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ORALIDADE E ESCRITA’™ Luiz Ant6nio Marcuschi RESUMO Partindo da premissa de que ndo ¢ possivel analisar as relagdes entre lingua falada e lingua escrita centrando-se apenas no codigo lingUistico, este ensaio considera a produgo discursiva em seu todo como uma prdtica social e analisa os contextos de produgdo, os usos e as formas de transmissdo da oralidade e da escrita na vida didria Para isso propée a dupla distingdo entre: (a) oralidade e letramento como praticas sociais ¢ (b) fala e escrita como modalidades de uso, recaindo a primeira na observagao da realidade sociocomunicativa ¢, a segunda na analise de fatos lingiisticos. Identifica, assim, as diversas tendéncias tedricas atuais no trato da questo e postula uma perspec- tiva que recusa toda e qualquer visio dicotémica e simplista, adotando como posigio adequada a relagdo multifatorial entre as duas praticas dentro de um continuo de usos géneros textuais, negando propriedades intrinsecas, positivas ou negativas, imanentes @ oralidade ou a escrii 1, Oralidade e escrita no contexto das praticas sociais Hoje, ¢ impossivel investigar os fenémenos da oralidade ¢ da escri- 1a sem uma referéncia direta ao papel dessas duas praticas na civilizagao contemporanea. De igual modo, ja nao se pode observar satisfatoriamente as semelhangas e diferengas entre oralidade ¢ escrita sem considerar a distribuigao de seus usos na vida didria. Assim, fica dificil, se nao ‘Conferéncia de abertura do I Encontro Franco-Brasileiro de Ensino de Lingua, realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, em outubro de 1995. Doutor em Filosofia da Linguagem pela Universidade de Erlangen, Alemanha. Professor Titular de Lingiistica da Universidade Federal de Pemanbuco (UFPe) Signética, 9:119-145, jan /dez. 1997 119 impossivel, o tratamento das relagGes entre a fala e a escrita centrando-se exclusivamente no codigo. Mais do que uma simples mudanga de perspectiva, isto representa a construgo de um novo objeto de andlise e uma nova concepgdo de lingua ¢ de texto, agora vistos como praticas sociais. A escrita, enquanto pratica social, tem uma histéria rica e multifacetada (ndo-linear ¢ cheia de contradi¢ées) ainda por ser esclareci- da, como lembra Graff (1994). Numa sociedade como a nossa, a escrita mais do que uma tecnologia. Ela se fornou um bem social indispensavel para enfrentar o dia-a-dia, seja nos centros urbanos ou na zona rural. ‘Neste sentido, pode ser vista como essencial 4 propria sobrevivéncia. Nao por virtudes que lhe sdo imanentes, mas pela forma como se impés ¢ a violéncia com que penetrou. Por isso, friso que ela se fornow indispensa- vel. Nao obstante isso, sob 0 ponto de vista mais central da realidade humana, seria possivel definir 0 homem como um ser que fala, mas nao como um ser que escreve, o que traduz a convicgao, hoje tao generalizada quanto trivial, de que a escrita ¢ derivada ¢ a fala é primaria. Nao é neces- saria muita genialidade para constatar que todos os povos, indistintamen- te, tém ou tiveram uma tradigao oral, mas relativamente poucos tiveram ‘ou tém uma tradigao escrita. Nao se trata, com isto, de colocar a oralidade como mais importante, mas de perceber que a oralidade tem uma “prima- zia cronoldgica” indiscutivel. (Cf. Stubbs, 1980) Contudo, mais urgente (¢ relevante) do que identificar primazias ou supremacias entre oralidade e escrita, ¢ até mesmo mais importante do que observar oralidade ¢ escrita como simples modos de uso da lingua, € a tarefa de esclarecer a natureza das praticas sociais que envolvem 0 uso da lingua (escrita e oral) de um modo geral. Essas praticas determinam o lugar, o papel e 0 grau de relevancia da oralidade ¢ da escrita numa sociedade ¢ justifica que a questao da relagdo entre ambas seja posta no eixo de um continuo tanto sdcio-historico como tipoldgico. A fala é adquirida naturalmente em contextos informais do dia-a- dia. A escrita, em sua faceta institucional, se adquire em contextos forma- is: na escola. Dai também seu cardter mais prestigioso como bem cultural desejavel. Dai também o fato de uma certa identificagao entre alfabetiza- gdo c escolarizagao, 0 que nao passa de um equivoco (Cf. Graff, 1995 ¢ 120 Frago 1994). Pois houve situgécs historicas, tal como o caso da Suécia, em que a alfabetizagdo deu-se desvinculada da escolarizagao, Quanto a presenga da escrita, pode-se dizer que, mesmo criada pelo engenho humano tardiamente em relagdo 4 presenga da oralidade, cla permeia hoje quase todas as praticas sociais dos povos em que penctrou Até mesmo os analfabetos, cm sociedades com escrita, cstio sob a in- fluéncia do que contemporancamente se convencionou chamar de /etra- mento (literacy), isto ¢, um tipo de proceso histérico ¢ social que nao se confunde com a realidade representda pela alfabetizagdo regular e institucional lembrada ha pouco. A escrita é usada em contextos sociais basicos da vida cotidiana em paralelo dircto com a oralidade. Estes