia de fonemas. Este é um ponto essencial, que cumpre entender bem para poder acompanhar a exposiclo que se segue. (*) Trata-se, no caso, do r francés, dito grasseyé ou velar. (N. dosT’.) 67 § 3. ComnrnagdEs DIVERSAS DE EXPLOSOES E IMPLOSOES NA CADEIA. Vejamos, agora, o que deve resultar da seqiiéncia de ex- PlosGes ¢ implosdes nas quatro combinagées teoricamente pos- siveis: 1° <>, 2° ><, 3° <<, 4° > Dd. 1.° Grupo EXPLosivo-IMPLosivo (<>). Ha sempre a possibilidade de, sem romper a cadeia falada, unir dois fone- mas 9, primeiro dos quais é explosivo e o segundo implosivo. Ex.: &, &i, ya etc. (cf. sanscrito kita, francés kite, “quitter”, indo-europeu jmto etc.). Sem duvida, certas combinacées, como ff etc. nfo tém um efeito acistico suscetivel de realiza- go pratica, mas nao é menos verdade que, depois de ter ar- ticulado um & que se abre, os drgaos se acham na posigio exi- gida para proceder a um estreitamento num ponto qualquer. Estas duas fases podem suceder-se sem se obstarem mutua- mente. 2° Grupo IMpLosivo-ExPLosivo (> <)}. Nas mesmas condigées, e com as mesmas reservas, no existe impossibili- dade alguma de unir dois fonemas, o primeiro dos quais é implosivo € o outro explosivo; assim: ih, ki etc. )cf. grego haima, francés actif etc.). Evidentemente, ésses momentos articulatérios sucessivos nZo se seguem com a mesma naturalidade que no caso anterior. En- tre uma primeira implosio e uma primeira explosao, existe a diferenga de que a explosio, por tender a uma postura neu- tra da boca, no compromete 0 momento seguinte; ao passo que a imploso cria uma posigao determinada, que nao le ser- vir de ponto de partida a uma explosio qualquer. sempre mister, entZo, algum movimento de acomodacio, destinado a Ppropiciar a posigéo necess4ria para a articulagio do se- gundo fonema; assim, enquanto se executa o s de um grupo 7, é preciso fechar os labios para preparar o p que se abre. Mas a experiéncia mostra que esse movimento de acomodagio nZo produz nada de aprecidvel, a ndo ser um desses sons furtivos que no podemos levar em conta e que, em nenhum caso, estorvam © prosseguimento da cadeia. 3.° Ero ExPLosivo (<<). Duas explosdes podem pro- duzir-se consecutivamente; se a segunda, porém, pertencer a 68 um fonema de abertura menor ou igual, nao se ter& a sensa- Gao acustica de unidade que se perceber4 no caso contrario, e que apresentam os dois casos anteriores; ff pode ser pronun- ciado (pka), mas tais sons nao formam cadeia, pois as espécies Pe K sao de abertura igual. Esta proniincia pouco natural & que obteriamos detendo-nos depois do primeiro a de cha-pka?. Ao contrario, fr da uma impressio de continuidade (cf. fran- cés prix); 7} n&o apresenta maior dificuldade (cf. francés vien). Por qué? E que no momento em que se produz a pri- meira explosio, os érgaos j4 puderam colocar-se na posig¢fo exigida para executar a segunda exploso, sem que o efeito acustico da pfimeira tenha sido obstado; por exemplo, em prix, enquanto se pronuncia o p, os érgZos se encontram ja na po- siggo do 7. Mas é impossivel pronunciar em cadeia continua a série inversa 7p; nao que seja mecanicamente impossivel ado- tar a posigao de # enquanto se articula um ¥ que se abre, mas porque o movimento desse 7, encontrando a abertura menor do #, nio poder ser percebido. Se se quiser, entio, fazer ouvir 7p, ser& mister fazé-lo em duas vezes, e a emissio sera rompida. Um elo explosivé continuo pode compreender mais de dois elementos, contanto que se passe sempre de uma abertura menor para outra maior (p. ex.: krwa). Fazendo-se abstragZo de certos casos particulares, nos quais néo podemos insistir !, (1) Sem diivida, certos grupos desta categoria séo muito usuais em certas linguas (p. ex. At