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ensaios 836 Maria Victoria de Mesquita Benevides A CIDADANIA ATIVA Referenda, plebiscito e iniciativa popular Bislioteca MA— PUCSP CL HOPI (a | @, HA DE Sto yy 100021262 Or, &/ ~ A wows WF Para Gilda e Antonio Candido de Mello ¢ Souza ater Neon dor Reis Preparations ray Hews Bata Revisto Cia de Sive Carbo ‘non Takeda Condens ren Ton Ota Composisio/Painagioem vdeo pon Vander de Olvera Tox nate de Satan CAPA Paulo Cesar Pereira @ eg awbanen po "We Roth & Cia. Lids ISBN 850803991 3 1991 Todos os direitos reservados Editora Atica S.A. Rua Bardo de Iguape, 110 — CEP 01507 Tel.: PABX (011) 278-9322 — Caixa Postal 8656 End. Telegrafico “*Bomlivro” — Fax: (011) 277-4146 Sao Paulo (SP) Os que participam do governo da cidade [Atenas] mantém também as stuas ocupagdes privadas, e os que se dedicam as suas atividades profissionais podem manter-se perfeitamente ‘a par das questées piiblicas. Nos somos, de fato, os tinicos 4a pensar que aquele que ndo se ocupa da politica merece ser considerado nio como um cidadio tranqiillo, mas como um cidadao indtil. Intervimos todas, pessoalmente, no governo da pélis, quer pelo nosso volo, quer pela apresentagao de propostas, Pois ndo somos dos que pensam que palavras pre- judicam a ago, Pensamos, ao contrario, que € perigoso pas- ‘ar a0s atos antes que a discussio nos tenha esclarecido sobre (© que se deve Fazer. (Ewerto do discurso de Péricles, quando das obséquias doy primeiros atenienses mortos na guerra do Pelopo. reso, In: TuciDIoEs. A guerra do Peloponeso, livro I, cap. 1, $40) SUMARIO Preficio, 6 Introdugaio — Premissas e objetivos, 10 1, Representacao ¢ democracia direta: elementos fundamentais, 24 A representagio politica no Brasil: breve revit critica, 24 Referendo, plebiscito¢ inilativa popular, 33 Referendo ¢ plebiscto: a ambigiidade semantica, 34 ‘A experiéneia no mundo contemporéneo, 41 Demosracia representa e democraca dicta: inode aos agumenon contrastantes, 44 . . 2. Nas origens da polémica sobre democracia direta: Montesquieu Rousseau, 49 3. A representacio como corretive & democracia, 56 © horror ao plebiscito, 57 Representacdo, ordem e estabilidade, 64 A hostildade entre os partidos ¢ a partcipacéo popular, 69° 4. “O povo nao sabe votar””, 80 © povo ¢ incompetent, incoerente ¢ irresponsével, 81 © povo & conservador € preconceituosa, 89 © povo pode ficar apitico: “‘excesso de democracis mata democracia’, 94 © povo € vulnerdvel aos grupos de pressio e influencidvel pelos “‘superorganizados", 99 © povo € dominado pelas paixdes ¢ pela “tirania da mao: 106 5. Democracia semidireta na histéria brasileira, 111 Do Império a0 Estado Novo, 112 Entre duas "redemocratizagdes": de 1948 a 1984, 118 [A nova fase Constituinte: de 1985 a 1988, 123, 6. Democracia semidireta hoje: definigdes € sugestdes para 0 caso brasileiro, 129 A Constituigio brasileira de 1988, 129 Referendo ¢ plebiscto: objeto e espécies, 132 Referendo vineulante ou consultiva?, 134 0 objeto das consultas populares, 136 ‘Consultas obrigatdrias ou facultativas?, 141 0s temas constitucionais, 142 Referendo, direitos humanos ¢ anistia, 149 Pebiscto para potiticas pablicas, 152 {A reayio a0 cosporativismo do Legislative, 154 7. Os procedimentos: problemas ¢ solugdes para 0 caso brasileiro, 185 Procedimentas: questdes pretiminares, 155 A convocasao de plebiscixo e reterendo, 157 (© bloqueio da patticipacao pelos poderes constituidos, 164 Prazos ¢ datas: quando podem ser realizadas as consultas populates?, 169 (© patamar minimo de assinaturas e de comparecimento as votagdes, 172 [A edagdio das questdes para a consulta popular, 178 ‘As campanhas: informagao, manipulagdo e o poder econdmico, 183, Consideracées finais — Participagao, educacao politica e cidadania ativa, 193 Bibliografia, 200 Paradigmas e obras de referencia geral, 200 Bibliografia especifica sobre democracia semidireta (referendo, plebisito, iniciativa popular), 203 Bibliografia complementar, 205 Documentos, 208 PREFACIO Fabio Konder Comparato Funcao ctissica de todo preficio & a de aumentar o prestigio do autor da obra, com a autoridade do prefaciador. Tal nao se da no presente caso. A Autora ja desfruta de consolidado prestigio, no Ambito de nossa incipiente cigncia politica, mercé de seus estudos memoraveis sobre © Governo Kubitschek! e as ambigtiidades de nosso liberalismo, consubstanciadas na ascenso ¢ morte da Unido Demo: crdtica Nacional. Ela contribuiu, ademais, com a forga de seu juizo apaixonadamente ético, para a melhor compreensio da fugaz presi- dencia Janio Quadros? © da atuagio exemplarmente mediocre do antigo PTB paulista.* ‘Nao venho, pois, acrescentar coisa alguma ao reconhecido pres- tigio da Autora, no campo préprio do seu saber atuante Tratando-se, no entanto, da apresentagdo por jurista de uma obra de ciéncia politica, fica ressaltada desde o inicio a grande vir- tude desta monografia: 6 tratamento do tema escolhido.com 0 método pluridisciplinar. Poucos sdo, infelizmente, entre nds, 0s que reconhecem na espe- cializacdo presungosa ¢ ignorante a mais grave doenga de que pade- cem as universidades brasileiras. A inépcia dos economistas, que ascendem a altos postos do governo sem conhecer os rudimentos do * 0 Governo Kubitschek; desenvolvimento economico ¢ estabilidade politics Sto Paulo, Pay e Terra, 1976 24 UDN ¢ 0 udenisme; ambiguidades do libetalisine brasileiro (1945-1965) Sao Paulo, Pare Terra, 1981 $0 Governo Jarrio Quadros. Sav Paulo, Brasilicnse, 1981 40 PTB e 0 trabathismo, partido ¢ sindicato emi Sao Paulo (1945-1968), Sto Paulo, Brasiliense, 1989, Precio 7 direito piblico, da organizagao administrativa do Estado e da r dade sociolégica nacional, é talvez a melhor ilustragao dos efeitos destruidores dessa moléstia. No campo da politica, entao, a sindrome da especialite é parti cularmente absurda. Para os pensadores gregos, que langaram as bases da cultura ocidental, a politica reina sobre todas as demais cién- cias, na ordem da sabedoria pritica. Bla zela pelas leis e sobre 0 con- junto das demais instituigdes da polis, afirmou o joven Sécrates num dos didlogos platénicos (O Politico, 305 e). Ea ciéncia arquiteténica por exceléncia, sustentou Aristoteles, porque em ambas as suas moda lidades — a ciéncia legislativa e a deliberativa (na administracao ¢ na jurisdigdo) — submete aos seus principios todas as demais artes ou conhecimentos ténicos (Etica a Nicémaco, VI-8, 1141 b 25) Para os mestres helenos, cuidar das coisas politicas ignorando as ins- tituigdes constitucionais da pélis era um desatino que nem mesmo a sitira de Aristofanes conseguiu imaginar. Entre nés, no entanto, no curriculo dos cursos de ciéneias sociais da mais importante universidade do pais, ndo ha uma tnica diseiplina juridica. Até hoje, apesar da faléncia declarada de nossas institui- 6es politicas e do despreparo generalizado dos grupos dirigentes da nagdo, nenhuma instituigdo de ensino superior cuidou de criar a indis- pensavel Escola de Governo, além e acima do simples curso de admi- nistragao publica. Por tudo isso, a metodotogia desta obra da professora Maria Victoria de Mesquita Benevides deveria ser uma espécie de ligdo de casa, a ser estudada com aplicagao pelos dirigentes universitarios que tivessem a coragem de sobrepor-se & mediocridade ambiente. Mas nao sé por eles. Os juristas e os agentes politicos terdo, em refletir sobre as intimeras questdes igualmente, muito interesse de importancia que esta obra suscita. © nosso legislador, por exemplo, no trabalho delicado de com- plementagao dos dispositivos constitucionais, ndo pode deixar de deci- dir se a manifestagdo popular em referendo ou plebiscito tem forga superior & da lei votada no Congreso. Pode a lei ordindria revogar a decisdo legislativa, tomada diretamente pelo povo? Quanto aos nossos agentes politicos, eles sao convidados a refle- tir, ao longo destas paginas, sobre uma questdo crucial na evolucao das instituicdes constitucionais modernas: — Até que ponto o Parla- mento, como érgdo por exceléncia de representagdo popular, perdeu legitimidade para manter o monopolio da legislaga0? 8 ACIDADANIA ATIVA No modelo do constitucionalismo classico, fundado nos ensina- mentos dos grandes pensadores politicos dos séculos XVII XVIII, a garantia maior da liberdade individual contra os abusos de poder estava na lei, entendida como norma geral ¢ abstrata, aplicavel em igualdade de condigées a todos os membros da coletividade, Nos dois campos em que se manifestow por primeiro ¢ com mais agudeza essa funcdo garantidora da lei — 0 tributério (no taxation without representation) ¢ 0 penal (nullum crimen, nulla peena sine lege) — 0 pressuposto basico era o de que 0 povo deveria sempre exprimir pre~ viamente, por si ou por intermédio de representantes legitimos, 0 seu indispensavel consentimento a toda interferéncia do Poder Publico na esfera da autonomia individual. Neste sentido, a divergéncia entre as opinides ilustres de Mon- tesquiew € Rousseau, reportada no capitulo 2 da monografia, nao diz respeito ao principio fundamental de que a lei é a garantia maior das liberdades, mas apenas & questdo de se saber qual a melhor forma de se produzirem as leis: diretamente pelo povo, ou pela atuagdo de seus representantes eleitos. Venceu, como todos sabem, esta tiltima opinido. Mas ela supu- nha e supde, por necessidade légica, que o drgado legislativo seja lexi- timo, isto é, desfrute daquele respeito € confianga populares, que 0 direito puiblico romano denominava auctoritas. Todo o arcabouco constitucional do Rechtsstaat germénico, como do government by Jaw anglo-saxdnico, funda-se nessa autoridade do Parlamento, como substituto legitimo do povo soberano. Nestes trdpicos, também, 0 modelo constitucional adotado desde a independéncia fundou-se na supremacia parlamentar. Mas o presti- gio dos legisladores e dos préprios constituintes, como ninguém ignora, desceu hoje ao ponto mais baixo de toda a nossa historia. Sucessivas pesquisas de opiniao publica colocam os politicos, em geral, e os parlamentares, em particular, como a menos confidvel de todas as categorias ou grupos sociais. Ja vai longe, alids, © tempo em que a competéncia legislativa era exclusiva do Congresso Nacional, ou em que a maioria dos proje- tos de Iei era de iniciativa parlamentar. A partir da Revolucao de 30, com as duas interrupgdes de 1934 a 1937 € de 1946 a 1964, 0 Execu- tivo também passou a legislar, ¢ furiosamente, por meio de decretos: leis ou medidas provisérias. Sem falar no fato de que mais de 3/4 das leis votadas atualmente no Congresso sao de iniciativa do presi- dente da Republica. A lei, portanto, de garantia das liberdades con- tra 0 abuso do poder governmental, transformou-se, abertamente, Prcfico 9 em simples instrumento de governo. Mas nenhum observador compe- tente da cena politica pode ignorar — sobretudo apos as desastradas tentativas de estabilizacio monetaria dos iltimos anos — quao fragil Ea base de legitimidade do Executivo-tegislador. Nada mais natural, nessas condigdes, do que refazer 0 racioci nio de Rousseau ¢ pensar na recondugo do povo como autor de suas préprias leis, Afinal, quem melhor do que os préprios interessa- dos para dizer, diretamente, como proteger os seus interesses? Na historia constitucional contemporanea, foi 2 Constitui de Weimar, de 1919, que introduziu, pioneiramente, a conjugagao des sas trés formas de legislagio: a parlamentar, a executiva e a popula. No libelo famoso que lancou, as vésperas da aventura nazista, contra essa Carta Politica (Legalitat und Legitimitat, Munique ¢ Leipzig, 1932), Carl Schmitt mostrou grande ceticismo em relagao aos mecanis ‘mos de participacdo popular na fungdo legislativa. Considerou que a irrupgdo do povo no proscénio politico — com as suas paixdes, obse sdes € preconceitos — significava a aboligao das grandes virtudes da democracia parlamentar, a saber, a moderacao de sentimentos ¢ o pr dominio da razao sobre a vontade. Os acontecimentos imediatamente sucessivos pareceram dar-Ihe razdo. Mas até que ponto, naquele enredo de tragédia grega, 0 préprio Reichstag j4 nao se havia despido da necessdiria auctoritas ¢ perdido toda leyitimidade? No capitulo 4 da monografia, a Autora discute com probidade os argumentos habitualmente levantados contra 0 exercicio da fun Gio legislativa pelo proprio povo. E a sua conclusdo, em relagao a todos eles, é sempre a mesma: ndo ha defeito, no processo de legisla- Gao popular, que nio possa ser apontado, coincidentemente, no pro: cesso de legislagao parlamentar. © fundamental, como bem sublinhow a Autora em su conelu- so, € 0 fato de que a participago do povo na funcio de legis! atua como um poderoso fator educative, para corrigir aquele vicio ue Tocqueville pereebera na democracia americana ¢ que lhe pa ceu proprio de todas as formas de regime democratico: a preocupa- Gio exclusiva do povo com os seus interesses privados. Se as leis sto, realmente, como pretendia Sécrates, as grandes pedagogas do povo em todos os campos, por que ndo se tentar, apos tantas decepgdes e abusos, uma forma de autodidatismo politico? INTRODUCAO PREMISSAS E OBJETIVOS A\ nova Constituigao brasileira, promulgada a $ de outubro de 1988, admite a combinagio de formas de democracia direta com a democracia representativa. Ao eélebre principio “todo poder emana do povo”, acrescentou-se: “que o exerce por meio de representantes cleitos ou diretamente, nos termos desta Constituigdo” (art. 12, § tinico. A novidade radical esta contida no diretamente, ¢ é em torno de to promissor advérbio que se orienta esta pesquisa.” Pretendo estudar os mecanismos institucionais de participagio direta na atividade de producdo de leis © de politicas governamentais — 0 referendo, o plebiscito ¢ a iniciativa popular —, os quais foram aprovados para vigorarem no nivel nacional, estadual ¢ municipal. O objetivo deste estudo consiste na discussdo de questées perti- nentes 4 implementacdo e as condigdes de viabilidade e eficdcia daque- les mecanismos no Brasil. A partir da sistematizagao de dados ¢ refe- réncias histéricas ¢ comparativas — incluindo a discussao teérica e as duividas sobre a aplicagdo pratica —, pretendo contribuir para 0 debate politico e institucional entre nés. Para situar a oportunidade deste trabalho, deve-se levar em con- sideraco que: (1) os desdobramentos do “‘diretamente”” dependem de regulaco complementar; (2) os constituintes estaduais ¢ os legisla- dores municipais devem adotar, igualmente, o referendo, o plebiscito € a iniciativa; (3) a Carta de 1988 prevé, em suas disposigdes transité- rias, revisdo constitucional ¢ a realizagao de um plebiscito sobre 0 tipo de regime politico (monarquia ou repiiblica) e o sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo), “Trabalho apresentado av concurso de livre-docéneia na Faculdade de Educa- glo da USP, em 1990. A Autora ¢ dacente do Departamento de Filosofia c Gieneias da’ Educagdo desta Faculdade, pesguisadora do CNP e membro dio Codec (Centro de Eats de Cultura Contemporanea). Ineodugdo — Premisss ¢objetvos n ‘A proposta de estudo, aqui lancada, Nao apenas o tema é novo, como foi muito pouco estudado em nosso pais. Apdio-me, sobretudo, em material bibliografico ¢ documental sobre a “legislagao direta”” nos Estados Unidos (direct legislation) & sobre as formas de democracia semidireta nos paises europeus, com destaque para a Suica, a Italia e a Franca Reconhego, no entanto, que a discussdo sobre a teoria ¢ a con- seqtiente aplicagao daqueles mecanismos institucionais sofre de cer- tos constrangimentos “‘ideolégicos”. Formas de democracia direta surgem, em alguns casos, associadas a temores sobre uma suposta tentagao totalitéria”” (com a lembranga do *‘cesarismo_plebiscitd. rio’ ¢ da experiéncia dos sovietes), ou sobre a contemporanea ‘sedu cao assembleista’’. E os institutos em causa — como o referendo € a iniciativa popular legistativa — surgem, por sua vez, ora identifi dos com um populismo inibidor dos verdadeiros “‘anseios democrati- cos"”, ora vistos como formas sofisticadas de participacao popular, validas apenas para os paises superdesenvolvidos. Essa timidez de natureza tedrica, ““ideolégica’” ¢ também anco- rada em uma certa cultura politica ("0 povo brasileiro no est pre- parado para a democracia representativa e menos ainda para a demo- cracia semidireta”) talvez explique 0 silencio sobre o tema. Apesar da intensa mobilizagao durante 0 processo constituinte, uma discus- sdo aprofundada sobre os institutos aprovados nao chegou a ser feita. Desconhego qualquer estudo sistematico — quer no campo histérico, quer no campo do direito comparado, ou mesmo sobre a ‘‘viabili- dade concreta”” — publicado no Brasil.! Essa lacuna poderia ser jus- tificada pela “‘novidade”’; mas outros temas de cardter institucional, como parlamentarismo voto distrital, também sio “novidades” entre nds — e contam, nao obstante, com razoavel bibliografia. Creio, mesmo — ¢ posso estar equivocada —, que 0 assunto Go entusiasma a maior parte dos cientistas politicos brasileiros. Alguns dentre eles talvez considerem que se trata de um “tema menor" — ao contrario, por exemplo, dos “temas nobres”” da repre- sentagao, dos partidos politicos, dos sistemas de governo, além dos interminaveis debates sobre 0 papel do Estado ou sobre os diversos matizes dos liberalismos e dos autoritarismos. A participaco popu- lar, muitas vezes, é associada a uma nova “doenga infantil do esquer | Registro, como excesdo, 0 teste de J. A, Moisés, 1990. Pessoalmente, apreset teieste tema, pela prinieita ver, no XII Eneoniro Nacional da ANBOCS (As Jo Nacional de Pos Graduagao ¢ Pesquisa em Ciencias Soviais), er Aguas de Sao Pedro, outubro de 1988. 2 ACIDADANIA ATIVA, dismo”, prépria dos nostalgicos da democracia dos antigos ou dos ingénuos adeptos da “‘espontaneidade”. O tema da democracia e da “‘democratizagdo” permanece, sem diivida, nobilissimo — e com bons trabalhos a respeito. Mas inexiste, a meu ver, uma reflexdo apro- fundada sobre democracia como efetiva soberania popular, sobera- nia na pratica, e nao apenas na retériea — apesar das instigantes indi- cagdes, nesse sentido, nos textos seminais de Raymundo Faoro, Sali- nas Fortes, Marilena Chaui e Fabio Konder Comparato, textos mais orientados pelo Angulo da filosofia politica e dos estudos juridicos do que propriamente da ciéncia politica. Ror outro lado, participa- do popular tem sido discutida, com pesquisa empirica e rigor anali- tico, do ponto de vista do poder local, do associativismo ou dos movimentos sociais ¢ sindicais — 0 que, inegavelmente, representa um consideravel avango nas ciéncias sociais. A participagéo popular pertinente a este estudo é aquela que se realiza através de canais institucionais para a intervencao direta na atividade de produgao das leis ¢ de politicas governamentais. O desinteresse de alguns cientistas politicos brasileiros por esse tema é ainda mais surpreendente quando se observa que varios deles estuda- ram por longo periodo nos Estados Unidos onde, a cada dois anos, além das cleigdes tradicionais para o Legislativo e o Executivo, 0 elei- torado é chamado a votar em questdes de interesse piblico, no plano estadual ¢ local. Mas la, também, o tema parece ser de importancia menor, segundo os critérios de prestigio académico. Sao relativa- mente poucos? entre os pesquisadores na area de governo e sistema Politico (para nao dizer democracia) os que dedicaram alguma atencao A pratica do referendo ¢ da iniciativa popular legislativa — vigentes em quase todos os Estados americanos. A propésito, Carole Pateman considera “‘ironia’”” o fato de que a idéia de participagao tenha se tor- nado tao popular entre os estudantes no final dos anos 60 — na Franga, na Inglaterra ¢ nos Estados Unidos — e continuado tao distante dos interesses dos intelectuais, presos A teoria “ortodoxa”” que enfatiza, jus- tamente, os perigos da participagio ampliada do povo para a estabili- dade do sistema democratico (1970, p. 1 ¢ passim). Essa indiferenga parece-me especialmente ins6lita quando se reléem as belas paginas de ? Entre esses, lembro 0 estado de Robert Dahl sobre o poder loval em New Haven, em seu conhecido Who governs? (1961). Sobre a direct legislation, destacantse as pesquisas de Ranney ¢ Buller, Bell e Price e, mnais recente: mente, David Magleby. O livro de Arend Lijphart, citado entre nés come tum bom ensaio das “democracias contemporaneas”, em mais de. 300 pag has dedica apenas 10 as expericncias de democracia semidireta tos Estados Unidos na Europa, Inroduso ~ Premises objetivo 1B Alexis de Tocqueville. J4 em 1835, sua pena finissima registrava como a soberania popular, nos Estados Unidos, assumia todas as formas pra- ticas que se poderiam imaginar, incluindo a participagao na elaboragao das leis e na vigilncia sobre os legisladores € o executivo: “O povo reina sobre o mundo politico americano como Deus sobre 0 universo: €.a causa e o fim de todas as coisas”? Mas — insisto — 0 tema é novo no Brasil e, ademais, tem sus- citado mais suspeitas do que uma reflexdo séria. Varios cientistas sociais, ao lado de parlamentares, insinuam que os defensores das novas formas de democracia direta podem querer “a substituisao da democracia representativa”” — como se isso fosse possivel! E bem provavel, alids, que uma boa parte dos constituintes brasileiros, que aprovaram a adocao dos mecanismos de democracia semidireta, 0 tenham feito na certeza de que dificilmente seriam eles implementa dos — no mesmo espirito, alias, daquela devocdo retérica a antiga formula, presente em nossas constituigdes desde 1934, de que “todo © poder emana do povo e em seu nome é exercido” No entanto, na perspectiva otimista, devo admitir que, px meira vez na histéria politica brasileira, formou-se uma respeitavel corrente de opiniao favoravel a instauracao, na nova Constituicao, de mecanismos de democracia semidireta. O Plenario Pré-Participa- cdo Popular na Constituinte, a partir de 1985, reuniu dezenas de enti- dades representativas de segmentos importantes da sociedade civil € aluou em varios Estados da Federagao. Nos trabalhos constituintes, admitiram-se propostas de emendas populares ao texto do projeto original. Foram apresentadas centenas de emendas, somando cerca de 12 milhdes de assinaturas. la pri- Acescolha do tema deve-se a verificagao de que a representacao politica — legitima ¢ indispensivel nas democracias modernas — € uma instituieao deficiente para exprimir, com fidelidade, a vontade popular e a realizagao dos interesses do povo, na multiplicidade de suas manifestagdes. Esta premissa apdia-se na crescente insatistacao popular com a representacdo tradicional e na consolidacdo de vérios institutos de democracia semidireta, em sociedades contempordnea 6s quais funcionam como corretivos a democracia representativa. 3 De la démocratie en Amérique, Patis, Gallimard, 1951, Tome I, p. 56. A maio ria dos autores de lingua francesa ¢ inglesa ¢ aqui citada a partir dos textos briginais; a Wadugdo € de Paulo Benevides-Soares, a quem agradeso. Ver as referéncias completas na bibliogeafia final. 4 ___. Acapabanta aniva modded in 28 Obetivos desse etudo, rezistro que a polémica,gross0 fr ena das verte: 2 das que considera suficiente aper- ; epresentagao tradi Superio em alguns pontos ~ nunca exinguifal “<2 propdee nee nismos de crredo, A motvagio para mith pestis deere te, da adesdo a segunda vertente. Conside °, es daa vertente. Considero, no entanto, qualquer aperfeigoamento nos sistemas de representagao wm paridos, 5, legislacio e justica eleitoral — sera positive no sentido de melhor exprimir a soberania popular. one senigo de F mese sentido que participo, intiramente, das preocupagdes inas Fortes, a0 questionar “os exageros"” ica tbe 4 s For nar “os exageros” daquela critica libe “isteeatmamaent eco, smh mo”, do “assembleismo"” ou do “populismo’” 0 aus gostarin: tmos de questionar lnsine o losofo «0 exagero contrition aoe a eerta letichizesao dos mecanisimos de reprceantacse ea way aparéneia de uma vst mode ada, equiva stone! da snare noderma,cviltada, euilvada sonal 3, estaria, na realidade, limilandese a nos oferceer e taete ae representagao também como panacei cp Panacea universal (1986 p10 des A escolha do tema lo tema, portanto, foi motivad __ A gotta do tema, portano, fi motivada pela constatasdo a Plano da anélise teérica e da realidade politica br ie s Seguintes pontos: vse a) a demanda por maior a Bi mi Participacao politica e a * gam recs gs * oe ini )) a ambigilidade — aléi : cide en oe en sare moyen ead om rm ds he ¢) em funcdo de se aval -) ey rtd de (a) + (b), a necessidade de se avaliarem as inova- goes institucionais, fruto de nosso processo constituinte, | de ‘periéncias bem-sucedidas em outros Paises. vats O reconhecimento ; a.m a a tea glia toe penn aa a discussdo, presente em textos de juristas ¢ cie1 liticos, re OS mecanismos de correcd 5 Bae 2 ¢ redo e de aperfe - tone fac ae es ee gon eee, inclusive, a dissolugdo do préprio Parlamento ‘ ento da “‘inautenticidade”’ da representagao); fc a voto distrital versus proporcional; mecanismos de ms ‘ae ‘mpe, ivo ou revogacao de mandato: d is drdstico, ae soe. at mandatos (do recall mais dra: des partiddrias); correca a aac s fegao na proporcionalidade d: a z — ae ane € novo equilibrio entre Camara ¢ Senado ete. Ci _ ciente eens de tais inovagdes, 0 que proponho estudar € fo a ° a (aridade entre formas de representacao e de partici . isto é, o aperfeigoamento da democracia pelo ingresso ‘dirio Inrolugdo— Premissas¢ objetinos 15 do povo no exercicio da funcdo legislativa e na producdo de politi cas governamentais. Isso significa, no presente estudo, a agregagio de referendo e/ou plebiscito e iniciativa popular legislativa aos direitos politicos ja garantidos nas eleigdes para cargos executivos ¢ legislativos. Trata~ se de conceber a participacao politica no sentido mais abrangente: a eleicao, a votagdo e a apresentacdo de projetos, A votagao inclui ques- t6es colocadas por referendo ou plebiscito (que, malgrado uma certa confuséo terminolégica, implicam sempre a expresso da opiniio ou da vontade dos cidadios). A apresentagao de projetos de lei refere- se a iniciativa popular legislativa — 0 que inclui um proceso bem mais amplo, desde a elaboragio ¢ subscrigao popular até a vorayao ‘A complementaridade entre representagao tradicional (eleigao de representantes no Executive ¢ no Legistativo, principalmente) ¢ formas de participacdo direta (votagao em questdes de interesse puibli- co) configura um sistema que pode ser denominado de democracia semidireta. Segundo seus defensores, tal sistema é bem-sucedido quando propicia equilibrio desejavel entre a representacdo ¢ a sobera: nia popular direta; 0 Parlamento divide com 0 povo o poder consti- tuinte (no caso da possibilidade de emendas ¢ de referendos constitu- cionais) ¢ 0 poder legislativo. As autoridades esto, efetivamente, sujeitas ao controle € ao veredito do povo. E nese sentido que adoto a expresso democracia semidireta, pressuposto basico, que orienta este estudo, repousa na con viggdo de que os mecanismos de democracia semidireta atuam como corretivos necessirios representacao politica tradicional, Conseqiien: temente, em nenhum momento cogita-se de democracia direta ‘“pu- ra"? — nem como expressio da ‘‘democracia dos antigos”” nem como exaltagdo do fervor revolucionario e, menos ainda, como 0 ideal poli- tico de um Rousseau mal digerido. Em decorréncia, ¢ porque apenas das fdrmulas institucionais — referendo, plebiscito ¢ ini tiva popular —, refiro-me a mecanismos de democracia semidireta, no sentido acima mencionado. ‘A expressio “‘democracia direta’", portanto, quando utilizada isoladamente — ¢ sem outras referéncias histricas —, pode prestar- se a equivocos. Os préprios juristas tém dificuldades na conceituacao, divididos que estdo entre o rigor conceitual ¢ aqueles preconceitos vinculados a idéia da ‘“‘democracia dos antigos’ ou 4 “ficgéo do século XVIII", Karl Loewenstein, por exemplo, apresenta uma defi- nigdo mais abrangente: trata-se do tipo de governo no qual 0 povo — ou seja, a totalidade reconhecida pelos costumes ou pela lei, como ato 16 ACIDADANIA ATIVA cidadios dotados de direitos — participa das decisdes e do controle politico sobre medidas de interesse coletivo (1965, p. 95 ¢ 156). Ja Norberto Bobbio ¢ mais especifico: Sob v nome generico de democra lense todas as formas de par vst eniend a ws de participagao no perder, que nie «resolve sum ou noutra forma de eepresetag fen a representa xe dos nterenes geais ot politica, nen representa dos iniereses particulares ou organica): a} 6 governe do poo atraves de delegados inves tidas de mandato imsperativo ¢ portanto revogavel:b) o govern de assem Dei, iso, o governo nfo so sem representantes irevogivers ou fda iirios, mas também sem deleysadas: c}v referenda (1987. p. 154), Observe-se que Bobbio nao faz referéncia a plebiscito (provavelmente identificado a referendo) nem A iniciativa popular legislativa. __O exemplo mais famoso de democracia direta permanece, sem diivida, 0 das cidades-Estados nia Grécia antiga, sistema que durou cerca de dois séculos (IV ¢ V a.C.) e, segundo boa parte dos autores, deteriorou-se em razio da incapacidade do povo em refrear seu pré. prio poder soberano.4 No século XIII, formas de democracia direta surgiram em cantoes da Sui¢a — os Landsgemeinde — 10 XVIII encontram-se os town meetings na regido da Nova Inglaterra E evidente que nao se podem ignorar tais exemplos; no entanto, esto situados em contexto histérico tao distante e especifico que pouco ou nada tém em comum com as experiéncias contemporineds, no Ocidente, de democracia semidireta , A dificuldade na conceituagao de democracia direta — e os equi- vocos dai decorrentes — sera aprofundada nos capitulos seguintes. Mas cabe adiantar que essa dificuldade ¢ comum também para a com- preensio do que seja “‘participagao popular” — e nao se restringe a0 caso brasileiro. A maioria dos autores consultados registra uma abrangéncia de significados que varia no tempo e no espago. Em certa critica, comum aos paises “‘avangados”’, os mecanismos de participa- sao popular sao entendidos como **meros slogans eleitorais, ritos for: mais para rivalizar com as burocracias paralisadas ou, entao, instru ‘mentos excessivamente regulamentados para a integracao do cidadao 0s processos decisérios"” (Wiener e Hamon, 1986, p. 330). No Brasil, a ambigitidade na utilizagdo do termo intensificou-se a partir do inicio do proceso de transigao do autoritarismo. *Partici pacao popular” passa a ser palavra-chave (ou magica) que suposta- mente sustenta uma proposta de democratizagdio mas — devido a essa * Respondendo a este tipo de ertica, ue muitas vezes ¢ usada contra propo tas contemporaineas, Castoradislembra que "a Grecia ¢ 0 lacus social eto rico onde a democracia e a filosofia sao criadas [..] € para nos um. germe: seta modelo, nem usw especime entre outron mas umgerme™ (1986. 