contextos, entre outros, sdo: aescola 0 trabalho a familia a vida burocrdtica 0 dia-a-dia a atividade intelectual Em cada um desses contestos, as énfases ¢ os objetivos do uso da escrita $40 variados ¢ diversos. Incvitavcis rclagées entre escrita & con- texto devem existir, fazendo surgir tipos ¢ formas textuais, bem como terminologias ¢ express6es tipicas. Seria interessante que a escola soubes- se algo mais sobre essa questao para enfrentar sua tarefa com maior preparo ¢ maleabilidade, servindo até mesmo de orientagdo na selegao de textos c definigaio de niveis de linguagem a trabalhar Ha, portanto, uma distingao bastante nitida entre a apropriagdo: distribuicdo da escrita c da Ieitura (padrées de alfabetizagao) ¢ os usos/papéis da escrita ¢ da leitura (processes de letramenio) enquanto praticas sociais mais amplas. Sabemos muito sobre métodos de alfabeti- zagiio, mas sabemos pouco sobre processos de letramento, ou seja, sabe- mos pouco sobre a influéncia ¢ penetragao da escrita na sociedade. Mes- mo pessoas ditas “ilctradas”’, ou scja, analfabetas, nao deixam de estar sob a influéncia de estratégias da escrita cm scu desempenho oral, 0 que toma 0 uso do termo “iletrado” muito problematico em sociedades com escrita (v. mais sobre 0 assunto em Tfouni, 1988) Além disso, ainda ndo sabemos com precisdo que géneros de textos (orais ¢ escritos) sao os mais correntes em cada um dos contextos acima apontados ¢ quem & que faz uso mais intenso da escrita dentro deles.' Tome-sc 0 caso do trabalho. Ali, nem todos fazem uso da escrita na mes- ma intensidade ou em condigdes idénticas. Nao é apenas uma questio de Signdtica, 9:119-145, jan /dez. 1997 rey distribuigdo de tarefas, E também uma questo de delegagao de tarefas, um fato muito comum na pratica da escrita em contextos de trabalho. Em quase todos os ambientes de trabalho ha alguem (uma determinada pes- soa) que sabe escrever, alguém que tem um desempenho escrito conside- rado “ideal” para aquele contexto. Se partimos para 0 ambiente familiar, podemos indagar: que uso da leitura e da escrita é feito em casa? Para que se usa a escrita ¢ a leitura em casa? Nao resta diivida de que Icitura&escrita é uma pratica comuni- cativa interessante e proveitosa em muitos sentidos. Ha o jornal ¢ a revista para serem lidos. Ha cartes e cartas pessoais para serem escritos. Ha cheques para assinar, contas a fazer, recados a transmitir c listas de com- pras a organizar.’ Ha as ocorréncias a registrar (os famosos livros de registro de todos os condominios). Ha historinhas a contar antes de dor- mir. As fofocas do dia a p6r em ordem ete. ete. Nao sabemos, no entanto, como tudo isso interage com outros meios comunicativos, por exemplo 0 telefone, o radio, a TV ¢ assim por diante. Em suma, pouco sabemos a respeito das relagdes entre os diversos tipos de atividades comunicativas. Continua aberta a indagagao: que tipo de valorizagao se da a escrita ¢ a oralidade na vida diaria? Retornemos, por um momento, a algumas questdcs relativas 4 alfabetizagao, pois sera importante constatar que a escrita, aps se tornar um fenémeno de massa ¢ desejavel a todos os seres humanos, passou a receber um s/atus bastante singular no contexto das atividades cognitivas de um modo geral. Para muitos, 0 scu dominio se tornou um passaporte para a civilizagdo ¢ para o conhecimento.” Trata-se de uma tendéncia a reconhecer valores imanentes a propria tecnologia como tal. As confusées aqui sao imensas. Primeiro, devemos distinguir entre letramento, alfabetizagao ¢ escolarizacao. O letramento é um processo de aprendizagem social ¢ historica da leitura ¢ da escrita em contextos informais ¢ para usos utilitarios. A alfabetizagdo pode dar-se, como de fato se deu historicamente, a margem da instituigao escolar ¢ compreende 0 dominio ativo e sistematico das habilidades de ler e escrever. A Suécia alfabetizou 100% de sua populagao ja no final do século XVIII no ambi- ente familiar c para objetivos que nada tinham a ver com o desenvolvi- mento ¢ sim com praticas religiosas ¢ atitudes de cidadania. A escolariza- gio, por sua vez, ¢ uma pratica formal c institucional de ensino que visa a uma formagao integral do individuo, sendo que a alfabetizagao é apenas 122 MARCUSCHI, Liz Antonio, Oralidade ¢ eserita uma das atribuigées/atividades da escola. A escola tem projetos educacio- nais amplos, ao passo que a alfabetizagao € uma habilidade restrita. Retomando o tema acima, podemos identificar, entre as perguntas centrais a seguinte: Em que contexios ¢ condigdes sdo usadas a oralida- de ¢ a escrita, isto ¢, quais sao os usos da oralidade ¢ da escrita em nossa sociedade? Por exemplo, quais so as demandas basicas da escrita em nossa sociedade, relativamente ao trabalho? Em que condigées ¢ para que fins a escrita é usada? Em que condigées ¢ para que fins a oralidade ¢ usada? Qual a interface entre a escola ea vida diaria no que respeita a alfabetiza- go? Como se comportam os nossos manuais escolares neste particular? Que