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A Osten £ 0 aisco 1 Raimundo, sala de uma oruesta do Gur, em Pulto, um video com Alessandra (Lisa, 2006, 329, que apresnta a exprinia da jonem com a mia ena diego um vide, Viras da “ - Mosics (Lisa, 2004, 20% 1. DAS POSSIBILIDADES DE UMA AUDICAO DA VIDA SOCIAL MUSICA E ANTROPOLOGIA ~ E UM POUCO DE TEATRO, CINEMA... Um etnomusicédlogo percebe, em um coquetel académico, que seus colegas questionam o valor musical de sons produzidos por grupos no-ocidentais. Comenta: “nossa sociedade acredita que a miisica é em si algo bom, e dai a crenca que nés devemos gostar de seu som. Confrontados com algo cujo som eles nao gostaram, meus amigos imediatamente questionaram se aquilo poderia ser miisica”’. ‘Um mitisico ocidental descreve a seus interlocutores kaluli, da Nova-Guiné, sua experiencia em clubes de jazz lembrando a atracdo que a misica exercia sobre as jovens, que freqiientavam os locais para escutar jazz, apaixonar-se pelo musico, e, quem sabe, passar a noite com ele. Diferentemente dos académicos norte. americanos do coquetel, os kaluli perceberam na descricao do jazzman e também antrop6logo branco as aproximacées possiveis entre diferentes tradicdes musicais e consideraram a conversa um sinal de que o pesquisador havia entendido 0 poder da miisica entre eles e a importancia de sua aquisi¢ao por parte dos homens do grupo’. Neti, The Study of Bebnomasicolagy, 1983, p18. Txdugio nossa, 2, Seven Rnd an ee Bo eg ad Sogn al saci, 1982, p 232 Em uma aldeia no Parque Nacional do Xingu, mulheres sto © alvo das cangdes masculinas. Entre os suyé, 0s irmaos cantam para suas irmas porque no podem comer com elas ou abracé-las. A uxorilocalidade ~ que determina que jovens do sexo masculino saiam da casa dos pais apés a iniciacao para viverem na casa da noiva ~ provoca a abi o da proximidade fisica entre irmaos, aproximando-a do incesto. Mas 0 irmao pode cantar para suas irmas sem nem mesmo ir a sua casa. Da praca ou da periferia da aldeia, o jovem pode comunicar-se com suas irmas. A habilidade da miisica em transcender a distancia social, uma presenca fisica que a acompanhe é descrita pelo antropélogo que estuda o grupo como uma de suas importantes caracteristi comunicativas" -mnos da Febem transcendem, por alguns momentos, lidade, apresentando-se com orquestra e co: ral em salas de concerto tradi em Sao Paulo. As irmas, maes ou namoradas que presenciam suas performances — nos teatros ou mesmo de longe, pela TV — experimentam uma aproximagao de ordem di: versa daquela da visita do domingo. Um tipo especial de comunica- estabelecido por meio da miisica que os corpos ~ outrora sem xrdade ~ produzem. Em comum, o etnomusicélogo, o jazeman, 0 pesquisador dos suyé e eu — a pesquisadora que acompanhou os jovens aprendizes de orquestra ~ temos, 2lém da antropologia, uma forma peculiar de fazé-la: ao enfatizar a pratica musical como objeto da andlise, adentramos os universos de significados dos grupos pela esfera da sensibilidade. Falamos, sem diivida, sobre os kaluli, os suy4, 0 sens comum norte-americano ow o universo da internacao, mas sempre a partir de sua relacao com o fazer musical. Que antropologia resulta dessa abordagem‘? al 4 ‘grupos que extudavam,« ho a c despertaram a minha curiosdade antropalogies. LIUADES DE UMA AUDICAO DA VIDA SOCIAL 2 do sent, Vad ouve, mas vocéndo ecu ta, Sem ver ou tocar [..] podese aprender muito. Mas voc deve aprender a esata, cu cd aprender muito powc sobre ness castures. -eiro songhay* », mais de uma vez pensei em falar sobre o “olhar” que aqueles antropélogos dirigem ao fazer musical dos grupos que estudam. Ato falho que revela a impregnagio do carter imagético dos discursos analiticos no campo da antropolo: gia. A adverténcia do feiticeiro Songhay a um antropélogo, acima reproduzida, inspira 0 inicio de uma discussio na qual a audicao deveria ter igual ou maior importancia que a visao. O fato € que as Ciencias Sociais séo fortemente vinculadas & tradi¢do da visualidade. No projeto tematico Alleridade, Expressdes Gulturais do Mundo Sensivel ¢ Construcoes da Realidade: Velhas Questoes, Novas Inguietaries, Sylvia Caiuby Novaes refere-se ao léxico visual que impregna os textos das ciéncias sociais: Seao ‘edade uilizamos termos que traem nossa prox decomas falamos de organism sca, sistema, func nos referimos a nossa attude perante a sociedade e a cultura, noso lxico é0 da visuaidade. Na Antropologa falamos de obereard, desde Malinowski procuramnos captar o ponto desist do natvo, tetamos reconstruir sua visio de mundo, tents. ‘os abordar diferentes perspectivasem nossa alive, bscamoseldincasempticas para nossas observagdes, que fagam jus a uma dtzacientifica. O proprio termo teoria deriva de um verbo grego que significa observe, contemplar Tal caracteristica das humanidades reverbera, em parte, a pr6- pria forma como a sociedade ocidental hierarquiza os sentidos. Anthony Seeger lembra que, na lingua inglesa, quando alguém quer dizer que compreende algo, diz “I see” [eu vejo]. Entre nos, pessoas com idéi s6 serao implementadas no futuro sio Tal associacao ~ entre conhecimento e 5 Citado em Paul Stoller, The Tite of Etnagophic Things The Senses in Anthrapoegy, 6. Sylvia Caiuby Novae Es 7 Hi exeegdes, que, no entanto, nio invalidam a afemacso da wuperioridade airbuida 4 visio em nosea vociedade: em francés, “entendre” significa entender e escutar Em Inglés, o surdo ¢ chamado “dumb and deaf", o que associa a ausénca da audigho a uma ineapacidade cognitiva. No Bra, “vocé & Surdo!” correspond a “voce no entende! faria sentido a expressao “Eu ouco, mas nao compreendo”, pos- sivel entre nés. Para os suy, uma pessoa que ouve bem também sabe, entende e atua corretamente. © barulho, para 0 grupo, € do coletivo, do enforico. Ja o silencio € ‘ros. A audicdo e a fala sao faculdades “eminentemente sociais”, enquanto a visio ¢ 0 olfato, “naturais ou anti-sociais”. Um suyé se torna feiticeiro porque um feitigo (waywanga) vem e vive em seus olhos, Ihe conferindo uma iso extraordinéria. O