3) Inisaducdo — Premissas ¢abjeivos 7 abrangéncia ¢ indefinigao — acaba, muitas vezes, como figura de ret6- rica. Governos e partidos politicos utilizam-na como publicidade — ea participacdo, na pratica, acaba desmoralizada. A precariedade do debate tedrico ¢ institucional €, igualmente, significativa. A idéia de participacdo popular permanece vinculada a organizagao de “‘con- selhos populares” (até hoje proposta do Partido dos Trabalhadores, mas pouco desenvolvida ou suficientemente esclarecida) ¢, principal mente, & mobilizagdo popular em movimentos sociais com graus variados de dinamismo, representatividade, enraizamento ¢ esponta- neidade. E evidente que movimentos sociais ¢ populares — dos mais conjunturais aos mais duradouros — constituem formas importantes ce necessirias de participagdo popular numa perspectiva democratica. Mas & também evidente que nao se deve restringir a participacao poli- tica aos movimentos, sobretudo quando se abrem possibilidades para canais institucionais.> A opeao por trabalhar com os mecanismos institucionais de participagdio popular na atividade legislativa e na definicao de politi- cas governamentais restringe este estudo ao referendo, ao plebiscito © iniciativa popular. A discussdo sobre 0 mandato imperativo ¢ a revogagao dos mandatos — também no ambito da esfera parlamer tar — exigiria um estudo bem mais amplo, embora ndo menos inte- ressante. Fica para outra ocasido. Insisto nessa distin¢ao, nao apenas para delimitar 0 escopo da pesquisa — que exclui as conhecidas for- mas de democracia direta como autogestdo, conselhos populares, assembléias e comissdes de Fabrica —, mas também para registrar que nao se ignoram outros institutos da maior importancia, porém pertinentes a atividade judicidria, como: ampliagio do juiri popular nos casos onde a justiga oficial se revela emperrada e ineficiente; con- trole da legalidade dos atos administrativos, com a ampliago da acdo popular ¢ do mandado de seguranga; ¢ correcao da inconstitu- cionalidade por omissao. Outro ponto pertinente a opgao pela analise deste tipo de parti- cipagao popular diz respeito & exclusdo da “participagéo administra- tiva’’. Trata-se de reparo indispensavel, uma vez que persiste uma SVer as criticas de Norberto Bobbio (1986) & partivipagio “"exagerada” dos cidadios e. ainda no exemplo italiano, o artigo de Hugues Portelli (1981) Sobre os movimentos de fabrica que, entre 1969 © 1973, questionavam a mediacio dos partidos e sindicatos. 18 — __ACIDADANIA ATIVA cer fo entre cera confusdo entre ambas.£ A partcipacio que se expande para ai- Yidadesadministativas inclu, por exemplo, a partcipasto de taba. Thadores na gest das empresas; dos ustrios na gestao dos serigos Dublicos; dos estudanes funcionérios na gestao das universidades € esos ete. Neste tipo de patcipasio — que alguns autores cha. mam eurosamente, de "epresentagd deta" — prevalese a expres sto de ineresses particles, corporatvos, de classe, de catego is legitimos que sejam./Nio se trata, ° 3 . “ , portanto, de dk politic sloba no sentido da realizado bem cornum. O cide Ao, ai pode se dlr no “consumidor", no “sudo”, no “adi nistrado no “contibuinte”. Esta paripasdo tem como vanta fens evdentes, no entanto, a correo sobre a buroeracacetrlza paca, autoritéria, Tem, igualmente, como : Tem, , como vantagens, 0 fa de aue para grande maieria da populasia 0 poder ¢ @ adiinsre © governo, em suas virias intervengdes, & idiano er Tvengdes, & o rosto quotidiano do Exado — a poi, 0s servigaspblcos, os impostos..O Parl oa nests “politica” etd longe, quate nacese ai € 1870. entanto, Que a uilzagdo dos mecanisms insitucio tas de participasdo na csfera politica global ndo exclu os temas ¢ os tress acima mencinados. Os mess disinos, mas per el — e, em alguns casos, desejavel — que questo fetament f . desejavel — que ques ‘eas &patpasio em atvdadesadministaives sejam objeto referendo’ou de iniciativa popular lesisatv de ffendo“ou de iniciativa popular leiatv,sobretudo quand A discussao do tema pressupée 0 reconhecim a 0 0 nto da legitimi- lade da ampiaso da particpasto potica do pove. Presupde, nda, Para usar a expressdo de Barrington Moore Jr, o desenolvimento da lemocracia como uma Ita longa © eertament incomplete no selon Hees com ertamenteincommpleia no senda coisas estritamente relacionadas (1) contro arbitrarios; 2) substitu les arbitrarias por lel ustas ato oh eur que a populagdo participena claboragio das ie 196) 9 508, Em outros termos, 0 | MOS, © pressuposto basico consiste ma identifi ao n nsiste na identifica. gio, entre democracia e sberania popular. Torna-se necesito, no , sintetizar os principios fund: i : gnram, snares lamentais, dai decorrentes, que cia eo Primeiro lugar, cuda-s de reforear o principio da democra processo criaedo. “*Criagao de espacos pl c ca ees € ¢ pacos piiblicos novos e iplos, € ndo mera ocupagéo de espacos existentes anteriores a “Analisando as experiéncias revol svalando ins revolucionsrias, H fatal dos eonselhos foi o de eles préoprios nao distinguirem cla mente entre partcipagio nos neq nen 10s negocios publics ea administrate 0 ‘cdo des coisas no interesse publico” (1971, p. 269), ee lannah Arendt considera que Preminss ¢objetivos pratica dos sujeitos politicos.” Isso significa, também, que se reco- hece — apesar da longa e pesada tradiedo brasileira — a forga insti- tuinte dos sujeitos politicos ¢ a capacidade criadora do Direito, que pode, perfeitamente, romper aquela sua imagem ‘‘congelada”” para "inventar”” novos mecanismos de participagao popular. Tal visio € preliminar a discussdo com cientistas sociais que admitem ¢ propdem inovacées em “‘engenharia institucional’” na area da representacdo tradicional, baseadas em exemplos da legislagio de outros paises, mas levantam sérias objegdes 4 implementagdo de formas de demo- ‘cracia semidireta. No campo estrito do Direito — e da ‘‘engenharia institucional” —-, por que seria mais “consistente” adotar, no Brasil, ‘0 modelo alemao do voto distrital misto, por exemplo, do que o sis- tema suico, americano ou italiano do referendo popular? Se o Direito pode ser criacdo, se a democracia ¢ criagio — a polémica desloca-se para outros problemas, entre eles, certamente, 0 do preconceito con- tra a soberania popular. Em segundo lugar, enfatizo o principio da necessdria e insupri- mivel vinculagdo entre a defesa da democracia semidireta € a consoli- dago das conquistas liberais da democracia representativa: pluralismo de opinides e de partidos politicos, amplas liberdades individuais coletivas, com especial destaque para igualdade no direito A informa- go e no acesso a justica. Daf, considero igualmente indissocidveis a avaliagdo sobre a legitimidade dos resultados ¢ sobre a legitimidade dos procedimentos. Descarto, portanto, qualquer aproximacdo com certas teses que supdem, ou a “indugdo totalitéria” nas formas de participagdo popular direta, ou — por absurda e anacr6nica — a des- confianga de que possam visar a substituigdo radical do principi basico da representagdo. Nesse sentido, fago minhas as palavras de F, Weffort quando assegura que 0 pior que pode ocorrer quando se dis- Cute as relagbes entre a democracia direta e a democracia representa tiva ¢ tomar qualquer delas como excludente. Nao é assim, nem nas Hevolugoes nem nas democracias realmente existentes. E onde a exclu Sao de um dos principios ocorre, a usurpacdo do poder se torna inevité vel, Em ver de pensarmos em opor representacao e participagao direta Teriamos, pelo contrario, de estudar mecanismos que permitam que os dois prineipios se complementem (1986, p.121) Finalmente, em terceiro lugar, a cidadania ativa através da par- ticipagéo popular & aqui considerada um principio democratico, € nao um receitudrio politico, que pode ser aplicado como medida ou propaganda de um governo, sem continuidade institucional. Nao € ‘um favor” e, muito menos, uma imagem retdrica. E a realizacdo 7 Chaui, 1988, p. 57. Tdéia desenvolvida, entre outros, por H. Arendt ¢ C, Lefort. 20 ____AcIvapana ativa, concreta da soberania popular, mais importante do que a atividade eleitoral que se esgota na escolha para cargos executivos e legislati- vos. A participacdo popular, assim entendida, supera a velha polé- mica sobre 0 “‘verdadeiro” significado de cidadania ativa na filoso- fia politica, desde 0 século XVIII — assim como a dicotomia Estado € sociedade civil, vigente até hoje entre liberais e antiliberais. Esta cidadania ativa supde a participagao popular como possibilidade de criagdo, transformagéo e controle sobre o poder, ou os poderes Considero, ainda, que o actimulo de equivocos e ambigiiidades que costumam cercar a idéia da soberania popular e da participagio desvenda — mais do que anguistias tedricas — graus variados de des- confianga, oposigo e ma vontade tout court. Ou seja, revela uma visdo diferente da propria democracia. Este estudo parte do postu- lado da soberania popular, a qual deve estar submetida a representa. 40, para que esta seja efetivamente uma representagdo democritica, J& o pressuposto dos que so contra a participaco popular na esfera Tegislativa é 0 da soberania parlamentar — segundo a qual o Legisla- tivo nao precisa obedecer vontade popular (no extremo limite, essa posi¢ao termina por negar a propria idéia de representacao, da nagdo ou do povo; nesse sentido, os representantes so eleitos Para exprimir a vontade prépria, a deles, e ndo a de seus supostos Tepresentados).. Aexi itagao de tais principios ’o invalida minha disposigao para admitir que, na avaliagao concreta dos mecanismos de participa- ‘© popular, tudo deve ser rediscutido, sem preconceitos. E por isso que merece tanto destaque, nesta pesquisa, a discussdo de faldcias e argumentos sobre a democracia semidireta — ou, em outros termos, as vantagens ¢ desvantagens da utilizacdo de seus mecanismos. Do ponto de vista do interesse mais relevante desta pesquisa, uma indagagio parece-me crucial: até que ponto sera possivel, em nosso pais, com uma sociedade tio marcada pelos desequilibrios e desigualdades, implantar e fazer funcionar as formas mais avancadas da democracia participativa? Até que ponto terdo razdo certos teéri 60S europeus, que vinculam 0 sucesso da participacdo popular A con- solidagao das democracias no “primeiro mundo" — com suas insti- tuigdes s6lidas ¢ estaveis, além de nivel de vida elevado, baixa dispa- ridade socioecondmica ¢ as. reconfortantes virtudes civieas de solida- tiedade e de moderagio? (Grisel, passim). Nao resta divida de que 21 Premisss objetivo, Inco educacao politica — entendida como educagao para a ae ativa — € 0 ponto nevrdlgico da participagao popular, Mas com: educar sem praticar? - las ; Ja sua propria natureza espec E claro que essa questao, pel fe va, nao tem resposta pronta e acabada. Mas, pelo menos, a Lae pov santa: ¢ portance dos costes policos (enfoeados ri tradigdo de Aristételes, Montesquieu € Tocqueville) para o éxit y ae ualquer pratica ¢ organizagao nas sociedades. Isso significa que _ hum sistema novo — por mais “‘perfeito’’ que seja ou aparente terd gi tidos os resultados previstos se afrontar ae sigafoo ara oie dum pve, No por sas, porn, do mundo ‘contempordneo ocorram nos Estados Unidos oa ae paises com fortissima tradic¢ao de participagdo dos cidadaos de “‘cidadania ativa’’. _ . : Tais consideragdes reforgam minha avaliagao inicial, ees as vantagens da participagao popular como uma ecole ee ‘i a oo “ zt jitica”” ovo — apesar de toc I~ iat como "edueagao politica” do pove ~ a Innate sonra que exagera as condi de apa © desprenro absoluto do eleitorado, assim considerado_ pea sutmisso cine -avel’’ —, como a “‘multidao suina’ ho miserdvel com suas paixdes ensandecidas ¢ ignorantes que, seme) forem controladas pela lei, justificariam 0 mais duro despotismo’ vo O que importa, essencialmente, é que foe ae ae informag4o ¢ a consolidagac tit a participagao — com pluralismo ¢ com liberdade. A propés fe Han ah Arendt quem lembra as inquietagdes ad setters ". a i ia vem reptiblica ameri \: Jefferson, 2 vitor voto secret fose ainda detconetdo nese tempo, ih ereanae ert res ‘espaco publico do que a urna de voto ¢ com maior Srmantied de nrnonrs sus vc polio do ae oda do past Olmiceles cl crigo mortal para a republica foi o IMs Us Canto tor dao te poy som ads se hes (1971, p. 249) Essa questdes serdo desenvolvidas em seu devido lugar. Cum- pre registrar, ainda, algumas indagagdes que permeiam o debate * Refle ” in the Revolution in France. Penguin Books, 1969) P aa oe TUG ates Rado Cebvape 23): 10219, 1989 2 ____ACIDADANIA ArTiVA que so especialmente relevantes para a discuss sobre a consolida- a0 de formas de democracia semidireta no Brasil: * as formas de democracia semidireta funcionam mais como freios, ©u, ao contrdrio, como estimulos para a vida politica e a participa do do cidadao? * consistem, em geral, em instrumentos para a inova¢do, ou para a conservacao? * servem para desenvolver a maturidade politica ou, antes, poem a nu a vulnerabilidade do povo 4 manipulagao das campanhas politicas? Por ultimo, importa reiterar que: 1) a inspirago norteadora de minha pesquisa nao reflete uma posicdo antipartido ou anti-repre- sentacdo, mas sim pré-aperfeigoamento da democracia e da represen- tagdo; 2) a discussio institucional ndo significa ignorar o relevante Papel dos movimentos sociais € populares ¢ outras formas de partici- Pacdo direta na vida politica, mas traduz uma op¢ao por estudar cer- tos mecanismos institucionais; 3) a critica aos vicios ¢ limites da repre- sentagdo politica no Brasil nao se orienta para propostas de aperfei- goamento do sistema partiddrio ou eleitoral, mas para instituigdes complementares ¢ alternativas; 4) a referencia a institutos existentes em outros paises no consiste em comparacao juridica, mas em ava- liagdo de sua utilizagdo concreta. Este estudlo inicia-se com a discussio de temas centrais da repre- sentagdo e da democracia direta, a partir da critica aos vicios e des- vios da representagao politica no Brasil. Adianta, ainda neste pri- meiro capitulo, um breve mapeamento da experiéncia de democracia semidireta em sociedades contemporaneas. Toda a argumentasdo a ser desenvolvida partiré da convicedo de que @ oposiedo tradicional entre democracia representativa e democracia direta é um falso dilema, O resultado do inventério, aqui realizado, de vantagens ¢ desvanta- gens de cada sistema sugere que ndo existem, satisfatoriamente, solu- (Ges excludentes e ‘“puras”” Insisto, portanto, na expresso democracia semidireta. Nos capitulos finais, estudo o funcionamento desses institutos — teferendo, plebiscito, iniciativa popular —, levantando questées quanto aos procedimentos, a regulamentacdo ¢ aos diversos proble- mas apontados nas experiéncias contemporaneas. A discussio enfa- tiza os aspectos politicos, sem descurar do elemento juridico, e orienta- se para a apresentagdo de sugestdes visando 4 implantagao de tais institutos no Brasil, 23 Insoducdo — Premissas ¢objetivos Pretendo contribs para o debate polio institucional sobre paca -om a expectativa de superar os limi- o tema da participagdo popular, com a exp a tes das teses academicas. Em outros termos, pretendo contribuir com subsidios para a propria discussao na esfera do Poder Legislativo € has demais areas de atuacio da sociedade civil — partidos, movimen- tos, associagdes — com’a esperanca de que a regulamentagao dos mecanismos de participa¢do popular reforce 0 préprio principio € nao, como no sinistro exemplo do direito de greve da Carta de 1946, acabe por limité-lo. Compuseram_a Banca Examinadora Celso Beisieel, Carlos Guitherme Mota, Carlos Nelson Coutinho, Dalmo Dallari ¢ Gabriel Cohn, a quem presto as minhas homenagens. O chefe do meu depar- tamento, José Mario Pires Azanha, honrou-me com um apoio dis- creto e constante. Assim como os demais colegas, entre os quais des- taco o entusiasmo de Lisandre Castello Branco. Registro a dedicagéo ¢ competéncia de Claudia e Gérson, da Teclado Informatica, que pre- Pararam os originals da tese. O “primeira Ietor”, com suas ertias ¢ sugestdes, aceitou com grande modéstia prefaciar este livro. Mew matido Paulo € nossos filhos Daniel, André e Marina foram sempre muito solidérios. A todos agradeco de coracao. | 1 REPRESENTACAO E DEMOCRACIA DIRETA: ELEMENTOS FUNDAMENTAIS A representacao politica no Brasil: breve revisao critica “Nada mais parecido com um ‘saquarema’ do que um ‘luzia’ no poder.” A famosa ironia de Hollanda Cavaleanti sobre 0 oportu- nismo dos conservadores ¢ liberais no Império costuma ser lembrada sempre que se discute, desde entao, 0 amorfismo partidario ¢ as mazelas da representagao no Brasil." A farpa serve, aliés, para ilus, trar, ainda hoje, aspectos do corrosivo descrédito da chamada "classe politica” — “0s politicos sao todos iguais” é frase que est na boca lo povo. Essa desconfianga atinge no apenas os parlamentares, como as proprias instituigdes da democracia representativa — os partidos € 0 Poder Legislativo. Recentes pesquisas de opiniéo puiblica confir- mam resultados negativos anteriores, com ressalvas para a visibili- dade positiva da justica eleitoral; os partidos e os politicos permane- A proposito, escreveu Franklin de Oliveira Tal apotegma nao apont nas para o imor polit aa asm congenito de nossay cites politicas- Aponte a ‘Cncia ética, mas lambém apont: Fato: a indigineae ape a para um outro fat di Ti fereniag din moss partdonpolicos, No so lion ics: Sy gt mava de opoleio. A sede do mando os volova todos no mesmo nba eg loaco As iereneas verbs dow programas anlar na pricy sabre. tudo depois que alcangam o poder, Ainda hoje é assi “Revista Sento jude dee ave skcansam 0 poder Ala hoje @ asin (Revs Senor |= Representa ¢democreia de: elements fundamentais 25 cem nos tltimos lugares na estima dos entrevistados.? A populacao brasileira, ontem como hoje, nao se sente ‘bem representada”” no Legislativo. O cidadao brasileiro pode ser ignorante ¢ acreditar nos milagres de um “salvador da patria”. No outro extremo, pode ser politizado e participar de movimentos populares na defesa de interes- ses coletivos. Mas, decididamente, nao confia nos ‘representantes do povo"”. O que, sem diivida, nao é bom para a democracia Esse descrédito nos politicos ¢ na politica — muito explorado, alias, por certos candidatos na tiltima campanha presidencial — acen- tuow-se sobretudo depois do fracasso da campanha de massa por elei- ges diretas em 1984. A idéia da representagao tornou-se, na pratica, Coerente com aquele tipo de critica que a denuncia como “representa do teatral do poder perante © povo”’, e nao como “representagao do povo perante o poder”. E justamente por isso que, a meu ver, uma das deficiéncias mais sentidas na representagao politica no Bra- sil consiste na total auséncia de responsabilidade efetiva dos represen- tantes perante 0 povo (existem pouquissimos mecanismos juridicos para fazer atuar essa responsabilidade — ¢ nunca sio aplicados). Atualmente, as criticas mais moderadas a representacao parla- mentar apontam os vicios decorrentes de uma tradicao oligdrquica incontestavel (0 que leva & extrema “privatizagao” da politica) ¢ de defeitos inerentes & legisla¢do, como a sub-representagio dos Esta- dos mais populosos e desenvolvidos. As criticas mais radicais apon tam o que se convencionou chamar de verdadeiro “‘estelionato politi- co", decorrente da perversao da representagdo. Em ambos 0s casos, discute-se 0 papel do Estado, dos partidos politicos (detentores do monopdlio da representacio no Legislativo) e da legislagao eleitoral. Em brevissimo resumo, aponta-se a representacao distorcida, ‘0 coronelismo redivivo nas varias formas de clientelismo, o populismo de diversos matizes, o sistema eleitoral viciado e, ainda, o abuso do poder econdmico nas campanhas eleitorais.? O que compoe, sem diivida, um painel pouco animador da representagdo politica, a0 qual se agrega, consegiientemente, aquela descrenga do povo na,poli- tica e nos politicos. 2 Ver pesquisa Cedee/DataFolha, publicada na Fotha de 8. Paulo, 24 set. 1989 3 ASGllima campanha para a presidéncia da Republica, depois de 29 anos, ape- Sar dos pontos positives de ample alistamento eleitoral e participagao pops Tar, apresentou aspectos que correspondem as dentincias sobre o sist no Imperio, feitas, na epoca, por Joao Francisco Lisboa: “a perversa combi hacao de trapaga, falsidade, traigao, imoralidade, corrupgao ¢ violencia’ (opud Kinzo, 1980, p. 74, 26 ACIDADANIA ATIVA, Esses “males da representacdo”” — e as propostas reformistas — tém sido freqiientemente analisados entre nés. Pode-se mesmo afirmar que se trata de um tema privilegiado na moderna ciéncia poli- tica brasileira, tendo sido, desde sempre, preocupagao de intimeros autores na Area juridica, Nao pretendo aprofundar tema tao estu- dado. Mas, na medida em que a insatisfacao com a representa politica tradicional surge como uma das motivacdes para a demanda de maior participacdo popular, torna-se necessdrio situar a questo, destacando os pontos principais da critica ¢ da polémica. Em termos gerais, a discussdo histérica sobre representacdo politica no Brasil pode ser apresentada como reflexo do confronto entre idéias liberais, democraticas e participacionistas, de um lado, € idéias autoritérias, elitistas e corporativas, de outro. E claro que ndo se trata de uma divisio homogénea; de ambos os lados identi cami-se variagdes tedricas € praticas. Do lado pré-representagao, ha nitidas distingdes, que vao do liberalismo clissico da exclusividade da representacdo parlamentar as teses sobre extensio da cidadania ¢ radicalidade da soberania popular. Do lado anti-representagao, 0 espectro de posigdes abrange desde 0 autoritarismo do Estado forte € centralizador, com a encarnacdo da representago da nago no chefe carismatico, até o elitismo da ““democracia da gravata lavada”” (Te6filo Otoni e a campanha do lengo branco), da “politica dos nota- veis”” e da “‘presciéncia das elites”. ‘A maior parte dos analistas contempordneos enfatiza os entra- ves — politicos, culturais — a consolidagao de instituigdes representa- tivas estaveis e razoavelmente democraticas. A tese classica de Ray- mundo Faoro sobre a privatizacao exacerbada do poder politico — © Estado patrimonial, a conciliagao e a cooptagao, “os donos do poder””— assim como 0 ceticismo de Sérgio Buarque de Holanda — “a democracia no Brasil sempre foi um lamentavel mal-entendi: do” — permanecem referéncias fundamentais. Para Faoro, ond da ‘questo é, justamente, a constatacdo de que, em ultima instancia, a sobe rania popular nao existe sendo como farsa, escamoteagao ou cngodo{.: © poder, a sobersnia nominalmente popular, tem donos que nao ema: nam da Nagao, da sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe nao tum delegado, mas um gestor de negécios, gestor de negocios e ndo man datario (1976, p. 748), A sutileza do engodo, no entanto, reside em que, na retérica, a soberania popular esta presente. Desde 1934 o direito positivo brasileiro + Discuto essa “presciéncia das elites” em A UDN eo udenismo, 1981; ¢ a eri tica de petebistas “auténticos” ao elitismo da representacio em O PTB e 0 trabathisono, 1989. 