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VAMOS SAIR DA CHUVA QUANDO A BOMBA CAIR Escrita em 1988 LELLEELEEREL EES SSSSLLEELERS SSS FFSEE 34 Daniel Dantas em foto de Beti Niemeyer Vamos Sair da Chuva Quando a Bomba Cair foi encenada pela primeira vez em 18 de Outubro dle 1991 no Teatro Candido Men- des no Rio de Janeiro. Foi dirigida pelo autor com o seguinte elen- co: Daniel Dantas Hassim Lucimara Martins Angela ‘Ghuva Quando a Bombs Cale 8 Vamos Sa Cenério: Casa de Hassim e casa de Angela. As duas casas sto contrastantes. Na casa de Hassim hd uma poltrona velha, daquelas com 0 estofado saindo pra fora, e uma geladeira modelo antigo, tipo arredondada. Na geladeira ha varios ade- sivos (herdis de quadrinhos, cantores de rock, gravuras pop eum cartaz do filme “Barfly”). Pelo chao, dezenas de latinhas de cerveja, garrafas vazias, cinzeiro, roupas, ténis, fitas cas- sefe, efc e um gravador. Hassim dorme em uma dessas ca- mas de armar, Na casa de Angela, ao lado de uma cama de ‘casal hé uma cadeira estilo colonial e uma espécie de arma- rio com cabides e roupas, No armério esté também a vista uma camera polaroid. (Palco escuro, 56 a luz do rédio reldgio de Angela. Hassim e Angela esto dormindo, cada qual em sua respectiva cama, ou melhor ain- dda, em sua respectiva casa. O radio reldgio de Angela toca ao mes- mo tempo que o despertador de Hassim. A luz vai subindo em resistencia. Angela senta na cama e consciente desliga o radio rel6- gio. Hassim demora um pouco mais, mas também desliga o des- pertador. Angela levanta, pega uma toalha e vai mar banho. Hassim Senta-se na cama com muito esforco e liga 0 gravador que comega a tocar um soul, entdo levanta-se com dificuldade e vai até a gela~ deira, abre, dé uma porrada na lateral da mesma e s6 entéo a luz LUVUSES SPER SET TT TTC C Cee ere eee Mirlo Bortoltto cende. A geladeira esté praticamente vazia, dentro dela s6 alguns wrates, uma lata j4 aberla de azeitonas e uma garrafa de vodka voovonal. Bebe um gole de vodka e faz uma careta. Pega a lata de vreitonas, a garrafa de vodka, ¢ telefone e senta-se na poltrona. ‘Angela sai do banho se enxugando na toalha, esté de calcinha. Vai vida frente do palco e fica come se estivesse alhando no espelho. assim abaixa o som do gravador e liga pra Angela que atende 0 seu telefone que € do tipo viva voz. Senta-se na cama tentando vestira calga.) ANGELA: Al6? (Hassim demora um pouco pra responder, antes fica cogando a riga com um certo desalento, depois pega uma azeitona, manda pra boca e s6 depois responde.) JASSIM: Oi ANGELA: £ voce, Hassim? (Esquece um pouco a calga que fica no meio das pernas) Eu nao acredito que voce esteja acordado 3s sete da manha. HASSIM: Eu coloquei o desperador pra trabalhar. que eu sabia que mais tarde eu nao ia te encontrar af, ¢ no teu trabalho € quase impossvel te achar. |ANGELA: Vocé sabe, eu quase nao fico 1a. Tenho que ir pra rua, atras dos canais. HASSIM: O que vocé 18 fazendo? ANGELA: Tentando entrar em uma calga jeans. HASSIM: Qual 0 problema? ANGELA: Um ou dois quilos mais. HASSIM: Seré que. ANGELA: Deixa de bobagem. Andei comendo demais nesses tlti- mos dias. $6 isso. HASSIM: Muito apetite também é um sintoma, Vamos Sar da Chuva Quando a Bomba Cait a” ANGELA: Bobagem. (Consegue colocar a calca ¢ fechar 0 ziper) Pronto, entrou, © que & que voce vai fazer agora de manha? HASSIM: Nao sei. Nao consigo ter planos pra um futuro muito dis- jante. Dormir, eu acho. ANGELA: E de produtivo? (Hass tira uma azeitona da lata e ga pra frente como se estives- se jogando para seu gato.) HASSIM: Acho que vou tomar um banho. ANGELA Era legal. (Vai pegar o sutid.) HASSIM: O que vocé té querendo dizer com ANGELA: O que? HASSIM: Isso de ser legal eu tomar um banho? ANGELA: Porra, Hassim, 16 tentando dizer que pode te fazer bem, $6 isso. HASSIM: Eu ando fedendo muito, né Angela? ANGELA: Um bom banho de vez em quando cai bem pra qualquer pessoa. {Coloca o sutia.) HASSIM: Porra, detesto isso. (Joga outra azeitona pro gato.) ANGELA: O que vocé ta fazendo agora? HASSIM: Nada demais. T0 bebendo. ANGELA: Cerveja? Logo de manha? Porra, Hassim, sete horas da manha nao é a hora mais apropriada pra se tomar cerveja HASSIM: Nao é cerveja. E vodka... nacional. ANGELA: Cara, teu figado nao dura mais dois anos. HASSIM: TO jogando azeitonas pro gato ANGELA: Aquele gato ainda esta por af? © que ele faz aff Af nunca tem comida HASSIM: Acho que ele 6 um gato existencialista, ou entao ele iden- tifica a minha casa com o beco imundo onde ele deve ter nasci- TUEVUEEE CTE S SSF TT FFT ESC e esse eee e eee 38 Mirio Boxtolotto do. Vai ver é um gato sentimental, um romantico, 6, eu acho ‘que ele é mesmo. Eu leio poemas do Walt Whitman pra ele © ele fica prestando a maior atengao. E um gato e tanto. ANGELA: Vocé devia dar um banho nele. HASSIM: E. (Em off, miado de reprovacao.) ANGELA (comega a procurar a blusa): Ele gosta de azeitonas? IASSIM: Acho que ele nao ia gostar. (Sorri pro gato.) ANGELA: Mas ele nao ta comendo? Entao pra que vocé ta dando azeitonas pra cle? |ASSIM: Azeitonas? E, eu 16 dando azeitonas pro gato. Ele cospe fora o carogo. Esse gato é um fendmeno. ANGELA: Mas vocé disse que ele nao ia gostar. JASSIM: Eu disse? (Coga os dedos dos pés.) Nao, eu tava dizendo que ele nao ia gostar de tomar banho, Ele no me parece o tipo dle gato que gosta de tomar banho. ANGELA: Nao tome o gato por vocé, Hassim. Como 6 que vocé sabe disso? HASSIM: Ele gosta de azeitonas. Esse gato gosta um bocado de aze! tonas. Gosta de azeitonas e de poemas do Whitman. Cé precisa ver ele comendo azeitonas € cuspindo fora o carogo. € formics- vel. Cé precisa produzir um espetculo com ele, Se voce o visse acabar concordando comigo. Esse gato nao ia gostar de to- mar um banho. ANGELA: As vezes nés temos que fazer algumas coisas que nao gostamos, HASSIM: E, {O gato mia de novo) A gente podia almogar. ANGELA (colocando o sapato): Nao vai dar. You comer um lanche no carro, Tenho que passar numa série de lugares hoje, ndo vai dar mesmo. Qual é 0 problema? Nao tem comida na tua casa? HASSIM: Tem. Tem uns tomates na geladeira... mas no tem s ‘Vamos Sar da, Chuva Quand a Borba Cair 39 ANGELA: Sei. Vamos fazer 0 seguinte, Hassim, a gente janta. 