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Sociedade as Citucias Antigas f Historia Filosdéfica do Género Humano Antoine Fabre D'Olivet Sociedade das Ciéneias Antigas HISTORIA FILOSOFICA DO GENERO HUMANO POR ANTOINE FABRE D’OLIVET (1767 - 1825) TRADUZIDO DO ORIGINAL FRANCES “HISTOIRE PHILOSOPHIQUE DU GENRE HUMAIN” UBRARIE GENERALE DES SCIENCES OCCULTES PARIS - 1905 1 —Preambulo. Motivos desta Obra. 2—O conhecimento do Homem ¢ indispensavel ao | conhecimento. \dor. No que consiste esse 3 — Constituigdo intelectual e metafisica do Homem. 4—O Homem ¢ um dos trés grandes poderes do universo; quais sao os outros dois. LIVRO PRIMEIRO.. Divisio do Género Humano, considerado como Reino Hominal, em quatro racas principais. Digressio sobre a Raca branca, objeto desta obra. Amor, prinejpio da sociedade e da civilizago no Homem: je que maneira. O casamento, base da instituigao social; qual é 0 seu principio e quais as suas conseqiiéncias. No comego, o homem é mudo, e sua primeira linguagem consiste de sinais. Sobre a palavra. ‘Transformagio da linguagem muda em linguagem articulada e conseqiiéncias desta transformagao, Digressiio sobre as quatro Idades do mundo e reflexdes sobre o assunto. Primeira Revolugio no Estado Social e primeira manifestagio da vontade geral... Continuagao, A sorte deploravel da mulher no comeco das soci Guerra e suas conseqiiéncias. Oposigao das Raga: jades. Segunda Revolugio. A. Primeira organizagio social. Terceira Revolugao. A servidio e suas conseqiiéncias. Quarta Revolucao. A Paz e 0 Comérci Da propriedade e da desigualdade das condigGes. Sua origem.. Situacdo da Raca Bérea nessa primeira época da Civilizagi Quinta Revolugdo. O desenvolvimento da in igencia humana. Origem do cult Recapitulagao LIVRO SEGUNDO. Primeiras formas do culto. Criacao do Sacerdécio e da Realeza. Sexta Revolucio, Cisma politico e religioso. Origem dos Celtas Bodohnes ou Nomades e das Amazonas. Primeira divisio geografica da Europ: Da primeira divisio de terras, ¢ da propriedade territorial Origem da Miisica e da Poesia. Invengio das outras eiéncias. Desvio do culto; qual foi a sua origem. Supersticdo e fanatismo: seus primérdios. Sétima Revolugao no Estado Social. Estabelecimento da Teocracia. Aparigo de um Enviado Divino, Resultados desse acontecimento. O Enviado Divino é perseguido. Ele se separa dos celta Quem era Ram: seu pensamento religioso e politico, Estabelecimento de um Império Universal, teocratico e real. Recapitulacio LIVRO TERCEIRO. Digressao sobre os celtas. Origem dos Salianos e dos Ripudrios. Seus Emblemas. A Lei Silica. A Unidade Divina Aceita no Império Universal. Detalhes Histéricos. Origem do Zodiaco. Conseqiiéncias de um Império Universal. Ser ele o produto de uma Unidade absoluta ou de uma Dualidade combinada?. Oitava Revolugao. Divisio dos Principios Universais. Influéncia da Musica. Questées sobre a Causa Primeira: serd ela masculina ou feminina? Cisma no Império sobre este assunto. Origem dos Pastores Fenicios; suas opinides sobre a Causa Primeira do Universo. Suas conquistas. Novos cismas, de onde vém os Persas ¢ os Chineses. Estabelecimento dos Mistérios: por que. Reflexées sobre 0 desmembramento do Império Universal Os Fenicios se conquistador pol Novos desenvolvimentos da esfera intelectu: Magia entre os Caldeus e da Teurgia no Egito. Nova visio do Universo. Admi Triade na Unidade Divin: igo do conquistador politico traz consigo o Despotismo e a queda de Teocracia, ias desses acontecimentos. Missio de Orfeu, Moisés e Foé. Fundacio de Tréi Quem eram Orfeu, Moisés e Foé. Sua doutrina. Estabelecimento dos Anfictiones na Grécia. 101 grandes homens. 104 Recapitulacao 108 LIVRO QUARTO. Décima primeira revolugio no Estado Soi |. Os cultos degeneram; as idéias intelectuais se 5 Tem inicio a luta entre Europa ¢ Asia, Tomada de Tréia pelos gregos. Decadéncia do Império Assirio. Ascensio da Pérsia sob ia. Conquistas de iw A Grécia perde sua existéncia politica. Reflexes sobre a duragio relativa de diferentes governos. 114 Primérdios de Roma. Suas guerras. Sua luta contra Cartago. Seus triunfos 115 Reflexées sobre as causas que conduziram & queda da Repiblica Romana. Conquista das Galias por César, Guerras civis, Banimentos. Vitoria de Otavi uy 120 Missiio de Jesus: seu objetivo. Missdo de Odin e de Apoldnio de Tiana; para que fim. Conquistas de Odin: sua doutrina e a de Apolnio. Fundagio do Cristianismo. Décima segunda revolucao no Estado Social. Constantino é obrigado a abracar o Cristianismo e abandonar Roma. Invasio dos godos. Queda do Império Romano. 126 Reflexdes sobre esses acont ituaco do sacerdécio e da realeza. Novos desvios da Vontade. 129 Exame rapido da situagao da Asia, Missio de Maomé e suas conseqiiéncias. Décima terceira revoluca 131 Reinado de Carlos Magno. Décima quarta revolucio. As Cruzadas, Tomada de Jerusalém pelos cristios. Tomada de Constantinopla pelos muculmanos. Causas ¢ resultados desses trés grandes acontecimentos... 135 Recapitulacao 139 LIVRO QUINTO.. 139 Digressio sobre o Reino Hominal, sobre sua esséncia intima, sua composi¢io, a solidariedade dos seus membros ¢ os meios de elaboragéo que ele encerra. 139 Utilidade do Feudalismo e do Cristianismo. Modificagio desses dois regimes um pelo outro. A Cavalaria e suas conseqiiéncias. Reforma do Estado Social na Europa. 141 Rapido exame histérico e politico das mais nagdes da Europa. Espanha.. 145 Franga, Inglaterra e Itélia... 148 © que era Roma e o que deveria ter sido. Respectiva situagio dos Papas e dos Imperadores. uu 151 Luta da Franga contra a Inglaterra, Perigo da Franga, abandonada pelo destino, Movimento da Providéncia em seu favor. Joana d'Arc. 155 Causas de um duplo movimento da Vontade no sistema politico e no culto. Décima quinta Revolugio. Descoberta do Novo Mundo. 160 Qual era a situacio do Novo Mundo a época da sua descoberta. Revolucdes que ele sofreu. A Tiha da Adantida. . 162 6 Conquistas dos espanhéis ¢ seus crimes na América. Estabelecimento dos portugueses na Asia. Resultados gerais... 166 Cisma de Lutero. Como Carlos V poderia deté-lo. 170 Conseqiiéncias do Cisma de Lutero. Os Anabatistas. Legislagio de Calvino em Genebra. 1m Recapitulacao 175 LIVRO SEXTO. 176 Invengio da pélvora para canhiio ¢ da arte da imprensa. Causas ¢ efeitos destas duas inveng6es. Belas Artes. Artes Uteis. Comodidades da vida. 176 Instituicio dos Jesuitas: para que finalidade. Quem era Inacio de Loyola, Novas reflexes sobre a conduta de Carlos VII; sobre a de Francisco I; sobre a de Felipe II, rei da Espanha; sobre a de Henrique IV, rei da Franga. Assassinato desse monarca. 178 Movimento da Vontade Européia rumo & América. Meios desse movimento. Reinado de Jaime Ina Inglaterra. Desgragas de seu filho Carlos I. Quem era Cromwell. Criagao da seita dos Quacres por Fox e Penn. Transplante dessa seita para a Amérie: 181 Estabelecimento dos Jesuitas no Paraguai. Um exame da Asia. Revolucio na China e no Japio. Histéria antiga do Japiio. Missio de Sin-mu; sua doutrina e forma do seu governo. ndrios Missiio de Soctoté, seguidor de Fé. Doutrina de Kung-tzé. Faltas cometidas pelos missic cristaos.. Continuagao do exame da Asia. Poder dos Otomanos. Estado do seu Império e seu declinio. Vista rapida sobre a Pérsia e a India. 188 Consideragoes sobre a Russia e a Suécia. Pedro I. Carlos XII. Luta entre esses dois Monarcas. A vitéria cabe & Russia. Por que? 191 Ascensio da Prissia sob Frederico II. Falhas que esse principe cometeu. Desmembramento da Poldnia. Exame da Poldnia, Dinamarca e outras poténcias da Europa. Algumas reflexées sobre 0 Ministério do Cardeal de Richelieu. 195 Situacdo da Franga sob Luis XIV. Sua grandeza. Seu declinio, causado pela Senhora de Maintenon, Revogacao do Edito de Nantes. Reflexes a respeito, Minoridade de Luis XV. Nascimento do filosofismo. A Vontade triunfa sobre o Destino. Voltaire. Rousseau. Influéncia desses dois homens. 198 . Sua Continuagio da revolugio na Inglaterra. Movimento da Vontade na Ami propagagao na Franca. Supressio dos Jesuitas. Situagdo dos espfritos a época da Revolugdo Francesa. Ascensio de Bonaparte. Quem era Napoledo Bonaparte Sua queda, Restauragio da familia dos Bourbons. Recapitulacio LIVRO SETIMO .. Da influéncia politica dos trés grandes Poderes do Universo sobre os homens e os governos. Principio do governo republicano. De onde vem a soberania do povo. Como se fundam as Repiiblicas. Situacao da Religiio nas Replicas modernas... A Vontade do homem colocada acima da Providéncia nas Reptblicas. Medidas que ela toma para dominar o Destino. Origem da escravidio doméstica. Diferenga entre essa escravidio, a servidao feudal e 0 cativeiro militar. Reflexées a respeito. 213 Outras medidas que a Vontade toma para dominar o Destino nas Repiblicas: como elas fracassam. Fusio tentada entre a Vontade e o Destino nas Reptiblicas modernas, Origem da Emporiocracia. O que a impulsiona. sstamaseimanasesenensesssenssses 216 Principio do governo mondrquico. Nele, o Destino domina a Vontade. Esse governo é natural a0 homem, sobretudo ao homem de cor amarela. A raca branea inelina-se para a Republica; por que. Origem do governo imperial e feudal. Principio do governo teocratico. Movimento dos trés poderes. nm 220 Quais so as causas que se opdem ao estabelecimento do Despotismo e da Democracia pura. 0 terror faz falta ao Déspota, como a escravidio ao Demagogo. Origem da monarquia constitucional. Distingao entre 0 que é legitimo e 0 que é legal 223 Distinco importante entre a esséncia da Religido e suas formas. As formas que constituem 0 culto podem pertencer tanto ao Destino quanto A Vontade. A Esséncia é sempre providencial ¢ conduz a teocracia. Causa das querelas religiosas e dos cismas. Novas consideragées sobre o Estado Social. Qual é seu tipo universal. Como os trés Poderes determinam as trés formas de governo. Essas trés formas reunidas dio origem & teocracia, Diferenca entre a Emporiocracia e a Monarquia constitucional. Qual poderia ser a mola politica da monarquia constitucional. Perigos dessa monarquia desprovida de mola, Novas consideragées sobre as trés formas de governo e sobre suas diferentes espécies. Verdadeira situagao das coisas na Europa. Combate entre os homens da Vontade ¢ os do Destino, os liberais e os realistas. Quais so os homens mistos chamados ministeriais. Perigo em que se encontra a Ordem Social. Meio de evitar esse perigo. Chamado da Providéncia nos governos mistos para torné-10$ UNitATi0S..ennnen Recapitulagio Geral su 1- PREAMBULO MOTIVOS DESTA OBRA A obra que ora publico sobre 0 estado social do homem pretendia, de inicio, ser parte de um trabalho mais amplo que eu pensara escrever sobre a hist6ria da Terra e de seus habitantes, e para 0 qual reuni grande quantidade de material. Minha intengio era agrupar sob um mesmo ponto de vista, e dentro de um mesmo panorama, a hist6ria geral do globo em que vivemos, segundo as consideragdes da hist6ria natural e politica, fisica e metafisica, civil e religiosa, desde a origem das, coisas até seus mais recentes progressos, de modo a expor sem qualquer preconceito os sistemas cosmogénicos e geolégicos de todos os povos, suas doutrinas religiosas e politicas, seus governos, costumes, relagdes diversas, a influéncia reciproca que tém exercido sobre a civilizagdo como um 8 todo, seus movimentos pela terra e os acontecimentos, felizes ou infelizes, que assinalaram sua existéncia mais ou menos agitada, mais ou menos longa, mais ou menos interessante, visando a extrair de tudo isso os ensinamentos mais amplos e seguros jamais obtidos até o momento sobre a natureza intima das coisas e, sobretudo, do homem, a quem tanto nos interessa conhecer. Quando idealizei este projeto ainda era jovem e pleno daquela esperanga que torna a juventude tio presungosa, Nao via qualquer obstéculo capaz de me deter no longo caminho que escolhera percorrer. Dotado de alguma forga moral e decidido a realizar um trabalho obstinado, acreditava que nada resistiria a0 duplo ascendente da perseveranga e do amor & verdade. Dediquei-me entio a0 estudo com um ardor insacidvel, aumentando incessantemente 0 volume dos meus conhecimentos e sem pensar muito no uso que deles pudesse fazer algum dia, Devo dizer que estava um tanto obrigado, pela minha posigdo politica, & reclusto que tal empenho exigia. Embora nao me tivesse de maneira alguma destacado durante a revolugdo e guardasse eqiiidistincia dos partidos, alheio a toda briga: toda ambigdo, eu conhecia o bastante das coisas E dos homens para que minhas opinides e meu cardter continuassem na obscuridade. E assim foi que circunstincias alheias 4 minha vontade acabaram levando-as a0 conhecimento de Bonaparte, exagerando ainda mais a seus olhos 0 que elas pudessem ter de contrario aos seus designios. Assim, logo ao pisar 0 Consulado, 0 ddio que ele nutria por mim jé era bastante para decretar minha proscrigio imediata. E foi o que ele fez, incluindo expressamente 0 meu nome entre 0 dos duzentos infelizes que mandou para a morte nas costas bravias da Africa. Se, por obra da Providéncia, eu escapei a essa proscricZo, teria de ser muito prudente enquanto durasse 0 seu reinado, para fugir as armadilhas que ele pudesse me preparar. Assim, minha inclinagio e minha situagio coincidiram para fazer-me apreciar o recolhimento e, juntas, conduziram-me aos estudos. Todavia, quando, a certo ponto de meus trabalhos de explorador, revi os frutos da exploragao feita, constatei, um tanto surpreso, que as maiores dificuldades nao estavam onde antes as imaginara, € que o problema residia menos em se amontoar materiais para com eles erguer a projetada estrutura, do que em conhecer-Ihes bem a natureza para organizé-los, no de acordo com sua forma, mas segundo sua homogeneidade. A forma depende quase sempre do tempo e das circunstincias externas, mas a homogeneidade contém a propria esséncia das coisas. Esta reflexio levou-me a examinar em profundidade virias doutrinas, que os sibios costumam classificar como dispares € opostas, e ento me convenci de que essa disparidade e essa oposicao residem s6 nas formas, sendo © niicleo basicamente 0 mesmo. Como resultado, pressenti a existéncia de uma grande Unidade, fonte eterna de onde tudo emana, e vi claramente que os homens também no se afastam tanto assim da verdade quanto em geral o julgam. Seu maior erro é apenas busca-la onde ela no se encontra, ¢ se apegarem as formas quando, na verdade, deveriam evité-las para se aprofundarem na esséncia, sobretudo considerando-se que elas so quase sempre obra sua, tal como acontece nos mais, importantes monumentos literdrios, principalmente na cosmogonia de Moisés. Pego a liberdade de deter-me por um momento sobre este fato extraordindrio, pois ele esclareceri varias coisas que, do contrério, pareceriam turvas. Se, quando queremos escrever a hist6ria da Terra, tomamos essa cosmogonia segundo suas formas vulgares, conforme as tradugdes errOneas nos dio, logo nos encontramos numa contradigGo que se choca com as cosmogonias das nagdes mais ilustres, mais antigas e mais esclarecidas do mundo. Diante disto, torna-se necessirio rejeité-la de imediato ou entao considerar os escritores sagrados dos chineses, hindus, persas, caldeus, egipcios, gregos, etruscos e celtas, que sio nossos antepassados, como impostores ou imbecis, pois todos, sem excecHo, dio Terra uma antiguidade incomparavelmente maior que essa cosmogonia, Ser preciso derrubar toda a cronologia das nagdes, mutilar sua histéria, diminuir tudo 0 que elas viram de grande, aumentar tudo © que Ihes pareceu imperceptivel e renunciar Aquela exaltada sabedoria dos egipcios, sabedoria que os maiores homens buscaram com o risco da propria vida e da qual Pitégoras e Plato nos transmitiram monumentos incontestaveis. Mas como rejeitar essa cosmogonia? Nao se pode fazer isso porque, além de servir 9 de base aos trés mais poderosos cultos da terra, seja pela sua antiguidade, pelo seu brilho ou pela sua expansio (0 judaismo, o cristianismo e o islamismo), é evidente, para quem pode sentir as coisas divinas, que, mesmo através do denso véu que os tradutores de Moisés estenderam sobre os textos daquele habil teocrata, descobrimos tragos inequivocos da inspiragio que o animava. Contudo, a0 consagrarmos essa cosmogonia tal como est contida nas tradugdes vulgares, devemos continuar nos isolando do resto do mundo, considerar impio ou falso tudo 0 que ndo Ihe esteja conforme, fazer com que a Europa esclarecida e poderosa trate como sacrilego o resto da Terra, € comportarmos-nos em relagdo a ela como se comportava, hé alguns milhares de anos, uma pequena regido ignorante e pobre chamada Judéia? Isto ndo € possfvel. Mas, dir-nos-do, por que se inquietar com uma coisa que se deveria trangUilamente deixar cair no esquecimento? Os livros de natureza semelhante aos de Moisés sfo escritos para tempos de obscurantismo. O melhor que se pode fazer, em séculos radiosos como os nossos, é deixé-los para o Ovo, que os reverencia sem compreendé-los. Para criar os sistemas cosmog6nicos e geol6gicos, os sébios ndo precisam ser instruidos sobre 0 que pensava, ha quatro mil anos, o legislador dos hebreus. Nossas enciclopédias esto repletas de coisas admiraveis sobre o assunto. Admiraveis, é verdade, se as julgarmos pela quantidade, mas de tal forma vas e intiteis que, enquanto 0 livro de Moisés permanece hé quarenta séculos e prende a atengdo dos povos, bastam alguns dias para derrubar aqueles com os quais pretendemos combaté-lo apagar as frivolas obras litersirias que se erguem contra aquele imponente meteoro. Crede, sibios da Terra, que niio € menosprezando os livros sagrados das nagdes, mas explicando-os, que mostrareis vossa ciéncia. No se pode escrever a histéria sem monumentos, e a da Terra no tem outros. Esses livros so 0s verdadeiros arquivos onde seus titulos se encontram. E preciso explorar-Ihes as paginas venerdveis, comparé-las entre si e saber encontrar nelas as verdades que, com freqiiéncia, ali se estiolam pela ago dos séculos. Assim pensava eu. Percebi que, se quisesse escrever a hist6ria da Terra, deveria conhecer 0s monumentos que a contém, e sobretudo assegurar- me de que estaria em condigdes de explicd-los bem. A cosmogonia de Moisés é, sem diivida, um desses monumentos. Portanto, seria ridiculo pretender ignorf-la e, sem levé-la em conta, querer palmilhar um caminho que ela ocupa em toda a sua extensio. Mas se, como digo, 0 historiador é obrigado a deter-se diante desse monumental colosso, ¢ adotar-Ihe os principios, 0 que aconteceré com todos os outros monumentos que ele encontraré pelo caminho, e cujos principios igualmente imponentes e venerados mostrar-se-Ao contraditérios? O que fard ele com todas as descobertas modernas que nfo se poderdo adaptar aqueles princfpios? Diré ele & evidéncia que ela € falaz, e experiéncia que ela deixou de mostrar 0 encadeamento