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ee aN COMPANHIA DAS LETRAS Dupe rnin para CIR Dd Bd Ge4 Copyright © Dorothy Parker, 1930, 1938, 1959, 1941, 1955 Publicado por acordo com Viking Penguin Inc ‘Contos selecionados de ‘The Portable Dorothy Parker Capa: Cerlos Matuck Reviséo: Telma Domingues Regina Colonéri Liicio Mesguita Filbo 1990 Baivora Schwarez Leda. Rua Tupi, 522 01233 — So Paulo — SP ones: (O11) 825-5286 « 66-4667 INDICE Prefiicio: Crises de choro, ou, de preferéncia, risos -— Ruy Castro « Asranjo em preto e branco 2 19 27 33 39 45 53 61 69 81 87 PREFACIO CRISES DE CHORO OU, DE PREFERENCIA, RISOS Ruy Castro Quando Dorothy Parker morreu — em Nova York, em 1967, aos 74 anos —, houve quem se espantasse, niio 86 com 0 tamanho dos obitudtios de primeira pagina que Ihe foram dedicados pelos grandes jornais americanos, como pelo quase absoluto deseonhecimento de quem se tratava. Os poucos que se lembravam dela também jé ti- ‘ham morrido ou estavam com um pé na cova, ou no tinham uma exata dimensio do que ela representara na "Vida literéria americana dos anos 20 ¢ 30 — a grande onista de Nova York, a contista € poetisa que pesava palavra em ouro ¢ com quem bastava trocar duas ayras para sc receber trés em troca, todas exatas € fe- Nem mesmo os seus poucos amigos sobreviventes época imaginariam que ela teria uma feroz tes- oa partir dos anos 70, Dorothy Parker merece — também, Ela foi a mais artasadora personalidade feminina da York do seu tempo — uma cidade que tinha cerca ita grandes jornais didrios, mais de dez importantes vistas mensais e pilhas de semanérios, todos influentes diversas dessas publicagées, Dorothy Parker publicou poemas e criticas (sulfiricas, para dizer o minimo) @¢ literatura. Até sua sombra era temida pelos se levar a s¢rio — ao passo que, ao contrério, e era adorada pelos que fingiam nao se levar a sétio. Ela passava como um trator sobre todos que no merecessem ‘0 seu respeito admiragio, enquanto mantinha essas re- servas de admiragio e respeito, de preferéncia, para as mulheres da Nova York do seu tempo — presas a uma teia de industtializagio, progresso, rapida mudanga de costu- mes ¢ inadaptacio, enquanto ansiavam apenas pela manu- tengo dos grandes sentimentos ‘“eteznos” do passado. Do- sothy eta uma sentimental xiita. Calma, no comecem a chorar — por enquanto, Do- rothy Parker foi, certamente, a maior humorista americana de todos os tempos. Foi, no minimo, a Mark Twain de saias. E, como todo grande humorista, escrevia para set evada a sétio. O fato de fazer 0 leitor rir no decorrer de todas as suas hist6rias néo impede que a conclusao dessas histérias quase provoque convulsdes de choro, pela sua compreensio da solido, basicamente feminina, numa grande cidade. Mas também masculina. Embora fale quase sempre de mulheres, os homens que as rodeiam esto aprisionados pela mesma aranha. As inevitdveis gargalhadas que vocé dard ao ler estes contos sio as mesmas que vocé poderia dar ao se olhar no espelho, nas suas melhores horas de self-pit ‘Afinal, este é um livro trdgico ou de humor? As duas , 86 que batidas num liquidificador. Nossos anos 80 idos com os anos 30, que € quando se das hist6ries de Big Joira. Em tempos de ‘seguem a esperangas de euforia, ri-se para bem, todo humor ¢ amargo, como seria engracado. Parker foram publicados ori- Vanity Fair, The New 20 ow 30 em que essas publicagées provocavam torrentes de gua na boca nio 36 dos leitores, pelo que tinham a oferecer em qualidade, mas também dos eseritores — que davam tudo para apa- recet nelas. Eu disse ‘ado. Por estranho que pareca, Doro- thy Parker, embora altamente requisitada, era tf0 pregui- gosa que seus companheiros de trabalho costumavam atar tm fio de cabelo sobre os tipos de sua méquina de escre- ver ¢, no fim da tarde, ao constatar que o fio estava no mesmo lugar, s6 podiam rir quando ela dizia que tinha ttabalhado o dia inteiro, Ou quando argumentava que mio tina escrito uma linha porque havia “esquecido o ldpis em casa”. Daf sua obra completa se resumir & cerca das seiscentas paginas do Portable Dorothy Parker, editado en 1944 pela Viking Press ¢ um dos trés tinicos dos dez primeiros Portables a ter permanecido até hoje em reedi- go constante. (Os outros dois? Shakespeare ¢ a Biblia.) Ela foi também uma das melhores light-versers de seu tempo. Mas seus poemas, curtos, candentes e compac- {0s, sio praticamente intraduziveis para qualquer lingua quer tentar traduzir este? “By the time you swear you're his, Sbiveringand sightng, And be swears his passion is Infinite, undying — Lady, make a note of this: One of you is lying.” "Virginia Woolf, Gertrude Stein, Amy Lowell, as Ss do comego do século? Eu nio as troca- meio copo de Dorothy Parker. E, por falar em Aw brithante carteira de Dorothy Parker foi de certa ‘empacada justamente pelo que fez a sua fama: a 11 de ter sido a grande diseuse americana — # lingua mais afiada de que jé se teve noticia. Em irés palavras, morreu pela boca, Querem exemplos? Clare Booth Luce, mulher do influente editor da revista Time, Henry Luce, cruzou com ela numa porta giratéria. As duas no se gostavam «uma maneira suave de dizer que se detestavam. Clare era mais jovem. Cortesmente, deixou Dorothy Parker pas: sar primeiro pela porta, s6 que dizendo: “As velhas, antes das belas”. Parker desfechou no ato: "As pérolas, antes das porcas”, Enquanto Henry Luce foi vivo, Dorothy nun ca mais saiu na Time. f a ando tesenhava livros para a Esquire, resus sua Goat sobre um romance com duas frases: “Este hao é um livro para ser descuidadamente deixado de lado. para ser jogado fora, com toda forea”. O autor, famoso, passou a boicoté-la, também com todas as forgas. Sobre {ima importante dama da sociedade de Nova York nos ‘inos 20, Dorothy escreveu: “Ela sabe falar 24 linguas. TE nao consegue dizer nao em nenhuma delas”’. A madame nunca mais a convidou para suas festas. Sobre uma inter~ upretagio em teatro de Katherine Hepburn: “Ela cobre to- do 0 escopo de emogées — de A a B’’. Imaginem se Kate Hepburn dirigiu-the a palayra outea vez. Quando The dis- seram que determinada socialite de Nova York era ae gentil com seus inferiores, Parker perguntou: ‘E onde ela fs encontra?”. Pronto. Ficou queimada entre os ricos Quando © presidente americano Harry Truman morte, ela exclamou: “Como é que eles sabem?”. E por al vat, fora as tiradas intraduziveis. Ela foi a rainha do insulto ou, melhor dizendo, do tapa com luva, 96 que frases foram ditas — ¢ ublicadas — numa das cadeiras da famosa Round Table (mesa redonda) no Sa- lo Rosa do Hotel Algonquin (rua 44, Oeste, em Nova York). Todas as tardes, nas horas mortas de suas teda- ges, palcos ou estidios, reuniam-se ali, na grande mesa disposta por Frank Case, entéo dono do hotel, os maiores nomes de Nova York, Teatrélogos como George S. Kauf- man ¢ Robert Sherwood; os colunistas da moda, como Franklin P. Adams e Heywood Broun; Harpo Marx, um dos irmios Marx; Harold Ross, editor de The New Yor- ker; Frank Crowninshield, editor de Vanity Fair; Herman J. Mankiewicz, mais tarde roteirista de Cidadao Kane; Ring Lardner ¢ Robert Benchley, os dois mais fabulosos humoristas da época; atores e atrizes como Tallulah Bank- head e Alfred Lunt; cantores ¢ compositores como Paul Robeson ou, de passagem, Noél Coward; 0 temivel critico Alexander Woollcott; ete. O jogo era muito, muito pesa- do. Pois Dorothy Parker era a estrela no centro do gra- mado do Algonquin. | Na famosa Round Table do Algonquin, tomando “ufsque em xicaras de ché — a Lei Seca ainda estava em ‘vigéncia —, essa