76 precisando mesmo levar um papo sério contigo. (Comera a ppassar 0 batom.) HASSIM: Onde? ANGELA: Restaurante Nature |ASSIM: Ah nfo, c@ sabe que eu no suporto aquele rango. Eu gosto mesmo € de um alimento mais substancial ANGELA: O que 6 que voc sugere? HASSIM: Uma churrascaria rodizio, uma ‘aurante self service, qualquer lugar assim onde a gente possa se empanturrar. ANGELA: Desse jeito eu néo vou parar nunca de engordar, af quando eu tiver bem gorda, vocé me troca por uma esqualida qualquer. izzaria rodizio, um res~ HASSIM: De jeito nenhum. As esquilidas fazem regime, nao se divertem e nao proporcionam diversao a ningu fdas s20 umas chatas. 56 tenho tesio por gordas esfomeadas. ANGELA: E alcodlatras. (Pega uma agenda e comeca a fazer anola- des) Vocé ta sem dinheiro? HASSIM: Eu dei uma forca pro seu Manoel na semana passada, ajude’ a resolver um probleminha af, ele ficou de me conseguir algum. Acho que vai pinta. ANGELA: Como é que um cara com 32 anos de idade pode viver esperando uma grana que vai pintar de um tal de seu Manoe! que ele ajudou a resolver um probleminha na semana passada? Desse jeito nao da mesmo pra comprar sal pra por no tomate, Hassim. HASSIM: Pode crer. ANGELA: P6, vocé podia ao menos contra argumentar. HASSIM: Cé té com a razao ndo ta? 40 Miri Bertolotto ANGELA: Mas que droga, viu Hassim, que droga! Mas também rnd t6 com tempo pra discutir nao, t atrasada. (Levanta-se pron- ta pra sair) E entao a gente janta hoje no Restaurante Natural? HASSIM: Vou ficar por aqui comendo azeitonas e tomate sem sal ANGELA: Eu te pago um cheese-tudo, Me encontra as oito no bar. (Desliga 0 telefone e sai fora. Hassim coloca uma roupa e sai tam- ‘bém. Vai para o bar esperar por Angela. Sobre a mesa do bar hé um cardépio. Hassim pega uma garraia de cerveja e um copo. Senta-se e passa a beber enquanto espera por Angela. Ela chega logo de- pois.) ANGELA: To atrasada? HASSIM: Claro que nao. Vocé é precisa, sempre. Nunca se atrasa Eu é que t6 adiantado, ANGELA: TO vendo que vocé jé pediu, né2 HASSIM: Algum problema? ANGELA: Problema nenhum, s6 que... vocé té sem dinheiro pra pagar, t6 certa? HASSIM: Ta, claro que té, mas é que eu achel que se tu tava dispos- ta a me pagar um cheese tudo, nao ia se importar de me pagar também uma cerveja. ANGELA: Nao é esse o problema. E se eu nfo viesse? E se eu faltas- Se a0 Nosso encontro, como & que vocé ia fazer pra pagar? HASSIM: Ah, 0 que é isso? Vocé vem, vacé sempre vem. ANGELA: Porra, cara, joga com a regativa, com a possibilidade de eu 80 vir, por mais remota que essa possibilidade possa te pa- recer. HASSIM: Se vocé marcou, vocé nio ia faltar, eu te conheco. ANGELA: Mas podia acontecer alguma coisa que me impedisse de vir. Pensa, podia pintar uma reunido inadiavel, um jantar pra fechar um contrato, cé sabe que esse tipo de imprevisto rola no meu trabalho. ‘Vamos Sair da Chuva Quando a Bomba Cai a HASSIM: Vocé me telefonava. ANGELA: E se pintasse de tiltima hora, e se eu ligasse pra sua casa nao te encontrasse mais 14? HASSIM: Vocé é tao responsdvel que tinha a manha de mandar um boy lado teu trampo com um bilhete explicando detalhadamente © motivo pelo qual vocé nao podia vir, e de quebra ainda man- dava uma grana pra eu pagar a provavel cerveja que eu prova~ velmente jé teria pedido. Cé pensa em tudo, cé é genial ANGELA: E se eu batesse o carro. E se eu tivesse sido assaltada, estuprada? E se inundasse o balneério? E se as ruas eslivessem alagadas, intransitaveis? E se houvesse um terremoto? E se 0 mundo acabasse? HASSIM: Teve uma época af que eu tava pensando em ir pra Lon- dres. Tava todo mundo indo, era 0 reftigio. Bom, af eu fiz um cursinho intensivo de lavador de pratos. ANGELA: Cara, vocé decididamente no existe. (Pausa) Cé t com fome, né? HASSIM: Hum-hum. ANGELA: Vamos providenciar esse sanduiche entao. Deixa eu ver aqui. (Otha o cardapio) Mas esse cheese-tudo... Meu Deus, 6 tudo mesmo, hein? Faz jus ao nome. Olha $6... salsicha, calabresa, ovo, bacon, ervilhas. HASSIM: E desse mesmo que eu gosto. ANGELA: Deve pintar um alto grau de oleosidade de brinde, Seus habitos alimentares sao dos mais saudaveis, (Pedindo) com, traz um cheese... HASSIM: Tudo. ANGELA: Como é que foi o seu dia? HASSIM: Movimentado... levei o gato pra passear no bondinho de Santa Teresa. ANGELA: Odeio gato. Bicho indi HASSIM: Eles miam. Nao serve pra nada. 2 Méro Bortletto ANGELA: £, miam, comem, dormem, fazem pélo. Utilissimos. Sou favoravelmente eco! vivas as baleias, mas deixem elas no oceano que € o lugar de- las, @ isso vale pro resto da fauna. De bicho em casa s6 mesmo. © pingiiim em cima da geladeira, |ASSIM: Mas esse gato é especial. Ele come azeitonas. Come azei- tonas e cospe fora 0 caroco. Tu precisa ver ele me olhando com aquela cara de quem té pedindo azeitona. ANGELA: Porta, Hassim, eu nio gosto de gato, mas jé t6 ficando com pena do bichinho, Elete olha pedindo leite ¢ cé da azeito- na pra ele? Acho que a questio af € que vocés nao esto se entendendo. Ai, tive um diz estressante hoje, e 0 pior de tudo é que eu tinha marcado de ve" meu filho e furou. Furou, cé enten- de? As coisas furam, até conigo, nem tudo o que a gente pro- grama dé pra