dos efeitos com as causas? Nao! A menos que a ignordncia e 0 preconceito jé Ihe tenham vendado duplamente os olhos. Esse historiador sem diivida raciocinard como eu o faria em seu lugar. Digo a mim mesmo: como o Séfer de Moisés, que contém a cosmogonia desse homem célebre, & evidentemente fruto de um génio muito elevado, guiado por uma inspiragio divina, ele s6 pode conter prineipios verdadeiros. Se esse génio por vezes errou, s6 pode té-Io feito no encadeamento das conseqiiéncias, ao transpor as idéias intermedidrias, ou ao atribuir a determinada causa efeitos que pertencem a uma outra. Mas esses erros insignificantes, amitide derivados da elocugiio e do britho das imagens, em nada atingem a verdade fundamental, que € 0 cerne dos seus textos e que deve existir de maneira essencialmente idéntica em todos 0s livros sagrados das nagdes, emanados, como o seu, da fonte tinica e fecunda de onde advém toda verdade. Se esta nao se manifesta como tal, € porque © Séfer, composto numa lingua h4 muito ignorada ou perdida, ndo é mais compreendido, € porque seus tradutores, voluntéria ou involuntariamente, desnaturaram-Ihe ou perverteram-Ihe o sentido. Depois de ter feito tal raciocinio, passei & sua aplicagdo. Examinei com toda a minha capacidade 0 hebreu do Séfer e nio tardei em descobrir, como jé disse antes, que ele nao fora reproduzido nas 10 tradugdes vulgares, e que Moisés praticamente ndo dissera em hebreu uma tinica palavra do que se podia ler no grego ou no latim. E totalmente intitil repetir aqui, em maiores detalhes, 0 que se pode encontrar j4 inteiramente desenvolvido na obra que escrevi a propésito do assunto.! Para compreendermos isto, basta que eu diga que 0 tempo dedicado a escrever a hist6ria da Terra, apés ter reunido os materiais, foi empregado quase que exclusivamente em explicar um s6 dos monumentos que os contém em parte, para que esse monumento de irrefutavel autenticidade nao contrariasse, pela sua oposigdo formal, a disposigdo da estrutura; tampouco o abalei em sua base, negando-Ihe o apoio fundamental, Esta explicagdo, dada de maneira comum, nao teria bastado. Era preciso provar aos outros, com muito trabalho e dificuldade, 0 que provara facilmente a mim mesmo. E, para restabelecer uma lingua perdida ha vinte e quatro séculos, era preciso criar uma gramética e um diciondrio de radicais, e apoiar a tradugdo verbal de alguns capitulos do Séfer com grande quantidade de notas extraidas de todas as Iinguas do Oriente, e finalmente, elevar vinte paginas de texto & altura de dois volumes in- quarto de explicagdes e provas. E isto no foi tudo; para tirar esses dois volumes da obscuridade da minha gaveta, onde teriam fatalmente permanecido por falta de meios para subvencionar as considerdveis despesas com sua impressio, foi preciso dedicar-Ihes atengo, 0 que ndo pude deixar de fazer sem pOr-me em uma espécie de evidéncia que desagradou a Napoledo, ento todo-poderoso, e que me tomou vitima de sua perseguigo. Surda, é verdade, porém no menos penosa, pois me privou dos tinicos meios de subsisténcia que eu possufa.? E verdade que meus dois volumes foram publicados mais tarde, gragas 4 uma conjuntura de circunstancias peculiares que posso, com justica, considerar providenciais. A impressdo do meu livro sobre a lingua hebraica, longe de me proporcionar os meios com os quais, eu contava para prosseguir com meu projeto sobre a hist6ria da Terra, pareceram, ao contrério, acabar por dilapidé-los, levando-me a discussbes metafisicas e literérias que, transformando-se em dissensdes, levaram seu veneno até o recesso do meu lar. E assim o tempo passou. Mas se, favorecido por toda a forga da juventude, eu tentei e nfo consegui realizar um projeto talvez desproporcional aos meus meios fisicos e morais, deveria esperar mais tempo para fazé-lo agora, quando 0 outono da minha vida faz com que cada novo dia dissipe mais e mais os seus ardores? Seria presungo crer nisso. Mas 0 que eu ndo alcancei fazer outro talvez 0 consiga, em circunstincias mais felizes que as minhas. Minha gl6ria, se puder alcangé-la, sera a de ter-Ihe aberto ou aplainado o caminho. J4 the dei, em minha tradugdo do Séfer de Moisés, uma base inabalvel. Se algum dia puder terminar seus comentirios, mostrarei que a cosmogonia desse grande homem esta de acordo, na esséncia das coisas, com todas as cosmogonias sagradas que as nagdes receberam. Farei por ela o que fiz pelos Versos de Ouro de Pitégoras, em cujo exame provei que as idéias filosGficas e teos6ficas neles contidas tém sido as mesmas em todos os tempos e em todos os homens capazes de concebé-las. J4 mostrei a origem da poesia e fiz. ver em que sua esséncia difere da sua forma: esteve sempre ligada a hist6ria da Terra, pois os primeiros ordculos foram feitos em versos, no sendo errado dizer que a poesia foi chamada de lingua dos deuses. Entre os fragmentos com os quais trabalhei para penetrar na grande obra a que me referi, os que me pareceram mais dignos de vir & luz sio os que tratam do estado social do homem e das diversas, formas de govemo. Mesmo que nao os pudesse publicar, como titil subsfdio aos que quisessem dedicar-se aos mesmos estudos que eu, parece-me que as circunstincias iminentes em que nos encontramos assim o teriam determinado, Todos se ocupam com politica, cada um sonha com sua " La langue hébraique restituée, etc.,2 vol, in-4", nos quais encontra-se a cosmogonia de Moisés, tal como aparece nos dez primeiros capitulos do Bereschit, vulgarmente chamado de Génesis. ? Vide uma pequena brochura intitulada Notions sur le sens d‘oule, etc, na qual se falou em detalhes sobre essas trapalhadas, n utopia e nao vejo, nas incontéveis obras que aparecem sobre 0 assunto, nenhuma que aborde os verdadeiros principios. Longe de esclarecer esse importante mistério da sociedade humana, do elo que a forma e da legislagdo que a rege, a maioria parece, a0 contrério, destinada a envolvé-los nas mais densas trevas. Em geral, os que escrevem sobre este importante assunto esto mais ocupados consigo mesmo e com suas paixdes particulares do que com a universalidade das coisas, cujo conjunto thes escapa; circunscrevem por demais seus pontos de vista e mostram muito claramente que nada conhecem da histéria da Terra. Por terem ouvido falar dos gregos e romanos, ou lido os anais desses dois povos em Herédoto ou Tucidides, em Tito Livio ou Técito, imaginam tudo conhecer. Iludidos por guias embriagados por suas prdprias idéias, eles percorrem, por sua vez e de mil outras maneiras, o mesmo caminho de areias movedicas; marcam incessantemente novos pasos sobre vestigios apagados, para sempre acabar vagueando por desertos ou perdendo-se em precipicios. O que Ihes falta, repito, é€ 0 conhecimento dos verdadeiros principios. E esse conhecimento, que depende da universalidade das coisas, € sempre produto dela ou a produz irresistivelmente. Meditei muito tempo sobre esses princfpios, e creio té-los penetrado. Minha intengio € torné-los conhecidos, mas esta empresa tem suas dificuldades porque, embora esses prinefpios tenham um nome muito conhecido e muito usado, falta muito para que esse nome dé a idéia precisa do universo imenso que ele expressa. Nao bastaria nomed-los, portanto, para deles dar sequer 0 mais ténue conhecimento; tampouco bastaria defini-los, porque toda definigao de prinefpios é incompleta pelo fato dela propria definir o indefinivel e impor limites aquilo que ndo os tem. E imperioso vé-los agir para compreendé-los, e procurar distingui-los em seus efeitos, porque & absolutamente impossivel compreendé-los em sua causa, Essas e outras consideragdes, que se apresentardo claramente no decorrer desta obra, levaram-me a deixar de lado a forma didatica ou dogmética pela forma histérica, que me permite pOr em aco ou em narrativa vérias tramas cujo desenvolvimento, de outro modo, me seria proibido ou arrastaria por distincias intermindveis. Ademais, esta forma histérica que preferi adotar ofereceu-me varias vantagens: permitiu-me nfo s6 trazer A cena € personificar os princfpios politicos, de modo a melhor fazé-los sentir a ago, mas também apresentar em resumo 0 quadro especifico da Terra sob este prisma, tal como o concebi e esbocei originalmente, para tomé-lo parte integrante do quadro geral a0 qual me dediquei. Quero crer que um leitor desejoso de ir dos efeitos as causas, e destas aos acontecimentos anteriores, me perdoaré os detalhes por demais conhecidos nos quais sou obrigado a entrar em favor das facetas quase desconhecidas ou completamente ignoradas que Ihe estarei mostrando pela primeira vez. Penso também que ele me permitira algumas hip6teses indispensiveis no caminho transcendental que tomei rumo a origem das sociedades humanas. Ele sem divida nao me exigir provas histéricas numa época em que a hist6ria nao existia, e se contentaré com as provas morais ou fisicas que Ihe apresentarei, provas tiradas de dedugdes racionais ou de analogias etimol6gicas. Basta que ele veja, quando as provas histéricas aparecerem, que estas nfo contradizem de maneira alguma aquelas primeiras hipSteses, mas, a0 contrério, as apsiam e sfo por elas apoiadas. Para encerrar este predimbulo, resta-me dizer uma palavra, talvez. a mais importante. Trataremos do HOMEM, e este ser ainda no nos é conhecido nem em sua origem, nem em suas faculdades e nem na ordem hierérquica que ele ocupa no universo. Conhecé-Io em sua origem, isto é, em seu principio ontolégico, por enquanto nao tem utilidade para nés, porque nao precisamos saber 0 que ele era fora da ordem atual das coisas. Precisamos apenas conhecer 0 que ele é dentro dessa ordem. Assim, podemos deixar para a cosmogonia, da qual a ontologia € uma parte, 0 cuidado de nos ensinar a origem do homem, como nos ensina a origem da Terra. E nos textos de Moisés e de outros escritores hierdgrafos que podemos aprender essas coisas. Mas no podemos deixar de inquirir a ciéncia antropol6gica, se ela existe, ou de crid-la, se ndo existe, para nos instruirmos sobre o que 6 0 homem na qualidade de homem, quais sfo as suas faculdades morais e fisicas, como ele é formado intelectual e corporalmente, assim como inquirimos a ciéncia geoldgica ou geogrifica quando queremos nos ocupar das formas internas ou externas da Terra. Acredito que meus leitores R conhecem essas duas tltimas ciéncias, pelo menos em geral, e que 0 homem corporal dispoe de tantas nogdes positivas quantas lhes so necessérias para ler a hist6ria comum como esta é normalmente escrita. Mas, ao tratar do estado social do homem e da histéria politica e filoséfica do género humano, no € preciso repetir 0 que se encontra por toda a parte. Ao contrério, querendo expor coisas novas e me elevar a alturas pouco freqiientadas, preciso tornar previamente conhecida a constituigdo intelectual e metafisica do homem, como a concebo, para me fazer entender quando falar do desenvolvimento continuo das suas faculdades morais e da agdo destas. 2-0 CONHECIMENTO DO HOMEM E INDISPENSAVEL AO LEGISLADOR NO QUE CONSISTE ESSE CONHECIMENTO Neste ponto, pego um pouco da atengo raramente dada aos discursos preliminares porque se trata menos de preparar 0 espirito para receber certas idéias do que de pb-lo em condigdes de bem compreendé-las antes de recebé-las. Como € sobre 0 homem e para 0 homem que os autores politicos e os legisladores escrevem, € evidente que, para eles, 0 primeiro e mais importante conhecimento deva ser 0 Homem. Todavia, trata-se de um conhecimento que a maioria deles nao teve, nao procurou adquirir e muitas vezes foi incapaz de encontrar, mesmo quando 0 procurasse. Eles receberam o Homem como os naturalistas € 08 fisicos o apresentaram, mais conforme a ciéncia antropogritfica do que & antropol6gica, como um animal, participe do reino animal, e que ndo diferia dos outros animais exceto por um certo principio de razio que Deus, ou melhor, a Natureza adornada com este nome, Ihe deu, como dera plumas aos passaros e pele aos ursos. Isto poderia levar-nos a chamé-lo de animal racional. Porém, como esse principio da razio, segundo os fisiologistas mais profundos, parecia ndo ser estranho a certas classes de animais como cies, cavalos, elefantes, etc., € como vimos papagaios aprenderem uma linguagem e se servirem da palavra para expressar idéias racionais, seja respondendo perguntas ou fazendo-as, como nos informa Locke, observamos que 0 homem desfrutava desse principio apenas mais ou menos em relagZo aos outros animais, ¢ que ele devia essa superioridade acidental {Go S6 a agilidade dos seus membros ¢ A perfeicio dos seus érgiios, que Ihe permitiram o desenvolvimento total. Atribuia-se A forma da sua mao, por exemplo, todos os progressos nas ciéncias e nas artes, € ndo havia receio em insinuar que um cavalo poderia ter-se igualado a Arquimedes como ge6metra ou a Timéteo como miisico se a natureza o tivesse dotado de membros tio Ageis e dedos tio afortunadamente conformados. Nesse aspecto, 0 preconceito estava tio profundamente arraigado que um historiador modero ousaria afirmar que a tinica diferenga real entre 0 homem e 0 animal est nos trajes. Um outro autor, bem mais famoso, considerando essa superioridade racional que 0 homem as vezes manifesta como um clardo ilus6rio que diminui a forga do seu instinto, altera sua satide e perturba 0 seu repouso, como se ele proprio pudesse estar doente e perturbado, assegurou que se a natureza nos pretendeu sadios, o homem que medita é um animal corrompido, Ora, se apenas por meditar o homem se corrompe, maior ser a razio se ele contempla, se ele admira e, principalmente, se ele adora! ‘Apds termos apresentado tais premissas, quando ponderamos sobre o Estado Social e, nao vendo no homem senéo um animal mais ou menos perfeito, arvoramo-nos em legisladores, é evidente que, a menos que sejamos inconsequentes, s6 poderemos propor leis instintivas, cujo efeito certo € 0 de conduzir o género humano para uma natureza aspera e selvagem, da qual sua inteligéncia tende sempre a afasté-lo. E isto 0 que véem os outros escritores que, aliando uma exaltagio maior de idéias A mesma ignorincia de principios, e assustados com as conseqiiéncias a que seus tristes preceptores 0s conduzem, langam-se vigorosamente para 0 lado oposto, transpondo 0 meio termo justo tio recomendado pelos sdbios. Aqueles faziam do homem um animal puro; estes fazem dele ‘uma inteligéncia pura. Uns colocavam seu ponto de apoio nas suas necessidades mais fisicas; outros 13, © situam nas suas esperangas mais espirituais. Enquanto os primeiros encerram-no dentro de um circulo material de onde todos os poderes do seu ser compelem-no a sair, os segundos, perdendo-se nas mais vagas abstragdes, langam-no numa esfera infinita ante cuja aparéncia sua propria imaginagdo recua amedrontada. Nao. O homem nfo é nem um animal nem uma inteligéncia; é um ser intermediério, situado entre a matéria e 0 espfrito, entre o céu e a terra, para servir-Ihes de elo. As definigdes que procuramos dar- The pecam pela caréncia ou pelo excesso. Quando o chamamos de animal racional, dizemos pouco; quando 0 qualificamos de inteligéncia servida de érgdos, falamos demais. © homem, tomando suas proprias formas fisicas pelas de um animal, é mais que racional; ele & inteligente e livre. Concedendo que ele seja uma inteligéncia em sua parte puramente espiritual, ndo é verdade que essa inteligéncia seja sempre servida por Grgdos, pois estes, visivelmente independentes dela, sto amitide conduzidos por impulsos cegos e geram atos que ela reprova. Se me pedissem para definir o Homem, diria que ele € um ser corpéreo elevado A vida intelectual, susceptivel de admiracio e adoragdo, ou entio um ser intelectual servido de drgios, susceptivel de degradagio. Mas as definigdes, sendo exatamente 0 que sao sempre representarao muito mal um ser tio complexo. Melhor € procurar torné-lo conhecido. Consultemos, por instantes, os arquivos sagrados do género humano. Os fildsofos, naturalistas ou fisicos que incluiram 0 homem na classe dos animais cometeram um erro grave. Hudidos pelas suas observagdes superficiais, pelas suas experiéncias frivolas, eles se esqueceram de consultar a voz dos séculos, as tradig&es de todos os povos. Se tivessem aberto os livros sagrados das mais antigas nagdes do mundo, os dos chineses, hindus, hebreus ou persas, eles teriam visto que 0 reino animal j4 existia, completo, antes da aparigio do Homem. Quando o Homem surgiu no palco do universo, ele formou sozinho um quarto reino, 0 Reino Hominal. Esse reino € chamado de Pan-Ku pelos chineses, Puru pelos brimanes, Kai-Ormuz pelos seguidores de Zoroastro e Adio pelos hebreus e por todos os povos que aceitem o Séfer de Moisés, que se liguem a ele através do Evangelho, como os cristios, ou que se retemperem nele através do Alcordo e do Evangelho, como os mugulmanos. Sei muito bem que, atualmente, os intérpretes desses livros que se atem unicamente as formas literais e vulgares e que permanecem alheios 4 maneira de escrever dos antigos consideram que Pan-Ku, Puru, Kai-Ormuz ou Adio é um tnico homem, o primeiro individuo da espécie. Mas jé dei provas suficientes, em minhas tradugdes da Cosmogonia de Moisés contida nos dez primeiros capitulos do Séfer, de que devemos entender que Addo nio é um homem especifico, mas 0 Homem em Geral, o Homem Universal, 0 Género Humano inteiro, 0 Reino Hominal, enfim. Se as circunstancias um dia me permitirem apresentar meu prometido comentario sobre essa Cosmogonia, provarei também que o primeiro homem dos chineses, dos hindus e dos persas, Pan-Ku, Puru ou Kai-Ormuz, deve ser igualmente universalizado e concebido no como lum tinico homem, mas como a reunido de todos os homens que entraram, entram ou entrardo na composigao desse grande todo que chamo de Reino Hominal. Por tiltimo, nao obstante as numerosas provas apresentadas em apoio da minha tradugdo, provas que ninguém ousou ainda atacar seriamente, decorridos cinco anos desde que foram apresentadas € se tornaram conhecidas, supondo que quiséssemos considerar Addo e os diferentes seres cosmog6nicos a ele correspondentes nos livros sagrados de outras nagSes como um homem individual, sempre restaria a certeza de que todos esses livros concordam em separar esses seres do reino animal, fazendo-os surgirem sozinhos numa época diferente ¢ tornando-os objeto de uma criagdo especial. Isto me autoriza a ndo confundir 0 homem com os animais, incluindo-o com eles na mesma categoria, Ao contrério, autoriza-me a fazer do género humano um reino superior, como o fiz. Por outro lado, interroguemos os mais sdbios gedlogos, os que penetraram mais profundamente no conhecimento material do nosso globo, ¢ eles dirdo que, a0 se atingir determinada profundidade, “4 no encontramos mais qualquer vestigio, qualquer resto que anuncie a presenga do homem nos primeiros tempos do mundo, enquanto que os restos e ossadas dos animais so encontrados em profusio, o que est perfeitamente concorde com as tradig6es sagradas a que me referi.