turma produziu um tufao de frases con- tra tudo ¢ contra todos (inclusive eles mesmos) que des- ‘moralizou para sempre o famoso werso honni-soit qui “maly-pense, Porque ali s6 valia mal-y-pense. Reunidos, ‘eles dominavam os jornais, as revistas, 0 teatro ¢ boa parte la literatura de Nova York. O crack de 1929 levou todos queles talentosos boémios a faléncia ¢ eles se deixaram ginar pelo dinheiro de Hollywood, para onde quase rumaram, a fim de escrever roteiros — Dorothy ker, entre eles. Praticamente nenhum deles se adaptou a tomar suco lutanja e viver sob palmeiras, a beira de piscinas no of Allah, 0 bunker noviorquino em Beverly 13 Hills, Alguns morreram por li — como Fitzgerald, Bench- ley ou Nathanael West —, outros véltaram para Nova York anos depois, mas s6 para encontrar um mundo di- ferente, jd dominado pela ainda incipiente televisio e pelo esmalte mais “sétio” de escritores. recém-surgidos, como Norman Mailer, Saul Bellow, Tennessee Williams, Tru- man Capote, Gore Vidal, Bernard Malamud ¢ outros que, talvex até sem querer, faziam parecer “‘fitil” a produgao da turma do Algonquin. Jogaram o bebé fora, com a 4gua do banho. Esqueceram-se de relevar, por exemplo, que Dorothy Parker, ao descrever as pequenas tragédias pes- soais de dondocas de Nova York ¢ de seus maridos, na- morados ¢ empregadas, revelava sutilmente uma ceria aproximacao com o Partido Comunista americano (do qual nunca foi militante, mas certamente companheita de via- gem), numa época em que isto podia signifiear cadeia — em pleno macartismo. Ou que foi a Espanha, em 1938, para apoiar os republicanos, durante a Guerra Civil. Nao que isso tenha feito qualquer diferenga para a avaliacao da sua obra — e ela certamente riria se chamassem a sua obra de obra —, mas, para efeitos préticos, ou seja, sua sobrevivéncia, poderia ter feito, Pois aconteceu que, depois de ganhar rios de dinhei- ro e trabalhar muito menos do que poderia, apenas porque tinha preferido viver, Dorothy Parker morreu pobre, em 1967, praticamente esquecida ¢ sustentada em grande por sua melhor amiga nos wiltimos tempos, Lillian Hallman (vitiva de Dashiell Hammett). Com quase todos ‘yelhos amigos jé falecidos, Dorothy penou aquela quem se acha na sobrevida e considerava isso 10 que eta irdnico porque, no auge do su- Jentar 0 suicidio trés vezes, tomando ‘08 pulsos, a ponto de seu melhor i confidente, o grande Robert Benchley, chegar a dizer: “Dorothy, pare com isso. Suicidios fazem mal & saide”, Ela sobreviveu a quase todos da sua turma por vinte ou trinta anos, escreveu étimas resenhas literérias para a Esquire nos anos 50 e 60 e ainda produziu alguns bons contos. Os que voc’ lerd neste livro sio os da sua grande fase — anos 20 e 30. Contos amargos? Sem diivida, mais até do que jil6. Mas sé quando chegam ao fim. Entre uma palavra e outra, prepare-se para lé-los com Suita — se for diabético — e tome cuidado para no morrer de rir. Ob, encantada. Adoraria. Nao quero dangar com ele. Nao quero dangar com ninguém, E, mesmo que quisesse, nao seria com ele, Ele estaria no pé de uma lista dos dez tiltimos. J4 vi como ele danga; parece atacado pela doenga de sio Guido. Imagi- nem, hi menos de quinze minutos, eu estava com pena da pobte coitada que dangava com ele. E agora eu & que vou ser a pobre coitada. Nao é mesmo um mundo muito pequeno? E é uma delicia de mundo, também, Tudo que acon- tece nele € tao fascinante e imprevisivel, nao? Eu estava quietinha no meu canto, metendo-me com o meu prdprio nariz, sem fazer mal a ninguém. E af ele entra em minha vida, fazendo aqueles olhos ¢ bocas, ¢ me arrasta para uma memordvel mazurca. Ora, ele nem sabe o meu nome, ¢ muito menos 0 que significa. Pois significa Desespero, Perplexidade, Degradago, Futilidade e Crime Premedita- do, mas ele nem desconfia, Também nao tenho a mfnima id€ia do seu nome, mas, pelo jeitéo dele, s6 pode ser Ju- kes. Como vai, sr. Jukes? E como vai passando 0 seu querido irmaozinho, aquele com duas cabecas? Por que ele teve de vir infernizar justamente a mim, com suas més intengdes? Por que nfo me deixou cuidar da minha vida? Pego tao pouco! Sé queria ficar quieta no 19 meu canto da mesa, ruminando sozinha a minha solidao pelo resto da noite. E af cle chega, com suas mesuras, ra- papés e seus pode-me-dar-a-honra. E ainda sou obtigada a dizer que adoraria dancar com ele, Nao entendo como um raio nao desabou direto sobre a minha cabeca. Podem crer, um raio na cabega seria como um fim de semana na praia, comparado ao contorcionismo de uma danga com este rapaz. Mas, 0 que eu podia fazer? Todo mundo j& estava dangando, exceto eu ¢ ele. Eu estava numa ara- puca, Como uma arapuca dentro de outra arapuca O que se pode dizer, quando um rapaz nos vem tirar para dancar? Obrigada, mas ndo quero dangar com voce, ¢ pode it lamber sabio. Ou entio; Oh, muito obrigada, adoraria dangar, mas € que, neste exato momento, estou entrando em trabalho de parto, Ou entao: Oh, claro, va- mos dangar, € tao raro hoje em dia conhecer um rapaz que fio tenha medo de contrair minha beribéri, Nio. Eu nao podia fazer nada a nio ser dizer que adoraria dangar com ele. Estd bem, vamos acabar logo com isso. Cara ou co- roa? Deu cara, vocé leva. Linda valsa, nfo? Dé vontade de apenas ficar ouvin- do a orquestra, nao? Nao se importa? Ob, que linda val- ‘sa! Estou arrepiada. Nao, claro, adoraria dangar com voce. Adoraria dangat com voeé. Adoraria também extrait as amigdalas. Adoraria estar num barco em chamas, Mas agora é tarde. Jé estamos a caminho da pista. Ob. Oh, ‘Deus, Oh, Deus, oh, Deus, oh, Deus. E ainda pior do que eu pensava. Acho que ¢ uma das poucas coisas da vida de que sempre se pode ter certeza — tudo que prome- te ser ruim acaba sendo ainda pior. Se cu realmente sow- ‘bese como seria dancar com ele, teria fingido um desmaio ‘ou coisa assim, Bem, acho que, no fim, vai dar na mesma. 20 Vamos acabar no chido em menos de um minuto, se ele continuar desse jeito Foi étimo té-lo convencido de que a orquestra esta- va tocando uma valsa. $6 Deus sabe 0 que teria acon cido. se ele achasse que eta algum ritmo mais répiclos acho que jé terfamos voado pela jancla. Por que ele tem essa mania de dancar no ar, em vez de ficar paradinho ‘com vocé nos bracos por apenas alguns segundos? B ese maldito lufa-lufa da vida neste pais que ¢ responsével por esses celerados. Ai! Puxa, pare de me chutar, seu idiota! Ja € a segunda vez que voct me acerta a canela. E minha canela de estimagao, Tenho-a desde que era garotinha. Qh, néo, ndo, nao. Nao doeu nem um pouguinbo. Além disso, foi minha culpa. Claro que foi. De verdade. Vocé ¢ uma gracinha de se desculpar, mas nao precisa. A culpa foi toda minba. © que seré que devo fazer: maté-lo neste exato mo- mento, com minhas prdprias mios, ou esperar que ele te- nha um enfarte em poucos segundos? Talvez seja melhor ndo fazer uma cena. Acho que vou relaxar e esperar que a natuteza sé encarregue dele. Ele nio pode manter esse ritmo indefinidamente — afinal, € apenas feito de carne -e 0880. Mas vai morrer pelo que fez comigo. Nao pensem que sou hipersensivel, mas ninguém me convencerd de que aquele chute na canela foi sem querer. Segundo Freud, nao existem acidentes. Nao sou do tipo enclausurada e j& dancei com rapazes que me pisaram nos calos ow acerta- ram meus joanetes; mas, quando ¢ a canela que est em jogo, torno-me uma besta-fémea. Viro para o rapaz e digo: “Esté bem, quando me chutar a canela, pelo. menos sorria”. ‘Talvez ele no tenha feito per mal. Podia estar ape- nas querendo mostrar animacéo. Eu deveria ficar feliz por 21 ver