fazer. Té preocupada com ele, com a formacao dele, fica o dia inteiro com 0 Claudio e o Claudio diz que fica 18, mas eu t6 sabendo que nao fica, deixa 0 garoto com a baba. Filho criado com baba é um troco sério, preocuipante. Eu nao sei, as vezes eu penso em coloci-lo numa escola, mas sei l4, tem s6 quatro anos, socializar a crianga desde cedo eu nao sei se 6 uma boa , nao sei mesmo. HASSIM: Vocé devia sair mais com ele, conviver mais ANGELA: E vooé acha que eu no quero? HASSIM: E por que nao faz? ANGELA: Eu 16 sobrecarregada de trabalho, alias sobrecarregada é Pouco. E t4 pintando mais contratos, clientes legais que nao dé pra recusar, lucidamente nao dé pra recusar, s6 enlouquecen- do, HASSIM: Vocé devia se permitir enlouquecer, ANGELA: Eu vou recusar os clientes e vou alegar 0 que? Que eu tenho que levar meu filho pra passear? Pra ver o por-cio-sol? HASSIM: £ um puta motivo. ANGELA: Se fosse assim tao simales... ‘Vamos Sair da Chuva Quando a Bomba Cai 3 HASSIM: Sabe, Angela, tem dias que eu fico olhando pra tie ai me bate uma inveja. E, inveja, eu fico olhando e digo, porra olha ai essa mulher, ela é fantastica, tem a maior energia, todo gas, leva uma vida frenética, conhece uma porgao de gente famosa, inte- ressante, as pessoas confiam nela, colocam suas vidas ¢ suas carreiras nas maos dela, ¢ ela cuida direitinho, nao decepciona ninguém, nao deixa ninguém na mao. Que mulher! Queria ser assim, eu penso, queria ter esse pique, vocé é a mulher com menos idade e mais bem sucedida que eu conhego. Entao eu diigo pra mim mesmo, vou pegar essa mulher incrivel como referencial e vou af nessa onda, mas af eu abro a janela e ta l4 um puta sol, eu ligo o radio e té rolando 0 maior reggae. Ai, guria, me dé um moleza, uma preguisa, ndo tem outro jeito, eu esqueco tudo, todos os planos, boto 0 caleao, vou dar um mer- gulho e depois fico I esticadao na areia, s6... tostando. Assim é que é, e eu vou te dizer, o Rio de Janeiro é que é 0 grande culpado, todos esses quilémetros de praia e esse clima quente tolhem qualquer iniciativa progressista. ANGELA; Nao bota a culpa no clima quente do Rio ndo, Hassim. Vocé nasceu em Porto Alegre que ¢ frio tempo integral e aposto que vocé sempre foi assim. HASSIM: E esse cheese-tudo que nao vern, hein? ANGELA: Tem que fazer concesstio, tem que abrir mao de uma série de facilidades, tem que trabalhar muito, tem que dormir cedo, acordar cedo, HASSIM: Eu durmo tarde e acordo tarde, o tempo que a gente pas- sa de olho aberto 6 0 mesmo. ANGELA: $6 0 rendimento que no, né, querido? E tem mais uma coisa, cara, tem que gostar muito do que faz. Eu gosto muito do que eu faco. HASSIM: Eu também. Eu curto. ANGELA: Eu imagino, mas vamos parar com as ligbes de uma pro fissional bem sucedida e vamos falar sobre algo que é bem mais * ° ° ° ° ° ° ° ° ° ° ° ° ° ° ° - ° ° ° ° e * * ° ° ° ° ° * ° * * “4 Maio Borolotio premente. Eu tive pensands e resolvi tomar uma decisio que eu acho muito importante, HASSIM: Tem a ver com a gente? ANGELA: Tudo a ver. |ASSIM: Legal cé ter essa iniciativa. Sou incapaz de tomar deci- sbes importantes, ANGELA: £, foi sempre eu, né? *oi eu que te abordei, foi eu que te beijei, foi eu que te levei pra cama, nunca o contrario. Se nao fosse eu, nao ia rolar nada entre nds. HASSIM: E eu sempre me asststando com vocé, né? Eu sempre entrei em panico com essas suas atitudes, Mas a gente vai se acostumando, ta tudo bem. ANGELA: Tenta nao entrar em panico de novo. Eu vou tomar mais uma. Eu quero que vocé venha morar comigo. (Pausa - Hassim fica sem resposta. Levanta-se e sai do bar sem conseguir falar. Caminha até a calcada, Fica sentado 1é fora. Angela vai até ele) Mais uma vez em panico. HASSIM: Eu nao entendo. Vocé quer que eu vi morar com voce? ANGELA: Eu nao me fiz entender? Eu quero ser feliz, Pra ser feliz tem uma série de coisas que a gente tem que conseguir. Tudo que eu quis eu batalhei pra conseguir, eu fui atras € peguei. Quando eu era garotinha, eu era esquisitinha, raquitica, miope. Eu fazia parte do seleto gruso das meninas feias que ninguém tira pra dancar. Af teve um dia que eu cansei de ficar sentada no banco tomando guarand, nesse dia eu comecei a tirar os meni- nos pra dancar. A partir dat sempre foi assim, tudo que eu quis, eu fui atrds € conquistei, cu pelo menos quase tudo. Faltam algumas coisas, mas 6 questio de tempo, eu continue tentando. HASSIM: Porra, j4t6 me sentinco um troféu na tua estante. Tu devia batalhar um troféu mais reltzente, Me ganhando vocé vai levar pra casa um trofeuzinho de shumbo, uma medalhinha de lato, dio mais que isso. ‘Vamos Sairda Chuva Quando a Bomba Cair 45 ANGELA: Vocé naéo me convence fazendo drama, Hassim. Pelo menos eu [4 vi melhores. Aceita, vai! Vem morar comigo. HASSIM: A gente € tio diferente, Eu sou um cara todo errado, eu cou um gaticho que mora no Rio de Janeiro ha quinze anos @ tem um nome turco. Com essa confustio toda, nem falar, eu consigo direito, cé ja reparou que as vezes eu falo tu, outras vezes vocé, guria, é uma zona, e eu nem gosto de kibe, nem de chimarrio... eu sou um cara todo errado, confuso, desorgani- ado, tua casa vai virar um caos comigo [é dentro, eu vou de- sarrumar tua casa, as roupas, tua cama, teus discos, teus li- vros, eu vou desarrumar a tua vida, ANGELA: Eu contrato uma empregada pra arrumar. HASSIM: Até a tua vida? ANGELA: Da minha vida eu me considero bastante capacitada pra cuidar sozinha. A gente aprende a conviver, vocé aprende a suportar a minha ordem e eu aprendo a suportar 0 teu caos. HASSIM: Vocé faz tudo parecer uma experiéncia fascinante, ANGELA: E6, Vai ser bom pra voce. Cé tem que aceitar que tudo 0 que falta na tua casa, sobra na minha. Me di um argumento mais forte