habilidades so ensinadas na escola ¢ com que tipo de visio se passa a escrita”? O que é que o individuo aprende quando aprende a ler ¢ escre- ver? Seguramente, estas questdes devem ser tratadas cm varias diregdes. Parece que homens ¢ mulheres ndo fazem uso da escrita do mesmo modo. Parece que a escrita tem uma perspectiva na escola e outra fora dela. Tambem ha o problema do acesso a escrita que ¢ diferenciado. Além do mais, nao é necessario ir muito longe (cf. Street,1984) para perceber o quanto a escrita foi tratada como algo superior, auténomo, com valores intrinsecos etc., tornando-se fonte de preconceitos Na sociedade atual, tanto a oralidade quanto a escrita sdo imprescindiveis. Trata-se. pois, de ndo confundir seus papéis e seus contextos de uso. ¢ de ndo discriminar os seus usucrios. Por exemplo, ha quem cquipare a alfabetizagdo (dominio ativo da escrita ¢ da leitura) com desenvolvimento, Outros sugerem que a entrada da escrita representa a entrada do raciocinio légico ¢ abstrato. Ambas as teses estdo chcias de equivocos. Mas é¢ evidente que a alfabetizagao continua fundamental Eric Havelock’ (citado por Graff, 1995.38) comenta a tardia entra- da da escrita na humanidade ¢ sua repentina supervalorizagado com estas palavras: O tato bioldgico-historico & que o homo sapiens & uma espécie que usa o discurso oral, manufaturado pela boca, para se comunicar. a i0 &, por definigdo, uni escritor ou um leitor Seu uso da Fal, repito, foi adquirido por processos de selegao natural operand ao longo de un mnilho de anos. O habito de usar os simbolos Signotica, 9:119-145, jam. der, 1997 123 escritos para representar essa fala ¢ apenas um dispositivo itil que tem existido ha pouco tempo para poder ter sido inscrito em nossos genes, possa isso ocorrer ou nao meio milhdo de anos 4 frente. Segue-se que qualquer linguagem pode ser transposta para qualquer sistema de sim- bolos escritos que o usuario da linguagem possa escolher Sem que isso afete a estrutura basica da linguagem. Em suma, 0 homem que 1é, em contraste com © homem que fala, nao é biologicamente determinado Ele traz a aparéncia de um acidente historico recente. Refletindo sobre essas observagdes, Graff (1995) lembra que a “cronologia ¢ devastadoramente simples”: enquanto espécie, 0 homo sapiens data de cerca de um milhdo de anos. A escrita surgiu pouco mais de 3.000 anos antes de Cristo, ou scja, ha 5.000 anos atras. No ocidente, cla entrou por volta de 600 A.C., chegando a pouco mais de 2.500 anos hoje. Ea imprensa surgiu cm 1450, tendo pouco mais de 500 anos. Para a maioria dos estudiosos, a alfabetizagao, como fenémeno cultural de massa, pode ser quase ignorada nos primeiros 2000 anos de sua historia ocidental, pois ficou restrita a uns poucos focos. Contudo, observa Graff (1995:39) que essa historia nao ¢ tao linear assim ¢ oferece muitos truncamentos. A histéria do uso da escrita ¢ da alfabetizagao no ocidente ¢ uma historia descontinua. Para o autor, a histéria da alfabetizagao no Ocidente é “uma historia de contradigées ¢ que um reconhecimento explicito disso é um pré-requisito para uma com- preensao plena daquela historia.” (p.43). E muito interessante a breve analise de Graff (pp.43-52) sobre as relagdes entre a alfabetizagdo ¢ os processos de industrializago. Ele mostra que essa relagao nao foi cons- tante, nem sequer se deu numa ordem de concomitancia. Tanto assim que a primeira revolugdo industrial da Inglaterra mostrou indices regressivos de alfabetizagao. Também nao se da que os povos ou grupos mais alfabe- tizados tenham sido sempre os mais présperos. Veja-se o ja lembrado caso antolégico da Suécia, plenamente alfabetizada ja no século XVIII ¢ economicamente marginalizada. Os préprios planos sugeridos pela UNESCO basciam-sc na crenga de que “a alfabetizagdo é uma coisa boa” ¢ que “a pobreza, a doenga ¢ 0 atraso geral esto vinculados com o analfabetismo”, sendo que por sua vez “o progresso, a satide co bem-estar econémico esto igualmente de forma auto-evidente vinculados com a alfabetizagao”. Parece que pro- gresso esta ligado a alfabetizagdo, de modo que esta teria um valor intrin- 124 MARCUSCHI, Luiz Anténio. Oralidade eserita seco desejavel ao individuo, Contudo, a historia da alfabetizagdo nado comprova as expectativas da UNESCO. Por outro lado, é forgoso conce- der que vivemos hoje tempos diversos que os da Idade Média ou dos primordios da industrializagao, Mas nao deixa de ser falacioso usar isto como argumento a favor da supremacia da escrita. A escrita é um fato historico ¢ deve ser tratado como tal ¢ nado como um bem natural. E forcoso admitir que a escrita tem hoje um pape! muito diferente do que aquele que cla tinha cm outros tempos ¢ culturas. Portanto, a historia do papel da escrita na socicdade ¢ da propria relevancia da alfa- betizagdo nao é linear. Nem sempre cla teve os mesmos objetivos ¢ efei- tos. A este respeito, chega a ser surpreendente a posigao de Graff (1995:47) quando conclui que: no minimo, os dados do passado