senso acurado de odor 6 atributo particu- Jarmente animal. Seeger ressalta o fato dos suyé elaborarem coi ornamentos corporais as duas faculdades que consideram soci grandes discos so inseridos nos l6bulos das orelhas e na parte inferior dos labios. Jé, olhos e nariz ndo sao ornamentados. Ana- lisando lingua, corporalidade, vida cotidiana e misica do grup. Seeger nos mostra como os sentidos mais valoriz sao a audicao e a fala, e ndo a visio, sentido, vido entre os feiticeiros, seres a Rafael Bastos? mostra que entre os kamayurd os verbos indica- dores dos sentidos denotam também categorias de conhecimento. “Anup” corresponde a ouvir e também a compreender, enquanto “cak”, aver e também a conhecer. Os kamayurs atribuem vantagem a “anup” sobre “cak”. Ao “nap'yayte” (surdo) deficigncia que ao “e’acin” (cégo) Diferentes sociedades, diferentes razies sensorias. Nas sociedades industriais, uma rapida enquete sobre a importancia atribuida a cada tum dos sentidos revela a énfase no olhar em detrimento das demais formas de apreensao do mundo. “Respeita-se menos 0 ouvido do que a vista, porque ele € passivo, nao laborioso, e porque a nossa socie- dade industrial condena severamente a preguica!”, opina Roland de as DADES DE UMA AUDIGAO DA VIDA SOCIAL sl Candé", profundo conhecedor da miisica ocidental, em sua defesa do ouvir. “Ao pensarem sobre a surdez, quando chegam a pensar, as pessoas tendem a considera menos grave que a cegueira, a Vé- la como uma desvantagem, um incémodo ou uma invalidez, mas quase nunca como algo devastador num sentido radical Oliver Sacks", em uma obra que dedica ao mundo dos surdos. Sa- cks contra-argumenta advertindo que nascer surdo é, na verdade, “infinitamente mais grave do que nascer cego”, porque quem tem surdez pré-lingtiistica, incapaz de ouvir seus pais, pode ficar atrasado ou “permanentemente deficiente” na compreensao da lingua. “E ser deficiente na linguagem, para um ser humano, 6 uma das calamida- des mais terri 1¢ € apenas por meio da lingua que estamos plenamente em nosso estado e cultura hum: David Howes, em uma coletanea sobre a antropologia dos senti- dos, nos convida a pensar as “razdes” sensoriais de sociedades diversas, Tembrando que ha culturas que usam menos termos visuais - como nossa ~ e mais o paladar, o tato, a audigao ou o olfato. Cabe notar que mesmo quando pensamos em nossa prépria cultura ~ digamos, ocidental, urbana ~ ha campos em que podemos observar diversas razbes sensoriaisatuando paralelamente. Na esfera das préticas atisticas, por exemplo, visio, audig&o, tato ~ e por vezes paladar e olfato ~ so chamados a atuar conjuntamente na apreensao de uma obra. No entanto, quando nos voltamos ao campo das ciéncias sociais, fica evidente a predominancia do carater verbal e visual dos discur- sos analiticos. Tiago de Oliveira Pinto, ao discutir as possi de uma “antropologia sonora”, ressaltou a distancia que as ciéncias lades estreta: quando nao sabe por completo, como para falar sobre musics Tas. Una Viagem an Mind ds Sarde, Sto Palo, 198, p. 22 of the Senses, 1991 ‘Quesises de uma Antropologia Sonora”, 2001, 2 A MOSiCA E 0 alsco Tal distanciamento reflexivo com relacdo a esfera musical é vo das humanidades na modernidade. Dilmar Miranda lembra que a filosofia ocidental moderna evitou a misica, “arte dirigida aos sentidos, ao ouvido”, diferente da poesia, cujo alvo € a “razao”. Dai, a miisica ter ficado em ultimo lugar na hierarquia, racionalista: nos séculos XVIII e XIX, a musica instrumental era “vista como jogo de sensagées agradaveis (Kant) ou como arabesco abstrato (Rousseau), muda a razao e sem contetido intelectual, mo- ral ou educativo, s6 tinha poder sobre nossos sentidos. Em suma, uma arte assemantica’ ‘Thomas Mann discorreu sobre tal ambigiiidade por meio de Settembrini, personagem de 4 Montanha Magica representativo des- to racionalista e iluminista. ‘A mibia dexprtao tempo; deeper ans, para tao do tno in ono mais efinad, desperta.e poranto€ moral, A arte é moral na medida er que desperta, Ma que sucede,qtando ela fz o contra? Quando entorpece, dor Imena estorva a aividade¢ 0 progreo? Também dio a min 6 capa abe perislamente opr come dpi, Uns infutaci dale, meus senhores © Opi é tims obra do Dibo, porque can apt, etapa, aside naive ser vil, Hinamisca um elemento perigon,seahores. Insta no fto da sua naira Tbigus Néo exageo ao decor que ela policarente wept ‘A ambivaléncia do mundo musical é tematizada pelo menos ‘modos" proprios a cada situagao. Para Plato, o ethos musical - defi nido a partir do modo usado na composicao da misica - era impor- tante elemento moldador do carster, juntamente com a gindstica e 1, Dikmar Santon de Miranda, ipo da Fst x To do Tababo, Toned « Caracalizaco naBelle Epoque pial, 2001, p. 3. 15, Thomas Mann, A Montana Mca, 1980, pp. 131-192. 1K. Modor sfo determinados extoques de intervalos musicais que podem ser combinados teriedade ¢ civiidade & embriaguez ea festa Em O Som e Sete. Una Outra Histiria ‘as Masias, 1998, p. 75, talicos do autor. IDADES DE. UMA ALDIGAO > ‘a aritmética. Para Miranda”, a racionalizacao da natureza musical e de seu material sonoro foi o grande esforco de parte da vida cultural ocidental. Porém, se 0 intuito do ocidente era o “expurgo das pul- sbes dionisiacas” da matéria musical, este nunca foi totalmente al- cangado: “a mtisica sempre manteve residuos de irracionalidade”. Foram tais residuos, provavelmente, que dificultaram a aproxi- magio das ciéncias humanas do material musical. Prova disso sao as discussdes que procuraram firmar a etnomusicologia como area de conhecimento. Ardua tarefa, se levada em conta a forte heranca positivista das Ciencias Sociais Alan Merriam, importante nome da histéria da etnomusico- logia (que se desenvolve no decorrer do século XX), sugere que a falta de atengao que os antropdlogos destinaram & misica deve-se, parcialmente, a necessidade de se enfatizar a “ciéncia” na discipli na, que prefere lidar com os fatos sociais da existéncia humana do que com os culturais. Em sua argumentagio, Merriam