pra vocé nao aceitar. HASSIM: Tem o gato, ANGELA: Que gato? |ASSIM: O das azeitonas. ANGELA: Sei, © que é que tem ele? HASSIM: Eu nao posso deixar ele 4, abandonado, ANGELA: Vocé td falando sério? HASSIM: Claro. Eu me afeicoei a ele. Ele vai ter que vir junto, sem ‘© gato nao vai dar pra ire tu disse que odeia gato. ANGELA: Hassim, vocé tem que entender que a presenga de um gato l4 em casa acarreta uma série de inconveniéncias. — — lc (Cistéti‘CS 46 Mério Bortlotto HASSIM: A minha presenga na tua casa também vai acarretar uma série de inconveniéncias e vocé t4 querendo que eu va pra la. Tenta encarar 0 gato também como uma experiéncia fascinan- te. ANGELA: Qual que 6, Hassim? Vocé té querendo gozar com a mi- nha cara? HASSIM: Eu gosto um bocado daquele gato. ANGELA: Eu pensei que vocé gostasse de mim. HASSIM: Eu gosto. Voce sabe que eu gosto. Gosto de voce tanto quanto eu gosto do gato. ANGELA: Como é que €? HASSIM: Nao, cé nao entendeu, sao maneiras diferentes de gostar. ANGELA: Se eu nao te conhecesse e fosse dada & crises de frescura, cu ficaria tremendamente magoada com vocé. HASSIM: Eu sei, mas vocé me conhece, sabe o que eu quis dizer. ANGELA: £, eu sei. (Pausa) TA, leva o gato. Vou tentar encarar como uma experiéncia fascinante. HASSIM: Eu posso levar o péster do “Barfly”? ANGELA: Leva. JASSIM: E a geladeira. Sabe, a geladeira era da minha mae, tem. um valor estimativo muito grande pra mim. Quando eu vim morar aqui, mandei trazer la de Porto Alegre, foi a tinica coise que a minha mae me deixou. ANGELA: Nao vai combinar muito com a decoragao, mas tudo bem. HASSIM: Sabe, Angela, eu vou te confessar uma coisa. Tava muito a fim de morar contigo. Jé faz tempo. $6 no tava querendo ser um estorvo pra vocé. Eu te amo. ANGELA: Eu acredito, e vocé nem comeu o bendito cheese-tudo. HASSIM: A gente vai pra tua casa e vocé pede uma pizza pelo telefone. \Vainos Sair da Chuva Quando a Bombs Cait 47 ANGELA: Pra nossa casa. Vai, vamos coisas. |, vamos juntar as nossas (Eles juntam literalmente as coisas. O cenario que era dividido em dois passa a ser um s6. Isso pode ser feito pelos dois atores em tom de brincadeira como se estivessem arrumando a casa com aquela felicidade tipica dos recém-casados. Ao final da arrumagao, Hassim vai até [a fora e volta com uma pizza. Os dois estao deitados na cama comendo.) ANGELA (olhando Hassim): Adoro homem sem pelo. HASSIM: Vocé devia ter me conhecido h4 30 anos atras. ANGELA: Engragac HASSIM: Adorei esse lengol teu. ANGELA: E chinés, HASSIM: €2 ANGELA: E, € 0 cobertor é alemao. HASSIM: E 0 colchio? ho. ANGELA: E carioca mesmo, mas a fronha do travesseiro é finlande- sa. Como vé, trata-se de um leito internacional. Pensa numa, imagem bonita. Uma festa, hein? Que tal, uma festa? Muita far tura, gente bonita, elegante, realizada, feliz, uma festa & fanta- sia. HASSIM: No banco traseiro de um carro, um garoto se masturba. Essa é uma boa imagem, ANGELA: Sexo. Teve uma época que eu tinha uma ansia sexual incontrolavel, é pelos 16 anos. Acho que eu transei com 0 co- légio inteiro nessa época. Tinha 0 professor de quimica, acho que nunca ninguém transou com ele, era um ogro, uma nulida- de, horrivel, nao tinha o menor vestigio de sex-appel, era um Quasimodo ando. Eu transei. Cara, eu nao deixava ninguém passar em branco. Carimbei todos eles. 7 77+ TT ee eT TT TT TSC EU UE SS IT SSO UED HASSIM: Meu pai nunca falou de sexo comigo, Meu pai nunca falou comigo. ANGELA: Como € 0 teu pai? O meu era bonito, HASSIM: © meu pai? O meu pai era... um mutilado da noite. ANGELA: Era? Ele morreu? Pensei que s6 sua mae tivesse morrido. HASSIM: E como se ele tivesse morrido também, Acho que ele nunca existiu, Sabe, eu gosto dessa cidade. Gosto daqui. Gosto quan- do as coisas ficam quentes for aqui. Em Porto Alegre, quando o chegava, chegava pra valer. Eu lembro do inverno de 74, 0 meu pai tomando chimarréo e vendo a selecao, Era Brasil e la. Ele olhava a televisao e nao olhava pra mim. Eu olha- va pra ele © nao sentia nada, Achei que 0 frio tinha algo a ver com isso. Veio 0 verdo ¢ as coisas continuaram iguais. Eu ndo conseguia me emocionar. Entéo eu fui embora, vim pra cd ¢ nunca mais volte ANGELA: E morte? Vocé ja pensou em morte? Eu acho que a morte devia ter um sabor, voce nae acha nao? Eu queria que fosse de hortela. HASSIM: Se a morte tem um sator, deve ser de jil. ANGELA: Mas logo vel, , Hassim?! Eu acho jilé de um gosto hort. HASSIM: Nés estamos falando do que, eu e vocé? De alguma coisa agradvel?! ANGELA: Mas vocé é um cara sem perspectiva. Achei que a morte tinha uma proximidade maior com voce. HASSIM: O fato de eu nao ter pespectiva nao me transforma num suicida. ANGELA: Nao. Transforma vocé 1um conformado. HASSIM: Eu ndo sou assim tio conformado, Eu queria uma garota que nao me fizesse tantas cokrangas. ANGELA: Todas fazem. | Vamos 5 Chuva Quando a Bomba Cair 49 HASSIM: Nao Billy. ANGELA: Billy? Billy 6 uma garota? HASSIM: Era, Ela morreu. Billy era uma garota mas ninguém podia afirmar isso com muita convic¢ao, pelo menos nao antes de vé- la sem as caicas ¢ 0 coturno. Billy era o tipo de garota Gnica. Eu sei, hd uma porrada de garotas de cabelos curtos por ai, torlas ndas e androginamente idénticas, mas Billy era diferente, es- pecial. Quando eu olhava pra ela, eu sentia um calaftio, as maos suavam e dava vontade de rezar. Eu te juro, eu olhava pra Billy e ficava com vontade dle rezar. Ela escrevia poemas e tinha uma cicatriz enorme no meio das coxas como se alguém tivesse ten- tado corté-la ali, Foi ela que me apresentou a Walt Whitman, esse livtinho aqui (tira o livre do bolso da calga e mostra pra Angela). Eu nunca entendi muito bem 0 velho louco, mas me faz bem quando