® Em meus exames sobre os Versos de Ouro de Pitégoras, jd tive ocasido de falar do Homem e de reunir, como que num feixe, as tradigdes sagradas, conservadas nos mistérios antigos € nos pensamentos dos tedsofos e fildsofos mais célebres, para com elas formar um todo que pudesse nos esclarecer sobre a esséncia intima deste ser, mais importante e mais dificil de conhecer porque nao pertence a uma natureza simples, material ou espiritual, nem mesmo a uma natureca dupla, material ¢ espiritual ao mesmo tempo, e sim, como jé demonstrei naquela obra, a uma natureza triplice, ela propria ligada a um quarto poder, que 0 constitui. Mais adiante reapresentarei esse resultado dos meus estudos anteriores e reconciliarei os episddios disseminados alhures, acrescentando-the alguns progressos que a meditacdo e a experiéncia me sugeriram desde entao. Inicialmente, formulemos algumas idéias gerais. No momento em que 0 Homem surgiu na terra, os trés reinos que formam o seu conjunto ¢ a divide j4 existiam. Os reinos mineral, vegetal e animal j4 tinham sido objeto de trés criagdes, sucessivas, de trés aparigdes ou de trés desenvolvimentos. O Homem, ou melhor, © Reino Hominal, foi o quarto. No Séfer de Moisés, o intervalo que separa essas diferentes aparigBes é medido por uma palavra que expressa uma manifestagéo fenomenal, de modo que, tomando-o no sentido mais, restrito, fizemo-lo representar um dia, E evidente, porém, que este sentido ¢ forgado e nao podemos deixar de ver nele um periodo de tempo indeterminado, sempre relativo ao ser a0 qual é aplicado. Nas nogdes j4 mencionadas, onde os diferentes desenvolvimentos da natureza encontram-se enunciados mais ou menos como no Séfer de Moisés, normalmente se mede esse periodo pela duragio de um grande ano, equivalente & revoluco astron6mica atualmente chamada de precessio dos equindcios, ou por uma de suas divisdes, de modo que podemos concebé-la como sendo 9, 18, 27 ou 36 mil dos nossos anos comuns. Mas seja qual for a duragao temporal desse perfodo que Moisés chamou de manifestag3o, uma imensidio, um mar, um dia, ndo se trata disso aqui. O importante ter demonstrado, de acordo com todas as cosmogonias, que 0 Homem jamais foi incluido no reino animal, Ao contrério, esse reino, assim como os dois outros mais inferiores, 0 vegetal e 0 mineral, foram incluidos no seu, ¢ the foram totalmente subordinados. © Homem, destinado a ser 0 elo que une a Divindade & matéria, foi, segundo a expresstio de um naturalista modemo, a cadeia de comunicacdo entre todos os seres. Colocado nos limites de dois mundos, ele se transforma na voz da exaltag4o do corpo e na do aviltamento do espirito divino. A esséncia aperfeigoada dos trés reinos da natureza reuniu-se nele a um poder volitivo, livre em seu v60, que fez dele 0 tipo vivo do universo e a imagem do proprio Deus. DEUS € 0 centro ¢ a circunferéncia de tudo o que existe: 0 Homem, imitando Deus, é 0 centro e a circunferéncia da esfera em que habita. Somente ele, nessa esfera, 6 composto das quatro esséncias; é também ele a quem Pitégoras designava pelo seu misterioso quaterndrio: Imenso e puro simbolo, Fonte da natureza e modelo dos Deuses. A nogiio de todas as coisas € congénere ao Homem; a ciéncia da imensidiio e da eternidade esté em seu espfrito. E verdade que trevas densas muitas vezes Ihe roubam 0 discernimento e 0 uso, mas 2 Se minha intengtio fosse preparar uma obra erudita, eu poderia acumular citagSes aqui e chamar toda a Antigiidade em testemunho, niio $6 do que até agora disse, mas do que ainda tenho a dizer. Mas como esse costume escolistico $6 serviria para retardar meu desenvolvimento numa obra destinada a expor mais pensamentos que fatos, abstive-me e abster-me-ei de fazer citagbes. Peco apenas a0 leitor que acredite que todas as autoridades em que me apoiarei so inatacdveis pelo lado da ciéncia e repousam sobre bases hist6ricas inabalaveis. 15 basta-Ihe 0 exercicio assiduo das suas faculdades para transformar essas trevas em luz e dar-Ihe a posse dos seus tesouros. Nada pode resistir a0 poder da vontade quando esta, tocada pelo amor divino, principio de toda virtude, age de acordo com a Providéncia. Mas, prossigamos em nossas pesquisas sem nos embrenharmos mais nessas idéias, que estardo melhor situadas alhures nesta obra. 3 - CONSTITUIGAO INTELECTUAL E METAFISICA DO HOMEM Como ja disse, 0 Homem pertence a uma natureza triplice, podendo, portanto, viver uma vida triplice: uma vida instintiva, uma vida animica ou uma vida intelectual. Estas trés, quando estio todas desenvolvidas, confundem-se numa quarta, que é a vida propria e volitiva desse ser admiravel, cuja fonte imortal encontra-se na vida e na vontade divinas. Cada uma dessas vidas possui um centro especifico e sua esfera apropriada, Procurarei apresentar a0 espirito do leitor uma visio metafisica da constituigio intelectual do homem. Previno, porém, que ele nfo deve conceber nada de material sobre o que Ihe direi a este respeito. Embora seja obrigado a me servir de termos que lembram objetos fisicos para fazer-me compreender, como centro, esfera, circunferéncia, raio, etc., no se deve pensar que algo de corporal, sobretudo de mecinico, entra nestas coisas. As palavras que usarei, na falta de outras melhores, devem ser compreendidas somente em seu espitito, abstraindo-se-Ihes toda a matéria. Portanto, considerado espiritualmente, e na auséncia dos seus 6rgdios corporais, podemos conceber 0 homem sob a forma de uma esfera luminosa, na qual trés focos internos dio origem a trés esferas distintas, todas envolvidas pela circunferéncia daquela esfera. De cada um desses trés focos irradia se uma das trés vidas a que me referi. Ao foco inferior pertence a vida instintiva; a0 foco intermedifrio, a vida animica; e a0 foco superior, a vida intelectual. Desses trés centros vitais, podemos considerar 0 centro animico como o ponto fundamental, a primeira causa sobre a qual repousa e se move toda a estrutura do ser espiritual humano. Esse centro, desdobrando sua circunferéncia, atinge os dois outros centros, reunindo sob ele proprio os pontos opostos das duas circunferéncias que eles desdobram, de modo que as trés esferas vitais, movendo-se uma na outra, comunicam-se suas naturezas diversas e influenciam-se mutuamente. Desde que o primeiro movimento € dado ao ser humano como poder, e que ele passa do poder a0 ato por um efeito da sua natureza, assim determinada pela Causa primeira de todos os seres, 0 foco instintivo atrai e desenvolve os elementos do corpo; 0 foco animico cria a alma e o intelectual elabora o espirito. Portanto, o homem compde-se de corpo, alma e espirito, Ao corpo pertencem as necessidades, & alma as paixdes e ao espfrito as inspiragaes. A medida que cada foco aumenta ¢ se irradia, ele desenvolve uma circunferéncia que, dividindo-se pelo seu prdprio raio, apresenta seis pontos luminosos, e a cada um deles se manifesta uma faculdade, isto é, um modo especifico de agdo, segundo a vida da esfera seja animica, instintiva ou intelectual. Para evitarmos confusio, daremos nome a apenas trés dessas faculdades em cada circunferéncia, nove ao todo, a saber: Para a esfera instintiva: a sensagio, o instinto eo senso comum. Para a esfera animica: 0 sentimento, o entendimento e a razio. Para a esfera intelectual: 0 assentimento, a inteligéncia e a sagacidade. A origem de todas essas faculdades est4, em primeiro lugar, na esfera instintiva, onde todas nascem e onde recebem suas primeiras formas. As duas outras esferas, desenvolvendo-se mais tarde, 16 recebem suas faculdades relativas em segundo lugar e por transformagiio. Isto é, a esfera instintiva, {4 inteiramente desenvolvida, e levando, pelo seu ponto circunferencial, a sensagiio a0 centro ‘animico, por exemplo, abala este centro, Este centro se desenvolve, apodera-se dessa faculdade que 0 toca e transforma a sensacao em sentimento. Esse sentimento, conduzido de igual modo ao centro intelectual, desde que todas as condigdes para isto sejam satisfeitas, é por sua vez absorvido por esse centro é transformado em assentimento. Da mesma forma, o instinto propriamente dito, pasando da esfera instintiva para a animica, transforma-se ali em entendimento e 0 entendimento torna-se inteligéncia ao passar desta para a esfera intelectual. Essa transformagio ocorre em todas as outras faculdades deste tipo, independente do niimero. Mas esta transformacio, que ocorre nas faculdades do género sensagiio, que considero como afeigdes circunferenciais e, por conseguinte, exteriores, ocorre também nas necessidades, que si0 afeigdes centrais. Desse modo, a necessidade, levada do centro instintivo ao centro anfmico, ali se torna ou pode tornar-se paixo. E se essa paixio passa do centro animico ao centro intelectual, ela pode assumir o cardter de uma inspiragdo ¢ reagir sobre a paixo, como esta reage sobre a necessidade. Por enquanto, consideremos que toda afeigdo circunferencial do género sensagio provoca um movimento mais ou menos forte no centro instintivo, onde se apresenta imediatamente como prazer ou dor, conforme esse movimento seja agradével ou desagradavel e tenha sua fonte no bem ou no mal fisico. A intensidade do prazer ou da dor esté relacionada com a do movimento provocado € com sua natureza. Se esse movimento tem certa forga, e conforme seja agradavel ou desagradavel, ele gera dois efeitos inevitaveis: a atragio, que o faz sedutor, ou © medo, que o faz. repelente. Sendo fraco ou indeciso, ele produz ainda a indoléncia. Assim como 0 centro instintivo percebe, pela sensag&o, 0 bem e 0 mal fisicos sob os nomes de prazer ou dor, 0 centro animico desenvolve, pelo sentimento, 0 bem e 0 mal morais sob os nomes de amor ou édio. O centro intelectual apresenta 0 bem e 0 mal intelectuais sob os nomes de verdade ou erro. Mas esses efeitos inevitéveis de atrag4o ou temor, atribuidos & sensagao instintiva, conforme excite 0 prazer ou a dor, nfo sobrevivem a essa sensagio, desaparecendo com ela, J4 na esfera animica, 0 sentimento que gera 0 amor ou 0 6dio, causando igualmente dois efeitos certos, 0 desejo ou o terror, longe de desaparecerem com a causa do sentimento que os produziu, ainda persistem por muito tempo com esse mesmo sentimento, assumem o carter de paixOes e atraem ou repelem a causa que os gerou. Af est a diferenga notavel entre a vida instintiva e a vida animica, e © leitor atento e curioso deve observa-la e pensar sobre ela. Todas as sensagGes instintivas sio atuais, € seus efeitos sdo instantineos. Mas os sentimentos an{micos siio duradouros, independentemente do movimento fisico que os produza. Quanto aos sentimentos intelectuais que afirmam a verdade ou © eo, eles nao so apenas duradouros como os sentimentos, porém mais influentes depois que passaram. Quanto & indoléncia, que provoca um movimento fraco ou indeciso na sensagio fisica, ela se transforma em apatia no sentimento moral e naquela espécie de indiferenga no assentimento intelectual, que confunde a verdade com o erro e deixa indiferente um e outro. Este estado, habitual tanto na infincia do individuo como no alvorecer do reino, é igualmente predominante nos primérdios das sociedades.* * Como nio pretendo apresentar aqui um sistema completo da ciéncia antropolégica, mas apenas estabelecer-Ihe os prineipios, nfo entrar em detalhes sobre todas as transformag®es que ocorrm entre todos os tpos de necesidades, as Daixdes e as inspiragdes que nascem delas © com elas reagem; nem sobre aquelas incontaveis variagdes ainda mais considerdveis que introduzem nas sensagSes, nos sentimentos ou nos assentimentos os seis setidos de que o homem & dotado: tto, paladar, olfato, audigao, visio e o senso mental que, eunindo todos os outros, 0s concebe, compara © conduz & unidade da qual sua natureza os afastou, Apenas esse trabalho comportaria uma obra volumosa que, forgosamente, ultrapassaria os limites de uma simples dissertago. v7 Essa existéncia triplice do homem, embora jé parega muito complicada devido As numerosas agdes € reagdes que atuam incessantemente entre si, e também devido As necessidades instintivas, as paixdes animicas e as inspiragdes intelectuais, seria ainda muito simples e denotaria apenas a existéncia de um ser necessitado, se ndo tivéssemos de levar em conta essa quarta vida, que contém as trés outras e dé ao homem a liberdade que ele ndo teria sem ela. Redobremos aqui a atengao, pois 0 assunto é importante e dificil Sobre o proprio centro da esfera animica, causa primeira do ser espiritual humano, se apéia um outro centro que Ihe é inerente, cuja circunferéncia, desdobrando-se, atinge os pontos extremos das esferas instintiva e intelectual, envolvendo-as igualmente. Essa quarta esfera, em cujo interior movem-se as trés esferas do instinto, da alma e do espirito, dependendo do lugar e conforme procurei descrever, € a esfera do poder eficiente, volitivo, cuja esséncia, emanada da Divindade, é indestrutivel e incontestivel como ela. Essa esfera, cuja vida se irradia incessantemente do centro para a circunferéncia, pode ampliar-se ou restringir-se no espaco etéreo até os limites que se poderia chamar de infinitos, se DEUS nao fosse o tnico ser infinito. Eis af a esfera luminosa de que falei no comego deste artigo. Quando a esfera esté suficientemente desenvolvida, sua circunferéncia, determinada pela extensio do seu raio, admite grande nimero de faculdades, umas primordiais, outras secundérias, de inicio frdgil, mas que se fortalecem gradativamente & medida que 0 raio que as produz se fortalece e engrandece. Dentre essas faculdades mencionaremos apenas doze, seis primordiais e seis secundérias, partindo das mais inferiores para as mais elevadas. Essas doze faculdades sfo: a atengio ¢ a percepeao; a reflexio e a repeti¢aio; a comparacio ¢ 0 julgamento; a retencdio ¢ a meméria; 0 discernimento ¢ a compreensio; a imaginagio e a criagio. poder volitivo, que leva suas faculdades consigo por toda parte, as coloca onde quiser, na esfera instintiva, na an{mica ou na intelectual, porque esse poder est sempre no lugar onde deseja estar. A vida triplice que descrevi é seu dominio, usando-o A vontade, sem que nada possa atentar contra sua liberdade, exceto ele mesmo, como mostrarei no decorrer desta obra. Assim que uma sensagio, um sentimento, um assentimento se manifestam em uma das trés vidas que Ihe esto submetidas, ele tem sua percepcio pela atengHo que Ihe dé e, utilizando sua faculdade de buscar para sia repetigdio, mesmo na auséncia da sua causa, ele os examina pela reflexiio. A comparagio que ele faz destes, segundo tipo que aprova ou reprova, determina seu julgamento. Em seguida, ele forma sua meméria pela retengio do seu proprio trabalho, chega a0 discernimento e, por conseguinte, 4 compreensio, ¢ finalmente retine e coteja pela imaginagio as idéias disseminadas ¢ chega a criag&io do seu pensamento. Como vemos, nfo € correto que se confunda, na linguagem comum, uma idéia com um pensamento. Uma idéia 0 efeito simples de uma sensagdo, de um sentimento ou de um assentimento, a0 paso que um pensamento é um efeito composto, um resultado por vezes imenso. Ter idéias é sentir; ter pensamentos € operar. ‘A mesma operagio que acabo de descrever sucintamente & executada de igual modo sobre as necessidades, as paixGes e as inspiragdes, mas, neste gtimo caso, o trabalho do poder volitivo é central, ao passo que no primeiro ele era circunferencial. E aqui que esse poder magnifico se mostra em todo o seu esplendor, torna-se um tipo do universo e merece o nome de microcosmo, que toda a Antigiidade Ihe deu. Assim como a esfera instintiva atua pela necessidade, a animica pela paixo e a intelectual pela inspiragao, a volitiva atua pela determinagao, e desta depende a liberdade do homem, sua forga e a manifestagao de sua origem celeste. Nada é to simples quanto esta ag3o que fildsofos e moralistas tém tido tanta dificuldade em explicar. Tentarei torné-la compreensivel. A presenca de uma necessidade, de uma paixdo ou de uma inspiragdo provoca, na esfera onde é produzida, um movimento giratério mais ou menos rapido, conforme a intensidade de uma ou outra, Este movimento é normalmente chamado de apetite ou apeténcia no instinto, e emogao ou arrebatamento na alma e no esptrito. Muitas vezes esses termos substituem-se uns aos outros e variam com sindnimos cujo sentido expressa mais ou menos forca no movimento. O poder volitivo, assim abalado, tem trés determinagdes que ele pode seguir livremente: primeiro, ele cede ao movimento e sua esfera gira na mesma direcao da esfera agitada; segundo, ele the resiste, girando no sentido oposto; terceiro, ele permanece em repouso. No primeiro caso, ele se deixa constranger pelo instinto, encantar pela alma ou comover pelo espirito, € & conivente com a necessidade, a paixdo ou a inspiragao. No segundo caso, ele as enfrenta e amortece-lhes 0 movimento com o seu; no terceiro, ele suspende a aquiescéncia ou a recusa e examina 0 que melhor the convenha fazer. Seja qual for a sua determinagdo, sua vontade eficiente, livremente manifesta, encontra meios de servir as suas diversas apeténcias, combaté-las ou meditar sobre suas causas, suas formas e suas conseqiiéncias. Esses meios, encontrados na irradiagao continua do centro para a circunferéncia, e desta para o centro, sdo muito numerosos. Mencionarei aqui apenas os que dizem respeito mais especificamente as doze faculdades ja citadas. A atengio e a percepcdo agem por individualizagio e numeragio. A reflexdo e a percepeio, por decomposigio e andlise. A comparacio e o julgamento, por analogia e sintese. A retengo e a meméria, por método e categoria. O discernimento e a compreensio, por indugio ¢ dedugio. A imaginagio e a criagio, por abstragiio e generalizacio. © emprego desses meios, e de muitos outros que demorarfamos muito para citar, chama-se meditagiio. Esta constitui a forga da vontade que a emprega. A aquiescéncia dessa vontade, ou sua resisténcia, conforme sejam bem ou mal aplicadas, conforme sejam discutidas momentaneamente ou por muito tempo, fazem do homem um ser poderoso ou fraco, elevado ou vil, sdbio ou ignorante, virtuoso ou pervertido. As oposigdes, as contradigdes e os tumultos de sentimento de toda sorte que se avolumam em seu seio so causados apenas pelos movimentos das trés esferas vitais, a instintiva, a animica e a intelectual, muitas vezes opostas entre si, e com mais freqiiéncia ainda em contradigao com 0 movimento regulador do poder volitivo, que recusa sua ades4o determinativa, ou que 6 a concede apés violentos combates. Quando as resolugdes da vontade tém lugar sobre os objetos da atividade da sensagdo, do sentimento ou do assentimento, a aquiescéncia ou a resistencia seguem simultaneamente o impulso do instinto, do entendimento ou da inteligéncia, e