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© Autoras, 1988, 2002 Catalogacto na Font ioteca Monte Alegre/PUC-SP Para compreender a ciéncia: uma perspectiva hstérica/ Maria Amélia Pie Abib Andery. etal. I1*,ed. - Rio de Janeiro: Espaco e Tempo; Sto Paulo: EDUC, 2002. 436 p21 em Bibliograia ISBN: 85-283-0097-8 1. Ciencia Metodologia. 2. Ciéncia- Filosofia. 3, Ciéncia - Histéria. I. Andery, Maria Amilia ‘cpp 50018, 501 508 Producao Editorial Impressio Eveline Bouteiller Kavakama Maria Eliza Mazzili Pereira Revisao Sonia Montone Berenice Haddad Aguerre Edditoragao Eletrénica Blaine Cristine Fernandes da Silva Mauricio Fernandes da Silva EDUC- Eéitora da PUC-SP Rua Ministro God6i, 1213, Perdizes 5015-001 - Sao Paulo - SP Ponefax: (11) 3873-3359 E-mail: educ@ puesp br ParkGraf Editora Lida Capa Garamond Sobre os quadtos, da esquerda para a reita:“Retato de Nicolau Kratzer" (1528), 6 Hans Holbein; “O astrénomo” (1668), de ‘Vermeer de Delft; “Retrto de Erasmo de Roterdam” (1526), de Hans Holbein; "O ‘e6grafo" (1669), de Vermeer de Delft Editora Espago e Tempo Rua Santa Cristina, 18 20241-250 - Rio de Janeiro - RI Fonefax: (21) 2224-9088 E-mail: garamond@ garamond.com.br CAPITULO 20 O REAL E EDIFICADO PELA RAZAO: GEORG WILHELM FRIEDRICH HEGEL (1770-1831) Nada hi no céu e na terra que no contenha, ao mesmo tempo, o ser e o nada. Hegel Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart em 1770 e morreu fem Berlim em 1831. Realizou seus estudos iniciais em teologia, tendo se formado pastor em 1793. Ampliou sua formago estudando grego, latim, his ‘6ria, Filosofia, destacando-se sempre pela seriedade com que norteava seus cestudos. Iniciou a carreira universitéria em 1801 como professor da Univer- sidade de Tena, carreira que atinge 0 apogeu quando & nomeado reitor da Universidade de Berlim. © cariter revoluciondrio de suas idéias politicas e religiosas 0 toma alvo de acusagies e suspeitas por parte da corte e da Igreja lulerana. A pri- meira edi¢do de Fenomenologia do espirito data de 1807 e a cla se seguiram 08 dois volumes de Ciéncia da légica (1812 e 1816), a Enciclopédia das ciéncias filosoficas abreviada (1817) e os Principios da filosofia do direito ou Direito natural e ciéncia do Estado abreviados (1821). EdigBes péstumas de suas Obras compleias trouxeram & luz outros titulos como os contidos des — Estética, Filosofia da historia, Histéria da filosofia, Filosofia da religido, em edigo publicada entre 1832 ¢ 1845 Reunidos sob o titulo Cursos de lena, sio publicados, entre 1927 ¢ 1930, trabalhos de Hegel até entdo inédites: Logica, Metafisica, Filosofia da natureca € Filosofia do espirito. As preocupagies de Hegel nao se dirigem a aspectos especificos da vida humana, suas origens ou inserg30 no mundo. Seu sistema revela preo- cupagio mais ampla, voltada a0 direito, & histéria, & politica, enquanto am- bitos diversos da realizagio do homem em seu mundo, esta sim 0 foco pri- mordial, Nas palavras de Bréhier (1977b): “Hegel revela em sua filosofia tum saber enciclopédico, o que, als, fizeram ou tentaram fazer muitos fil6- sofos de uma época que visava, sobretudo, a no deixar escapar qualquer elemento positivo da cultura humana (..)"* (p. 146). Tal tentativa, mesmo que ambiciosa, € compativel com a perspectiva de Hegel em relagio a si proprio e & sua filosofia: julgava-se porta-voz pri- vilegiado de sua época e considerava que sua filosofia seria a resposta ttima que se poderia produzir, destinando-se ao sepultamento as doutrinas que 0 precederam. ‘Ora, Hegel julga que elegou o tempo de responder definiuvamente, de acabar a filosofia, isto & de chegar enfim a exposigio sistemitica da ciéncia, desse saber absoluto a que a tnunaaidade aspirava hi vinte © quatro séculos; € que Ea ele que essa tare esti reservada, (Chateet, 1981, p. 170) A compreensio das idéias fudamentais que marcaram o pensamento filos6fico hegeliano requer a retomada de aspectos relativos & influéncia que Hegel, assim como os demais idealistas alemaes dessa época, recebeu a partir da difusdo dos principios que nortearam a Revclugao Francesa de 1789. Nao € por acaso que Marcuse (1978) afinma que os idealistas alemies, fem grande parte, escreveram suas filosofias em resposta ao desafio vindo da Franga & reorganizasio do Estado e da sociedade em bases racionais, de modo ue as instituigdes sociaise politicas se ajustassem & liberdade e aos intresses do individuo, (p. 17) 5 ideais revolucionarios de liberdade, igualdade e fratemnidade foram efusivamente reeebidos na Alemanha, especialmente entre os representantes da intelectuaidade. Entrant, naquele pas, ainda se encontravam presentes resquicios da velha ordem feudal e do despotismo politico que, supostamente, haviam sido abolidos pelo movimento revolucianario francs. A essa situagio acrescia-se a ndo-unificacio dos territérios alemes na forma de uma nagio (o que s6 bem mais tarde viria a ocorre) e a: dificuldades que isso repre- sentava para o desenvolvimento econdmico nayuele pais, em contraste com © significativo desenvolvimento industrial que ja ocorria na Inglaterra © mesmo na Franga, ‘Nesse contexto, 20s intelectuais alemies coube oferever uma resposta = uma doutrina filoséfica — que recuperasse 0s ideais que defendiam ¢ bus- casse superar a diserepdincia entre aqueles idesis e a situaclo histérica em {que se encontravam. Assim, as principais caraceristicas do pensamento he- goliano devem ser entendidas sob a perspectiva de um movimento filoséfico {que permitisse a Lbertago do homem como sujeito aut6nomo, capaz. de di- Figir seu proprio desenvolvimento, sob a égide dos ideais revolucionérios de 1789. 364 ara o idealismo alemao, tio bem representado por Hegel, ‘a situagio do homem no mundo, seu trabalho € lazer, deveriam, doravante, depender de sua propria atividade racional livre e ndo de qualquer autoridade externa” (Marcuse, 1978, p. 17). (© contexto filoséfico no qual esse movimento se desenvolveu estava fortemente marcado pelo empirismo inglés. Tentando superar os limites que criticava em tal posturafiloséfica, 0 idealismo alemao buscava leis universais € defendia a possibilidade de se atingir, pela razlo, conceitos necessirios € jgualmente universais. Em contrapartida, o empirismo inglés acreditava que as leis gerais eram criagdes humanas e, como tal, no representativas do real Defendendo a supremacia da experiéncia sobre a razdo, 0 empirismo inglés colocava os fatos como critérios wltimos de verdade; a isto se oporé Hegel por julgar que, limitando-se ao dado, o homem acaba por ter que se Timitar A ordem existente das coisas. A énfase na razio coloca o homem ‘como livre e capaz de se desenvolver se estiver dominado por uma vontade racional, possibilitando assim a transformagio da realidade de acordo com critérios racionais. “O problema nio era pois um problema meramente filo- s6fico, mas ligava-se a0 destino histérico da humanidade” (Marcuse, 1978, p. 30). ‘Além da critica ao empirismo inglés, Hegel também manifesta uma objegdo ao kantismo, no que se refere a impossibilidade de se conhecer a coisa-em-si (noumeno), © que, segundo Hegel, limitaria a razio, mantendo-a vulnerivel as criticas empiristas. Enquanto as coisas-em-si estiverem fora do aleance da razio, esta continuard fa ser mero principio subjetivo privado de poder sobre a estrutura objetiva da realidade; ¢ 0 mundo se separa em duas partes: a subjetividade ea objetividade, jo entendimento ea sensibilidade, 0 pensamento e a existénca, (.) Se o homem ‘so conseguisse reunir as partes separadas de seu mundo, ¢ trazer a naturez ‘ea sociedade para dentro do campo de sua razdo, estaria para sempre conde ado A frustragio. © papel da filosofia, neste periodo de desintegrago geral, tera o de evidenciar 0 prineipio que restauraria a perdida unidade e totalidade. (Marcuse, 1978, pp. 34-35) A respeito da influencia de diferentes pensadores sobre o hegelianism0, Corbisier (1981) afirma, entre outras coisas, que Hegel berda: De Hericlto de Bifeso (..) a idéia de diaética entendida como estrutura da realidade e do pensamento. De Aristételes, 8s nodes capitas: a do universal, imanente e nfo transeendente ao individual (antiplatonismo), a do movimento, «edo vir-sser, entendido como passagem da poténcia para 0 ato e,finalmente, a das relagSes entre a razio e a experiéncia cuja necessidade interna deve ser revelada pelo pensainento, pois s6 hi ciéneia do universal e do necessirio. Do 365 racionalismo eartesiano, a idéia da racionalidade do real, da coincidéacia da res cogitans com a res extensa (..).