que pelo menos um de nés esté se divertindo. E mais feliz ainda se sair viva da pista. Nao seri pedir demais a um rapaz que vocé acabou de conhecer que ele devolva suas canelas exatamente como as encontrou? Afinal, o pobre rapaz est fazendo o melhor que pode. Provavel- mente nasceu € foi criado no interior € s6 foi calgar boti- nas no exército. Sim, & uma delicia, nao é? E simplesmente uma deli- cia. Nao & uma valsa deliciosa? Ob, eu também estot achando uma delicia Bem, estou positivamente & mereé de um dangarino ‘que quer bater todos os recordes do mundo. Ele é meu he- r6i. Tem um coragio de leo e a forca de um bifalo. Vejam 86: nao dé a minima para as conseqiiéncias, nao liga para (© que 0s outros pensam, contorce-se como se tivesse © diabo no corpo, com os olhos chispando ¢ chamas no ros- to. Pensam que vou recuar? Mil vezes no. Afinal, que me importa passar os préximos dois anos num colete de gesso? E quem quer viver para sempre? Oh. Oh, Deus. Ora, ele é até legal. Por um momento pensei que iam expulsé-lo da pista. Nao suportaria que alguma coisa Ihe acontecesse. Eu 0 adoro. Adoro-o mais que qualquer outra coisa no mundo. Incrivel a animagio que ele tira de uma valsa chocha e vulgar; em comparacio, 6s outros dancarinos parecem uns palermas. Ele represen: ta a juventude, o vigor e a coragem, a forga e a alegria ¢ — Ai! Saia de cima do meu pé, seu caipiral Por que nao pisa em sua avé? Nao, claro que nao doeu. Ora, nem um pouco. Sin- ceramente. E foi minha culpa. E aquele passo que vocé dé — uma delicia, mas dificil de seguir primeira vez. Ob, foi vocé que o inventou? Mesmo? Incrivel! Ab, agora 22 acho que aprendi. Observei quando vocé dancava com a outra moca. E excitante! E, é excitante. Aposto que eu também pareco exci- tada. Estou completamente descabelada, minha saia esta toda enroscada em meu corpo, posso sentir um suor frio na testa. Devo estar parecendo algum espectro saido de “A queda da casa de Usher”. Essas coisas no devem fazer bem & satide de uma mulher na minha idade. E ele inventou aquele passo sozinho, o tarado, Parecia meio complicado a principio, mas agora acho que peguei. Doi tropesdes aqui, uma escorregada ali ¢ uma deslizada de seis ou sete metros. Mas consegui, Consegui também outras coisas, entre as quais um buraco na canela ¢ um cotagio em pandarecos. Detesto esta criatura 4 qual estou atrelada, Detestei-o desde 0 momento em que vi o seu olhar de soslaio naquele rosto bestial. E agora me vejo travada nos seus bracos pelos 35 anos que esta valsa esti durando, Sera que a merda da orquestra nunca vai parar de tocar? Ou essa coisa ridicula a que chamam de danga vai durar até os quintos dos infernos? Othe, vito tocar mais uma. Ob, que dtimo. Que deli- cia. Cansada? Nao, nem um pouco. Poderia continuar dancande pelo resto da vida! Eu deveria ter dito que no estava cansada, Que es- tava morta. Faleci, sem motivo justo, A misica nio para nunca ¢ 1 vamos nés, eu ¢ meu pé-de-valsa, a caminho da eternidade. Acho que talvez me acostume, depois dos ptimeiros cem mil anos. A esta altura, nada vai importar mesmo, nem dor nem calor, nem um coracao partido e muito. menos um tédio eruel e mortal, Quanto mais répi- do, melhor Nao sei por que no Ihe disse que estava cansada. Por que nao sugeri voltarmos a mesa? Poderia ter dito, 23 vamos apenas ouvir a musica, que tal? Porque, se ele acei- tasse, seria a primeira vez que ele estaria dando um tico de atengao 4 mtisica naquela noite, George Jean Nathan disse que 0 ritmo de uma walsa deveria ser ouvido em trangiiilidade © nao acompanhado por estranhos rodopios das pessoas. Bem, seja 0 que for que Nathan esteja fazendo este momento, estd melhor do que eu. Pelo menos esté seguro. Qualquer pessoa que nao esteja valsando com aquela vaca da sta. O'Leary, responsfvel pelo grande incéndio de Chicago, deve estar se divertindo muito. O problema é que, se voltéssemos para a mesa, teria que conversar com cle, E o que eu podetia perguntar a uma mula dessas? Jé foi ao circo este ano? Qual € 0 seu sorvete favorito? Como wocé pronuncia gato? Melhor fi- car por aqui mesmo, na pista de danca. E quase tf0 bom quanto estar dentro de uma betoneira ligada ‘J& nem sinto mais nada. S6 percebo quando ele me pisa nos calos porque ougo 0 esmigalhar dos ossinhos. E tudo de importante que me aconteceu na vida passa dian- te dos meus alhos. Revejo aquele dia em que estive no centro de um furacdo nas Indias Ocidentais; lembro 0 dia ‘em que rachei a cabega numa batida de carro; houve aque- la noite em que a dona da festa, bebada, jogou um cinzei- ro de bronze em seu namorado e acertou em mim; para no falar num vero em que o barco virou de borco. Ah, que bons tempos e que trangililidade... até cair nas gar- ras deste monstro aqui. Nunca soube 0 que eram proble- mas, até set atrastada para essa danse macabre. Acho que minha mente vagueia. Até parece que a orquestra parou. Nao pode ser. Nunca poderia ser. E, no entanto, em meus ouvidos, hi um siléncio que parece produzido pelos anjos. .. 24 Ob, eles pararam de tocar, aqueles cretinos. Nao vio tocar mais. Ob, droga. Vocé acha que eles vio voltar? Acha mesmo, se vocé lhes der 20 délares? Ob, seria incrivet! E, othe, peca-lhes para tocarem de novo aquela mesma valsa, Eu poderia darcar com wocé pelo resto da vida (Titulo original: The Waltz) ARRANJO EM PRETO E BRANCO ‘A mulher com as papoulas de veludo rosa entrelaca- das em seu cabelo louro atravessou o salo, num misto de pé ante pé com pulinhos furtivos, e cravou suas garras no brago do anfitriao. — Abvha! Peguei! — disse ela. — Agora vocé nao vai escapar! — Oh, old — respondeu o anfitriao, — Como vai? — Otima, simplesmente étima — ela disse. — Es- cute. Vocé precisa me fazer 0 maior favor do mundo. Vai fazer? Promete? Promete mesmo? — Eo que — Olhe — disse ela. — Quero conhecer Walter Williams. Sinceramente, sou louca por este homem. Oh, como cle canta! Quando ele canta aqueles spiritwals, qua- se motro! Outro dia cu estava dizendo para Burton, “Sor- te sua Walter Williams ser preto, ou voce teria um monte de razées para ficar com civimes”. Eu adoraria ser apre- sentada a ele, para lhe dizer que jé 0 vi cantar. Vocé vai ser um anjo e me apresentar? — Ora, claro — disse o anfitrido. — Pensei que ja © conhecesse. Afinal, esta festa é para ele. Onde estd ele, afinal? — Ali, petto da estante — apontou ela, — Vamos esperar que aquelas pessoas terminem de falar com ele. 27 Acho que vocé estd sendo maravilhoso, oferecendo-Ihe esta festa fantistica para que ele conheca todos esses brancos e tudo mais. Ele nfo est supergrato a voce? — Espero que nfo... — disse o dono da casa. — Pois deveria estar — disse ela. — No sei o que hi de errado em conhecer pessoas de cor. Nao vejo nada de mau nisto. Nem um pouquinho. Mas Burton... ah, voce sabe como ele &. Deve ser porque nasceu em Virginia, € vocé sabe como eles pensam — Burton vird & festa? — perguntou o anfitrido, — No, no pode, Estou de cigarra esta noite, Eu disse a ele na hora de sair, “Sé Deus sabe 0 que vou fazer esta noite’’. Mas ele estava tio pregado que mall podia se mexer. Nao é uma pena? — Ab-ban — murmurou o anfitriao, — Mal posso esperar para the dizer que fui apre- sentada a Walter Williams! — disse ela, — Ele vai ficar para morrer. Bem, a gente costuma discutir por causa dessa histéria de negros. Comeso a falar e no paro, de to excitada que fico. Digo a ele, “Deixe de ser bobo!”