sugerem fortemente que modelos de simplistas, lineares, do tipo ‘teoria da modemizag: como uum pré-requisito para o desenvolvimento como um estimulante de niveis crescentes de escolarizagao, ndo so modelos apropriados. A alfabetizagdo tem alguns aspectos contraditérios. Pode ser util ou precupante aos governantes. Por isso, os que detém o poder pensam que ela deveria dar-se de preferéncia sob o controle do Estado ¢ nas esco- las formalmente instituidas. Neste caso, o controle ¢ a superviséo do Estado orientariam 0 ensino para seus objectives. Isto sugere que a apro- priacdo da escrita ¢ um fendmeno “ideologizavel”. Nao obstante a imensa penetragao da escrita ¢ as profecias de abso- luto dominio da escrita, a fala continua na ordem do dia. Nas palavras de Graff (1995:37), poderiamos dizer que A despeito das décadas nits quis os do uma queda na difusio da cultura oral tradicional’, a partir do adven- to da imprensa tipogritica mével, continua igualmente possivel e signi- ficativo situar o poder persistente de modes orais de comunicagio.” estudiosos vém proclaman- A oralidade continua na moda. Parece que hoje redescobrimos que somos seres cminentemente orais, mesmo cm culturas tidas como amplamente alfabetizadas. E, no entanto, bastante interessante refletir melhor sobre o lugar da oralidade hoje, scja nos contextos de uso da vida Signdtica, 9:119-145, jan (der. 1997 125 didria ou nos contextos de formagio escolar formal. O tema ndo é novo ¢ tem longa tradigao.® 2. Oralidade x Letramento ou Fala x Escrita? Com base nas analises fcitas até aqui, parece que sc impde uma observagao preliminar de carater tedrico. Falci, até aqui, das relagdes entre oralidace ¢ escrita, Pergunto-me, agora, sobre a necessidade ou oportunidade de distinguir entre duas dimensées de relagdes no tratameto da lingua falada versus lingua escrita (a) de um lado, Oralidade x Letramento (b) de outro lado, Hala x Exerita Quanto a (a), tratar-sc-ia de uma distingdo entre duas praticas sociais tal como vistas antcriormente, ¢ quanto a (b), seria uma distingao entre dias modalidades de uso da lingua. Nao ha divida de que a distin- do (a) sd pode ser levada em conta se consideramos primeiramente (b). Mas parecem dizer respeito a duas ordens de fendmenos A oralidade scria uma pratica social que se apresenta sob varia- das formas ou géneros textuais que vao desde o mais informal ao mais formal ¢ nos mais variados contextos de uso. Uma sociedade pode ser totalmente oral ou de oralidade secundaria, como se expressou Ong (1987), ao caracterizar a distingdo entre povos com ¢ sem escrita. O letramento, por sua vez, é 0 uso da escrita na sociedade ¢ pode ir desde uma apropriagao minima da escrita, tal como 0 individuo que & analfabeto, mas sabe o valor do dinheiro. sabe o Gnibus que deve tomar, sabe distinguir as mercadorias pelas marcas ¢ sabe muita outra coisa, mas no escreve cartas nem 1é jornal, até o individuo que desenvolve tratados de Filosofia ¢ Matematica. Como se disse acima, letramento distinguir-se~ ia de alfabetizagao, podendo, eventualmente, cnvolvé-la A Jala seria uma forma de produgdo textual-discursiva oral, sem a nccessidade de uma tecnologia além do aparato disponivel pelo préprio ser humano. A eserifa seria, além de uma tecnologia de representagao abstrata da propria fala, um modo de produgao textual-discursiva com suas proprias especificidades. Hoje, sao variadas as tendéncias dos estudos que se ocupam das relagées entre lingua falada ¢ lingua escrita, sem se colocar de forma 126 MARCUSCHIL Luiz Anténio. Oralidade e eserita explicita a questo que proponho aqui. E relevante indagar-sc sc as rela- gdes entre fala ¢ escrita, como faz Stubbs (1986), sdo uniformes, cons- tantes ¢ universais, ou se clas so diversificadas na historia, no espago ¢ nas linguas. A seguir, darci, resumidamente, algumas pistas para funda- mentar 0 ponto de vista que viabiliza a distingao entre (a) ¢ (b) sugerida acima. 3. Fala x Escrita: a perspectiva das dicotomias ‘A primeira das tedéncias, a de maior tradigao entre os lingiistas, €a que se dedica a analise das relagdes entre duas modalidades de uso da lingua (fala x escrita) c pereebe sobretudo as diferengas na perspectiva da dicotomia. A rigor, esta perspectiva tem matizes bem diferenciados. Num conjunto temos autores como Bernstein (1971). Labov (1972). Halliday (1985) (numa primeira fase), Ochs-Kennan (1979), representantes das dicotomias mais plolarizadas ¢ visao restrita: de outro lado, temos autores como Chafe (1982,1984,1985), Tannen (1982, 1985), Gumperz (1982), Biber (1986), Blanche-Benveniste (1990), Halidday/Hasan (1989) que perecbem as relacées fala ¢ escrita dentro de um continuo, seja tipologico ou da realidade social Nests casos, trata-se, no geral, de uma analise que se volta para © cddigo ¢ permanece na imanéncia do fato lingitistico ao observar a relagao do fenémeno lingitistico, Esta perspcetiva, na sua forma mais rigorosa ¢ restritiva, tal como vista pelos gramaticos. deu origem