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Paul Ricoeur TEORIA DA INTERPRETACAO © DISCURSO E 0 EXCESSO DE SIGNIFICAGAO edicses 70 PREFACIO No outono de 1973, Paul Ricoeur foi de Paris a Fort ‘Worth dar uma série de ligdes como parte da celebragio cen- tendria da Texas Christian University. A série tina 0 titulo “Discurso e 0 excesso de signficagio”. O texto publicado gui sob o titulo Teoria da Interretagao conserva o primeito titulo como subkitulo. Esta mudanga assinala 0 desenvolvi- mento do texto numa teoria sistematica © compreensiva que tenta explicar a unidade da linguagem humana em vista dos diversos usos @ que & sueita ‘Uma questdo justa € a da localizaglo deste texto dentro do horizonte das investigagSes de Ricoeur a propésito da ln guagem e do discurso, publicadas depois de A Simbética do ‘Mal (1960) Este amplo horizonte é a busca de uma filosofia compreensiva da linguagem que possa explicar as miltiplas| fangBes do acto humano de significar e todas as suas inter- srelagdes. Nenhuma obra singular publicada durante este periodo (1960-1969) pretende oferecer semelhante filosofia compreensiva, e também ndo se pretende que as investigagdes tomadas em conjunto a constituam, pois Ricoeur duvida de ue ela possa ser eleborada por um s6 pensador. ‘Como se situa a Teoria da Interpretagéo relativamente a ssa busca? Ocupa um lugar distinto, pois obras como Da Interpretagdo (1965) € O Conflto das Interpretagdes (1969) lo sobretudo investigagdes dos diversos usos a que a lingua- ‘gem enquanto discurso submetida, a0 passo que a Teoria dda Interpretagéo oferece uma explicagio da unidade da lin- ‘auagem humana em vista dessa diversidade de fungSes. Em Teoria da Interpretaedo temos a filosofia da linguegem inte aral de Paul Ricoeur, ‘Como resultado da apresentago inicial das conferéncias, manteve-se um seminario sobre @ interpretacio de textos & um simpésio acerca da linguagem na Texas Christian Uni sity em 1975. O professor Ricoeur regressou 4 TCU para tomar parte nesses acontecimentos e desenvolveu a sua teoria 9 elas crticas que fez nos ensaios apresentados pela faculdade da TCU e pelos estudantes de muitas e diversas disiplinas ‘ais acontecimentosindicam o poder desta teria da interpre tagdo e desta filosofia da linguagem. E nossa intengio pola agora a disposigdo de um auditério muito mais vasto, median- tea publicagio da versio ampliada das conferéncias centend rias de Paul Ricoeur da TCU. Esta Universidade escolheu o que hi de melhor no saber contemporinco para ajudar a celebrar 0 seu centenario © assim honrou adequadamente 0 professor Ricoeur pelo con- vite que the fez. Por seu turno, ele proporcionou-nos 0 melhor da sua investigagio ¢ honrou deste modo a Universi- dade, ajudando-nos a celebrar adequadamente 0 seu centend- rio, Estamos-the muito agradecidos Ted Klein Presidente do Departamento de Filosofia, ‘Texas Christian University Fort Worth, Texas INTRODUGAO s quatro ensaios que consttuem este volume baseiam= -se em ¢ ampliam as conferéncias que fiz na Texas Christian University de 27 a 30 de Novembro de 1973 como suas contfe- rncias centendrias. Podem ler-se ou como ensaios separados, fou também como aproximacoes graduais de uma soluclo para um problema singular, o de compreender a linguagem fa nivel de produgdes como poemas, narrativas © ensai {quer sejam Iterdrios ou filosofices. Por outras palavras, © ‘Programa central que esti em jogo nos quatro ensaios & 0 das ‘obras; em particular, o da linguagem como obra. ‘Uma completa apreensio deste problema nfo se conse- ‘gue antes de chegar a0 quarto ensaio, que se ocupa de duas ‘atitudes aparentemente antagénicas que podemos assumir a0 lidar com a linguagem enquanto obra; quero dizer, o confit aparente entre a explicagdo e compreensio. Creio, porém, {ue tal conflito € apenas aparente e que pode vencer-se se for Possivel mostrar que as duas aitudes se relacionam dialecti- ‘camente entre si, Dal, pois que o horizonte das minhas ligdes ‘ja constituido por essa dialéctica. Se se puder dizer que a dialética entre a explicacio e a ccoinpreensio fornece a referencia itima das minhas observa- ‘8es, © primeiro passo a tomar nesta direcgdo deve ser deci- Ssivo: deveros transpor o limiar para lé do qual a linguagem se apretenta como discurso. Por conseguinte, 0 t6pico do primeiro ensaio & o da linguagem como discurso mas, na ‘medida em que s6 a linguagem escrita ostenta plenamente os critérios do discurso, uma segunda concerne & amplitude das rmudangas que afectam o discurso quando j nao é falado, ‘mas escrito, Dai o titulo do meu segundo ensaio, “Fala € Excrita” ‘A teoria do texto que emerge desta discussio & apresen- tada mais & frente com a quest2o da plurivocidade, que per tence nio s6 4s palavras (polissemia), ow mesmo a frases (ambiguidade), mas a obras inteiras de discurso como poe ‘mas, narrativas © ensaios. O problema da plurivocidade, di cutido no tercero ensaio, fornece a transigao dessiva pata 0 problema da interpretasao, redigido pela dialética da expli- cago e da compreensio, que, como indiguei, € 0 horizonte de todo este conjunto de ensaios, DDesejo expressar a minha gratiddo e o meu obrigado aos elementos da Texas Christian University pela oportunidade ue me ofereceram de dar as ligdes que formam a base desta obra e também pela sua graciosa hospitalidade, durante minha estadia al. Foi para mim muito aprazivel poder con. tribuir para a celebragio do seu centendrio. 1 LINGUAGEM COMO DISCURSO Os termos em que problema da linguagem como dis cursote discutira neste ensaio sio modernos no sentido de| {que ndo se teriam podido adequadamente formular sem 0 tremendo progresso da lingistica moderna, No entanto, se ot termos so modernos, o problema em si nio novo. Foi sempre conhecido "No Crailo, Plato jd mostrara que 0 pro- blema da “verdade” das palavras isoladas ou nomes deve ppermanecer indecidido porque a denominasdo nio esgota o poder ou a fungio da falaO logos da linguagem requer, pelo ‘menos, um nome e um verbo e é 0 entrelagamento destas dduas palavras que constitu a primeira unidade da linguagem do pensamento. E mesmo esta unidade suscta uma preten- So A verdade; a questio tem ainda de decidir-se em cada ‘© mesmo problema reaparece em obras mais maduras de Platio como 0 Teereto e 0 Sofista. A questdo ai de compreender como é que 0 erro € possvel, ito &, como é possivel dizer o que nio se verifica, se falar significa sempre dizer alguma coisa. Plato é, de novo, forgado a concluir que uma palavra por si mesma nio é verdadeira nem falsa, embora uma combinagio de palavras possa significar alguma ‘coisa, no entanto, nada apreende. O suporte deste paradoxo 6, mais uma ver, a frase e nfo a palavea Tal € 0 primeiro contexto em cujo seio se descobriu 0 conceito de discurso: 0 erro ¢ a verdade sio “afecgSes" do discurso, € 0 discurso exige dois signos bisicos — um nome € lum verbo — que se conectam numa sintese que vai além das palavras. Aristteles diz a mesma coisa no seu tratido Da ‘Interpretacdo. Um nome tem um significado e um verbo tem, além do seu significado, uma indicagdo do tempo. Sé a sua ‘conjun¢ao produz um elo predicativo, que se pode chamar logos, discurso. Esta unidade sintética € que comporta 0 ‘duplo acto de afirmagao e negagio. Uma afirmacio pode ser contradita por outra alirmacio e pode ser verdadeira ou fas. a Exte breve sumério do estidio arcaico do nosso. pro- blema pretende lembrar-nos da antiguidade e da continuidade do problema da linguagem enquanto discurso. Porém, os termos em que agora 0 discutitemos so inteiramente novos, porque tomam em consideracio a metodologia e as descober- tas da lingustica moderna [Nos termos desta linguistica, 0 problema do discurso torou-se um problema genuino, porque 0 discurso pode agora opor-se a um termo contrério que nao era reconhecido fu tido como garantido pelos fil6sofos antigos. © termo ‘posto & hoje © objecto auténomo da investigagdo cientiica, Eo ebdigo linguistco que fornece uma estrutura especifica a cada um dos sistemas lingusticos, que agora conhecemos como as diversas linguas faladas pelas diversas comunidades linguistcas. Lingua significa, pois, aqui algo de diferente da capacidade geral de falar ou da competéncia comum de falar [Designa a estrutura particular do sistema linguistico particulae ‘Com as palavras “estrutura”e “sistema” uma nova pro- blematica emerge que tende, pelo menos inicialmente, a pos- por, se & que ndo a cancelar, o problema do discurso, que € condenado a retroceder do primeiro plano da preocupacdo ‘ tornar-se um problema residual. Se o discurso hoje, para ‘nos, € problematico & porque as principals realizagBes da line Buistia dizem respeito lingua enquanto estrutura e sistema, eno enquanto usada. A nossa tarefa seri, portanto, libertar ‘ discurso do seu exilio marginal e precitio, Langue ¢ Parole: 0 Modelo Estrutural A recessio do problema do discurso no estudo contem- pordneo da linguagem & 0 prego que devemos pagar pelas tremendas realizagdes levadas a cabo pelo famoso Cours de linguistique général do linguista suigo Ferdinand de Saus- | sure (). A sua obra funda-se numa distingo fundamental entre a linguagem como langue e como parole, que contigu- rou fortemente a linguistica moderna, (Note-se que Saussure no falou de “discurso” mas de “parole”. Mais tarde, entende- remos porque.) Langue é 0 cédigo ou @ conjunto de eédigos ~ sobre cuja base falante o particular produr a parole como ‘uma mensagem particular. 1“ A sta dicotomia fuleralligam-se varias disting@es subsi- didrias’ Uma mensagem é individual, o seu cédigo & coletivo, (Fortemente influenciado por Durkheim, Saue-ure conside- ov a linguistica como um ramo da sociologia.'/. merzagem ‘0 cédigo nio pertencem ao tempo da mesma mancica: Uma rmensagem é um evento temporal na sucesso de eventos que constituem a dimensio diacrdnica do tempo, ao passo que 0 ‘cédigo esta no tempo como um conjunto de elezantos con- tempordneos, isto €, como um sistema sinerénico-Vima men- sagem ¢ intencional:¢intentada por alguém. O codigo é and- nimo e no intentado. Neste sentido, inconseiente, nfo no sentido em que 0s impulsos ¢ tendéncias slo inconscientes segundo @ metapsicologia freudiana, mas, no sentido de um incuosciente estrutural e cultural nfo libidinal Mais do que qualquer outra coisa, uma mensagem & arSiraria e contingente, ao passo que um c6digo é sistemé- tico e compulsério para uma dada comunidade lingulstica, Esta ttima oposigdo reflecte-se na afinidade de um cédigo para a investigagdo cientfica; sobretudo num sentido da palavra ciéncia que sublinha o nivel quase algébrico das capacidades combinatérias, implicadas por tais conjuntos finitos de entidades discretas como sistemas fonologicos. lexi- cals esintaticos, E mesmo tea parole pode excrever-se cien= tifcamente, cai sob a algada dé muitas ciéncias, incluindo a actstica, a filosofia, a sociologia © a historia das mudangas semanticas, a0 passo que a langue ¢ 0 objecto de uma unica cincia, a descrigdo dos sistemas sinerdnicos da linguagem. Este ripido panorama das principais dicotomias estabe- lecidas por Saussure é suficiente para mostrar porque ¢ que & linguistica conseguiu progredir sob a condieydo de por entre parenteses a mensagem por mor do eédigo, 0 evento por tior do sistema, a intengio por mor da estrutura, ¢ a arbitraric dade do aco pela stematiidade das combinapes dentro de sistemas sincrOnicos, 0 eclipse do discurso foi, ademas, encorajado pela ten- tativa que se fez de estender 0 modelo estrutural para além ddo seu lugar de nascimento na linguistica pela conseitncia sistemiética dos requisitostedricos implicados no modelo lin ‘uistico enquanto modelo estrutural Acextensio do modelo estrutual dia-nos respeito dies tamente, na medida em que 0 modelo estrutural ¢ aplicou as Is smesmas categorias de textos que $30 0 objecto da nossa teo- ‘ia da interpretaglo, Originalmente, o modelo diziarespeito & lunidades mais pequenas do que a frase, 0 signos dos siste- mas lexicas e as unidades discretas dos sistemas fonologicos, ‘de que se compdem as unidades signifcativas lexicais. No fentanto, ocorreu uma extensio decisiva com a aplicagio do ‘modelo estrutural a entidades lingusticas mais amplas do que 4 frase e também a entidades linguisticas semelhantes aos textos da comunicaglo linguistica, No tocante ao primeiro tipo de aplicagio, o tratamento dos contos pelos formalistas