inicial em grego: cf.: Ateind); mas, se bem que faceis de serem pronunciados, nfo oferecem unidade acistica (Ver a nota seguinte). (2) Mercé de uma simplificagio deliberada, nao se considera aqui, no fonema, mais que o seu grau de abertura, sem levar em conta mem © ponto nem o cardter particular da articulagio (se se trata de uma surda ou de uma sonora, de uma vibrante ou de uma lateral, etc.). As conclusées tiradas do principio unico de abertura ndo podem entio aplicar-se a todos os casos reais, sem excepio. Assim, num grupo como trya, os tés primeiros elementos dificilmente podem ser pronunciados sem rompimento da cadeia: irjz (a ndo ser que o 7 se funda com 0 7, palatalizando-o); todavia, esses trés elementos fry formam uma cadeia explosiva perfeita (cf. outrossim a p. 79, a propdésito de meurtrier, etc.); a0 contrério, trwe nao oferece dificuldades. Citemos, ainda, cadeias como pila, etc, onde & bem diffcil nio pronunciar a nasal implosivamente (Binla)."Esses casos aberrantes sparecem sobretudo na explosio, que é, por natureza, um ato instantineo e nio sofre retardamentos (Org.). 69 ‘pode-se dizer que a numero possivel de explosdes acha seu li- mite natural no niéimero dos graus de abertura que se possa dis- tinguir praticamente, 42 © ELo impLosivo (> >) € regido pela lei inversa. Desde que um fonema seja mais aberto que o seguinte, tem-se a impressdo de continuidade (por exemplo 7, 72); se essa con- digZo no for satisfeita, se o fonema seguinte for mais aberto ou tiver a mesma abertura do precedente, a prontncia conti- nuar4 a ser possivel, mas a impressfio de continuidade desapa- rece; assim, # de aifta tem o mesmo cardter do grupo pk de chapka (ver antes, p. 68 s.). O fendmeno é inteiramente paralelo aquele que analisamos no elo explosivo: em 7, of, em virtude de seu grau inferior de abertura, dispensa o 7 da explosio; ou, se se considera um elo cujos dois fonemas nao se articulam no mesmo ponto, como 7m, o m nao dispensa a explosio do 7, mas, o que vem a dar na mesma, cobre-lhe com- pletamente a. explosio por meio de sua articulagéo mais fecha- da. SenZo, como no caso inverso m7, a explosao furtiva, mec&- nicamente indispensdvel, vem romper a cadeia falada. Vé-se que o elo implosivo, como o explosive, pode com- preender mais de dois elementos, se cada um deles tiver aber- tura maior do que o seguinte (cf. a73t). Deixando de parte as rupturas de elos, coloquemo-nos, agora, diante da cadeia continua normal, que se poderia chamar “fisiolégica”, tal como é representada pela palavra francesa particuliérement, ou seja: Bashaberind, Ela se caracteriza por uma sucessio de elos explosivos e implosivos graduados, que correspondem a uma sucessao de aberturas e fechamentos dos érgaos bucais. A cadeia normal assim definida d4 lugar as observagdes seguintes, de importancia capital. § 4. Limrre bE siLaBa E PONTO VOCALICO. Se, numa cadeia de sons, se passa de uma implosio a uma explosio (~> |<), obtém-se um efeito particular, que é 0 in- dice da fronteira de silaba, por exemplo no if de par- ticuligrement. Essa coincidéncia regular de uma condigo me- c&nica com um efeito acistico. determinado assegura ao grupo 70 implosivo-explosivo uma existéncia prépria na ‘ordem fonolé- gica: seu cardter persiste, sejam quais forem as espécies que 0 compéem; constitui ele um género que contém tantas espé- cies quantas combinagées possiveis existirem. A fronteira silébica pode, em certos casos, colocar-se em dois pontos diferentes de uma mesma série de fonemas, con- forme se passe mais ou menos rapidamente da implosio 4 ex- plosio. Assim, num grupo ardra, a cadeia nao € rompida, quer se silabe aFd/d@ ou a7dfa, pois &rd, elo implosivo, est tio bem graduado quanto