ao pres- ctitivismo c a norma lingiiistica. E dela que conhecemos as dicotomias do tipo fala escrita contextualizada descontextualizada implicita explicita redundante condensada nao-planejada planejada imprecisa precisa nao-normatizada normatizada Signoticn, 9:119-145, jan./dez. 1997 127 Estas dicotomias sdo sobretudo fruto de uma observagao fundada na natureza das condigdes empiricas de uso da lingua (envolvendo planeja- mento ¢ verbalizagdo), ¢ nao de caractcristicas dos textos produzidos. Disto surgem visdes distorcidas do proprio fenémeno textual. Excegao pode ser feita aos trabalhos de Tannen(1982,1985) Gumperz (1983) ¢ boa parte dos estudos de Chafe (1982,1984,1985), bem como de Biber (1988) Esta perpectiva oferece um primeiro modelo que pode ser caracteriza- do como a visdio imanentista que deu origem a maioria das gramaticas pedagogicas que se acham hoje cm uso. Sugere dicotomias estanques com separagao entre forma ¢ contetdo, separagao entre lingua ¢ uso ¢ toma a lingua como sistema de regras, 0 que conduziu o ensino de lingua ao ensi- no de regras gramaticais. Esta visao, de carater estritamente formal. embora dé bons resultados na descri¢do estritamente empirica, manifesta cnorme insensibilidade para os fendémenos dialégicos ¢ discursivos. Sua tendéncia ¢ restritiva ¢ a propria nogao de regra por cla proposta é demasiado rigida. Uma de suas conclusées mais conhecidas é a que postula para a fala uma menor com- plexidade e uma maior complexidade para a escrita. De resto, trata-se de uma alternativa que conduz a selegdcs aparentemente fundadas em algum valor intrinseco aos signos lingilisticos, mas na realidade, as decisées fundam-se em critérios ¢ mecanismos sOcio-culturais ndo explicitos. 4. Oralidade x Escrita: a tendéncia fenomenolégica de carater cultu- ralista Uma segunda tendéncia é a que observa muito mais a natureza das praticas da oralidade versus escrita ¢ faz analises sobretudo de cunho cognitivo, antropolégico ou social ¢ desenvolve uma fenomenologia da escrita ¢ seus efeitos na forma de organizagiio ¢ produgdio do conhecimen- to. Nela situam-se algumas das observagées fvitas na primeira parte deste ensaio. Denomino este paradigma como visio culturalisia, na sua formula- do forte, Este tipo de visio ¢ pouco adequado para a observagéio dos fatos da lingua. Na verdade, sc trata de uma perspcctiva cpistemolégica desenvolyida sobretudo por antropologos, psicdlogos ¢ socidlogos interes- io. Oralidads ¢ eserita 128 MARCUSCUI, Luiz Anté sados em identificar as mudangas operadas nas sociedades em que se introduziu o sistema da escrita, As caracteristicas centrais desta viséo poderiam ser assim resumidas: cultura oral versus cultura letrada pensamento concreto versus pensamento abstrato raciocinio indutivo versus raciocinio dedutivo atividade artesanal versu atividade tecnolégica cultivo da tradigdo inovagdo constante ritualismo analiticidade Esta visdo nao serve para tratar relagGes lingilisticas, ja que vé a questdo em sua estrutura macro ¢ com tendéncia a uma analise da forma- gdo da mentalidade dentro das atividades psico-s6cio-econ6mico-culturais de um modo amplo. Representantes desta perspectiva sao, entre outros, Olson (1977), Scribner & Cole (1981), Ong (1986,1987) ¢ Goody (1986, 1987). Para estes autores a escrita representa um avango na capa dade cognitiva dos individuos c, como tal, uma evolugdo nos processos noéticos (relativos ao pensamento em geral), que medeiam entre a fala € aescrita. Esses autores tem uma grande sensibilidade para os fatos hist6- Ticos € ndo deixam de ter razdo em boa parte de suas abordagens, mas isto nao significa que estejam dizendo algo de substantivo sobre as relagdes textuais nas duas modalidades de uso da lingua. Biber (1988), que vé criticamente esta tendéncia, inicia sua obra sobre as relagdes entre a fala ¢ a escrita frisando, com justeza, que a introdugao da escrita no mundo foi um feito notavel ¢ correspondeu a transigdo do "mito" para a "historia" se nos apoiamos na realidade dos documentos. Foi a escrita que permitiu tomar a lingua um objeto de estu- do sistematico. Com a escrita criaram-se novas formas de expressdo € deu-se o surgimento das formas literarias. Com a escrita surgiu a institu- cionalizagao rigorosa do ensino formal da lingua como objetivo basico de toda formagao individual para enfrentar as demandas das sociedades ditas Ietradas. Nao ha, pois, como negar que a escrita trouxe imensas vantagens e consideraveis avagos para as sociedades que a adotaram, mas ¢ forgoso admitir que cla ndo possui algum valor intrinseco absoluto. Trata-se Signética, 9:119-145, jan/dez. 1997 129 sobretudo do lugar especial que as sociedades ditas letradas reservaram a essa forma de expresso que a tomnou to relevante ¢ quase imprescindi- vel na vida contemporanea Numa extensa anilise critica a perspectiva culturalista de engran- decimento da escrita, Gnerre (1985) detecta nos autores ligados a essas correntes de pensamento alguns problemas que podem