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PRIMO LEVI A TREGUA Tradugao ‘Marco Lucchesi ‘ComPANT Ape BOTS. Copyright © 1958, 1963 « 1989 by Giulio Einaudi edizore spa, Torino Grofit auaicaa rune «Acardo Orogsfc da Lingua Portuguesa de 1980, (we entron om gor ne Baril em 2008. “Tt original Latregua Cops Jett Pier Propose Marcia Copola Contra Frandiseo Foot Hardman Resists Adriana Moretto Pedro Carvalho Dak rine Cai Peni) 2010 “Tindon os direitos desta edigfo reservados 3 ua Bandra Paulista, 702, oj 32 (0453-002 — Sto Paulo— st “Telefon: (1) 37073500 Fax (11) 3707-3501 www companhiadsletraccom be Sonbdoams nas nites formes Sonbas dnsoseviolentos Somhados de corp ¢ alma Volar; comer; conta Entio sara breve e submis ‘orden do amanbecer: “Wtavach" E se partia no pita o corn Agora reencontrames a cast ‘Norse venore esd saciad, Acabams de contar. E tempo, Logo oxciremes ainda o comando esrangeire: “Woeavach”. U1 de janeiro de 1946 O CAMPO MAIOR EM BUNA NAO SABIAMOS MUITO a respeito do “Campo ‘Maior”, de Auschwitz propriamente dito: os Hafilinge trans- feridos de um campo para outro eram poucos, nada loquazes (nenham Hifeling 0 era), nem facilmente levados em conta. Quando a carroga de Yankel ultrapassou a famosa soleia, ficamos atGnitos. Buna-Monowitz, com seus doze mil habi= tantes, era, em comparacio, uma aldeia, Nada de ‘Blocks” cde madeira de um andar, mas inumerives edificios tétricos € quadrados, de tijolo, de trés andares, todos iguais; entre cles ppassavam estradas pavimentadas, retilineas © perpendiculates, perder de vista, Tudo 0 mais era deserto silencioso, esmagado sob 0 céu baixo, repleto de lama, chuva e abandono. ‘Fambém aqui, como a cada rmudanga de nosso tio longo iti- nerétio, fomos surpreendidos com um banho quente, enquanto precisévamos de muitas outras coisas. Mas aquele banho no foi ‘um banho de humithagio, um banho grotesco-demonfaco-sa- cral, um banho de missa negra, como 0 que havia marcado nossa descida a0 universo do campo de concentraclo, e tam- pouco foi um banho funcional, antsséptico, altamente técnico, como aquele quando passamos, muitos meses depois, esfera «dos americanos. Um banho & maneira russa, em eseala humana, ‘extemporanco e aproximador ‘Nao pretendo par em diivida que o banho para nés,e naque~ las condigdes fosse oportuno: era necessério e bem-vindo, Mas cra ficil Feconhecer no banho, ¢ em cach um daqueles memo- rveis lavacros, por detris do. aspecto concreto ¢ literal, uma grande sombra simbélica, o desejo ineonsciente, por parte da nova autoridade, que aos poucos nos absorvia em sua esfera, de nos despojar dos vestigios de nossa vida anterior, de fazer de nds hhomens novos, segundo seus modelos, impondo a sua marca, 6 (Os bragos robustos de duas enfermeiras soviétieas depu~ seram-nos da carroga: “Po mal, po malul” ("Devagar, deva- sgar!”); foram as primeiras palavras russas que ouvi. Bram duas Imogas enérgicas e experientes. Levaram-nos para uma das construgdes do Lager, que foram sumariamente reordenadas, tembora de maneira eficaz; tiraram as nossas roupas, fizeram tum sinal para que nos deitissemos nas treligas de madeira que cobriam o chio e, com mos piedosas, mas sem eeriménia, nos ensaboaram, esfregaram, massagearam © nos enxugaram da eabeca aos pes ‘A operacio prosseguin ripida e direta com todos, apesar de alguns protestos moralistico-jacobinos de Arthur, que se proclamava ‘libre citoyen”, em cujo subconsciente 0 contato daquelas mos fernininas