d?, elo explosive. .O mesmo acontece- rd com iilye de particulicrement (iilye ou iije). Em segundo lugar, assinalaremos que. no ponto em que se passa do siléncio a uma primeira implosio (>), por exemplo, em 4rt de artista, ou de uma explosio a uma implosio (< >), como em pat de particularmente, 0 som onde se produz essa primeira implosio distingue-se dos sons vizinhos por um efeito préprio, que € o efeito vocalico. Este nao depende de modo algum do grau de abertura maior do som a, pois em fit, o r também o produz; é inerente 4 primeira implosao, seja qual for sua espécie fonolégica, vale dizer, seu grau de abertura: pouco importa, outrossim, que ocorra apés um siléncio ou uma explosio. O som que dA essa impressio, pelo seu cardter de primeiro implosivo, pode ser chamado ponto vocdlico. Deu-se também a essa unidade o nome de soante, cha- mando censoantes todos os sons precedentes ou seguintes da mesma silaba. Os termos vogal e€ consoante designam, como vimos na p. 59 s., espécies diferentes; soantes e consoantes in- dicam, ao contrario, fungdes na sflaba. Essa dupla terminologia permite evitar uma confusao que reinou por longo tempo. As- sim, a espécie J é a mesma em fidalgo e em piegas: é uma vogal; mas € soante em fidelgo € consonante em piegas. A andlise mostra que as soantes sio sempre implosivas e as con- soantes ora implosivas (por ex., % no inglés boi, escrito “boy”}, ora explosivas (p. ex. 3 no francés pye, escrito “pied”), Isso nip faz senio confirmar a distingio estabelecida entre as duas ordens. E verdade que, de fato, e, 0, @ sao regularmente soan- tes; mag trata-se de uma simples coincidéncia: tendo abertura maior que todos os outros sons, acham-se sempre no inicio de um elo implosivo. Inversamente, as oclusivas, que tem a aber- 7 tura minima, sao sempre consoantes. Na pratica, sdo os fone- mas de abertura 2, 3 e 4 (nasais, Nquidas, semivogais), que desempenham um ou outro papel, conforme sua vizinhanca e a natureza de sua articulagao. § 5. Critica As TEORIAS DE sILABAgAO, O ouvido percebe, em toda cadeia falada, a divisio em sflabas, e em toda silaba uma soante. Esses dois fatos sio co- thecidos, mas pode-se perguntar qual a sua razio de ser. Foram Propostas diversas explicagées: 1% Notando que alguns fonemas s4o mais sonoros que outros, procurou-se fazer repousar a silaba na sonoridade dos fonemas. Mas, entio, por que fonemas sonoros como i e u nao formam necessariamente silaba? E, depois, onde termina a s0- noridade, visto que fricativas como s podem formar silaba, por exemplo em pst? Se se trata somente da sonoridade relativa de sons em contate, como explicar grupos como ii (ex.: indo- -europeu *wlkos, “lobo”)}, onde é © elemento menos sonoro que forma silaba? 2.° E. Sievers foi o primeiro a estabelecer que um som classificado entre as vogais pode nao dar a impressio de vogal (vimos que, por exemplo, y e w nZo sio mais que i e u) ; quan- do, porém, se pergunta em virtude do que ocorre a dupla fun- Gao ou o duplo efeito acistico (pois o termo “fungao” nao quer dizer outra coisa) responde-s tal som tem fungZo con- forme receba ou no o “acento . Trata-se de um circulo vicioso: ou bem tenho liberdade, em qualquer circunstAncia, de dispensar a meu grado o acento silabico que cria as soantes, e ent&o nao h4 motivo para cha- mé-lo sildbico em vez de son4ntico; ou, se o acento sildbico tem algum sentido, sera porque aparentemente ele se justifica pelas leis da silaba. Nao apenas nao se enunciam tais leis, mas d&-se a essa qualidade sonantica o nome de “silbenbildend” (“formadora de silabas”), como se, por sua vez, a formagao da silaba dependesse de tal acento. Vé-se .que o nosso método se opde aos dois primeiros: pela andlise da silaba