(P. 26) © hegelianismo, enquanto sistema filoséfico, nio pode se separar de seu cardter dialético, na medida em que é a dialética que expressa 0 movi ‘mento constante € complexo a que esti submetida toda a realidade. Para aprender 0 movimento do mundo, o pensamento deve submeter-se aos pro- cedimentos que orientam o desenvolvimento das coisas, sendo o préprio pen- samento também dialético. A dialética, portanto,esté nas coisas e no pensa- mento, jé que 0 mundo real ¢ 0 pensamento constituem uma unidade indis- solivel, submetida & lei universal da contradigao. ‘A. compreenséo da dialética hegeliana envolve a idéia de que toda realidade ¢ essencialmente “negativa”. A negatividade parte da natureza dos seres do mundo objetivo ¢ do prifrio homem, coloca em oposicio aquilo que 0s seres sio © suas potencialidades, sugerindo um estado de limitagao, bem como a necessidade de superar tal estado em dirego a outro. A tal ‘motivagdo ou luta dos seres em direrdo aquilo que ndo so, Hegel atribui a forga de um dever. Dever de perecer, de negar o estado anterior para ser substituido pelo novo que realiza uma potencialidade presente no velho. To- das as transformagSes no mundo ocorrem conforme esse processo. “No mun do, nio ha progresso uniforme: 0 aparecimento de cada condig2o nova en- volve um salto; o nascimento do novo é a morte do velho” (Marcuse, 1978, p. 138). A negatividade € portanto, a matriz do processo ¢ transformagio continua de toda a realidade. Tal processo de transformacdo expressa-se num movimento constante € contradit6rio que constitui, essencialmente, a dialética. Hegel caracterizou esse movimento em trés fases: em si (tese), para si (antliese) e em si-para si (Sintese). © movimento da realidade expressa-se, portanto, por meio de lum movimento triédico, no qual cada ser (em si/tese) esta limitado as qua- lidades que possui (qualidades que o distinguem de outros seres) ¢ se nega, buscando superar-se e transformar-se, adquirindo novas qualidades. O ser que se nega ¢ se transforma (para sifantitese) volta a si buscando um novo estado (em si-para siisintese), que recupera a esséncia que se preservou nesse fluxo de transformagdes, por meio da negago da negacio. sistema filoséfico hegeliano sustenta-se, em grande parte, no conceito de ser nele proposto, exatamente porque tudo 0 que existe € ser. Conforme © concebea Hegel, 0 conceito de ser vei romper a idéia de um mundo composto por coisas (ou seres) cuja identidade mantém-se até que aquele ser deixe de exist. Em outras palavras, rompe-se, com Hegel, a idéia de que uma coisa s6 pode ser ela mesma e que, ao transformar-se, perde sua iden- tidade para jamais ser recuperada. 366 ser é, fundamentalmente, um vir-a-ser. © modo como o ser apresen- tase em determinado momento é apenas um modo de seu existr, que con- templa apenas uma entre as miltiplas potencialidades que pode desenvolver, que constituem as proprias etapas de seu desenvolvimento, de sua transfor- magio. Para existir verdadeiramente, o ser deve superar o estado atual em ue se apresenta e, ullrapassando os limites dados por esse estado, vir-a-ser © que no é, ou seja, buscar um novo estado de sua existéncia, Por sua vez, todo estado de existéncia deve, necessariamente, ser ultrapassado. E algo de negativo, que deve ser abandonado & procura do novo, que uma vez mais se apresentaré como um limite a ser superado. Para Hegel, essa ¢ a lei do de~ senvolvimento histérico que, valida para todos 0s seres, regula 0 movimento de transformagio no mundo, num proceso continuo em que cada ser perece, e, uma vez perecendo, transforma-se em outro que passari pelo mesmo pro- cess0. Verifica-se, assim, que Hegel nio identifica o ser ao estado atual em due se apresenta, da mesma forma que no concebe tal estado