retoma a diferenciagio que Cassidy estabelece entre o artista o cientista. Para esse autor, o cientista diferencia-se do artista por comunicar conhecimento ¢ néo sentimentos. Merriam conclui afastando do campo do etnomusicdlogo 0 que é subjetivo, qualitativo, discursivo, estético, e reforcando seu interesse no objetivo, quantitative ¢ te6 co. O etnomusicélogo esta fazendo ciéncia sobre misica (“scie about music”)"*, Seu papel no ¢ diseutir 0 produto artistico em termos familiares ao humanista, mas sim procurar conhecimento e regularidades no comportamento e produto artistico. Se a “ciéncia” afastou os antropélogos da maiéria musical, ela também engessou © etnomusicdlogo, ao restringir ao mensuravel e ao objetivo seu interesse no vasto campo sonoro. Eu no posso entender como alguém pode estudar sistemas estéticos sem uma preocupagdo com um intento estético na postura analitica ou uma preoeupacio em ‘como os outros percebem as sensbilidades estticas da proprio analisa Concentrar- sc em medidas objetivas, lives de valores de preferéncias estticas tem feito pouco para nos levar @ uma compreensio mais informada etnograficamente ou humana ‘mente sensivel de outros sistemas visuas, musicais, poéicos ecoreografcos!™ 1 Dilmar Miranda, op et, p23, 1B. Alan Mertiam, The Antheplag of Muse, 1997, p25. 18. Steven Feld, o. ct, p 296 traducio nossa. a awe Areflexdo de Steven Feld, de um momento jé posterior da his- toria da etnomusicologia, revela uma mudanga de prumo, que po- deriamos, brincando com Merriam, classificar como “arting about zendo arte sobre ciéncia). Reflete os debates travados no interior da propria antropologia, como a critica cultural, 0 ataque as etnografias classicas, a discussio sobre o lugar do autor, mas de um ponto de vista bastante especifico: a estética (subjetiva, criadora) como elemento de dialogo entre pesquisador e sujeito pesquisado. E nesse sentido que Feld — e varios outros antropélogos que estudam miisica, danca, teatro etc. — propde a performance com 0 grupo como forma de compreenséo mais profunda de suas mani- festagdes sensiveis® e da relacdo destas com o universo de sentidos os grupos pesquisados. Feld conta que foram “as sensagoes fisicas de vocalizar e percutir” que o aproximaram da performance estética os kaluli e que permitiram que alguns kaluli se aproximassem para conversar sobre suas dimensdes mais subjetivas. Pesquisador de outra Area, a antropologia da performance, Ri- chard Schechner defende que performers de diferentes culturas tém mais facilidade de entender um ao outro ~e de trocar técnicas, ane- dotas ou informagées — do que pessoas da mesma cultura que nao sejam performers. Exemplifica com a propria experiéncia: “fazer 08 movimentos do N6, mesmo que por um breve periodo, me ensinou mais no meu corpo que paginas de leitura”!. O autor Iembra que 0 antropélogo Victor Turner extraiu dessa constatacao seus experi- ‘mentos com a “performing ethnography Victor Tamer e sua esposa, Edith, experimentaram monta seus alunos “pegas” com dramas rituais (ritos de puberdade, potla- 0 es". Cabe notar que autores como pensir a arte de diversos povos ~ inclusive a arte contempordnes ocidental~ sem a esfera “sténca”, mas sim pensando como sso mobilizados pri 21, Richard Schechner, tern Theater and Anthropology, 1985, p 3, traduto nossa. as F #8 DE UMA AUDIGAO DA VIDA SOCIAL 55 ou sociais. Para tal, os alunos deveriam estudar monografias 1 falhas que percebem nestas no que tange & descrigao da agio dramética. A visio do ator, criada pela performance, torna-se uma poderosa critica de como as estruturas rituais e cerimoniais sdo representadas cognitivamente. A experiéncia tinha como obje- tivo ajudar os alunos a entenderem como povos de outras culturas experimentam a riqueza de sua existéncia social, quais as presses morais que sofrem, que prazeres esperam receber como recompen- sa por seguir determinados padrées de ago, e como expressam alegria, deferéncia, afeicdo, de acordo com expectativas culturais Schechner destaca 0 como uma forma de compreensio cinética do outro. Na etnografia que aqui apresento, minha propria experiencia de aprendizado musical, seja no estudo do violoncelo ~ que iniciei em 1997 ~ seja na educacdo musical que experimentei desde os cinco anos de idade ao comecar a aprender a tocar violAo, foi fundamental para entender varios dos sentidos do aprendizado das criangas e Jovens que conheci. As performances das quais participei, junto com 0 {infelizmente poucas) ou com outros mtisicos, me permitiram sentir e compartilhar sensacdes de forma tinic: Charles Seeger, referéncia na etnomusicologia norte-americana, lidade de music6logos em usar o discurso como meio de comunicar idéias sobre miisica: seus trabalhos teriam que lidar com fatores desconhecidos ¢ imponderaveis, uma vez que eles empregam uma forma de comunicacao no lugar de outra, ou seja, falam sobre muisica. Miisica e linguagem seriam formas de co- -acdo diferentes e isoladas, ¢ a comunicacéo musical teria a ea sintaxe do discurso podem distorcer 0 cardter Ginico da mésica como modo de pensamento e aco”. A performance também é apresentada por Blacking como meio de cognicao. A compreenséo da misica implicaria a combinagio de dois modos de discurso: 0 ‘ A MUSICA E 0 RISCO a com analistas ¢ ouvintes de miisica - sen- «io performer, o ouvinte e 0 pesquisado (fazer miisica como modo de conhecimento, espe ~ aprender a misica de duas verbal (falar sobre mm o nao-verbi mente ter a experiéncia “bimus também na importancia dos modos de pensa- verbais (“performativos/expressivos”), to fundamentais os modos verbais ¢ outros mo- liscursivos”. Seriam modos nento, meios diversos e necessarios a vida humana com dos de pensamento “proposicionais complementares mas contrastantes de pens: UMA ANTROPOLOGIA BEM TEMPERADA ~ CONTAMINAGOES MUSICAIS, CINEMATOGRAFICAS E TEATRAIS sea busca de uma via intermediaria entre 0 cexecicio do pensar tea devia natural exzmplo da misica, qu ‘A questao para a antropologia seria, portanto, adentrar tais mo- dos de pensamento