russos, como V. Propp (),assi- nala uma viragem decisiva na teoria da literatura, especal- ‘mente no que se refere &estrutura narrativa das obras literé- rias. A aplicagio do modelo estrutural aos mitos por Claude Lévi-Strauss constitui um segundo exemplo de uma aborda- ‘gem estrutural a séries longas de discurso; uma abordagem aniloga mas, no entanto, independente, do tratamento for- mal do folelore proposto pelos formalistas russos Relativamente a extensio do modelo estrutural as ent ‘dades nio linguistcas, a aplicagio pode ser menos espectacu- lar — ineluindo, come faz, sinais de tego, cbdigos culturais ‘como modos de estar & mesa, vestuirio, cbdigos habitacionais ¢ residenciais, padrées decorativos, ete. — mas ¢ teoricamente interessante, por forneeer um conteddo empirico ao conceito de semiologia ou semantica geral, que foi desenvolvida inde- ppendentemente por Saussure e por Charles S. Peirce. A lin- {uistica torna-se aqui uma provincia da teoria geral dos sig- nos, embora seja uma provincia que tem o privilégio se ser simultaneamente uma espécie e um exemplo paradigmatico dde-um sistema signico. Esta ltima extensio do modelo estrutural implica jé uma apreensio tedrica dos postulados que governam a semio- logia em geral a linguistca estrutural em particular. Toma- dos conjuntamente, tis postulados definem e descrevem 0 ‘modelo estrutural como um modelo, Primeiro, uma abordagem sincrOnica deve preceder qual- quer abordagem diaerSnica, porque os sistemas sio mais inte- ligives do que as mudangas. Quando muito, uma mudanga & ‘uma mudanga, parcial ou global num estado de um sistema. Por conseguinte, a histéria das mudangas deve vir depois da teoria que descreve os estados sinerénicos do sistema, Este 6 primeiro postulado expressa a emergtncia de um novo tipo 4e intelgibilidade, directamente oposto ao historicismo do século XIX. Em segundo lugar, 0 caso paradigmatico para ‘uma abordagem estrutural &0 de um conjunto finito de ent- dades discretas. A primeira vista, os sistemas fonolégicos podem parecer satisfazer este segundo postulado mais direc- tamente do que fazer os sistemas lexiais, onde o critério de finitude & mais dificil de aplicar concretamente. Contudo, 3 ideia de um léxico infnito permanece, em principio, absurda ‘A vantagem tebrica dos sistemas fonoldgicos — apenas umas ‘quantas.dtzias de signos dlstintvos caracterizam qualquer sistema lingustico dado — explica porque é que a fonologia veio para o primeiro plano dos estudos lingusticos, a seguir & ‘obra de Saussure, embora a fonologia constitusse, para 0 fundador da linguistica estrutural, apenas uma ciéneia auxi- liar para o micleo da linguistica: a semantica. A posicio paradigatica dos sistemas consttuidos por conjuntos finitos de entidades discretas reside na eapacidade combinatéria ras possibilidades quase algébricas que pertencem a tais con- juntos, Tais eapacidades e possibilidades enriquecem o tipo de inteligbilidade instituido pelo primeiro postulado, 0 da sincronicidade Em tercero lugar, em tal sistema, nenhuma entidade que pertenga & estrutura do sistema tem um significado por s\ mesma; o sentido de uma palavra, por exemplo, resulta da ‘sua oposigdo a outras unidades lexicais do mesmo sistema, ‘Como Saussure disse, num sistema de signos, ha apenas dife- fengas, mas no uma existéncia substancial. Este postulado define as propriedades formas das entidades linguisticas opon- ddo-se aqui formal a substancial, no sentido de uma existéncia Positiva auténoma das entidades em jogo na linguisticae, em sera, na semiotica, Em quarto lugar, em tas sistemas fnitos, todas as rela~ 48 so imanentes ao sistema. Nesse sentido, os sistemas semidticos so “fechados”, isto é, sem relagGes com a reali dade externa no semidtica. A defiiglo do signo dada por Saussure implicava jé este postulado: em vez de se definit pela relagio externa entre o signo ¢ uma coisa, relagdo essa tornaria a lingustica dependente de uma teoria das entidades cextralinguistieas, 0 signo define-se por uma oposiglo entre dois aspectos que se inserem ambos dentro da circunspecglo uv de uma tinica citncia, a dos signos. Estes dois aspectos sf0 0 Significante — por exemplo, um sem, um padrio escrito, um [esto ou qualquer meio fisico —e 0 significado — 0 valor diferencial no sistema lexical. O facto de o sgnificante © 0 significado admititem dois tipos diferentes de andlise — fono- logica no primeiro caso, semintica no segundo — mas 6 ‘conjuntamente constituirem o signo, no s6 forneceo eritério pra os signos linguistics, mas também por extensio, 0 das ‘entidades de todos os sistemas semidticos, que se podem defi- rir com a condigdo de se "enfraquecer” ese citi 0 iltimo postulado basta $6 por si, para earacterizar 0 estratualismo como um modo global de pensamento, para li de todos os aspectos téenicos da sua metodologia. A lingua~ ‘gem jndo aparece como uma mediagio entre as mentes eas, coisas. Constitui um mundo préprio, dentro do qual cada clemento se refere apenas a outros elementos do mesmo sis- tema, gragas & acglo reciproca das oposigées e diferengas constitutivas do sistema. Numa palavra a linguagem ja nao € tratada como uma “forma de vida", como Wittgenstein a chamaria, mas como o sistema auto-suficente de relagdes internas Neste ponto extremo, a linguagem desapareceu como discurso. ‘Semintica versus Semistica: a Frase ‘Acesta abordagem unidimensional da linguagem, para a qual os signos slo as Gnicas entidades bisieas, quero opor luma abordagem bidimensional, para a qual a linguagem se funda em duas entidades irredutives, os signos e as frases. Esta dualidade ndo coincide com a de langue e parole, como foram definidas por Saussure no seu Cours de linguistique zénérale, ou mesmo como essa dualidade foi mais tarde reformulada enquanto oposigo entre e6digo © mensagem. [Na terminologia de angue € parole, apenas a langue ¢ um fbjecto homogéneo para uma citncia Unica, gracas 3s pro- priedades estruturais dos sistemas sinerSnicos. Parole, como dissemos, & heterogénea, além de ser individual, diacrOnica © contingente, Mas @ parole apresenta também uma estrutura que ¢ irredutivel num sentido especifico ao das possibilidades is combinatériasabertas plas opsigdes entre entdades disere- tas. Esta estrutura é a construcio sinttica da propria fase enguanto distita de qualquer combinaslo analitca de enti- {laes isctetas. A minha substituigdo do termo “discurso" 20 ‘Se "parole (ue exprime apenas 0 aspecto residual de uma Gitncia da “langue") vsa no 56 slieatar a especificidade desta nova unidade em que Se apo todo o discuso, mas também legitimar a distingdo entre a semidtica ea semintica como as duas ciéncas que corespondem a duas especies de Uunidades caracteristics da linguagem, o sign ea frase. ‘Alem disio as das citncias no s0 S40 distintas, mas reflegem igualmente uma ordem hierdrquica. O objec da Semistica ~ o signo — ¢ merament virtual. Apenas a frase € ‘stu enquanto genuino acontecmento da fala. Eis porgue ‘io ¢possivel passar da palavra, enguanto signo lexical, para frase, por simples estensio da’ mesma metodologia a uma ‘entdade mais complexa, A frae no é uma palavea mais ampla ou mais complexa. E una nova entdade. Pode decom- porse em palavras, mas as palaras so algo de diferente de frases curtis, Uma frase € um todo itedutivel & soma das sas partes. constiuida por palavzs, mas nfo € uma fone 0 derivativa das suas palavas. Uma frase compée-se de $Sgnos, mas em Si mesma no € um sign. 'Ndo existe, por conseguinte, nenhuma progressio linear do fonera para olexema e, em seauida para a ftasee para totaidades lingusicas mais amplas do que a frase. Cada ‘stidio raquer novasetruturas e ima nova descrglo, A rela~ {lo ene as duas espécien de emidades pode expressarse da Seguinte maneia, de acordo com a sanscritsta francés, Fale Benveniste: linguagem basei-se na possibiidade de dois tipos de operagbes, a integragHo em todos mais vastos © a dissociagdo nas partes constitutvasO sentido promana da mera operagao; a forma, da segunda "A distingo entre as duas espéies de linguistica — a semitcn e semantics — reflects esta rede de elas. A Semiotca, a ccia dos signe, ¢ formal na medida em que se funds na dissociagdo da. lingua em pares constituivas. A semintica, a ciznea da frase, diz imediatamente respeito 20, onesto de sentido (que, esie momento, se pode consderar como sinGnimo de significado, antes dese inroduzir mais 8 freme a distingdo entre sentido ereferénea), na medida em 9 {que a semantica se define fundamentalmente mediante proce- dimentos integrativos da linguagem, ‘Quanto a mim, a distingdo entre semdntica e semidtica & a chave de todo o problema da linguagem, e 0s meus quatro ensaios basciam-se nesta decisio metodoldgica inicial, Como disse nas observagSes introdutGras, sta distingdo & simples- ‘mente uma revalorizaglo do argumento de Plato no Cratlo © no Teeteto, segundo o qual 0 logos se funda no entreteci- mento de, pelo menos, duas entidades diferentes, 0 nome e verbo. Mas, noutro sentido, esta dstingdo exige hoje mais Sofistcagdo por causa da existncia da semistiea enquanto ‘moderna contraparte da semantica. A Diakéctien de Evento e Significasio A parte seguinte deste ensaio ser consagrada & busea de critérios adequados para diferenciar a semantica ¢ a semig- tica, Construirei os meus argumentos a partir da convergén- cia de varias abordagens que, por diversas raz6es, tém a ver com a especifcidade da linguagem como discurso, Estas abordagens sfo a linguistica da frase, que fornece o titulo eral de seméntica; © a fenomenologia da significagio, que deriva da primeira Investigacdo Iégica de Hussrl(');¢ 6 tipo de “andlise linguistica", que earacteriza a descriglo flos6fica anglo-americana da “linguagem comum". Todas estas realiza- .8es parciais se reunirdo sob um titulo comum, a dialética de vento signiicagdo no discurso, para o qual descreverei em primeiro lugar o pélo do evento, em seguida, 0 pélo da signi- ficagio enquanto componentes abstractas desta polaridade concreta, Discurso como Evento Partindo da distingo saussuriana entre langue e parole podemos dizer, pelo menos de um modo introdut6rio, que @ iscurso € o evento da linguagem. Para wna linguistica apli- cada a estrutura dos sistemas, a dimensio temporal deste evento exprime a fraqueza epistimolégica de uma Linguistica da parole. Os eventos esvanecemse, enquanto of sistemas permanecem. Por conseguinte, 0 primeiro passo de uma 2 semintica do discurso deve ser rectiicar a fraqueza epistemo- logiea da parole, avangando do caricter fugaz do evento fenquanto oposto a estabilidade do sistema, relacionando-o com a prioridade ontolégica do discurso, que resulta da Aactualidade do evento enquanto oposto a mera virtualidade do sistema, E verdade que s6 a mensugem possui uma existencia temporal, uma existincia na duragio e na sucesso; e como 0 aspecto sincronistco do cédigo pde o sistema fora do tempo Sucessvo, entio a existéncia temporal da mensagem di tes- temunho da sua actualidade. De facto, o sistema nko existe ‘Tem apenas uma existéncia virtual, Unicamente a mensagem proporciona actualidade & lingua e o discurso funda a exis- {encia genuina da lingua, visto que $6 05 actos de discurso dliseretos tinicos em cada tempo actualizam 0 cédigo. Mas, este primeiro critério, por si s6, seria mais engana- dor do que elucidativo, se a “instincia do discurso", como a cchama Benveniste, fosse meramente 0 acontecimento evanes- conte. Entdo a cidncia estaria justiticada em pé-lo de lado e a Drioridade ontoldgica do discurso seria insignificante e sem consequéncias. No entanto, um acto do discurso nfo & sim- plesmente transitorio e evanescente. Pode identificar-se © Teidentifcar-se como 0 mesmo, de maneira que © postamos dizer novamente ou por outras palavras. Podemos até dizé-lo noutra lingua ou traduzi-lo de uma lingua para outra. Ao longo de todss as transformagdes preserva uma identidade propria, que pode chamar-se 0 conteide proposicional, 0 “dito enquanto ta” ‘Temos, pois. de reformular 0 primeira crtério — 0 dis- curso como evenio — de um modo mais dialéctico, a fim de se tomar em consideracio a relagio que constitu 0 discurso | enquanto ta, a relagio entre evento e significado. Mas, antes de conseguirmos apreender esta dialética como um todo, consideremos 0 lado “objetivo” do evento da fala. Discurso como Predicagao Considerada do ponto de vista do contedido