em sua pele entrava em eonflito com tabus ancestrais. Houve, contudo, uma grave dificuldade quan- do chegou a ver do iiltimo do grupo. ‘Nenhum de nds sabia quem ele era, porque nio estava em condigées de falar. Era um fantasma, um homenzinho calvo, nodoso como uma parreira, esquelético, embrulhado por uma horrivel contratura de todos os misculos: haviam-no tirado do vagio, como um bloco inanimado, ¢ agora jazia no chio sobre tum flanco, enrascado e rigido, numa desesperada posi¢io de defesa, com os joelhos espremidos contra 0 rosto, os cotovelos colados nos flancos, ¢ as mios em cunha com os dedos aponta- dos contra as costas, As enfermeiras russas, perplexas, buscaram em vio esties-lo sobre o dorso, ao que ele emitix gritos agudos como os de um rato: de resto, era fadiga initil; seus membros, cediam elasticamente soba pressio, mas, to logo abandonados, estalavam para tras, assumindo a posicio inicial. Tomaram Alecisio de levé-lo para a ducha do jeito que se encontrava: e, como tivessem ordens precisas, varam-no da melhor maneira, forgando a esponja e 0 sabio no emaranhado lenhoso daqucle ‘corpo; por fim, tiraram o sabio conseienciosamente, despejan- do-em cima dele umas duas bacias de agua morna, ‘Charles e €u, mus e com frio, assistiamos & cena com horror. Enguanto um dos bragos era esticado, viu-se por um instante 4 ‘6 imero tatuado — era um 200 000, um dos Vosges. “Bon dieu, c est un francais!" fez Charles, e voltou-s, em siléaco, para o muro. Deram-nos camisas ¢ eueeas, ¢ levaram-nos ao barbeiro russo para que; pela itima vez.em nossa carreira, nossos cabe~ los fossem cortados a zero. O barbeiro era um gigante more- ro, de olhos selvagens © endemoniados: exercia sua arte com impensada violéncia e, por razGes por mim ignoradas, trazia a metralhadora as costas. “Italiano Mussolini, disse-me de soslaio, ¢ aos dois franceses: “Francé Laval’; onde se vé como podem ser de pouco auxilio as ideias gerais para a compreensio dos casos singulares, Aqui nos separamos: Charles ¢ Arthur, recuperada a safe « com relative bom aspecto, voltaram a fazer parte do grupo dos franceses, ¢ desapareceram de meu horizonte. Doente, fui levado & enfermaria, visitado sumariamente, € enviado com “urgéneia a uma nova Seca Infecciosos. ‘Nas intengBes, aquela devia ser uma enfermaria, e além disso porque efetivamente fervilhava de enfermos (com efei- 10, 05 alemaes, na fuga, deixaram em Monowitz, Auschwitz ¢ Birkenau apenas os doentes mais graves, os quais foram reuni- dos pelos russos no Campo Grand): nao era, nem podia ser, ‘um lugar de tratamento porque os médicos, na maior parte ‘também doentes, eram poueas dezenas, os remédios € 0 mate- rial sanitério inexistentes, enquanto precisavam de tratamento ‘tr@s quartos dos cinco mil héspectes do campo. © lugar que me foi designado era um quarto enorme ¢ escuro, cheio até 0 teto de sofrimentos ¢ lammirias. Pera uns ‘otoeentos doentes, havia apenas um médico de plantio, & rnenhum enfermeiro: cram os proprios doentes que deviam responder as suas necessidades mais urgentes, ¢ Aquelas de seus ‘companheiros mais graves. Passei li uma s6 noite, que recordo ‘como uum pesidelo; de manhi, contavam-se as dizias os cadi~ veres nos beliches ou espalhados no chao. rn No dia seguinte fui transferido para um lugar ainda menor, aque continha apenas vinte beliches: mum deles permaneci dei tudo por trés ou quatro dias, safoeado por uma febre altissima, ‘consciente de tempos em tempos, incapaz