expressivos, deixando-os contaminar 0 modo discursivo. Opdes a escrita (video, fotografia, montagens musical quando trazidas a etnografia, so enriquecedoras, mas nao excluem a necessidade do texto. O desafio seria, paralelamente in de materiais sonoros ou visuais, buscar formas de impregnar com esses modos outros de pensamento. Em meu mestrado”, discuti as possiveis relagoes entre gem cinematografica ¢ etnogra nesse sentido é a obra Xamanismo, Colonialismo ¢ 0 Homem Selvagem, de Michael Taussig. O antor se apropria do conceito de montagem 25. Claude Lew 28. Rose Setiko Recent, 1999, ia. Mims ¢ Rflvdade em Alguns Files, A VIDA sociaL a com o objetivo de apresentar as diversas facetas do objeto em obser- vacao, privilegiando a pluralidade de vozes que o descrevem/expe- timentam/sentem. George Marcus”, um dos principais criticos do realismo etnogréfico nas etnografias classicas, destaca esse trabalho ras da chamada etnografia “experimen- € 0 classifica como um exemplo-chave do uso da montagem or forte influéncia da imaginagao proprios da linguagem filmica da simultaneidade, multiperspecti- vismo e descontinuidade narrativa estariam sendo praticados nessas etnografias contemporaneas, em nome da polifonia, fragmentagao e reflexividade. O efeito cinematogrifico de simultaneidade ~ a descricao de dois pontos separados no espaco em stant de tempo ~ aplicado ao texto etnografico permitiria a problemati zaco espacial, a representacdo da desterritorializacio da cultura, de sua producao em varios locais diferentes ao mesmo tempo. O multiperspectivismo ~ a descrigao de um tinico evento de pontos de vista radicalmente diferentes, como em Cidadao Kane” — apareceria nas etnografias como sinonimo de polifonia. Enfim, a descontinuidade narrativa — inspirada no conceito de ‘montagem cinematogréfica — provocaria o rompimento da linearidade ¢, conseqiientemente, a critica cultural: “a montage empresta técnica a0 desejo de quebrar com as convengdes ret6ricas e modos narrativos existentes, expondo sua artificialidade e arbitrariedad Apés 0 cinema, 0 teatro. John Dawsey”, também inspirado por Benjamin, propde uma reavaliagao das possibilidades de se tomar para a antropologia. Dawsey discute as {agdes da interpretacao que tem como referencia 0 teatro dra- sb A Mlstea £ 0 RiSco 9 dramatico, & re ‘erramento do. feito com esse modelo para pensar situacées conflituosas vividas pelos béias-fria do teatro épico, de Bertold Brecht, como paradigma para a taco antropologica. Dawsey situa Brecht “na contramao dramatico. No teatro épico, hia interrupcao do € quebrar as redes de encantamento que envalvem especiadores € seus herdis. O espectador € provocado a tomar decisdes. Mais que a resolugao, importa a provocacao, o incomodo". As nogdes de interrupcao da narrativa, de desdramatizacao, de distanciamento do ator com relagao ao papel (social) que interpreta sera a base para tal antropologia. 7 O conceito fundante de Clifford Geertz. de “descrigao densa” ~ a etnografia que atinge a “hierarquia estratificada de estruturas signifi- cantes em termos das quais os tiques nervosos, as piscadelas, as fal sas piscadelas, as imitacdes, os ensaios das imitagdes so produzidos, percebidos e interpretados, e sem as quais eles de fato nao existiriam [..]?® ~ 6 tingido com cores benjaminianas na releitura de Dawsey, tornando-o ainda mais inspirador para a etnografia que aqui se esboca, A partir do conceito de Benjamin de imagem dialética, Dawsey sugere © ato etnografico como a busca por uma “descricao tens’, carregada de tensdes, capaz de produzir nos préprios leitores um fechar e abrir de olhos, uma espécie de assombro diante de um cotidiano agora es- tranhado, um despertar™. A contaminacao da anilise antropolégica pela miisica tem em 0 Cru € 0 Cozido um exemplo clissico. Lévi-Strauss, “o antropé- Jogo que queria ser milsico”, na definicao de Wisnik, aproxima de interrupeio da narrativa: eancées,“quadros" congelados, a fala do ator dirtamente pra a patcin, O resultado € a eubstuigso do envolvimento emptica por uma rellexto fisanciada 32, Clifford Geers, A Intrpretgae das Cultwras, 1989, XB Joha Davey, op. 1, José Miguel Wis 1-64. k, O Sam eo Sentido. Una Outs Histia dos Misias, 1999, p. 168, ILIDADES DE UMA AUDIGAO DA VIDA cL so mito e misica tonal, uma vez que a andlise de ambos apresentaria “problemas de construcao andlogos, para os quais a mdsica jé tinha inventado solugses Quando sugeriamos que a andlise dos mitos era compardvel & de uma. 10s a conseqlienci (0s se revela por m A miisica interessa a Lévi-Strauss como metéfora e forma. Curio- samente, a miisica que inspira sua andlise nao possui qualquer relacdo com 0 contexto etnografico que forneceu 0 material mitico para a mesma. Lévi-Strauss tem em mente, em sua analogia, as formas mu- sonata, a sinfonia, 0 preliidio, a fuga, ou seja, a miisica de um determinado periodo e tradicao que, compardvel ao teatro dramatico tomado como paradigma por Victor Turner ou Clifford Geertz, implica uma estrutura de apresentag solugio, que marcaré a analogia e a anélise: o mito “cabe” na miisica tonal gracas ao seu carater “narrativo”. Mas o que fazer quando, como com os béias-frias de Dawsey, a ten- so ndo termina em resolucao, quando a dissonéncia nao é finalizada com 0 acorde dominante? Se no teatro tivemos Brecht (e a proposta de interrupcao da narrativa dramética), no cinema, Sergei Eisenstein (mestre na sugestio da criagdo de um novo conceito a partir da justa- posisao de fragmentos, principio da montagem), na misica ocidental ha a revolugio do inicio do século XX. Tentemos ouvir tal miisica como inspiragio para uma antropologia (musical) do contflto. Fato fundante é a criacdo do sistema dodecafénico, por Schoen- berg, em 1923. Wisnik lembra que tal sistema corresponde a antite- se do sisten ‘uma vez que rejeita seu principi cadencial de tenstio e repouso. A miisica dodecafonica caracteriza- se pela construgio de séries de doze sons (os doze semitons da es- cala cromatica”) de forma que se retarde o maior tempo possivel 0 45, Clande