. Mas devo admitir que Burton é muito mais aberto do que a maioria daqueles sulistas racistas. Ele realmente gosta muito dos negtos. Sabe que, as vezes, ele até diz que nun: ca teria uma empregada branca, Vocé sabe, ele foi criado por uma babé preta, aquela tipica ama-deleite preta, ¢ até hoje a adora. Todas as vezes que visita sua familia, vai até a cozinha falar com ela. Até hoje faz isto, de verdade. Ele s6 diz que nao tem nada contra negros, desde que cles fiquem no seu lugar. E Burton est sempre fazendo favo- res a eles, dando-Ihes roupas velhas e nao sei © que mais. Mas diz que nao se sentaria mesa com um deles nem por um milhao de délares. Ai eu me irrito digo, “Voce me 28 dé enjéos falando desse jeito”. Sou terrivel com ele. Nao sou terrivel? — Oh, nfo, nao; nio — disse o anfitrido. — Nao, no. — Pois sou — disse ela. — Eu sei que sou, Pobre Burton! Jé eu, pessoalmente, nfo sou assim, Nao tenho absolutamente nada contra qualquer pessoa de cor. Ora, até adoro alguns deles. Parecem criangas, faceis de levar, sempre cantando, rindo ¢ tudo © mais. Vocé ndo os acha as maiores gracinhas do mundo? Sinceramente, tenho von- tade de rir sé de ouvi-los. Eu os adoro. De verdade. Vocé sabe, tenho uma lavadeira negra. Trabalha comigo hé anos e sou louca por ela. Ela € qualquer coisa. E sabe que eu penso nela como uma amiga? E assim que a considero: como uma amiga: Como eu digo. a Burton, “Pelo amor de ‘Deus, somos todos seres humanos!”, Nao somos? — Sim, claro — disse o anfitriac — Pois veja Walter Williams — disse ela. — Acho que um homem como ele ¢ um verdadeiro ar tista. Acho mesmo, Ele merece todo 0 respeito. Puxa, gos- to tanto de miisica que nem me incomodo com a cor dele. Sinceramente, se uma pessoa é um artista, ninguém de- veria se importar com isso. E exatamente o que eu digo a Burton. Nao acha que estou certa? — Claro, claro — disse o anfitriio — Pais é o que eur acho — disse ela. — Nio posso entender que as pessoas sejam tio quadradas. Ora, acho até um privilégio ser apresentada a um homem como Wal. ter Williams, Mesmo! Afinal, Deus 0 fez assim eomo fez cada um de nés. Nao fez? — Sem diivida — disse 0 anfitrido. — Pois € 0 que eu digo — disse ela. — Othe, fico furiosa quando as pessoas nao dceitam os negros. Furiosa 29 em termos, para ndo dizer coisa pior. Claro, admito que quando vocé encontra um negro ruim, ele ¢ terrivel. Mas, como digo a Burton, ha brancos ruins também. Nao hd? — Acho que sim — disse o anfitriao. — Ora, eu adoraria que um homem como Walter Williams fosse a minha casa um dia, para cantar — disse ela. — Claro, nao poderia convidé-lo, por causa de Bur- ton, mas por mim nfo haveria o menor problema. Oh, como ele canta! Nao maravilhoso o jeito que eles tém para a musica? Parece que vem de dentro deles. Olhe, vamos até ld falar com cle? O que devo fazer quando for apresentada? Apertar a mio dele ou alguma outra coisa? — Nao sei, faca 0 que tiver vontade — disse o an- fiteido. — Acho melhor apertar-lhe a mio — disse cla. — Niio gostaria por nada no mundo que ele achasse que eu tenho qualquer preconceito, Vou apertar-lhe a mao, como eu faria com qualquer outra pessoa. E exatamente © que vou fazer. Chegaram até 0 negro jovem ¢ alto, de pé junto & estante, O anfitrido apresentou-os; 0 negro curvou-se — Como vai? — perguntou. ‘A mulher com as papoulas de veludo rosa estendeu- Ihe a mio, esticando totalmente o seu brago ¢ mantendo-o ésticado para que todo mundo visse, até que 0 negro a to: mou, apertou-a e devolveu-a a ela — Oh, que prazer, sr. Williams — ela disse, — Como vai o senhor? Sabe, agorinha mesmo eu estava di- zendo como adoro tanto a sua arte, Jé fui a seus concertos tocamos os seus discos 0 tempo tado. Oh, simplesmente adoro! Ela falava separando bem as silabas, movendo meti- culosamente os labios, como se dialogasse com um surdo. 30 — Agradego-lhe muito — ele disse. — Sou simplesmente louca por aquela coisa chama- da Water Boy que o senhor canta — ela disse. — Hones- tamente, nao consigo tird-la da cabega. Meu marido vai quase & loucura, do jeito que eu a fico cantarolando 0 dia inteito. As vezes as coisas ficam pretas... — pigarreou as pressas e continuou. — Diga-me, sr. Williams, onde o senhor descobre todas aquelas cancées? — Bem, hf tantas manciras dife... — rentou di- rer ele. — Acho que o senhor deve adorar canté-las — ela disse. — Deve ser tio divertido, Todos aqueles spirituals to gracinhas, oh, eu adoro! Eo que esté fazendo agora? Vai continuar a cantar? Por que nfo dé outro concerto, qualquer dia desses? — Vou dar um no dia 16 deste més — ele res- pondeu. — Oh, prometo comparecer — ela disse. — Sem dtivida irei ver, se puder. Pode contar comigo. Nossa, esta vindo para cé um bando de gente para falar com o senhor. Claro, o senhor é 0 convidado de honra! Oh, quem € aque- la moga de branco? Jé a vi em algum lugar. — Aquela ¢ Katherine Burke — disse o anfitrido. — Meu Deus — disse ela —, aquela é Katherine Burke? Engragado, parece tao diferente no paleo, Achei que ela fosse muito mais bonita, Nao tinha idéia de que fosse tio escura. Ora, ela até parece... — teve de pigar- reat de nove. — Oh, acho-a uma excelente atriz! O se- nhor nfo a acha uma excelente atriz, sr. Williams? Oh, eu a acho maravilhosa! O senhor no acha? — Acho, madame — ele disse — Oh, eu também acho — ela disse. — Ma-ra-vie Iho-sa! Bem, acho que devemos dar aos outros uma chan- 31 ce de conversat com © convidado de honra. E nfo se es- queca, st, Williams, estarei no seu concerto se puder. Es- tarei aplaudindo mais do que todo mundo. E, se nfio pu- der ir, direi a todo mundo que conheco para ir. Nao se esqueca! — Nao me esquecerei — ele disse. — Muito agra- decido. © anfitrido tomou-a pelo brago € levow.a para a sala ao lado, Oh, meu Deus — ela disse. — Quase mort! Nio sei como nfo desmaiei. Vocé viu aquele fora horrivel que eu dei? Quase disse que Katherine Burke parecia uma ctioula! Mas ainda bem que me flagrei a tempo. Oh, sera que ele notou? — Nao acredito — disse o anfitriao, Gracas a Deus — disse ela —, porque nfo gosta- tia de télo aborrecido por nada. Puxa, cle € tao gentil. Mais gentil, impossivel. Tem boas maneiras ¢ tudo o mi: Vocé sabe, com alguns negros, a gente Ihes dé um dedo e cles querem o resto. Mas ele nem tentou, Bem, talvez cle tenha bom senso. Ele € timo. Voeé no acha? — Sim — disse o anfitriao. — Gostei dele — disse ela. — Nio tenho nada con- tra cle pelo fato de ser negro. Me senti tio & vontade como se estivesse conversando com uma pessoa normal. ‘Mas, sinceramente, as vezes eu tinha que me forcar um pouco, Nao parava de pensar em Burton. Oh, mal posso esperar para contar a Burton que chamei o crioulo de senbor! (Tirulo original: Arrangement in Black and W bite) 32 OS SEXOS O rapaz de gravata extravagante olhou netvosamen- te para a jovem vestida de babados, ao seu lado no sofé, Ela examinava o seu lencinho com tal interesse que era como se aquela fosse a primeira vez que via um ¢ tivesse se encantado pela sua forma, material e possibilidades. rapaz pigarreou, produzindo um ruido baixinho e sinco- pado, sem necessidade € sem sucesso. — Quer um cigarro? — perguntou. — Nio, obrigada — disse cla. — Imensamente obrigada, de qualquer maneira, — Perdio, sé tenho desta marca — disse cle. — Voc tem da marca que gosta? — Nio sei, talvez tenha — disse ela, — Mas obri- gada assim mesmo. — Porque, se nfo tiver, nfo me custaria mais que um minuto para ir esquina ¢ comprar um mago. — Oh, obtigada, mas eu nfo lhe daria este trabalho por nada deste mundo — disse ela. — E extremamente gentil da sua parte oferecer-se para isso, mas muito obti- sada. — Droga, quer parar de ficar me agradecendo o tempo todo? — disse ele. — Realmente — disse ela —, eu no sabia que esta- va dizendo nada inconveniente, Mil perddes se 0 magoei. 