tal qual se apresenta na cadeia, obtive- 72 mos a unidade irredutivel, o som que se abre ou o que se fecha; a seguir, combinando estas unidades, chegamos a defi- nir o limite de silaba e o ponto vocdlico. Sabemos, entdo, em que condicées fisiolégicas tais efeitos acusticos devem produzir-se. As teorias criticadas acima seguem o curso inverso: tomam espé- cies fonolégicas isoladas e desses sons pretendem deduzir o limite de silaba e o lugar da soante, Ora, dada uma série qualquer de fonemas, pode haver uma maneira de articuld-los mais natural, mais cOmoda que outra; mas a faculdade de es- colher entre articulagées que se abrem.e que se fecham sub- siste em larga medida, e é dessa escolha, nao das espécies fono- légicas diretamente, que dependera a silabacdo. Evidentemente, essa teoria nao esgota nem resolve todas as questées. Assim, o hiato, de emprego to freqiiente, no é outra coisa senio um elo implosivo rompido, com ou sem in- terferéncia da vontade. Ex.: i — @ (em lia) ou @ — 7 (em saida), Ele se produz mais facilmente com as espécies fono- légicas de grande abertura. Ha também o caso dos elos explosivos rompidos, que, sem serem graduados, entram na cadeia fénica com o mesmo direito dos grupos normais; tocamos nesse caso a propésito do grego kteind, p. 69, nota. Consideremos, por exemplo, 0 gru- po pzta: sd pode ser pronunciado normalmente como pild; deve, ent&o, compreender duas silabas, e as tem, de fato, se se faz ouvir claramente o som laringeo do z; mas se o z € ensurdecido, tratando-se de um dos fonemas que exigem aber- tura menor, a oposigio entre z e a faz com que se perceba ape- nas uma silaba e que se ouga aproximadamente Bila. Em todos os casos desse género, quando a vontade e a in- tengo intervém, podem modificar e, em certa medida, mudar as necessidades do organismo; & amiude dificil dizer exatamen- te que parte cabe a cada uma das duas ordens de fatores, Mas seja qual for, a fonagdo sup6e uma sucesso de implosées e explosées, e tal é a condigo fundamental da silabagao. § 6. puRAgKo DA IMPLOSAO E DA EXPLOSAQ, Com explicar a silaba pelo jogo das explosées e implo- sdes, somos levados a uma observago importante, que nao é 73 senio a generalizagao de um fato de métrica. Distinguem-se, nas palavras gregas e latinas, duas espécies de longas: longas por natureza (mater) e por posigéo (factus). Por que fac é medido como longo em jactus? Responde-se: por causa do grupo ct; mas se isso se deve ao grupo em si, qualquer silaba iniciada por duas consoantes terd também quantidade longa; no entanto, nao é assim (cf, cliens etc.). A verdadeira razo est4 em que a explosio e a implosio sAo essencialmente diversas no que respeita 4 duragao. A pri- meira é sempre t&o répida que se torna uma quantidade irra- cional para o ouvido; por isso, ela jamais d4 a impressao vo- cdlica. Somente a implosdo pode ser percebida: dai a impres- séo de que nos demoramos mais na vogal com que a inicia. Sabe-se, por outro lado, que as vogais colocadas diante de um grupo formado de oclusiva ou fricativa + liquida, séo tra- tadas de dois modos: em patrem, 0 a pode ser, longo ou breve; isso se baseia no mesmo principio. De fato, ff e s so igual- mente pronuncidveis; a primeira maneira de articular permite que © a continue a ser breve; a segunda cria uma silaba longa. © mesmo tratamento duplo do a nao é possivel numa pala- vra como jfactus, porque somente f é Pronunciavel, com ex- clusio de cé. § 7. Os FONEMAS DE QUARTA ABERTURA. O DITONGO. QuesTGEs DE oRaFIA, Por fim, os fonemas de quarta abertura dao lugar a algu- mas observagées. Vimos na p. 65 s. que, contrariamente ao que se verifica para outros sons, 0 uso consagrou para aqueles uma dupla grafia («7 = ftju=t;y=hi=t. £ que em grupos como aiya, auwa, percebe-se, melhor que em quais- quer outros, a distingio mareada com ; 7 i dao cla- ramente a impressio de vogais, fe # a de consoantes!. Sem pretender explicar esse fato, observamos que esse i consoante (1) E mister nao confundir este elemento de quarta abertura com va fricativa palatal doce (Jiegen, no alemao do norte). Essa espécie fono- Iégica pertence as consoantes ¢ tem todas as caracterfcticas delas. 