LeviStrauss, 0 Ghee Cada Sto Paulo, Brasiiense, 48, Hem, p. 24 57. No piano, os doze semitons correspondem a todas as tetas (brancas¢ pret) que c oes uma citava sem a repticdo da nota fandamentalotavada, por exemplo: ded i). Se partimos de um do, teemos este, 0 dé sustenida, 0 16,0 £6 susenido, ‘ofsustendo, 0 sl, sol sustenido, o 1, 0k sustenid © 5 60 Asien E 0 RICO e da repeticao e dificulta io. “Nao se presta a escuta linear, melodica, temati ca”, Tal revolucao musical afeta a composicao do século como um. todo, Mesmo os que nao aderem diretamente ao movimento podem se apropriar das rupturas nele efetuadas. A composicao a partir de entao abusara da citacao, da superposicao, da desconstrucao. |, glissandi (deslizamentos do tom sem subdiviséo s etc. A miisica concreta introduz }oro: as composicoes ‘vores, sons m pulacao: “variagao de velocidade, inversiio do sentido, filtragens, reverberagoes, m todos sao parte de sons artificiais, produzidos eletronicam Uma antropologia que hoje se vislumbre musical tem mate- Os movime os musicais dos diversos undo, © popular e erudito, e tudo 0 ‘meio — 0s sons entre “o concerto e 0 desconcerto do mundo”, lembrados por Wisnik - sao ons para pensar a antropologia, se ndo m novo paradigma ‘fora — por que nao dizer modo, repert6rio, inspiracao, para ficarmos no campo musical? ~ para a escrita etnogra Entre as possibilidades de inspiracdo musical, estao: a inclusto do ruido na descrigao etnografica — tentativa de evidenciar o que poderia ser ocultado ou ignorado, dado que escapa ao modelo; 0 uso de falas dissonantes (0 que nao difere muito da proposta da polifo- nia, nas etnografias experiment tra metafora musical, evidenciamento de situagdes que nao resultam em resoluc samente ao esperado da cadéncia tonal, e do teatro dramatico... Na etnografia aqui desenvolvida, a escrita foi iluminada/ acom- panhada pelos conceitos de interrupcao da narrativa dramatica as miisicas de todo 0 sp 2U. Uma AUDIGAD DA VIDA soctaL 6 de imagem-dialética (de Benjamin), de o (da miisica do século XX). Tal inspiracao te6rica 6 definida pelas questées colocadas pelo objeto analisado. Algumas tentativas de refletir sobre a prética musical entre os internos da Febem por meio do modelo dramatico de Victor Turner mostraram seus limites. Se por um lado ha a construgo do drama (no palco das apresentacdes, por exemplo}, por outro, em cada gesto, fala, pausa dos meninos hé a interrupcao e o afastamento, caracteristicos do pico. Se 0 palco o quase sempre como exibigao da igualdade (“vamos mostrar que somos gente”, “eles sio }, 0 entorno, como a coxia por ex configura-se como explosio da diferenca, evidenciando a desigualdade, MUSICA E SOCIEDADE Misia ¢ muito mas ue apenas sons cptrades em um rca Misia Fama inten de fargo chamado mise (ou trad com uns hana nda) em opscn aos tipo dens. Buna hide de omar rd an elo andres da dada edad cma mise (ox usar gus cdvoninnce edna is). Misa acne diame qu fran sta Vea 4 eno gu acomfana eros, apreia¢ aritpag svn soe Misia € tb, & claro proprio sn dos de siren pradecds.Einda cat ‘ont quanto ekg: Coma ealr, any quanto estar forma ‘Anthony Seeger” Em artigo historico, publicado originalmente no periédico Bth- nomusicology de 1960, Merriam define a etnomus método para 0 estudo da misica na cultura (music in cultw locumenta a consolidagao de um campo de conhecimento, @ etnomnsicologia: o estudo dos fazeres musicais a partir de sua intima relacdo com as sociedades nas quais sio desenvolvidos, Anos mais tarde, Anthony Seeger faz 2 A MUstea £ 0 RISco de uma “antropologia da musica”. Para Seeger, 0 foco taria ao estudo da misica na cultura, tal qual sugerid (a misica como parteda vida cultural e social), mas a propria c poderia ser concebida como algo que acontece namiisica, e 0 vo do etnomusicélogo seria buscar “o modo pelo qual as performan- ces musicais criam varios aspectos da vida cultural e social™®. De fato, o pr6prio Merriam jé havia desenvolvido sua definigao, afirmando que o “comportamento humano produz miisica, mas 0 processo é continuo; 0 comportamento em si é moldado para pro- duzir sons musicais, e assim o estudo de i para o outro”, Ou seja, Merriam jé percebera que a miisica é produto e produtora de cultura. Na releitura de sua defini lade da inversao proposta por Seeger. ‘Mas sigamos a andlise de Seeger para iluminar com 0 exemplo etnogréfico tal tese, aparentemente, comum aos autores. Em Why Sud ‘Sing A Miusical Anthropology of an Amazonian People, o autor realiza sua proposta de antropologia musical, superando a divisio teérica entre 0 estudo da miisica e o estudo da sociedade. para Seeger, & “todo 0 processo de conceitualizacao, realizagao e avaliagao” da propria miisica. E é por meio da performance musical que se “recria, reestabelece, ou altera a significancia do cantar e também de pes- soas, tempos, espacos e audi 4 “expressa o status, sexo e sentimentos dos executores, e os coloca em evidencia para a comunidade inteira, que os interpreta de diversas formas”, Em sua andlise dos suy4, Seeger demonstra que por meio da performance de miisica e danga, “aspectos fundamentais da organi zagio social dos suyé sio reconhecidos, o tempo social é ritualmente tema cosmol6gico inteiro é compreendidi enfoque contextual da la ndo apenas do ponto de como forma de comunicacdo: jd antecipava a possil [.] misica raras vezes apenas é uma organizaglo sonora no decorrer de limi tado espaco de tempo. E som e movimento num sentido lato (seja este ligado & y 6 tradugio nose 1H. Anthony Seeger, of. el. p65. 