33 Sei como a gente se sente quando é magoada. Nunca ima- ginei que fosse um insulto dizer “obrigada” a alguém. Nao estou exatamente habituada a ouvir alguém gritar comigo quando digo “obrigada”’ — Nio gritei com vocé! — gritou ele. — Ah, nao? — disse ela. — Sei. — Meu Deus — disse cle —, s6 Ihe perguntei se podia ir ld fora comprar cigarros para vocé. E motivo para voct subir pelas paredes? — Quem estd subindo pelas paredes? — disse ela. — Eu apenas niio sabia que era um crime dizer que jamais sonharia em Ihe dar esse trabalho. Talvez eu seja muito burra ou coisa assim. — Afinal, quer ou néo quer que eu vd ld fora Ihe comprar cigarros? — disse ele. Pelo amor de Deus — disse ela —, se quer tanto ir, ndo se sinta na obrigacao de ficar aqui. Nao se sinta amarcado. — Ora, ndo seja assim, té bom? — disse ele. — Assim como? — disse ela. — Nao estou sendo assim nem assado. — O que hi com voce? — disse ele. — Ué, nada — disse ela. — Por qué? — Vocé esti esquisita esta noite — disse ele. — Mal me dirigiu a palavra desde que cheguei — Peco-lhe mil perdes se nao estd se divertinde — disse ela, — Por favor, nao se sinta obrigado a ficar s¢ est se aborrecendo. Aposte que ha milhdes de outros lugares onde vocé se divertiria muito mais. Acontece que eu deyeria ter pensado um pouco melhor antes. Quando voce disse que viria aqui esta noite, desmarquei um monte de compromissos para ir a0 teatro ou algo assim. Mas niio faz a minima diferenca. Preferia até que vocé fosse se di- a vertir em outro luger. Nao é muito agradiivel ficar sentada aqui, achando que vou matar alguém de tédio. — Nio estou morrendo de tédio! — ele urrou. — E nfo quero ir a lugar nenhum! Por favor, querida, qual € 0 problema? Me conte. — Nio tenho « menor idéia do que voeé esté falan- do — ela disse. — Nao hé o menor problema. Nao sei.o que voce quer dizer com isso. — Sabe, sim — disse cle. — Hi algum problema Foi alguma coisa que cu fiz? — Deus do céu— disse ela—, nao é absolutamente da minha conta qualquer caisa que vocé faga. Seja © que for, eu jamais teria o direito de criticé-lo. — Quer parar de falar desse jeito, por favor? — disse ele, — Falar de que jeito? — disse ela. — Voeé sabe muito bem — disse ele, — Do mes- mo jeito com que vocé falou comigo a0 telefone hoje. Es- tava tio ranzinza quando liguei que tive até medo de falar — Perdiio — disse ela, — Como é que eu estava mesmo? — Estd bem, desculpe — disse ele. — Retiro-a ex- pressiio, E que, as vezes, vocé me enche o saco. — Lamento — ela disse —, mas nao estou habi- tuada a ouviresse tipo de linguagem, Ninguém nunca fa- Jou assim comigo, em toda a minha vida — J lhe pedi desculpas, nao pedi? — ele gemeu. — Juro, querida. Nao sei como pude dizer uma coisa dessas, Vai me perdoar, vai? — Oh, claro — disse ela. — Pelo amor de Deus, nao fique se desculpando, Nao faz a menor diferenga. 56 achei engragado ver alguém que sempre considerel uma 35 pessoa educada entrar na minha casa € usar um palavrea- do come este, Mas nfo faz a minima diferenga, ~ — Bei, acho que nada do que eu diga faz a menor diferenga para vocé — ele disse. — Vocé parece magoa- da comigo. — Eu, magoada com vacé? — ela disse, — Nao sei de onde voce tirou essa idéia. Por que eu estaria ma- goada com.vocé? — Fo que eu gostaria de saber — cle disse. — Nao vai me dizer 0 que houve? Fiz alguma coisa para magoé-la, querida? Do jeito que vocé estava no telefone, fiquei preocupado o dia inteiro. Nem consegui trabalhar direito. — Eu certamente nao gostaria de saber que estou interferindo no seu trabalho — disse ela. — Sei que mui- tas garotas fazem esse tipo de coisa sem a menor cerimé- nia, mas eu acho terrivel. Nao & muito agraddvel ficar aqui ouvindo que estou interfetindo no trabalho de al- guém — Eu niio disse isso! — ele berrou — Ah, nao? — ela disse. — Bem, foi o que enten- di. Deve ser a minha estupidez. — Acho que o melhor mesmo é ir embora — disse ele, — Nada da certo. Tudo que eu digo s6 serve para chateé-la cada vez mais. Quer que eu vd? — Pot favor, faga exatamente 0 que estiver com vontade de fazer — ela disse. — A tiltima coisa que eu gostaria de fazer seria obrigé-lo a ficar quando voct prefe- re ir a outro lugar. Por que nao vai a algum lugar onde ilo se aborreca tanto? Por que nao vai & casa de Florence ‘Leaming, por exemplo? Tenho certeza de que ela adoraria recebé-lo, -— Nilo queto ir & casa de Florence Leaming! — ele 36 zurrou. — O que eu iria fazer na casa de Florence Lea- ming? Ela é um pét — Ah, € — disse ela. — Nao era 0 que voce pa: recia pensar na festa de Elsie, ontem & noite, como en notei. Ou nfo teria conversado com ela a noite toda, sem tempo pata mais ninguém. — Exatamente, ¢ sabe por que eu estava conyersan- do com ela? — disse ele. — Bem, suponho que vocé a ache bonita — disse ela. — Algumas pessoas acham. EB perfeitamente natural. Ha quem a ache bonita. — Nido sei se ela é feia ou bonita — disse ele. — Se ela entrasse agora por esta porta, ndo sei se a reconhe- ceria. S6 fui conversar com ela’ porque vocé nfo me deu a minima atencio ontem a noite. Eu me ditigia a vocé e vocé s6 sabia dizer, “Oh, como vai?”. O tempo todo: “Oh, como vai?”. EB virava as costas imediatamente. — Eu nao lhe dava a minima? — ela se espantou. — Oh, mas ¢ tao engragado! engracadfssimo! Nao se importa que eu ria, nfo? — Pode rir até engasgar — ele disse, — Mas que é dite, € — Bem, no instante em que voce chegou, comegou a fazer um fuzué pot causa de Florence Learning, como se 0 resto do mundo nao existisse. Vocés dois pareciam estar se divertinido tanto que eu jamais teria me intfome- tido. — Meu Deus — ele disse —, a tal moca Florence. nio-sei-das-quantas veio falar comigo antes que eu visse qualquer conhecido. O que vocé queria que eu fizesse? Que Ihe desse um soco no nariz? — Bem, certamente, nio o vi tentar — disse ela. — Mas me viu tentar falar com vocé, néo viu? — 37 disse cle. — E 0 que vocé fez? Ficou repetindo “Oh, como vai?””. Ai a tal Florence apareceu de novo e me se- gurou, Florence Leaming!-Acho ela horrivel. Quer saber ‘o que eu acho dela? Que € uma pateta. — Bem — disse ela —, claro que essa sempre foi a impressio que tive de Florence, mas sabesse li? Hé quem a ache linda. — Ora — disse ele —, como ela poderia ser linda estando na mesma sala com voce? — Nunca vi um nariz tio feio — disse ela. — Te nho pena de qualquer garota com um nariz como aquele. — Pois é, um nariz horrorose — disse ele. — J4 0 seu nariz € lindo. Puxa, como o seu nariz é bonito! — Ora, que nada — ela disse, — Vocé estd louco. — Ah, €? — cle disse. — E 08 seus olhos? E 0 seu cabelo ¢ a sua boca? E olhe que méos. voce tem! Venha cd, me empreste uma dessas miozinhas. Ai, que mio! Quem tem as mios mais gostosas do mundo? Quem é a garota mais gostosa do mundo? — Nao sei — ela disse. — Quem? — Nao sabe! — cle riu. — Claro que sabe. — Nao — ela disse. — Quem? Florence Leaming? — Florence Leaming, uma ova! — ele disse. — Es- td puta comigo por causa de Elorence Leaming! E eu sem dormir a noite toda ¢ sem conseguir trabalhar o dia inteiro porque voct nao falava comigo! Uma garota como voce se preocupando com um estupot como Florence Leaming! — Acho que voeé € completamente louco — disse ela, — Nao estava preocupada, O que o fez pensar que eu estava? Vocé é louco. Oh, minhas pérolas novas. Dei- xe-me tird-las primeiro. Pronto, (Titulo original: The Sexes) 38 VOCE ESTAVA OTIMO O rapaz de tez péilida acomodou-se lenta € cuidado- samente no sof e reclinou a cabeca em direcdo a uma al- mofada fresca que Ihe confortasse