74 nao existe nunca na forma que se fecha. Assim, nao se pode ter um ai cujo 7 faga o mesmo efeito que o y de aiya (compa- re-se o inglés boy com o francés pied) ; é ent3o por posicao que o y € consoante ¢ o ¢ vogal, pois essas variedades da espécie J nao podem manifestar-se em todas as posicdes igualmente. As miesmas observagoes se aplicariam a ue w, de iw, Isto esclarece a questSo do ditongo, Este constitui apenas um caso especial do elo implosivo; os grupos Gita e uta sao absolutamente paralelos; nZo existe entre eles mais que uma di- ferenga de abertura do segundo elemento: um ditongo é um elo implosivo de dois fonemas, o segundo dos quais é relativa- mente aberto, donde uma impressio acistica particular: dir- -se-ia que a soante continua no_ segundo ‘elemento do grupo. Inversamente, um grupo como éya nao se distingue em nada de um grupo como ffa, a nao ser pelo grau de abertura da dl- tima explosiva. Isso equivale a dizer que os grupos chamados di- tongos ascendentes pelos fondlogos nao sZ0 ditongos, e sim gru- pos explosivo-implosivos cujo primeiro elemento é relativamente aberto, sem que disto resulte, porém, nada de particular fo ponto de vista acistico (ya). Quanto aos grupos do tipo to; Ya, com acento sobre o i € 7, tais como se encontram em alguns dialetos alemfes (cf. buob, liab), nao passam, igualmente. de ‘ falsos ditongos que n3o dao a impressio de unidade, como 3G, 23 etc.; no se pode pronunciar i como impl. + impl. sem rompimento da cadeia, a menos que, por via de um artificio, se imponha a esse grupo a unidade que ele nao tem por na- tureza. Tal definiggo do ditongo, que o reduz ao principio geral dos elos implosivos, mostra que ele nao é, como se poderia crer, algo discordante, inclassificavel entre os fendmenos fonolégicos. E inatil traté-lo como um caso a parte. Seu cardter préprio nao tem, em realidade, nenhum interesse ou importincia; nao € o fim da soante que importa fixar, e sim seu principio, E. Sievers e muitos lingiiistas distinguem pela escrita i, u, iy, p etc. e ju, i 1, n ete. G= = “unsilbisches” i, § = “silbisches” i), e escrevem mirta, mairta, miarta, enquanto nés escrevemos mirta, mairte, myarta. Tendo-se verificado que y € i sio da mesma espécie fonolégica, quis-se ter, antes de tudo, 0 mesmo signo genérico (sempre a mesma idéia de que a ca- 75 deia sonora se compoe de espécies justapostas!). Mas essa no- taco, ainda que baseada no testemunho do ouvido, é con- tréria ao bom senso e apaga justamente a diferenca que impor- taria fazer. Com isso, 1.°, confundem-se i, u que se abrem {— y, w) e i, u que se fecham; nao podemos, por exemplo, fazer distingao alguma entre newo e neuo; 2.°, inversamente, cindem-se em dois os i e u que se fecham {cf. mirta e mairta). Eis alguns exemplos das inconveniéncias dessa grafia. Seja o grego antigo dwis e dusi e, de outro lado, rhéwé e rehiima: essas duas oposigées se produzem exatamente nas mesmas con- digdes fonolégicas e se traduzem normalmente pela mesma oposigao grafica: conforme o wu seja seguido de um fonema mais ou menos aberto, éle se abre (w) ou se fecha (u). Escreva-se dyis, dusi,rheyé, rheyma, e tudo se apaga. Mesmo no indo- -europeu, as duas séries mater, matrai, materes, matrsu e sitneu, Sanewai, sitnewes, sunusu sao estritamente