levam seu nome. Quando precedidas da meditagao, elas assumem o cardter do senso comum, da razio ou da sagacidade, e dizemos que elas Ihes pertencem e podem até mesmo ser sua prépria criagao. Apés esta répida descrigo da constituigo intelectual e metafisica do homem, creio ser desnecessario dizer que isto ndo passa de um esbogo e exige de quem quiser entendé-Io na sua totalidade e nos seus detalhes, uma atengzio muito intensa e um estudo constante. Gostaria de evitar tanto trabalho aos meus leitores, e poder-se-ia talvez pensar que eu conseguiria fazé-lo entrando em maiores detalhes; ledo engano, Isto s6 me faria estender a descri¢do, 0 que apenas Ihe diminuiria a clareza. Disse tudo 0 que era essencial dizer; envidei todos os esforgos para bem determinar as 19 massas. Quanto aos detalhes, é preciso evité-los tanto quanto possivel num assunto em que eles si0 infinitos, o que acontece precisamente neste caso. Ademais, teremos, nesta obra, varias ocasides de aplicar e desenvolver os princpios que apresentei. Por ora resta-me apenas prevenir sobre algumas dificuldades que poderemos encontrar na sua aplicago. Como 0 homem jamais foi analisado com tanto rigor no seu conjunto como acabo de fazer, € tampouco sua anatomia metafisica jamais foi apresentada com tanta clareza, estamos acostumados a freqiientemente tomar uma s6 das suas partes como o todo e dar o nome de alma, por exemplo, nao apenas & alma propriamente dita, mas também as trés esferas vitais até & esfera volitiva que as envolve. Outras vezes, contentamo-nos em dar a0 conjunto © nome de espirito, em oposigio a corpo, e também inteligéncia, em oposigio a instinto. Até pouco tempo considerava-se apenas 0 entendimento como a reunifo de todas as faculdades, e a razio como a regra universal, certa ou errada, de todas as determinagdes da vontade. Esse abuso dos termos no poderia ser perigoso se pudesse ser compreendido. O que se faz por hébito pode-se continuar fazendo para comodidade do discurso e para evitar a prolixidade de uma elocugo complicada. Mas é preciso tomar cuidado para nao fazé-lo por ignorancia. Se quisermos conhecer 0 homem em si € preciso considerar 0 que acabo de descrever, pois ele é assim. Contudo, quando digo que o homem & assim, deve-se entender que se trata do homem em geral, considerado de maneira abstrata na possibilidade da sua esséncia. O homem individual raramente & desenvolvido em todas as suas variagdes mentais, mesmo hoje em dia, quando 0 reino hominal desfruta de grande poder na natureza. Nos primérdios do reino, a maior parte da humanidade estava longe de ser o que é atualmente. No individuo, a vida instintiva predominava, a vida animica apenas langava fracas centelhas e a intelectual existia apenas como embrido. Assim como vemos uma crianga nascer, com todos os seus érgdos débeis, privada, inclusive da maior parte dos sentidos fisicos, sem qualquer indicagao das faculdades imponentes que deverd ter um dia, assim como a vemos desenvolver-se pouco a pouco, tomar forgas, adquirir a audigdo e a visio que Ihe faltavam, crescer, conhecer suas necessidades, manifestar suas paixdes, dar provas da sua inteligéncia, instruir-se, esclarecer-se e, finalmente, tomar-se um homem perfeito pelo uso da sua vontade, assim também devemos considerar que 0 reino hominal passa por todas as fases da infiincia, adolescéncia, juventude e maturidade. Um homem em particular esté para a grande nagZo assim como uma grande ago est para o reino em geral. Quem sabe, por exemplo, quantos homens completaram sua existéncia desde os mais pilidos albores da aurora da vida até seu extremo declinio, entre os povos da Assiria ou do Egito, durante a longa existéncia destes? E quem sabe quantos povos semelhantes estaro destinados também a brilhar e se extinguir no palco do mundo, antes que 0 Homem Universal entre em decadéncia? Ao tracar 0 quadro metafisico que vimos, considerei o homem no mais amplo desenvolvimento que ele pode atingir atualmente. Todavia, este desenvolvimento no pertence a todos os homens ¢ sequer & maioria deles, sendo o apandgio de apenas pequeno ntimero. A natureza no fez. os homens iguais, e as almas diferem ainda mais que os corpos. J4 enunciei esta grande verdade nos meus Exames dos Versos de Ouro de Pitégoras, mostrando ser essa a doutrina dos mistérios ¢ 0 pensamento de todos os sabios da Antiglidade. A igualdade esté, sem duivida, na esséncia volitiva de todos, pois esta € divina; mas a desigualdade introduziu-se nas faculdades através da diversidade do emprego e da diferenga do exereicio. Tampouco o tempo € medido de igual modo para uns e para outros; as posigdes mudaram e os caminhos da vida encurtaram-se ou alongaram-se. E embora seja certo que todos os homens, partidos do mesmo prinefpio, devam chegar ao mesmo objetivo, a grande maioria deles esti longe de alcangé-lo, e enquanto alguns j4 0 atingiram e outros esto prestes a fazé-lo, muitos, obrigados a recomecar seu percurso, apenas escapam ao nada que os teria tragado se a eternidade da sua existéncia ni estivesse assegurada pela eternidade do seu autor. 20 Portanto, na atualidade das coisas, a igualdade animica é uma quimera ainda maior que a igualdade das forgas instintivas do corpo. A desigualdade esté por toda parte, mais na inteligéncia do que em todo o resto, porque existe, entre os homens de hoje, principalmente entre aqueles cuja civilizagio estd apenas delineada, um grande niimero cujo centro intelectual sequer comega a se desenvolver. Quanto a igualdade politica, veremos mais adiante, nesta obra, que devemos pensar a respeito. 4-0 HOMEM E UM DOS TRES GRANDES PODERES DO UNIVERSO; QUAIS SAO OS OUTROS DOIS? Evitemos a falha que quase todos os filésofos tém cometido, sobretudo nestes tempos modemos, ¢ pensemos que, se é ridiculo pretender escrever sobre o homem sem conhecé-lo, € ao mesmo tempo ridiculo e odioso pretender tragar-lhe um caminho sem saber claramente seu lugar de origem, 0 destino para o qual se dirige e 0 objetivo da jornada. Conhecamos bem, sobretudo, a sua posicio e, como ele préprio € um poder, indaguemos atentamente quais so os poderes superiores e inferiores com os quais ele deve estar em contato. Que o Homem universal € um poder, foi constatado por todos os c6digos sagrados das nagdes & observado por todos os sabios, e todos os verdadeiros eruditos 0 reconhecem. Li num Diciondrio de Histéria Natural, recentemente publicado, estas frases notaveis: "0 homem possui a esséncia do poder organizador; é em seu cérebro que desabrocha a inteligéncia que presidiu a formagdo dos seres... Ele nasce ministro ¢ intérprete das vontades divinas sobre tudo 0 que respira... Confiaram- Ihe 0 cetro da terra". Cerca de quinze séculos antes da nossa era, Moisés pusera estas palavras na boca da Divindade dirigindo-se ao homem: Frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra. Que 0 esplendor deslumbrante, que 0 brilho aterrador que vos envolverd encha de respeito todos os animais; desde as aves das regides mais altas ao réptil que recebe 0 movimento original do elemento adamico, e até o peixe dos mares, sejam todos igualmente postos sob o seu dominio”. E muito tempo depois de Moisés, 0 legislador dos chineses diria, em termos corretos e sem figuras de ret6rica, que o Homem é um dos trés poderes que regem 0 universo. E preferivel, sem dtivida, receber estes textos ¢ uma infinidade de outros que eu poderia citar neste mesmo sentido, do que acreditar como Anaxégoras, copiado por Helvécio, que 0 homem & um animal cuja inteligéncia total surge da conformago de suas maos, ou entio como Hobbes, a quem Locke e Condillac seguem, que ele nfo traz nada consigo, que nada pode usar sem o habito, e que ele nasce perverso e em estado de guerra com seus semelhantes. Mas embora seja verdade, como 0 afirmam todos os sdbios e todos os tedsofos ao tomarem o nome da Divindade por testemunha, que 0 Homem é um poder destinado pela sabedoria eterna a dominar a natureza inferior, a restabelecer a harmonia na discordancia dos seus elementos, coordenar seus reinos entre si e elevd-los da diversidade a unidade, ndo é verdade, como homens mais entusiastas que judiciosos acreditaram sem refletir e examinar, que esse poder surgiu na terra id completo, munido de todas as suas forcas, possuidor de todos os seus desenvolvimentos e, por assim dizer, descendo do céu envolto numa gloria obtida sem dificuldade e numa ciéncia adquirida sem trabalho. Essa idéia exagerada que surge do meio termo justo recomendado pelos sabios, surge também da verdade. Nao ha divida que 0 Homem é um poder, mas um poder embriondrio que, para manifestar suas propriedades, para alcangar os pincaros para onde seus destinos 0 chamam, tem necessidade de uma agdo interior forgada por uma agdo externa que reage com ela. E uma planta celeste cujas ratzes fixadas a terra devem sorver desta as forcas elementares para elabord-las por meio de um trabalho especifico, e que, elevando pouco a pouco seu tronco majestoso, cobrindo-se na sua estagao de flores e frutos intelectuais, amadurecem-nos aos raios da luz divina, oferecendo-os em holocausto ao Deus do universo. a Podemos prosseguir nesta comparagdo, que é muito justa. Uma 4rvore, quando ainda nova, nio produz fruto algum, nem o cultivador Ihe pede nenhum, pois sabe que sua importancia e utilidade maiores exigem uma elaborag3o mais longa e tornam sua espécie menos precoce. Mas chegado 0 tempo da colheita, ele a faz, e cada estagdo que a renova deve aumentar-lhe a quantidade, se a bondade da arvore responder & bondade da cultura. Quando a colheita falha varias vezes seguidas sem que acidentes externos, tempestades e ventos destruidores tenham prejudicado sua fertilidade, considera-se que a arvore é mé, daninha, e como tal, segundo a expresso enérgica de Jesus, deve ser arrancada e langada a0 fogo. Ora, 0 que a cultura é para a arvore, a civilizagdo & para o homem. Sem a cultura, a planta abandonada a uma natureza pobre e enfraquecida s6 produziré flores simples sem beleza e frutos leitosos ou resinosos, insipidos ou azedos e, freqilentemente, venenosos. Sem a civilizagdo, 0 homem, entregue a uma natureza madrasta, severa para com ele por nfo reconhecé-lo como seu proprio filho, 96 desenvolverd faculdades selvagens, mostrando apenas o cariter de um ser deslocado, sofredor e feroz, vido e infeliz. Deste modo, tudo no homem depende da civilizagio. E, portanto, sobre seu estado social que se apdia 0 edificio da sua grandeza. Olhemos atentamente para estes pontos importantes © nio tenhamos medo de estudé-los. Nao existe objeto mais digno do nosso exame nem estudos cujos resultados se nos afigurem mais vantajosos. Mas, como acabo de dizer, se 0 homem nao é, antes de tudo, sendio um poder embrionério que a civilizago deve desenvolver, de onde the advirio os principios dessa cultura indispensivel? Respondo que eles virtio dos dois poderes aos quais ele se encontra ligado e dos quais deverd ser 0 terceiro, conforme a tradigdo do ja mencionado tedsofo chinés. Esses dois poderes, entre os quais, ele esta situado, so 0 Destino e a Providéncia. Abaixo dele esté 0 Destino, natureza necessitada e naturada; acima dele esta a Providéncia, natureza livre e naturante. Como reino hominal, ele € a vontade mediadora, a forga eficiente, situada entre essas duas naturezas para servir-Ihes de elo, de meio de comunicagio, e para reunir duas agdes, dois movimentos que, sem ele, seriam incompativeis. Os trés poderes que acabo de mencionar, a Providéncia, o Homem como reino hominal e o Destino, constituem o ternério universal. Nada escapa sua ago; tudo no universo Ihe é submisso: tudo, exceto Deus, que, envolvendo-os em sua unidade insondavel, forma com eles aquela tétrade sagrada dos antigos, esse imenso quaternério que é tudo no todo e fora do qual nada existe. Terei muito a dizer, nesta obra, sobre esses trés poderes e, na medida do possfvel, mostrarei suas respectivas agdes e © papel que cada um deles tem nos diferentes acontecimentos que modificam 0 cenério do mundo e alteram a face do universo. Seré a primeira vez que os vemos aparecer juntos como causas motrizes, independentes uns dos outros, embora igualmente ligados & causa tinica que 0s rege; serd a primeira vez que os vemos agir segundo sua natureza, juntos e em separado e, assim, dar a razio suficiente de todas as coisas. Esses trés poderes, considerados como principios principiantes, so de dificil definig4o porque, como jé enunciei, nfo se saberia nunca definir um principio. Mas eles podem ser conhecidos pelos seus atos e percebidos em seus movimentos porque no saem da esfera na qual o homem individual esta contido como parte integrante do Homem Universal. O que impede que se possa conhecer e perceber Deus do mesmo modo como se conhece € percebe os trés poderes que dele emanam € que esse Ser absoluto os contém sem estar contido neles e os submete sem Ihes ser submetido, Segundo a bela metéfora de Homero, ele segura a corrente de ouro que envolve todos os seres e que desce das alturas brilhantes do Olimpo até o centro do tenebroso Tértaro. Mas essa corrente, que ele agita a seu bel-prazer, 0 deixa sempre im6vel e livre. Contentemos-nos em adorar em siléncio este Ser inefével, este DEUS fora do qual nao hd Deuses e, sem procurar sondar-Ihe a insondavel esséncia, tentemos conhecer 0 poderoso ternério 2 no qual ele se reflete: a Providéncia, 0 Homem e o Destino. O que direi aqui sera apenas, em substincia, 0 que jé disse em meus Exames sobre os Versos de Ouro de Pitégoras ou alhures, mas num assunto tio dificil é impossfvel no nos repetirmos. Destino € a parte inferior e instintiva da Natureza universal, a que chamei de natureza naturada Damos a sua ago propriamente dita 0 nome de fatalidade e a forma pela qual ela se manifesta chama-se necessidade. F ela quem liga a causa ao efeito. Os trés reinos da natureza elementar, mineral, vegetal ¢ animal, so 0 dominio do Destino, isto 6, tudo ali se passa de um modo fatal e inevitavel, segundo leis previamente determinadas. O Destino ndo causa o principio de nada, mas apodera-se dele, desde que Ihe seja dado, para dominar-Ihe as consequéncias. pela simples necessidade dessas conseqtiéncias que ele influencia o porvir e se faz sentir no presente, pois tudo o que possui como propriedade sua esté no passado. Portanto, podemos entender como Destino aquele poder segundo 0 qual concebemos como as coisas feitas sio feitas, que elas so assim e no de outro modo, e que, uma vez estabelecidas segundo sua natureza, elas tém resultados inevitaveis que se desenvolvem sucessiva e necessariamente. No momento em que surge na terra, o homem pertence ao Destino, que por muito tempo o arrasta no turbilhdo da fatalidade. Porém, embora mergulhado nesse turbilhdo, e de inicio submetido & sua influéncia como todos os seres elementares, ele traz. consigo um germe divino que jamais poderia confundir-se inteiramente com ele. Esse embrio, que sofre a ago do préprio Destino, desenvolve- se para enfrenti-lo. & uma centelha da vontade divina que, participando da vida universal, penetra na natureza elementar para trazer-Ihe a harmonia. A medida que se desenvolve, esse embridio atua, segundo sua energia, sobre as coisas inevitdveis, e atua livremente sobre elas. A liberdade € sua esséncia. Tal € 0 mistério do seu prinefpio que sua energia aumenta & medida que € aplicada, e sua forca, embora infinitamente comprimida, jamais é vencida. Quando este embrido esté totalmente desenvolvido, ele constitui a Vontade do Homem universal, um dos trés grandes poderes do universo. Como j4 disse, esse poder, igual ao do Destino, que Ihe ¢ inferior, e também ao da Providéncia, que Ihe é superior, exalta somente a Deus, a0 qual os outros esto igualmente submetidos, cada um segundo sua posigao. E a vontade do homem que, como poder mediano, retine © Destino e a Providéncia. Sem ele, esses dois poderes extremos nao s6 jamais se reuniriam como também no se conheceriam. Essa vontade, desenvolvendo sua atividade, modifica as coisas coexistentes, cria coisas novas que se tornam imediatamente propriedade do Destino, e prepara, para © futuro, mutagdes no que esti feito e conseqiiéncias necessérias no que vird a ser. A Providéncia é a parte superior e inteligente da Natureza universal, a que dei o nome de natureza naturante. E uma lei viva, emanada da Divindade, por meio da qual todas as coisas determinam seu potencial de ser. Todos os prinefpios inferiores emanam dela; todas as causas extraem do seu seio sua origem e sua forga. O objetivo da Providéncia € a perfeigao de todos os seres, ¢ esta perfeiga0 incontestavel ela recebe do préprio DEUS. O meio que ela usa para atingir esse objetivo é o que chamamos de tempo. Mas, segundo a idéia que fazemos dele, o tempo no existe para ela. Ela 0 concebe como um movimento da etemnidade. Esse poder supremo nao age imediatamente, exceto sobre as coisas individuais. Mas essa ago, por um encadeamento das suas conseqtiéncias, pode fazer-se sentir indiretamente sobre as coisas particulares, de modo que os menores detalhes da vida humana podem interessé-la ou ser por ela deduzidos, conforme estejam ligados por elos invistveis a acontecimentos universais. © homem é um embrigo divino que ela semeia na fatalidade do Destino para modificar essa fatalidade e dominé-la através da vontade desse ser mediano. Sendo essencialmente livre, essa vontade pode impor-se tanto sobre a ago da Providéncia como sobre a do Destino, mas com a seguinte diferenga, pelo menos: se ela realmente altera 0 acontecimento do Destino, que era fixo necessirio, e isto opondo necessidade contra necessidade e 0 Destino a0 Destino, ela nada pode contra o acontecimento providencial, precisamente porque este é indiferente em sua forma e sempre alcanga seu objetivo, seja por que caminho for. Somente o tempo e a forma variam. A Providéncia nao esta presa nem a um nem a outro € a tinica diferenga € para 0 homem, 23 que muda as formas da vida, encurta ou alonga o tempo, frui ou sofre conforme faga o bem ou 0 mal. Isto 6, conforme ele una sua aco particular & ag4o universal, ou dela a diferencie. Eis 0 que posso dizer, em linhas gerais, sobre esses trés grandes poderes que compdem o ternério universal e sobre a ago da qual todas as coisas dependem. Bem sei que 0 leitor, mesmo sem estar muito atento, verd que falta muita coisa no que acabo de dizer e poderia queixar-se da indefinigto e obscuridade das minhas expresses, mas se este assunto é vago e obscuro, nao é por culpa minha. Se fosse assim to facil fazer a distingo entre a Providéncia, 0 Destino e a Vontade do homem, se pudéssemos chegar a conhecer esses trés poderes sem esforgos penosos, e se, a evidéncia da sua existéncia, pudéssemos acrescentar a classificagdo clara e precisa dos seus atributos, no vejo porque algum sabio ainda ndo tivesse mostrado suas respectivas agdes, nem