a face ¢ a témpora, — Aili — gemeu. — Ai, ai, ai. Aili. ‘A jovem de olhos claros, sentada firme ¢ ereta na poltrona, langou-lhe um sorriso malicioso. — Nio esté se sentindo bem hoje? — disse — Oh, estou étimo — disse ele. — Borbulhante cu diria, Sabe a que horas me levantei? As quatro da tar- de, em ponto, Tentei me levantar antes, mas toda vez que punha a cabega para fora do travesseiro ela rolava para debaixo da cama. Isso que voce esté vendo em cima do meu pescoco nao é a minha cabeca. Acho que € qual- quer coisa que costumava pertencer a Walt Whitman. Aiii! Ai, ai, ai! — Quer um drinque para se sentir melhor? — disse ela — Para afogar a ressaca em mais bebida? — disse cle. — Nao, obrigado. Nunca mais me oferega isso. Parei de beber, de vez. Nem mais uma gota, Olhe para minha mao: firme como um beijalor. Me diga uma coisa; me comportei mal ontem a noite? — Ontem? — ela disse. — Ora, que nada. Todo mundo estava meio alto. Vocé estava 6timo, 39 — Imagino — disse ele. — Devo ter ficado meio alegre. Alguém reclamou de mim? — Deus do céu, claro que ndo — disse ela. — Todo mundo achou vocé terrivelmente engragado. Claro, Jim Pierson ficou um pouco brabo com voeé durante o jantar. ‘Mas conseguiram segurélo na cadeira e ele se acalmou. Acho que, nas outras mesas, quase ninguém notou. — Jim queria me bater? — disse ele. — Oh, meu Deus. O que foi que eu fiz? — Gra, vocé nfo fez nada — disse ela. — Vocé estava 6timo. Mas vacé sabe como Jim fica quando pensa que alguém estd dando em cima de Elinor. E eu estava cantando Elinor? — disse ele. — Eu fiz isto? — Claro que néo — ela disse. — Voeé estava sé brincando. Ela o achou imensamente divertido. $6 parou de rir um pouco quando voeé despejou as lulas ese tinta pelo decote dela — Deus do céu — ele suspitou. — Lulas en sit tinta dentro daquele decote! E agora, 0 que vou fazer? — Ona, ela vai ficar boa — a outra respondeu. — Mande-lhe umas flores no hospital, ou coisa assim. Nao se preocupe. Nao foi nada. — Ah, nfo, nio vou me preocupar — ele disse. — Nao tenho nada com que me preocupar. Estou uma gra- cinha. Oh, Deus! Cometi mais alguma facanha fascinante no jantar? — Voce estava étimo — disse ela. — Nao seja tolo, Todo mundo estava louco por voce. O maitre ficou um pouco aborrecido porque vocé nao conseguia parar de cantar, mas, no fundo, nao se importou, Sé disse que tal- vez a policia fechasse de novo o restaurante, por causa do barulho, Mas nfo-se importou nem ‘um pouquinho. 40 Acho que ele até gostou de ver que voct estava se diver- tindo tanto. Vocé cantou durante uma hora, uma hora e Pouco, nao mais. E nem foi tio alto assim. — Quer dizer que eu cantei — ele disse. — Deve ter sido formidavel. Eu cantei, — Nio se lembra? — disse ela. — Uma misica atrds da outta. Todo mundo ficou ouvindo. E adorou, Foi 86 quando vocé insistiu em cantar qualquer coisa sobre fuzileiros, ou algo assim, que as pessoas comegaram a fazer psiu, psiu para voeé, @ vocé insistia em canté-la de novo. Foi uma maravilha. Tentamos fazer com que vocé patasse de cantar por um minuto e comesse um pouco, mas voce nem queria saber. Ah, como vocé estava engracado! — Por qué? Eu nao estava comendo? — disse ele — Oh, nem um naco — disse ela. — Toda vez que @ gargon vinha servi-lo, vocé Ihe devalvia 0 prato dizendo que ele era o seu irmio postigo, trocado no bergo da ma- ternidade por uma quadrilha de ciganos, ¢ tudo que voce tinha pertencia a ele. O gargon ficou uma onga com voct. — Se eu fosse ele, também ficaria — disse ele. — Eu devia estar um hotrot. Uma grasa. Bem, o que acon- teceu depois do meu estrondoso sucesso com o gargon? — Ab, pouca coisa — ela disse. — Vocé aparente- mente discordou do estampado da gravata de um senhor de cabelos brancos, sentado no outto lado da sala, ¢ foi ld Ihe pedir satisfagGes. Mas conseguimos sair com vocé do restaurante, antes que cle ficasse furioso, — Ah, fomos embora — ele disse. — Sai andando? — Andando! Claro que sim! — disse ela. — Vocé estava perfeitamente bem. Tanto que, quando vocé tro- pegou no meio-fio e caiu sentado, ninguém se importou, Poderia ter acontecido a qualquer um. — Ah, claro — disse ele. — Poderia ter acontecido 41 a Louisa May Alcott ou a qualquer um. Quer dizer que eu cai na calgada. Isso explica por que estou com essas dores na bunda, Est bem. E depois, se nfo se importa em ‘me contar — Ora, Peter! — ela disse. — Nao v4 me dizer que niio se lembra do que aconteceu depois! Achei que vo- cé podia estar um pouco alto durante o jantar, embora vocé estivesse perfeitamente stimo; € que eu sabia que vocé estava apenas se divertindo. Mas, depois do tombo, voce ficou tao sério. . . nunca o vi desse jeito! Nao se lembra de como me contou que eu nunca ¢ tinha visto como voc? era de verdade? Peter, seria demais para mim se vocé niio se lembrasse daquela longa ¢ maravilhosa cor- rida de tdi que fizemos! Oh, Peter, diga que se lembra! ‘Vou morrer se vocé nao se lembrar. — Ah, sim — ele disse. — Corrida de taxi. Ah, claro, Bem longa, ahn? — Demos umas mil voltas em torno do Central Park — disse ela. — Oh, como as drvores brilhavam a0 luar! E voc disse que, até ente, nunca soubera que tinha alma! — Foi — disse cle, — Falei isso mesmo, Aquilo cra eu. — Vocé disse coisas téo lindas, tio lindas — ela gemeu, — E eu nunca soube, tado esse tempo, o que vocé sentia por mim, e nunca ousei deixé-lo saber como eu me sentia em relacao a voce. E, entéo, ontem A noite... oh, Peter querido, acho que aquela corrida de téxi foi a coisa mais importante que ja aconteceu em nossas vidas! — FE — disse ele. — Parece que foi mesmo. — E vamos ser tio felizes — disse ela. — Mal pos- #0 esperar para contar a todo mundo! Mas, nio sei... a talvez fosse mais gostoso a gente manter a coisa entre nés por uns tempos. — Ahn... acho que sim — disse ele — Nio € dtimo? — disse ela. — E~ ele disse, — Fantastico. — Que étimo! — cla disse — Olhe aqui — disse ele —, importa-se se eu tomar um drinque? Como se fosse remédio, entende? Nunca mais vou pér uma gota de dlcool na boca, mas é que estou sentindo ligeiras ameagas de um colapso. — Oh, até acho que Ihe faria bem — cla disse. — Tadinho, vocé parece estar se sentindo tio mal. Vou lhe fazer um uisque com soda — Sinceramente — disse ele —, nao sei como vocé ainda me dirige a palavra, depois de todas as loucuras que fiz ontem & noite, Acho que vou me tefugiar num monas tério no Tibet — Bobinho! — cla disse, — Como se eu fosse dei- xit-lo escapar agora! Pare de dizer bobagens. Vocé esta- va absolutamente étimo! Ela pulou do sofa, beijou-o rapidamente na testa € correu para a cozinha. O rapaz pélido acompanhou-a com o olhar, sacudiu a cabeca, longa e lentamente, e depois deixou-a cait em suas mos timidas ¢ trémulas. — Aiii — disse. — Ai, ai, ai. (Titulo original: You Were Perfectly Fine) O PADRAO DE VIDA ‘Annabel e Midge sairam da casa de ché com os passi- nhos lentos e arrogantes dos desocupados, a espera de que © resto da tarde de sibado se estendesse diante delas. Ti- nham almogado, como planejaram, bolinhos com leite ¢ geléia, Geralmente comiam sanduiches de qualquer pao, lambrecados de manteiga ¢ maionese, ou grossas fatias de bolo dormido, entre colheradas de sorvete, ou um choco- late derretido com umas castanhas boiando no meio. Quando queriam variar, pediam pastéis, que respinga- vam azeite de segunda, contendo uns poucos grios de carne mofda nao identificdvel, atolados num recheio que i comegava a endurecer; ou umas empadinhas recheadas de uma coisa amarela e meio doce, nem sélida nem liqui- da, como uma pomada que tivesse sido esquecida ao