1 = Represenagto demecracia dew: elementos fundamenais n incorpora a férmula “Todo poder emana do povo ¢ em seu nome é exercido” (langada, pela primeira vez, na Constituigdo belga de 1831). Fabio Comparato chama a atengdo para o fato de que ‘‘a solenidade da frmula encobre 0 efetivo recuo historico da soberania popular, pela eliminagao de todo poder ativo do ‘soberano"”. E conclui: Gragas 1 imprecisao da idéia de soberania do povo e larga experiéncia historica fj adguirida em fazer funcionar um regime oligarquico com fundamento 4 {eorico no principio de que todo poder emana do povo, a tendéncia das \ foreas conservadoras ¢ no sentido da adogio dogmatica desse principio, | esc aes verde def qe nope sre nines om indagagées crtieas (1989, p, 76) ‘A partir desse mesmo pressuposto — democracia como soberania popular — cientistas sociais contempordneos também criticam a repre- sentacao politica no Brasil na linha dos juristas acima mencionados. Entre esses, J. A. Moisés analisa 0 contexto de nossas raizes oligarqui- cas ¢ patrimoniais, numa ordem politica que exclui a efetiva Partici 1a cao popular em dois pontos: o artificialismo das leis ea concepedo tut lar do poder (1989, p. 3). Renato Janine Ribeiro considera que a dis t€ncia entre o povo soberano ¢ seus governantes — entendida como.» mais grave ameaga A democratizacao — decorre de’que, por um lado, ‘0 povo brasileiro espera da polifica apenas uma f¢ a mais de reden- “Glo, de. salvacéo; por outro, sao os proprios representantes. que.tém todo interesse em manter a despolitizagéo popular (1987, p. 31). Jé para Regis Andrade, no Brasil tém prevalecido, na doutrina e na pratica, duas modalidades de representacio. A primeira € a represen: fagao simbolica, eletiva ou nao, propria de situagées em que um grande lider encarna 0 pove, ot ainda em que um governo militar encarna nagao do futuro € pretende legitimar-se a posteriori. A segunda € uma Corruptela da representacao politica liberal ou fiducisria, caracterizada pelo mandato livre. Ambos procedem a unificagdo ilusoria de base Fepresentada por sobre a diversidade real da sociedade: num caso, © representado € 0 Povo ou a Nagio (a quem se deve proteger © guiar) no outro € a cidadania, ou melhor, o “eleitorado” andnimo e crédulo a {quem nao se deve nada sendo promessas préleitorais (1988, p. 22) Concordando com esses autores, cumpre-me registrar que a bibliografia sobre representaco politica no Brasil, do Império® aos dias atuais, ¢ bastante conhecida. Com criticos de indole autoritaria, na linha antiliberal ¢ antipartidéria, ou com criticos que reivindicam maior ou ‘‘melhor"” representatividade, as teses j4 foram muito cita- das e interpretadas, Os ‘“‘antigos”” autores, como Joaquim Nabuco, 5 Ver, no conto “A serenissima republica”, de Machado de Assis, a eritica aos costumes ¢ & legislagao eleitoral no Império — “o comentario da lei & a eterna malicia” —, que permanece itonicamente atval 28. ACIDADANIA ATIVA Assis Brasil, José Augusto, Azevedo Amaral, Nestor Duarte, Oliveira Viana ou Gilberto Amado, entre outros, foram lidos e analisados pelos chamados “‘explicadores do Brasil” — Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Victor Nunes Leal, Raymundo Faoro — em abordagem de cunho mais politico Na drea das ciéncias sociais contempordneas, além dos traba- thos pioneiros de Orlando de Carvalho, Luis Navarro de Britto e Gléucio Ary Dillon Soares,® merece destaque a dissertagao de mes- trado de Maria D’Alva Gil Kinzo, que estuda a representacdo ¢ 0 sis- tema eleitoral no Brasil como “‘a discussao das condigdes de partici- pacdo politica dos eleitores ao longo da histéria brasileira, na tenta- tiva de mostrar os entraves que a prépria estrutura social, politica e ‘econémica antepunha a legitimagao do sistema representativo” (1980, p. 133). Merecem igualmente destaque estudos, atualmente em anda- mento, sobre representacdo ¢ democratizagdo no Brasil.” Registrem- se, ainda, as contribuigdes dos juristas interessados em direito eleito- ral, sistemas de representagao e participagao popular. A lista é longa — sobretudo se fossem inclufdos trabalhos sobre Partidos politicos ou sobre a conveniéncia de mudangas especificas no sistema eleitoral, como o voto distrital, por exemplo —~ e, certamente, peca por omissdes. Creio, no entanto, que é significativa da ampla bibliografia disponivel e suficiente para este breve registro, uma vez que representagao e sistema eleitoral nao constituem o tema deste estudo, Em seqiiéncia ao registro de teses autores acima sumariado, alguns tépicos parecem-me especialmente relevantes para os propési- tos deste estudo, assim como para reforgar 0 quadro das criticas & Tepresentaco politica no Brasil: 0 coronelismo e o cli problematica dos partidos e do sistema eleitoral. ntelismo, a Nesta linha de andlise ver, entre outros, Antonio Otavio Cintra, Boliv Lamounier, Guerreiro Ramos, Fabio Wanderley Reis, Fernands Henrique Cardoso, Helio Jaguaribe, Helgio Trindade, Maria do Carme Campello de Souza, Oliveiros Ferreira, Octavio lanni, Olavo Brasil, Otdvio Dulei, Simon Schwartzman, Wanderley Guilherme dos Santos 7 Como os de Bolivar Lamounier, José Alvaro Moisés, Francisco Weffort Guillermo O'Donnell, Regis de Casttu Andrade © Maria Teresa Sadek * Como Bernadette Pedrosa, Carmem Rocha, Dalmo Dallari, Favila Ribeiro, Gottredo Telles Jr, José Afonso da Silva, Nelson Sampaio, Paulo Bonavides, Pinto Ferreira, Pontes de Miranda, Samuel MacDowell, entre outros, a dos ja cilados Comparato e Faoro, 1 = Restle demowacia dita omen fundamentais 29 © coronelismo nao é, apenas, um fendmeno “antigo”, vinculado 0 nosso mundo rural e “atrasado”. Exemplarmente analisado por Victor Nunes Leal (1949), revela ““o aspecto importantissimo que € 0 tema de reciprocidade: de um ldo, os chefes munisials¢ 0s coro nei, due conduzem magoes de cletores como quer ta tropa de bu fost de outro lado, a situagao politica dominante no Estado, que dis- poe do ext, dos empregos, dos favors da fore polcal, que pos Su em sua, o cofre das gras e 0 poder da desraga” (p25) Nunes Lal aponi 6 ciclo vicow ene a poltic oirquiea © o ares da exrturaagrria dominate, que permanece, até Hoje, nox chama- dos "'grotdes eletorais”” — sobretudo no Norte ¢ no Nordeste do pat =" mas também presente em formas mais “modems”, como stuaedo dos lobbies das Associagdes Rurais ¢ da Unido Democratica Ruralista (UDR), na Constituinte e nas eleigbes de 1988 ¢ 1989. ; (© clientelismo, por sua vez, perpetua o privatismo ¢ aquelas “teldades" exigdas dos coronin, No se tata de uma representa cio republicana, pois nao ve orienta pelo ineresse da cotsa public Nos éredos legislativos, os representantes desse ‘‘clientelismo"” tor- ham-se meros intermediarios de favores, de protegdes, de exigéncias frente ao grande poder dispensador de recursos € nomeagdes — 0 Executivo. Como conseqiiéncia, a representagdo passa a ter_ um pape ecundirio — como se numa attude de “desisncia” — quanto 2 fungioleisativa. Esufciente constatar a dscrepancia entre o ele Vado niimero de projetos de leis oriundos do Executivo, em relagio a0 Legislativo, nos tiltimos 20 anos.? : ‘Uma aguda avaliacao do clientelismo, feita por um deputado do antigo PSD paraibano, hé cerca de tés décadas, permanece, Jamentavelmente, de integral atualidade: nao ¢ mistério para nenhum de nos que parcela pondervel da representaio desta cava, gc peter: emos com tanta honra, mantém suas posigies 2 custa a politics de tlientela isto 6, 4 usta daquela politica que se faz em dua fava faba do emprego, dos favores pessoas, ¢ # faixa de verbas que no tem pr neira cssencialidade no clenco dos problemas nacionais, mas tém pi falidade diante do quadro municipal, © as vezes distrital, Gntram em vigor no Brasil sto de inieiativa do Poder Executive, que quando ssoee be Sool saree Slguos da Camara ou do Senado para Yenfica se este prjeto espe quando podea, por wma guesao de ese Pict lepisativa do parlamentar, solicit por acordo de Inderanca, arent ene a se vlads aprownd (Dio da ANC. 2 br 1987) 30 ____sctmanaa ara que vai decidir da sorte , verso) 0 ce dese pats dee tose ah one do Depuada, do Sensor do Veredor ou do rene gr © reo de cor in ‘dmara dos Deputados, 29 out, 1961), ae Quase dois anos depois, discursava Tancredo Neves: 0 que & a Re a? Republica & representacau. Mas quer es en P tidos, € quem fala em partidos fala em voto. Eq jue fs 0 Brasil nos dias de hoje? E duro confesssioe mas dure aie ee slo: caminha celeremente para 0 descrédito, a deemorinn ee ovilipendio. Degradou-o a demagogi etna, Degradous 'agoxia, corrompewo © poder economice panty deminsia do clenteismo serve articipacdo”, co ém pa GRaniciacdo", como também para quetionaro papel dos patios amo canaisprivileglados da lgasao entre Estado sociedade. Pois Se € tarefa especifica dos partidos o encaminhamento de demand gepresentacdo de iteresses, eles nfo detém 0 monopdio da ao critica. Aqueles que insistem rt lita de i stem em afirmar que “que gaurcita ¢ mesmo reaciondria da politica. Uma das manera para Suen © Preconeito, romper tanto os vicios liberals quanto a ‘ado, passa, portanto, pela criagi i . doe a das diversas formas de parielpacdo popular. Conon ee partidos politicos, com os fnanciadores das campartiog con aos de interesses eco aliados pulitious de citcunstaneiesofivon ee mente, Damo Dalai os representantes pasaram a spt coer denen voltura cada vex maior, esquecen ainas partidarios eax pro voltra cada vee maior, exqustendo os progamas partitions ot eee em manifestagdes publicas cate por excnte D Para discutir a realidade da E interessante rey iti fe registrar que a critica c _ essa 7 ‘ontemporénea aos parti- dos politicos ¢ & “representagdo imperfeita” é panihada, também, Por analistas mais idemiticados com posigdes conservadoras¢ elit, GB Agame Afonso Arinos. © mais Fel exemplo do bacharel da velha LUDN mineira conclu, em 1982, em conferéncia na Escola Superior GUE Os partidos brasileiros s40 geradon formados me pre Do Selo do grupo governante Primordiaimente, no de Enccatna ey #uida, no Congressoe, por fim, dentro dos limes das chanee dec lider da UDN mincirasindignad cose representagao pols, ulgoes, que aqui alma" (4€D, 2 set. 1963) Der Adaucto Liio Cardoso gna com a “campaniha de deserve conn nica uh ae eos de Benin ass nse a Represenacio€ demacaci deta: elementos fundamen al es politicas, ou sea, pelos “notaiveis” da agremiacao [.] Assim, essa forma de estruturagao dos partidos afasia-se das bases sociais, ou melhor, @ representacao vaise distanciando dos representados [As forcas sociais fandamentais, inclusive as proprias bases partidarias, nao atuam na for dos partidos, talver com a inica exceed atual das comunidades sag? niais er ligagao com o Partido dos Trabalhadores (Arinos, 1982, p. 9. E, na medida em que os partidos det¢m 0 monopélio da repre- sentagio, € natural que o debate valorize seu estudo. Segundo Mari- Tena Chaui (1984), tivemos, do ponto de vista da representacao, trés tipos de partidos politicos no Brasil: 1) 0 partido clientelista, no Gqual prevalece a representagao de estilo medieval e conservador; pre: dominam o “favor” e a exclusdo dos representados nas decisdes par- tidarias e potiticas globais; 2) 0 partido populista, no qual prevalece ‘a concepcaio mais progressista da representacdo (‘‘como razo, von- tade geral, verdade"), mas a relagdo com os membros é de tutela; 3) 0 partido de vanguarda, 0 mais complexo de todos, pois manifesta- Se, a0 mesmo tempo, como de tutela, de favor, pedagdgico € de “en: carnagdo da verdade”; considera 0 sujeito politico como agente de transformagao, mas o substitui pela vanguarda. Nessa mesma dire- gio, pesquisadores sobre participacdo e representagdo na América Latina (lelin e Calderon, 1987) questionam a representacdo formal via partidos, assim como a “vanguarda revoluciondria’”. Segundo cles, 0s partidos respondem mal — quando respondem — as novas demandas dos cidadaos (questdes relativas aos direitos humanos, as novas aspiragdes da classe operdria, das mulheres, de outros grupos sociais), mantendo-se “‘surdos””, fechados e hierarquizados, frente & pluralidade de identidades ou a heterogeneidade de interesses sociais. Outro ponto freqiientemente questionado, nas criticas @ repre- sentagio, diz respeito aquele “artificialismo das leis’” que, no caso, garante — em beneficio das oligarquias — a sdbre-representacao dos Estados menos desenvolvidos na Camara Federal. Em 1988, R. Faoro retomava antiga demincia ao afirmar que no processo representativo, ‘no qual nio é automaticamente conversivel a soberania popular, se fencontra um grao de infidelidade institucional com outro gro de infi- delidade social. Numa sociedade escandalosamente desigual, a represen tagio se falsifica antes de entrar nas urnas, permitindo que as institui- goes a deformem e degradem (p. 26) Nesse sentido, persiste um certo consenso entre os analistas em identificar, na representacdo distorcida, os males da representa- a0 proporcional, desde a Constituigdo de 1946, assim como a igual- dade de representagdo dos Estados para o Senado. © conjunto de criticas ao sistema representativo brasileiro, aqui brevemente lembrado, reforga os argumentos em favor da implementa- 32 _ A CIDADANIA ATIVA sao de mecanismos de democracia semidireta como complementos indis- pensdveis & representacao, Insisto, mais uma vez, em que este estudo nao discute a substituigo dos partidos e da representacao tradicional Por democracia direta — mas a sua complementaridade num regime de democracia semidireta, Pretendo, alias, discutir as causas dos ea vocos — muito freqtientes entre politicos ¢ analistas — sobre a hostili- dade entre os partidarios do sistema representativo puro e os defenso. res da democracia semidireta (ver, adiante, capitulos 3 e 4). © ponto de vista aqui adotado reconhece a necessidade imperiosa de se aperfel, foarem os mecanismos de representagdo — pela garantia das prerroga- tivas do Legislativo, pela reestruturagdo do sistema partidario, pela democratizacao da informagio e do controle sobre as campanhas eleito. rais, pela democratizagao da legislagao eleitoral — como condigao indis. pensavel para o desenvolvimento politico da nagao. Finalmente, parece-me oportuno registrar que a discussao sobre as insuficiéncias ¢ as falhas da representacao tradicional tem ocor. Fido mesmo nas sociedades “‘avangadas” que, de certa forma, distan Ciam-se das nossas conhecidas tradigdes oligarquicas e coronelistas, Em debate realizado na Alemanha, em 1987, sobre “a crise da demo. cracia representativa””, o inventario das “falhas”” — e de suas causes — foi elogiiente: * a deterioragéo da representacdo resulta da corrosio de referéncias morais ¢ ideol6gicas na definicao de direitos e deveres dos cidadios, * 4 representagao transforma-se em mera representacao de interesses ¢ a relacdo representante/representado em mera troca de servigos; * 2 dupla fealdade dos partidos — aos seus eleitores e simpatizantes, mas também aos poderes instituidos, em nome da estabilidade poli, tica — aumenta a distancia entre representante e representado; * & progressiva “‘instabilidade’* do eleitorado é enfrentada com recur- Sos nocivos de busca do “‘consenso passivo” pela propaganda do medo, do caos, dos perigos do terrorismo ou do desemprego, da inflagdo, do desastre ecoldgico etc. A manipulagao do “medo’” em {roca de ““protesiio" substitui ideologias ou programas partidarios: * os representantes nao tém a competéncia esperada (ou alardeada), hem para enfrentar os problemas importantes nem para represen far 0 grande nimero de seus eleitores; a ‘delegagaio em cascata'™ Perpetua essa situagdo (Kéchler, Monjardini e Charvin, 1987), Esses pontos serdo discutidos nos capitulos referentes a pole mica entre os partidarios do sistema de representado exclusivamente Parlamentar ¢ os defensores da incluso de mecanismos de democra 1 = Reprsnaso demoraia det: semen fadamenai 3 miirta. Cri, ademas, ave aera aca simarada coném Sspectos igualmente pertinentes para a andlise do caso brasileiro. area presento, a seguir, of insirumentos de democracia semidireta, ajo fente estado reerendo, plebscto ¢ inicatva popular. Dissit, preliminarmente, a falta de clareza na distingdo entre os termos Pree “plebiseto™,comumente percebidos como sindnimos. Situo, rere guida, os paises onde a experiencia de tas insitutos jase incor. or safutem alguns casos com sucesso ~~ ao sistema politico ro Referendo, plebiscito e iniciativa popular Os mesanismos insttuconais de demoercia semidireta, qu udados, so o referendo, o plebiscito e a iniciativa popula fecentemente inseridos na nova Constituigéo brasileira, tanto no A vigtcia deta instiuos, a0 lado de ees prides para o Executivo eo Leghlatv, configura um regime que autores euroneus ~ sobretudo suis ¢ franceses — denominam “demosraci seme: ta, Nos Estados Unidos, onde ¢ ean a prt de efetends iniciativas populares, fala-se em “legislagdo direta’” (direct legis ator © temo “inctva popular elatva”& autoexpisavo, Tat se do diretoassegurado a um conunto de edados dein 0 ro cst leilatv,o qual desenrol-s num orgdo etal, que € 0 Pari mento. As condises para 0 exerci dese dito — como tambérn su abrangncia quanto 2s femas reuse eltoral — vara acordo com os dispositives onstitucionais ; Mas apesar de oda fren ue expen pes one xistem dividas sobre o significado da expressio. Pryor iniciava popular legsatvaentendese sempre 0 memo mecaame, que inci um proceso de particinaio complexo, desde a labora de um texto (das simples mogics ao proj dei ou emenda constitucional formalmente articula votago de una posts, pasando peas vérasfases da campanha, cleta de asinat- fas e controle da consttucionalidade. © suceso de tis mecanismos ~ do ponto de visa da amplago da patcipasdo popular como res- posta 8 demands por "mais demoracia" — varia multe, de acordo com o enaizamento eutural da prética © com 0 nivel de democrat fo efetiva da informacio.Sosidades com expeiencis bem suced como a suga ¢ a americana, tém problemas e avaliacdes _ ACIDADANIA ATIVA, Essa questdo, com os desdobramentos da discussdo sobre o fun- cionamento dos institutos, sera aprofundada em outra parte deste estudo. Referendo e plebiscito: a ambigitidade semantica Em relagdo a referendo e plebiscito, o mesmo nao ocorre: per- sistem diividas e ambigilidades na utilizagdo dos termos, freqiiente- mente usados como sinénimos, Torna-se necessdrio, portanto, eluci- dar a confustio semantica ¢ apresentar, em seguida, a defini¢ao que adoto para os efeitos deste estudo. Cabe registrar, brevemente, as origens etimolégicas. Plebiscito vem do latim (plebis + scitum), e originariamente designava, na Roma antiga, a decisao soberana da plebe, expressa em votos. Mais tarde, o plebiscito tornar-se-ia uma simples formalidade para “legiti- mar’’ os cOnsules investidos de poder supremo — como Pompeu ¢ César — vindo dai a expresso “‘cesarismo plebiscitério”. Referendo vem de ad referendum ¢ origina-se da pratica, em certas localidades suigas, desde o século XV — como os cantées de Valais ¢ Grisons —, de consultas & populagdo para que se tornassem validas as vota- ses nas Assembléias cantonais. Com a difusio da pratica, “referen- do” passou a ser sindnimo de consulta popular. No sentido moderno, a idéia do referendo permanece associada 4 Revolugao Francesa ¢ aos debates entre os defensores da soberania popular, inspirada ein Rousseau, ¢ os partidarios da soberania nacio- nal — entendida como soberania parlamentar —, segundo a férmula de Sieyés. Hoje, apesar da indefinicao, tanto referendo quanto ple- biscito so entendidos como modos de expresso da opiniao ou da vontade dos cidadaios — em votacdo livre e secreta — sobre uma medida que foi ou poderd vir a ser adotada pelos poderes constitui: dos, no plano nacional ou local. A equivaléncia semantica dos termos extrapola 0 meio politico. Nao existe, de meu conhecimento, um razodvel consenso sobre a dis- tingdo entre os dois conceitos, sequer entre os juristas. No Brasil, Pontes de Miranda define 0 plebiscito como um insti- tuto de “poder constituinte” do povo, estabelecendo, com o referen- do, apenas uma distingdo entre o género e a espécie: “Ao povo dé-se ou mantém-se 0 poder constituinte: a) Em plebiscito, quer respondendo ‘a perguntas acerca de regras constitucionais propostas, quer propondo regras constitucionais. b) Em plebiscito (referendo) sobre 0 todo da Constituigao proposta ou jé em vigor” (1970, p. 127). Nelson de Souza Represenayio ¢democracia dea: elementos fandamentas 35 Sampaio ¢ José Afonso da Silva identificam o plebiscito com a demo- cracia direta (pelo qual 0 povo julga o regime ou uma pessoa, sem par- ticipacdo, em principio, de drgdos do Poder Publico); ja o referendo seria um ato de democracia semidireta, quando 0 povo participa do processo da formagao das leis. Paulo Bonavides considera que ambos so pronunciamentos populares sobre assuntos de importancia consti cional; mas, unindo os dois termos, define “referendo plebiscitario” como a manifestagdo que signifique julgamento ou arbitragem, distinto do mero “referendo consultivo” (1983, p. 342). Como se vé, inexiste consenso sobre os conceitos. No entanto, creio ser possivel afirmar que — sobretudo por influéncia de autores italianos — tende a predominar, entre nés, a idéia de que o referendo vincula-se a deliberacdo sobre ato prévio dos érgaos estatais, para ratificar ou rejeitar (lei ja em vigor ou pro- jeto de lei, projeto ou norma constitucional). O plebiscito seria uma ‘consulta ‘de cardter geral’’, ou pronunciamento popular sobre fatos ou eventos (e nao atos normativos) excepcionais € que, justamente por serem excepcionais — e nao “‘regulares’”, como para o referendo —, fogem a disciplina constitucional.!! Na verdade, a “‘excepcionalidade”” das questdes sobre as quais 0 povo deve ser ouvido nao ¢, necessariamente, 0 critério distintivo entre referendo e plebiscito — sobretudo porque, em alguns paises, 0 termo “plebiscito”” nunca é utilizado nos textos constitucionais ou nos debates politicos ¢ académicos. Norberto Bobbio, por exemplo, refere-se apenas a referendo — ¢ para questdes “‘excepcionais’, de principios, que ndo envolvam conflitos entre grupos de interesses (1983). A Constituicao espanhola consagra 0 uso de referendo para “‘decisoes politicas de especial transcendéncia’” (art. 92). As constitui ges suiga, francesa ¢ italiana, entre outras, prescrevem apenas 0 refe- rendo — seja para questdes “‘transcendentais” ou atos normativos de legislacdo ordindria. Nos Estados Unidos, a palavra “*plebiscito”” € praticamente inexistente. Por outro lado, plebiscito ¢ o termo usado no Uruguai e no Chile, com o sentido de “referendo”, Plebiscito tam- bém sempre foi o termo usado nos textos constitucionais brasileiros, a partir da Carta outorgada de 1937 — a qual nunca entrou em vigor, mas dispunha sobre quatro tipos de plebiscito. Sob esse aspecto, a Constituigdo brasileira de 1988 ¢ original — embora com texto que predispde a0 equivoco e as ambigitidades — pois admite tanto 0 referendo quanto o plebiscito. A primeira " Ver o verbete de Glidio Gemma no Diciondrio de politica organizado por N. Bobbio, 36 ACIDADANIA ATIVA constatagdo que se faz a partir dese novo texto constitucional diz respeito, justamente, a distingdo entre referendo e plebiscite Se-estao citados separadamente, ¢ porque ndo s4o sindnimos.'O artigo 49 ainda reforca a distingao, estabelecendo que, quanto ao referendo, cabe ao Congresso ‘‘autorizar", e quanto ao plebiscito, “convocar”” (quem autoriza nao convoca, quem convoca ndo autoriza, ou nada disso é importante?). Como se trata de matéria a ser regulamentada, € evidente que varios pontos serao especificados € a distingdo entre referendo ¢ plebiscito certamente surgira. Mas vale a pena iniciar algumas consideragdes sobre o tema Segundo as definigdes publicadas pelos jornais (e nao contesta- das por constituintes ¢/ou juristas), através do referendo a popula. G40 aprova ou rejeita um projeto que ja tenha sido aprovado pelo Legislativo; no plebiscito, a populagdo decide pelo voto uma determi- nada questao, Ora, se assim é, como denominar “‘plebiscito”’ a consulta pre- vista nas disposigdes transitérias sobre forma de governo ¢ tipo de regime, se estes jd foram consagrados na Constituigao como presiden- cialismo e repiiblica? Nao seria, ai, um caso de “referendo” para aprovar ou rejeitar um texto j4 promulgado? A questao pode pare- cer secundaria, mas serve para ilustrar a ambigiiidade e a subjetivi- dade em torno dos conceitos. No caso concreto desse plebiscito pre~ visto para 1993, € possivel que tenha predominado a tese de que se trata de “questo excepcional”’, revestida de “‘soleni € que, portanto, escaparia ao Ambito mais banal dos referendos. !2 A ambigiiidade no uso dos termos, alids, jd se manifestara por ocasiao do tinico plebiscito realizado no pais, em nivel nacional — © de janeiro de 1963. A emenda constitucional de 1961 referia-se a “*plebiscito”” ¢ “consulta plebiscitdria”’, mas a Lei Complementar n? 2, para reguld-la, substitui a expressdo “‘plebiscito” por “referen- do”. Alguns autores acreditam que tal substituigo foi motivada pelos receios doutrinarios de inspiragdo francesa (o horror ao plebiscito) discordam, pois, de Levi Carneiro, para quem, com 0 novo termo, quis-se ‘‘acentuar que se tratava de outra coisa, diferente da que cogi- tava 0 Ato Adicional” (Porto, 1989, p. 281) Enfim, a imprecisdo no uso dos termos, ao que parece, também decorre daquela distingdo acima mencionada: 0 plebiscito é um recurso % Ao que parece, nao estamos muito adiantados em relagao a0 patético senhor Rodrigues do conto de Artur de Azevedo: "Plebiscito...¢ uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comicios (~] Uma lei romana, pereeber? Equerem introduci la no Brasil! E mais um esirangeirisme!.." (Comas fora dtetmode rt: elementos fundamentals u adequado para casos excepcionais (como, por exemplo, mudanca de regime ou sistema de governo, prevista para 1993) o referendo para ‘“ratificar ou nao atos prévios dos poderes constituidos". Karl Loe- wenstein — razoavelmente lido no Brasil — desconfia dos recursos “plebiscitarios””, mas considera que o referendo serve como instru- mento de controle politico, para confirmar ou recusar uma decisdo politica anterior, do governo ou do Parlamento (1965, p. 328). Aquela distingio — presente, alids, nos diciondrios de lingua portuguesa — permite interpretacdes ¢ dlividas de varios tipos. Nao se trata de supervalorizar uma questo semantica ou as chamadas “tecnicalidades juridicas’”; mas, como a matéria hé de ser dilucidada, no Brasil, no nivel da legislagao complementar, vale a pena mencio- nar dois pontos que serdo aprofundados em capitulos especificos: +a identificacao do termo plebiscito com “apelo a0 povo””, recurso utilizado por regimes totalitarios ou autoritérios; © as diversas modalidades de referendo, que escapam & ri conceito “‘ratificar ou rejeitar atos dos poderes instituidos' Em relacdo ao primeiro ponto, a questao envolve ampla discus- sto baseada nos precedentes histéricos de varios autoritarismos. Os exemplos mais citados — além dos classicos plebiscitos a partir da Revolugao Francesa — sao os de Hitler, Franco, Ferdinando Marcos, Pinochet, entre outros. No Brasil, costuma-se identificar a ditadura do Estado Novo ¢ 0 “bonapartismo getulista” como uma das for- mas latino-americanas de ‘‘caudilhismo plebiscitario”.'? Por ora, parece-me suficiente lembrar os pontos principais do debate na Franga que, a meu ver, é 0 pais mais radical na explicita averso a0 plebiscito, como “‘degenerescéncia da democracia’” No meio politico ¢ juridico franeés, o plebiscito aparece como a deturpagao do referendo, assim como a demagogia ¢ a perversio da democracia. Pelo plebiscito, os eleitores se pronunciariam a favor ou contra um homem, ¢ no a favor ou contra uma proposta, um projeto, um problema. Maurice Duverger sintetiza 0 horror do francés & idéia do plebiscito: consiste em “‘confiar num homem", concedendo-the idez do 170 que tem sua razdo de ser. Pois 0 proprio jurista do regime, Francisco Campos, teoriza e justilica o Estado Novo como “a democracia em busca de César". Assim escreve, em O Estado Nacional: “O regime politico das massas 6 a ditadura, A tinica forma natural de expressio da vontade das. massas € 0 plebiscito, isto &, votoaclamacao, apelo, antes do que escolha Nao o voto democratico, expressao relativista e eética de preferéncia, de simpatia, do pode ser que sim pode ser que nao, mas a forma univoca, que nao admite alternativas, e que traduz a atitude da vontade mobilizada para a querra” (apud Facto, 1976, p. 703). 