tentado fundar sobre elas as bases dos seus sistemas, tanto fisicos quanto metatisicos, politicos ou religiosos. E bom que ele tenha algumas dificuldades em fazer a distingo que tento fazer pela primeira vez desde Pitdgoras ou Kung-Tzé, pois a maioria dos autores que me precederam no caminho viu apenas um principio onde existem trés. Uns, como Bossuet, atribuiram tudo a Providéncia; outros, como Hobbes, fizeram com que tudo emanasse do Destino; e um terceiro grupo, como Rousseau, s6 reconheceu, em toda parte, a Vontade do Homem. Muitos homens se perderam na trilha desses dois ‘iltimos e, seguindo a frieza da sua razio ou ardor das suas paixdes, acreditaram ver a verdade ora nas obras de Hobbes ora nas de Rousseau, porque & mais facil compreender 0 Destino e a Vontade, que um e outro escolheram como causa tinica das suas meditagdes, do que na Providéncia, cujo processo mais elevado e quase sempre envolto num véu exige uma inteligéncia mais calma para ser percebido e admitido, uma vez. submetido a razdo instintiva e menos perturbada pelas comogdes das, paixdes animicas. Para corresponder & esperanca dos meus leitores gostaria, de bom grado, de poder demonstrar-Ihes, a maneira dos geOmetras, a existéncia desses trés poderes e de Ihes ensinar a reconhecé-los por toda parte onde sua ago propriamente dita se manifeste. Mas esta seria uma tarefa to indtil quanto ridicula. Tal demonstragio nfo pode limitar-se a um silogismo; um conhecimento também tao amplo nao pode resultar de um dilema, Independente das palavras que eu empregue, é preciso que a meditagio do leitor sempre supra a insuficiéncia do discurso. Eu me consideraria muito feliz se, a0 término da obra a que me dedicarei, essa demonstragio fizesse parte do conjunto dos fatos e que esse conhecimento estivesse contido na comparago e na aplicago que o leitor judicioso nio deixard de fazer. Nao me descuidarei de nada para Ihe facilitar essa tarefa e aproveitarei todas as ocasides, que se apresentaro em grande ntimero, para rever as nogdes gerais ja apresentadas & comprové-las mediante exemplos. Esta Dissertagio Introdut6ria poderia terminar aqui porque, aps ter exposto 0 motivo € assunto da minha obra, e ter apresentado a anélise das faculdades do ser que deverd ser seu objeto principal, desvendei previamente aqui as causas motrizes dos acontecimentos que descreverei. Entretanto, para responder na medida das minhas possibilidades ao desejo de alguns amigos cuja aprovacdio me & preciosa, e que insistiram para que eu entrasse em mais alguns detalhes sobre o que entendo ser os, trés grandes poderes que regem 0 universo, acrescentarei a0 que ja disse um exemplo especifico, tirado do reino vegetal, aquele dos trés reinos inferiores em que 3 ago desses trés poderes é mais equilibrada e uniforme e parece expor-se melhor ao exame. Tomemos uma bolota de carvalho. Digo que esta bolota contém a prdpria vida de um carvalho, a germinagao da arvore que traz. seu nome, suas rafzes, seu tronco, seus ramos, sua arborificagio, sua frutificag3o, tudo 0 que compord o carvalho, com a seqiiéncia incalculével de carvalhos que ele poder produzir. Para mim, existem aqui dois poderes claramente manifestos. Primeiro, sinto um poder oculto, incompreensivel, imperceptivel em sua esséncia, que infundiu nessa bolota a vida em potencial de um carvalho, que especificou essa vida, a vida de um carvalho e nfo a de um olmo, um élamo, uma nogueira ou qualquer outra arvore. Essa vida, que se manifesta na forma vegetal, e na forma vegetal de um carvalho, est4, ndo obstante, ligada a vida universal, pois tudo 0 que vive emana desta vida. Tudo o 4 que é, é: ndo existem dois verbos ser.5 Ora, esse poder oculto, que dé o poder de ser e especifica a vida nesse poder de ser, chama-se PROVIDENCIA. Segundo, vejo nessa bolota um poder patente, compreensivel, perceptivel em suas formas que, manifestando-se como o efeito necessério da infusio vital de que falei, e que foi feito ndo se sabe como, mostrard irresistivelmente o porqué, isto 6, fard surgir um carvalho toda vez que uma bolota se encontrar em situagio conveniente para isso. Esse poder, que sempre se apresenta como a conseqiiéncia de um principio ou o resultado de uma causa, chama-se DESTINO. Existe entre 0 Destino e Providéncia uma diferenga notavel. Para existir, 0 Destino tem necessidade de uma condi¢ao, como acabamos de ver, a0 passo que a Providéncia nfo precisa de necessidade para ser. Portanto, existir € 0 verbo do Destino; mas somente a Providéncia é. Entretanto, no momento em que examino aquela bolota, tenho o sentimento de um terceiro poder que nao esté dentro da bolota e que pode dispor dela. Esse poder, que esté ligado a esséncia da Providéncia porque ele é, e também depende das formas do Destino porque ele existe, eu 0 sinto livre porque esté em mim e nada me impede de desenvolvé-lo nos limites da minha forga. Seguro a bolota; posso comé-la, assimilando-a a minha substincia; posso dé-la a um animal, que a comer; posso destruf-la, esmagando-a sob os pés; posso semed-la e fazé-la gerar um carvalho... Eu a esmago sob meus pés: a bolota € destruida. Terei suprimido seu destino? Nao. Ele mudou; um novo destino, que € obra minha, comeca para ela, Os restos da bolota se decompdem de acordo com leis, fatais, fixas e irresistiveis; 0s elementos nela reunidos para entrar em sua composigao se dissolvem e cada um retorna ao seu lugar; e a vida & qual serviam de invélucro, inalterével em sua esséncia, transportada novamente pelo seu veiculo apropriado nos canais nutritivos de um carvalho, fecundaré outra bolota e se oferecerd de novo aos acasos do destino. O poder que é assim capaz de se apoderar dos principios oferecidos pela Providéncia e agir eficazmente sobre as conseqiiéncias do Destino chama-se Vontade do Homem. Essa Vontade pode agir igualmente sobre todas as coisas, fisicas e metafisicas, submetidas 4 sua esfera de atividade, porque a natureza é idéntica em toda parte. Ela no s6 pode interromper e mudar © destino, como também modificar todas as suas conseqliéncias. Ela também pode transformar os principios providenciais, sendo esta, sem diivida, a sua mais sublime vantage. Darei um exemplo dessa modificagao e dessa transformacio, de acordo com a comparagio que fiz no reino vegetal, que € mais ficil de compreender e generalizar. Vamos supor que, em lugar de examinar uma bolota, eu tenha examinado uma maga, porém uma magi silvestre, dcida, que ainda nfo recebeu as influéncias do destino. Se eu semear essa maga € cultivar cuidadosamente a érvore que dela brotard, os frutos que ela produzir sero sensivelmente melhores e continuardo a melhorar cada vez. mais com a cultura. Sem essa cultura, efeito da minha Vontade, nada melhoraria, pois o Destino é um poder estaciondrio que nao conduz nada a perfeigao. Mas como eu possuo unia macieira melhorada pela cultura posso, através de enxerto, servir-me dessa macieira para melhorar grande nimero de outras e modificar seus destinos, transformando-as de fcidas em doces. Posso fazer mais ainda. Posso transportar seu principio para as plantas silvestres de outra espécie, transformando-as de arbustos estéreis em drvores frutiferas. Ora, 0 que se opera num reino usando-se a cultura, opera-se em outro se usando a civilizagdo. As instituigdes civis e religiosas fazem neste 0 que as diferentes culturas e enxertos fazem naquele outro. Segundo 0 que acabo de dizer, parece-me facil distinguir, no reino vegetal, a ag2o da Providéncia, do Destino e da Vontade do homem, respectivamente, Sem dtivida, nfo é to fécil assim no reino animal, € menos ainda no reino nominal. Mas tal ago nao escapa da vista do espirito a ponto de esta visio ndo poder percebé-Ia uma vez. que 0 espirito possa admitir sua existéncia, Nela, a ago do destino e a da vontade dirigem-se juntas rumo & descoberta. Reconhego que a Providéncia é a mais, *Pode-se ver o que ev disse, sobre esse verbo nico, em minha Grammaire de la langue hebraique, Cap. VIL, §1 25 oculta e a mais velada. Ela deve ser assim para que jamais possa ser compreendida. Se pudesse prever antecipadamente os designios da Providéncia, o homem, em virtude do seu livre arbitrio, poderia opor-se A sua execucdo. Isto jamais deve acontecer, pelo menos diretamente. De resto, hd uma tiltima pergunta que me podem fazer sobre a esséncia dos trés poderes universais, cuja agdo tentarei mostrar pela primeira vez. Eu disse que elas emanam do proprio DEUS e formam um ternério que a unidade divina envolve. Mas, deveriamos concebé-las como trés seres distintos? Nao, mas como trés vidas distintas num mesmo ser; trés leis, trés modos de ser, trés naturezas contidas numa tinica Natureza. O homem, cuja constituigao metafisica j4 apresentei, é uma imagem resumida do universo, Ele vive igualmente de trés vidas que sua unidade volitiva envolve. Ao comparar 0 universo com homem, podemos conceber que a Providéncia representa nele a esfera intelectual; 0 Destino, a esfera instintiva, e a propria vontade do Homem, a esfera animica. Essas esferas ndo sfo trés seres distintos, embora, para nfo alongar-me por demais e para evitar as perifrases, eu as personificarei com freqiiéncia, mostrando sua ago. Como jé disse, trata-se de trés vidas diversas, vivendo da vida universal e dando vida particular a grande niimero de seres providenciais, instintivos ou anfmicos, isto é, que seguem a lei da Providéncia, do Destino ou da Vontade. Assim, quando eu disser, mais adiante, que a Providéncia, 0 Destino ou a Vontade age, estarei dizendo, com isso, que a lei providencial, fatidica ou volitiva se desenvolve, toma-se causa eficiente e produz este ou aquele efeito, este ou aquele acontecimento. Estarei dizendo também que, dependendo da ocasiio, que se percebe facilmente, quaisquer seres submetidos a uma dessas leis, servem a esse movimento ou o provocam, Para citar um exemplo entre mil outros, quando digo que a Providéncia guiou Moisés, esta frase quer dizer que a lei providencial é a lei daquele homem divino e que ele vive principalmente da vida. Intelectual da qual ela é a reguladora. Quando digo que 0 Destino provoca a tomada de Constantinopla pelos turcos, isto quer dizer que a tomada daquela cidade é uma conseqiiéncia fatal de acontecimentos anteriores, € que o impulso dos turcos que a tomam obedece lei fatfdica a qual obedecem. Por fim, quando digo que Lutero € 0 instrumento da Vontade do homem que provoca um cisma na cristandade, isto quer dizer que Lutero, arrastado por paixGes anfmicas muito fortes, tomna-se intérprete de todas as paixOes andlogas as suas ¢ Ihes oferece um foco onde seus raios, encontrando-se e refletindo-se, geram uma conflagracdo moral que reduz.a fragmentos o culto cristdo. Feitos estes esclarecimentos e dadas estas explicagdes, acredito ndo ter esclarecido nem explicado tudo. Mas sou obrigado a me apoiar um pouco na sagacidade do leitor, que supriré o que eu possa ter omitido. Decidido a desvendar 0 que meus estudos e minhas meditagdes me ensinaram sobre a origem das sociedades humanas e sobre a historia do homem, atrevi-me, em poucas paginas, a percorrer um espago de doze mil anos. Vi-me em presenga de grande ntimero de fatos que procurei classificar, € de uma multidao de seres cujo cardter tracei rapidamente. Minha pena, consagrada A verdade, jamais cedeu diante dela. Sempre a disse com a forte conviegao de dizé-la. Se meus leitores podem reconhecer o sinal indelével com que a Providéncia a marcou, sua aprovagio serd a mais doce recompensa para meus esforgos. Se, apés reflexGes judiciosas, eles julgarem que eu estava errado, atrevo-me, ainda assim, a me apoiar na eqiidade do seu julgamento para crer que, a0 desconfiarem de que me tenha enganado, eles pelo menos niio duvidaro da perfeita boa fé que me impossibilita o desejo de iludir alguém. 0 ESTADO SOCIAL DO HOMEM PRIMEIRA PARTE LIVRO PRIMEIRO CAPITULO PRIMEIRO 26 DIVISAO DO GENERO HUMANO, CONSIDERADO COMO REINO HOMINAL, EM QUATRO RAGAS PRINCIPAIS. DIGRESSAO SOBRE A RAGA BRANCA, OBJETO DESTA OBRA Nesta obra abordarei nao a origem do Homem, mas a das sociedades humanas. A Hist6ria ocupa-se unicamente da segunda dessas origens. Cabe & cosmogonia desvendar a primeira. A Hist6ria pega 0 homem no momento da sua aparigao na Terra e, sem se inquietar com 0 seu princfpio ontol6gico, procura encontrar 0 principio da sociabilidade que o leva a aproximar-se dos seus semelhantes abandonar o estado de isolamento ¢ ignorancia a que a natureza parece té-lo reduzido, quase nao 0 distinguindo, pela forma, de vérios outros animais. Direi qual o prinejpio divino que a Providéncia implantou em seu seio mostrarei por quais circunstincias necessérias, que dependem do Destino, esse principio de perfectibilidade reage, como ele se desenvolve e que recursos admiriveis ele recebe de si mesmo, quando o homem que ele instrui pode utilizar sua vontade para adogar cada vez mais, pela cultura de seu espirito, o que seu destino tem de rigoroso e selvagem, a fim de conduzir sua civilizagio e sua felicidade ao mais alto grau de perfeigo que elas podem alcangar. Para isto, transportar-me-ei para uma época bem afastada daquela em que vivemos e, firmando 0 olhar que um juizo ha muito preestabelecido poderia ter enfraquecido, fixarei através da escuridao dos séculos 0 momento em que a raga branca da qual fazemos parte surgiu no mundo. Nessa época, cuja data procurarei determinar mais tarde, a raga branca ainda era frégil, selvagem, sem lei, sem artes, sem qualquer tipo de cultura, privada de lembrangas e por demais desprovida de entendimento para conceber sequer uma esperanca. Ela habitava as vizinhangas do pélo boreal, onde se originou. A raga negra, mais antiga, dominava entio a Terra e detinha o cetro da ciéncia e do poder. Ela possufa toda a Africa e a maior parte da Asia, onde escravizara e oprimira a raga amarela. Alguns remanescentes da raga vermelha enfraqueciam obscuramente nos cumes das mais altas montanhas da América e sobreviviam & horrivel catdstrofe que os atingira. Esses frégeis remanescentes eram desconhecidos. A raga vermelha, a qual tinham pertencido, possufra outrora o hemisfério ocidental do globo; a raga amarela, o oriental ¢ a raga negra, entéio soberanas, estendiam-se para o sul, na linha equatorial, ete. Como acabei de dizer, a raga branca, apenas nascida, errava nas proximidades do pélo boreal. Essas quatro racas principais e as numerosas variedades que podem advir de suas misturas, compéem o Reino Hominal.§ A bem dizer, elas sio para este Reino o que os géneros so para os outros reinos. Nele, podemos conceber as diferentes nagdes e povos como espécies particulares nesses géneros. Essas quatro ragas se confrontaram e se destruiram altemadamente e, com freqlléncia, se sobressairam e se arruinaram. Muitas vezes elas disputaram 0 cetro do mundo, conquistando-o ou dividindo-o repetidamente. Nao pretendo entrar nessas vicissitudes, anteriores 3 ordem atual das coisas, cujos detalhes infinitos me sobrecarregariam com um fardo inttil endo me levariam a0 objetivo a que me proponho. Devo ater-me unicamente & raga branca, a qual pertencemos, ¢ esbogar-Ihe a hist6ria desde sua tiltima aparigo nas proximidades do pélo boreal. Foi dali que ela desceu varias vezes, em grandes mimeros, para atacar tanto outras ragas, quando estas ainda dominavam, quanto & prOpria raga branca, quando esta alcangara 0 dominio. A vaga lembranga dessa origem, subsistindo na torrente dos séculos, fez com que o pélo boreal fosse chamado de viveiro do género humano, Ela deu origem ao nome Hiperbéreo e a todas as fabulas alegéricas a eles atribuidas. Ela deu, por fim, as numerosas tradigdes que levaram Olalls Rudbeck a situar na Escandindvia a Atlantida de Plato e autorizou Bailly a ver nas rochas desertas © Se lermos a Dissertagao Introdut6ria no comego desta obra e 0 necessério para Ihe dar a compreenslo, saberemos que, por Reino Hominal entendo a totalidade dos homens, comumente chamada de género humano. a © embranquecidas pelas geadas do Spitzberg o bergo de todas as ciéncias, de todas as artes e de todas as mitologias do mundo.” Sem diivida € muito dificil dizer em que época a raga branca ou hiperbérea comegou a se reunir em algumas formas de civilizago. Mais dificil ainda € determinar em que época mais remota ela surgiu. Moisés, que fala deles no sexto capitulo do Bereshit,* sob o nome de Gibéreos, cujos nomes, segundo eles prdprios, foram to célebres nas profundezas dos tempos, situa sua origem nos primérdios do mundo. Encontramos freqlientemente 0 nome dos Hiperbéreos nos textos dos antigos, porém jamais qualquer esclarecimento positivo a seu respeito. Segundo Deodoro da Sicilia, seu pais estava mais préximo da Lua, que podemos entender como a latitude do pélo onde viviam. Em seu Prometeu, Esquilo os situava nos montes Rifeus. Um certo Aristeu de Proconeso que, segundo consta, escreveu um poema sobre esses povos ¢ alegava té-los visitado, afirmou que eles ocupariam a regio nordeste da Alta Asia, hoje chamada Sibéria. Hecateus de Abderas, numa obra publicada na época de Alexandre, os situava mais longe ainda, alojando-os entre os ursos brancos de Nova Zembla, numa ilha chamada ElixGia. A verdade pura, como o reconheceu Pindaro mais de cinco séculos antes de nossa era, 6 que ignoramos totalmente a regido onde ficava a terra desses povos. O proprio Herddoto, to interessado em reunir todas as tradigGes antigas, interrogara inutilmente os Citas a respeito deles, sem nada descobrir de certo. Todas estas contradigdes e incertezas originam-se da confusio que se fazia sobre uma raga de homens, da qual emanaram muitos povos, tomando-a por um tinico povo. Caiu-se, entdo, no mesmo erro em que cairfamos hoje se, a0 confundirmos a raga negra com uma das nagdes por ela constitufdas, quiséssemos circunscrever completamente a Terra com a raga ocupante daquela tinica nag. Por certo a raga negra originou-se nas proximidades da linha equatorial, difundindo-se dali por todo continente africano, de onde em seguida expandiu seu império por toda a Terra e sobre a propria raga branca, antes que esta adquirisse forgas para disputar-Ihe o império. E possivel que, numa época muito remota, a raga negra tivesse dado a si mesma o nome de Sudeana ou Suteana, como a raga branca tomou 0 nome de boreal, gibsrea ou hiperbérea, e que daf tenha surgido o horror em geral associado a0 nome Suteano entre as nagdes de origem branca. Sabe-se que essas nagdes agora localizam a morada do Espirito Infernal no sul, razdlo porque ele 6 chamado de Suth ou Soth pelos egipcios; Sath pelos fenicios e Sathan ou Satan pelos drabes e hebreus.? capiruto uw 0 AMOR, PRINCIPIO DA SOCIEDADE E DA CIVILIZAGAO NO HOMEM: DE QUE MANEIRA Retomemos agora 0 fio das minhas idéias, por um instante interrompido por esta necesséria digressio, e vejamos quais foram os primérdios da civilizago na Raga Boreal, que € a minha ocupagio exclusiva. Acredita-se que na época em que essa Raga apareceu na terra, sob formas muito semelhantes & de varias espécies de animais, ela péde, malgrado a diferenga absoluta de sua origem e a tendéncia 7 Pode-se ver nos textos desses dois autores as numerosas provas que eles apresentam em apoio As suas afirmagées, Essas provas,insuficentes em suas hipGteses, tomam-se insustentveis quando nfo se tata de determinar qual fol a primeira morada da raga brancae o local de sua origem, "fo primeio ivr do Sefer, vulgarmente chamado Genesis. * Este nome forneceu o radical ao nome de Saturno entre os etruscos e de Sathur, Suthur ou Surthur entre os escandinavos, divindadetervel ou benfazeja, dependendo da maneira como € imaginada, E da palara celt-saxdnica Suth que se origina 0 South inglés 0 Suyd belga eo Sud alemio e francés, para designr a rego do globo terreste posta a0 plo oreal,Deve-seabservar que esta palavr, normalmente representa peo termo Midi nto tem qualquer reli ctimolgica com ele, Ela dsigna propriamente tado 0 que € oposo 2 elevagto, tudo 0 gue estéembaix, do 0 gue serve de base ou de sede. A palavrasedimento se origina do latim Sedere, a qual provém do celt-saxioSiten, em alemio Siten, que significa senarse 28 contréria dos seus destinos, confundir-se durante muito tempo com essas espécies. Isso era resultado do entorpecimento das suas faculdades, inclusive as instintivas. Como as duas esferas superiores da alma e do espirito ainda no estavam desenvolvidas no homem, ele entlo s6 vivia pela sensagio e, sempre constrangido por ela, s6 tinha instinto para a percepco, sequer podendo alcangar a atengiio. A individualizagio era seu nico meio; a atragio e 0 temor suas tinicas forgas motrizes e, na auséncia destas, a indoléncia era seu estado habitual." Mas 0 destino do homem nao era viver s6 ¢ isolado na Terra. Ele trazia em si um prinefpio de sociabilidade e de perfectibilidade que nao poderia permanecer eternamente estacionério. O meio pelo qual esse principio seria despertado da sua letargia fora colocado pela elevada sabedoria do seu autor na companheira do homem, a mulher, cuja organizacio, diferente em tantos pontos importantes, fisicos e metafisicos, provocava nela emogdes opostas. Tal fora o decreto divino, desde a origem das coisas, que esse ser universal destinado a impor harmonia aos elementos e a dominar os trés Reinos da Natureza, receberia da mulher os seus primeiros impulsos, e do Amor seus primeiros progressos. © Amor, origem de todos os seres, deveria ser a fonte fecunda da sua civilizagdo e, assim, provocar tantos efeitos contrérios, tantas alegrias e tantas tristezas, além de uma mistura muito grande de ciéncia e cegueira, de virtudes e vicios. Portanto, 0 Amor, principio de vida e de fecundidade, estava destinado a ser 0 conservador do mundo e seu legislador. Verdade profunda que os antigos sbios haviam conhecido e até mesmo enunciado claramente em suas cosmogonias, atribuindo-lhe a organizagio do caos. isis e Ceres, freqlientemente chamadas de legisladoras, eram apenas o tipo divinizado da natureza feminina,"" considerada como 0 foco vivo de onde se refletia esse amor. Se 0 homem tivesse sido apenas um animal puro, tendo sempre as mesmas necessidades, ¢ se sua companheira, a semelhanca das fémeas dos outros animais, tivesse igualmente provado as mesmas necessidades que ele; se ambos tivessem sido submetidos a crises regulares dos mesmos desejos, igualmente sentidos e igualmente compartilhados; se eles tivessem, enfim, para expressar-me em termos adequados, estacdes periddicas de ardor amoroso, de calor ou cio, 0 homem jamais se civilizaria, Mas isto estava longe de ser assim, As mesmas sensagdes, embora oriundas das mesmas causas, ndo tinham os mesmos efeitos nos dois sexos. Isto é digno da maior atengao e peco ao leitor que, por um momento, fixe atentamente sua visio mental neste ponto quase imperceptivel da constituigdo humana. Eis at a semente de toda a civilizagao, 0 ponto seminal de onde tudo deve desabrochar, a poderosa causa de onde tudo deve receber 0 impulso na ordem social. Fruir antes de possuir, eis 0 instinto do homem; possuir antes de fruir, eis o instinto da mulher. Expliquemos isto; mas, por um momento, vamos abstrair as paixdes que o Estado social fez surgir e 08 sentimentos que a imaginago exaltou. Limitemos-nos a um tnico instinto e vejamos como ele atua sob a influéncia apenas das necessidades: consideremos 0 homem da natureza, nio o da sociedade. No momento em que uma sensago agradavel agita 0 instinto desse homem, o que experimentaré ele? Ei-lo. Ele ligard a atrag3o que obrigatoriamente advém dessa sensaco & necessidade atual de fruir seu objeto, e & necessidade mais remota de possui-lo. Isto é, supondo que um fruto qualquer 0 tenha impressionado e excitado seu apetite, 0 homem instintivo experimentard a necessidade de comé-lo antes de experimentar e de achar 0s meios para obté-Io, o que o conduzird repentinamente para frente, independente do que Ihe possa acontecer. Desse modo, se uma sensagio de temor, um rufdo inesperado, o aspecto de um adversério o impressionarem, sua primeira idéia sera de enfrentar * Neste ponto, leitor deve tornar @ ler 0 que eu disse na Dissertaglo Introdutdria sobre a constituigdo metafisica do hhomem, seo tiver esquecido. "0 nome {sis vem da palavra Isha, que significa a mulher, a dama. © nome Céres tem o mesmo radical que a palavra hheré, que quer dizer soberana, Esta palavra heré forma o nome de Juno em grego, H" pn ou H'pa. 2 a causa e no de fugir dela. Mas, se a mulher puramente instintiva encontrar-se em circunstancia parecida, ela sentiré exatamente 0 contrério. Ela ligard A atragio causada por uma sensagio agradavel a necessidade atual de possuir seu objeto, e a necessidade mais distante de frui-lo com toda seguranca. Assim, a visio de um fruto que ela tenha vontade de comer primeiro a fard pensar num modo de possui-lo e a manterd indecisa, de modo que, se uma sensago de temor apoderar-se dela, sua primeira idéia serd a de fugir em lugar de enfrenté-la. Essa disposigdo contréria na constituigio moral dos dois sexos, estabelecendo entre eles, desde 0 inicio, uma diferenga flagrante que impediria suas paixdes de se manifestarem sob as mesmas formas, faria surgir, da mesma sensago, um outro sentimento; dese mesmo sentimento, um outro pensamento, levando-o, por conseguinte, a um movimento totalmente oposto. Fruir antes de possuir € combater antes de fugir era, portanto, o instinto do homem; mas possuir antes de fruir e fugir antes, de combater constituia o da mulher. Ora, se quisermos examinar por um momento as principais conseqtléncias que deveriam resultar desta notavel diferenca, quando ela fosse decidida entre os dois sexos, isto €, quando ele encontrasse uma mulher organizada o bastante para levar somente a sua percepgao até a atengo, veremos ser inevitavel que ela oferecesse a0 homem, conduzido até ela pela atrago sexual, uma resisténcia verdadeira e inesperada porque, muito mais ocupada com a idéia de possuir do que de fruir, e sem qualquer necessidade do apetite que dominava o homem, ela podia examinar em seu instinto que vantagem real a sensagdo oferecida Ihe traria. Como o prazer associado a essa sensagdo nfo existe para ela, € com a auséncia de qualquer vantagem oferecendo-se aos seus olhos com o inseparvel séqliito do temor, ela de repente prefere fugir. Como ja disse, no é da natureza do homem recuar diante de um obstéculo. Ao contrério, seu primeiro impulso é arrosté-lo e vencé-lo. Ao ver a mulher fugir dele, ele nao fica parado nem Ihe dé as costas. Mas, compelido pela atrago que o domina, sai em seu encalgo. Freqiientemente mais, répida que ele, cla Ihe escapa; as vezes ele a agarra, mas seja qual for 0 resultado, a atengiio do homem é despertada. Feliz ou desastroso, 0 proprio resultado do embate Ihe faz. sentir que ele nao atingiu seu objetivo. Ele entJo pensa; mas a mulher pensou antes dele. Ela viu que ndo era bom deixar-se vencer e ele sentiu que teria sido melhor para ele que a mulher tivesse cedido. Entlo, por que ela foge? Sua reflexio, ainda débil, nao Ihe permite compreender que se possa resistir a uma inclinagdo e, sobretudo, que exista outra inclinagdo diferente da sua. Mas 0 fato existe, e se renova. © homem continua pensando. Pela repeticdo interior da sua propria idéia, ele consegue manté-la e, com a formagao da sua meméria, seu génio dé um grande passo. Ele descobre que existem varias necessidades dentro de si e pela primeira vez pode conté-las até trés, diferengando-as. Assim agem na esfera da sua vontade a numeragao e a individualizagao, Se a mulher para a qual uma inclinagGo irresistivel o atra‘a fugiu, sem ddvida uma outra inelinagio exigiu sua fuga. Qual poderia ser essa inclinagi0? Talvez a fome! Essa necessidade terrivel que se presenta na parte instintiva do seu ser, na auséncia da sensagdo propriamente dita, produz nele uma revolucdo importante e repentina. Pela primeira vez, a esfera animica é abalada e a piedade ali se manifesta. Essa doce paixdo, a primeira que afeta a alma, é 0 verdadeiro cardter da humanidade. Ela faz do homem um ser verdadeiramente socivel. Os fildsofos que acreditavam que essa paixio pudesse ser despertada ou provocada, em sua origem, pelo aspecto de um ser sofredor, enganaram- se. O aspecto da dor desperta o temor ¢ este, 0 terror. Essa transformago da sensagiio em sentimento é instantinea, Existe, na piedade, a impressio de uma idéia anterior que se transforma em sentimento sem a ajuda da sensagdo. A piedade é também mais profundamente moral que 0 terror e est mais intimamente ligada & natureza do homem. Mas desde que 0 homem tenha comegado a sentir piedade, ele nio esté longe de conhecer 0 amor. Ele jé reflete sobre os meios que deve usar para evitar que a mulher fuja & sua aproximacio, e cl embora esteja totalmente enganado quanto aos motivos dessa fuga, mesmo assim nao alcanga 0 objetivo dos seus desejos. Ele aproveita uma dupla colheita de fruta, uma caga ou pesca abundante, € quando encontra 0 objeto dos seus desejos, ele Ihe oferece esses presentes. Ante esta visio, a mulher é tocada, nfo da maneira como o julga seu amante, pela satisfagdo de uma necessidade atual, ‘mas pela inclinagiio inata que a leva a possuir. Ela percebe imediatamente toda a vantage que pode tirar desse acontecimento para o futuro, e como 0 atribui, com razo, a um certo encanto que ela inspira, ela tem, em seu instinto, uma sensag&o agradével que Ihe abala a esfera animica, despertando ali a vaidade. Desde © momento em que a mulher recebeu os presentes do homem, e que Ihe estendeu a mao, 0 aco conjugal é urdido e tem inicio a sociedade. CAPITULO I 0 CASAMENTO, BASE DA INSTITUIGAO SOCIAL; QUAL € 0 SEU PRINCIPIO E QUAIS AS SUAS CONSEQUENCIAS? Por menos que sejamos instruidos no conhecimento das tradigdes antigas, nao teremos qualquer dificuldade em reconhecer nelas os dois quadros que acabo de descrever porque, no fundo, ambos sdo verdadeiros, embora suas formas tenham podido variar de mil maneiras, em diferentes 6pocas € lugares. A mitologia grega, to rica e célebre, oferece grande nimero de exemplos desses embates amorosos entre os deuses, ou de sitiros a perseguir ninfas que os evitam. Ora é Apolo seguindo as pegadas de Dafne, Jtipiter que se apressa no encalgo de fo, Pa procurando agarrar Syrinx ou Penélope. Nas cerim6nias nupciais mais antigas, sempre vemos 0 esposo oferecer presentes & esposa € até mesmo constituir-Ihe um dote. Este, que outrora o homem dava, e que, entre alguns povos ainda hoje oferece, mudou de posic&o entre nés e na maior parte das nagdes modemas, devendo ser ofertado principalmente pela mulher, por motivos que mostrarei mais adiante, Todavia, esta mudanga nfo impede que 0 antigo costume sobreviva nos presentes de ntipcias, a que damos 0 nome de cesta matrimonial como se, com a palavra cesta, quiséssemos lembrar que esse presente consistia principalmente de frutos ou de quaisquer alimentos. Nao obstante, 0 acontecimento ao qual atribuf, com justiga, 0 comego da sociedade humana pode repetir-se, simultaneamente ou quase, em lugares diferentes, fazendo com que focos de civilizagio surgissem em grande nimero numa mesma regido. Eram os embrides que a Providéncia langava no seio da raga bérea, € que deveriam desenvolver-se ali sob a influéncia do Destino e da Vontade pessoal do homem. Os sentimentos que haviam reunido os dois sexos, ndo mais pelo efeito de um apetite cego, mas como resultado de um ato pensado, jd nao eram os mesmos, como se disse; mas sua diferenca, ignorada pelos dois conjuges, desaparecia na identidade do objetivo a alcancar. A piedade que 0 homem experimentava permitia-the pensar que sua companheira o escolhia como apoio tutelar; e a mulher, tocada pela vaidade, via na felicidade do esposo a sua obra. De um lado, nascia o orgulho; do outro, a compaixao. Assim, os sentimentos se opunham e se encadeavam nos dois sexos. Desde 0 momento em que 0 instinto sozinho nfo mais preparava 0 leito nupcial, ¢ que um sentimento animico mais nobre ¢ elevado presidia aos mistérios do himeneu, uma espécie de pacto passou a ficar tacitamente celebrado entre os dois esposos, segundo o qual o mais forte dedicar-se-ia A protegdo do mais fraco, e este se manteria ligado aquele. Este pacto, aumentando a felicidade do homem e dando-Ihe a conhecer prazeres que ignorava, aumentou também as suas lides. Cabia-Ihe no $6 prover sua propria subsisténcia, mas também a de sua mulher, quando sua gravidez muito adiantada no mais the permitisse acompanhé-lo, mais tarde também a de seus filhos. A razio instintiva, a que também chamamos de senso comum, ou bom senso, nao tardou a fazé-lo Be compreender que os meios comuns, até entdo suficientes, nio 0 eram mais, e que ele precisava buscar outros. Esta razio, contrapondo-se ao instinto, deu origem a astticia. Ele preparou armadilhas para a caga da qual se nutria, inventou a flecha e a langa do cagador descobriu a arte de tornar sua pesca mais abundante por meio do anzol e da rede. A necessidade e © hébito duplicaram-lhe as forgas e a destreza. Sua mulher, dotada de érgdos mais sutis, acrescentou a uma astticia maior que a dele uma observacdo mais aguda e um pressentimento mais vivo. Ela logo aprendeu a trancar alguns juncos, transformando-os em cestas que, apds servirem de bergo aos filhos, tornaram-se os primeiros méveis da sua morada simples. Fiando toscamente o pelo de varias espécies animais, foi Ihe fécil preparar cordas, que serviram para esticar arco e tecer redes. Sob seus dedos, esses fios grosseiros, urdidos de determinada maneira, logo se transformaram em tecidos simples, cuja invengao sem davida Ihe pareceu t4o admiravel quanto maior era o conforto de usd-los, tanto para seus filhos quanto para ela propria e seu marido. Esses tecidos, que um clima rigoroso freqiientemente tomava necessérios, substituiram as peles dos animais, nem sempre faceis de obter. Julgo ser indtil insistir nesses detalhes, que cada um pode entender como melhor the convier € realgar com as tintas da imaginagao. Apresentados os princfpios, as conseqiiéncias surgem faceis. Pego apenas ao leitor que, neste ponto, tome cuidado para nao cair num erro cuja imputagaio me seria desagradavel. Embora eu evidentemente atribua como prinefpio do estado social 0 casamento, isto é, 0 consentimento livre € miituo do homem e da mulher que se unem por um pacto técito para aceitar e dividir juntos as agruras e os prazeres da vida, e faa a existéncia dessa ligagdo emanar das sensagdes opostas dos dois sexos e do desenvolvimento das suas faculdades instintivas, é bom deixar claro, como acredito ter tido 0 cuidado de fazé-lo, que considero fortuita a formagdo deste enlace. Fosse ele fruto do determinismo, e jamais teria ocorrido. Os animais que a natureza no uniu desde a origem da espécie, ndo se unem jamais. Mas como o homem no é um animal, e sobretudo por ser perfectivel, ele pode passar de um estado a outro e tornar-se, de geragio em geraco, cada ‘vez mais instintivo, animico ou intelectual. O casamento, sobre 0 qual se apéia toda a estrutura da sociedade, é a prépria obra da Providéncia, que em principio o determinou. Quando ele celebra uma convengao, é uma lei divina que se cumpre, e que o faz. por meios de propdsito combinados e para atingir um objetivo irresistivelmente fixado. Se me perguntam por que esta ligago, sendo uma necessidade indispensdvel para a civilizagdo do reino nominal, ela propria to eminentemente necesséria, ndo foi previamente urdida, como observamos em algumas espécies animais, responderei que é porque a Providéncia e 0 Destino ttm um modo diferente de agir, adaptado a sua esséncia oposta. O que 0 Destino faz, ele antes de tudo 0 faz.por inteiro, forgado em todas as suas partes, e 0 deixa tal como o faz, sem jamais impeli-lo mais, a frente, de moto préprio: ao passo que a Providéncia, nada produzindo exceto em principio, dé a todas as coisas que dela emanam uma impulsio progressiva que, conduzindo-as sem cessar do poder ao ato, leva-as gradativamente & perfeigdo a que sdo susceptiveis. Se 0 homem pertencesse a0 Destino, ele seria 0 que 0s fil6sofos de visio curta julgam-no ser: sem progressio em seu caminho €, portanto, sem futuro. Mas, como obra da Providéncia, ele progride livremente no caminho que Ihe € tracado, aperfeigoa-se medida que avanga, tendendo, assim, a imortalidade E disto que devemos nos convencer se quisermos penetrar na esséncia das coisas e compreender a palavra daquele profundo enigma do universo, que os antigos simbolizavam pela figura da Esfinge. O homem é propriedade da Providéncia que, na qualidade de lei viva, expresso da vontade divina, determina sua existéncia potencial: mas como este ser deve extrair todos os elementos da sua presente existéncia do dominio do Destino, cujas produges cabe-lhe dominar e regularizar, ele deve faz6-lo pelo desdobramento da sua vontade eficiente, absolutamente livre em sua esséncia. Sua sorte futura depende do uso dessa vontade. Enquanto a Providéncia 0 chama e dirige pelas suas inspiragdes, 0 Destino Ihe resiste e 0 detém pelas suas necessidades. Suas paixdes, que Ihe pertencem, © inclinam com forga para um ou outro lado e, segundo as determinagdes por elas 32 provocadas, entregam seu futuro a um desses dois poderes: pois este nfo pode ser sua propriedade absoluta enquanto desfruta da vida elementar, passageira e limitada. Logo, como demonstrei, seu estado social depende do desenvolvimento das suas faculdades que conduzem ao matriménio; e, uma vez constituido, o estado social dé origem a propriedade, da qual resulta 0 direito politico. Entretanto, visto que o estado social € obra de trés poderes distintos: a Providéncia, que dé o principio, 0 Destino, que fornece os elementos, e a Vontade humana, que descobre os meios, € evidente