de comer, e atormen- tado por uma sede atroz No quinto dia a febre desaparecera: sentia-me leve como tuma nuvem, esfomeado e gelado, mas a minha cabega estava livre, os olhos e os ouvidos apurados pela frias forgadas, e ji ‘stava pronto para retomar contato com o mundo. No curso daqueles poncos dias, verficara-se a0 meu redor ‘uma visivel mudanga. Fora o sltimo grande golpe de foice, 0 Fechamento das contas: 0s moribundos estavam todos mortos, éenquanto nos outros a vida recomecava a flair turmultuosamen- te. Fora dos vidros, ainda que nevasse bastante, os funestos caminhos do Campo nao estavam mais desertos, pululavam rum ir e vir élacre, confuso © rumoroso, que parecia ser um fim em si mesmo. Até tarde da noite ouviam-se ressoar gritos alegres ou iracundos, apclos, cangdes, Nao obstante a minha atenio, e aquela dos meus vizinhos de leto, raramente conse guia evitar a presenca obsessiva, a forca mortal de afirmagio do menor ¢ do mais inerme dentre nds, do mais inocente, de um. menino, de Hurbinek. Hurbinek era um nada, um filho da morte, um filho de Auschwitz, Aparentava trés anos aproximadamente, ninguém sabia nada a seu respeito, nao sabia falar € no tinha nome: aquele curioso nome, Hurbinek, forathe atribuido por nés, talvez por uma das mulheres, que interpretara com aquelas silabas uma das vozes inarticuladas que o pequeno emia, de quando em quando. Estava_paralisado dos rins para baixo, © tinha as pernas atrofiadas, to adelgagadas como gravetos; mas 6s seus olhos, perdidas no rosto pilido e triangular, dardejavam terrivelmente vivos, cheios de busca de assereio, de vontade de libertar-se, de rompera tumba do mutismo. As palavras que Ihe faltavam, que ninguém se preocupava de ensinar-lhe, a neces- sidade da palavra, tudo isso comprimia seu olhar com wxgéncia cexplosiva: era um olhar a0 mesmo tempo selvagem e humano, 1 alifs, maduro_e¢ judicante, que ninguém podia suportar, to carregado de forga e de tormento. ‘Ninguém, salvo Henck: era’ meu vizinho de cama, um robusto e vigoroso rapaz hingaro de quinze anos. Henek passava metede de seus dias junto do eatre de Hurbinek. Era ‘maternal mais do que paternal: € bastante provivel que, se aquela nossa preciria convivéncia tivesse continuado por mais dde-um més, Hurbinek aprenderia a falar eom Hlenek; certamen- ‘te mais do que com as meninas polonesas, demasiado doces ¢ demasiado fiteis, que o embriagavam de caricias e de beijos, :nas evitavam-lhe a intimidade, Henek, a0 contririo, ranguilo e obstinado, sentava-se jun- to 4 pequena esfinge, imune a autoridade triste que dela ema- nava; Ievava-the a comida, ajustava-Ihe as cobertas, Fimpava-o ‘com mos habilidesas, desprovidas de repugnancia; ¢ falava-lhe, naturalmente, em hiingaro, com vor.lenta paciente. Apés uma semana, Henek anunciow com seriedade, mas sem sombra de presungi0, que Hurbinek “dizia uma palavra”. Que palavra? Nio sabia, uma palavra dificil, nio hingara: alguma coisa como mas-klo, matsklo. De noite ficivamos de ouvidos bem abertos: era verdade, do canto de Hurbinek vinha de quando em quando um som, uma palavra, Nio sempre exatamente a ‘mesma, para dizer a verdade, mas era certamente uma palavra articalada; on melhor, palavras articuladas ligeiramente diver- sa; variagBes experimentais sobre um tema, uma raiz, sobre um nome talver. Hurbinek contimaou, enquanto viven, as suas experiéncias cobstinadas. Nos dias seguintes, todos nds o ouviamos em silén- cio, ansiosos por entendé-lo, e