como definitivo ou imutavel. Ao contririo, Hegel concebe o ser como um ‘ser em processo”, que, estando em permanente mudanga, conserva-se a si mesmo em cada es- tigio do processo por que passa. Essa concepedo néo significa a anulagio da identidade do ser, mas a colocagao dessa identidade no processo contra- dit6rio que orienta o seu desenvolvimento, Se o verdadeito ser é um ser em movimento, s6 assim pode ser compreendido. Sobre a constituigio do ser, Hegel afinma ainda que a negatividade € parte inerente & sua natureza, jd que, para ser o que realmente é 0 ser deve realizar suas potencialidades, de modo a vir-a-ser uma nova fase de sua exis- téncia, Essa nova fase se apresenta como um novo estado a ser superado, no processo de continuo movimento que jé deserevemos. A idéia de progresso traz consigo a idéia de negatividade, ¢ esta, por sua vez, leva Hegel a iden- lificar 0 “ser” eo “nada”, posto que, para que algo possa efetivamente ser, deve passar a ser 0 que ndo & Assim, todo 0 ser contém em si o proprio ser seu oposto, 0 nada, O ser € 0 nada revelam-se, portanto, idénticos, A Unidade, de que siio momentos inseparinveis 0 ser e 0 nada, difere em si rmesina desies momentos, e representa, em relagio a cles, wm terceiro momento ‘que 6, na sua forma mals particular, o devir. A passagem de wm a outro & a mesina coisa que o devir, com a diferenca préxima de que, na passagem, 08 dois termos, 0 termo inicial e 0 termo final, estio em repouso ¢ distantes um do outro, efectuando-se a passagem, por assim dizer, entre os dois. Sempre {que se trata do ser e do nada, este “terceiro” deve existir, pots o ser & 0 nada ido existem por si mesmios, mas somente neste terceiro. (Hegel, em D'Hont, 1981, p. 89) 367 ‘Como todos 0s seres, 0 homem também esti em processo de continua transformagio. A capacidade de compreensio ¢ interferéncia que os seres pos- suem sobre seu préprio proceso de desenvolvimento distingue-os entre si ‘$6 0 homem é capaz. de compreender 0 processo por que passa ¢ nele inter- fer. Tal capacidade, inerente ao homem, advem do uso da razio de que esta dotado, assim como da liberdade que esta pressuposta por e pressupde essa condigio racional. Se 0 homem est em processo de continua transformacao, © mesmo se aplica ao conhecimento por ele produzido. O conhecimento é um processo continuo que no pode ser desvinculado das condigSes histéricas que o de- terminaram. E também progressivo, iio existindo verdades etemas. A ver- dade esti submetida 4 razio humana, ¢ a razio humana, esta submetida & sua histéria : Na hist6ria, encontram-se os eritérios para definir 0 que é racional, € apenas o que é racional, para Hegel, pode ser verdadeiro, Hogel dizia que quem estuda histria sabe muito bem que a humanidade ea- ‘minha rumo a um autoconhecimento e um autodesenvolvimento cada vez maio- res, A histria, segundo ele, demonstra de forma inequivoca a evoluyo rumo ‘8 uma racionalidade e liberdade, maiores. & claro que as vezes ela dé wnas ‘cabriolas, mas o todo revela uma marcha inexorivel para freute. Para Hegel, Portanto, a histéria persegue um objetivo definide. (Gaarder, 1995, p. 388) (© homem sé atinge a autoconsciéneia quando conhece suas potencia- lidades e € livre para realizé-las, processo que s6 se realiza pelo confronto entre individuos em sua relaglo de trabalho, trabalho desempenha importante pape! na medida em que funciona como elemento integrador entre individuos oriundos de diferentes posides © com diferentes necessidades numa dada sociedade. Essa relagao entre in- dividuos “opostos" é intermediada pelos abjetos produzidos pelo trabalhador, que, por terem sido produzides pelo bomem, passam a fazer parte desse hhomem, que neles se reconece. “Os objetos de seu trabalho no mais serio coisas mortas que 0 acorrentam a outros homens, mas produtos de seu tra- bualho e, como tal, pare integrane do seu prprio ser” (Marcuse, 1978, p. 117) Hegel assinala que 0 processo de trabalho envolve dois dominios opos- tos: 0 trabalhador (ou “escravo”) e 0 “senor”, que no produz diretamente, ‘mas apropria-se dos produtos do trabalho do