38 A.CIDADANIA ATIVA faculdades ilimitadas de poder, identificando ou harmonizando a causa do governante com os sentimentos e os interesses das classes populares (Duverger, 1970, ¢ Bonavides, 1983). Para Marcel Prélot, o plebiscito, ‘ou 0 “referendo imperfeito”’, representa a personalizagao monocratica do poder, o “cesarismo democratico" (1973, p. 520). E por isso que, para os franceses, 0 termo plebiscito tem conota- do pejorativa. Suas ressalvas decorrem da experiéncia histérica dos plebiscitos napolednicos de 1799 a 1870 (segundo um dos criticos, com tais plebiscitos, os franceses terminavam sempre por ratificar todas as leis que favoreciam a entrada do golpe de Estado nas instituigdes!), assim como dos ‘‘referendos plebiscitérios” convocados por De Gaulle, sobretudo em 1962 ¢ 1969. Percebe-se, portanto, que o que esta em causa, no exemplo francés, nao ¢ 0 mecanismo de consulta popular em si, mas a sua regulamentacdo e utilizagdo. Isto é, como o presidente da Repiiblica (ou 0 imperador) detém com exclusividade a iniciativa da convocacao e da autorizacao, acaba controlando 0 processo e esta- belecendo uma relacéo direta com 0 povo. O referendo torna-se uma arma nas maos do Executivo, que pode buscar a “‘cumplicidade”” do povo e ndo cumprir uma exigéncia da soberania popular. (Esta é, certa- ‘mente, uma das implicagdes mais polémicas sobre o tema, e que mere- cera ampla discussiio em outras partes deste estudo.) Em relacéo ao segundo ponto, trata-se de considerar, para futura regulamentagao, que existem varias situagdes nas quais cabe- ria uma consulta popular sem vinculacao com prévio ato dos pode- res constituidos. A experiéncia de paises europeus — como Franca, Italia, Suiga, paises escandinavos — e dos Estados Unidos fornece varios exemplos. Mas, para nos atermos a classificacdo mais corrente na doutrina juridica, basta lembrar que, além dos referendos convo- cados por érgaos do Estado (Legislative ou Executivo) e daqueles que se fundam em proposta popular, existe outro tipo de referendo. Trata-se do “‘referendo consultivo”, quando, ao contrario da defini- do anterior, a manifestacdo da vontade popular antecede a lei ou qualquer outro ato piiblico. No entanto, quando se fala em *‘consul- tivo" ndo se sabe se 0 resultado do referendo implica, obrigatoria- mente, alguma deliberacao no sentido de acatar a vontade do povo. A consulta popular sera vinculante ou meramente “opinativa’"? Essa questao recoloca a ambigilidade da distincao entre referendo e plebis. cito. O referendo consultivo seria identificado com o plebiscito, no sentido de se conhecer a “opinido do povo"”? Qual dos dois teria card ter vinculante? Ou nenhum teria? Em certos paises europeus, a idéia de plebiscito — e nao refe- rendo — permanece estreitamente ligada a questdes territoriais (des- 1 = Representasho ¢ democrasia dteta: elementos fundamentais 39 membramento ou anexagdo), com altissimos indices de participacdo. Em 1905, a Noruega separa-se da Suécia, apés plebiscito com 99,9% de votos favoraveis; 0 mesmo ocorreu em 1944, quando a Islandia separou-se da Dinamarca, e em 1967, quando Gibraltar preferiu man- ter-se unido a Inglaterra. No Direito Internacional Publico, alids, o termo plebiscito per- manece associado a idéia de soberania territorial e a0 principio do direito dos povos & autodeterminagao. Inclui consultas sobre trata~ dos bilaterais ou multilaterais, sobre atuacdo ¢ adesdo a organismos internacionais, assim como sobre tudo o que diz respeito aquelas ques- tes territoriais jé mencionadas: anexagao, secessio, fusdio, associa- so ou unio etc. E curioso notar, nao obstante, que o termo é pouco usado nos tratados, provavelmente devido a influéncia da diplomacia francesa. O artigo 88 do Tratado de Versalhes, de 28 de junho de 1919, por exemplo, fala em “consulta popular”, embora o anexo do mesmo artigo mencione a palavra “‘plebiscito””. Na hist6ria republicana brasileira, temos apenas um exemplo de plebiscito nacional: a consulta de 6 de janeiro de 1963, na qual © povo deveria se manifestar — através de voto “‘sim’” ou “nao” — sobre a permanéncia do sistema parlamentarista, instaurado em setembro de 1961 como solugao para a crise provocada pela remiincia do presidente Fanio Quadros. Votaram 11 milhdes € 500 mil eleitores (de um eleito- rado de 18 milhdes), ¢ 0 “nao” venceu com quase cinco vezes mais votos, tendo, como conseqiiéncia, a volta ao presidencialismo. Nesse caso, pode-se afirmar que houve, efetivamente, uma “consulta plebiscitaria’”” no sentido de estar em causa a aprova¢ao a ‘um nome e ndo a uma proposta. A imensa maioria dos votantes nao percebia a distingdo entre duas formas de governo e, na verdade, votou Ou contra “malores poderes” para o presidente Joao ‘Goulart, seguindo propaganda da forte alianga PSD-PTB (a favor do presidencialismo) e do bloco UDN-PL aliados, a favor do parla- mentarismo ¢ profundamente hostil a Goulart, trabalhismo, populismo e tudo o mais que a “heranga getulista’”” representava. ‘As constituigdes anteriores previam o plebiscito (consulta pré- via) apenas nos casos de alteragdo dos tertitorios, 0 que foi mantido na atual Carta. Existem varios exemplos de utilizagio desse tipo de plebiscito no plano municipal. Isso posto, torna-se necessario esclarecer, ainda que de forma preliminar, 0 que entendo por referendo e plebiscito. Trata-se de 40. ACIDADANIA ATIVA uma definigdo estipulativa, para os efeitos da argumentagao aqui desenvolvida, € que independe, portanto, da discussao — a ser reali- zada em outra parte desta pesquisa — sobre o sentido de tais termos no novo texto constitucional brasileiro. © que distingue, a meu ver, referendo e plebiscito é a natureza da questo que motiva a consulta popular — se normas juridicas ou qualquer outro tipo de medida politica — e 0 momento de convoca- so. Quanto 4 natureza da questao em causa: 0 referendo concerne Uunicamente a normas legais ou constitucionais. J4 o plebiscito con- cerne a qualquer tipo de questdo de interesse puiblico, nao necessaria- mente de ordem normativa — inclusive politicas governamentais. Quanto ao momento da convocagao: 0 referendo é convocado sem. Dre apds a edigdo de atos normativos, seja para confirmar ou rejei tar normas legais ou constitucionais em vigor. O plebiscito, ao con- trério, significa, sempre, uma manifestagdo popular sobre medidas futuras — referentes ou nao a edigdo de normas juridicas, O plebiscito, nesse sentido, pode ser orgdnico — como aqueles relativos a criagdo de Estados e territérios; ctiagdo, incorporagao, fusdio e desmembramento de municipios, previstos na nova Constitui- 80 brasileira (artigo 18, 3° ¢ 42). O plebiscito pode versar, ainda, sobre questdes puramente politicas, como 0 rompimento ou reata- mento de relagdes diplomaticas, a participacao do pais em organiza- 96es ou tratados internacionais e a concessao de anistia, entre outras. De acordo com essa distingdo, a consulta popular sobre a entrada da Espanha na Otan (1986) foi plebiscito, e ndo um referendo, assim como foram plebiscitos as consultas convocadas por De Gaulle sobre a independéncia da Argélia, em 1961 ¢ 1962. O texto constitucional brasileiro sera discutido em outra parte, mas deve ser adiantado que os plebiscitos previstos para 1993, sobre tipo de regime e sistema de governo, so, a meu ver, referendos, pois implicam a confirmacdo ou rejeigdo de principios constitucio- nais em vigor. Séo igualmente plebiscitos, segundo a definigo que acaba de ser dada, 0s chamados “referendos consultivos”” — pelos quais as autoridades piiblicas convocam o povo a manifestar sua 0} nido sobre medidas governamentais a serem tomadas, ou politicas a serem implementadas (sobre o cabimento € a utilidade politica dessas consultas populares — de “opiniio”, de cardter nao-vinculante — tei pronunciar-me na discussdo do capitulo 6). Outro ponto que deve ficar claro refere-se a um pressuposto especifico para a realizagao de referendos nacionais — ou seja, 0 reconhecimento da unidade politica, 0 sentimento, partilhado por cada um, de que faz parte de um todo. A lei da maioria supde um |= Repeesenacio ¢democrava dict: elementos fundamentais 4 agregado, maioria ¢ minoria dele fazem igualmente parte. No plano internacional ¢ diferente, pois trata, justamente, de testes para o apa- recimento ou ndo de novas unidades politicas. No plano municipal a Constituigdo brasileira prevé plebiscitos que, a semelhanga dos casos internacionais, visam sancionar 0 aparecimento de novas unidades politicas, novos muniefpios. A experiéncia no mundo contemporaneo Os principais obstaculos a realizagao de um debate sério sobre as formas de democracia semidireta decorrem, a meu ver, do desint resse — ou desconhecimento puro e simples — sobre as experigncias bem-sucedidas no Ocidente. Refiro-me, especificamente, a referendo ¢ iniciativa popular legislativa, que sao praticas correntes, hoje, em varios paises, sobretudo nos Estados Unidos e na Suiga. Tais experién- cias merecem registro Logo apés a Primeira Guerra Mundial, varias constituigdes ado- taram o referendo: Alemanha (1919), Tehecoslovaquia, Espanha repu: blicana de 1931 e os /dnder alemaes. Mas a utilizacao feita por Hitler evou os constituintes, depois da Segunda Guerra Mundial, a toma- rem muitas precaugdes para evitar 0 uso do plebiscito que poderia favorecer ditaduras; & por isso que o referendo nao aparece na Carta alema de 1949. Atualmente, esta presente nos textos constitucionais da Australia, Canada, Espanha, Franga, Italia, Grécia, Suiga, Irlanda, Dinamarca, Finlandia, Luxemburgo, Paises Baixos e varios paises da Africa de expressao francesa. Nos Estados Unidos, 0 referendo estadual existe em quase todos 0s Estados, sendo encaminhadas cerca de 10 mil proposigdes por ano, a maioria no nivel local (proposigdes sao as propostas iniciadas que ndo desembocam necessariamente em referendo). Referendos tém sido realizados, apés decisio do Parlamento, em diversos paises europeus: Suécia (1954, 1957 e 1980), Dinamarca © Noruega (1972), Irlanda (1972), Austria (1978); e até mesmo na Inglaterra (1975 ¢ 1979), patria do parlamentarismo, na qual a sobera- nia pertence ao Parlamento, € ndo ao povo. O referendo € permitido na Constituicdo espanhola de 1978, sobre decisto do governo, apés acordo dos deputados (cf. artigos 62, 92, 149, 151 e 168). A Cons tuigdo portuguesa de 1976 referia-se apenas a “‘consultas directas as populagdes locais”, mas 0 novo texto, fruto de revisdo constitucional de 1989, inclui varios artigos sobre o referendo — provavelmente ins- pirados no exemplo espanhol, dada a semelhanca no uso dos termos € normas de implementacao (voltarei ao tema no capitulo 6). pa 42 ACIDADANIA ATIVA Na América do Sul, a participagdo popular na atividade legisla- tiva & pouco difundida; o sistema presidencialista & excessivamente centralizado e os Parlamentos tém um perfil reconhecidamente oligar- quico. Os exemplos mais evidentes do uso do referendo — que existe também no Equador — sao 0 do Chile ¢ do Uruguai. Neste pais ja foram realizados 12 plebiscitos, prética iniciada em 1917; la, uma lei pode ser submetida & aprova¢do popular desde que seja encaminhada & Suprema Corte Eleitoral uma petigo com assinatura de 25% do eleitorado (hoje, isso significa cerca de 550 mil eleitores); em 1989 foi realizado um referendo, por proposta popular, sobre a chamada “ei da caducidade”, referente & anistia aos militares ligados a dita- dura. A iniciativa popular, contréria a anistia, foi derrotada. Mas a intensa campanha entre os ‘‘verdes'’ (ndo) € 0s ‘‘amarelos”” (sim) consistiu, certamente, em importante mobilizagao democratica, sobre- tudo apés 0 periodo ditatorial. No Chile, 0 plebiscito de 1978, sob controle total, garantiu a ditadura de Pinochet; mas 0 segundo, de 5 de outubro de 1988, foi favoravel 4 oposigao democritica. ‘Na Franga, s6 nas 6? ¢ 7! legislaturas (1958-66) foram apresen- tadas 28 proposigdes de revisdo constitucional, incluindo proposta de referendo por iniciativa popular. Na Suica j4 foram realizados mais de 340 referendos no nivel federal. La, do nivel federal ao local, 0 direito de votar esta associado ao direito de assinar pedido de refe- rendo ou de iniciativa popular legislativa, configurando-se a co-ges- tao do Estado assegurada ao cidadao. Apenas trés cantdes praticam ainda a democracia direta, como os Landsgemeinde tradicionais: ‘Appenzell, Glaris e Unterwald. A iniciativa popular suica pode ser rigida para a revisdo constitucional, total ou parcial. No nivel local, sio muito freqiientes os referendos legislativos ¢ administrativos, a partir de iniciativas populares. Um exemplo de iniciativa popular, em 1980, que levou a novas disposigdes constitucionais, foi a consulta sobre a reurbanizagao do bairro de Grottes, em Genebra. Recente- mente (1989), um referendo sobre a extingdo das forcas armadas na confederagdo conseguiu um elevado nivel de participacao. Na Itélia, 0 referendo e a iniciativa popular legislativa esto previstos no texto constitucional de 1947 ¢ regulamentados em lei de 1970: admitem-se para revisdo total ou parcial da Constituicdo, para revogagao de lei ou decreto e, principalmente, para iniciativas visando & convocagao de referendos sobre leis ¢ regulamentagdes de cunho administrativo regional. O mais importante exemplo hist6rico € 0 referendo pré-constitucional de junho de 1946 (convocado pelo Conselho de Libertaco Nacional, formado por uma coligacdo de seis partidos antifascistas), quando a populacao foi consultada sobre 1 = Represetacto edemocraca dirt elementos fundamentais 43 a forma do regime — monarquia ou reptiblica — ¢ também elegeu seus representantes 4 Assembléia Constituinte. A Republica italiana nasceu desse referendo, com o voto de 54,34% dos eleitores. O segundo referendo nacional s6 foi realizado em 1974 (divércio); outras consul- tas nacionais, convocadas por iniciativa parlamentar ¢ popular, foram realizadas em 1978 ¢ 1981. Em 1987, 0 eleitor italiano foi convocado a se manifestar sobre politica nuclear ¢ sobre mudangas na lei que rege a magistratura — ambas as quest6es desencadearam ampla cam- panha popular e debate entre as correntes politicas e partidarias. referendo esta previsto na maioria das constituigées dos pz ses do leste europeu (URSS, RDA, Bulgaria, Hungria, lugoslivia ¢ Albania). No entanto, até a recente modificagao do regime politico, tal instrumento tem sido, praticamente, uma ficgéo juridica.'* A Constituigdo da Alemanha Oriental, por exemplo, previa até mesmo a iniciativa popular.'5 (Alids, a experiéncia histérica da esquerda alema é especialmente rica em termos de mecanismos de democracia semidireta no plano legislativo: estavam incluidos no programa de Eisenach para o PSD, em 1869; no Congreso de Gotha, de 1875 lusive para questdes de paz e guerra — e no programa dos socialistas Liebknecht e Bebel.) Finalmente, formas de democracia semidireta existem nos Esta- dos Unidos desde o século XIX no plano estadual, sobretudo na Cali- fornia e no Oregon. Na California — cujos exemplos serao lembrados em varias partes deste estudo, como os mais pertinentes aos tépicos em discussao —, a Constituicdo estadual prevé a iniciativa legislativa e também o veto popular (0 que, na Italia, confunde-se com o refe- rendo revocatério). A iniciativa popular existe em 26 Estados, além do Distrito de Colimbia, e em centenas de municipios. © mecanismo do recall (revogacao dos mandatos) existe em 15 Estados, 36 munici- pios e também em Washington, E embora os instrumentos de consulta popular permanegam restritos aos Estados ¢ municipios, a partir da 4.17 de margo de 1991, no contexto da perestroika liderada por Gorbachov, O eleitorado das 15 repablicas da URSS foi chamado as urnas para votar a seguinte questao: “Considera necessirio preservar a Unido das Republicas Sorialistas Sovicticas como uma federagso renovada de republicas igual mente soberanas nas quais os direitos humanos a liberdade dos povos de qualquer nacionalidade serao integralmente garantidos?". Seis republi cas recusaramse a convocar 0 referendo; quatro modifiearam os termos da questo e na Russia a consulta incluiu, além do tema central relativo & Tederacao, uma pergunta sobre a necessidade de eleigdo direta para presi: dente da Republica. A taxa de participagao foi elevada (80%) e 0 'sim” sobre fa manutengao da federagao foi vitoriose, sobretudo fora dos grandes cen tros urbanos, '5 Texto escrito antes da reunificagao alema, em outubro de 1990. 44. acu DADANIA ATIVA, década de 70 tem-se intensificado a campanha, tanto em meios liberais quanto conservadores, em favor da pratica no ambito nacional As experiéncias norte-americana ¢ suiga, pela regularidade plena integracao & vida politica democratica, serdo discutidas ao longo deste estudo. No entanto, esses dados ndo podem, ¢ claro, ser toma- dos literalmente para uma comparagdo absoluta com 0 caso brasileiro. Deve ser lembrado que, na Suica, a base da vida politica é efetiva- mente a comuna, mais do que 0 canto; nos Estados Unidos, os Esta- dos-membros ¢ os municipios so mais importantes para o interesse politico do cidadao. Isso explica, em parte, 0 eventual éxito das pro- postas de participagdo popular no nivel estadual c local, nesses paises. ‘Além do desconhecimento sobre essas experiéncias contempora- neas, 0 debate sobre democracia semidireta permanece prejudicado por outros equivocos, de natureza varia. E 0 que discuto em seguida. Democracia representativa e democracia direta: introdugao aos argumentos contrastantes Uma questo preliminar a ser esclarecida diz respeito a0 pré- prio entendimento do que seja falar, hoje, em democracia direta. Norberto Bobbio, por exemplo, chama a atengao para o fato de que inexistem, na atualidade, democracias exclusivamente parla- mentares — na medida em que formas de representagdo convivem com mecanismos de participagao direta dos cidadaos — e tampouco democracias diretas “‘puras”. Portanto, nao teria sentido falar em democracia direta como se fosse regime “realmente existente” — mas apenas em formas de democracia direta, ou, entéo, em meca- nismos de democracia direta, que nunca existem isoladamente. Den- tre tais formas, por exemplo, destacam-se os conselhos populares, ‘as assembléias, as experiéncias de autogestao. Os mecanismos podem existir na esfera administrativa, judiciaria ou legislativa — como 0 mandato imperativo, as agdes populares e os institutos aqui estudados. ‘A maior parte das questdes envolvidas na polémica democracia representativa versus democracia direta é mal posta, a meu ver, justa- mente porque traz implicita uma alternativa radical — ou uma ou outra — ¢ nao considera a possibilidade do sistema misto., Dai, insisto no pressuposto basico que orienta este estudo: trata-se da conviegao Le Renccsemagto democraca diet: elementos fundamentas 45 de que 0s mecanismos de democracia direta atuam como corretivos necessarios representagdo politica tradicional. Prefiro falar em democracia semidireta. Os equivocos ¢ ambigilidades, na discussdo politica e acadé- mica, so freqiientes e tendem a manter sob suspeigao ¢ desconfianga qualquer proposta concreta. Os equivocos podem ser de varios tipos. Em primeiro lugar, democracia direta ¢ entendida apenas como uma curiosidade histd- rica: a nostalgia da participagdo do cidadao na polis grega, 0 que configuraria ‘‘a democracia dos antigos”” — restrita a uma elite ¢ limi- tada ao espaco dos pequenos-Estados, retomada por Rousseau no século XVII. Em segundo lugar, democracia direta é situada apenas nos con- textos revolucionarios, quando, efetivamente, predomina sobre a representagio — como nos exemplos classicos da Revolugdo Fran- cesa, da Comuna de Paris e da Revolugo Russa Em terceiro lugar, democracia direta ¢ associada ao “‘cesarismo plebiscitério" — como no exemplo da Franga napolednica — ¢ as ditaduras modernas nazifascistas. Em quarto lugar, democracia direta é identificada exclusiva- mente com formas particulares e mais visiveis da participagao popu- lar (como assembléias ou conselhos); ou, entao, com a vigéncia de um instituto especifico, como por exemplo o mandato imperativo. Tais identificagdes so historicamente comprovaveis e, concei tualmente, os exemplos constituem formas de democracia direta. O equivoco reside tanto na metonimia — tomar um aspecto pelo todo — quanto no anacronismo — 0 transplante histérico, sem mediagdes, para a realidade contemporanea, Um dos objetivos deste estudo consiste, justamente, em sistemati- zar e argumentar em tomo das ambigilidades e equivocos comumente encontraveis na polémica — mesmo entre aqueles autores que, em prin- cipio, si favoraveis & efetiva ampliagio da participacéo popular. Nesse sentido, creio entender 0 que Francisco Weffort quer dizer quando escreve: “tomemos os riscos da democracia direta onde ela é tomada realmente a sério, ou seja, na historia da esquerda revoluciond- ria’? (1984, p. 125, grifos meus). Weffort discute 0 exemplo classico da supresséo da Assembiéia Constituinte pelos bolcheviques como um desvio autoritério, que acaba levando a uma verdadeira usurpacao do poder. Tem inteira razdo. O que me parece equivocado ¢ situar a expe- rigncia ‘‘séria”” de democracia direta apenas.na “hist6ria da esquerda revohicionéria’”’. Esse ensaio — Por que democracia? — objetiva um 46 ACIDADANIA ATIVA, didlogo-confronto entre democracia e socialismo, repudiando o totalita- rismo ¢ enfatizando as idéias revoluciondrias democraticas de Rosa Luxemburgo. A questo da democracia direta nao é central na discus- so, mas, mesmo assim, parece-me que o texto tem essa afirmacao, que pode se prestar a equivocos. Como, por exemplo, reforcar aquela visio que restringe democracia direta a revolugdo ¢ ignora experiéncias “sétias”” — e corriqueiras — de mecanismos de democracia direta em sociedades contempordneas, como a suica ¢ a americana. 16 Todas essas questdes serdo discutidas nos capitulos seguintes — das idéias contrastantes de Montesquieu e Rousseau até as diver- sas acepcdes da afirmagao de que ‘“o povo nao sabe votar””. Preten- do, aqui, sumariar os principais pontos da polémica como uma intro- duc ao tema “‘democracia direta versus democracia representativa”’. elenco de vantagens/desvantagens sobre as formas de demo- cracia direta reine t6picos mais "‘cldssicos”” € outros referentes as sociedades de massa contempordneas. Sao jgualmente discutidos por defensores e por adversarios da participacdo popular — em geral, 0 que os primeiros consideram “‘vantagens” sao, justamente, ‘‘desvan- tagens” para os outros. © que importa reafirmar, com a maior clareza, é que, em momento algum, encontram-se defensores de um regime de democracia ireta pura (& moda classica, ateniense, ou dos trés tinicos e microscd- picos cantdes suicos). Sao, porém, numerosos os defensores das vanta- gens da representacdo pura, temerosos de qualquer inovacdo que signi- fique a “‘intromiss4o do povo nos direitos inaliendveis dos representan- tes”. Ora, nao dispomos de nenhum advogado da democracia direta pura — como um regime politico em si. Portanto, ficam prejudicados aqueles argumentos que insistem em denunciar a anarquia, a “loucu- ra’” de se substituir a representa¢do parlamentar pela participacdo direta © absoluta, total. Dentincia, aliés, que peca pelo despautério, pois como isso seria possivel nas sociedades de massa contempordneas? Em breve resumo, as desvantagens da democracia direta, ‘comumente apontadas, sao as seguintes: * o enfraquecimento dos partidos (**pilares da democracia"), das lide- rangas politicas e do préprio Parlamento, o que pode prejudicar 0 regime democratico; 0 risco das “consultas plebiscitérias manipulacao do “‘apelo ao poo”; que levam a tirania pela "© Em texto posterior, mas sem a repercussio do primeiro, Weffort aponta as possibilidades de formas de democracia direta, sobretudo no nivel local, ‘em sentido analogo ao defendido nesta tese. Ver Weffort, 1986. 1 = Represenacio ¢democrasn diet: elementos fupdamentas 47 ‘a incapacidade do povo para atuar, com racionalidade e efi no proceso legislativo; * a provavel supremacia dos grupos de presséo, dos segmentos mais organizados ou do poder econémico, na conducao das campanhas eleitorais para referendo ou iniciativa popular; * a apatia do eleitorado, pressionado por tantos apelos de participa- ¢40, ou, em sentido contrario, a criagao do monstro leviata, ou * dadao total”; * a irracionalidade de procedimentos que, ao enfraquecerem as auto- ridades constituidas e diluirem as responsabilidades, implicam lenti- dao ou paralisia do processo de tomada de decisdes ¢ sua imple- mentagao. As vantagens da democracia direta, por outro lado, seriam assim sumarizadas: + enfrentamento positivo das maquinas partidérias e das “liderangas cristalizadas”, combatendo as tendéncias a oligarquizagao e ao auto- ritarismo das elites; ‘“rprocesso permanente de educagéo para a cidadania; 0 povo torna- se co-responsavel no destino da coisa publica; + desbloqueio do Legislativo, favorecendo medidas que, ou nao inte- ressam & maioria parlamentar, ou sd consideradas temas de ‘‘im- passe” s dé-se ao povo o direito de decidir questdes € problemas, para cuja solugao ele se sente mais preparado legitimado do que os repre- sentantes; * fortalecimento do regime democratico pelo processo constante de controle e cobranga dos atos emanados dos érgdos piiblicos (go- verno ¢ Parlamento); * fonte de recuperagao da legitimidade e/ou da estabilidade politica, no caso de questdes que podem dividir a sociedade; * forma de associacdo do cidadao a tarefa de transformacdo ou aper- feicoamento do Direito (no caso da intervencdo na esfera legisla- tiva e constitucional); * criagdo ¢ fortalecimento de novas liderancas politicas, fora das “oligarquias” instrumento para afericao da vontade popular, servindo para a expresso tanto de seus desagrados, quanto de suas aspiracdes: possibilidades de mobilizagio dos “‘apaticos”, das “‘maiorias silenciosas””. ncia, 48 Acibab ___Esses pontos serao retomados oportunamente. Toda a discus- sio, nos préximos capitulos, parte da convicgdo de que a oposicao tradicional entre representagio e democracia direta é um falso dilema, aprofundamento da polemic ‘vantagens"” e “desvantagens”” — sugere que nao existem, satisfatoriamente, solugdes excludentes ¢ ‘puras”. A orientacdo dessa pesquisa, insisto, consiste no reconheci- mento da necessaria complementaridade entre representagdo ¢ for- mas de participagdo direta __As idéias contrastantes de Montesquieu ¢ Rousseau esto na origem da polémica sobre democracia direta. capitulo. tema do préximo 2 NAS ORIGENS DA POLEMICA SOBRE DEMOCRACIA DIRETA: MONTESQUIEU E ROUSSEAU A bibliografia sobre democracia representativa versus demo- cracia direta é, sem duvida, io ampla quanto polémica. Pretende- Se, aqui, apenas registrar a inspiragdo cléssica mais pertinente a0 estudo em questo. ‘A polémica entre os defensores ¢ os adversirios da democracia direta comega, no Ocidente, no séeulo XVIII, com as duas figuras ‘maximas do pensamento politico de entio: Montesquieu e Rousseau! © primeiro é lembrado por sua discussio sobre as vantagens da repre sentagio nos grandes Estados, em oposigao & “demoeracia dos anti- gos", Rousseau, por sua vez, provoca reagdes contraditérias: &, a0 mesmo tempo, invocado pelos que sio a favor ¢ contra a participagdo popular. Os favoriveis apontam, em Rousseau, o defensor radical da foberania popular, contra a “fraude” da representagao. Os adversé- rlos, por sta vez, consideram a democracia direta uma utopia romanti- ca; apdiam-se na famosa passagem do Contrato social, quando Rous- Seau conclui que a democracia & o regime perfeito — mas para “um povo de deuses” (livro III, cap. 4). Ambos — defensores e adversérios da democracia direta — recorrem as célebres citagdes de Montesquieu © Rousseau, de uma forma que me parece parcialmente equivocada Eo que pretendo discutir — ainda que brevemente — a seguir T Restrinjo os “aspectos clissicos” da polémiza a Montesquieu ¢ Rousse por uma inspiragao também de gosto pessoal, B evidente que nao desconsi Sere a importincia de autores, igualmente chissicos, que discutem represen: fagdo — desde Hobbes ate Mars, passando por Locke, Stuart Mill, Benjamin Constant, Burke, Tocqueville 50. ACIDADANIA ATIVA, A contestacao feita por Montesquieu da sabedoria das institui- des de democracia direta apdia-se tanto em razdes de factibilidade quanto de utilidade. Pois afirma que: Como, em um Estado livre, todo homem presumivelmente possuidor de uma alma livre governa-se a si Proprio, € necessario que o povo detenha o Power Legislative. Mas von isto € impossivel nos grandes Estados e esta sujeito a muitos inconvenien tes nos pequenos, é preciso que o povo faga por meio de representantes ‘© que nao pode fazer diretamente (De Fesprit des lois, XI, 6) Esta passagem, muito lembrada por todos quantos se preocu- Pam exclusivamente com os méritos e vantagens da representagao Politica, deve ser compreendida no contexto das demais reflexdes de Montesquieu sobre o governo republicano e a natureza das leis numa democracia. Trés pontos devem, a meu ver, ser especificamente reto- ‘mados: a capacidade inegavel do povo para escolher seus representan- tes; a circunscri¢éo da vida politica aos limites locais, das comunas ou distritos; e a especial