sol. Nao comiam outras coisas, nem pensavam no assunto. A pele de ambas lembrava pétalas de anémona, € seus est0- ‘magos cram tao achatados ¢ os quadris tao estreitos quan- to os de um jovem guerrciro indigena. Annabel © Midge se tornaram amicfssimas pratica- mente desde 0 dia em que Midge foi contratada como estendgrafa na firma em que Annabel jd trabalhava. Ago- ra, Annabel, com dois anos a mais no departamento de estenografia, ganhava a fortuna de dezoito délares ¢ meio por semana; Midge estava ainda nos dezesseis ddlares, 45 Ambas moravam com suas familias ¢ davam metade de seus saldtios para sustenté-las, As mocas sentavam-se lado a lado no escritério, al- mogavam juntas todos os dias e também juntas iam para casa ao fim de cada expediente. Muitas de suas noites domingos eram passados na companhia uma da outra. Ge- ralmente eram acompanhadas por dois rapazes, mas nao havia estabilidade em nenhum dos quartetos. Os dois ra- pazes cram regularmente substitufdos em pouco tempo por outros dois, sem que elas se importassem mem um pouco —e nem haveria por que, j4 que os novos rapazes dificilmente eram distinguiveis dos anteriores. Invariavel- mente as mocas passavam juntas as quentes tardes de si- bado. A constincia nfo chegara a produzir arestas em sua amizade. Elas se pareciam, embora esta semelhanca nao fosse de feigGes. Era mais na forma de seus corpos, sua maneira de andar, suas preferéncias ¢ jeito de se vestir. Annabel ¢ Midge faziam exatamente tudo 0 que duas jovens em- pregadas em escritétio néo devem fazer. Usavam batom e esmalte, pintavam os cilios ¢ tingiam 0 cabelo, além de deixar um rastro de perfume por onde passavam. Usavam vestidos fininhos ¢ espalhafatosos, justos no busto cut- tos nas pernas, ¢ sapatinhos modernos ¢ coloridos. Eta di- ficil nfo reparar nelas, nem no fato de que pareciam vul- gares ¢ chatmosas, Pelo menos, enquanto passeavam pela Quinta Ave- ida, com suas saias movimentadas pelo vento, pareciam notadas por todos. Rapazes letargicamente pastando dian- te de bancas de jornais enderecavam-lhes murmiirios, ex: clamacdes € — o supremo elogio — fiu-fius. Annabel ¢ Midge passavam por eles sem sequer a condescendéncia de se apressarem, empinavam os narizes ¢ acertavam o 46 passo com marcial precisio, como se estivessem pisando no pescago dos transeuntes. Sempre pusseavam pela Quinta Avenida em suas tar- des livres, porque era o territério ideal para o seu esporte favorito. Um esporte que poderia ser praticado em qual- quer lugar, mas que, diante da imponéncia das grandes vitrines da Quinta, exigia tudo delas. ‘Annabel tina inventado 0 jogo — ou talvez o tenha desenvolvido, de outro mais antigo, Basicamente, era 0 velho jogo de perguntar o-que-vocé-faria-se-tivesse-um-mi Ibdo-de-délares? Mas Annabel tinha criado um novo céd go de regras para ele, tornando-o mais exato ¢ restrito. E, como todo jogo, quanto mais dificil, mais fascinante. A versio de Annabel era assim: suponha que alguém morta ¢ the deixe um milhio de délares, sem impostos Mas hé uma condicio para se pegar a bolada: a de que voc’ deve gastat 0 dinheiro todo com voc’. Af esté 0 acaso do jogo. Se, a0 jogélo, vost se es- quecer ¢ relacionar, entre os seus gastos, o aluguel de um novo apartamento para sua familia, por exemplo, perde a sua vez para o outro jogador. Era impressionante como tanta gente — mesmo os experts — conseguia perder tudo escorregando nesta cldusula, Era essencial, € claro, que ele fosse jogado com toda a seriedade, Cada compra tinha de ser cuidadosamente considerada ¢, se necesséria, apoiada em alguma razio. E nto havia graga em jogar muito forte. Certa vez, Annabel ensinou o jogo a Sylvia, outra garota do escritério, Expli- cowlhe as regras ¢ fez-lhe o desafio: ‘Qual seria a primei- ra coisa que voc’ compraria?”, Sylvia no teve a dectncia de um minuto de hesitaio: “Bem, a primeira coisa que cu Faria séria icontratar. alguém. para: mater-a:mulhet de a7 Gary Gooper, ¢ entdo.,.”. Para mostrar que no estava ali para brincadeiras. ‘Mas Annabel e Midge téham de dar certo como ami- gas, porque Midge tornou-se mestra no jogo assim que aprendeu, Foi ela quem acrescentau os toques que o tor- naram uma coisa mais intima. Segundo as inovagdes de Midge, o sujeito excéntrico que morreu e the deixou a tal fortuna nao era alguém que vocé amasse, ou mesmo conhecesse. Seria alguém que a tivesse visto em algum luger ¢ pensado, “Aquela garota devia ter um monte de coisas fantésticas. Vou deixarlhe um milhio de délares quando morrer””. E esta morte nfio deveria ser nem dolo- rosa, nem prematura. O benfeitor, jé entrado em anos € confortavelmente pronto para partir, apenas se deitaria para dormir, nunca mais acordaria e zarparia direto para 0 céu. Essas lantejoulas faziam com que Annabel ¢ Midge brincassem com suas fantasias na luxdria de suas conscién- cias trangiiilas. ‘Midge jogava com uma seriedade que era nao apenas a exigida, mas extrema, Q tinico abalo na amizade das garotas aconteceu quando Annabel disse que a primeira coisa que compraria com seu milhio de délares seria um casaco de pele de raposa. Foi como se tivesse apunhalado Midge pelas costas. Quando Midge recuperou o félego, disse que nunca-podia imaginar que Annabel fizesse tal coisa — casacos de raposa sio tio vulgares que todo mun- do tem! Annabel defendeu seu bom gosto, sustentando que eles nao eram vulgares. Midge voltou a dizer que eram, E foi até um pouco longe demais, afirmando que no gostaria de ser vista usando um casaco de raposa, nem morta. Nos dias seguintes, embora as duas continuassem se vendo constantemente, seus papos eram cuidadosos ¢ in- 48 freqiientes, ¢ deixaram © jogo de lado. Entio, certa ma- nha, quando Annabel entrow no escritério, virou-se para Midge e disse que tinha mudado de idéia. Jd no gastaria um Unico centavo do seu milho de délares para comprar © tal casaco de raposa. Quando recebesse a heranga, com- praria um casaco de mink. Os olhinhos de Midge brilharam ¢ ela sorriv. — Acho que vocé tomou a decisio certa — disse. Safram pela Quinta Avenida e recomegaram o jogo. Era um daqueles dias de setembro, amaldigoados pelo ca- lor sufocante © nuvens de poluigio no ar. As pessoas se arrastavam pela calgada, mas as duas garotas acertavam © passo ¢ pisavam firme, com a seguranga de duas jovens a caminho de uma grande fortuna, Jé nfo havia necessi- dade alguma de comegarem 0 jogo com uma declaragao formal. Annabel foi direta ao assunto — Estd bem — disse, — Vocé recebeu 0 seu milhiio de délares. O que faria com eles? — Bem — Midge respondeu —, a primeira coisa que fatia seria comprar um casaco de mink, — Mas disse isso mecanicamente, como se fosse uma resposta decorada para uma pergunta que jé esperava. — E — disse Annabel —, foi o que pensci, Um terrfyel casaco de mink. — Mas também ela falava como se fosse de cor. Com 0 calor que fazia, pensar em enfiar-se num casaco de mink, por mais gosteso, chique ¢ fofo que fosse, era suficiente para fazer gotejar suor, Caminharam em siléneio por alguns quarteirées. En- to 0 olho de Midge foi arrebatado pelo que viu na vitei- ne de uma loja. Coisinhas brilhantes e geladas, num esto- jo escuro e elegante. — Sabe — disse Midge —, mudei de idéia. Nao 49 seria um easaco de mink. Compraria um colar de pérolas Pérolas de verdade. Qs olhos de Annabel seguiram os de Midge. — Tem razio — disse. — Acho que ¢ uma boa idéia, B faz sentido, porque pérolas podem ser usadas com qualquer roupa. S6 faltaram colar os narizes & vitrine. Nela sé havia uum objeto: um colar de duas voltas, de pérolas enormes ¢ perfeitas, presas