eu leio. O gato também gosta, eu leio pra cle. ia gostar do gato. Uma noite ela foi embora, foi pra noite. Alguns dias depois eu fiquei sabendo que encontraram o corpo dela no banheiro de um cinema. Retalharam ela, sabe? Acho que Billy incomodava as pessoas ¢ existem alguns tipos de pes- soas que nao suportam esse tipo de sensagao, né? Billy nao fa- zia cobrangas, s6 causava calafrios, Eu devia ter ido com ela. Eu devia ter ficado com eia e cuidado dela, mesmo que eu esse que passar o resto da minha vida rezando, ANGELA: Quando eu era garotinha, adolescente, eu lembro que 0 sonho de todas era que pintasse um cara bonito, misterioso, um cara vindo do nada, um cara que as levasse embora num porsche cor de sangue. Eu ficava pensando: “quando esse cara apare- er, eu vou ficar aqui mesmo” HASSIM: Eu ndo espero muito da vida mesmo. Eu acho que as coi sas acontecem. £ s6 sentar na velha poltrona, esticar os dedoes © mandar uma vodka barata pro estomago. As coisas aconte- cem ANGELA: Eu nao me conforma. As vezes me dé uma insatisfagao, lum desespeto, e af os meus discos laser, meu video, meu compu LUEEEREESESSSSFFILELULES SIFTS ELLERY so Maio Bortolo tador, nada consegue dar eito na minha insatisfacao, e eu con- linuo desesperada. Mas isso acontece sempre de madrugada, quando eu t6 sozinha e bébada, nunca no meu horaio de tra. balho, é que uma mulher profissional como eu nao se pode dar 20 luxo de ficar desesperada no horério de expediente HASSIM: Eu nunca tive uma residéncia fixa. Morei os tltimos dois anos numa garagem que um cara legal cedeu pra eu morar. O cara era muito legal, me cedeu de graca, dé pra acreditar?! De graga. Era um lar. Pela i casa. Ai um dia, o cara legal que tinha cedido de graga a gara- gem pra eu morar, descobriu que eu andava fodendo a esposa dele. Foi um inferno. O cara que era tio legal tava querendo me matar. ANGELA: Eu tinha uma amiga que dizia: Td cansada de trocar im- pada, Eu no tenho esse problema, eu tenho dinheiro. Se eu precisar trocar uma lampada eu pago alguém pra fazer isso, mas e af? E se eu precisar de carinho, como é que eu faco? Eu tenho grana, as pessoas me respeitam, respeitam o meu traba- tho, eu tenho uma bela de uma casa, mas eu tenho um filho & do sei ser mae. Eu esperei meu filho por nove meses e ele té me esperando por quatro anos. A gente vai conseguir, no vai? HASSIM: Traz teu filho pra ¢4, Eu ia gostar de conviver com ele. ANGELA: Vocé ia ser um putade um mau exemplo pro meu filho. Deixa ele com o pai. Nao $ um grande cara, mas é 0 pai, pelo menos cle compra tudo 0 que o menino pede, e olha que 0 meu filho é 0 verdadeiro stopping-children. O pequeno mons- tro do consumo. Vou passar la pra dar um beijo nele. (Levanta- se pra sair.) HASSIM: Vocé ainda transa com ele? ANGELA: O que cé té dizende? HASSIM: O teu marido. Eu queria saber se vocé ainda transa com o teu marido. ANGEL : Nao. Eu no transo mais com o meu ex-marido, Sair da Chuva Quando a Bomba Cait HE IM: Quanto tempo durou? ANGELA: Dois meses. Eu nunca fiquei mais de trés meses com um_ cara, mas um casamento de dois meses desestrutura qualquer cabega. HASSIM: Por que voce casou? ANGELA: Qualquer mulher, por mais super que seja, tem uma hora que ela quer mesmo é encaretar. E tinha o garoto. Besteira eu ter casado, né? Pretexto besta pra tentar ser feliz. HASSIM: Quanto tempo vocé acha que a gente vai ANGELA: Até 0 fim, HASSIM: A vida toda, né? ANGELA: €. (Vai saindo.) HASSIM (pega a cdmera polaroid): Angela. lurar? ANGELA: Oi. (Se vira e Hassim tira uma foto) Pra que isso? HASSIM: Eu sempre acho que as pessoas nao voltam, (Angela sai e Hassim fica olhando a foto. Na proxima cena, Angela esté chegando e Hassim esté deitado, ela senta-se perto dele e fica olhando, afaga 0 cabelo dle Hassim e passa a mao pelo corpo dele, Ele acorda,) HASSIM: Oi, vocé ja chegou. Vocé passa tanto tempo trabalhando. ANGELA: £ que no meu trabalho existem pessoas que dependem de mim, HASSIM: Aqui também, AN LA: Que bonitinho! Hassim, vocé viu o que o teu gato fez hoje? HASSIM: Hoje ANGELA: E, Hoje, Porque ontem a gente ja sabe que ele mijou na maionese, alias foi muita sorte eu ter visto ele praticando o cri- me, vocé ja pensou se a gente 56 tivesse descoberto horas de- PEFESEEETEE FETT TTEL Eee ees Bora Py a pois de ja termos saboreado aquela deliciosa e convidativa maionese? HASSIM: Pois 6, né? Bom, a ditima vez que eu vi ele hoje, ele tava brincando com uma fita, tava se divertindo. ANGELA: E, tava se divertirdo, sé que aquela fita com que o seu gato estava alegremente se divertindo é uma fita de gravador de rolo que estava gravado nada mais, nada menos que a vinheta promocional do show do Lobio que eu to produzindo. HASSIM: E mesmo? Cé ta produzindo o show do Lobao? Que legal, 16 a fim de ver 0 show. ‘ANGELA: Hassim, 0 teu gato arrebentou com a fita, acabou com ela. HASSIM: Posso te garantir que foi sem intengao. Eu te garanto que no passa pela cabeca dele a idéia de te prejudicar. ANGELA: Mas nao passa nada pela cabeca dele, ele nao tem tem- po pra pensar em nada, se € que gato pensa. Ele usa o tempo que ele tem fazendo coisas como essa. Sabia que ele quebrou um vaso de porcelana carfssimo que eu tinha. HASSIM: Na minha casa ele nunca quebrou nada. ANGELA: Na tua casa nao tinha nada inteiro pra ele quebrar, voce jd tinha chegado na frente. Vocé ja reparou como € que té a cozinha? HASSIM: A cozinha? Tem alguma coisa de errado com ela? ANGELA: O teu gato derrubou 0 pote de mel no chao e simples- mente ainda teve a competéncia de derrubar um pacote de 5 quilos de farinha de trigo em cima do mel. HIASSIM: Vocé acha que a ampregada vai ficar muito puta de ter que limpar? ANGELA: Eu estou muito puta com que o seu