proposicio- nal, a frase pode caracterizar-se por um tnico tragodistintivo: tem um predicado. Como observa Benveniste, 0 sujito gra matical pode faltar, mas no o predicado. Mais ainda, esta 2 nova unidade no se define pela oposigdo a outras unidades, camo um fonema a outro fonema oli um lexema @ outro Jexema no interior de um sistema. No hi diversas espécies de predicados, a0 nivel dos categoremas (categorema, em _ego=praedicarum, em latim), existe precisamente uma espé- cie de expressio linguistica, a proposiglo, que constitu uma classe de unidades dstintvas. Por conseguinte, nfo hai nenhis~ ‘ma unidade de uma ordem superior que possa fornecer uma classe genérica & frase concebida como uma espécie. E poss! vel conectar proposicdes segundo uma ordem de concatena~ lo, mas nfo integra. Ente critério linguistica pode relacionar-se com descri- 8es estabelecidas pelos tedricos da linguagem comum. O predicado, que, como afirma Benveniste, € 0 nico factor Indispensivel da frase, faz sentido nos casos paradigmticos ‘onde as suas “fung6es” se podem ligar e opor a “funglo” do ‘sujeito logico, Assim, uma caracterstica importante do predi- ado vem para primeiro plano com base na antitese entre o predicado © 0 sujeito. Enquanto o sujeito genuinamente lgico ¢ 0 suporte de uma identificagso singular, o que 0 pre- dicado diz do sujeito pode sempre tratar-e como uma carac- teristica “universal” do sujeito. Sujeitoe predicado nfo fazem ‘© mesmo trabalho na proposigdo. O sujeito pega em algo de singular — Pedro, Londres, esta mesa, a queda de Roma, o primeiro homem que subiu a0 Evereste, ete. — mediante vvirios dispositivos gramaticais que servem esta funsio logiea: homes proprios, pronomes demonstrativos (este © aquele, agora e entio, aqui e ali, tempos do verbo enquanto relaci nados ao presente) e “descriges definidas” (assim e assado). (0 que todos eles tfm em comum & que identficam um s6 € ‘apenas um s6 elemento, O predicado, pelo contrario, designa uma espécie de qualidade, uma classe de coisas, um tipo de relagdo ow um tipo de acyio. ‘A polacidade fundamental entre identficaglo singular ¢ 4 pregicaco universal proporciona um conteido especifico {4 nogdo de proposigao concebida como o objecto do evento da fala, Mostea que 0 discurso ni ¢ simplesmente um evento evanescente e, como tal, uma entidade irracional, como pode- fia sugerir a oposigdo simples entre parole e langue. O dis- curso fem uma estrutura propria, mas no é uma estrutura no sentido analtico do estruturaismo, isto é, como um poder 2 ccombinatério baseado nas opesigdes previas de unidades di cretas. £, antes, uma estrutura no sentido sintético, isto & ‘como o entrelagamento ¢ 0 efeito reciproco das fungdes de ientifcago e predicago numa s6 e mesma frase. A Dialéctica do Evento e Significagdo © discurso considerado quer como um evento ou uma proposigao, ito é como uma funglo predicativa combinada com uma identficagio, uma abstracio que depende do todo concreto que € a unidade dialética de evento signifi- ‘cago na frase, Esta constituigho dialéctica do discurso pode- ria passarse por alto numa abordagem psicoldgica ou exis- tencial, que se concentraria no efeito reciproco das funcdes, na polaridade da identificagio e da predicagio universal, A tarefa de uma teoria concreta do discurso consiste em tomar tal diaéctica como sua directriz. Qualquer énfase no conceito| abstracto de um evento de fala justfica-se apenas como um modo de prostesto contra uma redugio anterior mais abs- tracta da linguagem, a redugdo dos aspectos estruturais da linguagem como langue, pois a nogio de fala, enquanto acon {ecimento, fornece a chave para a transiglo de uma linguis- tica do cédigo para uma linguistica da mensagem, Recorda- nos que o discurso se reaiza temporalmente e num momento presente, ao passo que o sistema da lingua ¢ virtuale fora do fempo. Mas, este trago aparece somente no movimento de actualizagio da lingua para o discurso. Por conseguint, toda ‘8 apologia da fala como evento é significativa se e somente se torna visivel a relagdo de actualizaglo, gragas a qual a nossa competenca lingustica se actualza na performance. Mas esta mesma apologia torna-se abusiva logo que © ‘aricter de evento se estende da problematica da actualiza- ‘lo, onde € vdlido, a outra problemitica, a da compreensio. Se todo 0 discurso se actualiza como um evento, todo 0 dis- ‘curso & compreendido como significado. Por significagho ou ‘sentido designo aqui 0 contelido proposicional, que justa- mente descrevi como sintese de duas fungdes: a identificagio ea predicagdo. Nao € o evento, enquanto transitério, que ‘queremos compreender, mas a sua significagio — o enirela- ‘gamento do nome © do verbo, para falar como Platio — enquanto dura 2B ‘Ao dizer isto, nfo estou a dar um passo atras da lingui tica da fala (ou discurso) para a lingu‘stica da lingua (como langue. E na linguistica do discurso que 0 evento e a signifi- cago se articulam. A supressio e superaglo do evento na significagdo é uma caracterstca do proprio discurso, Atesta intencionalidade da linguagem, a relagio de noese e noema dentro dela. Se a linguagem & um meinen, um intent, isso sdeve-se precisamente & Aujhebung, pela qual o evento & can- celado como algo de meramente transtério ¢ retido como o ‘mesmo significado. ‘Antes de trar a principal consequéncia da interpretago dialéctica do evento de fala para 0 nosso empreendimento hhermentutico,elaboremos de modo mais completo ¢ também ‘mais conereto a propria dialética, na base de alguns corolé- ros importantes do nosso axioma: isto &, se todo o discurso se actualiza como um evento, é compreendido como signifi- casio. 0 Significado do Locutor e Sigificado da Emunciagio A Auto-referencia do Discurso © conceito de signticagao admite duas interpretagdes ‘que reflectem a dialética principal entre evento ¢ sentido. Significar € o que o falante quer dizer, isto é, 0 que intenta dizer € 0 que a frase denota, isto é, 0 que a conjungdo entre @ fungdo de identiicaggo e a fungio predicativa produz. Por coutras palavras, a signficagio € nodtica e noemitica. Pode- ‘mos conectar a referencia do discurso ao seu falante com 0 lado eventual da dialéctca. O evento é alguém falando, Neste sentido 0 sistema ou eédigo € anénimo, na medida em que & meramente virtual. As linguas nio falam, s6 as pessoas. Mas © lado proposicional da auto-refertncia do discurso nio deve descurar-se, se & que 0 significado do locutor utteer's mea- ring, para usar um termo de Paul Grice, se nfo deve reduzir ‘2 uma simples intengdo psicolégica. O significado mental em mais nenhum lado se pode encontrar a ndo ser no préprio discurso, 0 significado do locutor tem a sua marca no sentido «da enunciago. Como? ‘A Linguistica do diseurso, que chamamos semantica, 24 para a distnguir da semitica, fornece a resposta. A estrutura Interna da frase refere-se a0 seu falante através de proce mmentos gramaticais, que os lingustas chamam “conectores” (shifters). Os pronomes pessoas, por exemplo, nfo tém signi ficado objectivo, “Eu” nao é um conceito. E impossivel substitur-Ihe uma expresso universal como “aguele que esté ‘agora a falar". A sua dnica fungio é referir toda a frase a0 | Sujeto do evento da fala, Tem um novo significado sempre ‘que € usado e sempre se refere a um sujeito singular. “Eu” & aguele que, a0 falar, aplica a si mesmo a palavra “eu”, que ‘aparece na frase como um sujeto logic. HA outros conecto- ! Fes, outros suportes gramaticais da referencia do discurso a0 seu falante. Incluem os tempos do verbo, na medida em que Se centram em torno do presente e, por conseguinte, se rele- rem ao “agora” do evento da fala e do falante. A mesma coisa se verifica com os advérbios de tempo ¢ de espago com os demonstrativos que podem considerarse como parti- culares egocéntricos. Por conseguinte, 0 discurso tem muitos sodos substtuveis de se refrir ao falante. ) Mediante a atengio aos dspositvos gramaticais da auto- -referéncia do discurso, obtemos duas vantagens. Por um lado, conseguimos um novo eritério da diferenga entre dis- curso € cédigos linguisticos. Por outro, somos capazes de fornecer uma definigio no psicol6gica, porque puramente semintica, do significado do locutor. Nenhuma entidade ‘mental precisa de ser hipotetizada ou hipostasiada. O sentido a enunciagao aponta para o significado do locutor gragas & fauto-releréncia do discurso a si mesmo enguanto acontec- mento, Esta abordagem semdntica € reforgada por outras duas conttibuigdes & mesma dialéctica do evento © da proposigo. Actos Locucionérios e locucionérios ‘A primeira & a bem conhecida andlise lingustia (no sen- tido anglo-americano do termo) do “acto de linguagem”. J. L. ‘Austin foi o primeiro a notar que os “performativos” —como promessas — implicam um empenhamento especifico do falante, que faz 0 que diz ao dizé-lo. Ao dizer “prometo”, cle romete efectivamente, isto é, coloca-se sob a obrigagdo de fazer 0 que diz que hivde fazer. O “fazer” do dizer pode 2s ‘comparar-se a0 pélo acontecimental na dialéetica do evento € da signficagdo. Mas este “fazer” segue também regras semn- ticas que so exibidas pela estrutura da frase: o verbo deve ser o da primeira pessoa do indicative, Aqui também uma “gramitica” especifica suporta a forca performativa do dis- curso. Os performativos sio apenas casos particulars de uma caracteristica geral exibida por toda a classe de actos da lin- ‘uagem, quer sejam ordens, desejos, perguntas, adverténcias ‘ou assergdes. Todas elas, além de dizerem algo (o acto locu- tiondrio), fazem algo ao dizer (0 acto ilocucionério) € produ- 22m efeitos por o dizerem (0 acto perlocucionao). 0 acto ilocuciondro € o que distingue uma promessa de uma ordem, de um desejo ou de uma assercio. Ea “forga” do acto ilocucionério apresenta a mesma dialética de evento e significagdo. Em cada caso, uma “gramética” especfica cor- responde a uma certa intenglo para a qual o acto ilocuciond- rio exprime a “forga” distintva. O que se pode expressar em termos psicolégicos como acreditar, querer ou desejar, € investido de uma existéncia semintica gragas & correlagio ue existe entre estes dspositivos gramaticais e o acto ilocu- cionéri. 0 Acto Interlocucionério ‘A outa contribuiglo para a dialética do evento © do conteido proposicional é fornecida pelo que se poderia cha- ‘mar o acto interlocucionério, ou acto alocuciondrio, para breservar a smetia com o aspect ilocusoniio do aco ds Um aspecto importante do discurso € que ee dirgido a alguém. Hé outro falante que é o enderesado do discurso. A presenga do par, locutor e ouvinte, consttui a linguagem ‘como comunicagio. O estudo da linguagem a partir do ponto de vista da comunicago niio comera, no entanto, com 2 sociologia da comunicagio. Como Platéo afirma, o dilogo é ‘uma estrutura essencial do discursso. Perguntar e responder sustentam o movimento e a dindmica do falar e, em certo sentido, nfo constituem um modo de discurso entre outros. Cada acto ilocucionirio & uma espécie de pergunta. Asserir alguma coisa ¢ esperar acordo, tal como dar uma ordem € esperar obedizncia, Mesmo 0 solildquio — o discurso soliti- 2% rio — & um diflogo consigo mesmo ou, para citar mais uma ver Platho, a dianoia é 0 didlogo da alma consigo mesma, Alguns linguists tentaram reformular todas as fungdes da linguagem como variéveis dentro de um modelo ommni-englo- bante para o qual a chave é a comunicacio. Roman Jakob- son, por exemplo, parte da triple relagio entre falante, ‘ouvinte € mensagem e acrescenta, em seguida, trés outros fac- tores complementares, que enriquecem o seu modelo. Sio cles, cbdigo, contacto € contexto. Com base neste sistema de sis Tactores, estabelove um esquema de seis fungBes. Ao locu- tor corresponde a fungio emotiva, ao ouvinte a conativa, & ‘mensagem a fungdo poetica, O cédigo designa a fungdo meta- linguistica, ao pasto que o contacto contexto S80 0 supor- tes das fungdesféticae relerencial Este modelo € interessante porque: (I) desereve directa- mente 0 discurso € no um residuo da lingua; (2) desereve tuma estrutura do discurso, e nfo apenas um evento irracio- nal, ¢ (3) subordina a fungo do cédigo & operacio conectora dda comunicagio. ‘Mas por sua ver, este modelo exige uma investigagdo filoséfiea que possa ser proporcionada pela dialética de evento signifieacio. Para o linguista, a comunicapio € um Tacto e mesmo até o facto mais Sbvio. AS