outro. Também para o senhor, 6 trabalho é o processo de criagdo da autoconsciéneia: a lidar com os objetos produzidos pelo trabalhador,estélidando com a autoconsciéncia daguele, que esté objetifiada. nos objetos por ele produzidos. Nessa relagio, 0 senhor percebe que nio é independente do escravo. Por meio das relagdes mediati- zadas pelo trabalho, “cada um dos termos (envolvides na relagao) reconhece 368 aque tem sua esstncia no outs que s6 atinge sua verdade pelo outro” (Mar- use, 1978, p. 118). © senhor obriga o escravo ao trabalho, ao passo que ele préprio goza os pr zeres da vida. O senhor nio cultiva seu jardim, nfo Caz cozer seus alimentos, info acende seu fogo: ele tem o escravo para isso. O senhor no conhece mais 0 rigores do mundo material, wna vez que intepds um escravo entre ele e 0 ‘mundo, O senhor, porque 18 o reconhecimento de sua superioridade no olhar submisso de seu escravo, & livre, ao passo que este dillimo se ve despojado dos frutos de seu trabalho, numa situago de submisséo absoluta. Entrotanto, essa situagdo Vai se tansformar dialeticamente porque & posigio do senhor obriga uma contradigio intema: o senhors6 0 € porque é reconhocido como tal pela consciéncia do escravo ¢ também porgue vive do trabalho desse cescravo. Nesse sentido, ele & una espécie de escravo de seu escravo, De fato, 0 escravo, que era mais ainda o escravo da vida do que 0 escravo de ‘eu senhor (foi por medo de morrer que se submeteu}, vai encontrar uma nova forma de liberdade. Colocado numa situaglo infeliz em que s6 conhece pro- vvapbes, aprende a se afastar de todos os eventos exteriores, a libertar-se de tudo © que o oprime, desenvolvendo uma consciéncia pessoal. Mas, sobretudo, 6 escravo incessantemente ocupado com 0 trabalho, aprende a vencer a natureza 0 utilizar as leis da matéra e recupera uma certa forma de liberdade (0 do- ‘minio da natureza) por intermédio de seu trabalho, Por uma conversio dialtica ‘exemplar, 0 trabalho servil devolve-he a liberdade, Desse modo, o escravo, ‘ransformado pelas provagdes e pelo proprio trabalho, ensina a sew senhor a verdadeira liberdade que & o dominio de si mesmo. (Vergez e Huisman, 1988, p. 278) A relagio senhor-escravo permite a superagio da oposigio sujeito e objeto, assim como, pela autoconsciéneia, supera-se a oposigo entre pensa- ‘mento ¢ mundo exterior. O espirito humano autoconsciente é capaz.de apreen- der o mundo em sua totalidade, mio mais como algo dicotomicamente sepa- rado do pensamento. Isto porque a raz’o, para Hegel, ‘no & apenas, como em Kant, o entendimente humane, © conjunte dos pre! pios e das regras segundo as quais pensimos 0 mundo, Ela ¢ igualmente a realidade profunda das coisas, a esséncia do proprio Ser. Ela no é $6 um modo de pensar as coisas, mas o proprio modo de ser das coisas. (Vergez € Huisman, 1988, p. 276) E por isso que Hegel afirma: “O racional é real e o real é racional”” (em Vergez ¢ Huisman, 1988, p. 276). O sistema hegeliano busca reproduzir a trajetéria do espirito em diregao 4 apreensio do mundo em sua totalidade. 369 ee sistema 6, portanto, uma vasta epopéia do espirito (..; em Seu esforgo por conhecer-se, 0 espirto produz, sucessivamente, todas a8 formas do real; pri- rmeiro os quadros de seu pensamento, depois a natureza, depois a historia; & impossivel caplar algumas dss formas isoladamente, mas somente na evolusio fou no desenvolvimento que as produz (Bréhier, 19776, p. 149) (© grande movimento triédico, pois, expresso no sistema hegeliano, toma como ‘ese 0 Ser, entendido como ““o conjunto dos caracteres ligicos € pensdveis que tem em si toda a realidade” (Bréhier, 1977b, p. 155); como ‘antitese @ Natureza, entendida como a exteriorizagao do Ser nas coisas fisicas e organicas ¢, finalmente, toma como sintese 0 Espirito, entendido como a reinteriorizagio do mundo exterior pelo Ser. Esse movimento se reproduz dialeticamente, em cada um de seus momentos, ou seja, Ser, Natureza e Es- pirito contém em si a possibilidade-de negar-se e superar-s, atingindo, assim, outros estigios de seu priprio desenvolvimento esse modo, “no interior do dominio do