que 0 direito politico que dele emana deve igualmente receber a influéncia desses trés poderes e, conforme um ou outro deles © domina, separadamente ou juntos, deve tomar formas andlogas A sua aio. Formas que, em tiltima andlise, reduzem-se a trés principais, podendo, nao obstante, variar e cambiar de muitas maneiras, pelas suas mesclas e suas oposigdes, e trazer conseqiléncias quase infinitas. No decorrer desta obra, apds ter estabelecido claramente a ordem, a natureza e a ago dos trés poderes que as criam, mostrarei essas formas, simples ou compostas. No préximo capitulo, mostrarei a origem de um dos mais belos resultados e um dos mais brilhantes fendmenos ligados & formagio da sociedade humana: a palavra. caPiTULO IV NO COMEGO, 0 HOMEM £ MUDO, E SUA PRIMEIRA LINGUAGEM CONSISTE DE SINAIS. SOBRE A PALAVRA. TRANSFORMAGAO DA LINGUAGEM MUDA EM LINGUAGEM ARTICULADA E CONSEQUENCIAS DESTA TRANSFORMAGAQ © homem, dotado em princfpio de todas as forgas, de todas as faculdades, de todos os meios de que possa ser revestido como resultado natural, na verdade nao possui nenhum desses atributos ao surgir A luz. Ele € fraco e débil, desprovido de tudo. Neste aspecto, o individuo nos dé um exemplo evidente do que é 0 Reino em seus primérdios. Os que, para se sairem de apuros sobre pontos muito dificeis, asseguram que o homem chega & Terra to robusto de corpo quanto esclarecido de espirito, afirmam aquilo que a experiéncia desmente e a razio reprova. Outros que, ao receberem esse ser admirdvel tal como a natureza 0 oferece, atribuem 4 conformagao dos seus drgdos e As suas simples sensagdes fisicas tantas concepgdes sublimes que, de resto, Ihe s4o estranhas, caem na mais absurda das contradig6es e revelam sua ignordncia. Aqueles que, enfim, para explicar 0 menor fendmeno que seja, julgam-se obrigados a chamar o proprio Deus cena para tornd-lo preceptor de um ser freqlientemente to rebelde as suas ligdes, declaram ser mais facil cortar 0 né gérdio do que desaté- lo, Eles agem como os autores das tragédias antigas que, nfo sabendo mais 0 que fazer com seus atores, faziam-nos ver a razio com raios e trovdes. Nunca é demais repetir: feliz de mim, leitor, se conseguir fazé-lo compreender! © homem é uma semente divina que se desenvolve pela reago dos seus sentidos. Tudo nele é inato, tudo. O que ele recebe do exterior nao passa de causa das suas idéias, nao sendo as idéias propriamente ditas. Trata- se de uma planta, como jé disse, que da pensamentos, como uma roseira da rosas e uma macieira dé magais. Uma e outra tém necessidade de reagao. Mas sera que a agua ou o ar, de onde a roseira ou a macieira extraem sua alimentagZo, tem alguma relagdo com a esséncia intima da rosa ou da maga? Nenhuma. Elas Ihes so indiferentes e fazem crescer também as urtigas ou as bagas envenenadas da erva-moura, se a semente for oferecida para reagir com elas numa situacdo conveniente. Portanto, embora, a0 surgir, 0 homem tenha recebido uma centelha do Verbo Divino, ele nfo traz consigo para a terra uma lingua inteiramente formada. Ele contém em si o principio da palavra em potencial, mas néio em processo de realizagao. Para falar, € preciso que ele tenha sentido a necessidade de falar, que 0 tenha desejado intensamente, pois se trata de uma das mais dificeis operages do seu entendimento, Enquanto vive isolado e é puramente instintivo, ele nfo fala, nfo sente sequer a necessidade da palavra, e seré incapaz de fazer qualquer esforgo de vontade para atingi-la Mergulhado num mutismo absoluto, ele se satisfaz. com isso. Tudo o que perturba a sua audicio é 0 ruido; ele ndo distingue os sons como tais, mas como perturbagdes que, andlogas a todas as suas 3 outras sensagdes, no provocam nele atrago ou temor, conforme despertem a idéia de prazer ou de dor. Mas a partir do instante em que ele entrou no estado social, apés 0 acontecimento que narrei, mil circunsténcias acumulam-se ao seu redor, exigindo dele uma linguagem qualquer. Ele tem necessidade de um meio de comunicagiio entre suas idéias e as de sua companheira. Ele quer dar-Ihe a conhecer seus desejos principalmente as suas esperancas porque, desde que tem orgulho, ele também tem esperancas. Sua companheira também est bem mais empenhada em comunicar-lhe as suas idéias porque sua vaidade, mais ativa e circunscrita, as sugere com mais freqiiéncia e em maior ndémero. Taio logo essa vontade se faz sentir neles, os meios de satisfazé-la aparecem. Esses meios so de tal natureza que eles os empregam sem procuré-los, como se sempre os tivessem possuido. Ao utilizé- los, eles nao tém diividas de que esses meios oferecem as bases da mais admirivel instituigdo. Esses meios sfo sinais que eles fazem com um movimento de intencZo instintiva e que, mesmo assim, compreendem. E extraordindrio que os sinais nfo tenham exigido uma convengdo prévia para serem compreendidos, pelo menos os que so radicais, como, por exemplo, os sinais que expressam aceitagio ou recusa, afirmagio ou negagio, 0 convite para aproximar-se ou a ordem para afastar-se, a ameaga ou 0 acordo, etc. Exorto o leitor a refletir por um momento sobre este ponto, pois é aqui que ele encontraré a origem da palavra, tio demorada e inutilmente procurada. Transportemos-nos para o meio de qualquer povo, civilizado ou selvagem, que habite 0 norte ou o sul da Terra, no mundo antigo ou no novo. Deixemos de lado as diferentes palavras que usam para expressar a idéia de afirmagio, sim e ndo, mas consideremos os sinais que acompanham estas palavras. Veremos que eles sdo idénticos em toda parte. E a inclinagZo da cabeca numa linha perpendicular que exprime a afirmago, ¢ sua dupla rotago numa linha horizontal que indica a negac30. Vejamos 0 brago estendido e a mao aberta dobrar-se na dirego do peito: este gesto nos convida a aproximarmos-nos. Vejamos, a0 contrério, 0 brago, inicialmente dobrado, abrir-se violentamente acompanhado da extensio da mio: este gesto manda que nos afastemos. Os bragos do homem, estendidos e com os punhos cerrados: ameaga. Ele os abaixa suavemente, abrindo as maos: concordancia. Levemos conosco mudos de nascenga. Quanto mais selvagem for o povo e mais préximo da natureza, melhor ele 0 compreenderd e seré melhor compreendido, pela simples razo que ambos estardo mais préximos da lingua primitiva do género humano. Nao tenhamos receio de anunciar esta importante verdade: todas as linguas que os homens falam e falaram na face da Terra, e 0 volume incalculével de palavras que entram ou sao introduzidas na composigao dessas Iinguas, nasceram de uma quantidade muito pequena de sinais radicais. H4 alguns anos, quando procurava restabelecer a Iingua hebraica em seus princfpios constitutivos, € tendo nas maos um idioma de espantosa simplicidade, vi a verdade que anuncio, € provei-a na medida do possivel, mostrando, para comegar, que na origem desse idioma os caracteres escritos ou as letras no passavam de sinais classificados como uma espécie de hierdglifos. Em seguida, esses caracteres, reunindo-se em grupos de dois ou trés, formaram os radicais monossilibicos e estes, unindo-se a um cardter novo ou reunindo-se entre si, formaram grande quantidade de palavras. Nao é este o lugar para entrarmos em detalhes gramaticais. Devo apresentar somente os princfpios. O leitor interessado nestes tipos de pesquisa pode consultar, se julgar conveniente, a gramética e 0 vocabulirio da lingua hebraica que eu preparei. E prossigo em minha caminhada. Assim, a primeira lingua que 0 homem conheceu foi a lingua muda. Nao se pode imaginar outra sem admitir nela uma infusto do Verbo Divino. Portanto, aceitando-se a existéncia de similar infusio em todas as outras ciéncias, o proprio fato demonstra a sua falicia. Os fildsofos que tém recorrido a uma convengio anterior para cada termo da lingua, caem numa contradigo chocante. M Como jé disse varias vezes, a Providéncia dé apenas os prinefpios de todas as coisas, cabendo a0 homem desenvolvé-los. Mas no momento em que essa lingua muda estabeleceu-se entre os dois cOnjuges, no momento em que um sinal emitido como a expresso de um pensamento levou esse pensamento da alma de um para a de outro, e foi compreendido, ele provocou na esfera animica um impulso que deu origem a0 entendimento. Essa faculdade central nfo tardou a produzir suas faculdades circunferenciais e andlogas. Desde entio, © homem péde, até certo ponto, comparar e julgar, discernir e compreender. Ao utilizar essas novas faculdades, ele logo percebeu que a maioria dos sinais que emitia para expressar seu pensamento era acompanhada de certas exclamagdes vocais, de certas emissOes vocais, mais ou menos fracas ou fortes, mais ou menos Asperas ou suaves, que nfo deixavam de representar-se juntas. Ele percebeu essa coincidéncia, que sua companheira ja percebera antes dele, e os dois julgaram que seria conveniente, fosse na escuridio, fosse quando a distincia ou um obstéculo impedisse a visio um do outro, substituir os diferentes sinais pelas diversas inflexdes de voz que os acompanhavam. Eles talvez tenham agido assim em alguma circunstdncia urgente, alvorogados por algum temor ou por algum desejo intenso, e viram com muita alegria que haviam escutado compreendido um ao outro. Desnecessirio dizer o quanto esta substituig2o foi importante para a humanidade. O leitor percebe que nada maior poderia ter acontecido na natureza e que se 0 momento em que esse acontecimento teve lugar pela primeira vez pudesse ter sido registrado, ele teria merecido as honras de uma comemoragio eterna. Mas isto nfo aconteceu. Quem poderd saber quando, como, em que povo e em que regio isso ocorreu? Ele talvez tenha sido infrutifero varias vezes seguidas, ou entio a lingua informe a que esse acontecimento deu origem tenha desaparecido com a humilde choupana que a abrigava. Embora, a bem da rapidez, eu narre tudo reunido, poder-se- duvidar de que varias geragOes se passaram entre os menores acontecimentos? Os primeiros pasos dados pelo homem na estrada da civilizagdo so lentos e penosos. Ele muitas vezes € obrigado a recomecar as mesmas coisas. O Reino Hominal inteiro é sem divida indestrutivel, a propria raga é forte, mas 0 homem como individuo é muito frégil, sobretudo na sua origem. Todavia, sobre ele repousam os alicerces de toda a estrutura. Entretanto, como eu disse, tendo ocorrido varios casamentos simultaneamente ou a pequenos intervalos entre si, na mesma regio e em varias regides ao mesmo tempo, eles deram origem a um grande nimero de familias mais ou menos préximas umas das outras, percorrendo mais ou menos 0 mesmo caminho € desenvolvendo-se do mesmo modo, gragas & agdo providencial que assim 0 determinara. Essas familias, cuja existéncia situei deliberadamente na raga bérea ou hiperbérea, habitavam as regides préximas do pélo boreal recebendo, necessariamente, as influéncias desse clima rigoroso em que eram obrigadas a viver. Seus hbitos, costumes, maneiras de comer, vestir € morar se ressentiam disso. Tudo ao seu redor adquiria um carter especial. Suas cabanas pareciam- se com as ainda hoje usadas pelos povos que ocupam as regides mais setentrionais da Europa e da Asia. Elas nfo passavam de buracos abertos na terra e cuja abertura era tapada com alguns galhos cobertos de peles. A palavra taniére (antro) que chegou aos nossos dias, significava, na lingua primitiva da Europa, uma fogueira na Terra, 0 que prova que 0 uso do fogo, desde logo conhecido de uma raga de homens para quem ele era necessério, remonta a mais distante antigttidade. Nenhum motivo de diseérdia ou de ddio podia surgir no seio dessas familias, que nenhum interesse particular dividia e cuja subsisténcia os chefes, ou cagadores ou pescadores, podiam prover facilmente. A profunda paz reinante entre essas famflias, aproximando-as com lazeres comuns, facilitava-Ihes as aliangas que as aproximava mais a cada dia, unindo-as por lagos de parentesco que as mulheres foram as primeiras a reconhecer e fazer respeitar. A autoridade que tinham sobre suas filhas, e as vantagens que tiravam disso, faziam a forga e a utilidade desses lagos. A lingua, de inicio 3s muda e reduzida apenas aos sinais, tendo-se tomado articulada pela substituigio imperceptivel dos sinais pela inflexdo de voz que normalmente os acompanhava, desenvolveu-se rapidamente Inicialmente ela era muito pobre, como todos os idiomas selvagens, mas © ntimero de idéias, embora limitado nessas familias, bastava para suas necessidades. Nao se deve esquecer que as mais, ricas linguas da atualidade comecaram a se compor com apenas uma quantidade muito pequena de termos radicais. Assim, por exemplo, a Iingua chinesa, que € constituida por mais de oitenta mi caracteres, nao apresenta mais que duzentos e cingiienta radicais, que mal formam mil e duzentas palavras primitivas pelas variagdes de acentuagao. Nao descreverei, aqui, por que maneiras o sinal foi, de inicio, transformado pela inflexo vocal em substantivo, nem como este tomou-se verbo ao se Ihe acrescentar 0 sinal. Nem direi como esse sinal verbal, ele prdprio sendo ainda vocalizado, transformou-se por assim dizer numa espécie de afixo, ou de preposicio insepardvel que verbalizou os substantivos sem a ajuda do sinal. Ademais, jé apresentei detalhes mais que suficientes a esse respeito.'? Tudo 0 que devo acrescentar no momento & que quando a lingua tornou-se vocalizada e os termos radicais Ihe foram em geral acrescentados num Povoado formado de certo ntimero de familias reunidas e ligadas entre si por todos os lagos de parentesco, quem encontrava ou inventava uma coisa nova dava-Ihe necessariamente um nome, que a caracterizava e ficava ligado a ela. Assim, por exemplo, a palavra rn ou rén, sendo aplicada a0 sinal que indicava 0 movimento da corrida ou da fuga, foi dada a Rena, um animal setentrional muito veloz na corrida. Também a palavra vag, tendo igualmente substituido o sinal que expressava © movimento de ir avante, foi atribuida a toda méquina que serve para transporte de um lugar a outra, em particular & carreta, que a Raga bérea utilizou muito quando, tendo aumentado consideravelmente em ntimero, se dispersou para mais longe, langando suas multid6es para a Europa e a Asia.!> CAPITULO V DIGRESSAO SOBRE AS QUATRO IDADES DO MUNDO E REFLEXOES SOBRE 0 ASSUNTO PRIMEIRA REVOLUGAO NO ESTADO SOCIAL E PRIMEIRA MANIFESTAGAO DA VONTADE GERAL Os poetas, e depois deles os filésofos sistemsticos, muito tém falado das quatro Idades do mundo, conhecidas nos antigos mistérios sob os nomes de Idade de Ouro, de Prata, de Estanho e de Ferro, e, sem se preocuparem por estar intervindo na ordem dessas Idades, deram 0 nome de Idade do Ouro Aquela época em que 0 homem, que h4 pouco escapara as influéncias do simples instinto, apenas comegava a experimentar suas faculdades animicas e a fruir dos seus resultados. Era, sem diivida, a infancia do Reino Hominal, a geratriz da vida social. Esses primérdios tinham certa dogura, sobretudo quando comparados com 0 estado de apatia absoluta e de trevas que os precedera. Mas seria ledo engano crer que este foi o ponto culminante da felicidade, 0 ponto em que a civilizagio deveria parar. Uma infincia fora dos seus limites naturais se transformaria em imbecilidade; uma aurora que jamais trouxesse o sol langaria a terra na esterilidade e no torpor. Um autor modemo j4 observou, com muita sagacidade, que os homens, naturalmente inclinados a embelezar o passado, sobretudo quando s4o idosos, tém agido como grupo precisamente da maneira como agem na qualidade de simples individuos. Eles sempre elogiam as primeiras idades do mundo, sem pensar muito no fato de que esses primeiros momentos da sua existéncia social estavam bem longe de ser tio agradaveis quanto imaginam. A imaginagio superficial e quase infantil dos gregos embaralhou singularmente este quadro, transportando-o propositadamente, & '2 Em minha obra sobre a lingua hebraica na obra sobre a Lingua d'Oc. > A palavra rén, no podendo ser aplicada, nos climas mais temperados, & rena, inexistente nessas regides, aplica-se entre n6s & palavra renard (raposa), pela mesma razio. Da palavra vig, que significa um vagao, uma carteta, tiramos 0 verbo vagar. Todos os povos do Norte deram © nome de veg ao caminho tragado pela carreta vag, ¢ esta palavra, transformada pela prontincia, tomou-se via para os latinos, voie para os franceses, way para os ingleses, etc 36 para agradar a multidio, do fim para 0 comego dos tempos. O que eles chamaram de Idade de Ouro deveria ser chamada de Idade de Ferro ou de Chumbo, porque seu regente era Saturno, representado como um tirano desconfiado e cruel, mutilando e destronando seu pai para sucedé-lo, e devorando 0s préprios filhos para livrar-se do medo de ter um sucessor. Satuno era entio 0 simbolo do Destino. Segundo a doutrina dos mistérios, a passagem do reino do Destino para 0 da Providéncia foi preparada por dois reinos intermediérios: o de Jupiter e 0 de Ceres, chamada {sis pelos egipcios. Um desses reinos serviu para reprimir a audécia dos Titds, isto é, subjugar as espécies animais e estabelecer a harmonia na Natureza pela corregao dos cursos dos rios, pela drenagem dos pantanos, pela invengdo das artes, dos trabalhos agricolas, etc. © outro serviu para regularizar a sociedade, pelo estabelecimento de leis civis, politicas e religiosas. Chamamos esses dois reinos de Idades de Estanho e de Prata. © nome Idade de Ouro, que se seguia, estava reservado ao reino de Dionisio ou de Ositis. Esse reino, que deveria espalhar a bondade sobre a terra, mantendo-a ali por muito tempo, estava sujeito a retornos periddicos, que seriam medidos pela durago do grande ano. Assim, de acordo com essa misteriosa doutrina, as quatro idades deveriam suceder-se continuamente sobre a terra, como as quatro estagGes, até o fim dos tempos, comecando pela Idade de Ferro ou reino de Saturno, comparado com 0 inverno. Neste aspecto, 0 sistema dos bramanes esté de acordo com o dos mistérios egipcios, de Onde os gregos tiraram os seus. A Satya-Yuga, que corresponde & primeira Idade, é a da realidade fisica Segundo esté escrito nos Puranas, € uma idade repleta de catéstrofes espantosas, na qual os elementos conspirados entregam-se & guerra, os Deuses so atacados pelos deménios 0 globo terrestre, de inicio tragado pelas iguas, é ameagado de ruina total a cada instante. A Tetra-Yuga, que vem em seguida, nao é mais afortunada. Somente na época da Duapar-Yuga € que a terra comega a mostrar uma imagem mais alegre e mais trangiiila. Nela, a sabedoria, aliada ao mérito, fala pelas bocas de Rama e de Krishna. A sociabilidade, as artes, as leis, a moral e a religido ali florescem & porfia. A Kali-Yuga, que comegou, deve terminar este quarto perfodo com a aparigéo do préprio Vishnu, cujas maos armadas com um glidio cintilante abaterdo os pecadores incorrigiveis, fazendo desaparecer para sempre da face da