havia entre nds falantes de todas as linguas da Europa: mas a palavra de Hurbinek permanecew secreta. Nao, nao devia ser uma mensagem, tampouico uma revelagao: era talvez 0 seu nome, se tivesse tido a sorte de ter ‘um nome; talvez (segundo uma de nossas hipdteses) quisesse dizer “comer” ou “pio”; ou talvez “came” em boémio, como sustentava, com bons argumentos, um dos nossos, que conhe~ cia essa lingua 20 Hurbinek, que tinha tr8s anos © que nascera talver. ef Auschwitz © que no vira jamais uma drvore; Hurbinek, que combatera como um homem, até o ltimo suspiro, para con quistar a entrada no mundo dos homens, do qual uma forga, bestial o teria impedido; Hurbinek, 0 que nao tinha nose, evjo ‘minisculo antebrago fora marcado mesmo assim pela tatuagem de Auschwitz; Hurbinek morreu nos primeiros dias de margo de 1945, lherto mas nao redimido. Nada resta dee: seu testemu~ rho se dé por meio de minbas palavras. Henek era um bom companheiro, e uma perpétua fonte de surpresa. O seu nome também, como aquele de Hurbinek, era convencional: seu nome verdadeiro, Konig, fora alterado para Henek, diminutivo polonés de Henrique, pelas duas meninas polonesss, as quais, embora mais velhas do que ele, pelo menos, ddez anos, sentiram por Henek uma simpatia ambigua que logo se transformou num desejo aberto. Henek-Kinig, tinico em nosso microcosmo de sofrimento, rao estava doente nem convalescente, gozava, ali, de un espléndida saide do corpo e do espirito. Era de haixa estatura ede aspecto doce, mas tinha musculatura de atleta; afetuoso servigal com Hurbinek e conosco, guardava, todavia instintos pacatamente sanguindrios, O Lager, armadilha mortal, “m ‘tho de ossos” para os outros, fora para ele uma boa escola: em ppoucos meses fizera dele um jovem carnivoro pronto, rapaz, feroz e prudente [Nas longas horas que passamos juntos, narrou-me o essen cial de sua vida breve. Nascera € morara numa fazenda, na Transilvinia, em meio ao bosque, junto @ fronteira rome Caminkava frequentemente com o pai pelo bosque no domingo, ambos com o fuzil, Por que com o fuzil? Para eagar? Sim, tam= tbém para cagar; mas também para disparar contra as romenos. E por que disparar contra os romenos? Porque slo romenos, expli- cou-me Henek, com simplicidade desarmante, Eles também, de vvez.em quando, disparavam contra nds a — f Fora capturado e deportado para Auschwity com toda a familia. Os outros foram imediatamente assassinados: ele dis- sera is $$ que tinha dezoito anos e que era pedreiro, enquanto nna verdade tinha eatorze ¢ era estudante. Assim entrara em Birkenau: mas em Birkenau insistira sobre sua verdadcira idade « fora destinado ao Bloco das criangas; sendo mais velho e mais robusto, tornara-se Kapo [prisioneiro supervisor). As eriangas cram em Birkenau como aves de arribagio: passados alguns dias, foram transferidos ao Bloco das experiéncias, ou dire- tamente is edmaras de gis. Henek compreendera de pronto @ situagio, ¢ como bom Kapo organizara-se. Estabelecera séidas relagbes' com. um influente Haftling hangaro permanecera até bertagdo. Quando havia selega0 no Bloco das eriancas, era ele quem escolhia. Nao sentia remorso? Nao: por que sen tir? Acaso havia outra maneira para sobreviver? Quando da desocupacio do Lager, sabiamente se escon- dera: de seu esconderijo, através da janelinha de uma adega, vira os alemes limpando 4s pressas os fabulosos armaréns de Auschwitz, e notara como, na confusio da partida, tinham dei- ado cair pelo