pessoas, efectiva- mente, falam umas a8 outras. Mas, para uma investigacio ‘existencial, a comunicaglo é um enigma e até mesmo um nilagre. Porqu®? Porque o estar junto, enquanto condigio ‘existencial da possibilidade de qualquer estrutura dialégica do discurso, surge como um modo de ultrapassar ou de supe- rar a solo fundamental de cada ser humano. Por solidio rio quero indicar o facto de, muitas vezes, nos sentiemos isolados como numa multidlo, ou de vivermos e morrermos ss, mas, num sentido mais radical, de que 0 que & experien- ciado por uma pessoa nio se pode transferir totalmente como tal eta experiéneia para mais ninguém. A minha experiéncia rio pode tornar-se directamente a vossa experiencia. Um facontecimento que pertence a uma corrente de conscincia ndo pode transferirse como tal para outra corrente de cons- inca, E, no entanto, algo se passa de mim para voces, algo se transfere de uma esfera de vida para outra. Este algo ndo é ‘sexperitncia enquanto experienciada, mas a sua significa. Eis o milagre. A experiencia experienciada, como vivida, 2 permanece privada, mas 0 seu sentido, a sua significagio torna-se publica, A comunicagdo &, deste modo, a superacio 4a radical ndo comunicabilidade da experinciavivida enquan- to vivida Este novo aspecto da dialéctica de evento ¢ significagdo merece atengdo. O evento no & apenas a experitncia enquan- to expressa ¢ comunicada, mas também a prOpria trocainter- subjectiva, o acontecer do didlogo. A instancia do discurso é 2 instincia do didlogo. O didlogo ¢ um evento que liga dois ‘eventos, 0 do locutor e o do ouvinte. £ em relagdo ao evento dialogico que a compreensio como significaglo ¢ homégenea, Daf a questo: que aspectos do proprio diseurso so sigifica- tivamente comunicados no evento do dislogo? ‘Uma primeira resposta € 6bvia. O que se pode comuni- car é antes de mais, 0 conteido proposicional do discurso, © retrogradamos assim para 0 nosso cttério principal — o dis- curso como evento mais 9 sentido, Porque o sentido de uma frase €, por assim dizer, “externo” frase, pode transferirse; a exterioridade do discurso asi mesmo — que é sindnima da autotranscendéncia do evento na sua signiicago —abre 0 discurso ao outro. A mensagem tem o fundamento da sua comunicabilidade na estrutura da sua signiicago. Isto impli- «a que comunicamos a sintese da funcio de idemtficagio (da ‘qual 0 sujeto ldgico &0 suportee a fungdo predicativa (que é Potencialmente universal) Ao falarmos a alguém, apontamos Para a tinica coisa que queremos dizer gragas aos dispositivos Dpiblicos dos nomes préprios, demonstrativos © deserigdes definidas. Ajudo o outro aidentificar 0 mesmo elemento para ‘© qual aponto, gragas aos dspositives gramaticais que forne- ‘cem uma experiencia singular com uma dimensdo publica. O ‘mesmo se verifia com a dimensio universal do predicado, comunicada pela dimensio genérica das entidades lexicas. Naturalment, este primeiro nivel de compreensio mitua ro se da sem algum mal-entendido, As nossas palavras na sua maioria so polissémicas, tem mais de um significado, Mas a fungdo contextual do discurso é, por assim dizer, fil- ‘rar a polissemia das nossas palavras ¢ reduzit a pluralidade das interpretagdes possiveis, a ambiguidade do discurso que resulta da polissemia ndo filtrada das palavras, E a fungio do didlogo & iniciar esta fungdo de fitragem do contexto. O con- textual & 0 didlogo. E neste sentido preciso que 0 papel con- % textual do didlogo reduz 0 campo do mal-entendido a propé- sito do conteiido proposicional. E consegue, em parte, superar ‘ano comunicabilidade da experiéneia, No entanto, o conteido proposicional é apenas o corre- Jado do acto locucionario. E que dizer da comunicabilidade dos outros aspectos do acto da linguagem, especialmente 0 acto locucionario? £ aqui que se revela mais complexa a dia- léetica do acto e da estrutura, do evento e da signficagio, ‘Como pode o caricter do discurso, que ¢ ou constatativo ou performative, ser um acto de asserir alguma coisa ou de frdenar, descar, prometer e admoestar, sr comunicado © compreendido? Mais radicalmente, podemos nés comunicar © acto de linguagem enquanto acto ilocucionario? ‘Sem divida, & mais fécil confundir um acto ilocucioné- rio com outro acto ilocucionatio do que entender mal um acto proposicional. A principal razdo & que os factos no lin- fguistcos se encontram entrelagados com as marcas linguisti- fas, € estes factores — que incluem fisionomia, gestos € entoagdo da vor — sio mais difces de imerpretar porque ilo st fundem em unidades discretas, e 0s seus eddigos sio mais instiveis ea sua mensagem mais fcil de ocultar ou falsi- ficar, No entanto 0 acto ilocucionério ni esté desprovido de ‘marcas linguisticas, as quaisincluem 0 uso dos modos grama- ticais como 0 indicativo, o conjuntivo, o imperative e o opta~ tivo, bem como so tempos dos verbos e os termos adverbiais codifcados ou outros dispositives perifristcos equivalentes A escrta ndo s6 preserva as marcas linguisticas da enuncia- ‘glo oral, mas também acrescenta sinas distntivos suplemen- {ares como 0s sinais de ctagio, os pontos de exclamagao e de interrogagio, para indicar as expresses fisiondmicas e ges- tua, que desaparecem quando 0 locutor se torna um esr- tor. Por conseguinte, os actos ilocucionérios podem, de mui- tos modos, comunicarse a0 ponto de a sua “gramitica” formecer 0 evento com uma estrutura piblica, Sinto-me inclinado a dizer que 0 acto perlocucionsrio ‘0 que fazemos por meio do acto de falar — assustar, sedu- 2ir, convencer, et. — € 0 aspecto menos comunicével do acto| de linguagem, porquanto nko linguistico tem prioridade sobre o linguistico em tais actos. A funeao perlocucionacia é, pois, a menos comunicével porque é menos um acto inten ional exigindo uma intengio de reconhecimento por parte do 2» fouvinte, do que uma espécie de “estimulo”, que gera uma posta” num sentido comportamental. A Tungio perlocu- ciondria ajuda-nos antes a identifier a fronteira entre o cardeter de acto ¢ o caricter de reflexo da linguagem, 5 actos locucionarios ¢ ilocucionsrios so actos — ¢, por conseguint, eventos — na medida em que a sua intengo Implica a intengao de serem reconhecidos pelo que so: uma ideniicagdo singular, predicasio universal, enunciado, ordem, ferse. Mas, na medida em que no dscro flado orga locciondra depende damien © dow gests e ds aspects to ariculados do discus aque chamamos posi, deve feconhezerse que a foreaocuiondria € menor incre! do fue o significado proposicinal. Por fim, osteo prlocuso- nirio€ 0 aspect do dicuro que mencs se pode inservet pela ras forneciss no primeira eno. Caracteia fuagem flada mals do que’ fara ngoagem esta Em todos os cats €exteroriagdointencional, propria dos diferentes estas do ato deal ue torn ing na seria posal de manera qu, na anise fina, a exensto da problemdtca da fag igual da extetoriagdoitencioal Ao acto inguin, com a sum estutoramuliinensional 9 Ora, a problematica da fina problema da escrta? {Por outras palaveas, € a escrita apenas uma questo de rmudanga de meio onde a vor humana, a face € 0 grsto so ‘substituides por sinais materiais diferentes do proprio corpo do locutor? © “Quando consideramos o Ambito das mudangas socais ¢ politieas que se podem relacionar com a invengdo da escrita, ppodemos conjecturar que a escrta € muito mais do que uma ‘mera fixagdo material. Precisamos apenas de evocar algumas dessas realizagdes tremendas. Com a possibilidade de trans- mit ordens através de longas distincias sem strias distor ‘goes, pode conecar-se o nascimento do dominio politico Exercido por um Estado distante. Esta implicagdo politica da tscrita € apenas uma das suas consequéncias. Com Siixagio das regras de cilculo, pode associar-se 0 nascimento das rela- ges de meyzado, por conseguinte, o nascimento da econo- mia, Com abgonstituigio dos arquivos, a histéria. Com a inagdo do Dieito enquanto padrio de decsbes, independen- “es da opino do juiz concreto, o nascimneto da justia e dos [ee juridicos, ete.*Um ambito tho imenso de eeitos da insrigao espotard o sugere que o discurso humano, ao fixar-se na escrta, nlo & simplesmente preservado de destruiglo, mas é profundamente afectado na sua fungio comunicativar ‘Uma segunda considerapio pode encorajar-nos a prosse= ‘ur neste novo pensamento, A eserita suscita um prablema especifico, ja que nio € apenas a fixagio de um discurso oral prévio, a inseriglo da linguagem falada, mas € persamento hhumano directamente trazido 3 escrita sem o estidio inter- medidrio da linguagem falada YA escrita toma 0 lugar da fala” ‘Tem lugar uma especie de atalho entre a significagio do dis- curso e 0 meio material, Temas, pois, a ver com a literatura ‘no sentido original da palavraO destino do discurso & con- fiado litera, nko a vor. ‘A melhor mancira de medie a extensio desta substitui= € olhar para o Ambito de mudangas que ocorrem entte as ‘utras componentes do processo de comunicagdo, Mensagem e Locutor ‘A primeira ligagio a ser alterada & a da mensagem com 6 locutor. Tal mudanga € efectivamente, em si mesma uma 0 as duas mudangas simétricas que afectam a situagdo interlo- tcuciondria como um todo. A relago entre mensagem e loct- tor num extremo da cadeia de comunicagdo e a relagdo entre 1a mensagem e 0 convite, no outro sio profundamente trans- formadas quando a relaglo face a face ¢ substtuida pela rela- go mais complexa da leitura a escrita, como resultado da Inscrigdo directa do discurso na litera. A situaglo dialdgica foi destruida. A relagdo escrita-leitura jé nfo é um caso part- cular da relagdo entre fala e audigdo. Se considerarmos com maior pormenor estas mudancas, vemos que a referencia do discurso ao seu locutor € afectada da seguinte maneira, No discurso, dissemos nés, a frase esigna o seu locutor mediante diversos indicadores da sub- jectividade e personalidade. Mas, no discurso falado, a capa- ‘idade do discurso para se referit ao sujeito falante apresenta um cardcter de imediatidade porque © locutor pertence situagdo de interlocugdo. Ele esté al, no sentido genuino de estar ai, do Dasein*Por conseguinte, a inten¢do subjectiva do locutor’ € a significagdo do discurso sobrepdem-se um 20 outro de tal modo que & a mesma coisa entender 0 que o locutor pretende dizer e 0 que o seu discurso significa.*A ambiguidade do alemo meinen e do inglés 10 mean — que fexamindmos no ensaio anterior — dé testemunho desta sobreposicio na situayio diaidpica. Contudo. com o discurso tito, a intengdo do autor e o significado do texto deixam de coincidie-WA dissociagio da significacdo verbal do texto da intengio mental do autor dao conccito de inscrigdo 0 seu significado devsivo, para além da mera fixasio do discurso ‘oral. prévio.’A inscrigio torna-se sinénimo de autonomia semamtica do texto, que resulta da desconexdo da intengio mental do autor relativamente ao significado verbal do texto® Em relagdo a0 que 0 autor quis dizer € a0 que o texto signi- fica. A earreira do texto subtraise ao horizontefinto vivido pelo Seu autor. O que o texto significa interessa agora mais ‘do que © autor quis dizer, quando o escreveu, (0 conceito de autonomia semantica é de imensa impor- Lancia para @ hermentutica. A exegese comeza com el, isto é, desdobra os seus procedimentos dentro da eireunsctigao de lum conjunto de signficagSes que destruiram a sua ancoragem i psicologia do autor. Mas a despsicologizacio da interpre~ tagdo ndo implica que a nogio de significado autoral tenha 4 perdido a sua significacio. Aqui, mais uma vez, uma concep- ‘lo nio dialéctica da relagdo entre eventos e sentido tenderia ‘2 opor uma alternativa& outra. Por um lado, erlamos 0 que W.'K. Wimsatt chama a falcia intencional, que sustenta a intengio do autor como o eritrio para quaiquer interpreta- ‘fo Vilida do texto. E, por outro, 0 que eu chamaria, de um odo simétrico, a faldcia do texto absoluto: a falécia da hipostasiaso do texto como uma entidade sem autor. Se a faldcia intencional passa por alto a autonomia semntica do texto, a facia contraia esquece que num texto permanece tum discurso dito por alguém, dito por alguém a mais alguém acerca de alguma coisa. £ impossiveleliminar de todo esta ‘caracteristica principal do discurso, sem reduzir 0s textos 2 objectos naturas, sto 6, a coisas que no sio feitas pelo hhomem, mas que, como calhaus, se encontram na area ‘A autonomia semintica do texto torna a relagko do evento ¢ significagdo