relacdo entre representantes ¢ representados, com a definigdo restrita do papel dos primeiros. A insisténcia de Montesquieu sobre a ‘“‘capacidade natural” do povo para eleger seus representantes nao deve ser subestimada, (Trata-se, inclusive, de um argumento apropriado para discutir, adiante, a tese corrente de que 0 povo nao deve ser consultado pois sequer “‘sabe’” escolher seus representantes.) E bem verdade que Montesquieu identificava, entre os “grandes vicios” das antigas repii- blicas, o direito de participagao dos cidadaos na decisdo de matérias para as quais eram totalmente “incapazes”. Os representantes tinham. @ grande vantagem de estarem aptos para “discutit os assuntos. O Povo é completamente incapaz para tanto, 0 que constitui um dos grandes inconvenientes da democracia”’ (ibidem, XI, 6). No entanto, para Montesquieu, esse mesmo povo seria perfeitamente capaz de escolher os ‘mais esclarecidos” como seus representantes; pois, para fazer uma boa escolha, é suficiente que 0 povo se oriente, com bom senso, “por aspectos que ele ndo pode ignorar ¢ fatos submetidos a0 senso comum [...] sobre os quais ele é mais capaz de se informar na praca puiblica que um monarca em seu paldcio™ (ibidem, Il, 2) Esse ponto esta intimamente vinculado ao segundo, na medida em que a **boa escola” dos representantes € propiciada pelas condi- ges de conhecimento piiblico em circunscrigdes eleitorais reduzidas. “Conhece-se muito melhor as necessidades da cidade em que se vive do que as das demais cidades; e julga-se muito melhor a capacidade de seus vizinhos do que a de outros compatriotas” (ibidem, XI, 6). Daf por que ele preconizava a eleicdo por distritos — “em cada loca- lidade mais importante os habitantes escolhem o seu representant — uma antecipagao da pratica eleitoral do século XIX. as origens da polemic sobre democraia drt: Montesquieu e Rousena 31 Quanto 20 terceiro ponto, creio ser indispensdvel acentuar que a questdo que se coloca, para Montesquieu, ¢ a necessidade de um corpo lesislativo para fezer as leis © para Socal zo cus, ara tomar qualquer ‘“decisio ativa, coisa qu ia, fem’ Assim, no eaberia em a0 povo ne a0 ue FEpreseManick © Poder Executivo. E mais: a relagdo entre o povo ¢ representantes 86 pode ser de cnfianca (““0 corpo legislativo, depositario da con- fianca do povo, e sendo mais esclarecido do que este”) ¢ de certa reciprocidade no sentido de que, sendo os representantes mais res- ponsaveis, ‘‘a parte que cles tém na legisla¢do deve pois ser propor- cional as outras vantagens que possuem no Estado: € 0 que vird a se passar se eles formarem um corpo que tenha o direito de discipli- nar as atividades do povo, assim como este tem o direito de discip! nar as suas’ (ibidem, XI, 6). © povo, portanto, tem também direitos sobre os representantes, aos quais nao delega toda a sua soberania: ‘0 povo ¢ admirvel para escolher aqueles a quem confia alguma parte da sua autoridade” (ibi- dem, Il, 2). ““Alguma parte” de sua autoridade; nao toda. Esse parece ser um aspecto pouco lembrado e que, de certa forma (embora Mon- tesquieu julgasse inconveniente 0 mandato imperativo, tal como se processava ainda, a sua época, nas Dietas da Alemanha), ameniza a oposigao radical entre Montesquieu e Rousseau. Para Rousseau, sem diivida, a idéia de representagdo do povo soberano era andtema: “A soberania nao. pode ser representada”” — dizia ele — “‘pela mesma razéo pela qual ela nao pode ser alie nada; consiste-essencialmente na vontade geral ¢ a vontade no se representa;‘é ela prépria, ou entdo ¢ outra; ndo ha meio termo. Os deputados do povo”” — conclu‘a — “nao so, porianto, e nem podem ser, seus representantes, nao sendo mais que seus comissarios; eles no podem concluir coisa alguma definitivamente"” (Du contrat social, UL, 15). Essa idéia de comissérios do povo, como se sabe, veio & tona durante a Revolugao Francesa ¢ depois na Revolugdo Russa, © que demonstra que 0 ideal da democracia direta surge com vigor 2 ACIDADANIA ATIVA em periodos revolucionarios.3 No entanto, a idéia de irrepresentativi dade do povo soberano estava ligada, no pensamento de Rousseau, 4 fungdo legislativa: ‘Toda a lei que 0 povo nao tenha ratificado em pessoa € nula; nao é de fato uma lei”’. Dai o famoso ataque a Constituigao inglesa e, indiretamente, ao seu exaltador, Montesquieu: “O povo inglés pensa ser livre, porém engana-se redondamente; nio o € sendo durante a eleigdo dos membros do Parlamento; uma vez eleitos, 0 povo torna-se escravo, nada mais é. Nos breves momentos de sua liberdade, a maneira pela qual a utiliza justifica a sua perda’’. Costuma-se pér na sombra o fato de que Rousseau admitia, sem hesi- tagdes, a representa¢do para o Governo, ou seja, para os membros do Poder Executivo: ‘Nao sendo a Lei sendo a declaragao da von- tade geral, esta claro que, no Poder Legislativo, o Povo nao possa ser representado: mas pode e deve sé-lo no Poder Executivo, que néo € sendo a forga aplicada a Lei" (ibidem, III, 15). A Revolugao Francesa, apesar da influéncia de Rousseau, enca- minhou-se, decididamente, aps os primeiros momentos de exaltacao, Popular, para o sistema de representagdo parlamentar exclusiva e, mais do que isso, de representacao abstrata da totalidade chamada Nagao. “Q principio de toda a soberania’’ — proclamou a Declara- sao dos Direitos do Homem.¢ do Cidadio de 1791 — “reside essen- cialmente na Nagao. Nenhum corpo e nenhuma autoridade pode exer- cer autoridade que dela nao emane explicitamente” (art. 3°). Mas a maneira de a nagdo expr » OU expressar, essa atribuicdo de pode- res ficou em suspenso. J na Comuna de Paris, no entanto, o sis- tema de delegagao plena aos “‘comissarios do povo" foi aplicado em toda a sua radicalidade,4 Para os revolucionarias mais yeementes na defesa da democra- cia direta — como Robespierre — a virtude do povo e a necessaria soberania popular seriam preservativos contra os vicios do governo ¢ da “pérfida trangililidade do despotismo representativo”’. Robes- > Como assinala Castoriadis, “A democracia direta tem sido redescoberta ou reinventada ni historia madera tod ver que unna coletividade politics ingressou num processo de autovontitugao radical e autoatiidade! mecee betas municipals durante a Revolugao Americana, segues durante-a Revol gio Francesa, a Comuna de Paris, ov Conselhos de Trabstisdores oe Sovietes, em sua forma original. Hannah Arend tem constantemente eafat ‘ado a importaneia destas formas, Et todos ests tasoa, © corpo sara 6 ftalidade ds interestados sempre que a Jeloasto incon on dele (1986, p. 71). re ° sess * Ver a elassicaanslise de Marx em A Guerra Civil na Franca Rownseau 53 Nas orgens da polémicn sobce democracia dite saiew pierre chega a falar em “‘tirania constitucional’’, na medida em que 2 Constituigdo poderia servir a regimes antipopulares e insiste no direito popular sobre os mandatos: “O povo & soberano: 0 governo é obra e propriedade suas, os funcionérios piiblicos so seus emprega- dos. O povo pode, quando o desejar, mudar seu governo e demitir seus mandatérios”” (Art. XIV de seu projeto de Declaragao de Dir: tos apresentado a Convengaio: Discours et Rapports @ la Convention). Nao restam duividas sobre a radicalidade dessa concepeao: governo como “obra” ¢ “*propriedade” do povo e mandato imperativo (este Ultimo permanece, ainda hoje, equivocadamente associado a siste- mas ‘“puros"” de democracia direta — inexistentes — ou a periodos revoluciondrios, apesar da existéncia do recall nos Estados Unidos). Tem certa razio K. Loewenstein, quando considera a Revolu- ¢4o Francesa como “uma luta entre as doutrinas plebiscitérias rous- Seaunianas ¢ 0 principio representativo de Montesquieu’ (1965, p. 180). A esquerda radical, de inspiracdo rousseauista, é derrotada pelos moderados, seguidores de Montesquieu e seduzidos pelo talento de Sieyés e Talleyrand, este responsavel pela “feliz” redagao do artigo VI da Declaragdo de 1789: ““A lei & a expressdo da vontade geral. Todos 0s cidadaos tém o direito de contribuir pessoalmente, ou por seus representantes, & sua formacao”’. Para Sieyés esta claro que a “vontade geral”” ndo é inerente a0 povo e somente os representantes podem formulé-la e exprimi-la adequadamente. Sua dist Estado representativo ¢ Estado democratico é, nesse sentido, transpa- rente: ‘‘Se os cidadios impusessem suas vontades, ndo se trataria mais de um Estado representativo, mas de um Estado democratico”” (Dire sur le veto royal, apud Burdeau, 1953, p. 143). Consagra-se o principio da soberania nacional, a qual, com a aboli¢ao da monarquia, 6 inteiramente transferida para a Assembléia, Fracassam as tentativas de se introduzir 0 referendo na Constituigo de 1791; a jacobina de 1793 permite um referendo moderado, o qual foi realizado (26/06/1793) em clima de terror e de voto a descoberto, com altfssimo nimero de abstengdes. Em resumo, prevalecem, em todas as constituigdes, © prinefpio da soberania nacional — indivi vel e inaliendvel — significando a encarnagao da totalidade dos cida- dos. No século XX, depois das duas guerras mundiais, a Constitui- ¢do francesa de 1946 integra a idéia de nagdo e pove — ‘‘a soberania nacional pertence ao povo francés” —, férmula mantida em 1958, «¢, atualmente, em vigor. E justamente a énfase na soberania nacional (e nao popular) que ensejaré a maioria das polémicas sobre representagao e exercicio 54. ACIDADANIA ATIVA, direto da democracia.5 Se a nagdo é representada pelo Parlamento, ale, e exclusivamente a ele, cabe a representacao politica. A sobera- nia parlamentar substitui, portanto, a soberania popular. ‘A polémica sobre Rousseau ¢ o significado da “‘vontade geral’” foi recentemente revista por F, K. Comparato: se a vontade geral é entendida como a expressdo verdadeira do querer coletivo (a0 contré- rio da “vontade de todos”, mero registro numérico, independentemente do critério da maioria), que diferenga haveria entre essa “‘vocagdo nat ral” para o bem comum e uma concepgao aristocratica do poder? E indaga: quem decidiria, em ultima instancia, sobre a ‘‘verdade verda- deira’” dos interesses refletidos nos resultados eleitorais? 0 pensamento de Rousseau, como se vé, acaba esvaziando © conceito de soberania popular de todo contesido realmente popular e, na verdade, preparou Oadvento da democracia burguesa muito mais do que geralmente se reconhece. Nao hi, no fundo, diferenca alguma entre essa concepsao ue atribui a soberania A vontade geral e a idéia que acabou prevale: endo, durante a Revolugio Francesa, da soberania da nacéo (Compa: rato, 1989, p. 66). A esse respeito, Bertrand de Jouvenel tem uma original interpre- taco do pensamento de Rousseau, quando discute a inspiracao do grande moralista. Assim, destaca como, além das trés acepedes — légica, juridica e teolégica —, Rousseau atribui a nordo de vontade geral uma acepedo que ¢ eminentemente moral. A “‘vontade de todos” tem valor juridico e é um fato politico, como soma das vontades parti- culares (Du contrat social, Livro Il, cap. 3). A ‘‘vontade geral”” é um fenémeno moral, que pode se opor vontade de todos. Esta ndo necessariamente boa, pois ‘todas as tolices de que um velhaco habil, um loquaz insinuante poderiam persuadir 0 povo de Paris ou de Lon- dres’” (ibidem, IV, 1) podem ai se incluir. J4 a vontade geral ““€ sem- pre justa e tende sempre a utilidade publica” (ibidem, II, 3). Essa distingo, sobre as diferentes naturezas das ‘‘duas’” vonta- des, é decisiva para excluir a possibilidade de que Rousseau, por ser defensor da democracia direta, também aceitaria os regimes totalita- ios. Na verdade, a énfase no conteido moral — o bem comum, a utilidade publica versus a simples soma de vontades — revela o pen- sador absolutamente contrério a todo regime no qual o povo se enxerga em um lider ou um partido como a encarnagdo da yontade popular. © mesmo vale para a oposigao a idéia da soberania nacio- 5 A Constituigdo da Bélgica, por exemplo, adota a expressio “soberania nacio- nal” ¢ essa formula tem sentido de justificativa a exclusao da democracia Uireta, pois, segundo os comentadores do texto constitucional, nagéo nao equivale a “assembléia do povo”, mas & uma construgdo juridica identifi cada no Parlamento (Delpéree, 1986) 2. Na orgens da polemics sobre democraca deca: Montesqui nal, supostamente presente numa assembléia que representaria, de forma microscépica, 0 macrocosmo social (Jouvenel, 1947). Portanto, é crucial deixar claro que essa acepco moral de Rous- seau sobre a vontade geral — se mantém a rejeigao da soberania par- lamentar — também impede que se descubra alguma inspiragao rous- seauista para os plebiscitos napolednicos ou na ditadura de um par- tido. Esse ponto de vista, aqui aceito, opde-se ao daqueles que ata- cam Rousseau como pai do totalitarismo moderno.® Ja em 1819, alids, em seu belo texto “De la liberté des anciens comparée a celle des modernes””, Benjamin Constant referia-se a Rousseau como “este nio sublime, a quem animava o amor mais puro pela liberdade, forneceu, entretanto, funestos pretextos para mais de um género de tirania”” (p. 503). E, finalmente, em contraposig4o ao indisfarcavel azedume de certa critica & democracia semidireta em nossos meios politicos e aca- démicos, vale a pena lembrar um dos tiltimos textos de Salinas For- tes a favor da mais ampla democratizacao da participagio popular. Depois de constatar o clima de “‘verdadeiro espectro povoando os pesadelos atuais do liberalismo politico brasileiro”, Salinas considera inaceitavel imputar a Rousseau qualquer “populismo demagégico”” associado & democracia direta. Pelo contrario, é nele, diferentemente de toda a tradigao liberal, que encontramos uma idéia de soberania do povoe de liberdade politica que ¢ 0 perfeito antidoto contra o populismo [xb havera liberdade se e somente quando todos os individues componen: {cs da comunidade se submeterem a leis que sejam a expressio da von tude livremente formulada de cada um (1986, p. 11). A polémica Montesquicu-Rousseau, assim como os possiveis des- dobramentos da questéo povo/nacdo, soberania nacional/soberania popular, tiveram, aqui, apenas um breve registro. A discussio histérica, com as experiéncias concretas — sobretudo na Franga — e os avatares do modelo, permitem ampliar ¢ especificar 0 escopo da questo. Discutirei, em seguida, a argumentagdo dos que entendem a representaco como um corretivo & democracia — definida como democracia “pura’” ou “plebiscitaria’’. © Um autor muito citado, por exemplo, come J. L. Talmon, identifica as ori gens do conceito de “democracia totalitaria” no pensamento de Rousseau que, “impregnado da antiguidade”, no podia prever que aquele tipo de sobe- Fania popular levaria ao totalitarismo (1952), 3 A REPRESENTACAO COMO CORRETIVO A DEMOCRACIA O pressuposto basico, que orienta este estudo, repousa na con- vicgao de que os institutos de democracia semidireta atuam como corretivos necessérios a representagao politica tradicional. Conseqiientemente, como jé foi antes destacado, em nenhum momento cogita-se de democracia direta “pura” — nem como expres- siio da ““democracia dos antigos" nem como exaltagao do fervor revo- luciondrio e, menos ainda, como o ideal politico de um Rousseau mal digerido. Nesse sentido, lembro que me refiro a mecanismos iso lados de democracia direta ou, entdo, harmonizando representagao ¢ participagao popular, & democracia semidireta Esse lembrete se justifica porque, na esteira da polémica Rous- seau-Montesquieu, soberania nacional/soberania popular, destaca-se uum bloco de argumentos que se unificam justamente pelo pressuposto contrétio. Ou seja: é a representagdo que corrige a democracia. N20 apenas como “imperative da razio”, mas também por questées de ordem pratica, essa corrente de pensamento enfatiza, em defesa de sua tese, que: a) a representagdo cortige os “desvios plebiscitarios” da democracia; b) a representagio disciplina a democracia, a qual em estado puro se torna revoluciondria ou andrquica; c) a representacio, através do Legislativo e dos partidos politics, corrige a tentagio da demagogia ou da oclocracia, degenerescéncias da democracia. O exercicio direto da democracia — afirmava E. Naville, comen- tando a reforma eleitoral francesa de 1871 — conduz, de fato, como ja hhaviam obscrvado Aristoteles e Cicero, a0 estabelecimento de uma dita dura ou de oligarquias demagogicas. A democracia parece ser, pois, simultaneamente inevitivel e impossivel: eis o problema. O sistema representative fornece a solugao (apud Burdeau, 1953, p, 406) 3.= A sopreentag como covtetivo 8 demecracia 37 E 0 que pretendo discutir, a partir dos seguintes topicos: #0 horror ao plebiscito; © a representacaio como ordem e estabilidade; # a hostilidade entre os partidos politicos e a participagdo popular. O horror ao plebiscito Trata-se de um argumento contra a democracia semidireta que tem nitidas raizes hist6ricas — justificando, por exemplo, a descon- fianga dos franceses —, mas também decorre de certas ambigilida- des na discussio do tema. Além das persistentes questdes de natu: reza doutrindria (ou ideolégica) sobre a oposicao entre soberania popular e soberania parlamentar, 0s equivocos tém aspectos seman- ticos, tecnicos e politicos. Do ponto de vista semantico, creio que a principal ambigii- dade consiste na dificil distingdo entre referendo e plebiscito. Pela tradigdo francesa, traumatizada com os plebiscitos napolednicos, 0 “plebiscito”” é sempre entendido como a degeneracao do referendo. Nao so mecanismos diferentes; um é a realizagao mérbida, ow sau- davel do outro. Na diivida do que pode prevalecer, boa parte dos juristas franceses prefere descartar 0 seu uso prevendo as mais funes- tas conseqiiéncias para o regime politico. A ambigttidade seméntica consiste na utilizagao da expresso ““democracia direta’” sempre vin- culada ao recurso plebiscitario — como se ela pudesse existir em estado puro, € nao no reconhecimento de que ha, apenas, instituros de democracia direta, cujo exercicio, na pratica, configura a demo- cracia semidireta, pois aliada a representacao tradicional. Do ponto de vista técnico, os equivocos se referem as formas de regulagdo dos referendos/plebiscitos. A critica apenas percebe a forma de convocagao e/ou autorizacdo pelo poder pessoal (presidente da repiiblica, rei, imperador), como se s6 existisse essa modalidade, ‘Além disso, identifica, nos mecanismos de consulta popular, um peri- 2050 jogo de “tudo ou nada”. Existem, é claro, formas menos rigi- das de colocar a questo. Do ponto de vista politico, o principal equivoco consiste em congelar, para a pritica da democracia semidireta, a imagem histo- rica dos plebiscitos imperiais e ditatoriais. A critica obscurece a rea- lidade contemporanea de regimes democraticos com sistemas basea- dos na participacdo popular direta, como os Estados Unidos ¢ pai- ses da Europa Ocidental. Assim, insiste na aproximagao entre demo- 58 ACIDADANIA ATIVA democracia direta e totalitarismo, quer na lembranga da Revolugao Francesa ¢ da experiéncia napolednica, quer na critica a Revolugao Russa e a experiéncia dos sovietes, chegando aos exemplos das dita- duras oriundas da Primeira Guerra Mundial (Italia, Alemanha) ou dos paises latino-americanos (0 Brasil do Estado Novo, 0 Chile de Pinochet). Ou seja: reunindo os trés tipos de equivocos, democracia direta passa a ser entendida no pior sentido da ‘democracia plebiscitaria’” Um exame desses trés tipos de equivocos serd feito ao longo desta pesquisa. As questdes pertinentes ao funcionamento concreto € & regulacao dos mecanismos (incluindo a iniciativa popular) serao discutidas nos capitulos 6 € 7. Aqui, neste t6pico, interessa-me dis- correr sobre 0 que denomino de horror ao plebiscito. Tomo o caso especifico da Franca, pois sua histéria de democra- cia direta — da Revolugdo a De Gaulle — parece-me exemplar para a discussio sobre os seus avatares. E nesse sentido que se compreendem tantas criticas, as quais sintetizo nas palavras de Bernard Chenot (grande defensor, no entanto, dos mecanismos de democracia direta): a historia da democracia direta na Franga ¢, sobretudo, a historia de um vazio. ‘Aleumas tentativas no auge da Revolugao; algumas caricaturas e farsas nos dois Impérios; ¢ muitas ocasides perdidas, quando a logica demo: ceratica impunha a consulta ao povo. A Constituigao de 1958 consagra 6 relerendo legislativo, mas enquadra esse mecanismo, profundamente democratico, em estreitos limites e com procedimentos ambiguos.! Este “horror ao plebiscito’’, portanto, surgiu ¢ desenvolveu-se na Franga, onde os referendos foram desnaturados em consultas visando exclusivamente ao poder pessoal (Bonaparte ¢ Luis Napoledo) ou como teste do prestigio do presidente De Gaulle (V Repiblica). Em resumo, as criticas mais freqtientes apontam os seguintes aspec- tos do referendo “perverso””: 0 “apelo a0 povo””, no sentido totalitario, imperial, cesarista, demagogico; a chantagem com a ameaca do “‘caos”’; ou seja, a falta de alterna- tivas razodveis para a solugao submetida ao voto popular; a utiliza de Estado”; ‘+ a manipulagdo da adesdo irracional, ou imposta, a pessoa do lider, do chefe, do ditador. do referendo como “‘instrumento legal para 0 golpe ' Bernard Chenot, 1969, p. 36. Chenot foi professor de Direito em Paris, vice: presidente do Conselho do Estado e duas vezes ministro de De Gaulle, tivo & democracia _ 59 = A representagdo como Todos esses pontos esto presentes nos exemplos da Franca ¢ etizam a aversdo de historiadores, juristas e cientistas politicos ‘a0 que consideram uma ruptura total com a tradigdo representativa de Sieyés (embora Sieyés seja também lembrado — por aqueles que denunciam o cesarismo plebiscitario — por sua maxima: ‘‘a confianga deve vir de baixo, 0 poder sempre de cima”). Os referendos da época pré-napolednica e napolednica so cha- mados de “plebiscitos” ¢ foram realizados’ corti alilssima_taxa “de let apoio ao regime ¢ & pessoa do seu chefe: a aprovagéo da Constitui- G0 do ano VIII; a adogao do consulado vitalicio em 1802; a aprova- ‘40 da hereditariedade imperial em 1804; a aprovagtio do Ato Adicio- nal & Constituigdo do Império em 1815; a aprovacdo da proclamagao de Luis Napoledo, em 1851; o restabelecimento da dignidade impe- rial, em 1852; 0 apoio ao regime em maio de 1870 (sete vezes mais votos ‘'sim”); e 0 apoio ao Governo da Defesa Nacional, em Paris, novembro de 1870. Nao restam dividas de que, em todas essas ocasides, tenha ocor ido a utilizagdo totalitéria do instrumento. Nao apenas inexistia qualquer clima para a oposic¢ao, como a consulta significava, efetiva- mente, a delegacao da soberania a um chefe, 0 apoio incondicional a0 regime e as medidas politicas. E esta “‘delegacdo suprema’” que passou a ser a caracteristica essencial do cesarismo, definido por Bob- bio como aquela ‘forma de governo de um sé homem que nasce como efeito do desarranjo a que so levados inelutavelmente os governos populares: o jacobinismo gera Napoledo, o Grande, a revo- lugdo de 1848 gera Napoledo, o Pequeno”, identificada por Marx como “*bonapartismo” (1986, p. 161). ‘A “‘chantagem do caos”” era evidente; a doutrina imperial justi- ficadora dos ‘“apelos ao povo" feitos por Luis Napoledo enfatizava: “0 plebiscito é a economia de uma revolucdo”.? O golpe de 2 de dezembro de 1850 consolida, nos republicanos, a aversao ao plebis- cito. Todas as deniincias sobre 0 “plebiscito cesarista”” se repetem contra o “plebiscito constituinte’’. Para os republicanos, o plebiscito era o proprio simulacro da responsabilidade politica — pois se 0 impe- rador proclamava 0 direito & hereditariedade, como conciliar heredi tariedade e responsabilidade? 2 Nem sempre, como entendia o principe Jéréme Bonaparte que, a1? de Setembro de 1869, declarava: “Eu nio aprovo o referendo, que nao tem senao a aparéncia de democracia. Que aberragao pedir por referendo mudangas & stituigao: se 0 povo disser sim, ¢ uma ilusdo; se disser nao, é uma revolt a0" (E. Jouve, 1977, p. 1049), 60. A CIDADANIA ATIVA E interessante destacar a oposicdo tedrica da esquerda da época — 05 socialistas — aos mecanismos de democracia direta. Ledru-Rol- lin condena a possibilidade de iniciativa popular legislativa como fator ‘de manipulacao e desordens’’. Louis Blanc — em seu panfleto de 1851, intitulado Plus de Girondins — declara que a democracia direta &, em esséncia, contra-revolucionéria, nefasta ¢ irrealista, pois seria impossivel “‘unificar as vontades de todos”. E, brava ¢ elegante- mente, defende o papel dos representantes: “Terao os fardis se tor nado indteis ao longo da estrada da humanidade em marcha?” (apud Denquin, 1976, p. 52). recurso & chantagem, como a ameaga do “‘caos”, na hipé- tese de um plebiscito desfavoravel ao poder, é visivel. A’ descricao feita por Victor Hugo do plebiscito de dezembro de 1851, em seu livro Napoléon le petit, & notavel; recria 0 clima de horror da alterna- tiva “ou eu ow a tragédia”, sentido pelo eleitor apavorado: M. Bona parte, como as lindas mestigas que fazer ressaltar sua beleza no meio de horriveis selvagens, presenteouse como concorrente nesta eleigao uum fantasma, uma viso, um socialismo de Nuremberg. com dentes € garras e uma brasa nos olhos, 0 ogro do Pequeno Polegar, © vampiro da Porte-Saint-Martin, a hidra de Terameno, a grande serpente marinha do. Constitutionnel que os acionistas graciosamente Ihe emprestaram, © dragio do Apocalipse, © bicho-papéo, a cuca, a mula-semeabesa, um espantalho. M, Bonaparte disse 20 eleitor assustado: a alterativa € isto ‘ou eu: escolha! (apud Denquin, 1976, p. 80). A idéia do exercicio direto do poder constituinte pelo povo, na reforma de 1870, parece um andtema para os republicanos. Gam- betta chega a considerd-lo “‘uma alienagdo da vontade das geracdes futuras”. Aceitam, no maximo, que haja uma consulta ao povo, mas contanto que caiba aos representantes propor e redigit as ques- tes a serem ratificadas pelos cidadaos. Jules Simon é implacavel com seus colegas parlamentares: “Dardo os senhores a0 povo o direito de discutir em nosso lugar? Os senhores ndo 0 querem, os senhores nao 0 podem”. Os republicanos identificavam, para a opinido piblica, © ideal da reptiblica com a pritica do sufrdgio universal — mas temiam a imaturidade do povo, associada, na época, a falta de instru- cao. Uma célebre litografia de Daumier tinha como legenda: “'Se- nhor Prefeito, o que é mesmo um bibiscito? — E uma palavra latina que significa sim’. Em 1878, é Clémenceau quem proclama, de forma taxativa: “0 voto direto do povo € contra a Republica’” (apud Den- quin, 1976, p. 78 et seqs.). “Devido a tais precedentes, a III Repiiblica manifestaré uma profunda averséo aos mecanismos de apelo ao povo. Mais tarde, o general De Gaulle contribuird para fazer renascer das cinzas o refe- Atepresenagdo como corrtvo & democracia 61 4 rendo — mas essa nova ilusio sera passageira”” (E. Jouve, 1977, p. 1049). Isso porque, novamente, os referendos da V Repiblica nao apenas foram exclusivamente convocados pelo general-presidente, como significaram, sem a menor dtivida, um voto de confianca na figura do chefe, no grande lider da ‘grandeur de la France”. A Cons- tituigao de 1958 consagra o referendo legislativo (artigos 11 € 89) ¢ territorial (art. 53). De Gaulle sempre os utilizou colocando seu man- dato em questo: em 1961, duas vezes em 1962 ¢ em 1969, Na semana anterior ao referendo de janeiro de 1961 — sobre a independéncia da Argélia — 0 general se dirigiu trés vezes a0 povo pelo radio con- clamando-o a adesdo rigorosamente pessoal: ‘‘Francesas, franceses, ‘és 0 sabeis, é a mim que ides responder... Na verdade — quem nao fo sabe? — a questao ¢ entre cada um de vés, cada um de vés ¢ eu"? (Discours et messages, t- 3, p- 275). Na verdade, a decisio popular colocada desta forma pessoal, exclusivista ¢ rigida — ou eu ou 0 caos — deixa de exprimir um poder decisério; torna-se, concretamente, um “direito de veto”. Em abril de 1969, 0 referendo sobre a criagdo de regides ¢ renovagaio do Senado € novamente colocado como um “voto de confianca’’, no apenas na proposta governamental, como no préprio presidente. O resultado — 40,9% de “nao” contra 37,1% de “sim” — teve como conseqiiéncia a reniincia de De Gaulle. Em relacdo reago da maioria dos franceses ao “‘apelo ao povo'” de De Gaulle, J.