caminho boa quantidade de alimentos em lata, ‘io se demoraram a recuperé-Ios, mas procuraram destr passando por cima deles com as correias de seus blindados, Muitas latas fiearam pregadas na lama ¢ na neve, e sem se quebrar: de noite, Henek saira com um saco e reunira um fantistico tesouro de latas, deformadas, achatadas, mas ainda cheias: carne, porco, peixe, frutas, vitaminas. Nao o dissera a ninguém, naturalmente: falara comigo porque eu era seu vizi- tho de cama e podia ser-Ihe itil como vigilante. Com efeito, visto que Henek passava muitas horas a caminhar pelo Lager, ‘em misteriosas tarefas, enquanto eu ficara na impossibilidade ‘de me mover, minha custédia foi-Ihe bastante Gel. Tinha con- fianga em mim: depds 0 saco debaixo de minha cama, € nos dias seguintes correspondeu-me com uma justa recompensa em géneros, autorizando-me a tirar proveito daquelas ages de con~ forto, que considerava apropriadas, em qualidade ¢ quantidade, A minha condigio de doente e A medida de meus servigos.. 2 Huurbinek nao era o tinico menino, Havia outros em condi- es de sade relativamente boas: constitusram uma espécie de pequeno clube, muito fechado ¢ reservado, no qual a intrusio dos adultos era visivelmente importana. Eram pequenos ani- Imais selvagens ¢ sensatos, que se entretinham entre eles em lin fguas que eu nto compreendia. O membro mais influente do cla no tinha mais do que cinco anos, ¢ se chamava Peter Pavel, Peter Pavel nao falava com ninguém e nao tinha neces- sidade de ninguém. Era um belo menino louro e robusto, de rosto inteligente ¢ impassivel. De manha descia de seu beliche, que se encontrava no terceiro andar, com movimentos lentos mas seguros, ia as duchas para encher de gua a sua tigela,, lavando-se meticulosamente. Desaparecia o dia inteiro, fazen- do apenas uma breve apariglo ao meio-dia para reeeber a sopa naquela sua tigela. Aparecia, enfim, para o jantar; comia, sai, ¢ entrava, pouco depois, com um penico; colocava-o num canto atris do fogio, sentava-se por algum tempo, saia novamente ‘com o penico, voltava sem ele, subia devagarinho 20 seu lugar, arrumava com 0 maior cuidado as cobertas e 0 travesseiro, € dormia até a manhi sem mudar de posigi. oucos dias depois da minha chegada, vi com grande ined- ‘modo aparecer um rosto conhecido; © perfil patético e desagra- davel do Kleine Kiepara, 0 mascote de Buna-Monowitz. Todos ‘oconeciam: era 0 mais jovem dos prisioneiros, nfo tinha mais que doze anos. Tudo nele era irregular, a comecar pela sua propria presenea no Lager, onde normalmente as criangas nao entravam vivas: ninguém sabia como nem por que fora admit do, € 20 mesmo tempo todos sabiam até bem demais. Irregular era a sua condicao, pois néo marchava para o trabalho, mas petmanecia em semiclausnra no Bioco dos fuscionérios; visto- samente irregular, enfim, 0 seu aspecto. (Crescera excessivamente e mal: do busto atarracado e curto despontavam os bracos e as pernas demasiadamente longas, como uma aranha; ¢ na parte de baixo do rasto pilido, de tra- 3 ‘gos nfo desprovidos de geaga infantil, saltava para a frente uma imensa mandibula, mais proeminente que o nariz. O Kleine Kiepura era o anspecada e 0 protegido do Lager-Kapo, o Kapa de todos os Kapos. F ‘Ninguém o amava, exceto 0 seu protetor, A sombra da autoridade, bem nutrido e vestido, dispensado do trabalho, levara até o filtimo dia uma existéncia ambigua e insignificante de apaniguado, cheia de mexericos, delagdes ¢ afetos ilicitos: seu