gato anda fazendo. Eu quero que vocé ponta ele pra fora HASSIM: Pra fora? Mas pra fora onde? ‘Vamos Sair da Chuva Quando a Bomba Cait 53 ANGELA: Ah, sei li, Hassim, poe ele na varanda, na drea de servi- go, em cima do telhado, manda ele pra fora do pals, poe onde voce quiser, mas tira esse gato de dentro da minha casa. HASSIM: Mas, Angela, eu no posso fazer isso. Ele vai se sentir texcluido, vai ficar com traumas, com problemas. ANGELA: Quem td ficando com problemas sou eu, aliés desde que voce e esse gato se mudaram pra ca eu tenho estado com dor de cabeca todos os dias HASSIM: Quem dé muito prazer, dé também muita dor de cabega. ANGELA: Assunto gato encerrado, Hassim. Eu nao agiiento mais falar desse gato. HASSIM: Mas 6 56 um gato, Angela. Um gatinho comum, inofensi- vo. ANGELA: Inofensivo? Taf uma coisa que decididamente ele nao &. Ele 6 um terremoto, um terremoto que mia, um furacdo que solta pélo, esse gato deve ser filiado no partido anarquista, deve Jer Bak unin em cima do telhado, o Fritz do Robert Crumb per- to deleé escoteiro, ia ganhar medalha de bom comportamento, Inofensivo é uma coisa que ele no é. |ASSIM: Eu nao sei o que dizer. ANGELA: Mas vocé nao tem que dizer nada, vocé tem que fazer, pelo menos uma vez na vida faz alguma coisa, toma uma atitu- de. A vida espera que a gente tome altitudes, cé sabia? Vocé tem que optar. Eu nao tava a fim de te encostar na parede, mas vocé ta me obrigando, Merda, Ou sou eu ou é essa porta desse gato. HASSIM: E se eu nao for a fim de optar? ANGELA: Eu sei que o poder de opgao é um poder de minoria. € que eu sempre espero demais das pessoas. |ASSIM: Olha, eu acho que... vocé encana demai ANGELA: E? |ASSIM: E, sO a Mario Hortoloto ANGELA: Ta. E como 6 que vocé acha que eu devo ver a vida? HASSIM: De éculos escuros. (Coloca um 6culos escuro nela.) ANGELA ttirando 0 éculos escuro): Nao, obrigada, eu gosto das Coisas claras. Porra, Hassim, que droga! Sempre fui eu que tive que tomar todas as decises, parece que s6 eu que quero que essa relacao dé certo, HASSIM: Vocé nao sabe de nada. Eu jé gostava de voce muito antes de vocé gostar dé’ mim. ANGELA: Como € que é? HASSIM: £ isso af. A gente se encontrava nos jornais. Vocé na colu- na social e eu na "Lonely Hearts”. Eu te achava linda, incrivel Pregava as tuas fotos no banheiro da garagem onde eu morava, ANGELA: No banheiro da garagem onde vocé morava? Puxa, eu t6 lisonjeada, Hassim. E como é que eu tava nas fotos? De lingerie preta com os seios de fora? E atras das fotos, 0 que é que tinhat Os dias do més com 0s feriados e domingos em vermelho? Me lembra de providenciar 0 calendario da “Penthouse” pra voce. Nao dé mais, Hassim. Eu t jogando a toalha. HASSIM: O que vocé quer dizer com isso? ANGELA: Té dizendo que eu t6 dando a luta por perdida, t6 entre- gando os pontos, 6 tirando o time de campo. Acho melhor voce pegar 0 seu gato, sua geladeira, seu livrinho de poemas do Whitman e ir embora. HASSIM: Vacé ta me mandando embora da tua casa, Angela? ANGELA: Nés esgotamos todas as nossas possibilidades. A gente devia agora subtrair as nossas impossibilidades, mas as suas 40, intimeras, a calculadora nao agtientou, estourou, explodiu. Voce nao imagina como eu estou frustrada, decepcionada. HASSIM: Mas é s6 por causa do gato? ANGELA: Nao me faz acreditar que vocé seja téo ingénuo. Se a gente for analisar bem, o gato nao tem nada a ver com isso, ele 656 uma extens8o de vocé, talvez por isso voces se déem tao 4 i ‘Vamos Sair da Chuva Quando a Bomba Cair 35 bem. (Ela comega a separar as coisas deles. No final deve estar tudo como quando a peca comecou.) JASSIM: Eu t6 nas ruas hd tempo demais. Eu queria ficar por aqui. ANGELA: Yocé é um estigma, Hassim. Vocé atrapalha o meu cres- cimento como profissional, como pessoa, voce nao ajuda em nada, vocé 6 atrapalha. Olha, um parasita como vocé... voce me desculpa se 0 termo que eu 16 usando é por demais ofensi- vo, mas um parasita como voce pode acabar com a vida de qualquer pessoa que queira crescer. Tudo bem que vocé queira continvar assim, estagnado, foda-se, mas 0 que voce nao tem & o direita de foder a vida de ninguém. Eu nao recomendo voce pra nerhuma amiga minha. HASSIM: Foi voc® que me chamou pra morar contigo. ANGELA: As pessoas erram. Achei que vivendo comigo, vocé po- dia mudar. Porra cara, vocé tem 32 anos, ¢ em todo esse tempo, © que € que vocé conseguiu? Diz pra mim, o que € que vocé tem? HASSIM: O que € que eu tenho? Nao muito, um gato que gosta de azeitonas, meia dizia de dentes cariados, um livro de poemas do Wal: Whitman e algumas boas lembrangas. ANGELA: E vocé nao acha que é muito pouco pra tanto tempo? JASSIM: Me deixa ficar. ANGELA: Vocé acha que pode mudar? |ASSIM: E1 vou coniar uma coisa pra vocé. Eu no sou quem eu pareco ser. Na verdade eu andei fazendo uma plastica, uma mudanga radical no meu rosto, eu menti sobre o meu pasado, eu inventei tudo. Eu vou conlar a verdacle pra voce agora, eu s0U 0 Jim Morrison, eu nao t naquele cemitério em Paris, eu to aqui, eu sou 0 Jim Mortison e t6 pedindo pra ficar. Eu sou o Jim Mortiscn e eu te amo. ANGELA: Quando é que vocé vai crescer, cara? De onde é que vocé veio? HASSIM: Nao sei. Acho que... da Terra do Nunca 56 Métro Bortolotto ANGELA: Da Terra do Nunca, Entio ta explicado. Vocé é Peter Pan. HASSIM: Peter Pan? Nao, eu nao sou Peter Pan nao. Sou sé um dos... meninos perdidos. (Os dois ja estéo cada qual na sua casa.) ANGELA: Voce v. HASSIM: Pelo menos o gato veio comigo ANGELA: Ainda bem, Eu nao gosto dele. © que é que eu iria fazer com ele? Guardé-lo como souvenir da nossa relacaio? HASSIM: Eu me arranjo. (Pode-se usar um recurso teatral qualquer para significar que 0 tempo passou, nao muito. Cada