-P. Sartre ironizava: “comportam-se como ras & procura de um rei’”. E nesse sentido que se compreende a critica do jurista Burdeau & combinagdo nociva da demagogia com a imaturi- ‘dade do povo, presentes no risco da ‘'seduea0" das liderangas: & neces sdrlo afastar as massas de um contacto muito freqliente com as persona: lidades poderosas, sob pena de a magia de um olhar — a exemple da barha de Boulanger — conseguir dissimular a medioeridade de uma dou: trina, O regime parlamentar vive dos partidos, porque o partido, ao supri- mir o individuo, faz aparecer tao-somente a ideia, Ora, impor-The um homem ¢ foryar sua natureza (apud Denquin, 1976, p. 114). Burdeau assim escreveu em 1932 — portanto, bem antes da ‘‘ma- gia do olhar’? e da personalidade poderosa de De Gaulle. Mas nao resta diivida que se trata da mesma questio — a “delegagdo supre- ma” da soberania a um homem — e Burdeau tem razdo: este tipo de “sedugdo"” pode contaminar o resultado das conquistas populares. Esse panorama histérico torna compreensivel a desconfianga dos franceses, até hoje, em relagao ao referendo. Maurice Duverger, por exemplo, enfatiza a possibilidade, extremamente funesta para a democracia, das consultas resultarem em “plebiscitos da chantagem, 62 A.CIDADANIA ATIVA, uma vez que o voto negativo significaria 0 recurso ao abismo, a des- truigao daquilo que existe, sem substituigdo””. E conclui que é nor- mal que o presidente, eleito pelo povo, ponha seu mandato & disposi- a0 do povo (os americanos nao defendem o recall) — mas nao que ele use de pressdo moral para que 0 povo aprove a politica desejada do presidente (1970, p. 646). E claro que 0 ‘voto de confianga” pes- soal também existe na relacdo do primeiro-ministro com 0 Conselho € 0 corpo legislative; mas ai ndo se trata mais de uma questo no campo da soberania popular e sim no campo da soberania nacional, encarnada no Parlamento. O alcance da critica é, assim, limitado, ‘Os exemplos histéricos da Franga, com a “‘perversio” no uso das consultas populares, séo importantes, também, porque remetem em causa toda a discussdo sobre as raizes ¢ os avatares da democra- cia direta preconizada pelos jacobinos. Nao se trata de retomar as miltiplas — e sempre renovadas — polémicas sobre a Revolugéo Francesa, 0 que foge, evidentemente, aos limites deste estudo. Mas a evocacio revolucionaria — igualmente valida para os que pensam nna Revolugao Russa e nos sovietes — deve estar presente para, ainda ‘uma vez, reforcar o argumento favoravel & distingao entre “‘democra- cia direta”” e aqueles seus mecanismos, usados em complemento — e como corregdo —, a representacdo. Ou seja, discutem-se os proble- mas da democracia direta e os da democracia representativa para se chegar a anélise de sua complementaridade na democracia semidireta. os exemplos histéricos mencionados, cumpre acrescentar 0 impacto negativo da utilizagao de plebiscitos constitucionais ¢/ou ter- ritoriais por regimes autocraticos contempordneos. 0 plebiscito sobre a anexagao da Austria, convocado por Hitler em 1938, assim como os que “legitimaram”” as anexagdes dos paises balticos 4 URSS, em 1939, sdo bem conhecidos. E 0 plebiscito sobre a criagao da Republica Arabe Unida — pela fusdo de Egito e Siria em 1958, é um exemplo elogiiente do bonapartismo redivivo, até mesmo pela semelhanga na proporcdo dos votos. Estava em causa a fusdo e também a ascensio de Nasser ao cargo de chefe do novo Estado; nos dois paises, com taxas elevadissimas de analfabetismo, dos 7,5 milhdes de votos emitidos, apenas 286 foram contra a unido ¢ 730 contra a “‘elei¢ao" do grande chefe carismatico. O plebiscito imperial francés, de novembro de 1852, foi aprovado por 7 milhées e 800 mil “sim”, contra apenas 253 “‘ndo" — consagrando Napo- leo IIL ¢ a monarquia hereditaria. Tais unanimidades sdo, sem diivida, altamente suspeitas. Mais uma vez, no entanto, se coloca a necessidade de reconhecer, como 43. A tepresentag como corretvo democrasia 63 exemplos democraticos, apenas aquelas consultas que so realizadas fem contextos democraticos. O mesmo vale, aliés, para as cleigdes. Resultados frutos de fraude ou de manipulagéo ameacam a legitimi- dade das cleigdes ¢ dos eleitos — mas ndo servem, evidentemente, para se abolir o sufrégio universal ¢ os sistemas de rodizio no poder. © que se conclui, portanto, é que a maioria das eriticas ao refe: rendo decorre do ‘mau uso” feito pelos governantes — dai, o “‘des- vio plebiscitério””. O problema a ser considerado, na pratica, é a com- ipeténcia para a convocagio e a autorizacdo, que nao devem ser exclu- sivas do presidente ou chefe do Estado, além das garantias sobre a liberdade de informagéo e de escotha. O condenavel ¢ a vinculagao do resultado da consulta & pessoa do governante, numa falsa op¢ao entre a estabilidade e o “abismo”, ou numa decisio que signifique “aprovar’” ou “‘condenar”” 0 governante, ¢ nao a proposta em si. Duas precaugdes se impéem para a efetiva democratizacao do processo: ‘#0 desenrolar do processo de consultas populares deve estar clara- mente dissociado de um “voto de confianga" na pessoa do gover- nante; #0 texto a ser votado deve evitar toda possibilidade de ser entendido como uma escolha forgada do tipo “tudo ou nada" (questdo a ser retomada adiante). Finalmente, devo enfatizar aquilo que me parece Sbvio, mas néo menos importante: as experiéncias historias, remotas ou contem- pordneas, de referendos/plebiscitos utilizados em regimes totalitarios ‘ou autoritarios nao servem como argumento para desqualificar os institutos de consulta popular. Servem, apenas, para mostrar como se da uma fachada de “legitimidade’ aos regimes ¢, sobretudo, a pessoa do chefe. O que interessa ¢ observar ¢ discutir a aplicagao de tais mecanismos em regimes democraticos, onde supde-se a liberdade de expresso, de informagao, de discussio, ¢, portanto, de escotha real. A manipulagdo ¢ 0 controle total nas ditaduras tornam invidvel considerar seus referendos como “institutos democriticos"’! O plebis- cito cesarista faz parte de outra agenda politica e no deve contami nar 0 debate sobre a democracia. 20 que vale para “bons” ou “maus” resultados. O primeiro-ministro espa nnhol Felipe Gonzalez comemorou come vitoria pessoal o resultado do refe: tendo favordvel a entrada da Espanka na Otan, em 1986. 64. A.CIDADANIA ATIVA, A aversdo ao plebiscito, assim como sua identificago com a democracia “‘pura”, teve, como conseqiiéncia, a exaltacio do prin Pio representativo em nome do préprio ideal democratico. E a repre- sentagdo que “‘corrigiré” a democracia, A discussao baseia-se em pre- missa equivocada: a de que se defende democracia direta “pura”, como se isso fosse possivel. Mas, como as teses dai decorrentes — que enfatizam a representagao pela exigéncia de equilibrio, ordem € estabilidade dos sistemas politicos — s4o muito difundidas, mere- cem um registro especial. E 0 que discuto, a seguir. Representacao, ordem e estabilidade E certo que a representacdo atua, efetivamente, como corretivo democracia direta pura", no sentido revolucionario. Um exemplo histérico revelador deste efeito de corregio encon- tra-se jd na Roma antiga, com a criagdo do tribunato da plebe. O Senado Romano, sentindo que o fortalecimento politico da plebe levava ameaga de secessao (retirada ao Monte Aventino), engendrou uma formula de reintegré-la ao sistema politico, através da representagao. © tribuno da plebe tinha por fungdo constitucional defender os direi- tos préprios da plebe — e nao os comuns a toda a sociedade. Defen- dia-os de forma negativa, ou seja, nao tinha iniciativa de leis nem Podia voté-las. $6 podia veti-las; e o veto do tribuno da plebe era deci- sivo. Sua pessoa era sagrada e s6 ele podia expressar, em nome da plebe, a sua vontade. E justamente quando o carater sagrado desta ati- vidade politica deixou de ser respeitado, a Reptiblica Romana desmoro- nou, apés o ciclo de motins, golpes e guerras civis. Outro exemplo famoso — ja na histéria moderna — é o periodo da Revolugdo Gloriosa (1640-1688). O regime politico inglés s6 se esta- bilizou quando foi institucionalizada a soberania parlamentar contra as ameagas de anarquia e guerra civil. Somente os representantes el tos pelo povo, ¢ reunidos no Parlamento, poderiam exprimir uma vontade politica vinculante, Assim, pelo menos em sua concepedo inicial, 0 governo repre: sentativo permite a correcao da democracia, Uma vez admitida como tinico modo possivel de expressdio dai soberania do povo, a represen- tagdo é utilizada para conter a sua forga. Concilia o ideal da liber- dade politica com as condigdes de ordem e de estabilidade, “valores essenciais da burguesia, madrinha do sistema’’ (Burdeau, 1984, p. 138). =A repretentagio coma corrsivo & demacracia 65, E bem conhecida a posigdo dos te6ricos ingleses sobre este papel “moderador” ¢ “‘saudavel” da representacao. Em Governo representativo, Stuart Mill enfatiza a grande vantagem da representa- do como corretivo da democracia. Mas os argumentos mais freqiien- temente citados para exaltar 0 principio representativo encontram-se nos Federalist Papers, que G. Burdeau considera, adequadamente, a “biblia das instituigdes politicas americanas”.* E sempre lembrada a célebre definigao, de Madison, que entende a Repiiblica como 0 governo no qual, ao contrério da democracia, a representagao exis- te.5 As caracteristicas louvaveis da representagao — um corpo eleito de cidadaos que se distingue “pelo patriotismo e pelo amor a justi- a” —, afirmadas por Madison, tém sido, até hoje, apontadas como exemplo da dbvia e persistente superioridade intrinseca dos represen- tantes sobre 0 povo No entanto, costuma-se pér na sombra o desenvolvimento das ponderagdes de Madison. Logo em seguida ao elogio do governo representativo, o notavel publicista adverte para os riscos, também inerentes & representagdo. E bem verdade que Madison afirma que ‘a voz do piiblico, pronunciada pelos representantes do povo, ser mais conforme ao bem piiblico, do que pronunciada pelo préprio povo’’. Mas continua no mesmo parégrafo: ‘‘o efeito pode ser inver- tido. Homens de temperamento faccioso, de preconceitos locais ou com objetivos sinistros podem, por intriga, por corrupgio ou por ‘outros meios, primeiro conseguir 0 sufragio e entdo trair os interes- ses do povo"” (The Federalist Papers, p. 82). Registro, com a devida énfase, que nao encontrei essa citacdo completa em nenhum dos auto- res que a utilizaram — nas primeiras frases — para criticar os meca- nismos de democracia semidireta. E importante lembrar, igualmente, que quando Madison fala em democracia — por oposicéo a repiiblica — esta se referindo explicita mente a democracia ‘‘pura’”, ou a democracia dos antigos: “uma demo- cracia pura, pela qual entendo uma sociedade constituida de um pequeno niimero de cidadaos, que se retinem e administram 0 governo pessoal- ‘mente’. E em relagdo a esse tipo de governo que Madison identifica “es- ‘No preficio a edigo americana de 1961, Clinton Rossiter conclu: “a mensa: gem de The Federalist significa: nao ha felicidade sem liberdade, néo ha liberdade sem autogoverno, nao ha autogoverno sem constitucionalisme, nngo hd constitucionalismo sem moralidade — e nenhuma dessas imensas bbenesses sem estabilidade e sem ordem” (p. XVI). SE conhecida a analise feita por Robert Dahl da "“democracia madisoniana como um equilibrio bem-sucedido entre a jgualdade politica dos cidados ¢ a necessidade de limitar seu poder soberano (1956, p. 4 e passim). ACIDADANIA ATIVA, petéculos de turbuléncia ¢ descontentamento, sempre em incompatibi dade com a seguranga pessoal e 0s direitos & propriedade; e, em geral, 10 breves em suas vidas qudo violentos em suas mortes”” (1961, p. 81). ~ Bevidente, portanto, que a famosa critica dos pais fundado- res da nacao americana & democracia “pura” — governo das turbu- léncias, dos conflitos e das paixdes, ou 0 governo da assembléia permanente — nao pode ser aplicada as propostas da democracia semidireta contempordnea. Mas certamente contribui para que se entendam as origens da identificagdo entre governo representativo, ordem e estabilidade. Esses exemplos, que abrangem um periodo de mais de 20 séculos, ‘mostram como nao é possivel discutir a questo em termos maniqueis. tas, e meramente tedricos — mas, sim, estreitamente vinculados as ituagdes concretas. Nao hé respostas absolutas e abstratas. No caso brasileiro, com todos os vicios ja conhecidos da representacao oligar- quica, creio que os novos institutos de participacao popular podem, certamente, ser entendidos como corretivos a democracia representa- tiva, Justamente por isso que se defendem os mecanismos — aliados a representagaio — nao a democracia direta como sistema. A representasao €, sem diivida, fator de ordem e de estabili dade. Mas uma sociedade bem constituida nao é apenas ordem e esta- bilidade. E, também, justiga e eqitidade. Os mecanismos de participa- so popular revigoram as instituigdes representativas, jé anquilosa- das, empedernidas; fazem passar 0 sopro das aspiragdes populares, paralelamente — ou mesmo contra — & vontade ¢ “A consciéncia”* dos representantes. Nesta linha de “‘ordem e estabilidade”, aliés, pode-se, também, argumentar no sentido contrario. Os referendos (ou plebiscitos) podem servir, nesse caso, para superar conflitos que ameacem a estabilidade — do regime, do governo ou dos partidos. Para questdes que tendem a dividir radicalmente a sociedade, nao é razodvel, ou suficiente, dei- xar a decisdo exclusivamente nas maos dos representantes. A questo da monarquia belga, em 1950, a anistia aos militares comprometidos com a repressdo no Uruguai, em 1989, so exemplos lembrados. As consultas populares ai aparecem como “‘trampolim para se ultrapas- sarem os obstaculos dificeis”, com um papel “‘terapéutico e pedag- ico”. Na Franca, como o presidente De Gaulle “‘provocava tempes- tades, 0 referendo servia para acalmar as forgas destemperadas” (E. Jouve, 1977, p. 1050). E natural, no entanto, que o referendo nacional permanega asso- ciado a idéia de crise. Os exemplos franceses so evidentes — assim A representaso como coreetivo 8 democracia 6 brasileira de plebiscito nacional, em 1963, foi imposta como solucao para a posse do vice Joao Goulart, evi- tando-se um confronto armado. O que nao se pode aceitar € a afir- magdo, contumaz, de que as consultas populares tendem a ser utiliza- das para resolver crises institucionais, porém freqtientemente precipi- tam crises mais sérias. Trata-se do “‘argumento-catdstrofe’’, muito prestigiado entre os adeptos de teorias conspiratérias ou, simplesmente, pelos que temem a participacéo popular. Dirige-se, especialmente, contra as formas de referendo consideradas “‘plebiscitos”’, no sentido do sim ou nao a pessoa do governante ou ao regime. Voltou a ser lembrado pelos que temiam que 0 “‘ndo”’, vitorioso no ultimo plebiscito chi- eno (contra Pinochet), embora resultado da vontade popular, provo- casse um novo golpe contra préprio povo. © mesmo foi dito sobre uma provavel vitéria do referendo, no Uruguai, contra a anistia aos militares, envolvidos com a repressdo, Nao aconteceu nem uma coisa nem outra (1989). ‘Alguns autores costumam citar 0 perigo da utilizagdo do refe- rendo como instrumento de arbitragem entre os érgdos de poder, ‘em caso de conflitos graves. Lembram 0 exemplo da Constituigao de Weimar que, além da iniciativa e do veto popular, previa 0 uso do referendo em caso de desacordo entre o presidente da Republica ¢ 0 Legislativo sobre uma determinada lei. Em 1925, por ocasido da eleigao do marechal Hindenburg, monarquista ¢ reaciondrio, o rel rendo tornou-se uma “‘arma demagégica e plebiscitdria’” (Chante- bout, 1983, p. 228). Este exemplo nao vale, atualmente, para asso- ciat o referendo a provocacdo de crises mais sérias. Nos Estados Uni- dos e no Brasil — com sistemas presidencialistas — 08 conflitos entre 0s poderes so arbitrados pelas Cortes Supremas; ¢ na Alemanha de hoje, se 0 conflito surgir, sera resolvido pela Corte Constitucional de Karlsruhe. © argumento baseado no medo da “‘crise”” & do tipo daquele que, no Brasil, costuma ser utilizado para, em nome da “‘estabilidade”, defender 0 “voto medroso”” ¢ condenar candidaturas que, eventual- mente vitoriosas, poderiam “‘desestabilizar’” o regime e as instituigdes, Nesse sentido, matéria jornalistica sobre 0 plebiscito previsto para 1993 foi sintomatica; dizia a manchete: ““Medida levaria a impasse se em 89 Brizola for eleito””. Segundo o texto, “a primeira opcao dos seto- Fes mais conservadores poderd ser a antecipacao do plebiscito, 0 que criaria uma situacdo parecida com a de Jango em 1961 [...] O governo populista, parlamentarismo e plebiscito estariam assim de novo em pauta. O resultado dessa confusto acabou sendo, 25 anos atrés, 0 68 A CIDADANIA ATIVA movimento militar de 1964” (Folha de S. Paulo, 3 jun. 1988). A ameaga nao poderia estar mais explicita, igualmente, na entrevista con- cedida pelo senador Afonso Arinos ao Jornal da Constituinte: a0 defender a idéia de um referendo para aprovacao da nova Carta, aler- tou para o fato de que um “nao” — “‘como resultado emocional da conjuntura’’, afirma ao repérter — “‘seria uma coisa muito séria. Esse intervalo entre o resultado do ‘ndo’ € um novo texto [...] Hé muitos candidatos a ocuparem esse intervalo [...] Muito perigoso. Acho que um referendo deve ser feito com muito cuidado. Na Franca ocorreu isso. O referendo acabou com a Constituicao, simplesmente fizeram outra Constituinte. Aqui seria uma parada””. O repérter arremata: “Quem sabe uma parada militar de novo" (29 jun. 1987, drgdo ofi- cial da ANC). Brizola néo ganhou sequer no primeiro turno; mas 0 temor com a possivel vitéria de Luiz Indcio Lula da Silva tornou ainda mais forte a defesa do ‘‘voto medroso”, para impedir a mudanga. As eleigdes, portanto, e ndo apenas os mecanismos de democracia semidi- reta, podem inspirar aqueles temores. que se percebe, entdo, é que, segundo tais argumentos, a con- sulta popular s6 & desejavel quando se pode prever que o resultado serd favoravel a “‘estabilidade’” — ou seja, quando ndo muda nada. A discussdo sobre referendo/plebiscito passa a ser, nessas circunstn- cias, o entendimento da ‘“fachada de legitimidade” Observe-se, ainda, que tais argumentos ndo valem para a ampla gama de possibilidades abertas & realizagdo de referendos no plano estadual e municipal. Mais uma ver, trata-se de distinguir claramente entre referendo ¢ plebiscito ¢ discutir, para as leis complementares, © Ambito das competéncias e dos temas passiveis de consulta. Os franceses associam consultas populares, para o bem ou para © mal, & idéia de crise, como se fossem, sempre, produto ou solucao de conflitos institucionais. Como muitos defendem o seu uso exclusi- vamente para “momentos excepcionais” (“por que dividir inutil- mente os franceses?”’, indagam), o referendo na Franga acaba sen- do, efetivamente, sindnimo de crise. No entanto, essa idéia nao pre- valece nem nos Estados Unidos nem na Suica. O referendo suico, por exemplo, ndo tem ligagdo necessdria com crise institucional; pelo contrério, a sua elimina itagdo, é que seria premincio de crise, por contrariar os costumes politicos mais arraigados, Na Suica, os direitos de participagio popular contribuem, jus- tamente, para a estabilidade do sistema politico, ao qual conferem indiscutivel legitimidade. Do ponto de vista tebrico, esse sistema cor- responde ao ideal da soberania popular: legitima e controla 0 poder. 3-— Acrepresenasto como corretiva & demoeracia co Do ponto de vista pritico, favorece a abertura do sistema e 0 com- promisso politico entre as diversas forgas. Além disso, os suicos con- sideram mais “prético” (porque menos constrangedor) reclamar do governo do que do préprio povo, quando escolhe e delibera. A hostilidade entre os partidos ea participacao popular © principal argumento contra a democracia semidireta, do ponto de vista da ‘‘satide” das instituigdes, aponta o enfraquecimento dos partidos politicos e o esvaziamento do Poder Legislativo Em contraposi¢ao, os defensores da participagdo popular pon- deram que a grande vantagem de seus mecanismos — além de garan- tir a soberania popular — é corrigir a tendéncia oligdrquica dos par- tidos (a famosa “lei de bronze” de Michels) e 0 isolamento, muitas vezes irresponsavel, do Legislativo. Assim, ‘a iniciativa permite ao povo corrigir omissdes do governo ¢ do Parlamento; o referendo ps mite cortigir 0s erros cometidos pelo governo ¢ pelo Parlamento” (B. Chenot, 1969, p. 75). Em outros termos, pelo seu razoavel poder de pressaio sobre os parlamentares, os mecanismos de participacao popular provocam efeitos positivos, no sentido de correcdo daqueles vicios ‘*clissicos” da atuagao parlamentar: omissio, defesa de interesses corporativos dos proprios representantes ou de grupos privados, negligéncia, irres- ponsabilidade politica, renincia ao controle sobre 0 Executivo (e, no caso brasileiro, submissao ao poder militar), Em 1965, Karl Loewenstein chamava a atengao para 0 fato de ‘que, na Europa entre as duas grandes guerras — quando, com exce- do da Suica, ignoravam-se os mecanismos de democracia semidireta —, “o proceso de poder se converteu no monopélio das oligarquias dos partidos que dominam governo e 0 Parlamento" (p. 331). C. B. McPherson, em 1984, também denuncia 0 dominio do si partidario — no sentido de controlar a expresso das efetivas deman- das populares — mas aponta, igualmente, os males da burocracia € do poder financeiro na “industria da opinido publica”. E conclui que 0 crescente desencanto com a democracia indireta ¢ a crescente aspiragdo por democracia participativa “podem ser citados como evi- déncia de que o mercado politico cada vez mais deixa de registrar as aspiragdes concretas. © mesmo desencanto e desejo sugerem tam- bbém que as aspiragdes ora atendidas ndo sdo mais concretas que aque- las que deixam de sé-lo” (p. 62). 70. _A.CIDADANIA Os que temem o enfraquecimento dos partidos politicos tm razio de enfatizar que os mecanismos de democracia semidireta que- bram 0 monopélio partidério da expressdo da vontade popular. Mas esse €, justamente, o principal argumento utilizado pelo ilustre jurista Carré de Malberg para defender o referendo, 0 qual permite aos elei- tores superar os inconvenientes da tutela partidaria — “‘injustificavel € sufocante’’. A participagdo popular corrige aquela “‘incoeréncia suprema”’; 0s deputados, que, em teoria, representam a nacdo em sua permanéncia e unidade na realidade se conduzem como instru- mentos de grupos ¢ de interesses partidarios.® Nesse sentido, Carré de Malberg considera o referendo 0 complemento eficaz para a repre- sentagdo politica, contornando os males de um “parlamentarismo absoluto” e ainda servindo para equilibrar os poderes entre Execu- tivo e Legislativo e garantir a soberania popular. Os exemplos da Suiga e dos Estados Unidos, entre outros, confirmam Carré de Mal- berg. Mas, entre seus conterraneos, a desconfianca em relagao ao refe- rendo permaneceu — e muito influenciou a discussdo sobre o tema na Europa (sobretudo na Italia) € no Brasil Ainda uma vez, é 0 exemplo de De Gaulle 0 mais pertinente para ilustrar a hostilidade dos partidos politicos, na experiéncia con- temporanea, aos mecanismos de democracia semidireta. A introdu- 40 do referendo no direito piiblico francés, no governo provisério de 1945, foi considerada — pela maioria dos antigos partidos — um atentado contra a soberania parlamentar. Nao resta diivida que, para De Gaulle, 0 referendo seria util como corretivo das deformagdes, do principio representativo, causadas pela “‘autonomia excessiva” das Assembléias Legislativas na III Repiiblica — mas, sobretudo, como contrapeso ao dominio dos partidos sobre o eleitorado. Em suas memérias, alids, 0 general é explicito: Ora, como eu estava conveneido que soberania pertence ao povo tio logo ele se fexprima diretamente e no seu conjunto, nao admitia que ela pudesse set esfacelada entre os interesses diversos representados pelos partidos (Jeu institul o referendo, fiz decidir pelo povo que doravante sua apro vagio direta era necessaria para que uma Constituicao fosse valida e criei, destarte, o recurso democratico para fundar eu mesmo, um di, tama boa — em lugar e em substituigao @ ma que iria ser feita por ¢ para os partidos (De Gaulle, 1970, p. 10-2). E por isso que, durante as sessOes parlamentares de 1950 a 1954 — para modificagdes na Carta de 1946 —, todos os partidos © *Gom Carré de Malberg" — afirma J. M, Denguin — “uma reflexdo positiva sobre as virtualidades da democracia semidireta, particularmente suas viru des reguladoras, adguiriu credenciais de nobreza” (1976, p. 116) _A reptesentagto com cotsetivo & demosracia 1m entraram em acordo sobre a necessidade de se articular uma solida maioria parlamentar no sentido de evitar o referendo. No entanto, a majoria dos partidos acompanhou 0 voto do presidente nos referen- dos de setembro de 1958 e outubro de 1962; apenas os comunistas ¢ 0s dissidentes socialistas fizeram campanha pelo ‘ndo" em 1958. ‘Os homens de partido reagem mal a idéia da participacdo popu- lar porque temem, também, uma suposta (ou previsivel) ‘‘infidelida- de” do eleitorado. Consideram que certos resultados podem signifi- car a ‘‘desautorizagao” dos representantes. A hostilidade dos parlamentares ¢ dos partidos em relagdo as consultas populares decorre, portanto, do que eles entendem, recipro- camente, como a hostilidade do eleitorado — superficial ou mais pro- funda, mas sempre presente — ao sistema representativo. Um certo “antiparlamentarismo" que se estenderia aos partidos ¢ aos politicos, individualmente. Como dizia Thibaudet, em 1932, os partidos repu- diavam o referendo nao apenas como a evocagao insidiosa do regime plebiscitario, mas também “porque o referendo desconjunta os qua- dros, enfraquece as sociedades de pensamento, da mesma forma que a leitura direta da Biblia no século XVI enfraquecia a igreja catoli- ca” (apud Denquin, 1976, p. 304). O que se conclui, portanto, é que, na Franca, a hostilidade dos politicos e parlamentares volta-se contra a utilizacdo, feita pelo chefe, dos referendos como “‘apelo ao povo”’ — a relagdo direta, to temida pelos partidos —, j4 discutida no tépico sobre o “horror ao plebisci- to””. Assim, ndo esté efetivamente em causa 0 mecanismo em si, mas a sua instrumentalizagao fora de critérios democraticos — ou seja, sua imposigao global, sem prévia discuss4o com as forgas sociais afe- tadas, ou com o proprio Legislativo. ‘A reforma constitucional de outubro de 1962, por exemplo, € considerada por Georges Burdeau como uma “revisio plet exatamente porque o texto em questao foi logo submetido a ratifica- ¢ao popular, em referendo, sem que a representacao nacional se mani- festasse em nenhum momento da operacdo. 