nome, erroneamente, como acredito, vinha sempre sus- surrado nos casos mais clamorosos de deniineias andnimas na Scio Politica e nas 88. Por isso todos o temiam ¢ o evitavam. Agora 0 Lager-Kapo, destituido de todos os seus poderes, ‘marchava para o Ocidente, e © Kleine Kiepura, convalescente de uma leve doenga, seguira o nosso destino. Teve uma cama € ‘uma tigela, einseriu-se em nosso limbo, Henek e eu dirigiamos pponcas e prudentes palavras, pois sentiamos em relagio a ele desconfianga e uma piedade hostl; mas quase no nos respon- dia. Permaneceu mulo por dois dias ficava todo encolhido no boliche, como olhar fixando 0 vazio eos punhos fechados sobre ‘opeito. Depois comegou a falar de repente, ¢ lamentamos o set lincio. O Kleine Kiepura falava sozinha, como num sono: €.0 seu sonho era ter feito carrera, ter se transformado num Kapo. Nio compreendiamos se aquela era uma loueura ou um jogo pueril e sinistro: sem trégua, do alto de seu beliche junto a0 teto, 0 menino eantava e assobiava as marchas de Buna, os ritmos brutais que escandiam nossos passos cansados todas as rmanhis e todas as notes; e vociferava em alemao imperiosos ccomanidos para uma tropa de escravos inexistentes. “Levantem, porcos, entenderam? Arramem as camas,ripi- impem os sapatos. Todos em fila, verificagao dos piolhos, verificagio dos pés. Mostrem os pés, seus intiteis! Sujo outra ver, saco de m..: preste atencio, nio estou brineando. Se pego voc? outra ver, vocé vai para p erematérie.” Depois, gritando Aumancita dos militares alemaes: “Em fila, cobertos,alinhados. Gola para baixo: em marcha, com a msica. As mios sobre a costura das ealgas”. E depois ainda, apés uma pausa, com voz do: ™ arrogante e estridula: “Este nfo é um sanatério, Este é um Lager alemao, chama-se Auschwitz, e daqui ninguém sai sena0 pela chaminé. Se quiser € assim; se nio quiser, vi tocar o fio elétrico”, ‘© Kleine Kiepura desaparecen dias depois, para alivio de todos. Entre nds, cansados e doentes, mas cheios da alegria timida e trépida da liberdade reencontrada, a sua presenca ‘ofendia como um cadiver, ea compaixo que ele suscitava era transida de horror. Tentamos, em vio, arrancé-lo de seu deliio: a infeccao do Lager fizera nele grande progresso. As duas meninas polonesas, que desempenhavam (na reali- dade muito mal) as suas fungdes de enfermeira, chamavam-se Hanka e Jadzia. Hanka era uma ex-Kapo, como se podia dedu- zir de sua cabeleira nao raspada, ¢ também dos seus modos insolentes. No devia ter mais de vinte e quatro anos: era de estatura mediana, texolivicea, tagos duros e vulgares. Naquela atmosfera de purgatério, cheia de softimentos passados e pre- sentes, esperangas e piedades, passava os dias diante do espelho, cua lixar as unhas das mios e dos pés, ou a pavonear-se diante do indiferente ¢ irdnico Henek. Era, ou se considerava, de grav mais alto do que Jadzia; ‘mas, na verdade, bastava hem pouco para superar em antoridade uma criatura tio humild, Jadzia era uma menina pequena € timida, de colorido réseo-doente, mas o seu invéluero de carne anémica era atormentado, lacerado por dentro, perturbado por uma secreta © continua tempestade. Precisava, queria, tinha a necessidade urgente de um. homem, de um. homem qualquer, logo de todos os homens. Todo homem que passava pelo seu campo a atraia: a atraia materialmente, pesadamente, como 6 ima atrai o ferro, Jadzia fixava-o com olhos encantados atdnitos, levantava-se do. seu canto, caminhava para ele com