um esta na sua respectiva casa. Os dois ‘olham para o telefone e demostram que estdo querendo telefonar e a0 mesmo tempo esperando uma ligacao. Depois de um tempo, Angela resolve ligar.) ficar bem? HASSIM (atendendo}: Oi. ANGELA: Oi, Hassim, é a Angela. HASSIM: © que € que foi? Deu pela falta de alguma coisa na tua casa e ta ligando pra saber se eu trouxe no bolso da cal¢a por engano? ANGELA: Nao imaginei que o ressentimento ia te deixar to mor daz HASSIM: Desculpa. ANGELA: Como é que vocé ta? HASSIM: Vocé nao quer saber como é que té 0 meu gato? ANGELA: Como é que esta 0 teu gato? HASSIM: Voltou a comer azeitonas. Vocé tava certa, ele s6 come azeitonas porque nao tem outra op¢ao. Aqui em casa sempre tem azeitonas, 0 vizinho aqui do lado compra de cainas, ele é iciado em azeitonas, manda uma pro est6mago e faz a cabe- ‘Vamos Sair da Chuva Quando Bomba Cair ” 6a, €& precisa conhecer este meu vizinho, é um sujeito muito maluco. Vive me dando latas ¢ latas de azeitonas. ANGELA: Quer dizer ento que vocé descobriu que 0 seu gato s6 come azeitonas porque nao tem outra coisa por af? HASSIM: E, Na tua casa ele nunca comia azeitonas, ANGELA: Evoct? HASSIM: Eu? ANGELA: €, Vocé tem se HASSIM: E. Esporadicamente. Eu no me queixo. imentado regularmente? ANGELA: Conseguiu dinheiro pra pagar o aluguel desse més? HASSIM: Nao. Acho que desse més nao passa. Eles vio me despe- i ANGELA: Talvez vocé devesse arrumar um emprego. HASSIM: E, eu tenho pensado nisso. ANGELA: Vacé tem pensado mesmo? Puxa, ja é um grande avan- 50, hein? (Hassim afasta o telefone do ouvido) Eu nem acredito que voce esteja me falando que tem pensado em conseguir um emprege, 6 realmente inacreditavel, vindo de voce. (Hassim desliga o telefone) Hassim?!... (Pra si) O cretino desligou o tele- fone, (Angela sai de casa e passa pela rua que fica na frente do cenério. Entra na casa de Hassim.) ANGELA: Se tem uma coisa que eu ndo suporto € que desliguem o telefone na minha cara HHASSIM: Tem uma porrada de coisas que vocé nao suporta ANGELA: Mas 0 que me deixa mais puta é quando desligam o tele- fone na minha cara. HASSIM: Vocé queria um pretexto pra vir aqui, pronto, conseguiu. Agora fala de uma vez 0 que vocé tem pra falar, Eu queria ficar sozinho. TPF Tee Fee Fee TF eee SST ee FT FT eT SSS 58 Mério Bortolotto ANGELA: Pra que? Vocé té esperando alguém? Voce anda transando com aquela puta gorda, né? HASSIM: Ela nao € gorda, ela s6 tem os sei s grandes. ANGELA; Ela é toda grande. Deve ter mais de 100 quilos. HASSIM: Eu também nao sou nenhum peso pena. ANGELA: Vocé deve estar muito feliz dormindo sobre aquela bun- da enorme. T4 usando ela como travesseiro, né? Toma cuidado, hein, que travesseiro muito alto faz mal pra coluna. (Hassim mata um mosquito} Parade matar mosquito, eu t6 falando com vocé. HASSIM: Ai, Angela, cé nao ta legal, ta muito nervosa. Faz 0 se- guinte, vai pra casa, toma um banho, aperta um, relaxa, depois vocé me liga, a gente marca de se encontrar num bar, vocé me paga uma cerveja e af a gente conversa numa boa. ANGELA: Eu quero falar agora, Eu t6 mal, eu t6 cada dia pior. Eu nao sei o que té acontecendo comigo. Vocé acredita que eu nao transei ninguém mais depois que voce foi embora? E n3o foi por falta de oportun dade nao, nao foi mesmo. Teve uma noite que eu fui jantar com um cara incrivel, um fotdgrafo, badaladissimo, um cara finissimo, barbaro, barbaro. A gente jantou, depois ele me levou pra dangar, o ritual de sempre, af depois a gente foi pro apartamento dele, a gente foi pra cama. Cara, que merda, eu comecei a chorar, me deu um né, eu co- mecei a chorar e nao pzrava mais, 0 cara nao entendeu nada, ele ali, excitado e eu, nua, chorando. Situagao ridfcula, Tomei um banho e fui embora. Teve um outro dia que eu levei a maior cantada de uma garota, uma atriz, linda, linda ela, sabe? Uma cantada bonita, cantadz de mulher. Fui super estpida com a garota e eu n&o sou disso, normalmente eu nao sou disso, cé sabe. T6 virando misantropa por tua causa. JASSIM: Nao € por minha causa. Por que vocé ta encanando que € por minha causa? Nao é por minha causa, \Vamos Sair da Chuva Quando a Bomba Cal ANGELA: E por tua causa sim, é por tua causa sim. Vocé sabe que é. Eu t6 mal e é por tua causa. T6 toda desestruturada, t6 ouvin- do blues o dia inteiro, t6 enchendo a cara todas as noites, 16 chorando 0 tempo todo, t0 tomando calmante pra dormir e af quando eu acordo eu nem tomo café, vou direto na garrafa de whisk. so t4 fudendo meu trabalho ¢ foi voce que me deixou assim, vocé e esse seu jeito indolente, essa tua preguica nata, esse teu conformismo egofsta. Essa tua casa tem a tua cara, essa poltrone toda fudida tem a tua cara de fudido, essas merdas todas, todas tem a sua cara. (Comeca a jogar as coisas dele na rua ou em cima dele) Essas merdas dessas fitas, essas miseraveis latas de cerveja, esas garrafas vazias, essa casa imunda, essa geladeira, esse cendrio decadente. Alguém tem que fazer algu- ma coisa. Eu nao agtiento mais isso. Essa tua apatia me deixa louca, (Abre a geladeira) Olha essa geladeira... 