mais complexa e, neste sentido, revelana como uma relagdo dialéetica. O significado autoral torna-se justamente uma dimensto do texto na medida em que 0 autor nJo esté disponivel para ser interrogado. Quando 0 texto jf nfo responde, entdo tem um autor, e nfo jé um locu- tor. O significado autoral éa contrapartida dialéctica da sig- nificago verbal e tem de construir-se em termos de reciproci- dade. Os conccitos de autor e de significado autora susctam, lum problema hermentutico contemporaneo do de autonomia ‘Mensagem e Ouvinte No lado oposto da cadeia de comunicagio, a relagio da rmensagem textual ao letor ndo é menos complexa do que em elagdo a0 autor. *Enquanto o discurso falado se dirige a flguém que € previamente determinado pela situaglo dialé- ica — € dirigido ati, a segunda pessoa —, um texto escrito dirigese a um letor desconhecido e, potencialmente, a quem ‘quer que saiba ler WEsta universalizago do auditério ¢ um dos efeitos mais notdveis da eserita e pode expressar-se em termos de um paradoxo. Porque 0 discurso estd agora ligado ‘um suporte material, torna-se mais espirtual, no sentido de (que € libertado da estreiteza da situaglo face a face. 2 * Naturalmente, tal universalidade és6 potencial*De facto,) tum livro dirigese apenas a uma secsfo de public e alcanga ‘0s seus letores apropriadas através de meios que, em si mes- ‘mos, etio submetides a leis sociais de exclusdo © admissio, Por outras palavras?a leitura ¢ um fendmeno social e obedece ‘a certos padrdes e, por conseguinte, sofre de limitagSes espe- cificas°No entanto, a proposigio que diz que um texto se dirige potencialmente a quem quer que saiba ler deve reter-se ‘como um limite em qualquer sociologia da letura. Uma obra ‘ri pois, 0 seu piblico. Alarga assim o circulo da comunica- ‘slo e inicia novos modos de comunicagio. Nessa medida 0 Feconhecimento da obra pela audiéncia por cla criada é um evento imprevisivel, ‘Mais uma vez, a dialéctica da signifcapio e aconteci- ‘mento ¢ exibida na sua plenitude pela escrta*O discurso é revelado como discurso pela dialéctica do endereco que é, simultaneamente, universal ¢ contingente. Por um lado, € 8 ‘autonomia semantica do texto que abre o Ambito de leitores Potenciais e, por assim dizer, eria 0 auditério do texto, Por outro, & a resposta do auditrio que torna o texto importante ‘, Ror conseguint; significativo* Eis a razKo por que os auto- res ndo se preocupam com o$ seus leitores e, nfo obstante 0 seu piblico presente, continuam a falar dos seus letores como de uma comunidade secreta por vezes projectada num futuro nebuloso, Faz parte da significagio de um texto estar aberto a um nimero indefinido de letores e, por conseguinte, de interpretagdes. Esta oportunidade de miltiplas leturas & contrapartida diaigctica da autonomia semantica do texto, Segue-se que o problema da apropriaglo do sentido do texto se torna tio paradoxal como o da autoria.O dircito do leitor ¢ 0 diteito do texto convergem numa importante luta, ‘que gera a dindmica total da interpretagio, A hermenéutica ‘comega onde o diflogo acaba. Mensagem e Cédigo, ‘A relagdo entre mensagem © cédigo tornov-se mais complexa com a escrita, de um modo um tanto indirecto. O {que aqui tenho em mente diz respeito & funglo dos géneros Iterdrios na produgio do discurso enquanto tale tal modo de 48 discurso, quer como poema, narrativa ou ensaio. Esta fungio concerne, sem duivida nenhuma, & relagao entre mensagem € ‘digo, visto que os géneros slo expedient generativos para produzir dseurso como... Antes de serem expedientesclasifi= ‘atorios, usados pelos criticos lterrios para se orientarem na Profusdo das obras literdrias, por conseguinte, antes de serem artefactos da eritica, io para o discurso o que a gramética ‘generativa € para a gramaticalidade das frases individuais, Neste sentido, os eédigos discursivos podem juntar-se aos cédigos fonologico, lexical e sintctico, que regulam as tni= dades do discurso, as frases. A questdo agora & em que medida & que os géneros lterdrios sio genuinamente c6digos dda esta? $6 de um modo indirecto mas, no entanto, decisivo, s géneros lteriros exibem algumas condigdes que teo- ricamente se poderiam descrever sem consideragdo pela excita, [A fungéo destes expedientes gencratives € produzir novas entidades de linguagem mais longas do que a frase, total des orginicas irredutiveis & simples adigio de frases. Um ppoema, uma narrativa ou um ensaio apoia-se em les de com ;posicdo que, em principio, so indiferentes & oposigfo entre a fala e a eserita, Provem da aplicagio de formas dindmicas a conjuntos de frases, para os quais a diferenga entre a lingua gem orale escrta € inessencal. Em ver disso, a especticidade ‘estas formas dindmicas parece proceder de uma dicotomia diferente da que existe entre falar e ouvir, isto 6 dé aplicagio a0 discurso de categoriastiradas de outro campo, 0 da pré- tica € da obra. A linguagem é submetida as regras de uma espécie de artesanato, que nos permite falar de produgo e de obras de arte e, por extensio, de obras do discurso, Poemas, harrativas ¢ ensaios sfo essas obras de discurso. Os expedien- tes generativos que chamamos géneros literirios io as regras téenicas que presidem a sua produgdo eo estilo de uma obra nada mais € do que a configuracao individual de um produto ow obra singular. O autor aqui € nfo $6 o falante, mas tam- bbém o fazedor da obra que é 4 sua obra. Mas, se a dicotomia entre teoria € pritica¢ iredutivel a0 Par falaescrita, a escrita desempenha um papel decisivo pre- cisamente na aplicagdo das categorias de pratica, de técnica e de obra ao discurso. Exist produglo quando uma forma se aplica a alguma matéria de modo a configuré-la, Quando 0 “a discurso se transfere para o campo da produglo é também tratado como uma matéria a ser moldada. F aqui que inter- fere a eserita. A inserigio como um suporte material, a auto: rnomia semantica do texto enquanto respeita ao locutor e 20 ‘uvinte€ todos os tracos relacionados da exterioridade carac- teristica da escrita ajudam a fazer da linguagem a materia de uum artesanato especifico, Gragas & escrita, as obras de lin- {guage tornamese to auto-suficientes como as esculturas, Nao € por acaso que “literatura” designa o estatuto da lin- {guagem como escrita litera e como encorporada em obras segundo géneroslterrios. Com a literatura, os problemas da inserigdo e produgdo tendem a sobrepor-se. O mesmo se pode dizer a respeito do conceit de texto, que combina a condigio de inscrigdo com a textura propria das obras geradas pelas regras produtivas da composigdo literiria, Texto significa dis- curso como inscrito e trabalhado, Tal é a afinidade especifica que reina entre a escritae os cédigos especficos que geram as obras do discurso, Esta afi- nidade € tho intima que poderiamos ser tentados a afirmar ue até as expressdes orais das composicdes podticas ou nar- rativas se fundam em processos equivalentes & escrita. A ‘memorizagdo dos poemas épicos, de cangBes lirics, de par bolas e provérbios ea sua recitacio ritual tendem a fixar © até ‘ congelar a forma de obra de um modo tal que a meméria ‘aparece como um suporte de uma inserigio semelhante & que € fornecida pitas marcas externas. No sentido alargado de inserigfo, a escrita e a produgio das obras do discurso segundo as regras da composigio literiria tendem a coinciit, sem que os processos sejam identcos Mensagem e Referéncia ‘Adici a consideragdo das tranformagSes mais complexas ue ocorrem no funcionamento do diseurso, que podem aribuir-se & escrita, para o fim desta investigacio. Dizem respeito & fungio referencial do discurso no esquema da ‘comunicagdo proposto por Roman Jakobson, e si os efeitos ‘mais complexos por duas zazées: por um lado, a distingio ‘entre sentido e referencia introduz no discurso uma dialética ‘mais complexa do que a de evento significacio, a qual nos Proporciona o modelo de exteriorizagdo que tora & escrta 4s possivel, , por assim dizer, uma dialéctica de segunda brdem, onde & propria significasio, enquanto “sentido” ima~ nente, se externaliza como referencia transcendente, no sen tido de que o pensamento se drige mediante o sentido par diferentes expécies de entidades extralinguistcas como objec- tos, estados de coisas, coisas, factos, ete. Por outro lado, a maior parte das alteragdes da refertncia que se irfo conside- rar nio se devem atfibuir & escrita como tal, mas & escrita fenquanto mediagio ordindria dos modos de discurso que Consttuem a literatura, Algumas destas alteragGes slo até directamente produzidas pela estratégia peculiar de géneros literrios especifieos, como a poesia. A inscrio, pois, 36 indirectamente€ responsivel pelo novo destino da referencia, Todavia, apesar desta reserva, pode dizer-se o seguinte no discurso falado, 0 crtério titimo do aleance referencial do aque dizemos € a possiblidade de mostrar a coisa referida ‘como um membro da situagso comum a0 locutor © 20 ‘ouvinte¥ Esta situagio rodeia 0 didlogo, e os seus pontos de referencia podem indicar-se por um gesto ou pelo apontar de tum dedo, Ou pode designar-se, de um modo ostensivo, pelo proprio discurso através da referencia obliqua, dos indicado- Fes que inciuem os demonstrativos, os advérbios de tempo € de lugar e 08 tempos do verbo. Por fim, podem descrever-se ‘de um modo to definido que uma e wna s6 coisa se pode identficar dentro do enquadramento comum da referent Efectivamente, os indicadores ostensivos «, mais ainda, as deserigdes definidas, operam do mesmo modo no discurso foral e escrito, fornecem identficagdes singulares e as iden ‘cages singulares nfo precisam de se fundar na exibigio, no ‘sentido de uma indicagdo gestual da coisa referida. No entanto, ‘as identficagdes singulares ido precisam de se fundar na txibiglo, no sentido de uma indicacfo gestual da coisa refe- fida, No entanto, as identificagdes singulares referem-se, em fltima andlise, a0 aqui ¢ agora determinado pela situagio interlocuciondria. Nio hi nenhuma ientificacio que nfo relacione aquilo de que se fala a uma posigio tnica na rede ‘spicio-temporal e nio existe nenhuma rede de lugares no {eInpo e no espace sem ums referencia final ao agut e agora situacional, Neste iltimo sentido, todas as referencias da lin- ‘guagem oral se basciam em mostragGes, que dependem da situagdo percebida como comum pelos membros do diilogo, 46 Todas as referencias na situagl0 dialigica sBo, por conse- suinte, situacionais. 1 E este fundamento da citncia na situagio dialigica que & abalado pela esrita. Os indicadoresostensivos eas descrigdes definidas continuam a identificar entidades singulares, mas aparece um hiato entre a identificagdo © a mostragdo. A fauséncia de uma situaglo comum gerada pela distancia esp ial e temporal entre 6 escritore o letor, 0 eancelamento do gui e agora absoluto pela substituigdo das marcas externas materials para a voz, a face e © corpo do locutor como a origem absoluta de todos os lugares no espaco e no tempo: e a autonomia semdmtica do texto que o separa do presente do tseritor e o abre a um Ambito indefinido de litores potenciais ‘num tempo indeterminado — todas ests alteragSes da cons- tituigdo temporal do discurso se reflectem em alteragdes para lelas do cardcterostensivo da referencia. # Alguns textos reestruturam simplesmente para os seus leitores as condigées da referéncia ostensiva. Cartas, relatos de viagens, desergdes geogrificas,dirios, monografia histS- ricas e, em geral, todas as descrigdes da realidade podem for- recer ao leitor 0 equivalente da referencia ostensiva no modo cde “como se" ("como se Hk estivesses"), eragas aos procedi- ‘mentos ordinérios da identificagdo singular. A pluralidade do gui e do além do texto pode referir-se tactamente 20 aqui c além absoluto do leitor, gracas & rede espicio-temporal nica ‘que, em tltima andlise, pertencem o eseritor€ 0 letor € que ambos reconhecem. 