passo incerto de sonambula, ¢ buseava o contato; se © homem se afastasse seguia-0 a distancia, em silencio, por alguns metros depois, com olhos baixos, voltava & sua inércia; se © homer 2s esperava, Jadzia 0 envolvia, 0 incorporava, tomava posse, com 66s movinientos cezos, mudos, trémulos, lentos, mas seguros, aque as amebas revelam sob o microsespio. © seu objetivo primeiro e principal era naturalmente Henek: mas Henek nio a queria, zombava dela e a insultava. Todavia, ‘menino pritico que era, nao se desinteressara do caso, co dissera a Noah, seu grande amigo. Noah nio morava em nosso quarto, als, nfo morava em ugar algum ¢ morava em todos os Iugares. Era um homem nomade e livre, feliz do ar que respirava e da terra que pisa- va. Bra o Scheissminister de Auschwitz livre, o ministro das latrinas e fossas negras: mas, apesar desse encargo de coveiro, que ele aceitara voluntariamente, nao havia nada de torpe rele, ou se algo havia, fora superado e apagado pelo impeto de seu vigor vital. Noah era um jovem Pantagruel, forte como ‘um cavalo, voraz.e grosseiro, Assim como Jadzia queria todos ‘os homens, Noah também queria vodas as mulheres: mas ‘enguantoa delicada Jadzia se limitava a langara seu redor suas redes inconsistentes, como um molusco nas pedras, Noah, passaro de alto vo, eruzava do amanhecer até a noite wodas as ruas do Campo, em sua carroca repugnante, estalando 0 chicote e cantando a plenos pulmdes: a carroca parava na porta de cada Block, € enquanto seus gregirios, nojentos fétidos, apressavam, praguejando, suas imundas necessidades, Noah passeava pelos quartos femininos como um principe do Oriente, vestido com um casaco arabescado © matizado, cheio de remendos e botbes. Seus encontros amorosos pare- iam furacdes. Era 0 amigo de todos os homens ¢ 0 amante de todas as mulheres. O dilivio terminara; no eéu negro de Auschwitz, Noah via resplandecer o arco-iris, eo munilo era todo seu, para ser repovoado, Frau Vitea, ali, frau Vida, como todos a chamavam, ama- ‘ya‘a0 contriio todos os seres hnmanos com um amor simples « fraterno, Frau Vida, de corpo desfeito e de doce rosto claro, ‘era uma jovem vitiva de Trieste, meio judia, sobrevivente de Birkenau, Pessava muitas horas junto ao meu leito, falava de 6 smib-coisas a0 mesmo tempo com a dispersio triestina, rindo chorando: tinha boa saide, mas ferida profundamente, ulcerada por quanto sofrera ¢ vira durante um ano de Lager, e naqueles ‘lkimos dias terriveis. De fato, fora destinada ao transporte dos cadaveres, dos pedagos de cadkiveres, dos miseriveis despojos andnimos, © aquelas derradeiras imagens pesavam-lhe por dentro como uma montanha: buscava exorcizé-Ias, lavando-se, ‘mergulhando numa atividade tumultuada. Era ela a tinica pes- soa que se ocupava dos doentes e dos meninos; faia-o com pie~ dade frenética, e quando Ihe sobrava tempo lavava 0 chi € 0s vidros com fri selvagem, enxaguava fragorosamente as tigelas © 05 copos, corria pelos quartos levando mensagens verdadeiras ‘ou fieticias; voltava depois, ofegante, e sentava-se no meu b che; com os olhos simidos, esfomeada de palavras, de confianga, de calor humano. De noite, quando todos os trabalhos do dia, terminavam, incapaz de resisti 3 solidao, saltava de repente de sua enxerga e dangava sozinha de uma cama para outra, a0 som de suas proprias cangdes, apertando afetuosamente 20 peito um homem imaginaco, Foi frau Vida quem fechou os olhos de André e de Antoine. Eram dois jovens camponeses