ser resumidos basicamente em trés pontos "= etnocentrismo #® supervalorizacao da escrita ** tratamento globalizante. O etnocentrismo diz respeito a uma forma de ver as culturas alieni- genas a partir da propria cultura e valorizar aspectos dentro de uma pers- pectiva em que se situa o autor. Tal teria sido 0 caso de Olson (1977) que além de ter procedido a “uma esquematizagio extrema da histéria social da escrita" (Gnerre, 1985:62), também teria agido como se a introdugdo da escrita significasse automaticamente a alfabetizagdo da socicdade inteira. O certo é que "a escrita foi controlada essencialmente por grupos reduzidos ¢ as 'culturas orais’ existiram lado a lado com as tradigées escritas dos grupos de elite", Acertadamente lembra Tfouni (1988) que as formas de raciocinio das camadas ditas analfabetas nao sao completamen- te diversas das camadas alfabetizadas, ja que o letramento é um processo que penetra a sociedade independentemente da propria escolarizagaio formal. A supervalorizagao da escrita, sobretudo a escrita alfabetica, leva a. uma posigao de supremacia das culturas com escrita ou até mesmo dos grupos que dominam a escrita dentro de uma sociedade desigualmente desenvolvida. Scpara as culturas civilizadas das primitivas. Este aspecto deu origem a hipoteses muito fortes sobre a escrita, criando "uma visio quasc mitica sobre a escrita". A cscrita scria a responsivel pelo surgi- mento do raciocinio silogistico, tendo em vista o fato de cla contribuir essencialmente para a descontextualizagdo dos significados que criariam autonomia ao passarem da "cabega" para o "texto no papel”, fazendo assim surgir a descentralizagao do pensamento que passaria do concreto para o abstrato. Dai a impressdo de autonomia da escrita. Essa forma globalizante de ver a escrita ressente-se da desatengao para o fato de que nao existem "sociedades letradas", mas sim grupos de letrados, clites que detém o poder social, ja que as sociedades nao sio 130 MARCUSCHIL, Luiz Anténio, Oralidade ¢ eserita fenédmenos homogéneos, globais, mas apresentam diferengas internas. Nao € necessaria uma andlise muito minuciosa; basta dar uma olhada em nos- so entorno para constatar que a "sociedade brasileira" nao ¢ homogénea em relagdo ao letramento. 5. Fala x Escrita: a perspectiva variacionista Uma terceira tendéncia, talvez intermediaria entre as duas acima, aque trata do papel da escrita ¢ da fala sob 0 poto de vista dos proces- sos educacionais e faz propostas especificas a respeito do tratamento da variagao na relagao entre padrao ¢ ndo-padrao lingiiistico nos contextos de ensino formal. Aqui se situam os modelos teoricos preocupados com © que se vem denominando curriculo bidialetal, por exemplo. Sao estudos que se dedicam a detectar as variagées dos usos da lingua sob sua forma dialetal. E uma variante da primeira visio, mas com grande sensibilidade para os conhecimentos dos individuos que enfrentam o ensino formal. Neste paradigma nio se fazem distingdes dicot6micas ou caracterizagdes estanques. verifica-se a preocupagdo com regularidades e variagdes. distingue-se entre: - lingua padrio - variedades néo-padro - lingua culta - lingua coloquial - norma padrao = normas ndo-padrao No Brasil, temos seguidores desta linha, entre os quais situam-se Bortoni (1992,1995), Kleiman (1995) ¢, numa perspectiva um pouco diversa, mas dentro do mesmo espirito, acha-se Soares (1986). Simpatizo grandemente com esta perspectiva, mas no me parece que a questo esteja resolvida. Sociolingiiistas como Trudgill (1975) ¢ Labov (1972) ja apontavam para a impossibilidade de um desempenho bidialeral. O que se pode fazer, sem postular as posigdes de Bernstein (1971), é imaginar a possibilidade de um dominio do dialeto padrao na atividade de escrita € continuar no dialeto ndo-padrao no desempenho oral Stubbs (1988) também sugere que poderiamos ver as relagdes entre fala c escrita, em contextos educacionais, como um problema de variagao Signotica, 9:119-145, jan/dez. 1997 131 lingiiistica. Na verdade, trata-se de um aspecto amplamente admitido hoje, J que as linguas nao séo homogéneas nem uniformes sob o ponto de vista de seu uso (cf. Milroy, 1992). E as relagées fala c escrita dizem respeito a questdes de uso da lingua. O interessante nesta perspectiva € que a variagao se daria tanto na fala como na escrita, o que evitaria 0 equivoco de identificar a lingua escrita com a padronizagdio da lingua, ou seja, impediria identificar a escrita como equivalente a lingua padrao. Minha posicao ¢ a de que fala ¢ escrita nao sao propriamente dois dialetos mas sim duas modalidades de uso da lingua, de maneira que 0 aluno, ao dominar a escrita se torna bimodal. ’ Fluente em dois modos de uso € nao simplesmente em dois dialetos. 