'A primeira extensfo do alcance da referéncia para além os limites estreitos da situagio dialégica é de uma conse~ 4uéncia tremenda. Gragas a eseita, o homem ¢ s6 0 homem tem um mundo e no apenas uma situagdo, Esta extensdo € mais um exemplo das implicagoes espirtuais da substituigao do suporte corporal do discurso oral pelas marcas materias. Da mesma mancira que o texto liberta a sua significagio da tutela da intengo mental, liberta também a sua referéncia dos limites da referencia situacional. Para nés, 0 mundo é o ‘conjunto das referencias abertas pelos textos ou, pelo menos por agora, por textos descrtvos. E nesse sentido que pode- ‘mos falar do "mundo grego";jé no ¢ imaginar o que eram as situagdes para os que Ié vivian, mas designar as referénc ro situacionais exibidas pelos relatos descritos da realidade, a ‘Uma segunda extensio do aleance da referéncia é mais dict de iterretar. Promana menos da eseitaenquanto tal do que da estraégiaaberta ou velada de certos modos de dixcuso. Por conseguinc, diz mais respeto & Iiteatura do due a esrta, ou & escrita enquanto canal da fteratura, Na Constugdo do seu esquema de comunicaco, Roman Jakob- Son refere a fungi potica — que se deve entender num sen- {ido.mais amplo do que © da mera poesia — 3 tnfase da ‘mensagem por si mesma, §custa da felerencia J ante ‘mos 0 eclipse da referencia ao compararmos o discurso poe {ico com uma obra escultural auto-sufciente O hiato ene a referencia situacional ea referencia nio-stuacional,implicada ra teferencia “como. se" dos relatos desritvos, € agora inansponive Isto pode verse nas narrativas fionas, to nas narativas que ndo so relatos deserves, onde um tempo narrative, expresso pelos tempos espeifios dos ver bos. € enbido pla dentro da narativa sem qualquer cone- do com a rede Unica do expago edo tempo, comum a de rio ostensiva eno ostensv, Quer isto dizer que 0 eclipse da referencia no sentido ostensivo ou desoritvo equivale & pura aboligdo de toda a elerencia?*NEo, O que quero vinear € que 0 discurso no Pode deixar de ser acerca de alguma cois~Ao fave esta irmagdo nego a ideologia dos textos absolutos. $6 muito poucos textos e muito sofisicados, na linha da poesia de Mallarmé satisfazem o ideal de um texto sem referencia, Mas éste tipo moderno de itratra surge como um caso limite uma excepto. Nio pode propocionar a chave para todos os ‘outros textos, mesmo textos podticos no sentido de Jakob- Son, qu ineiem toda a iteratura fiona quer Sj ric ou narrativa, De uma ou de outta maneira, 05 textos poticos falam acerca do mundo, mas ado de un modo descrtv. Como suger © proprio Jakobson, a referncia nfo € aq solida, mas dviida ou cndia.O apagareno da refeténes ncnsiva e desritvaliberta um poder de referencia para Aspectos do nosso serno-mundo que ndo se podem dzer de tum modo deseritivo directo, mas $6 por aluS4o,gragas 0s taloresrefernciais das expresses metafricas c, em geral, Simbolcas. ‘Deveros, por conscguints, alarzar © nosso conecito do ‘mundo, nfo s6 para admit refencias no estensvas, prem, 8 ainda descrtivas, mas também referéneias no ostensivas € Io descrtivas, as da dic¢lo poética. O termo “mundo” tem, pois, 0 significado que todos entendemos ao dizermos de um recémnascide que veio ao mundo. Para mim, 0 mundo € 0 Conjunto das referencias desvendadas por todo 0 tipo de texto, descrtive ou pottico, que li, compreendi e amei. E ‘compreender um texto € interpolar entre os predicados da nossa situapo todas as signifiagées que constituem uma Welt partir da nossa Umwelt. £ este alargamento do nosso horizonte de existencia que nos permite falar das referéncias descortinadas pelo texto ou do mundo aberto pelas exigen- clas referencias da maior parte dos textos esse sentido, Heidegger diz com razdo, na su anise do Verstehen em Sere Tempo (), que'o que primeiro entende- ' mos num diseurso no € outra pessoa, mas um “projecto”, isto é 0 esbogo de um novo modo de estar-no-mundo. Sé6 ay cescrita— admitidas as duas reservas feitas no inicio desta scopdo — ao libertar-se nfo s6 do seu autor e do seu audit | rio origindrio, mas da esteiteza da situagdo dialdgica, revela ‘ste destino do diseurso como projectando um mundo* ‘Uma Defesa da Bscrita A anilise precedente alcangou o seu objectivo. Mostrou ‘a plena manifestagdo da dialética nuclear de evento e signifi- ‘caedo, € da exteriorzagio intencional jd em aero no dis ‘curso oral, embora de uma mancira incoativa, Mas, a0 trazé- -la para primero plano, tornou problematico o que se poder ‘considerar garantido enquanto permanecesse implicto. Nao & ‘2 exteriorizagio intencional, assente em marcas materiais, uma espécie de alienagao? Esta pergunta tio radical que exige que assumamos, de tum modo mais positivo, a condigdo de exterioridade no s6 ‘como um acidente cultural, como uma condigio contingente do discurso e do pensamento, mas também como uma condi- ‘80 necessiria do processo hermenéutico. S6 uma hermentu- tica que use a distanciagdo de uma mancira produtiva pode resolver o paradoxo da exteriorzagto intencional do discurso, 0 Comraa Eserta © atague contra a escrita vem de longe. Esta ligado a tum certo modelo de conhecimento, cignciae sabedora, usado por Platio para condenar a exteroridade como contraria & Teminiseéncia genuina (3). Apresenta-2 na forma de um mito, porque a filosofia tem aqui a ver com a emergéncia de uma Instituisdo, de uma habilidade e de um poder, perdida no passado obscuro da cultura e ligada ao Egipto, o berco da Sabedoriareligiosa. O rei de Tebas recebe na sua cidade o ‘deus Toth, que inventou os nimeros, a geometria, a astro- romia, 0s jogos de azar eos grammara ou caracteres esrios. Interrogado acerca dos poderes ¢ possiveis beneficos da sua invengdo, Toth afirma que © conhecimento dos carecteres escritos tornaria os egipcios mais sibios e mais capazes de preservar a meméria das coisas, No, replica o rei, as alas fornar-se-Zo mais esquecidas porque puseram a sua confianga fem marcas externas em ver de confiarem em si mesmas a partir de dentro, Este “remédio” (pharmacon) no & reminis- ‘encia, mas simples rememorago. Quanto a instrugdo, 0 que tal invengio traz no & a realidade, mas a semelhanga dela: rio €a sabedori mas a sua apartncia, (© comentirio de Sécrates nfo € menos interessante. A eserita € como a pintura que gera um ser no vivo que, por sua vez, permanece silencioso ao ser interrogado para res- ponder. Iualmente os textos escritos, se alguém os interrogar {de modo a deles aprender “signficam apenas uma coisa, sempre a mesma”. Além desta identidade estéil, os textos ‘strtos sd indiferentes aos seus enderegados. Vagueando por aqui e por além sfo indiferentes em relagdo Aqueles que atin- gem, E se surge alguma disputa ou se so injustamente des- prezados, preisam ainda da ajuda do seu pai, Por si mesmo, Sho incapazes dese salvar ‘Segundo esta critica dspera, enquanto apologia pela ver~ dadeira reminiscencia, 0 principio © a alma do correcto ieenuino discurso, discurso acompanhado pela sabedoria (ou ‘éncia),estdo escritos na alma de quem conhece, 0 inico que ‘Ecapar de se defender a si mesmo ¢ guardar siléncio ou falar, conforme for exigio peta alma da pessoa enderegada. (© ataque platénico contra a escrta no & um exemple isolado na histéria da nossa cultura, Rousseau € Bergson, por 30 ‘exemplo, por raz6es diferentes, associam os principais males ‘que atormentam a civilizagio, & escrita. Para Rousseau, fenquanto a linguagem apenas baseada na vor preservava a presenga de cada um a si mesmo € aos outros, @ inguagem fra ainda expresso da paixdo, era eloguéncia, e nfo ainda ‘exegese. Com a escrita, comecou a separagao, a tirania e & esigualdade, A escrita ignora o seu enderegado, da mesma ‘maneira que oculta o seu autor. Separa os homens, tal como 8 propriedade separa os seus proprietérios. A tirania do Fexico e da gramdtiea ¢ igual a das leis da troca erstalizadas no dinheiro. Em vez da palavra de Deus, temos a regra dos letrados ¢ o dominio do sacerdécio, O desmembramento da comunidade falante, a partlha do solo, 0 caricter analitico do pensamento ¢ 0 reino do dogmatismo, nasceram todos E, pois, um eco da reminiscéncia platonica que se pode cuvir ainda nesta apologia da voz como suporte da presenca de cada um em si mesmo e como lago interno de uma com> nidade sem distincia, Bergson impugna directamente o principio da exterior dade, que atesta a infiltragio do espago na temporalida do som e da sua continuidade: A palavra genuina emerge do "es- forgo intelectual” por cumprir uma intencio prévia do dizer na busca da expressio apropriada "A palavra escrta, enquanto depésito dessa busca, cortou os seus lagos com 0 sentimento, © esforgo € 0 dinamismo do pensamento" A respiragio, 0 canto €'0 ritmo acabam e a figura ocupa o seu lugar. Arre- bata efascina, dispersa eisola*Eis porque os autenticos eria- dores como Sécrates ¢ Jesus nio deixaram nenhum escrito © «is porque os misticos genuinos renunciam aos enunciados € ao pensamento articulado, Mais uma ver, a interioridade do esforgo fSnico se con- trapée a exterioridade de sinais mortos, incapazes de se “sal- var" a si mesmos, Eseritae Ieonicidade A pica a tais criticas deve ser to radical como 0 repto, J do & possvel fundar-se apenas numa descrigfo do ‘movimento desde a fala para a escrita. A critica intima-nos a st legiiar 0 que at agora se tve simplemente como garan- ‘Uma observaro feta de passagem no Fedro fornece-nos uma chave importante. tA escrta comparada & pintura, © ‘das imagens destas di-se que so mais fracas e menos reais ddo que os seres vivos.*A questio aqui € sea teoria do eikon, ‘eonsiderada como uma simples sombra da realidade, no sera © pressuposto de toda a critica endereyada a qualquer media- 0 por sinaisexteriores, * Poderia mosirar-se que a pintura nio ¢ a reduplicagdo umbrética da realidade, pois seria possivel retornar ao pro- blema da escrita como um capitulo numa teoria geral da ico- nicidade, tal como Frangois Dagognet a elabora no seu livro Ezritureeticonographie * Longe de produzir menos do que o original, a actvidade pictérica pode caracterizar-se em termos de “aumento icb= hieo” onde, por exemplo, a estratégia da pintura€ reconstruir ‘a realidade com base num alfabeto éptico limitado~Esta tstratégia de contraogio e miniaturzaso produz mais manu- seando menos *Deste modo, o principal efeto da pintura € resistir& tendéncia entrdpica da visio ordindria — a imagem lumbritica de Plado — e aumentar 0 sentido do universo apreendendo-o na rede dos seus signos abreviados Este efito de saturacio e culminacio, dentro do pequenissimo espago dde uma moldura e na superficie de uma tela bidimensional, em oposigdo a erosio Sptica propria da visio ordindria, ¢ 0 {que é significado por aumento icénico. Enquanto na visio ‘rdinéria as qualidades tendem a neutraizarse umas as ‘utras, aexbater as suas arestas ¢ a apagar os seus contrastes, ‘a pintura, pelo menos desde a invenglo da pintura a éleo pelos artistas holandeses, realga os contrastes, resttu ds cores 4 sua ressondincia e deixa aparecer a luminosidade, dentro da ual as coisas brilham. A historia das técnicas da pintura tensina-nos que esses efeitos signifcativos se seguiram & inven~ ‘¢4o material de pigmentos tornados activos pela sua mistura om dleo. A seleszio do que hi pouco chamei o alfabeto “ptico do pintor permitiueme preservar as cores da diluifo © ‘do embaciamento ¢ incorporar nos seus quadros a profunda refracgdo da luz debaixo do mero efeito reflexvo da lumino~ Sidade de superfic Porque o pintor podia dominar um novo material alfa- 32 betco — porque ra um guimico, um destldor, um ener zador epolidor ~ consegisesefever un novo texto dare Tidade. intr, para ot mestesfamengos, nfo er etm @ ‘epaduo nm a prod do veo, a un ea Sob ete aspecto, a tenia da gravagho eda gravura a qua fore eram gualmentinstuvas. Enquanto a fcopaia ‘pelo menos fotografia lo epeciaizada ~ apanta tudo tras nada rem, ‘maga da pravura,cletrada por Boule. ite, pode extbr'o eencal. iso devese 2 que a gravura, juntamente com a pintura,embora tom outros mo, Basen na inteneZo de'um alfabeto, nto & um coajunto de signosminimon que consist em pontossncopado, pine de mancas bana, qe elm o tag Yoda cm 1 Impresionismo e também ate abstract recorrem cadaver mais ouradamente A abolito das formas naturais em wta de um Ambito meramenteconstuido de signs Ienares, cuas formas combinatiasrvaliardo com vio Crdindria ‘A pint, com a arte abstract, aproximase da Sénca ao” deraiar as formas Pecetvas,tecionanoas com eruturas nfo percepivas, A apeenso grafca do unt fers & também ag seria por ln negagio radial do Imediato. A pintira patece pense “produit, ¢ nfo mals “reproduc. Ma interrompe a realdade ao ivel dos sts elementos, como faz 0 deus do Timeu 0 consruiasmo ¢ apenas um es iva eum proces de aumento, onde apaentenegagbo da reaidade € condo para a gloiice Glo da esitnla nto figuratva das coisas A eoncdade sig fica, pois