dos Vosges, ambos meus com- panheiros dos dez. dias de interregno, ambos atacados pela, difteria. Parecia-me conhecé-los havia séculos. Com estranho paralelismo, foram atingidos simultaneamente por uma forma disentérica, que logo se revelon gravissima, de origem tuber- crlosa; e em poucos dias a balanga de seus destinos comecou a pender. Encontravam-se em duas camas préximas, no. se dqueixavam de nada, suportayam as célicas atrozes com os dentes, cerrados, sem compreender 2 natureza mortal; falavam apenas, centre si, timidamente, ¢ nfo pediam socorro a ninguém. André {oi o primeiro a partir, na metade de uma frase, enquanto fala- va, como se apaga uma vela, Durante dois dias ninguém veio semové-los: os meninos olhavam-no com curiosidade confuso, depois continuaram a brinear no seu cant. ‘Antoine permaneceu silencioso e s6, encerrado por com- pleto numa espera que o transfigurava. Seu estado de nutrigho ie ra disereto, mas, por dois dias, sofren uma metamorfose destruidora, como que absorvido pelo vizinho. Junto com frau ‘Vida conseguimos, apés muitas tentativas vas, fazer vir um doutor: perguntei-Ihe, em alemio, se havia algo a ser feito, se havia esperancas, ¢ pediclhe que no respondesse em francés, Respondeu-me em idiche, com uma frase breve que no com- preendi: entio traduziu em alemao: “Sein Kamerad roft ihn”, “O seu companheiro o chama’. Antoine obedeceu a0 chamado nnaquela mesma noite. Nao tinham sequer vinte anos, ¢ficaram no Lager apenas um més. E veio finalmente Olga, numa noite cheia de silencio, tr zer-mea noticia funesta do campo de Birkenau,e do destino das mulheres transportadas comigo para o campo de concentragio. Bu a esperava fazia alguns dias: nfo a conhecia pessoalmente, ‘mas frau Vida, que apesar das proibigées saniarias frequentava ‘também os doentes de outras seqdes, 3 procura de softimentos para serem aliviados e coléquios apaixonados, informara-nos das respectivas presengas e organizara o encontro ilicto em pena noite, enquanto todos dormiam. Olga era uma antifascista judaico-croata que se refugiara em 1942 na regio de Asti com a sua familia, onde fora inter~ rnada; pertencia, pois, aquela onda de varios mithares de judeus ‘estrangeiros que haviam encontrado hospitalidade, e breve paz, za Itélia paradozal daqueles anos, oficialmente antissemita Mulher de grande inteligéncia e cultura, forte, bela e conscien- te: deportada para Birkenau, fora a tinica sobrevivente de sua familia. Falava perfeitamente o italiano; por gratidao e temperamen- to, fizera-se logo amiga das italianas do eampo, ¢, mais prec samente, daquelas que foram deportadas com 0 meu com! CContou-me a sua histéria, 0s olhos bainos, & luz da vela, A Inz furtiva subtrafa levemente o seu rosto is erevas, acentuando-the as rugas precoces, transformando-o numa trgica mascara. Um lengo cobria-the a cabeca: ela o retirou de repente, e 2 miscara tornou-se macabra como uma caveira. O eranio de Olga estava ‘nu: cobris-o apenas uma rala penugem cinzenta, 2% “Todos haviarm morrido. Todas as criangas¢ todos 0s velhos. as quinhentas ¢ cinguenta pessoas de quem havia perdido noticia ao entrar no Lager, apenas vinte ¢ nove mulheres haviam sido admitidas no campo de Birkenau: dessas, apenas cinco sobreviveram. Vanda fora para o gis, em plena conscién- cia, no més de outubeo: ela mesma, Olga, providenciara-The dois, comprimidas de sonifero, mas nao foram suficientes. 2

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