6. Oralidade x escrita: a perspectiva interacional Uma quarta perspectiva, que a rigor ndo forma um conjunto tedrico siste- matico ¢ coerente, mas representa uma série de postulados um tanto des- conexos, seria a que trata das relagdes entre fala e escrita dentro do conti- nuum textual. Caractrerizo-a como visdo interacionista ¢ seus fundamen- tos centrais baseiam-se na percepgao seguinte: relacdo dialégica no uso da lingua estratégias lingiisticas fungdes interacionais enyolvimento ¢ situacionalidade formulaicidade Este modelo tem a yantagem de perceber com maior sistematicida- de a lingua como fenémeno dindmico ¢ ao mesmo tempo estereotipado, voltado para as atividades dialogicas que marcam as caracteristicas mais salientes da fala. Contudo, padece de um baixo potencial explicativo ¢ descritivo dos fenémenos sintaticos ¢ fonologicos da lingua. A rigor, eles fogem aos seus interesses. Por isso mesmo, se concebida na fusdo coma visio variacionista, poderia dar resultados mais seguros e com maior adequagao empirica ¢ teorica, Talvez seja esse 0 caminho mais sensato no tratamento das correlagées entre formas lingiiisticas (dimensao lingiiisti- ca), contextualidade (dimensao funcional) ¢ interagao (dimensao interpes- soal) no tratamento das semelhangas e diferengas entre fala ¢ escrita nas 132 MARCUSCHI, Luiz Anténio, Oralidade e escrita atividades de formulagdo textual-discursiva. Nesta visdo interacional cabem anilises de grande relevancia que se dedicam a perceber as diversi- dades das formas textuais produzids em coautoria (conversagdes) ¢ for- mas textuais em autoria (mondlogos), que até certro ponto determinam as preferéncias basicas numa das perspectivas da relagdo fala e escrita. Além disso, tem-se, aqui, a possibilidade de tratar os fenémenos de compreen- sdo na interagdo verbal e na interagdo com o texto escrito, de maneira a detectar especificidades na propria atividade de construgdo dos sentidos. Como se observa, esta perspectiva orienta-se numa linha discursiva e interpretativa. Muito fortemente representada. no Brasil, esta linha tem entre seus seguidores mais repreentativos Preti (1990, 1991, 1993), Koch (1992), Marcuschi (1986, 1992, 1994, 1995) ¢ muitos outros presentes nas obras editadas por Preti (1990, 1993). Esta perspectiva tem grande sensibilidade para as cstratégias de organizagao textual-discursiva preferencial na modalidade falada e escrita.* Também dedica-se com énfase a observar a presenga da fala na escrita ¢ vice-versa. Em conclusao a estas observagées, pode-se dizer que discorrer sobre as relagées entre oralidade/letramento ¢ fala/escrita nao é referir-se aalgo consensual nem mesmo como objeto de analise. Trata-se de fend- menos de fala e escrita enquanto rela¢ao entre fatos lingitisticos (relagao fala x escrita) e enquanto relago entre praticas sociais (oralidade versus letramento). Como ja lembrei, as relagdes entre fala e escrita nao sdo ébvias nem lineares, pois clas refletem um constante dinamismo fundado no continuum que sc manifesta entre essas duas modalidades de uso da lin- gua. Também no se pode postular polaridades estritas ¢ dicotomias es- tanques. O curioso ¢ que, no geral, quem se dedica aos estudos da relagdio entre lingua falada ¢ lingua escrita, sempre trabalha 0 fexto falado ¢ rara- mente analisa a lingua escrita. No entanto, suas observagées sao muitas vezes sob a Otica da escrita. Por outro lado, as afirmagGes feitas sobre a escrita fundam-se na gramatica codificada ¢ no na lingua escrita enquan- to texto e discurso. Em suma, 0 que conhecemos nao sao nem as caracte- risticas da fala como tal nem as caracteristicas da escrita; 0 que conhece- mos so as caracteristicas de um sistema normativo da lingua. Signdtica, 9:119-145, jan /dez. 1997 133 7. Aspectos relevantes para a observacao da relacao LF x LE A lingua, seja na sua modalidade falada ou escrita, reflete, em boa medida, a organizagao da sociedade. Isso porque a propria lingua man- tém complexas relagdes com as representagdes ¢ as formagées sociais. Nao sc trata de um espelhamento, mas de uma funcionalidade em geral mais visivel na fala. E por isso que podemos encontrar muitos correlatos entre variagao sociolingilistica e variagdo sociocultural Por outro lado, tanto a fala como a escrita refletem formas de orga- nizagdo da mente através das proprias representagdes mentais. Podemos observar que a construcao de categorias para a reflexdo tedrica ou para a classificagdo so tanto um reflexo da linguagem como se refletem na linguagem. Seria til ter presente, desde logo, que, assim como a fala nao apresenta propriedades intrinsecas negativas, também a escrita ndo tem propriedades intrinsecas privilegiadas. S40 modos de representagaio cognitiva ¢ social que se revelam em praticas especificas. Postular algum tipo de supremacia ou superioridade de alguma das duas modalidades é uma visio equivocada, pois nao se pode afirmar que a fala é superior a escrita ou vice-versa. Em primeiro lugar, deve-se ter em mente 0 aspecto que se esta comparando e, em segundo, deve-se consi- derar que csta relagao nao é homogénea nem constante. Do ponto de vista cronolégico, como ja observou detidamente Street (1985 ) a fala tem uma grande precedéncia sobre a escrita, mas