4J4 em 1870 o republicano Gambetta exigia, para um referendo democratico, as mesmas condigdes: “'serd preciso reconhecer, ao prego de confundir 0 plebiscito com o edito imperial, que os manda- térios do povo ¢ da Nacdo, regularmente cleitos, tm o direito exclu- sivo de redigir esta formula, de precisar as questdes ¢ de submeté-las, ratificagao do povo. Enquanto esta restituigéo nao for efetuada, © plebiscito ndo é sendo um engodo € uma armadilha”” (apud Den- quin, 1976, p. 83). n A-CIDADAMIA Trata-se, entdo, de considerar outra discussao, também ja lem- brada por ocasido da critica aos “plebiscitos””: a regulagao das con- sultas populares, com normas e procedimentos especificos. Tal regu- lagdo pode, sem chivida, modificar aqueles aspectos referentes & exclu- sividade da convocagao (pelo chefe), assim como os critérios de ava- liagéo das propostas pelo Legislativo. Mas ha outro aspecto nesta relagdo delicada entre os partidos € os mecanismos de democracia semidireta. Os politicos nao temem apenas a “‘imprevisibilidade”” ou “‘infidelidade” do eleitorado, que vota contra uma determinada proposta apoiada por partidos ou pelo Legislativo. Temem, também, perder a direcdo do proceso. Temem que “outros” (grupos de pressdo, sindicatos, associacdes, liderangas religiosas) manipulem 0 “seu” eleitorado. E claro que qualquer vota- 80 — manipulada ou ndo — pode chegar a esse resultado, conside- rado “‘infiel”” a representacdo. Mas, de que serviria um referendo 86 para confirmar — e legitimar — a decisdo parlamentar? Nesse caso, s6 valeria o referendo de aprovacdo? O risco pode e deve ser enfrentado. Em nome de que principio deveria ser evitado 0 risco — tanto de apresentar leis necessarias e sabidamente impopulares, quanto 0 de ser cobrado por ndo votar leis necessarias e populares? Alids, Giovanni Sartori tem um curioso argumento na critica ‘4 democracia semidireta. Ao considerar “‘com olho mais agudo o refe- rendo”, chega & conclusdo que tal mecanismo termina por dar res- postas significativas sobretudo nos casos nos quais elas ja so previs- tas e os legisladores sabem muito bem — mesmo sem referendo — qual € o sentimento popular (1962, p. 99). Ora, isso depende da defi- nigdo das prerrogativas de convocacao do referendo — e é justamente por “‘saberem muito bem o sentimento popular” que certos parla- mentares ndo desejam o referendo. E mesmo possivel que o eleitor seja mais décil — em termos de orientacao partidéria — a escolha de nomes do que & vota¢do em uma proposta concreta, muitas vezes alheia a clivagens partidérias. E nesse sentido que Carré de Malberg considera, a0 contrério dos adeptos da rigorosa orientacdo partidaria, que a soberania é recon- quistada pelo eleitor diante de questdes concretas e, supostamente, suprapartidarias: “*Ele ndo se reconhece mais, em presenga do texto legal submetido sua aprovacdo, como radical ou socialista, centro- direita ou centro-esquerda, liberal ou jacobino. Ele deixa de acompa- har cegamente seus lideres habituais” (E. Jouve, 1977, p. 1407). Este é 0 grande temor dos politicos e dos partidos: perder, even- tualmente, 0 seu papel de lideranga, de ‘chefs de file’”, como dizem 05 franceses. Temor compreensivel, alias; em 1978, durante a campa- 3. —A representa coma covretvo 8 emocracia 3 nha em defesa da iniciativa popular n° 13, na California, 0 slogan mais divulgado era: ““Mostre aos politicos quem é que manda” (‘‘Show the politicians who's the boss”; Bell, 1988, p. 110) No Brasil, 0 argumento da ‘‘perda de fungaio””, de ‘‘autorida- de” ou de ‘“diregao”’, dos partidos ¢ suas liderancas & provavelmen. te, aquele mais ‘‘sublimado” na discussdo entre parlamentares que se dizem democratas e “progressistas”” (pois como podem eles se opor a participagao popular?), porém explicitado por outros nao comprometidos com a idéia da soberania aliada 4 cidadania. Em outra parte deste texto comento a reacao, irritadissima, de certos constituintes brasileiros & simples proposta da apresentagao de emen- das populares em 1988 (mais ou menos como se dissessem: ‘mas querem tomar 0 meu lugar!” Na Italia, apesar do referendo histérico que instaurou a Repti- blica, é conhecida a ma vontade dos parlamentares, especialmente os comunistas. © Parlamento levou 23 anos para regulamentar o referendo estabelecido na Constituigdo de 1947, 0 que se deu gragas & forte influéncia de Mortati, que considerava efetivamente a soberania popu- lar como a esséncia da democracia, De qualquer modo, embora sabo- tado, 0 referendo nao perturbou a vida dos partidos italianos; pelo contrério, favoreceu a emergéncia do Partido Radical, que o utilizou para ter visibilidade publica durante as campanhas e crescer eleitoral- mente. Por outro lado, foi através do referendo que muitos italianos se manifestaram, por 43% dos votos, contra o financiamento piblico dos partidos politicos (Lei 195, de 09/04/1974 e referendo de junho de 1978), Apesar da absten¢ao eleitoral (a ‘‘apatia”” que preocupa Bob- bio), ilustres constitucionalistas consideram que ‘'s6 o referendo pode dar aos italianos 0 gosto da democracia’”, garantindo uma “luta con- tra as oligarquias partidérias to funestas quanto as de nascimento, do dinheiro, ou do poder de um homem. As consultas populares rom: em 0 isolamento entre o povo e os partidos, regenerando-os como efetivos canais da opiniao publica e animadores da democracia’”’.” Nos Estados Unidos, a situacdo é bem diversa: em 39 Estados © referendo é obrigatério, justamente para moderar o eventual favo- ritismo e parcialidade das assembléias em relacdo a certas decisdes, como a defini¢ao de capitais ou locais para sediarem érgdos piiblicos muito cobigados, como universidades. Na Sufca, 0s partidos convi- vem naturalmente com o referendo ¢ a iniciativa, deles se servindo muitas vezes com resultados favoraveis as posicdes partidarias. * Rossi, Montalbano e Cotta, apud Hofnung, 1983, p. 116, 74 ACIDADANIA ATIVA Um exemplo da Noruega & sempre lembrado: a fragil maioria (54%) contra a entrada do pais no Mercado Comum Europeu, no referendo de setembro de 1972, resultou na queda do governo socialista de T. Bratelli, que se considerou desautorizado por ter se comprome- tido fortemente a favor. O Partido Liberal e o Partido Socialista divi diram-se e cinco novos partidos surgiram. Mas — e isso ¢ importante — 08 socialistas voltam ao poder nas eleicdes seguintes, em 1973. Ou seja, houve um evidente respeito a soberania popular, um rema- nejamento partidario e — ao fim e ao cabo — os partidos reconquis- taram a confianga popular, tendo sido questionados apenas em um assunto especificamente suprapartidario. E inegavel que todos — ¢ a democracia — sairam vencedores. Mesmo nos casos de grande comogao politica, em conseqiiéncia do resultado de uma consulta popular, nao se pode afirmar que os partidos sempre percam. Em questdes especificamente suprapartidarias, os mecanismos da democracia semidireta evitam rupturas ou conflitos indesejaveis, ‘a0 deixarem a decisio final para os eleitores. Algumas questdes, que poderiam ‘‘estigmatizar”” partidos ou parlamentares, podem ser iden- tificadas — independentemente de serem ‘boas’ ou “mds”, do ponto de vista de valores “‘progressistas"” — com a vontade popular, liberando siglas e politicos. Entre tais questdes espinhosas destacam- se as de ordem moral — aborto, divércio, eutanésia, pena de morte, minorias sexuais, educagao religiosa — ou ligadas a temas que envol- vem sentimentos nacionais ou regionais — adesao a tratados, fusto ou divisdo territorial, certos direitos lingiiisticos ¢ culturais. Destacam- se, ainda, aquelas questdes igualmente suprapartidarias, como tudo © que se refere & ecologia e defesa do meio ambiente; ao sistema esco- lar ¢ universitério; as prerrogativas profissionais — como exigéncia de diplomas ou responsabilidade sobre erros médicos; ao controle sobre venda e porte de armas de fogo, entre outras.. ‘Acima de tudo, é evidente que questdes que afetam diretamente as fungées, atribuigées ¢ privilégios do Legislativo nao poderiam ser decididas pro domo sua. Como, por exemplo, a divisdo dos distritos eleitorais nos Estados Unidos (a polémica do reapportionment); o finan- ciamento piiblico dos partidos politicos, como na Itélia; a questo da unicameralidade, que sempre surge nos processos constituintes. No Bra- sil, a questdo da remunerago dos parlamentares e suas respectivas pen- sdes e “mordomias” certamente seria melhor tratada por iniciativa popular. O iinico partido que propés (PT), no Brasil, rever a legisla~ go pertinente, questionando os privilégios parlamentares, tem sofrido seriissimas restrigdes — e mesmo ameagas — nos meios politicos. 5A sepresentago coma covrlvo 8 democrasia 15 Outra vantagem partidéria da democracia semidireta ¢ 0 fato de que seus mecanismos podem ser utilizados por pequenos partidos, ou bloco de partidos, sem maioria suficiente no érgdo legislativo, a fim de fazer realizar uma reforma ou implementar certos pontos de seu programa, francamente aprovados pela opiniao publica. O refe- rendo efetivo, ou sua possibilidade, pode superar desacordos ¢/ou impasses. Isso favorece um novo tipo de negociacao entre os partidos. Na Suiga, por exemplo, 0 Partido Socialista, minoritario, é, atualmente, 0 que mais recorre ao referendo — é importante para “marcar posigao”” ¢ surgir com um perfil nitido de oposicao, frente a0 eventual rolo compressor da maioria (ai fala-se em “tirania da maioria?”) ¢ dos conclaves parlamentares. As iniciativas populares permitem aos pequenos partidos mobilizar um mimero de cidadaos muito superior ao de seus eleitores. Sao, igualmente, importantes vei- culos para a atuacdo dos eventuais dissidentes em cada partido. Um exemplo francés ilustra essa possibilidade: em 1977 o presi dente Mitterrand propés um referendo nacional que, na realidade, tinha por objetivo politico resolver os conflitos internos no Partido Socialist, dividido sobre a questao do armamento nuclear. Os comu- nistas — que tendem a desconfiar dos mecanismos de democracia semidireta ¢ defender a representagdo pura — se revoltaram contra a proposta, pois o referendo seria convocado em caso de vitéria da esquerda. Sem diivida, 0 desgosto do PCF tinha sua razdo de ser, mas 0 referendo “serviu’” para resolver um confflito partidario. O “desvio democratico”, como ja visto, est na atribui¢do exclusiva de convocacao e autorizacao do referendo aos poderes constituidos, no caso o presidente da Republica (esse €, certamente, um dos pro- blemas polémicos — e que seré discutido com vagar adiante). Deve ser lembrado, igualmente, que a perda do monopélio legis- lativo acaba sendo reforcada pelo maior poder de controle e de zagao dos partidos no Parlamento. A nova Constituigao brasileira reforcou, consideravelmente, o papel do Legislativo — em apreciagio, apresentacdo, aprovacdo, atribuicdes exclusivas, competéncias das comissdes, convocacao de ministros, auditorias ¢ inspegdes, até a acu- sagdo contra o presidente da Repiiblica —, 0 que ja levou alguns analis- tas a assinalarem a natureza semiparlamentarista da Carta de 1988. Deve ser lembrado, ainda, que a principal fungao dos partidos num regime democratico é, justamente, controlar 0 poder. Sio 6rga0s de representagdo, canalizacdo de demandas, expressiio de projetos para politicas piiblicas, aglutinacao e formacao da opinido publica, recrutamento © formagao de liderangas. A funcdo governativa dos 16 ACIDADANIA ATIVA, partidos, em regimes democraticos, supde 0 exercicio constante do controle ¢ da fiscalizacao. Na Suica 0 Legislativo e os partidos continuam com seu impor- tantissimo papel institucional, independentemente do sistema das cor sultas populares. E 0 Parlamento que delibera sobre tados os textos destinados sancao popular, quer apresentados por iniciativa legisla- tiva, quer por iniciativa de referendo. A comissao parlamentar decide sobre a validade formal ¢ constitucional (conformidade a constitui- do cantonal ou federal), havendo sempre recurso ao Tribunal Fede- ral. O Parlamento suigo pode, ademais, apresentar um contraprojeto a iniciativa popular, com amplo espaco para a atuacdo dos partidos ‘que, muitas vezes, ganham no voto popular. De qualquer modo, a partir da experiéncia jé bem consolidada na Sufca, est confirmada a hipétese sobre a maior independéncia do eleitor, frente aos partidos, nas questées sob consulta popular do que nas eleigdes de candidatos. As pesquisas revelam uma discre- pancia entre a proporgao de votos ‘‘sim’” ou ‘*ndo"” nas propostas ¢ a proporgao de votos nos candidatos que apoiaram ou rejeitaram as ‘mesmas, durante as campanhas. Tais pesquisas, evidentemente, sao realizadas quando consultas populares ¢ eleigdes ocorrem quase simul- taneamente. Na Franga, a maioria das pesquisas de opiniao revela, por outro lado, surpreendentes divergéncias entre as opinides dos cidadaos ¢ os programas dos partidos dos quais aqueles se declaram eleitores. O que significa, portanto, que s6 as eleicdes legislativas nao traduzem, eficazmente, a vontade politica do pais. Pesquisas semelhantes realizadas no Brasil demonstram, do mesmo modo, que ndo existe, necessariamente, uma identificagao entre os cleitores e simpatizantes de um partido — ou de um candi- dato em eleigdes majoritérias — e o programa partidario em causa.® O sufragio universal nas eleigdes, portanto, nao é suficiente para expri mir, com fidelidade, a vontade popular em todas as questdes para as quais se impde o reconhecimento da opiniao publica. Concluindo: o referendo nao € incompativel com a democracia representativa, nem com o papel dos partidos: é um complemento. “Eleicdes, traigdo!, gritavam os exaltados das barricadas. Nao, as eleigdes so a condigéo de um bom funcionamento da democracia. Condigao necesséria, porém nao suficiente” (B. Chenot, 1969, p. 18). Quanto as vantagens da legislacdo exclusivamente parlamentar sobre a participag4o popular, D. Magleby sugere uma questo, com Ver a pesquisa de Judith Muszynski sobre as eleigées para a prefeitura de So Paulo em 1988 nos Cadernos IDESP. 3 A represents como corretivo & democracia 7 a qual nao concordo, mas que nao deixa de ser original. Bem a0 estilo da rigorosa ‘‘contabilidade” nas pesquisas de opinido america- nas, pondera que nao se pode avaliar 0 grau de conhecimento do voto popular: os que sio radicalmente a favor ou contra uma deter- minada proposta tém 0 mesmo peso que aqueles que votam “sim” ‘ou “ndo"” com reservas, ou meramente por exclusdo da soluedo “*me- nos ruim”, J4 na atuacdo parlamentar, conclui, hé espaco para os politicos calcularem as gradagdes de opiniao e tomarem suas deci- sBes apés negociagao, avaliago — em nome da acomodacao, do equi- librio, da propria estabilidade do sistema politico, Ora, sem diivida, nos casos de votagdo em referendos e iniciati- vas populares, a alternativa é rigida. Nao se trata de pesquisa de opi- nido, na qual as respostas podem variar do “totalmente favoravel’* ao “totalmente desfavordvel”, passando pelos varios matizes dos “mais ou menos”. Mas, além dessa escolha fechada existir igual- mente em eleigdes de representantes (como no voto distrital em dois turnos), € bom lembrar a complexidade do proceso. O acesso for- mal a iniciativa popular e ao referendo j4 significa um tipo de con- trole, de avaliagdo das intengdes de voto. E altamente provavel — sobretudo nos sistemas politicos com voto facultative — que aque- les que nao tém opiniao formada, ¢ consideram importante a questao em votagao, se abstenham no inicio ou no fim do processo. Essa questdo, portanto, nao conta seriamente contra a partici- pagao popular, mas chama a aten¢do para um problema crucial — ‘0 da democratizagao da informagao, do debate piiblico o mais amplo possivel sobre as questdes em causa (tema a ser discutido adiante).. Do ponto de vista da eficdcia democratica, os mecanismos de democracia semidireta tém outra grande vantagem sobre a representa- go pura: servem de acicate, fustigando a inércia ou a desatengao do Legislative e dos partidos politicos sobre questes de interesse popular. A simples intengdo de detonar o proceso pelo povo pode, inclusive, encorajar os parlamentares a deliberarem sobre a matéria em causa ¢ legislarem, antecipando-se & iniciativa popular. Na Suiga, mesmo quando os referendos ¢ as iniciativas popula- res ndo logram chegar ao final do processo, ja tiveram 0 eleito posi- tivo de motivar 0 Legislativo. Propostas de iniciativa popular, mesmo derrotadas, se conseguem apoio acima de 40% dos votos, ensejam proposta dos parlamentares, sensiveis & opiniéo do eleitorado, Na Alemanha, a proposta popular de se convocar um referendo contra uma determinada legislagdo escolar (a “escola compreensiva coopera tiva””), em Nordrhein-Westfalen, foi aprovada por cerca de 30% dos B ACIDADANIA ATIVA, eleitores em 1978. A Dieta local decidiu antecipar-se ao resultado pro- vavel do referendo e revogou os artigos criticados na tal lei. Nos Estados Unidos, ¢ conhecido sucesso ‘‘antecipado”’ junto ao Legislative dos proponentes de iniciativas sobre questdes ecolégi- cas (sobretudo localizagao de testes nucleares) ¢ sobre direitos dos tra: balhadores rurais. Outro exemplo se refere 4 ‘‘ameaca”” de um novo esforco de mobilizacao popular apés uma derrota. Em 1982, a der- rota de uma iniciativa sobre depdsito de vasilhames de bebidas, na California, obrigou os grupos de interesse (engarrafadores e produto- res) a negociarem uma nova lei; que acabou passando em 1987. Nao restam diividas, a meu ver, de que a possibilidade de se consultar diretamente a populagdo aumenta a responsabilidade dos politicos. Mesmo na inexisténcia de qualquer tipo de ‘*mandato impe- rativo"’ (quando o parlamentar sabe que pode votar de acordo com sua consciéncia, e nao por delegacdo), a simples ameaca de resposta popular o leva a “prestar contas”” sobre suas decisdes. D. Magleby Teconhece que os parlamentares podem ser “‘sinceros””, porém “equi- vocados" sobre a vontade popular, e, assim, 0 mecanismo de partici pacdo funcionaria como a “gun behind the door’” (1984, p. 48), De um outro angulo, mas sob o mesmo prisma da responsabili dade, Renato Janine Ribeiro considera que, se por um lado o referendo poupa os partidos de tomarem posigao programatica sobre temas que go so estritamente politicos (aborto, divorcio, por exemplo), perm tindo que © povo os decida livremente, por outro ele faz com que os clei tores exijam mais de seus deputados, de quem cobrarao posigdes mais coincidentes com as suas (1987, p. 36) levantamento desses topicos referentes & alegada “‘incompati- bilidade’’ entre os partidos ¢ 0 Legislativo, de um lado, ¢ os mecanis- mos de democracia semidireta, de outro, confirma a necessidade da complementaridade entre representagao e participagdo popular. Nao tem razio, portanto, 0 respeitado constitucionalista francés Adhe- mar Eismein, quando afirma que a introducdo da democracia semidi reta ¢ inutil, perigosa e absurda. Iniitil, pois jé existem eleigdes. Peri- gosa, porque 0 povo é incompetente, facil de ser enganado, vulnera- vel as paixdes e as pressdes. Absurda, pois leva a realizacdo de um regime bastardo: 0 referendo desconsidera 0 governo representative sem ‘© suprimir. Que autoridade podem ter as Assembleias se as leis discuti das ¢ votadas por elas podem ser rechagadas, por capricho ou ignorsin- cia, pela propria maioria que as elegeu com base em um programa determinado? (apud Denquin, 1976, p. 113), A critica de Eismein parece-me interessante porque, de certa forma, sintetiza alguns elementos daqueles equivocos ou ambigiiida- 2A representgio como coretve & democracis 9 des ja apontados na discussdo da democracia semidireta. Em primeiro lugar, o conjunto de experiéncias bem-sucedidas tem revelado como 0s mecanismos de consulta popular ndo sdo inuteis, pois as eleicdes nao so suficientes. Em segundo lugar, ao atacar a existéncia de um possivel “regime bastardo”, a critica parte de um equivoco funda- mental: 0 de que existem regimes politicos ‘“puros”” (a Constituigao de 1958 criou, na Franca, um sistema de poder que combina elemen- tos do parlamentarismo e do presidencialismo. E um sistema ‘‘mis- to”, endo “*bastardo”). Em terceiro lugar, a questo dos programas partidarios: como ja visto, nos sistemas parlamentares contempora- eos tem prevalecido a personificacéo nas campanhas eleitorais. E verdade que, em tese, no caso de eleicdes partidarias com listas de candidatos, 0 povo deveria se manifestar a favor ou contra os pro- gramas dos partidos (questdes conjunturais e permanentes). Mas nao 0 que ocorre — até mesmo por desinteresse dos préprios partidos em discutir publicamente os pontos de seu programa. A critica de Eismein interessa-me, igualmente, porque, escrita em 1894, influenciou grande parte de juristas e politicos em um ponto que me parece fundamental: a crenea na incapacidade do povo para votar. O desdobramento dessa convicgdio, que persiste até hoje (€ inclusive no Brasil) em suas multiplas varidveis — da “‘ignordncia”” as “paixdes”, passando pelo “‘conservadorismo” € a “‘apatia”” do povo —, é 0 tema em discussao a seguir. 4 “0 POVO NAO SABE VOTAR” A polities fo, niciatment, a arte de impede ax pessoas de se ocuparem do que Ihes die respeit.Posteriormente, passon'a sera arte de compe liras pessoas a deeiditem sobre aguilo de que nada entender. Esta detinigao de Paul Valéry,! entre a ironia e o desencanto, ilustra uma certa concepedo da histéria politica, entendida como a passagem de um autoritarismo excludente para uma democracia nao menos “autoritéria” e, ainda por cima — pior dos males —, incom- petente. Parece ndo haver meio-termo — ou o “bom principe’, ou a “plebe ignara’’. Por trés dessa avaliagao, tipica dos “sentimentos”” de um certo conservadorismo elitista, identificam-se os varios mati- zes da convicgao de que a participasio popular & futile initil, pois afinal, 0 povo é, mesmo, politicamente incapaz. , © povo é incapaz, segundo tais crengas, porque, entre suas miltiplas caréncias, costuma-se destacar que: 0 povo é incompetente para votar em questes que “ndo pode entender”; é incoerente em suas opinides (quando as tem) e é, ainda, politicamente irresponsavel, nada Ihe sendo cobrado; *0 povo tende a votar de forma mais “conservadora” e, quando muito solicitado, torna-se “‘apatico"’ para a participacdo politica; +0 povo é mais vulnerdvel, do que seus representantes, &s presses do poder econémico ¢ dos grupos “‘superorganizados’ * 0 povo € dirigido pela “‘tirania da maioria”” e dominado pelas “*pai- xdes”” Todos esses pontos tém sido, a meu ver, exagerada e ideologi- camente dimensionados pelos entusiastas do sistema representative como forma exclusiva do regime democratico, Retomo, neste capi- "Paul Valery, Cahiers, tomo Il, cap. “Regards sur le monde actuel des partis Paris, Pléiade (apud J. Boulois, 1986, p. 48). ® 4. "0 poo nfo sabe vor” 81 tulo, 0s argumentos do libelo acusatério contra a participagdo popu- lar no exercicio do poder politico, para discuti-los um a um. O povo é incompetente, incoerente e irresponsavel ‘A crenga na incapacidade do povo para votar consiste, prova- velmente, na mais antiga ¢ mais banal dentre todas as raz6es secular- mente levantadas contra as praticas democriticas. No caso da democracia representativa, isso significa argiir que © povo é incompetente para escolher os “melhores” candidatos. No caso dos mecanismos de democracia semidireta, a conviegao & mais radical: 0 povo € incompetente para votar em referendos ou plebisci- tos ¢, mais ainda, para tomar iniciativas legislativas, porque € igno- rante, incoerente e politicamente irresponsdvel. Tudo isso é bastante conhecido. A histéria do sufrdgio univer sal, no Brasil e no mundo, revela a expansio da cidadania politica, com a crescente incorpora¢ao ao processo eleitoral de segmentos sociais até entio julgados totalmente incapazes para o exercicio do voto. Persiste, sempre, a suspeita sobre a soberania popular: na melhor das hipdteses, 0 povo “‘ainda nao esté preparado para a demo- cracia’”. No entanto, se tais suspeitas so levantadas para desacredi- tar a eficdcia da democracia semidireta, ninguém pensa, seriamente, ‘em abolir as eleigdes do sistema representativo. Ora, se 0 povo é considerado incapaz para votar em determina- das questées, por que nao o seria também para escolher seus repre~ sentantes, em tese mais capacitados? Montesquieu, é sabido, conside- ava que 0 povo tinha justamente 0 melhor juizo para escolher seus representantes. Muitos criticos da democracia semidireta, no entanto, sequer reconhecem ao povo eleitor esse discernimento. “Como supor’ — indaga Giovanni Sartori — ‘que quem com dificuldade sabe ele- ger — no sentido proprio de eleger, ou seja, escolher selecionando — saberia governar?""? Parece-me evidente que aqui se trata de um mal-entendido. A. participagiio do povo na atividade legislativa — por meio de consul- 2G, Sartori, 1962, p. 139. Nao pretendo aproximar os dois autores, ¢ evidente, mas nao deixa de ser verdade que, no extremo limite, esse tipo de divida Tembra as perpleridades daquela direita enragée que, com Charles Maurras, indagava a opiniao publica: "Por que os melhores devem ser eleitos pelos piores?” fapud Denquin, 1976, p. 21) a A CIDADANIA ATIVA, tas ¢ iniciativas — nao supée que os “‘ignorantes”” vao governar no lugar dos “‘sabios”; que os governados assumirao o lugar dos gover- nantes ¢, menos ainda, que 0 povo sera constantemente consultado sobre tudo. Este tiltimo ponto ¢ especialmente acentuado nas reflexdes de Norberto Bobbio sobre “‘o fetiche da democracia direta”. “‘Na medida em que as decis6es se tornam sempre mais técnicas e menos politicas, ndo fica restringida a area de competéncia do cidadao, e, conseqtiente- mente, sua soberania?"” (1983, p. 61). Bobbio esta preocupado, espe- cialmente, com as dificuldades e ‘‘os paradoxos’” da democracia moderna, com a viabilidade do socialismo e as possiveis alternativas. Sua discussio sobre as alternativas a democracia representativa baseia- se apenas na experiéncia italiana, 0 que significa — para os objetivos deste estudo — ignorar as importantes experigncias de democracia semi- direta na Suiga e nos Estados Unidos. Bobbio nao se refere, igualmente, 4s possibilidades da iniciativa popular legislativa — amplamente utili- zada naqueles dois paises ¢ ja vigente no Brasil. Sua reflexio sobre democracia direta inclui 0 referendo, a questo do mandato imper: tivo e, sobretudo, a participagio popular nas assembléias, experiéncia que considera traumatizante em seu pais Devido & inegdvel importncia da obra de Bobbio ¢ sua intensa Tepercussdo em nosso meio, creio que — tendo registrado que, para esse tema especifico seu pensamento é muito influenciado pela expe- rigncia italiana, a qual, sob varios aspectos, ¢ sui generis — vale a pena discutir seu argumento sobre aquela “‘incompeténcia”” Embora o liicido pensador italiano admita “‘a utilidade, a impor- tancia ea legitimidade democratica’” das consultas, acrescenta: nio se Ve, porém, como submeter a referendo tadas as questdes que. em socieda des sempre mais complexas, devem ser resolvidas através de delibers {goes coletivas [.. Pedir mais democracia significa pedir a extensao das decisies que competem aquele que, pelas condigoes objetivas do desen volvimento da sociedade moderna, se torna sempre mais incompetente: 0 gue ¢ valido sobretudo no setor da produgao — tanto nos paises le econo ‘mia capitalista como nos de economia socialista — a qualquer forma de controle popular, e que & aquele no qual se vence ou se perde 0 desatio, democritica.? E claro que Bobbio tem inteira raz4o quando observa que “as decisdes se tornam sempre mais técnicas e menos politicas’’. No entanto, a incompeténcia do cidadao como argumento para restrin- gir a democracia semidireta deve ser relativizada, assim como é Sbvio > Essa famosa polémica de Bobbio encontra-se em virios de seus textos. Ver nas tradugdes brasileiras, Qual socialismo?(p. 61-73) ¢ O futuro da democracia 4 = "0 pow ato sabe your” 83 que ninguém defende a idéia absurda de que “todos devem decidir tudo’’. Nao é apenas 0 povo — o conjunto do eleitorado — que se torna desqualificado, no mundo contemporaneo, para tomar as gran- des decisdes ptiblicas, devido ao fato de que tais decisées tornam-se sempre mais técnicas ¢ menos ‘‘politicas’’. Esse despreparo (incompe- ca’’ como requisito para o registro de candidatos. 