45, Marin Stokes, “Introduction: Ethnicity Mentiy and Must, 1994, p.2, wadugtio nos, IDADES DE UMA avDIGKO Di 14 SOCIAL 68 produgo musical ou entio a danca) outras formas de cultura expr :é quase sempre em estreita conexio com 1 quando se rrias atividades sociaise os significados titui importante plano de andlise na antropologia da 1agem e movimento ¢ enfocada de form: ica ndo € entendida apenas a partir d E necessario aprofundar a discussao acerca da relacao entre sica e sociedade. Por um lado, é consensual o fato de que, do ponto de vista da antropologia, nao é possivel estudar miisica sem se referir 4 cultura. No entanto, ha bastante controvérsia sobre a relacao entre essas esferas. Seeger atribui a mbsica a capacidade de produzir cultura e transformar a sociedade. Para Seeger, por exemplo, “performances musicais criam varios aspectos da vida cultural e social”, sendo a musica, portanto, parte da “construcao e interpretacao de processos is”, Feld** também ressalta tal interdependéncia entre mi e vida social: para o autor, a estrutura ¢ sentidos dos sons kaluli sao inseparaveis da fabricacdo da vida social e do pensamento kaluli. Para Geertz, os trabalhos de arte - dentre os quais inclui a mui- sica ~ nao definem relacdes sociais, ndo sustentam regras sociais ou fortalecem valores sociais. Apesar de afirmar que uma teoria da arte € ao mesmo tempo uma teoria da cultura ~ e nao um empreendi- ‘mento auténomo —, insiste que “as anotacGes coloridas de Matisse e as linhas yorubas ndo celebram a estrutura social. Elas materializam um modo de experimentar [..]”. O estudo da arte 6, para o autor, 0 estudo de uma “sensi 4. ws “ tos de sociedades simples que evitam o termo “arte” por 64 AMUsiCA A observacio da atividade musical dos jovens participantes do Projeto Guri indica a necessidade de uma abordagem intermedia- tia, entre a de Geertz e de Seeger. Blacking é um dos autores que procura construir a ponte entre essas visdes. Para o autor, a musica no pode mudar a sociedade, tal qual a tecnologia ou a politica, mas pode confirmar situagbes pré-existentes. Nao gera pensamentos ‘mas faz as pessoas mais conscientes de sentimentos que elas expe- rimentaram, ao reforgar, alargar ou expandir suas consciéncias. A misica seria um tipo especial de acao social, nao somente reflexiva, mas também geradora. Mitsica, para Backing, é produto da ago humana e modo de pensamento gerador de aco humana. A rela- Gao entre misica ¢ sociedade nao é direta - a miisica nao muda a sociedade ~ mas “cognitiva”: o fazer musical pode ser ferramenta indispensavel para a transformagdo da consciéncia, um primeiro passo para a transformacao das formas sociais. Em didlogo com Geertz, o autor sugere que perguittemos como o grupo faz conexées entre misica e outras experiéncias sociais. Sugere questdes: como a aquisicao de habilidades musicais e as experiéncias corporais decorrentes dessa aquisi¢do se relacionam com outras atividades € experiencias sociais? A experiencia musical auxilia ou entra em conilito com outras atividades sociais? Qual o aleance da miisica na ampliacdo de consciéncia? Para marcar sua posigao, Blacking propde uma inversdo da analise de Geertz, que procuraria, a seu ver, contextualizar a pratica artistica em relagdo ao social. “Apesar de concordar com isso, eu também quero inverter 0 processo e dizer que, para um etnomu- sicélogo, um procedimento analitico crucial ndo é tanto ajustar a misica ao sistema social, mas comecar com um sistema musical € seus simbolos, com estilos e grupos sonoros, ¢ entéo ver como © quando a sociedade se ajusta a miisica. Nos devemos considerar a cognicao artistica e a prética musical em particular como tendo papéis fundamentais na imaginacao das realidades sociais”®. lugar que Blacking atribui a miisica e a forma que propoe para abordé-la condiz com o tipo de problema colocado a partir da cestudadas. Clifford Geertz, Lov Knowledge, 1983, pp. 99-109, 50, John Blacking, Music, Culture & Experience, C iversity of Chicago Press, 1995, 1.234, tradugio nose, DAS POSSIBILIDADES DE UMA AUDIGAO DA VIDA SOCIAL 65 pesquisa aqui exposta. A musica, tal qual vivida pelos jovens que a praticam nos projetos que analisei, é sem diivida um “modo de expe- rimentar” ~ na acepcao de Geertz ~, uma manifestagao sensfvel que opera modificagdes no corpo e na alma de seus praticantes e ouvintes. Mas 0 fazer musical produz também comunicagées que transcendem © palco, sala de aula ou espaco ritual, marcando relacées, mexendo com valores, determinando modos de agir na imbricada teia social que envolve miisicos e nao-masicos. VARIACOES SOBRE UM MESMO TEMA Durante esta pesquisa, os significados atribuidos ao fazer mu- sical raramente foram afirmados com a mesma intengao e inten- sidade. Musica podia ser ora um quebra-galho, um passatempo, ora “tudo” na vida de alguém. Do ponto de vista analitico, me foi bastante iluminadora a adverténcia de Anthony Seeger: a mi- sica dos indigenas das terras baixas da América do Sul nu: seria entendida enquanto fosse vista como uma forma de “art “atividade antes de tudo estética e além disso inciden sas sociedades, a miisica é parte fundamental da vida soc! somente uma de suas opcdes. Pensar as formas de percepcao da misica no segmento estudado e na sociedade envolvente seria, portanto, um primeiro passo na abordagem da relago entre ma sia e sociedade. Ouvi da coordenadora do Projeto Guri, Elizabeth Parro, que o objetivo do projeto nao é “formar misicos”, mas “mostrar para a crianga uma condicao de vida melhor”. A énfase do projeto esta, evidentemente, nos aspectos sociais e éticos vinculados as suas ati- vidades, nao no estético. A pritica musical é vista como uma forma de ocupacao do tempo dos jovens ¢ como via de acesso ao exer- cicio da cidadania, tal qual compreendida pelos propositores da intervencéo. Implicita na fala da coordenadora esta a idealiza¢ao do “miisico” como aquele que dominou a técnica artistica, diferente de um estudante que ainda a exercita SL. Anthony Seeger, of. el 1980, p. 104 66 A NOSICA E 0 Mas hé outra intencao por tras da afirmacao de Elizabeth: evitar dar a formagao musical no Guri a caracteristica de curso “profissio: nalizante”, demanda comum ~ ¢ restritiva ~ no que diz respeito as ai vidades oferecidas a populacdo de baixa renda. Ensinar miisica sem 0 objetivo declarado de formar misicos ~ “prof a ser um desafio em um pais em que a propria idéia de aprendizado musical inexiste quando se pensa nas camadas populares. A logica que governa a educacdo extra-escolar para a populacao de baixa