por uma esmeralda ¢ enlagadas num pescogo de manequim, feito de veludo rosa. — Quanto acha que custa? — perguntou Annabel. — Puxa, no faco a menor idéia — disse Midge — Uma nota, eu acho — Uns mil délares? — arriscou Annabel — Nao sei, acho que mais — disse Midge. — Por cansa da esmeralda — Uns dez mil délares? — arriscou Annabel de novo. — Nao da para saber — disse Midge. O deménio cutucou as costelas de Annabel — Voct tem coragem de entrar If ¢ perguntar 0 prego? — Imagine! — disse Midge — Por que néo? — riu Annabel — Ora, uma loja destas nem fica aberta numa tarde de stbado — disse Midge. — Fica, sim — disse Annabel. — Veja, hd gente saindo. E tem um porteiro. Vamos Id. — Estd bem — disse Midge —, mas vocé teré de vir junto. Elas disseram obrigadas, glacialmente, ao porteiro que as conduziu ao interior da loja, Lé dentro estava fres co € silencioso, um grande ¢ elegante salio acarpetado, fi 50 com paredes cobertas de lambris. Mas as garotas faziam expressées de amargo desdém, como se estivessem numa estrebaria. Um vendedor, impecavelmente vestido, veio atendé- las € se curvou para cumprimenté-las. Seu rosto nao traiu um tinico masculo diante da aparéncia delas. — Boa tarde — ele disse, deixando bem claro que nunca se esqueceria se elas the fizessem 0 favor de accitar sua saudagdo dita em voz baixa ¢ grave. — Boa tarde — responderam ambas em unfssono, com uma entonagéo gelada. — Hé algo que eu possa...? — disse ele, — Oh, estamos sé olhande — disse Anabel, Ere como se estivesse extraindo as palavras de uma cocheira. O vendedor curvouse. Minha amiga e eu estivamos s6 pasando. — disse Midge, e parou, como se ouvisse 0 som de suas pré- prias palavras. — Como eu estava dizendo, estivamos imaginando quanto custariam aquelas pérolas na sua vitrine. — Ah, sim — disse o vendedor. — O colar de duas voltas. Sio 250 mil délares, madame. — E? — disse Midge, com a boca bem aberta. O balconista curvou-se: — Uma peca absolutamente linda. Gostaria de exa- miné-la? — Nio, obrigada — disse Annabel — Minha amiga © eu estivamos s6 passando — disse Midge. Sairam — e, pelas suas maneiras, em diregio 4 mi serdvel carroca que as esperava, © vendedor antecipou-se as duas, abriu-lhes a porta e novamente se curvou quando elas passaram. 51 As garotas retomaram o passeio pela Quinta Avenida © 0 desprezo estava estampado em seus rostos, — Francamente! — disse Annabel. — Jé viu coisa igual? — 250 mil délares! — disse Midge. — $6 isso ja € quase meio milhao de délares! — Que descaramento! — disse Annabel. Continuaram andando. Aos poucos 0 desprez0 se desfez, como se tivesse sido levado pela carroga puxada a burros. Seus ombros se curvaram e seus pés se arrastaram, como os dos outros na rua; trombaram uma na outra, sem perceber ou pedir desculpas, e sairam carambolando. Nao tinkam nada a dizer ¢ seus olhos estavam embagados. Subitamente, Midge aprumou-se} empinou 0 nariz ¢ falou, com voz clara e firme: “— Escute, Annabel. Pense bem. Suponha uma pessoa tremendamente rica, entendeu? Vocé nao a conhece, mas ela a viu em algum lugar e quer fazer alguma coisa por vocé. E é uma pessoa bem idosa, est percebendo? Bem, af essa pessoa morre, como se estivesse dormindo, ¢ Ihe deixa dez milhdes de délares. Bem, qual seria a primeira coisa que vocé compraria? (Titulo original: The Standard of Living) UM TELEFONEMA Oh, Deus, faga com que ele telefone agora. Por fa- vor, faca ele ligar agora. Nunca mais Lhe pedirei nada, juro, Nao estou pedindo muito. Nao Lhe custaria nada. Uma coisinha de nada. $6 queria que ele ligasse agora. Oh, Deus. Por favor, por favor. Se eu niio pensasse no assunto, talvez 0 telefone to- casse. As vezes acontece. Ou se eu pensasse em outra coi- sa, Como se pudesse pensar em outra coisa. Talvez se eu contasse até quinhentos, de cinco em cinco, ele tocasse. Prometo contar devagar. Prometo néo fazer trapaca. Mes- mo se @ telefone tocasse quando cu estivesse nos trezen- tos, eu nao pararia de contar. Nao atenderia enquanto nio chegasse aos quinhentos. Cinco, dez, quinze, vinte, vinte -¢ cinco, trinta, trinta ¢ cinco, quarenta, quarenta ¢ cinco, cingiienta. . . Toque, telefone. Por favor, E a diltima vez que olho para o reldgio. Nao vou olhar de novo, Agora sio sete ¢ dez. Ele disse que telefo- naria as cinco. ““Vou te ligar as cinco, querida.” Acho que foi quando ele me chamou de “‘querida’”. Tenho quase certeza de que cle disse. Sei que ele jf me chamou de “querida” duas vezes, ¢ a outra foi quando disse tchau. “Tchau, querida,”” Estava ocupado e nfo podia falar mui- to no escritério, mas me chamou de “querida’” duas vezes. Acho que néo se importou que eu ligasse para ld. Sei que 53 nao se deve ficar telefonando pata cles no trabalho — eles niio gostam muito. Quando voeé faz isso, eles sabem que vocé est pensando neles, que esté precisando deles, ¢ eles odeiam isso. Mas nao falava com ele ha trés dias — nem uma vez em trés dias. E sé liguei para perguntar. the como ia; qualquer pessoa poderia ligar por este moti- vo. Ele nao poderia ter se aborrecide com isso. Nao pode- ria pensar que cu o estava importunando. “Nao, claro que nao”, ele disse. E disse que iria me telefonar. Nao preci- sava ter prometido, Nio the pedi para prometer, juro Tenho certeza de que nio pedi, Nio acho que ele fosse capaz de dizer que ia me ligar, ¢ depois nunca mais tele. fonar. Oh, Deus, nao © deixe fazer isso. Por favor. “Vou te ligar &s cinco, querida."” “chau, querida.” Estava ocupado € com pressa, ¢ devia haver gente em volta, mas ele me chamou de ‘querida”” duas vezes. Isso ninguém me tira, mesmo que nunca o veja de novo. Oh, mas & tao pouco. Nao é suficiente. Nada serd suficiente se eu nao o ver de novo. Deus, por favor, deixe-me vé-lo de novo. Eu o quero tanto. Quero demais. Prometo ser boa- zinha, meu Deus. Tentarei ser melhor, se Deus me deixar vélo de novo. Faga com que ele me telefone agora. Ah, Deus, nio deixe que minhas preces Lhe paregam tio insignificantes. O Senhor fica sentado no seu trono ai em cima, todo velhinho e de branco, cercado de anjos com uma chuva de estrelas em volta. E eu sé Lhe peco um telefonema. Nao ria, meu Deus. O Senhor nao sabe 0 que €isto. © Senhor esté seguro aiinas nuvens, com todo aque- le azul embaixo. Nada pode tocé-Lo, ninguém pode fazer gato € sapato do Seu coragio. Pois isto ¢ 0 softimento, meu Deus, muito sofrimento. Nao pode me ajudar? Pelo amor de Seu Filho, me ajude! O Senhor nfo disse que faria 0 que Lhe fosse pedido em nome Dele? Oh, meu 54 Deus, em nome de Jesus Cristo, nosso Senhor, faga com que ele me telefone agora. Preciso parar com isso. Ndo posso continuar assim. Vejamos. Suponha que um rapaz diga que vai telefonar para uma moga, mas at alguma coisa acontece © ele nao liga. Nao € tao terrivel, €? Ora, acontece 0 tempo todo, em qualquer parte do mundo. Bolas, e que me importa ‘© que esté acontecendo no resto do mundo? Por que o aio deste telefone nao toca? Por que, por qué? Por que vocé nio toca, seu chato? Bobo, feio, lindo, Ia te machu- ‘ar sc tocasse? Claro, ia te machucar. Pois vou arrancar 10s seus fios da parede ¢ esmagar essa merda de aparelho preto em pedacinhos, seu merda Nio, nio, nio. Nada disso. Preciso pensar em algu- ma coisa. Eo que vou fazer, Vou por o reldégio no outro quarto, Assim nio ficarei olhando para ele. Se tiver que ver as horas, terei de ir até o outro quarto, e isso serd alguma coisa para fazer. Talvez, antes de eu ver as horas de novo, ele me telefone. Prometo ser doce com ele, se me telefonar. Se disser que nao pode me ver

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