paralelas em seu duplo tratamento do r, de um lado, e do 4, do outro; na se- gunda, pelo menos, a oposigao das implosdes e explosdes se des- taca na escrita, ao passo que é obscurecida pela grafia aqui criticada (siinue, siineyai, sineyes, siinusu). Nao somente se- ria preciso manter as distingdes feitas pelo uso entre vogais que se abrem e que se fécham (u: w etc.), como cumpriria esten- dé-las a todo o sistema, e escrever, por exemplo, mater, maipai, malperes, matrsu; ent&o, o jogo da silabacdo aparece- ria com evidéncia; os pontos vocdlicos e os limites de silabas seriam deduzidos por si mesmos, Nota dos Organizadores. — Estas teorias esclarecem muitos problemas, alguns dos quais F. de Saussure tratou em suas ligdes. Daremos algumas amostras. 1. E. Sievers cita beritnnnn (alemao berittenen) como exemplo tipico do fato de o mesmo som poder funcionar alter- nativamente duas vezes como soante e duas vezes como consoan- te (na realidade, » nao funciona aqui senao uma: vez como consoante, e cumpre escrever beritnnn; pouco importa, porém). Nenhum exemplo é mais claro precisamente para mostrar que “som” e “espécie” no sao sinénimos. De fato, se permanecés- semos no mesmo 7, isto é, na implosio e na articulagdo susten- tada, obteriamos apenas uma Unica silaba longa. Para produzir uma alternancia de n soantes e consoantes, cumpre fazer seguir 76 a implosio (primeiro n) da explosdo (segundo n) e logo vol- tar A implosao (terceiro n). Como as duas implosdes nao estio precedidas de nenhuma outra, tem cardter sonfntico. 2. Em palavras francesas do tipo meurtrier, ouvrier etc., os finais -trier, -vrier no formavam outrora mais que uma si- laba (fosse qual fosse, alids, sua prontncia; cf. p. 69, nota). Mais tarde, comegou-se a pronunci4-las em duas sflabas (meur- -tri-er, com ou sem hiato, isto é, -77f@ ou -fije). A troca se produziu, nao colocando um “acento silébico” sobre o elemen- ta i, mas transformando sua articulagao explosiva em articula- ¢4o implosiva. O povo diz ouvérier por ouvrier: fenémeno bastante se- melhante, somente que, no caso, o segundo elemento e néo 0 terceiro foi que trocou de articulagdo e se tornou soante: uviyé — uvryé. Um e péde desenvolver-se, posteriormente, diante do r soante. 3. Citemos, ainda, o caso tao conhecido das vogais proté- ticas antes de s seguido de consoante em francés: latim Sciitum —> isciitum — francés: escu, écu. O grupo sk, vimo- -lo na p. 6S, é€ um elo rompido; Sf é mais natural. Mas este s implosivo deve fazer ponto vocilico quando esté no ini- cio da frase ou quando a palavra precedente termina por uma consoante de abertura fraca. Tanto o i como o e protéticos apenas exageram tal qualidade sondntica; todo carater fonolé- gico pouco sensive] tende a aumentar quando se insiste em con- servé-lo. £ 0 mesmo fenémeno que se reproduz -no caso de esclandre e nas pronimcias populares esquelette, estatue. E ainda o mesmo CaSo que se encontra na prondncia popular da preposigéo de, que se transcreve por ed: un ceil ed tanche. Por sincope, de tanche se tornou d’tanche; mas para se fazer sentir nessa posigio, o d deve ser implosivo:déanche, ¢ uma vogal se desenvolve diante dele como nos casos precedentes. 4. Basta apenas relembrar a questéo das soantes indo- -européias, e perguntar, por exemplo, por que o antigo alto ale- mio hagi se transformou em hagal, enquanto balg permaneceu intacto. © / desta ultima palavra, segundo elemento de um elo implosivo (bag), faz o papel de consoante e nao tinha razio alguma para trocar de fungio. Ao contrdrio, o I, igual- mente implosivo, de hagi fazia ponto vocdlico. Como era soan- a7 te, péde desenvolver diante de si uma vogal que se abre mais (um a, se dermos crédito ao testemunho da grafia). Por outro lado, ele se obscureceu com o tempo, pois hoje Hagel se pro- nuncia novamente hagl. & isto mesmo que faz a diferenga entre a pronincia dessa palavra e a do francés aigle; o I se fecha na palavra germ&nica e se abre na francesa com o ¢ mudo final (égle). 