Ser, hé um ser em si, um ser para si ou manifestacdo do ser, que & a Esséncia (...) um ser voltado para si que € 0 coneeito (..)” (Bréhier, 1977b, p. 155). Portanto, 0 ser que se nega € se supera se constitui Idéia, “iunidade absoluia do conceito e da abjetivi- dade” (Hegel, Enciclopédia das ciéncias filoséficas, § 213). ‘Ao negar-se, a Idéia constitui-se Natureza, manifestando-se em seu oposto, 0 que, nas palavras de Hegel, significa dizer que “a nanureza é a idéia ‘absoluta, na forma da alteridade..”” (Propedéutique philosophique, trvisieme cours, § 96). Assim entendida, a Natureza & 0 elemento mediador entre 0 Ser € 0 Espirito. Em seu movimento triddico, a Natureza encontra sua superago no ‘momento em que, conquistada pelo Espirito, € reconduzida ao plano da Idéia “0 virsarser da natureza é um virearser na direcao do Espirito” (Hegel, Propedéutique philosophique, troisitme cours, § 96). Finalmente, também o Espirito desenvolve-se, dialeticamente, por meio dos estigios do movimento triidico ~ Espirito subjetivo, Espirito objetivo ¢ Espirito absoluto ~ que se apresentam como as mais elevadas etapas de de- senvolvimento que @ racionalidade humana pode atingir, em que se encontram as atividades que permitem as mais altas realizagdes espirituais: 0 direto, 2 moral, a arte, a religiio ¢, principalmente, a filosofia, Em outras palavras, ‘esse progresso do Espirito continua e se concluiré através da historia dos ho- ‘mens. Cada povo, cada civilizagio, de certo modo, tem por missio realizar ‘uma etapa desse progresso do Espirito. O Espirito humano é de inicio uma cconsciéncia confusa, um espirito puramente subjetivo, & a sensago imediata Depois, ele consegue encamar-s, objetiva-se sob a forma de civilizagdes, de instituigBes organizadas. Tal & 0 espirito objetivo que se realiza naquilo que 370 Hegel chama de “o mundo da cultura”. Enfim, © Espirito se descobre mais claramente na consciéncia atistica e na conscigncia religiosa para finalmente apreeuder-se na Filosofia (..) como Saber Absoluto. (Vergez e Huisman, 1988, pp. 276-277) Depreende-se desse sistema o cariter idealista da filosofia de Hegel, uma vez que, para ele, a Idéia no se confuunde com o pensamento subjetivo, confinado aos limites de cada individuo. A Idéia constitu-se a propria rea. lidade, na medida em que 0 mundo real nada mais & que a exteriorizagaio deliberada da Idéia. Decorre dat que o pensamento no depende das coisas, mas estas & que dependem dele. Marcuse (1978) lembra, a propésito, as palavras do proprio Hegel: “Ainda ndo se havia percebido, desde que o Sol se fixara no firmamento, os planetas girando d sua volta, que a existéncia do homem tinka como centro a sua cabeca, isto é, 0 pensamento, sob cuja inspiragdo se construiu 0 mundo da realidade” (p. 19) Enguanto sistema filosfico que se propds e se marcou por seu cariter idealista, sua importancia nao se fez. sentir apenas no pensamento alemio do inicio do século XIX, mas serviu de inspiragao para outras correntes filos6- ficas que se desenvolveram posteriormente. A marca dessa influéncia & a ruptura da unidade do hegelianismo, em duas tendéncias opostas: a“ a “esquerda” hegelianas A “direita”” coube as interpretagdes mais ortodoxas da obra de Hegel, ‘ou seja, aquelas que buscavam salientar aspectos do pensamento hegeliano ‘que justficassem as verdades da religido cristé ou que permitissem derivar posturas politicas conservadoras. A “esquerta” hegeliana, ao contririo, en- fatizava 0 papel critica do pensamenta de Hegel, retomando a proposta dia- letica para anlise das questOes concretas que afetavam o homem da Alem. ‘nha da época, 0 que, inclusive em alguns casos, significou a critica do cariter teol6gico da obra de Hegel. Entre os mais conhecidos representantes da esquerda hegeliana encon- tra-se Feuerbach (1804-1872). Embora tena sido discipulo de Hegel, definiu sua dissidéncia em relagio a0 mestre ao buscar 0 desenvolvimento de uma filosofia materialista. Critico do cristianismo, suas obras geraram polémicas, ao lado das de Bruno Bauer, outro representante da “esquerda” hegeliana Significativa ainda & a influéncia do pensamento hegeliano na formago tedrica de pensadores como Marx ¢ Engels ~ influéncia reconhecida pelo proprio Marx -, especialmente quando recuperam as categorias da dialética de Hegel ‘A riqueza do sistema filos6fico hegeliano revela-se nas polemicas que zerou € que contribuiram para a divulgagio das idéias de Hegel nfo apenas ‘no meio intelectual alemao, mas também em outros paises da Europa. Tal 371 difasdo nao significou sempre busca de fidelidade &s idtias originais do autor €, por vezes, gerou criticas exacerbadas que levaram o hegelianismo a um certo abandono. No nosso século, a doutrna filoséfica de Hegel € retomada para ganhar novo e significativo espago, pragas ao existencialismo, que buscou nas obras ddo jovem Hegel aspectos que emprestassem apoio a sua doutrina; gragas a correntes teol6gicas que se dedicam ao estudo © & difusto das idéias hege- lianas; finalmente, gracas a0 reconhecimento da dimensio precisa da influén- cia do pensamento dialético de Hegel sobre o pensamento de Marx. 3m Seereeee eee eases eeee Tes e Sere ee eeRT Ese saree esse CAPITULO 22 A PRATICA, A HISTORIA E A CONSTRUCAO DO CONHECIMENTO: KARL MARX (1818-1883) @ toda ciéncia seria supérflua, se a forma de manifestacdo € a esséncia das coisas coincdissem imediatamhente. 44. O século XIX foi um século de grande desenvolvimento do capitalismo ¢ de mudangas radicais no mundo. Esse periodo poderia se dividido em dois Brandes momentos. primeiro deles ~ alé 1848 — caracterizou-se pela expansio do capi- talismo nos paises industrializados, pelo seu impulso inicial nos paises no desenvolvidos ¢ pela sua primeira grande crise nos paises desenvolvidos (1830-1840). Nesse periodo, assistiu-se & expansio e ao crescimento das for- 28 prodativas, da economia, e, portanto, da riqueza; associados a0 imenso avango da ciéncia, De par com 0 crescimento econdmico e com 0 erescimento da riqueza, cresceu, também, a classe trabalhadora: cresceu em niimero, cres- ceu em pobreza ¢ cresceu em consciéncia politica (como o atesta 0 surgimento de propostas de cunho socialista). crescimento sem limites ¢ obsticulos do capitalismo era visto, por seus defensores, como 0 tinico caminho de solugo para suas crises e para a pobreza. Simultaneamente surgiam propostas que defendiam que a crise € a pobreza eram inerentes ao sistema capitalista e que apenas por meio de uma reordenagio econdmica e politica seria possivel superd-las. E também caracteristico desse momento a consciencia de cada um dos principais grupos sociais (trabalhadores e burguesia) de que suas propostas eram incompativeis centre si, mas que cada uma delas exigia mudangas urgentes: mudangas qu= sto buscadas em 1848, por exemplo, quando explode um periodo revolucio- nério por quase toda a Europa. Nesse momento, os trabalhadores Iutavam Por transformagSes de cunho socialsta, enquanto a burguesia e as classes médias, procuravam uma solugdo menos radical. O momento revolucionério de 1848, do ponto de vista das propostas dos trabalhadores, foi um fracasso; do ponto de vista do sistema capitalista permitiu mudangas, de cunho politico e eco- nOmico, que traziam solugdes a muitos dos problemas até entao enfrentados. A segunda metade do século defrontou-se com um novo momento de desenvolvimento do capitalismo: com a expansio do sistema em nivel mun- dial, com uma segunda fase de expansio da indistria nos paises industrial zados € com a formacio de um sistema capitalista intemacional. Do ponto de vista politico, 0 periodo foi marcado por propostas € governos de cunho nacionalista¢ liberal, € foi nesse momento que varios paises da Europa, como a Alemanha € a Itilia, completaram sua unificago econémica e politica ¢ entraram, definitivamente, no quadro dos paises capitalistas avancados, Para a classe trabalhadora, essa metade de século foi marcada por um grande avango na sua organizagdo © nas suas propostas. A partir da organizagao iniciada nos cingienta anos anteriores, ¢ se irradiando desde os centros mais avancados do capitalismo, como a Inglaterra e a Alemanha, surgiram nao apenas propostas de transformagdo