ren- da éa da utilidade: aprende-se para o trabalho, Dai a valorizacao di ‘cursos profissionalizantes em geral, como mecanica de automov computacao, costura ete Alba Zaluar, em um: sobre projetos de pratica espor- tiva com jovens de escolas pablicas nos anos de 1980, comentou a tendéncia de classificagdo do esporte como atividade elitsta, jé que associada ao lazer e a it profissao”; pedreiro, mecanico eram exer que deveriam ser ensinadas no lugar da my Como nota Zaluar, 0 écio (com o qual o lazer, 0 esporte e as artes sio associados) 6 visto como exclusividade das classes abas- ambém chamadas ociosas e cuja marca de distingio é a relagio desinteressada e nao utilitaria com as artes, 0 esporte e outras atividades distanciadas do mundo do trabalho”#. O acesso de todo cidadto 6, cssio sobre Iver e tempo lesoca, de propésit ds des primérdios da revolugio industrial, Mas ex ate que, am dos DAS FOSSIBILIDADES DE UMA AUDICKO DA VIDA SOCIAL a No interior do Projeto Guri, conheci criancas e jovens que pra- ticavam misica “por diversio”, como “lazer”, para “matar o tem- po”. Mas tanto pais como parte importante dos alunos mais velhos revelavam um real interesse em se tomar [ou ver seus filhos como] “miisico profissional”. Notei tal concepeao quando, sempre que eu ‘comentava que tocava violoncelo, ouvia dos jovens a pergunta: “e conde vocé toca?”. Aos poucos, fui percebendo que para o grupo que eu pesquisava havia uma associacdo intima entre pratica musical € alguma esfera de atuagao profissional - ou semiprofissional. Em minha longa educagao musical, dos cinco aos vinte e poucos anos, eu nunca havia pensado a misica seriamente como uma pos- sibilidade de trabalho ~ miisica era, para mim, um objeto de estudo, de diverséo, de enriquecimento pessoal, de alguma sociabilidade na juventude. Foi somente apés alguns anos de estudo do instrumento de orquestra que comecei a vislumbrar a possibilidade de “tocar em algum lugar”, 0 que implica “ser musico”, efetivamente, e até receber para tocar, eventualmente. Para os jovens parti orquestras do Projeto Guri, “tocar em algum lugar” é 0 se espera de quem estuda miisica. O estudo em si nao teria muito sentido sem essa meta a ser alcancada. Em minha formacio infanto-juvenil em miisica ~ em escolas € conservatrios particulares — 0 objetivo era “tocar bem”, aprender um instrumento, mostrar o repert6rio aprendido em apresentagdes da escola de miisica, destinada aos pais e parentes mais proximos. O aprendizado musical fazia parte de um pacote ~ caracteristico da edu- cacdo burguesa ~ que inclufa também o ensino obrigat6rio, as aulas de pintura, artesanato, lingua estrangeira, danca e atividades esportivas. Por que para os jovens do Guri - a maioria de baixa renda - 0 aprendizado musical era tao freqiientemente associado & pos dade de insercao profissional? Varios fatores estiio envolvidos em concepcao. Ha, obviamente, 0 fator econémico: diante do cenario de crise e desemprego no pais, qualquer atividade que possa ser uma eventual fonte de renda é pensada como uma oportunidade. A miisica © 08 esportes foram — ¢ ainda so ~ um meio de insergao profissional e mobilidade social para os negros e pobres no pats". Ha também uma HH, Jozo Baptista Borges Pereira (Cor, Prfndo ¢ Mobildade.O Negro ¢ 0 Rio de So Paul 200!) analisou o processo de incluso do negro no sistema radofOnin a partir do final 6e A tasica & 0 Risco cultura especifica do aprendizado do instrumento de orquestra, que implica, em algum momento, a participagdo do aprendiz. em algum conjunto musical e 0 aproxima da efetiva possibilidade de profissionali- zagio. O fato de muitos estudantes de instrumentos de orquestra terem misicos em suas famifias também justificaria a presenga marcante da pperspectiva profissional no processo de aprendizagem. Cabe notar que a miisica é uma atividade que permite o transito entre os universos do lazer e do trabalho, por vezes misturando-os. £ comum ouvirmos de miisicos que seu trabalho nao é reconheci- do como tal. “E com o que vocé trabalha?” é pergunta que ouvem com freqiiéncia, quando se apresentam como miisicos. Os mesmos geralmente reconhecem que trabalhar com misica é um privilégio: “trabalho com o que gosto, com 0 que me diverte”. Questionei certa vez um jovem estudante de contrabaixo, membro de uma das orques- tras do Guri, se misica era para ele trabalho ou lazer. Respondeu que erudito, que aprendia no Guri e na Escola Municipal de Musica, era “obrigacao, trabalho”, e o jazz~ sua preferéncia musical - seria a uniao do trabalho com a diversao. (Com ou sem a perspectiva profissional, uma concepgo comum en- tre 0s participantes do Guri ~e diferentemente do imaginado pela coor- denadora ~ é que 0 aprendizado musical {mesmo 0 inicial) corresponde cfetivamente a experiéncia de se fazer mtisica. O fato de poderem, com pouco tempo de estudo, fazer parte de um dos conjuntos musicais do Projeto (orquestras, corais-ou cameratas) contribui ainda mais para essa autopercepeao como “mtisico”, mesmo que em formacao™ O pubblico que assiste aos concertos dos corais ¢ orquestras do Projeto Guri tem percepcdes diversas acerca das performances. Quase sempre precedidos por uma apresentaco que identifica os partici- antes como “menores carentes”, “internos na Febem”, “criancas e jovens que esto tendo uma oportunidade na vida”, os concertos no so acompanhados de forma neutra. O publico sabe que nao esta diante de “miisicos profissionais”, mas de jovens que estao dos anos de 1030, mostrando como a musica principalmenteo samba ~ possibilitou flguma mobilidade social para grupos antes dicriminados. Retomo ‘al rellexio nas Consideragées st idea € desenvolvida de forma audiovieual. A discussto sabre reaiaeda no teroeio captulo «sobre arelagéo entre misica € ientidade, no quar. DES DE UMA AUDIGAO DA VIDA SOCIAL 6 aprendendo miisica e, por isso, “tendo uma oportunidade de cida- dania, de insergao social”. A énfase nao é nec estético, mas no ético. O julgamento do esp mais em conta 0 fato do projeto ser algo “bom” ~ para os jovens, para a sociedade ~ do que sua capacidade de produzir o “belo”. Por outro lado, para um piiblico leigo, a sonoridade de uma orquestra ou coral de estudantes pode nao se afastar muito do que € considerado “miisica”. Como os grupos tocam em varios locais sem tradicao de apresentacdo com orquestras, sua misica é real- mente valorizada por aqueles que esto ouvindo pela primeira vez violinos tocando MPB ou Beethoven, ida os casos de grandes apresentagées, nas quais os grupos, aps varios ensaios, tocam com miisicos experientes e conhecidos, em locais nobres como a Sala Sao Paulo®. Nesses casos, podemos pensar que aqueles que pagam um ingresso para ouvir a cantora Fortuna, 0s monges do Mosteiro de Sao Bento e o coral do Projeto Guri® nao estao necessariamente pensando em acompanhar o resultado ético de um projeto social, mas em ouvir Masica, com maitiscula mesmo. No inicio deste capitulo discuti as possibilidades da exploragéo dos diversos sentidos no processo de construco de conhecimento antropolégico. Essas possibilidades foram vislumbradas a partir de etnografias que colocaram o antropélogo diante de grupos nos quais 08 préprios sentidos eram hierarquizados de formas diferentes das “nossas”. Autores como Anthony Seeger, Steven Feld e John Bla- cking apontam para possibilidades diversas de uma audigao da vida social. E possivel, com Seeger, pensar a organizacdo social a partir da ‘muisica ¢ das manifestagdes sonoras de um grupo. Feld evidenciou a importancia de ouzir como grupo: 0 antropélogo comecou a entender a cosmologia dos kaluli quando owsiu com eles 0 canto dos passaros, € percebeu sua mimese na miisica, nas indumentérias, nos ritos e mi- tos do grupo. Blacking questionou a relacdo analitica que realiza a ppassagem direta do universo sonoro ao da escrita, Em alguns casos, 58 A principal sala de concertos de Sdo Paulo, consderada como uma das melhores do ‘mundo, foi inaugurada em 1999, no interior da antiga Esta flo Pests, Conta com 1509 lugares € a sede da Orquestra Sinfoniea do Estado de Sto Paulo (Osesp. 57. Grupos de alunos do Projeto Gur partciparam de vérios eventos com tal formato. Este, ‘xpeciicamente ocorre no segundo semestre de 2003, e oi amplamentedivulgado na ridia de Sio Paul. ” A MUSICA E 0 RiScO seria preciso, antes de traduzir em palavras os significados da prética musical, experimentar a performance, fazer misica com o grupo. ‘Alem da diferente hierarquizacdo dos sentidos, outros povos nos fomecem organizacao diversa para as dimensbes estéticas ¢ éticas, que iluminam a situago observada nesse livro. O isolamento da esté- tica dos demais dominios da vida social (ética, religiao, moral, politica etc.) ~ que predomina no Ocidente modemo ~ nao é encontrado em sociedades indigenas, por exemplo. Joanna Overing argumenta que no Ocidente, desde Kant (que remodela a filosofia moral, “purifican- doa ética de toda estética e de todo desejo”), tendemos a pensar aarte como uma atividade “a-social, que no pertence ao cotidiano”™. Overing argumenta, como Seeger, que para compreender os po- vos indigenas da América do Sul nao se pode pensar a estética como categoria auténoma, mas como uma categoria moral ¢ politica. A partir do momento em que reintegrarmos o julgamento estético ao moralmen- te bom e ao moralmente ruim, e ambos, julgamento e moralidade, ao conhecimento € Qatividade produtivos,s6 entio poderemos comecar a dizer coisas que facam sent do acerca da economia, da organizaglo politica e da flosofia socal destes povos™. Nao tenho como objeto sociedades indigenas, mas a reflexdo de ‘Joanna Overing se aplica bem a situacio aqui pesquisada. Analiso uma \proposta que parte de uma atividade estética - a mmisica - para atingir objetivos éticos, politicos e morais, como a inser¢ao social, a cidadania, ‘a ampliagao de horizontes das criancas e jovens. O pedestal em que ‘fo colocadas as atividades artisticas ~ so reconhecidas, desejadas, mas isoladas, quase inalcang4veis - impede a um setor da sociedade que re- conheca como arte/miisica o que fazem os jovens aprendizes do Guri. ‘Mas para esses jovens, a mtisica esta efetivamente acontecendo: ela faz parte de suas vidas e esté modificando seus corpos, seus pensamentos, seus desejos, sua percepcao. Fazer miisica, para eles, € belo, é bom, € correto, é o presente, é uma possibilidade de futuro. 58, Jonna Overing, “A Es iaroa, 198, p.7 59. de, 8. ca da Produgio: Senso de Comunidade entre os Cubeo © 0s 2. MUSICA COMO INTERVENCAO SOCIAL MUsica £ Potitica A misica nao exprime contedos diretamente; la nao tem assunto.. Eno entanto [..] a misica smantém: com a politica um vinculooperante ‘nem sempre visvel:€ que la atua, pela prép marca do seu gest, na vida individual ecoetiva, cenlazando reprsentacessociais a fogas José Miguel Wisnik’ © vinculo obscuro, por vezes invisivel que une a musica & Iitica ~ descrito por Wisnik ~ € o cerne das inquietacdes deste lo. Qual a alquimia que opera a transformacao do universo etéreo, impalpavel da miisica em instrumento concreto de ma- nipulagdo e transformacao do mundo social? Quais os possiveis tracados entre a emocao musical - experiencia sensivel detonada pela audicao e/ou producao de sons organizados ~ ¢ a constituigao de sujeitos sociais? Como compreender a passagem ~ efetuada sem maiores esforcos pelos sujeitos pesquisados ~ da experiéncia musi- cal & social, do tocar um instrumento a perceber-se cidadao? Esta pesquisa foi realizada junto a instituigées que promovem © ensino musical ou artistico Como forma de intervencao social. 1. José Miguel Wisnk, “Algumas Questes de Musica e Politica no Bras", 1987, p14 USP Reitra Vie rete 9 Dir rete Presidente Vee prides aria Lajolo (Carlos Albert Barbosa Dantas Benjamin AbdalaJinior (Carlos Augusto Monteiro Franco Maria Laolo ‘Maria Arminda do Nascimento Arrods [Nélio Marco Vincenzo Bizzo ea Cristina Guimartes dos Santos Rose Satiko Gitirana Hikiji A MUSICA EO RISCO Etmografia da Performance de Criancas¢ Jvens Participants de um Preto Social de Ensino Maical hex

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