arevelago de um ral mals el do que a reaidade ordi. A ora conde —enuioaest ico da reliade ~fornecenos a chave para una rsposta deca trie que Piao far icra. iconiidae ea resctta da realdade. Asserts, no sentido limitado da palates € um Caso particular de ioniciade- A inergto do digcaso € 2 sac do mind ea asco no € ede, mas ‘valor postiv da medio material pelos sgnos eset tos pede atbuirse tanto na ects como na pita, 8 imensio de sstemas de nougto que apresentam propids: 3 des analticas: descontinvidade, ndmero finito e poder combi- natério, O triunfo do alfabeto fonético nas culturas ocidentais Ca subordinagio aparente da escrta & fala, que deriva da Gependéncia das letras relativamente aos sons, nfo deve, porém, fazer-nos esqueccr as outras possibilidades da inscri- Go, expressas pelos pictogramas, hieréglifos e, acima de Tudo, pelos ideogramas, que representam uma inscriglo directa tos signifieados do pensamento e que podem lerse diferen- temente em idiomas diferentes. Estes outros tipos de inscrigio texibem tim caricter universal da esrita, igualmente presente ina eserta fonética, mas que a dependéncia em relagdo aos sons tenderia a disimular: a estrutura espacial nio 6 do Suporte, mas também das proprias mareas, da sua forma, posigdo, distancia mitua, ordem e disposi linear. A trans- fertncia do ouvir para o ler esté fundamentalmente ligada & transferéncia das propriedades temporais da voz para as pro- priedades expaciais das marcas inscrits. Esta espacialzagio feral da linguagem € completa com o aparecimento da imprensa, A visualizaglo da cultura comega com a privagao ddo poder da vor na proximidade da presenca mitua. Os tex- tos impressos atingem 0 homem na solidao, longe das ceri- ‘monias que reinem a comunidade. As relagbes abstractas, a8 {elecomunicagbes no sentido proprio da palavra, conectam os ‘membros espalhados de um piblico invsivel ais so 08 instrumentos materiais da ieonicidade da cescrita e da transcrigio da realidade mediante a inscrigio externa do discus. Inscrigo e Distanciagdo Produtiva Estamos agora preparados para um passo final. Levar- -nosei a descobrir no préprio processo da interpretagio a jus- tificagdo ultima da exteriorizagdo do discurso. ‘O problema da escrta torna-se um problema hermentu- tico quando se refere ao seu plo complementar, que 2 lei- tura, Surge entio uma nova dialética, a da distanciagio apropriaglo, Por apropriagdo entendo a contrapartida da ‘autonomia semlntica, que separou o texto do seu escrtor. ‘Apropriar-se ¢ fazer “sev” o que é “alheio". Porque existe tama necessidade geral de fazer nosso 0 que nos €estranho, s4 ‘hé_um problema geral de distanciaglo. A distancia pois, simplesmente um facto, um dado, efectivo hiato espa «ial ¢ temporal entre nds eo aparecimemo de tle tal obra de arte ou de discurso. E um trago dialéctco, o principio de uma luta entre a alteridade, que transforma toda a distancia espa ial e temporal em alienacio cultural, ea ipsidade, pela qual toda a compreensio visa a extensio da autocompreensio, A, distanciago nfo & um fendmeno quantitativo; éa contrapat- tida dinimica da nossa necessidade, do nosso interesse ‘sforgo em superar a allenagdo cultural. O escrever ¢ 0 ler tomam lugar nesta luta cultural, A leitura € 0 pharmacon, 0 “remédio™ pelo qual a signficagio do texto € “resgatada” do ‘stranhamento da distanciagio posta numa nova proximi- dade, proximidade que suprime e preserva a distincia cultu- ral e inclu a alteridade na ipseidade Esta problematica geral est profundamente radicada na histria do pensamento e na nossa situacio ontolépica Falando historicamente, o problema que estou a elabo- rar éa reformulago de um problema a que o luminismo do século XVIII deu a sua primeira formulagko moderna por causa da flologia clissca: como tornar mais uma ver pre- sente a cultura da antiguidade, nfo obstante a intervengio da distancia cultural. O Romantisme alemio dew um giro dra- mitico a este problema perguntando: como podemos nés tornar-nos contemporincos dos génios passados? De um ‘modo mais geral, como deve alguém utilizar as expressdes de vida fixas pela escrita a fim de se transferie para uma vida psiquica estranha? O problema surgiu de novo apés 0 colapso 4a pretensio hegeliana de superar o historicismo pela lbpica do Espirito Absoluto, Se nio existe nenhuma reeapitulacdo ddos legados culturais passados num todo omni-englobante, liberto’ da unilateralidade dos seus componentes parciis, enldo a historicidade da transmissio da recepedo de tais legados ndo se pode vencer. Por conseguinte, a dialéctica da dstanciagio e apropriacdo é a ditima palavra na auséncia de tum conhecimento absoluto, sta dialética pode, pois, expressar-se como a da tradi- ‘gio enquanto tal, entendida como a recepedo de legados cul- turaishistoricamente transmitides. Uma tradigo no suscita problemas filoséficos enquanto nela vivemos ¢ habitamos, na ingenuidade da primeira certeza. A tradiglo 86 se torna pro- 33 blemética quando a primeira ingenuidade se perde. Temes, ‘entio, de recuperar 0 seu significado através e para além da alienagio. Doravant, a apropriagio do passado prossegue a0 longo de uma lutaintermindvel com a distanciagdo. A inter pretagio, entendida filosoficamente, nada mais €do que uma {entativa de tornar produtivas a alienagdo ¢ a distanciaglo (9, Confrontada com o pano de fundo da dialéctica da dis tanciagio ¢ apropriagdo, a relagdo entre a excita e a letura cede a0 seu sentido mais fundamental. Ao mesmo tempo, os processos dlialécticos parcias, descritos separadamente na seogio primeira deste ensaio, no seguimento do modelo de ‘comunicago proposto por Jakobson, fazem sentido como uum todo. Ser a tarefa de uma discusslo aplicada aos conccitos Ccontroversos de explicagdo ¢ compreensio apreender como lum todo os paradoxos do sentido autoral e da autonomia Ssemintica, do enderegado pessoal e do auditério universal, da ‘mensagem singular e dos cbdigos literiios tipicos, eda estru- ‘ura imanente € do mundo exibido pelo texto; discusso que ‘empreenderei no meu quarto ensaio, 56 3 METAFORA E SIMBOLO Este tereeiro ensaio intercala-se entre as palavras finais do ensaio precedente ¢ a discussfo decisiva dos conceitos de cexplicagdo © compreensio, que se propori no seguinte por ‘duas razdes especticas, as quais dizem respeto & extensio do ‘campo da teoria da interpretacio. ‘A primeira razio concerne a9 funcionamento da signifi- | ‘agdo das obras da literatura enquanto opostas &s obras ciet- tifeas, cujas significagdes se devem tomar literalmente. A questio aqui € se 0 excesso de sentido, caracteristico das ‘obras literdrias, € uma parte da significagio ou se deve entender-se como um factor externo, que & nko cognitive € simplesmente emocional®Considerarei a metifora como a pedra de toque do valor cognitivo das obras literirias nas ‘observapées que se seguem. Se pudermos incorporar 0 excesto de sentido das metéforas no dominio da semantica, consegui- remos entio dar & teoria da significagSo verbal a Sua mai cextenso possive Mas € a signficago verbal toda a significaglo? Nao ‘existe ai um excesso de sentido que vai além do signo linguis- tio? Nos dois primeiro escritos, especialmente na Simbdlica do Mal e Da Interpretasdo ('), defini directamente a herme- ntutiea mediante um objecto que pareca ser to amplo e tio preciso quanto possivel, isto €, 0 simbolo, No tocante ao sim- bolo, defini-o em seguida mediante a sua estrutura semantica de duplo sentido. Hoje, estou menos certo de se poder abor- dar o problema assim tio directamente, sem primeiro se ter tomado em consideracio a linguisica, Parece-me agors que, no interior do simbolo, hd algo de no semintico ¢ também algo de semantico, ¢tentarei jutificar esta afirmagdo no ink- cio da segunda parte do presente ensaio. Mas, supondo por agora que tenho razlo, segue-se que uma melhor hipétese seria abordar o simboio em termos de uma estrutura de duplo sentido, que ndo é uma esirutura puramente semintica; ‘como veremos, € 6 que acontece com & metifora. Mas se a 7 teoria da metéfora pode servir de andlse preparatoria que conduz a teoria do simbolo, a teoria do simbolo em troca facultar-nos-é estender a nossa teoria da significagio, a0 ppermitir-nos ineluir dentro dela no s6 0 duplo sentido ver- ‘bal, mas também o duplo sentido nio verbal. A metéfora e 0 simbolo prestar-se-io assim a demarcar o campo da extensio para a teoria da interpretagdo, que seré discutida no dkimo ‘A Teoria da Metifora A metifora, diz Monroe Beardsley, € “um poema em miniatura” (9. Por ss0, a relagdo entre o sentido literal e 0 sentido figurative numa metéfora é como uma versio abre- viada dentro de uma frase singular da complexa interacyio de significagdes, que caracterizam a obra literria como um todo. Aqui, por obra literiria entendo uma obra de discurso dlistinta de’ qualquer outra obra de discurso, especialmente discurso cientifico, pelo facto de por em relago um sentido explicito e um sentido implicito. ‘A primeira questio a considerar ocupa-se do estatuto ccognitivo destes dois sentidos. Dentro da tradigho do posit- vismo l6gico, a distingio entre o sentido explicit e implicito abordavg-se como a distingio entre a linguagem cognitiva e ‘emotivaE uma boa parte da critica litera influenciada pela tradigdo positvista transpunha a distingdo entre linguagem cognitiva ¢ emotiva para 0 vocabulirio de denotagio e cono- tacio. Para semelhante posiglo, apenas a denotagio € cogni- tiva e, como tal, éde uma ordem semintica. Uma conotagdo E extra-semintica, porque consiste no entrelagamento de evo- cagdes emotivas, que carecem de valor cognitive O sentido figurative de um texto deve, por conseguinte, ver-se como ) Podemos, sim dizer que explicémos mito, mas nfo que 6 interpretamos. Mediante a andlise estrutural, extraimor a logic das operages que relacionam entre si os quatro fixes de relagbes. Esta logica constitu le estrutural do mito” em consideragdo ("). Ndo passa despererbido que eta lei & Sobretudo um objeto de leitura e nfo de fala, no sentido de uma rectaedo onde o poder do mito sera restabelecido numa situagdo particular. AQui, 0 texto € apenas um texto ele tura habita-o apenas como um texto, eras A suspensio do seu setido para nds e & postergagio de toda a actualizagdo Por mio de um dscurso contemporineo. ‘Acabei de citar um exemplotivado do campo dos mitos. Poderia cat um outto de um eampo mais proximo, 0 dss narrativas foleléricas. Este campo Tot explorado pelos forma: 9s listas russos da escola de Propp e pelos especialistasfranceses dda analise estrutural das narrativas, Roland Barthes ¢ A. J Greimas. Os postulados usados por Lévi-Strauss sio também utilizados por estes autores, AS unidades acima da frase tém a mesma composigio que as que Ihe so inferiores. O sentido dde um elemento €a sua capacidade de entrar em relago com ‘outros elementos e com a totalidade da obra, Tais postulados definem o fechamento da narrative. A tarefa da andliseestru- tural consiste, portanto, em levar a cabo uma segmentagdo (0 aspecto horizontal) e, em seguida, em estabelecer varios niveis de integragdo das partes no todo (o aspecto hierérquico). Mas as unidades da acgdo, que assim so segmentadas e organiza- das, nada tm a ver com 0s tragas psicologicos suscepiveis de serem reavivados ou com segmentos comportamentas sus- ceptiveis de se integrarem numa psicologia condutista. AS extremidades destas sequencias s4o apenas pontos de lgagao nna narrativa de modo que, se um elemento muda, tudo 0 mais ¢ também diferente. Reconhecemos aqui uma transposi- io do método comutativo desde o alvel fonologico para o nivel das unidades da narrativa, Por conseguinte, a logica da aogio consiste em ligar entre si nicleos de aco, que consti- tuem conjuntamente a continuidade estrutural da narrativa, A aplicacio desta téenica resulta numa “descronologizac3o™ da narrativa, de maneira a fazer transparecer a l6gica narra~ tiva subjacente 20 tempo narrative. Por fim, a narrativa reduz-se a uma combinaglo de uma quantas unidades dramé- ticas como promessa, traiglo, impedimento, ajuda, etc, que constituiriam assim os paradigmas da acgdo, Uma sequéncia € uma sucesso de nicleos de aceHo, encerrando cada um ‘uma alternativa aberta pelo precedente. Por sua vez, as uni- dades elementares enquadram-se em unidades mais vastas Por exemplo, 0 encontro abarca acgdes elementares como aproximago, convocasio, saudagdo, ete. Explicar