14 vazia, s6 es- sas merdas desse tomates que devem estar aqui ha mais de dois meses. Essas merdas desses tomates podres que voce nao teve coragem de jogar fora. (Joga os tomates em Hassim) E essas malditas azeitonas. (Ameaca jogara lata de azeitonas e Hassim fica apavorado tentando se proteger) Odeio azeitonas. Eu odeio © desgracado do teu vizinho que te da essas malditas latas de azeitonas, cu odeio 0 seu gato, eu odeio vocé, eu odeio todo ser vive que gosta de azeitonas. (Joga a lata de azeitonas no chao.) HASSIM (aliviado e indignado): Eu nao vou ficar aqui vendo vocé jJogar as minhas coisas pela janela ou em cima de mim. ANGELA: Entao toma uma atitude, porra. (Hassim se levanta e sai Fica sentado na calgada, no chao as coisas que foram atiradas por Angela, Pega a foto em polaroid que ele tirou dela e fica olhando, Angela fica um tempo na casa dele, Depois apaga a luz e vai até Hassim aparentando estar mais calma) Quando vocé fica, eu quero que vocé va, quando vocé vai, eu quero que vocé fique. PESSFSSSSFSSFTIFSFFFERREEES SIF SSSEEED « Miro Bortolo HASSIM: Eu nao tenho culpa se as coisas nao sairam do jeito que vocé planejau. Eu nao tenho culpa se vocé tava me esperando de smoking e eu apareci de bermuda. Té certo que no convite tava escrito “traje a rigor”, mas eu ignorei esse detalhe porque pra mim ele nao tinha a menor importancia, o problema é que eu pensei que vacé sabia disso. Eu nao tenho culpa, entao por que vocé poe a culpa em mim? Por que vocé nao culpa o guar- da de transito? Por que vacé nao culpa o seu ginecologista ou 0 Mickey Mouse ou 0 seu primeiro sutia ou a sua mae ou 0 seu pai, a sua drvore genealégica... por que vocé nao pée a culpa em Deus? Eu também ja fiz alguns planos, como todo mundo, e nenhum se realizou, mas eu no ponho a culpa em ninguém, Tem gente que nasceu mesmo pra se dar mal, né? Acho que sempre aconteceu algum coisa que eu nao esperava que acon- tecesse e por isso as coisas que eu havia planejado nunca da- vam certo, nunca deram certo. Vocé acha que a Billy tava pre- vendo que naquela noite um bando de sadicos ia retalhar ela no banheiro do cinema? Porra nenhuma, ela tava era planejan- do escrever mais uma dezena de poemas antes de cair chapada nna cama de alguém que ela escolhesse. Acontecem coisas que a gente nao espera que econtecam, coisas que n&o esto nos nossos planos. A gente ten que estar preparado pra isso. ANGELA: £, eu acho que eu sou s6 uma menininha que fez planos demais. Eu sempre quis mais do que me era dado. Quando eu ganhava uma sandélia, et queria um sapato de salto alto, quan- do eu ganhava um patinete, eu queria uma bicicleta, se eu ti nha um namorado eu queria o da minha amiga que era mais bonito, sempre foi assim. . Eu planejava e as coisas tinham que dar certo e eu tinha que ser a ndimero um no que eu resolvesse fazer, sabe? E, a numero um, a melhor. Teve um tempo que eu pensei em ser bailarina, é, eu decidi ser bailarina assim como se decide pegar um énibus pra ir pro Leblon ao invés de ir pro Grajat. Eu cecidi ser balarina , mas af, um dia, eu vi a Ana Botafogo dancando, quardo eu percebi que nao ia conseguir ser melhor do que ela, eu desisti. Eu nao nasci pra ficar em ‘Vamos Sair da Chuva Quando a Borba Cair or segundo lugar. Eu planejava e as coisas tinham que dar certo do jeito que eu havia planejado. Se eu planejei ser feliz , eu tenho que ser feliz, vocé entende? E nada pode mudar isso, nada. Eu sempre tive certezas demais sobre todas as coisas. Neste mo- mento a Ginica certeza que eu tenho 6 que eu nao sou feliz e eu nao acho que 6 porque eu seja ambiciosa, eu no acho errado ter ambigées, eu acho saudavel a gente nao se conformar com © pouco que nos é dado, eu nao acho errado a gente lutar para as coisas darem certo, mas é como voce disse, acho que acon- teceram coisas que eu nao tava prevendo. Cara, té me dando um desespero, essa noite ta me dando um desespero, um medo, mas é um desespero paciente, ele té chegando devagarinho, sem nenhuma pressa e té tomando conta de mim. Eu nao sei 0 que fazer, eu nao sei como mandar ele embora. Eu ndo posso dar instrugSes pra ele, eu t6 me sentindo muito incapaz... Dei- xa eu ser frdgil essa noite, tira o meu sapato e me deixa dor- imir... Fica vigiando e nao deixa esse desespero tomar conta de mim. Eu té cansada. O cerco ta se fechando e eu sei que 0 desespero vai ser tanto que eu ndo vou conseguir me mexer. Puxa. Copacabana nunca foi tfo pequena. Sera que vocé con- segue perceber como Copacabana ficou pequena essa noite? Voce consegue ver os meninas tristes da noite de Copacabana olhando pra gente? A noite té quente, ta tao propicia, o deses- pero ta ficando insuportavel e eu nao sei o que vai ser de mim se vocé nao cuidar de mim essa noite, (Ficam um tempo senta- dos, comega a chover, ou melhor, a chuviscar.) |ASSIM: Acho melhor a gente ir pra casa. Ta comegando a chover, a gente pode pegar um resfriado. (Hassim pega Angela no colo ea leva até a casa dele. Coloca-a sentada na cama e sai. Volta com duas xfcaras e dé uma para Angela que bebe devagar.) ANGELA: Acho que eu vou tirar umas férias |ASSIM: E? ANGELA: Hum-hum, HASSIM: Vai pra onde? | | | DUbEEES o Méria Horototo ANGELA: Madrid ou Milas. Ainda nao sei. Queria ficar fora pelo menos uns dois meses. Acho que as pessoas podem passar sem mim por um tempo. Quando eu voltar cu retomo o primeiro posto. Vou parar no bax por um tempo. Acho que cu t6 preci- sando me reabastecer. Se eu quero vencer, se cu quero chegar ‘em primeiro, tenho que estar bem preparada pra isso. HASSIM: Sabe, eu acho que pra mim a vida é assim como uma azeitona. A gente come o que tem de legal e cospe fora 0 caro- 60, af 0 gato pega o caroge e fica brincando, pée ele pra rolar, vocé entende? Eu preciso que alguém ponha as coisas pra rolar por mim. Eu nao. Eu tive uma vida um bocado errante até os 30 anos, af eu achei vocé, Acho que eu me acalmei. Té tudo bem, Eu t0 me divertindo também. (Hassim brinca com a lumindria pendurada no teto por um fio com- prido, tipo prato de luz. Comega a balancé-la num movimento de vaivém. Angela, que até enigo estava apatica, ajoelha-se na camae entra na brincadeira, empurrando a luminéria também. Os dois fi cam brincando e parecem estar se divertindo muito.) Vamos Sar da Chuva Quando a Bomba Cai o

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