78 PrIMEIRA ParTE PRINCIPIOS GERAIS CAPITULO 1 NATUREZA DO SIGNO LINGUISTICO $1. SiGNo, sIGNIFICADO, SIGNIFICANTE. Para certas pessoas, a lingua, reduzida a seu principio es- sencial, € uma nomenclatura, vale dizer, uma lista de termos que correspondem a outras tantas coisas. Por exemplo: Tal concepgao é criticdvel em numerosos aspectos. Supéde idéias completamente _feitas, Ppreexistentes as palavras (ver, sobre isso, mais adiante (p. 130) ; ela nao nos diz se a pa- lavra é€ de natureza vocal ou psiquica, pois arbor pode ser considerada sob um ou outro aspecto; por fim, ela faz su- por que o vinculo que une um nome a uma coisa cons- titui uma operagao muito sim- ples, o que esté bem longe da ARBOR EQUOS ete. etc. verdade, Entretanto, esta visio simplista pode aproximar-nos da verdade, mostrando-nos que a unidade lingiiistica é uma coisa dupla, constituida da uniZo de dois termos. Vimos na p. 19 s., a propésito do circuito da fala, que o8 termos implicados no signo lingiiistico so ambos psiquicos e 79 esto unidos, em nosso cérebro, por um vinculo de associacio. Insistamos neste ponto. O signo lingiifstico une nao uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acustica!. Esta nao é 0 som ma- terial, coisa puramente fisica, mas a impresséo (empreinte) psi- quica desse som, a representagao que dele nos dé o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegamos a cha- mé-la “material”, é somente neste sentido, e por oposigz0 ao outro térmo da associagZo, o conceito, geralmente mais abstrato. O cardter psiquico de nossas imagens actisticas aparece cla- famente quando observamos nossa propria linguagem. Sem Movermos os ldvios nem a lingua, podemos falar conosco ow recitar mentalmente um poema. E porque as palavras da lingua séo para nés imagens acisticas, cumpre evitar falar dos “fonemas” de que se compéem. Esse térmo, que implica uma idéia de ago vocal, nao pode convir senZo & palavra falada, & realizagio da imagem interior no discurso. Com falar de sons ¢ de silabas de uma palavra, evita-se 0 mal-entendido, des- de que nos recordemos tratar-se de imagem acistica. O signo lingiiistico é, pois, uma entidade psiquica de duas faces, que pode ser representada pela figura: somente as vinculagdes consagra- Esses dois elementos esto in- Imagem acistica -_ das pela lingua nos parecem con- timamente unidos e um reclama o | outro. Quer busquemos o sentido formes a realidade, e abandonames toda e qualquer outra que se possa imaginar. da palavra latina arbor, ou a pa- lavra com que o latim designa o conceito “arvore”, esta claro que (1) © termo de imagem actistica parecerd, talvez, muito estreito, pois, ao lado da representacio dos sons de uma palavra, existe também a de sua erticulagao, a imagem muscular do ato fonatério. Para F. de Saussure, » & € essencialmente um depésito, uma coisa rece- bida de fore (ver p. 21). A imagem acistica é, por exceléncia, a Tepresentagao na‘ da palavra enquanto fato de lingua virtual, fora de toda realizagio pela fala. © aspecto motor pode, entio, ficar subenten- dido ou, em todo caso, no ocupar mais que um lugar subordinado em relacio & imagem acistica (Org.). 