uma nar- rativa€ captar a estrutra sinfnica das acces segmentais. A cadeia de acgdes correspondem relagdes similares entre 0s “actores" na narrativa. Por estes nfo se indicam os sujeitos psicoldgioos, mas os paptis formalizados correlativos fs acgdes formalizadas. Os actores definem-se apenas pelos predicados da acgdo, pelos eixos semanticos da frase © da narrativa: 0 que realiza 0s actos, aquele a quem se fazem os Actos, com quem os actos se fazem, etc. Um € 0 que promete, 96 jutro 0 que recede # promessa, 0 que dé, © que recebe, ete. A andlise estrutural traz assim ao de cima uma hierarquia de actores correlativa & hierarquia das acpSes. © passo seguinte € reunir as partes da narrativa para formar um todo e 0 inserir de novo na comunicagio narra tiva. E, pois, um discurso enderegado por um narrador a um receptor. Mas, para a anise estrutual, os dois interlocutores rio se devem procurar em mais nenhum lugar a nfo ser no texto. O narrador é designado pelos signos narratives, 08 uals pertencem também & genuina constituigko da narrativa, [Nada hit para além dos tris niveis de acgies, actores narra~ fo, que se insira na abordagem semiolégica. Para além do ‘timo nivel, esta apenas um mundo dos usuarios da narr tiva que, em si mesmo, se integra noutras discipinas semiolé- sicas, as quais se ocupam dos sistemas socais, econdmicos ou deolégicos. ‘A transposiglo de um modelo lingustico para a teoria a narrativa corrobora perfeitamente a minha observacio inicial acerea da compreensfo contemporanea da explicasio, Hoje, 0 conceto de explicagio j ndo se vai buscar as ciéncias naturas e se transfere para um campo diferente, 0 dos docu- mmentos escritos, Parte da esfera comumm da linguagem, gragas A transferéncia analdgica de pequenas unidades de linguagem (fonemas e lexemas) para unidades vastas além da. frase, incluindo a narrativa, 6 folelore e o mito. E isto o que as escolas estruturaisentendem por explica- ‘40, no sentido rigoroso do termo. Quero agors mostrar de que modo a explicagdo (erkla- ren) exige a compreensio (verstehen) e como a compreensio suscta de uma nova mancira a diaéctica interna, que contitui a interpretagao enquanto todo. ‘Na realidade, ninguém se detém numa concepeo dos rmitos ¢ narrativas tdo formal como esta algebra de unidades constituivas. E o que se pode mostrar de diversas maneiras, [Em primeiro lugar, mesmo na apresentacio muito formali- ‘ada dos mitos feta por Lévi-Strauss, as unidades que ele ‘chama mitemas expressam-se ainda como frases que tm sen- tido e refertncia. Pode alguém dizer que a sua signiticagéo fenquanto tal é neutralizada quando eles se integram num {eixe de relagdes, 0 tinico a ser tomado em consideragdo pela Tgica do mito? Mesmo este feixe de relagies se deve eserever a na forma de uma frase. No caso do mito de Edipo, a alter- ‘incia entre relagBes de parentesco sobreavaliadas ¢ subava~ lindas significa algo que possui profundos suportes existen- ciais. Por fim, 0 tipo de jogo de linguagem, que todo 0 sistema de oposigdes e combinagées inclu, careceria de qu ‘Quer espécie de sigificaglo seas proprias oposigses que Lévi- “Strauss tende a mediar na sua apresentago do mito ndo Tossem oposigdes sigificativas acerca do nascimento € da morte, da cegueira eda lucidez, da sexualidade e da verdade. Sem tais conflitos existenciais, alo haveria contradigles a vencer, nfo existiia nenhuma fungdo do mito como tentativa para resolver essas contradigdes(*). ‘A anilise estrutural nfo exclu, mas pressupde, a hipd- tese oposta acerca do mito, isto é, que ele tem sentido enquanto narrativa das origens. A andlise estrutural reprime apenas esta fungi, nfo a pode suprimir. O mito nem sequer funcionaria como um operador légic se as proposigBes que combina no apontassem para situagSes-imite. A’ andlise estrutural, longe de se libertar deste questionamento radical, ‘estaura-o num nivel mais elevado de radicalidade. ‘Se assim &, poderiamos entdo dizer que a fungio da ané- lise estrutural élevar-nos de uma semdntica de superficie, a do mito narrado, para uma semantiea de profundidade, a das situagSes-limite que constituem 0 “referente”iltimo do mito? ‘Creio que, se atsim nfo fosse, a andlise estrutural se reduriria a um jogo estéril, a uma digebra diviséria, ¢ 0 pré- io mito seria privado da fungo que o proprio Lévi-Strauss The atribui a de tornar os homens conscientes de certas opo- ‘sigdes e de tender para a sua mediago progressiva. Eliminar ‘a referencias aporias da existencia, em torno das quais gra- vita 0 pensamento mitico, seria reduzir a teoria do mito & necrologia dos discursos sem significado da humanidade. ‘Se, pelo contririo, consideramos a andlise estrutural mo um estidio — se bem que necessirio — entre uma lerpretagio ingénua e uma interpretagto critica, entre uma interpretagio de superficie e uma interpretagio de profundi- dade, seria ento possivellocalizar a explicagdo e a com- preensio em dois estidios diferentes de um arco herment0- tico tinic. ‘Tomando a nogio de semantica de profundidade como linha directriz, podemos agora retornar a0 nosso problema 98 inicial da referéncia do texto, Podemos agora dar um nome a esta referencia ndo ostensiva, E o tipo de mundo desvendado pela semantica de profundidade do texto, uma descoberta {ue tem imensas consequéncias quanto a0 que habitualmente se chama o sentido do texto (O sentido de um texto nfo esté por detris do texto, mas A sua frente, Nao é algo de oculto, mas algo de descoberto. O (que importa compreender no € a situaglo inicial do dis- curso, mas o que aponta para um mundo passive, gragas & referencia nio ostensiva do texto. A compreensio tem menos do que nunca a ver com o autor e a sua situaglo, Procura apreender as posigdes de mundo descortinadas pela referéncia do texto. Compreender um texto ¢ seguir o seu movimento do sentido para a referéncia: do que ele diz para aquilo de (ue fala. Neste processo, 0 papel mediador desempenhado pela andlise estrutural constitui a justfcagdo da abordagem objectiva € a rectificagdo da abordagem subjectiva ao texto, ‘Somos definitivamente proibidos de identifiear a compres so com alguma espécie de apreensio intuitiva da intengio subjacente ao texto. O que dissemos acerca da seméntica de profundidade, proporcionada pela andliseestrutural,convida- ‘nos antes a pensar o sentido do texto como uma injungio procedente do texto, como um novo modo de olhar as coisas, como uma injungdo a pensar de uma certa maneira, Tal é a referencia produzida pela semantica de profundi dade. O texto fala de um mundo possivel e de um modo possivel de alguém nele se orientar. As dimensBes deste ‘mundo sio propriamente abertas e descortinadas pelo texto, O discurso é, para a linguagem escrta, oequivalente da refe- rncia ostensiva para a linguagem falada. Vai além da mera fungdo de apontar e mostrar 0 que jf existe e, neste sentido, transcende a funglo da referencia ostensiva, igada a lingua: em falada. Aqui, mostrar € a0 mesmo tempo criar um novo modo de ser. CONCLUSAO Para concluir o titimo ensaio ¢ toda a série de ensaios, quero agora regressar ao problema levantado no final da segunda conferéncia acerca da dialéctica de distanciagdo © apropriagio. Semelhante dialétiea tein um harmonica exis= tencial, A distanciagdo significava, antes de mais, estranha- mento ea apropriacio visava-se como 0 “remédio" que podia “resgatar” herangas culturais do passado da alienaglo da dis- tncia. Esta permuta entre distancia e proximidade definia a historicidade da interpretagdo na auséncia de qualquer conhe- ‘imento absoluto hegeliano. Mas, ao mesmo tempo, eu defen- 4i um conecito de distanciagdo produtiva, segundo © qual a condigio da distincia cultural se transformaria num insteu- ‘mento epistemoldgico. Mas, como pode a dstincia tornar-se produtiva? ‘A dialéetica de explicasio ¢ compreensio pode fornecer ‘uma resposta, na medida em que conttui a dimensdo episte- rmolégica da dialéctica existencial. Como base em tal dialéc- tica, a distincia produtiva significa distanciagio metodolé- ‘ca Esta distanciaggo metodolégica activa encontra uma ‘expresso apropriada na tendéncia geral da critica litera e {da critica biblica, a ponto de se entregar & reacpio anti- historcista influenciada por Frege e Husserl — pelo menos o Husserl das Jnvestigagdes Légicas. O que se rotulou de “his toriismo” é 0 pressuposto epistemolégico de que o conteido das obras lteririas e, em geral, dos documentos culturais recebe a inteligiilidade da sua conexio com as condigdes sociais da comunidade que o produriu ou a que se destinava Explicar um texto significa, pois, primariamente consideri-lo ‘como a expressdo de certas necessidade socioculturais e como luma resposta a certas perplexidades bem localizadas no espago e no tempo. ‘A réplca “Iogicista” semelhante a “historicismo” proveio de uma refutagdo racional do pressuposto epistemolégico do 01 historicismo, Para Frege ¢ Husserl, um “significado” (e eles tinkam em mente nio-o sentldo de um texto, mas de uma frase) nfo é uma ideia que alguém tenha na sua mente, no & lum contesdo psiguico, mas um objecto ideal que pode ser idemtticado reidentificado por diferentes individuos em tempos diferentes como um s6 € 0 mesmo. Por idealidade ueriam cles dizer que 0 sentido de uma proposigao nao € rem uma realidade fisica nem psiquica. Nos termos de Frege, ‘Sinn nao & Vorstellung, se chamarmos Vorstllung (ideia, fepresentagio) ao evento mental associado a actualizagdo do sentido por um dado locutor numa dada situagdo. A identi- dade do sentido na série infinita das suas actualizagdes men- {ais constitu a dimensio ideal da proposigo. De um modo semelhante, Husserl descreveu 0 contetido de todos 05 actos intencionais como objectivos noeméticos, irredutiveis ao lado psiquico dos proprios actos. A nocio de ‘um Sinn ideal trado de Frege foi assim estendido por Husser a todas as realizagGes psiquicas, nfo s6 aos acts logicos, mas também aos actos perceptivos, volitivos e emocionais, Para uma fenomenologia objectiva, todo 0 acto intencional sem cexcepro se deve descrever pelos seus lados noemiticos enquan- to correlato de um acto noético correspondente Exta inversio na teoria dos actos. proposicionais tem implicagdes importantes para a hermentutica, porquanto tal dlisciplina é entendida como a teoria da fixagdo das expres- ‘886s vitais pela escrita. Ap6s 1900, o préprio Dilthey fez os ‘maioresesforgos por introduzit na sua teoria da significagio 0 tipo de idealidade que encontrara nas Invesigardes Logicas de Husserl. Nas oltimas obras de Dilthey, a conexdo interna (Zusammenhang), que dé a um texto ou a uma obra de are ‘ou a um documento a.capacidade de ser compreendida por ‘outta pessoa e de ser fiada pela escrita ¢ algo de semelhante a idealidade que Frege e Husserireconheceram como 0 sen- tido de uma proposigio. Se esta comparagdo se mantém, entdo 0 acto do versiehen & menos geschichiich e mais Tgisch do que 0 famoso artigo de 1900, Die Enistehung der Hermeneutik, afiemara que era ("). Toda a teoria das Geiste- _swissentchaften fo afectada por este importante desiocamento 'Em correspondéncia com esta inverslo da historicidade ‘em logicidade na explicacdo geral das expressdes cultura odemos assinalar um movimento similar no campo da cri 102 tica literria, tanto na América como no continente europew ‘Aos anteriores excessos de explicagSes psicoldgicas e sociolé- sicas seguiu-se uma onda de “anti-historcismo”, Para a nova iude explicativa, um texto ndo € primordialmente uma ‘mensagem dirigida a um Ambito espectfico de leitoes , neste sentido, nio é um segmento numa cadea histérica; na medida fem que é um texto, constitu uma especie de objecto atempo- ral que, por assim dizer, cortou of seus lagos com todo 0 desenvolvimento histrico. O acesso A eserita implica a supe- ragio do processo histérico, a transferéncia do discurso para ‘uma esfera de idealidade que permite um alargamento indefi- nido da esfera da comunicagio. Devo confessar que tomo em consideraglo nos meus préprios esforgos esta tendéncia anti-istoricista e que con- cordo com o seu pressuposto principal, em relagio & object- Vidade da significagdo em geral Primeiramente, esti em consondncia com os principais conceitos do presente estudo: a autonomia semantica do dis- ‘curso escrito € a existéncia auténoma da obra literdria fun-

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