4 A inegavel introdugao das consideragdes de ordem técnica no pro- técnicos — ou seja, os aspectos politicos no sentido mais amplo: huma- nitérios, de respeito as liberdades e direitos individuais. E justamente sobre essas questdes, que permanecem relevantes, por que razao dever- se-ia negar voz € voto ao principal interessado, que é 0 povo? A competéncia “‘técnica’”’ é essencialmente necessaria para pre- parar as decisdes ¢ depois implementa-las; ndo se pode exigir compe- téncia especifica do eleitorado sobre todas as questées de interesse coletivo. Os parlamentares também nao sio multicompetentes! A deciso politica — sobre prioridades ou objetivos, assim como a gpi- nido publica — diferencia-se da decisdo técnica, referente a eficdcia dos meios em relagao aos fins. Numa democracia representativa, as questdes politicas nao sao tomadas pelo: téenicos da administragao (“especialistas’’), mas pelo Parlamento, formado de ndo-especialistas. Alias, sobre este ponto especifico a andlise de Castoriadis sobre a oposig¢éo povo versus “‘especialistas’’ na pdlis grega parece-me nx idéia dominante de que existem “especialistas” em politica, isto reat eopeettintac: ti seauntce politic, erica ou""sabedoria’ for discutida a construgao adequada de muros ou navios, mas esctta rao qualquer um quando se tratar de questoes de politica (1986, p. 72) “Em 1955, editorial do jornal getulista de So Paulo (provavelmente escrito por Samuel Wainer) insotia na necessidade de ampla reform clitoral tim dos itens defendidos era justamente @ obvigatoriedade de diploma de curso secundario para o registro de candidates ~ 0 que nao configura, € claro, “eapuctague teenica™ Ultima Hla, 13 jun. 1988, 4 84 A CIDADANIA ATIVA Portanto, 0 que importa ¢ a ampla discussdo piblica sobre as eventuais vantagens ¢ desvantagens, sobre os recursos exigidos ¢ as consequéncias (politicas, econémicas, sociais e culturais) da proposta em questo. A difusao dos debates no Parlamento, ou outras instan- cias, deve ser obrigatéria nos meios de comunicagao de massa — deve estar prevista em lei complementar. A informagao, portanto, 0 pri- meiro paso para enfrentar a “‘incompeténcia” do povo. Esse tipo de discussio exige uma revisdo dos termos ¢ expres- sdes que costumam ser empregados de forma equivocada ou “ideols. gica’’. E importante que se distinga, no regime democratico, 0 aten- dimento 4 vontade do povo do atendimento aos interesses do povo. “Vontade do povo” néo pode ser literalmente atendida em todas as suas manifestagdes, pois, freqiientemente, existem sérios impedimen- tos técnicos. A legislagao é uma atividade técnica — ou seja, é 0 domi- nio, com arte ¢ habilidade, dos meios conducentes aos fins escolhi dos. Quando se fala que o regime democratico é aquele que submete © poder & vontade do povo — pelo menos no que tange ao exercicio do poder — é preciso separar os meios dos fins. Pelo jogo da delibe- ragdo majoritéria, compete ao povo escolher os fins, ou os objetivos 4 serem realizados. Mas nao compete a0 povo, em todas as circuns- tancias, decidir sobre as questes eminentemente técnicas, que envol- vern a definigio dos meios a serem empregados. Essa distingdo € oportuna para 0 caso brasileiro, pois a atual Constituigéo prevé que a iniciativa popular legislativa se expresse sob @ forma de projeto de lei. Uma evidente inadequagao quando se trata de matéria altamente técnica, cuja regulagdo pelo legislador exige grande competéncia especifica. E claro que a critica se estende ao préprio sistema legislativo tradicional. Dai porque a tendéneia mun- dial é a de se atribuir a0 Legislativo t4o-s6 a competéncia para a edi so de principios e normas gerais, deixando-se para o Executivo a tarefa de desenvolver e explicitar tais principios, © papel cotidiano do Legislativo, hoje, nao se esgota no estabele- cimento de normas, diretrizes, solucdes de problemas gerais e ndo-té nicos, como organizagao da familia, regime de propriedade, liberdade do exercicio profissional ou regulacao de impostos — matéria esta, alids, por onde comecou a prépria representagdo parlamentar. Hoje, intimeras questdes eminentemente técnicas so deliberadas no Legisla- tivo: 0 desenvolvimento nacional, politica energética, biotecnolégica, politica financeira, moeda e crédito, entre outras. © “representante da nacdo” ndo esta, evidentemente, habilitado a tudo decidir com conhecimento de causa. E nao serd para tais questées que se espera a Participagao popular, com projetos de lei prontos ¢ acabados. 4 "0_pove mio sabe vour 85 Creio, portanto, que, no plano nacional, os mecanismos de par- ticipagio popular podem e devem ser usados para exprimir a decisto do povo em questdes que envolvem os principios éticos, o controle ea garantia dos direitos fundamentais, assim como as finalidades de uma determinada politica econdmica. Para isso, 0 povo esta, pelo menos, téo habilitado quanto seus representantes, No plano regional e municipal, é claro que a populacdo pode ¢ deve discutir — com pormenores até sobre aspectos técnicos — questdes de interesse local. No plano nacional, 0 povo deve ser chamado a se pronunciar diretamente em questées de elevado inte esse ético, como anistia ou indulto de responsdveis por crimes polit cos ou contra a economia popular, ou, ainda, sobre a responsabili- dade de servidores puiblicos. No plano local, 0 povo esta capacitado para decidir, entre diversas opgdes, em questdes referentes & vida urbana e A prestacao de servigos ptiblicos. De qualquer forma, toda a reflexdio de Bobbio se encaminha para uma conclusdo que é, justamente, a premissa deste estudo: a complementaridade entre democracia direta e democracia representa tiva. Apesar de suas muitas ressalvas, reitera que “‘sdo dois sistemas que se podem integrar reciprocamente [...] as duas formas de demo- cracia so ambas necessérias mas néo so, em si mesmas, suficien- tes’ (1986, p. 52). O que importa ressaltar, ademais, é que Bobbio, apesar da énfase de suas criticas democracia direta (provavelmente devido ao peso de sua polémica com socialistas italianos), também assinala os pontos fracos do sistema representativo. A persisténcia das oligarquias, 0 corporativismo parlamentar, a falta de democracia interna nos partidos so tépicos agudamente lembrados em seu O futuro da democracia, ‘Uma leitura séria ¢ critica de Norberto Bobbio nao deveria, por tanto, servir de amparo para os que o celebram, hoje, como um novo “sjusfildsofo”” do liberalismo — e, em ricochete, proclamam a derrota do pensamento democratico mais radical, ou ‘‘de esquerda”’. Creio, com Bobbio, que ‘‘a democracia ¢ subversiva no sentido mais radical da palavra porque, onde chega, subverte a concepcao tradicional do poder — téo tradicional que chega a ser considerada natural —, segundo a qual o poder procede do alto para baixo" (1983, p. 64). Essa ressalva em relagdo a Bobbio parece-me necessaria ¢ opor- tuna. Sua critica ao ‘fetiche” da democracia direta (mesmo limi- tada a0 caso italiano) tem sido, a meu ver, apenas parcialmente inter- pretada. E — com raras excegdes — tem servido (assim como i acontecera com as teses de Sartori) para apoiar aqueles que descon- 86 - A CIDADANIA ATIVA, sideram, também no plano teérico, as possibilidades da democracia semidireta no Brasil. Vale a pena registrar, nesse sentido, a resposta de Valentino Gerratana famosa polémica sobre os artigos de Bobbio no jornal Mondoperaio, em 1975: Tenho a impressio de que devese a estas formas de democracia diveta ~ e com isto quere dizer todos os canals que Com seguem exercer uma pressao sobre as instituigdes representatives € os Srgios do Poder Executive — 0 fato da democracia ter podido sobrevi ver até hoje na Hidlia, assegurando um minimo de funcionamente para 08 proprios procedimentos democraticos.* Além dos pontos acima discutidos, outra diivida — ou advertén- cla — sobre a viabilidade desse tipo de participaco do povo brasi- leiro deve ser comentada. ‘Ao analisar o que chama, no Brasil atual, de “utopia participa- t6ria”” — “eticamente atraente em confronto com a cultura politica elitista’” — Bolivar Lamounier adverte para a seguinte questo “cru- cial”: “se serd estavel e consistente, no nivel macropolitico, 0 padrao de preferéncias sociais que eventualmente se manifeste por esta via” (1990, p. 148). A diivida — ou a suspeita — recai, se acertada a minha interpretagéo, sobre a capacidade do povo para manifestar- se de forma *‘coerente’’ (creio ser este o sentido do “consistente”) e de acordo com os padrdes conhecidos da estabilidade constitucional (0 que entendo pelo “nivel macropolitico”’).. A questo aponta para os reclamos da “‘racionalidade”” na agdo Politica. Nao existem ainda, em nosso pais, experiéncias concretas de participagao popular na esfera legislativa — referendo e iniciativa = & portanto, nao é possivel estabelecer-se qualquer critério de coe- Féncia, estabilidade ou racionalidade. Mas é possivel questionar os Pressupostos de estabilidade e racionalidade, O pressuposto da democracia consiste em reconhecer que a mani- festagdo da opiniao publica nao esta submetida a uma via de mao ‘nica — mas, ao contrario, supde escotha entre varias possibilidades , sobretudo, a reversao de escolhas ja feitas. Nao é por outra razao, de resto, que sempre se preconizou, no Ocidente — inclusive como parte da critica as praticas politicas das chamadas “democracias popu- lares"” —, 0 reconhecimento de dois principios: 0 do pluripartidarismo © 0 da possibilidade de alternancia no poder. Nesse sentido, o critério de estabilidade e de coeréncia pode significar a exigéncia de uma rigi- dez ¢ de um unitarismo nas manifestagdes populares, que so justa- ‘mente condenados nos regimes de democracia representativa, * Gerratana, 1979, p. 107. Agradego a Edson Nunes por me ter chamado a aten ‘Glo para esse artigo na coletdnea O marxisma eo Fstado, editada pela Grol 10 pote nfo sabe votar™ 87 Em outros termos: as manifestagdes populares, por meio de ple- biscito, referendo ou iniciativa legislativa ndo precisam ser — nem © devem — mais rigidas, mais estaveis ou mais coerentes do que as decisdes partidarias, por exemplo, nos governos parlamentares. No “nivel macropolitico”” — constitucional — as regras de mudanga so mais rigidas do que no sistema legislativo, ¢ isso vale tanto para a modificagdo, por via parlamentar, quanto para a mudanga da Cons- tituigdo por via referendaria, E as “bobagens”” que poderiam surgir da ignordincia popular? Em texto anterior, Lamounier aponta o perigo da participacao popu- lar “‘gerar certo grau de maluquice, de leviandade — as pessoas se retinem para apresentar projetos inexequiveis, para criar problemas” (2981, p. 115). Ora, esse risco existe também para a atividade legisla- tiva dos parlamentares. Aliés, 0 mesmo autor reconhece, em seguida, que nos Estados Unidos e na Europa Ocidental “‘os problemas que so levados a vota¢do por esses mecanismos sio cada vez mais rele- vantes” [...], admitindo que devem ser usados no Brasil, “desde que — e vou pedir desculpas por usar esta palavra — com algumas salva- guardas, para que ndo haja leviandade no proceso” (ibidem). Isso esta bem claro: nos paises com arraigada experiéncia, o proceso de participacdo popular é bastante complexo e controlado para coibir “leviandades” — o que nem sempre é possivel. De qualquer forma, parece-me pouco provavel que, no Brasil, surjam projetos de lei por iniciativa popular com questées mais fiteis do que as apresentadas — e aprovadas — em nossas casas legislativas, como ‘dia da tia’”” (Camara Municipal de So Paulo, em 1989), ou as infindaveis mudancas de nomes de rua e homenagens foleléricas.© Além das suspeitas sobre a “‘relevancia’” de questoes a serem propostas em iniciativa popular, costuma-se, ainda, temer que seja muito complicado apresentar um “*bom"” projeto, técnica e constitu- cionalmente. Ora, trata-se de um problema de regulacdo € de organizagao dos interessados. E claro que existem propostas populares ‘‘malfei- tas" (e, quando acontecem, nos Estados Unidos ou na Suiga, nao logram qualificagao para serem submetidas & eleigdo). Mas a mesma “Ei mai de 1950 cm ple xorg de reunion prlmentares pra conse diretrvesorganetartasy a Camara dos Deputadey dscutie aprove tm projet de let regulamentando "0 que ¢ presumto" — eo apresentadr do projeto ainda explicou que « fer “por amizade” aos donos de uma xrande empresa frigorifies, 88 A CIDADANIA ATIVA critica vale para os projetos parlamentares. Muitos legisladores tam- ‘bém discutem e votam “‘apressadamente’’, sem conhecer 0 que esto votando. E, de qualquer forma, os parlamentares tém muitas maté- rias para estudar e votar, enquanto os promotores de uma iniciativa popular dedicam-se apenas &s suas. Em muitos casos, a iniciativa € redigida por especialistas, apds proposta de um grupo organizado, Tudo isso dependera dos termos em que se regulamentaré a apresentacdo das propostas. © que importa, aqui, ¢ mostrar que a critica nao se aplica, com exclusividade, as formas de democracia semidireta, mas 4 propria atividade parlamentar. A temida incoeréncia ou instabilidade nas manifestacdes popula- res tem sido percebida, da mesma forma, pelo aspecto da irresponsa- bilidade politica. Isso significa, na critica as “‘contradigdes do voto popular”, reconhecer que elas acontecem porque o povo ¢ irresponsd- vel politicamente na medida em que nao precisa prestar contas a nin- guém, ao contrario dos governos e do Legislativo. Ora, 0 povo € poli- ticamente irresponsdvel para tudo — para votagio direta e para elei- ga0 de representantes. Por que tal argumento deveria valer s6 contra as formas de participagao direta? A irresponsabilidade, assim como a inconstancia ou incoeréncia da vontade popular, pode ocorrer, com grande visibilidade, por exem- plo, quando, no sistema parlamentar, a Camara ¢ dissolvida ¢ 0 povo elege outra radicalmente diferente. Qual seria o padrao de cons- tancia e coeréncia que se espera do eleitorado nas eleigées? ‘A questo primeira remete, novamente, para a compreensio da soberania popular. A polémica, na teoria politica, consiste tam- bem em identificar, na soberania popular, os riscos da irresponsal dade do povo. Na visio positivista do Direito é isso mesmo que acon- tece: 0 povo é irresponsével pois nao esta vinculado por nenhuma norma superior, podendo até mudar uma Constituigdo. Para os néo- positivistas, a soberania popular ndo equivale a irresponsabilidade do povo — pois existem normas ou principios de Direito anteriores © superiores as préprias constituigdes. Esse Direito Natural nao tem somente uma base racional, mas pode ter, igualmente, uma boa base real — que se apdia no reconhecimento dos costumes, das tradigdes, da formacao social de um povo Por outro lado, a responsabilidade, tradicionalmente reconhe- cida ao Legislativo, s6 existiria, na pratica, pela reiteragdo das elei- des. Isso porque predomina o principio da soberania parlamentar (identificada como “vontade da nado”) e nao da soberania popular. A soberania parlamentar nao pode admitir 0 controle judicial da cons- 4 = "0 povo nto sabe vouar™ 89 titucionalidade das leis. A Franga, até a V Repiiblica, néo admitia que uma lei votada pelo Parlamento pudesse ser infirmada ou afas- tada, a nao ser por outra lei A responsabilidade dos representantes, diante de seus represen- tados — ou da nacdo —, permanece, no Brasil, sujeita apenas a0 veredito das eleigdes seguintes. Na auséncia de qualquer tipo de man- dato imperativo ¢ de outros mecanismos de controle ¢ fiscalizagio, 0s mandatarios podem, igualmente, afirmar que no “devem prestar contas a ninguém, a nao ser a sua propria consciéncia”. O que & comum.” O povo é conservador e preconceituoso Fala-se, também, que as consultas populares seriam indesejé- veis, devido tendéncia do povo para aprovar as propostas mais con- servadoras, preconceituosas e reacionarias Trata-se, sem diivida, de outro conhecido argumento sobre a “idiotia popular”, aparentemente incuravel. Aceité-lo, sem discussio, implicaria aceitar, também, que as eleigdes rotineiras sto nefasias porque 0 povo escolhe os piores candidatos.* Ora, se € verdade que, em muitos casos (sobretudo no Brasil), amplos segmentos das classes dominadas votam contra seus “interesses de classe’, nao se podem confundir os resultados com 0 processo; democracia ndo se confunde com “progressismo”” — democracia & sindnimo de soberania popu- 7 Magleby reconhece essa deficiéneia na representagio parlamentar, mas ainda & considera superior participagao popular porgue “na fungao, os parla mentares podem se tomar mais responsaveis — ¢, de qualquer forma. os eventuais excessos podem ser moderados pelo sistema de checks and balan ces” (1984, p. 185). * Nesse caso, vale a pena registrar a opiniae do grande jornalista Barbosa. Lima Sobrinho quando, em 1980, cxigia a volta das eleigdes diretas para os cargos execuitivos: "Confesso que consider ate mesmo irFisério 0 argumento, tio facil de encontrar, que o povo nao sabe vorar. Tudo atribuido a escolha, conventho que a ma escolha, de um candidato que se aperfeigoara nos artifi. Cios ¢ fingimentos dos comicios populares. 0 curioso, porém, & que 0s que imais se utilizam desse argumento de que 0 povo nao sabe votar, todos eles Yoturam ou quase todos votaram nesse candidate que eles consideram que foi uma ma escolha e que veio compravar que © pove nao sabia votar. Pais se eles proprios votaram, cles que cram esclareeidos, eles gue eram compe: fentes, por que estranhar que alguma parte do pave — ¢ alias foi uma equena parte do povo — por que sera que esse povo, essa pequena parte, cestava errada, se os homens competentes, os homens eselarecidos tambént haviam errado?” (1982, p. 39) 90, ___A CIDADANIA aTIVA, lar. Além disso, por que se deveria admitir, @ priori, que 0 eleitorado sera mais vulnerdvel & propaganda conservadora do que os proprios parlamentares? Alguns exemplos de experiéneias concretas comprovam que pode existir, sim, maior conservadorismo do povo em consultas sobre deter- minadas questdes, do que em eleigdes de representantes. Os suicos, por exemplo, foram os tiltimos a admitir, em 1971, 0 voto feminino. Entre 1919 e 1956 vinte tentativas favoraveis foram abortadas — ¢ em 1959 uma proposta, de origem governamental, foi derrubada com © dobro de votos. Em maio de 1990, o lado catdlico do cantio de Appenzell (um dos trés cantées onde ainda funcionam formas muito antigas de participacao em assembléias) recusou, pela terceira vez desde 1973, o direito de voto as mulheres. Os homens mantiveram a tradigao, imposta ao sexo feminino, de Kinder, Kiiche, Kirche — criangas, co: nha, igreja —, pois “‘ndo queremos as mulheres deixando a casa para se ocuparem de politica; nao terao tempo de preparar a sopa’”. Por outro lado — o que revela, também, a diferenca de costumes em fun- ¢40 da religido — o Appenzell protestante aprovou o direito das mulhe- res em 1989, embora o resultado da votagao tenha sido questionado Por uma minoria de tradicionalistas insatisfeitos: “‘o que tem sido feito ha séculos, deve continuar pelos séculos’’.9 Ainda como exemplo de conservadorismo: na Suica houve, igualmente, resultados desfavoré- veis ao imposto sobre a renda e, em junho de 1977, os cidadaos se ‘opuseram a participagéo dos trabalhadores na gestdo das empresas, 0 que ja funcionava ha varios anos na Alemanha. Nos Estados Unidos, a tendéncia de aprovaao é maior para textos originados do Legislativo que de iniciativa popular: os america- ‘nos parecem mais “liberais' em questdes econdmicas e mais “conser- vadores"” em questdes sociais e de costume. Varias pesquisas confirmam que, efetivamente, o americano tende a ser conservador em questdes sociais ¢ de costumes ou “foro intimo™ (homossexualismo, discriminacao racial, drogas, aborto). Magleby con- corda com tais resultados, mas suspeita que 0 suposto “liberalismo” dos americanos para as questées de ordem econdmica e financeira direitos trabalhistas, leis tributarias —, também apontadas nas pes- quisas, deveria ser revisto, sobretudo a partir do que chama “revolta dos contribuintes” provocada pela famosa iniciativa n° 13, de reducao de impostos sobre a propriedade (California, 1978). * Ver a materia “Back to the kitehen!", Time, 14 maio 1990, p. 14 4 = NO poe nia sabe var an Quanto ao referendo, alguns analistas suspeitam que sa realiza 40 no nivel nacional — 0 que ndo existe no pais — revelaria a face mais conservadora daquela ‘maioria silenciosa”, que se sente traida por uma classe politica intelectual ¢ liberal. Mas Austin Ranney (co-autor de um amplo estudo sobre a pratica do referendo nos Estados america: nos) € conclusivo: “O referendo ndo € nem um amigo fiel nem um ini- migo implacivel, tanto para a direita quanto para a esquerda’” (1978, p. 85). Varios outros pesquisadores da direct legislation argumentam que 0 eleitorado nao se revela nem “‘rresponsavel nem destrutivo” De qualquer forma, para a experiéncia americana, temos pelo menos um caso no qual existe uma clara correlagao entre a opeao de voto ¢ a auto-identificagdo ideoldgica: as consultas sobre pena de morte. Dos que sao favoraveis, 80% se consideram “‘superconser- vadores", enquanto os 20% contrarios se identificam como “superli- berais” (Magleby, 1984, p. 176). Segundo outros autores, pode ocorrer que, em certas campa- nhas, 0 voto negativo seja encarado como seguro”, como a opcdio — ai sim, conservadora — de eleitores desinformados, ou per plexos com a perspectiva de alguma mudanga. Um bom exemplo dessa perplexidade sdo as campanhas para votacao em referendos ou iniciativas, quando a pergunta é colocada em termos de interven- ¢40 governamental indevida e crescimento da burocracia — “red tape and regulation” (Bell, 1988). E claro que a possibilidade de manipulagdo das perguntas pode estimular o “‘conservadorismo” dos votantes. Nesse sentido, segundo Pontes de Miranda, se a consulta popular é entendida como uma “re: volugao branca’””, que coloca em cheque a estabilidade, a resposta de assentimento apenas traduz que o povo prelere a ordem: deixa de ser tao revelador do que 0 povo Pensa ou quer, para exprimir resignagav mais ov menos melanedliva, Foi o easo dos plebiseitos napolednicos e teria sido o do plebiscito sobre a Constituigao brasileira de 1937. Todo povo teme o vacuo, a incerteza, a desordem (1970, p. 126). ‘Ainda em relac&io & suposta seducdo do povo pelas politicas mais “conservadoras”, levanta-se a questdo das minorias. Segundo alguns criticos da direct legislation americana, os direi- tos individuais, sobretudo das minorias, sao especialmente garanti dos pelo Legislativo — ¢ ndo se deveria correr 0 risco de expd-los a uma eventual intervencao popular. D. Magleby, por exemplo, insiste na tese de que 0 Legislativo representa melhor as minorias ¢ os ndo- eleitores (0 voto € facultative nos Estados Unidos), enquanto a “le- gislagdo direta’”” serve, prioritariamente, classe média branca e ‘educada’", em nome da preservagdo dos valores 1 mais 2 ACIDADANIA ATIVA, — € preconeeituosos! — do “american way of life”. Ora, ndo se trata de por em divida os dados da pesquisa de Magleby: a maioria que participa do sistema politico, nos Estados Unidos, pode ser, efe- tivamente, composta dos brancos mais instruidos e ‘'superorganiza- dos”. A questéo que se coloca é outra: trata-se de saber se existe aleuma comprovacdo de que os direitos das minorias tendem a ser prejudicados pela apresentacdo e — sobretudo — pela vitdria de ini- ciativas populares, discriminatérias ¢ restritivas. Creio que, ainda uma vez, vale a mesma consideracao: a possibi- lidade de surgitem propostas legislativas discriminatdrias existe para a participagdo popular, tanto quanto para a representacao parlamentar. Propostas fiiteis, “*folcléricas"” ou preconceituosas surgem igualmente no Legislativo — e existem mecanismos de avaliagdo e controle, tanto no préprio nivel legislativo, quanto no judicidrio (controle da constitu- cionalidade), Nos paises com ampla experiéncia de iniciativas popula- res — como Suica e Estados Unidos — 0 processo & complexo € per- mite controles em varios niveis. E se, eventualmente, tem éxito uma legislagao “‘conservadora’’, de origem popular, deve-se ela, igualmente, A aprovacdo no Legislative. Como foi o caso, por exemplo, em 1970, da iniciativa Schwarzenbach na Suica, contra a “superpopulagio estran- keira’, que conseguis apoio de 46% dos votantes. No Brasil, é razodvel supormos que em questdes de ordem moral ow religiosa a maioria tende a votar de forma mais conservadora. Mas, mesmo para tais questdes ‘‘de foro intimo’ o eleitorado brasileiro pode revelar surpresas. Nao me parece razoavel a definicdo, a priori, de um rigido padrdo conservador, em termos nacionais, sobretudo levando-se em conta a extrema disparidade de nivel socioecondmico ¢ cultural, entre as classes e as regides. Todas as pesquisas sobre 0 perfil do eleitor brasileiro tém revelado, por exemplo, que existe uma forte correlagdo positiva entre nivel de escolaridade ¢ participagao politica, identificada com propostas consideradas “progressistas””. Nos Estados Unidos, 0 argumento contra a iniciativa popular como “prejudicial” aos direitos das minorias nao ¢ confirmado, nem pelas pesquisas nem pela atuagdo dos controles de constitucionalidade. Prevalece, nos casos evidentes de discriminagdo e preconceito — em rela- 40 a grupos étnicos (os hispanicos ¢ os asidticos na Califérnia, além dos indigenas), aos homossexuais ou outros “indesejaveis” —, 0 respeito 0s direitos e liberdades individuais, garantidos na Constitui¢do. Basta lembrar que aquelas iniciativas populares relacionadas com 68 testes sobre o virus da Aids — e que foram consideradas atentatorias, a0 dircito a privacidade ou ao emprego — foram derrotadas, em 1986 4 "0 poo ao sabe vr B em 1988, por confortivel maioria, Outro exemplo mais antigo é a polé- mica sobre uma iniciativa legislativa patrocinada, em 1964, por proprie- trios de iméveis, que defendiam “o direito de escolha” sobre o inqui- lino ou 0 comprador. Apesar de vitoriosa na primeira votagdo, com 65% de votos favoraveis, a proposta foi considerada inconstitucional pela Suprema Corte da Califérnia e depois pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Considerou-se que 0 tal “‘direito de escolha” visava, na reali- dade, a “selecionar’ moradores ¢ vizinhangas, excluindo os ja citados “indesejdveis” — 0 que, como sabido, contraria a célebre emenda 14 americana (equal rights). da Constituigs A intervengaio do Poder Judicidrio nao é, portanto, excepcional. S6 na California, de 1960 a 1980, de dez iniciativas populares aprova das em primeira e segunda instancias (voto popular e Legislativo) seis foram barradas nos Tribunais, sob o fundamento da discriminagao. Recentemente, um juiz federal do Arizona revogou a decisdo popular, fruto de iniciativa legistativa de 1988, de tornar o inglés o idioma ofi- cial do Estado (lembre-se que, nos Estados Unidos, inexiste “lingua oficial” declarada na Constituigao). Segundo aquele juiz, a oficializa- 40 do inglés fere a primeira emenda da Constituigao americana, que trata da liberdade de expresso. A governadora do Estado declarou que nao recorreria da sentenca. Para os defensores da medida, organi- zados no lobby “U. S. English”, trata-se de preservar o inglés como uma lingua comum, atuando como “uma ponte entre as barreiras lin- aiiisticas”, sobretudo nesses Estados multiéinicos. Para os adversiirios, no entanto, a medida & claramente discriminatéria contra os imigi tes, pois “impede as pessoas de terem acesso significative ao governo ao qual pagam seus impostos” (Time, 19 fev. 1990, p. 46). Nesse caso, pesou na argumentac&o dos vitoriosos ndo apenas a inconstitucionali- dade da discriminagdo, mas também a defesa dos arraigados direitos do contribuinte — se € contribuinte ¢ cidadao. Finalmente, convém registrar pesquisa relatada por Thomas Cronin, segundo a qual, em 1987, 58M% dos entrevistados acreditavam que os mecanismos de legislagao direta ndo prejudicam os direitos das minorias; 32% acreditavam que sim e 10%, apenas, nao tinham opiniao (Cronin, 1989, p. 99). No Brasil a questo pode ser colocada, também, em termos de constitucionalidade, A Constituigdo de 1988 impée ao legislador a punigdo de qualquer discriminagao atentatoria aos direitos ¢ liberd: des fundamentais ¢ declara a pratica do racismo crime inafiangavel ¢ imprescritivel, sujeito a pena de reclusdo (art. 5°, XLI, XLII). Pro- clama, ademais, que homens ¢ mulheres so iguais, em direitos e obri- gacdes. A possibilidade de propostas populares que contrariem esse

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