80 ENED Esta definigo suscita uma importante questo de termino- logia. Chamamos signe a combinagio do conceito e da ima- gem actstica: mas, no uso corrente, esse termo designa geral- mente a imagem acistica apenas, por exemplo uma palavra (arbor etc.). Esquece-se que se chamamos a arbor signo, é somente porque exprime o conceito “Arvore”, de tal maneira que a idéia da parte sensorial implica a do total. A ambigitidade desapareceria se designdssemos as trés no- gdes aqui presentes por nomes que se relacionem entre si, a0 mesmo tempo que se opSem. Propomo-nos a conservar o termo signo para designar o total, e a substituir conceito e imagem actstica respectivamente por significado ¢ stgnificante; estes dois termos tém a vantagem de assinalar a oposigdo. que os se- para, quer entre si, quer do total de que fazem parte. Quanto a signo, se nos contentamos com éle, é porque nZo sabemos por que substitui-lo, visto nfo nos sugerir a lingua usual nenhum outro. O signo lingiiistico assim definido exibe duas caracteri cas primordiais. Ao enuncid-las, vamos propor os principios mesmos de todo estudo desta ordem. § 2. Prratemo principio: A ARBITRARIEDADE DO SIGNO. O Jago que une o significante ao significado é arbitrdrio ou entio, visto que entendemos por signo o total resultante da associagZo de um significante com um significado, podemos dizer mais simplesmente: 0 signo lingilistico é arbitrdrio. Assim, a idéia de “mar” nao est4 ligada por relagao algu- ma interior A seqiiéncia de sons m-a-r que lhe serve de significan- te; poderia ser representada igualmente.bem por outra seqiiéncia, él n&o importa qual; como prova, temos as diferengas entre as linguas e a prépria existéncia de linguas diferentes: o significado da palavra francesa boeuf (“boi”) tem por significante 5-6-f de um lado da fronteira franco-germfnica, e o-k-s (Ochs) do outro. O principio da arbitrariedade do signo nao é contestado por ninguém; As vezes, porém, é mais fAcil descobrir uma ver- dade do que lhe assinalar o lugar que Ihe cabe. © principio enunciado acima domina toda a lingiiistica da lingua; suas conseqiléncias sio indmeras, £ verdade que nem todas apare- cem, 4 primeira vista, com igual evidéncia; somente ao cabo de varias voltas é que as descobrimos e, com elas, a importAncia primordial do principio, Uma observagaio de passagem: quando a Semiologia estiver organizada, dever4 averiguar se os modos de expressio que se baseiam em signos inteiramente naturais — como a pantomi- ma — lhe pertencem de direito. Supondo que a Semiologia os acolha, seu principal objetivo nao deixaré de ser o conjunto de sistemas baseados na arbitrariedade do signo. Com efeito, todo meio de expresso aceito numa sociedade repousa em principio num habito coletivo ou, o que vem a dar na mesma, Na convengéo. Os signos de cortesia, por exemplo, dotados freqiientemente de certa expressividade natural (lembremos os chineses, que satidam seu imperador prosternando-se nove vezes até o chao) nao estio menos fixados por uma regra; € essa re- gra que obriga a empregé-los, nao seu valor intrinseco. Pode- -se, pois, dizer que os signos inteiramente arbitrdrios realizam melhor que os outros o ideal do procediménto semiolégico; eis porque a lingua, o mais completo e o majs difundido sistema © de expresséo, € também o mais caracteristico de todos; nesse sentido, a Lingiiistica pode erigir-se em padrao de toda Semio- logia, se bem a lingua nfo seja sendo um sistema particular. Utilizou-se a palavra simbolo para designar o signo lin- gilistico ou, mais exatamente, o que chamamos de significante. Ha inconvenientes em admiti-lo, justamente por causa do nosso Primeiro principio. O simbolo tem como caracteristica nao ser jamais completamente arbitrario; ele nao esté vazio, existe um rudimento de vinculo natural entre o significante e o sig- nificado, O simbolo da justia, a balanga, nao poderia ser subs- tituido por um objeto qualquer, um carro, por exemplo. a2

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