Terra os vicios € os males que conspurcam e afligem 0 Universo. De resto, os gregos ndo so 0s tinicos culpados de terem invertido a ordem das idades, levando confusio a esta bela alegoria. Os proprios brimanes hoje preconizam a Satya-Yuga e caluniam a ‘dade atual, nao obstante seus proprios anais mencionarem a terceira idade, a Duapar-Yuga, como a mais brilhante e feliz. Essa foi a idade da sua maturidade. Hoje eles esto na senilidade, e seu olhar, como 0 dos idosos, voltam-se com freqtiéncia para os tempos da sua infincia. Em geral, os homens cujo orgulho toma melaneélicos, sempre descontentes com o presente, sempre incertos quanto ao futuro, gostam de voltar-se para o passado, de onde julgam nada ter a temer. Eles © enfeitam com as cores vivas que sua imaginago nfo se atreve a dar ao futuro. Em sua escura melancolia, eles preferem as saudades supérfluas e sem fadiga aos desejos reais, mas que Ihes custariam algum esforgo. J. J. Rousseau era um desses homens. Dotado pela natureza de grandes talentos, ele se viu deslocado pelo Destino. Agitado por paixdes ardentes que nao podia satisfazer, e vendo continuamente afastar-se dele 0 objetivo que desejava alcangar, concentrou em si mesmo a atividade de sua alma e, transformando em vas especulagGes e em situagdes romanescas os impulsos da sua imaginagio ou do seu coragdo, apenas criou paradoxos politicos ou exageros sentimentais. O homem mais elogiiente do seu século invectivou contra a elogtiéneia; quem provara ser um dos mais, sAbios, denegriu as ciéncias; amante, profanou o amor; artista, caluniou as artes e, receoso de ser esclarecido sobre seus préprios erros, fugindo as luzes que 0 acusavam, ousou tentar extingui-las. E as teria extinguido, se a Providéncia ndo se opusesse aos seus cegos arroubos, pois sua Vontade era um poder terrivel. Ao declarar a soberania do Povo, a0 colocar a multiddo acima das leis, a0 Ihe submeter seus magistrados e reis como seus mandatérios, ao abalar inteiramente a autoridade do sacerdécio, ele rasgou 0 contrato social que pretendia celebrar. Se o sistema dese homem 37 melancdlico tivesse sido adotado, a Raga humana teria retrocedido rapidamente para aquela natureza primordial que sua imaginagio vaporosa e doentia Ihe representava sob uma forma encantadora, quando na realidade ela contém apenas o discordante e o selvagem. Um homem atacado da mesma doenga, porém mais frio e mais sistemético, fracassou em transformar em ac&o 0 que Rousseau deixara no potencial. Ele se chamava Weishaupt, e era professor numa cidade medfocre da Alemanha. Apaixonado pelas idéias do fil6sofo francés, ele as revestiu com as formas misteriosas do iluminismo, divulgando-as pelas lojas magdnicas. Nao se poderia fazer idéia da rapidez dessa propagagio, to prontos estio os homens a acolher 0 que favorece as suas paixdes! Por um momento, a sociedade européia esteve ameagada de um perigo iminente. Se 0 mal nao tivesse sido estancado, ¢ impossivel dizer até que ponto as suas devastagdes, se desdobrariam, Sabe-se que um dos adeptos dessa sociedade subversiva, atingido por um mal stibito na rua e levado sem sentidos para a casa de alguém, deixou que encontrassem nele um documento contendo 0 plano da conspirago e os nomes dos principais conspiradores. © plano era nada mais nada menos que derrubar todos os tronos e altares para reconduzir todos os homens Aquela natureza primitiva que, segundo esses visionérios, faz deles, sem distingdo, sumos pontifices ereis. Que erro espantoso! Deu-se a Weishaupt o titulo de iluminado. Ao contrério, ele ndo passava de um fanético imprudente que, com a melhor boa fé do mundo e acreditando trabalhar para a felicidade do género humano, na verdade o impelia para um terrivel abismo. Como eu sabia que, quando da recepgio de varios iniciados nos mistérios desse politico extravagante, lia-se uma descri¢do da Idade do Ouro, eu quis destruir a falsa idéia que ainda poderia subsistir em alguns cérebros. Weishaupt, como Rousseau, ostentava uma erudiga0 pouco mais que mediocre. Se tivessem conhecido as verdadeiras tradigdes, ambos saberiam que a idéia de situar a dade de Ouro na origem das sociedades, entre homens desprovidos de governo e de culto, nao teria parecido especiosa para alguns poetas gregos e latinos porque ela estava em harmonia com a opinido errdnea de seu tempo. Na abertura dos antigos mistérios, sem dtivida muito superiores aos de Weishaupt, nfo se lia uma descri¢ao assim to brilhante, mas 0 comego da cosmogonia de Sanchoniaton que, como se sabe, apresenta um quadro inteiramente diferente e bastante tenebroso. Nao se surpreendam em me verem dedicar uma digressio bastante longa ao combate de uma idéia tio frivola como a da Idade de Ouro. E preciso considerar que os que hoje escrevem com mais frieza sobre a politica, e que ririam penalizados se alguém os acusasse de nutrir semelhante idéia, apenas obedecem a0 movimento do qual ela foi a causa. Se Rousseau nao se tivesse impressionado, ele nao teria dito em seu Discurso sobre a Origem da Desigualdade que 0 homem que medita é um animal depravado, e em seu Emile que quanto mais as mulheres sabem mais elas se enganam; que 0 \inico meio de se evitar o erro € a ignorncia, Na politica, os perigosos nfo s4o os homens a quem a razo aconselha, ou cujo interesse guie a pena, qualquer que seja o partido ao qual pertengam, mas os que, possufdos de uma idéia fixa, seja qual for, escrevem com persuasio e entusiasmo. Retomo agora ao meu tema. O homem, tal como o deixei ao final do capitulo anterior, chegara ao primeiro degrau do Estado social pelo desenvolvimento sucessivo das suas faculdades. Ele estava constitufdo em familias reunidas entre si por lagos de parentesco, inventara coisas titeis, alojara-se, vestira-se de maneira tosca, domesticara varias espécies de animais, aprendera a usar o fogo e, acima de tudo isso, ele possuia um idioma articulado que, embora informe, bastava para suas necessidades. Este estado, que muitos poetas complacentes e alguns politicos medfocres acreditam ser a Idade do Ouro, no era nada disso, mas um primeiro paso real no caminho da civilizago, ao qual deveriam seguir-se tum segundo passo e um terceiro. O caminho estava aberto, era to impossivel para o homem parar 38 no seu comeco quanto Ihe teria sido nao entrar nele. A ago da Providéncia e a do Destino atuavam em concerto nesse acontecimento. Mas a mulher, que poderia vangloriar-se, com raziio, de todo o bem que resultard de tudo isso, nao soube como utilizé-lo a contento. Nesse inicio de civilizagZo ela cometeu uma falta muito grave, cujas conseqtiéncias terriveis, por pouco nao causaram a perda de toda a Raga. Satisfeita com a mudanga que ocorrera em sua sorte, ela desejava unicamente manté-la e, pensando apenas em seu interesse individual, esqueceu-se do interesse geral da sociedade. Como seu instinto a levava mais a possuir do que a fruir, e como sua vaidade sempre se revelava em sua alma antes de qualquer outro sentimento, ela se ligou ao seu esposo mais por interesse do que por prazer, ¢ utilizou sua vaidade para agradé-lo, visando mais garantir a posse dele do que tornar-Ihe a sua mais agradavel. Ela queria sempre ser amada antes de amar para que seu império jamais ficasse em perigo. O homem, levado, por um instinto contrério, a fruir de preferéncia a possuir, e fazendo seu orgulho ceder ante que sua piedade de inicio Ihe mostrara como sendo uma fraqueza, facilitou os projetos interesseiros da sua companheira. Suas tarefas externas, provocando sua indoléncia caseira, nfo criaram nenhum obstéculo as usurpagdes quotidianas da muther que, conforme desejava, logo se viu senhora absoluta de toda a casa. Ela criou um centro para si, dispondo de tudo nele e passando a mandar naquele que a Natureza the destinara por senhor. A educagio que ela deu as filhas, de acordo com suas idéias, aumentou nelas a forga do instinto, tornando-as cada vez mais dispostas a seguir 0 caminho abusivo que ela abrira, Assim, ao final de algumas geracdes, estabelecera-se 0 despotismo feminino, Mas o que o instinto fizera de um lado, o instinto deveria desfazer do outro. O movimento iniciado no podia parar ali: era preciso que 0 Destino seguisse seu curso. © homem, tendo-se submetido & mulher gracas a uma espécie de indoléncia orgulhosa, logo percebeu que era mais fécil renunciar & possessio do que a fruigdo. Ele encontrou, fora da sua cabana, uma jovem qualquer que Ihe despertou os desejos e, como sua mulher talvez ja tivesse passado da idade fértil, quis associar uma outra & sua sorte. Diante dessa novidade, uma paixdo até entdo desconhecida, 0 citime, nascido da vaidade ferida e do interesse ameagado, acendeu-se na alma da primeira esposa. Seguiram-se terriveis altercagdes domésticas. O que ocorreu numa tinica familia abalou todas as outras. Pela primeira vez, a perturbago foi geral; pela primeira vez, a Raga bérea sentiu que poderia haver interesses gerais para ela. Os homens de um lado e as mulheres do outro, discutiram & sua moda essa questo de direito, a primeira a ser discutida: um homem pode ter vérias mulheres? Como nao havia, entéo, um culto dominante que pudesse prevalecer sobre sua razo, e como as esperangas numa outra existéncia ndo poderiam nascer em suas inteligéncias ainda embotadas, os homens decidiram que tal coisa era possfvel. Reunidos pela primeira vez em grandes massas, e fora das suas cabanas, eles sentiram que suas forgas, reunidas, aumentavam de intensidade, e que suas resolugdes tinham algo de solene. Os mais timidos ficaram espantados com sua audécia. Esta foi a ocasidio e este foi o resultado do primeiro uso que o homem fez da sua Vontade geral. As mulheres, extremamente irritadas com uma decisio to contréria a0 seu dominio, resolveram impedir sua execucdo de qualquer maneira. Elas no podiam imaginar que esses mesmos homens, tao frégeis diante delas, pudessem demonstrar tao grande audacia. Esperavam trazé-los de volta, mas inutilmente, pois 0 ato que acabara de ser aprovado criara algo até ento desconhecido, algo cujos resultados viriam a ser colossais: a opinifio, que, dando a0 orgulho um novo sentido, transforma-o em honra, e Ihe d4 supremacia frente & piedade. Nesta situacdo, as mulheres deveriam ter-se deixado inspirar pela compaixdo; mas como sua vaidade no Ihes permitia galgar esse degrau, que poderia ter sacudido sua inteligéncia, elas se confiaram a0 instinto, e isto foi sua perdigdo. Convencidas pela astticia de que poderiam enfrentar a forga com a fraqueza, e que seus maridos assustados nfo ousariam enfrenté-las, elas provocaram-nos 39 imprudentemente. Porém, mal ergueram as mios, foram vencidas. O Destino, que elas haviam invocado, as derrotou. CAPITULO VI CONTINUAGAO. A SORTE DEPLORAVEL DA MULHER NO COMEGO DAS SOCIEDADES. SEGUNDA REVOLUGAO. A GUERRA E SUAS CONSEQUENCIAS. OPOSICAO DAS RACAS funesto acontecimento que acabo de resumir ndo constitui mera hip6tese, imaginada apenas para amparar um sistema. Trata-se de um fato real, que infelizmente deixou poucos vestigios. Entretanto, a torrente dos séculos ainda no conseguiu apagd-los por completo, ¢ eles se apresentam por toda parte aos olhos do historiador e do observador. Vejam os povos selvagens, como os samoanos, por exemplo, que, estando mais préximos da Raga bérea, conservaram seus costumes originais. Ainda encontramos entre eles, em toda a sua intensidade, a causa fatal das desgracas que durante longos ciclos se abateram sobre a mulher. Quis apoderar-se de tudo e nao Ihe deixaram nada. Horroriza-nos pensar no terrivel estado a que ela foi reduzida. E muito natural para o homem passar de um extremo a outro em seus sentimentos ¢ destruir com desdém os objetos do seu amor ou de sua veneracio. Ainda hoje existem povos, que dramaticas situagdes locais ou circunstanciais afastaram dos beneficios da religido e da civilizagao, entre os quais o inforttnio da mulher se perpetuou. E impossfvel contar a maneira como ela é tratada sem sentirmos aversio. Ela é mais uma escrava do homem do que sua companheira; mais uma besta de carga do que um ser humano. A mais bela metade do género humano, aquela a quem a Natureza parece ter tido prazer de criar para a felicidade, perdeu inclusive a esperanga. Sua sorte é de tal modo deplordvel que, nfo raro, véem-se mies, cuja compaixdo as torna desnaturadas, sufocarem suas filhas ao nascer para Ihes poupar 0 terrivel futuro que as aguarda. Oh, mulheres, mulheres, objetos queridos e funestos! Se estas palavras chegarem as vossas miios, no vos apresseis em tomar-vos de prevengdes contra seu autor. Ele é 0 mais sincero dos vossos amigos ¢ talvez tenha sido 0 mais temo dos vossos amantes! Se vos mostra vossos erros, ele também vos mostraré vossa generosidade. E ele j4 a mostrou, pois disse que os primérdios da civilizagZo humana foram obra vossa. Resguardai-vos de uma vaidade pueril, produto do vosso instinto, e buscai em vossa alma, principalmente em vossa inteligéncia, sentimentos mais doces € inspiragdes mais generosas. Vés os encontrareis facilmente ali, pois a Divindade, que é sua fonte, quis que tudo brotasse de vosso seio com admirdvel presteza. V6s ofereceis os encantos da adolescéncia numa época em que 0 homem ainda é crianga, € vossos ternos olhares j revelam as emogdes de vossa alma quando ele ainda ignora a existéncia da sua. Como serieis admiraveis se, sempre atentas contra os impulsos de uma vaidade exclusivista, de um interesse ciumento, pusésseis a servigo do homem e da sociedade os meios encantadores que possuis! E, portanto, verdade que poderfamos chamar-vos de génio tutelar da inféncia, encanto da juventude, amparo ¢ prudéncia do homem. Vés embelezarieis 0 sonho da vida e esse sonho se realizaria para vés. As faltas que mencionei, ¢ as que virei a mencionar ainda, vs as encontrareis bem longe de vés: elas sZo 86 efeito, pelo tempo e pela forma. Mas a esséncia subsiste e poderieis cometer faltas de outra espécie. Vossa educagiio, mal concebida e mal dirigida, vos impele para estas; tomai cuidado. A Europa esté passando por uma efervescéncia inexordvel. Se no vos conduzirdes sabiamente, digo-vos penalizado, estou certo de que o destino das mulheres da Asia vos aguarda. Mas, sem nada antecipar do que tenho a dizer, retornemos 3 hist6ria dos séculos passados. 40 Enquanto a raga b6rea se civilizava, tornando-se mais numerosa e ocupando, a cada ano, um espago territorial maior, os séculos corriam silenciosos. Todas as invengdes se aperfeigoavam, sendo possivel observar-se j4, entre os diferentes povos que compunham toda a Raga, ténues indicios de vida pastoril e agricola. Canoas foram escavadas em troncos para cruzar os bragos de mar e navegar 08 rios. Fabricavam-se carretas para penetrar mais facilmente o interior. Quando as pastagens numa regidio se esgotavam, passava-se para outra. A Terra, que jamais faltava aos seus habitantes, era suficiente para suas necessidades. As densas florestas fervilhavam de caga, mares e rios ofereciam uma pesca inesgotavel e facil. As discérdias particulares que poderiam surgir eram prontamente eliminadas sem jamais se generalizarem. E 0 Povo, destinado a ser 0 mais belicoso da Terra, era entio 0 mais pacifico. Nessa época, esse Povo teria fruido de uma felicidade t4o grande quanto sua situagdo © permitisse, se uma parte de si mesmo no gemesse sob 0 peso da opressio. Por toda parte, as mulheres estavam reduzidas ao estado em que hoje as encontramos entre os samoanos. Era mais ou menos comum encarregé-las das tarefas mais penosas. Quando envelheciam, 0 que era bastante raro chegava-se com freqiiéncia A crueldade de afogd-las. Os gemidos dessas infelizes vitimas finalmente despertaram a solicitude da providéncia que, cansada de tanta crueldade, € também desejosa de fazer progredir aquela civilizagao estagnada e apenas esbocada, determinou um movimento em potencial, que o Destino pds em agao. Naquela época, a Raga negra, que hoje chamarei de Sudeana, devido a sua origem equatorial, € em oposigdo & Raca branca, que chamei de Bérea, jé existia com toda a pompa de Estado social. Ela cobria toda a Africa de nagdes poderosas, possufa a Arabia e estendera suas col6nias nfo s6 por todas as costas meridionais da Asia, como também no seu interior. Ainda hoje existem em todas essas regides, uma infinidade de monumentos que apresentam a caracterfstica africana e atestam a grandeza dos povos aos quais pertenceram. As enormes construgdes de Mahabalipuram, as cavernas de Elora, os templos de Isthakar, os bastides do Céucaso, as piramides de Ménfis, as escavagdes de Tebas, no Egito, e muitas outras obras que a imaginago espantada atribufa a gigantes, provam a longa existéncia da raga sudeana e seus enormes progressos nas artes. A respeito desses monumentos podemos fazer uma observacio interessante. E que 0 tipo segundo o qual todos sio construidos € 0 de uma caverna aberta numa montanha, 0 que nos leva a pensar que as primeiras habitagdes dos povoados africanos foram espécies de criptas formadas desse modo, e que 0 nome troglodita deve ter sido, no infcio, seu nome genérico. O tipo de habitagdo primitiva das nagdes boreas, que foi a carreta, € reconhecido na leveza da arquitetura grega, na forma dos templos antigos € até mesmo nas casas. Quanto as ragas medianas que dominaram ou ainda dominam a Asia, e que provém da Raca amarela, quais sejam a tértara oriental e a chinesa, muito numerosas apesar de muito avangadas em sua velhice, evidente que todos os seus monumentos retratam fielmente a forma da tenda, sua primeira morada Ora, a Raga sudeana, poderosa e bastante difundida pela Africa e pela regifio meridional da Asia, conhecia apenas imperfeitamente as regides setentrionais daquela parte do mundo, e tinha somente uma idéia muito vaga da Europa. A opinido geral era, sem diivida, de que toda aquela vasta extensio de terras estéreis e batidas por um inverno perene deveria ser inabitdvel. A opiniao oposta predominava na Europa com relagao & Africa, quando a raga bérea, tendo alcangado determinado grau de civilizagao, comegou a manifestar uma ciéncia geogréfica. Seja como for, o norte da Asia e da Europa tornou-se conhecido dos sudeanos no momento em que esse acontecimento deveria ocorrer. Nao importa quais tenham sido as circunstincias que os provocaram, nem os meios empregados para isso: a Providéncia assim o quis, e assim foi. Pela primeira vez, os homens brancos perceberam, & luz de suas florestas incendiadas, homens de cor diferente da sua. Mas nio foi essa a tinica diferenca que os impressionou. Aqueles homens cobertos de trajes extraordindrios, de couragas resplendentes, manipulavam com destreza armas temfveis, possufam uma cavalaria numerosa, combatiam em carros e até em torres formidaveis que, avangando como colossos, espalhavam a morte por todos os lados. O primeiro sentimento foi de

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