do ponto de vista do prestigio social a escrita € vista como mais prestigiosa que a fala, Nao sc trata, porém, de algum critério intrinseco nem de para- metros lingiiisticos e sim de postura ideolégica. Por outro lado, ha cultu- ras em que a fala é mais prestigiosa que a escrita Mesmo considerando a enorme ¢ inegavel importancia que a escrita tem nos povos ¢ nas civilizagdes “letradas”, continuamos, como bem observou Ong (1987) povos orais. A oralidade jamais desaparecera ¢ sempre sera, ao lado da escrita, 0 grande meio de expresso e de atividade comunicativa. A oralidade enquanto pratica social ¢ inerente ao ser huma- no e ndo sera substituida por nenhuma outra tecnologia. Ela sera sempre a porta de nossa iniciagdo a racionalidade. A oralidade é também um fator de identidade social, regional, grupal dos individuos. A escrita, por sua vez, pelo fato de ser pautada pelo padrao nao é estigmatizadora ¢ nao serve como fator de identidade individual ou grupal. Isso, a menos que se sirva, como na literatura regional, de tragos da reali- 134 MARCUSCHI, Luiz Anténio. Oralidade e eserita dade lingiiistica regional.’ E interessante notar que, se a fala pode facil- mente levar a estigmatizag4o do individuo, com a escrita isso acontece bem menos. Parece que a fala, por atestar a variagao e em geral pautar-se por algum desvio da norma, tem carater identificador. E possivel que identidade seja um tipo de desvio padrio da norma. Ponha-se um grupo de individuos letrados a escrever um texto sobre o mesmo tema, por exemplo “a inflagdo na vida do brasileiro” ¢ entdo observem-se seus textos. E provavel que suas opinides sejam objeto de discussio, mas eles nao serao estigmatizados ou categorizados pela linguagem como tal. No entanto, se pedirmos aos mesmos individuos que “falem” scus textos, ou os produzam oralmente, teremos diferengas ¢ até avaliagdes que ndo se deverdo ao conteudo e sim a uma particular forma de “dizer” 0 contetido. Do ponto de vista dos 1sos quotidianos da lingua, constatamos que a oralidade ¢ a escrita ndo sdo responsaveis por dominios estanques € dicotémicos. Como ja lembrado, ha praticas sociais mediadas preferenci- almente pela escrita ¢ outras pela tradigao oral. Tomemos 0 caso tipico da area juridica. Ali é intenso ¢ rigido 0 uso da escrita, j4 que a Lei deve ser tomada ao pé da letra. Contudo, precisamente a area juridica faz um uso intenso e extenso das praticas orais nos tribunais. Veja-se, que numa mesma arca discursiva ¢ numa mesma comunidade lingitistica convivem duas tradigdes diversas, ambas fortemente marcadas. Isso sugere ser inadequado distinguir entre sociedades letradas ¢ iletradas de forma dico- tomica. Oralidade e escrita sto duas préticas sociais ¢ nao duas propri- edades de sociedades diversas. O cemne das confusées na identificagdo ¢ avaliagao das semelhan- gas ¢ diferengas entre a fala e a escrita acha-se, em parte, no enfoque enviesado e até preconceituoso a que a questo foi geralmente submetida €, em parte, na metodologia inadequada que resultou em visdes bastante contraditorias. A fala tem sido vista na perspectiva da escrita e num quadro de dicotomias estritas porque predominou 0 paradigma tedrico da andlise imanente ao cédigo. Enquanto a escrita foi tomada pela maio- ria dos estudiosos como estruturalmente elaborada, complexa, formal ¢ abstrata, a fala era tida como concreta, contextual ¢ estruturalmente sim- ples (cf. Chafe, 1979, 1982: Ochs, 1979; Kroll, 1977). Contudo ha os que julgam que a fala é mais complexa que a escrita (cf. Halliday, 1979 e Poole & Field, 1976). Biber (1986 e 1988) mostrou com clareza que nada é claro nesse terreno de observagao. Signética, 9:119-145, jan./dez. 1997 Bs Uma primeira observagao a ser feita é a que diz respeito a propria visio comparativa da relagao entre fala e escrita. Quando se olha para a escrita tem-se a impressio de que se esta contemplando algo naturalmente claro ¢ definido. Tudo se passa como se ao nos referirmos a escrita esti- véssemos apontando para um fenémeno se ndo homogéneo, pelo menos bastante estavel e com pouca variagao. O contrario acorre com a cons- ciéneia espontnea que se desenvolveu a respeito da fala. Esta se apresen- ta como variada e, curiosamente, nao nos vem a mente em primeira mao a fala padrao. E 0 caso de dizer que fala c escrita sao intuitivamente cons- truidos como fipos ideais concebidos com principios opostos ¢ que nao correspondem a realidade alguma, a menos que identifiquemos um fend- meno que as realize. A hipétese aqui defendida supde que: As diferengas entre fala e escrita se dao dentro do continuum tipologico das praticas sociais de produgdo textual e néto na relagdo dicotémica de dois polos opostos. Em consequéncia, temos a ver com correlagdes em varios planos, sugindo dai um conjunto de variagdes € nao uma simples variagao linear. O grafico a seguir da uma nogdo esquematica dessa postura.'" Textos da Escrita TEI, TE2... TEn —_ ESCRITA

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