econémica e politica, mas, também, niveis mais claborados de organiza¢ao, como a Primeira Intemacional, € mesmo tentativas revoluciondrias imediatas, como a Comuna de Paris. Foi nesse contexto que Marx viveu e desenvolveu seu pensamento. Vivendo nos centros nevrilgicos dos acontecimentos, tanto seu trabalho in- telectual como sua atuagdo pritica so construidos a0 longo dos anos, em {intima relagao com os acontecimentos econdmicos, politicos e histéricos de seu tempo, ¢ tanto seu conceitual tedrico como sua pritica politica estio comprometidas com e so colocados a servigo da classe trabalhadora. Karl Marx nasceu em 1818, em Trier (Tréves), na Renania, cidade que centio fazia parte da Prissia, préxima a fronteira com a Franca. Estudou Di- reito em Bonn ¢ Berlim. Foi durante sua estada em Berlim (1837-1841) que entrou em contato com a filosofia de Hegel. Nessa época, os seguidores de Hegel encontravam-se divididos, basicamente, em dois grupos distintos: os chamados hegelianos de direita e os chamados hegelianos de esquerda. Os primeiros enfatizavam, do sistema de Hegel, 0 Espirito Absoluto como cria- dor da realidade, uma eriagio, entio, com um fim previsto, carregando uma visio teleolégica da histéria; esse grupo destacava os aspectos mais conser- vadores da filosofia de Hegel, em especial o papel preponderante que era atribuido ao Estado. Os segundos, a0 contririo, procaravam libertar-se desses tragos conservadores € destacar o papel critico da filosofia de Hegel, opondo ‘uma concepgdo liberal e democritica a uma concepgao de Estado forte. En- fatizavam 0 homem como sujeito, concebendo-o como um ser consciente ¢ ativo.' Marx participou ativamente do debate entre os dois grupos, defendene do o pensamento da esquerda hegeliana, 1 Henei Lefebvre (1983) afirma a existincia do um tecciro grupo de hegelianos - os hegeliancs de centro — que conservariam na integra o sistema de Hegel que se concen- travam nas universes 396 Em 1841, defendeu sua tese de doutoramento que tinka como tema a comparagao das filosofias de Demécrito e Epicuro. Nessa época, em Fungo da situago politica, que obrigou o afastamento dos hegelianos de esquerda da vida universitéria, Marx abandonou 0 projeto de ensinar na universidade partir de 1842, passou a trabalhar na Gazeta Renana, jornal liberal, como redator-chefe. Permaneceu nessa atividade até 1843, quando o jomnal foi fe- chado por ordem do governo da Prissia. Foi esse trabalho que permitiu a Marx um contato mais dizeto com problemas sociais e politicos de sua época © com as diferentes altemativas que, para eles, eram apresentadas; esse con- tato parece tet sido decisivo no interesse que Marx viria demonstrar por tais, questies, A esquerda hegeliana encontrava dificuldades: 0 govemo prussiano cer- ceava a liberdade desses pensadores, censurava suas idéias, Marx foi, entdo, para a Franga e, em Paris, ao lado de outros hegelianos de esquerda, parti- cipow da publicagio de uma revista que tinka como objetivo divulgar as reflexdes filoséficas e politicas que esse grupo de pensadores vinha desen- volvendo. A revista Anais Franco-Alemdes teve somente um nimero publi- cado (fevereiro de 1844) Dentre os artigos publicados nesse nimefo, encon- trava-se um artigo de Friedrich Engels (1820-1895) que desenvolvia uma critica @ economia politica, Esse artigo impressionou profundamente Marx que, a partir de entio, passou a se dedicar a0 estudo da economia politica, em intima colaboracdo com Engels. Fm 1844, escreveram A sagrada familia, uma critica a Bruno, Edgani e Egbert Bauer, que enfatizavam o papel das elites intelectuais na transformagao da sociedade e desprivilegiavam 0 papel dos trabalhadores nessa mudanga. livro marcou seu rompimento com a cesquerda hegeliana. Mais uma vez, por razdes politicas, Marx foi obrigado a mudar de pais; foi para a Bélgica (Bruxelas), onde permaneceu até 1848, Durante esse pe- iodo, Marx ¢ Engels desenvolveram intensa atividade intelectual e politica; participaram da Liga dos Comunistas, para a qual escreveram 0 Manifesto

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