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Roberto Kant de Lima SO A antropologia da academia: quando os indios somos nos COLECAO ANTROPOLOGIA E CIENCIA POLITICA 1. Os fornecedores de cana e o Estado intervencionista Delma Pessanha Neves 2. Devastacéo e preservacgéo ambiental — os parques nacionais do Estado do Rio de Janeiro José Augusto Drummond 3. A predagao do social Ari de Abreu Silva 4. Assentamento rural : reforma agraria em migalhas Delma Pessanha Neves 5. A antropologia da academia : quando os indios somos nés Roberto Kant de Lima Préximo langamento: 6. Jogo de corpo Simoni Lahud Guedes Copyright © 1997 by Roberto Kant de Lima Direitos desta edigio reservados 4 EDUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense - Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraf - Niteréi, RJ - | - CEP 24220-000 - Tel.: (021) 620-8080 - ramais 200 e 353 - (021) 620-8080 - ramal 356 fi proibida a reproducio total ou parcial desta obra sem autorizacao expressa da Editora. Edigao de texto: Rita Godoy Projeto gréfico e editoragdo eletrénica: José Luiz Stalleiken Martins Capa: Marcio André Baptista de Oliveira Digitagao: Kathia M. P. Macedo, Jussara M. Figueiredo Revisdo: Rita Godoy e Damifio Nascimento Coordenagao editorial: Damiio Nascimento Catalogagio-na-fonte L732 Lima, Roberto Kant de. ‘A antropologia da academia : quando os indios somos nés, ~ 2. ed. rev. ampl1. — Niteréi : EDUFE 1997. 65 p.; 21 om. — (Colegio Antropologia e Ciéncia Politica ; 5) Bibliografia: p. 59 ISBN 85-228-0210-6 1. Antropologia Social. 1. Titulo. Il. Série. CDD 331.76163361 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor Luiz Pedro Antunes Vice-Reitor Fabiano da Costa Carvalho Diretora da EDUFF Eliana da Silva ¢ Souza Comissao Editorial Anamaria da Costa Cruz Gilda Helena Rocha Batista Heraldo Silva da Costa Mattos Ivan Ramalho de Almeida Luzia de Maria Rodrigues Reis Maria Guadalupe C. Piragibe da Fonseca Roberto Kant de Lima Roberto dos Santos Almeida Vera Lucia dos Reis ~Agradego ao estimulo e comentarios recebidos dos participan- tes do grupo de Ensino da Antropologia, em especial do professor Luiz de Castro Faria, por ocasido da sua apresentagao realizada na XIII Reuniao da ABA; —a meus colegas americanos, informantes involuntérios, que com infinita paciéncia me iniciaram nos segredos de sua academia; a meu orientador, professor David Maybury-Lewis ¢ a meus professores da Harvard University; ao professor Roberto da Matia, cuja inspiracdo neste trabalho é evidente e difusa por todo 0 texto, particularmente a de seu artigo seminal “Vocé sabe com quem esté falando?”; ao professor Marco Antonio da Silva Mello, a revisdo, criticas e a maioria das indicagées bibliogrdficas; ao professor Alex Varella, o incentivo; a Jodo Luiz de Lima Ruas, sugestées; aos professores Jamile Esper Saud, Moacy Cirne e Renato Lessa, a oportunidade de publicd-lo pela primeira vez. ~ pelo trabalho, a todos os que comigo colaboraram nesses anos, na administragao, ensino ¢ pesquisa académica; ~ pela divulgacdo, a todos os leitores que compraram, divulga- ram, copiaram e leram a primeira edicao deste livro; ¢ —pelas sugestées editoriais, a Solange Cretton e a Rita Godoy. I “Em cada um de seus empreendimentos prdticos, a antropolo- gia nao faz mais do que verificar uma homologia de estrutura entre o pensamento humano em exercicio e 0 objeto humano ao qual se aplica. A integracéo metodolégica de fundo e forma reflete, @ sua maneira, uma integragao mais essencial: a do método e da realidade”. Lévi-Strauss. I “Um idioma nao se define pelo que impede de dizer, mas pelo que impée dizer” (JAKOBSON, apud BARTHES). I “O Arno ndo me perguniou como deveria escrever a tese. No entanto, se o tivesse feito, eu teria estimulado essa maneira lite- réria de apresentagdo do texto. Uma tese escrita por um brasileiro deve ter uma maneira peculiar de se apresentar que ndo siga necessariamente os cénones da academia americana ou européia, mas reflita nosso modo de fazer sociologia, uma sociologia criativa e brasileira”. * Parte dos comentarios finais de Roberto da Matta (orientador) a dissertagao. de mestrado de Arno Vogel, defendida no Programa de Pés-Graduacao em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ. O trecho, reproduzido de meméria, constituiu-se em resposta as observacées feitas pelo examinador americano de que a tese, em que pesasse sua exceléncia, teria sido apresentada em forma “um tanto literaria”, 0 que teria de alguma maneira prejudicado seu rigor académico. SUMARIO PREFACIO A SEGUNDA EDICAO 1 INTRODUGA emer eitntttt te22h cccate scetasctestcesscncesst 13 1 OPROJETO ANTROPOLOGICO NA ACADEMIA . 15 2 OADESTRAMENTIO (secs stcsiersctecspesttsssssrersesssrestaiese 19 A experiéncia:brasiletra..t.........ccnestentec tree 19 A experiéncia americana 0.0.0... cece esses eeseeneeneseeeeneneenes 23 3 A DISCIPLINA PELA FORMA ........... cee: 27 4 A PARTICULARIZACAO DO PUBLICO E O SIGNIFICADO DA REPRESSAO .. 5 DE CAOS E ESTRELAS ..ssssssssssssssssssssessssesesenseessneeee 55 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ......ssssssssessssesessssseeee 59 POSFACTO o...ssssesssssssessssssssvssseecestsssesansseeeeeessnnsetensesnnenneest 61 PREFACIOA _ SEGUNDA EDICAO Relendo as provas fornecidas pela editora para a publicagao da se- gunda edigao deste ensaio na Colegao Antropologia e Ciéncia Politica da Editora da Universidade Federal Fluminense (EDUFF), fiquei surpreso com 0 fato de que nele, de certa maneira, estavam presentes quase todas as quest6es de que me tenho ocupado profis- sionalmente durante os anos que o sucederam. Assim, minha permanéncia em Harvard, que tentei compreender e exorcizar es- crevendo-o, acabou por determinar em muito minha trajetéria profissional, confirmando a forte influéncia que aquela instituigao exerce nos que a freqiientam, mesmo criticamente. Dezesseis anos depois de escrevé-lo, no entanto, nao senti necessi- dade de alterar a substancia do texto, tendo as poucas modificagées introduzidas apenas a intengao de esclarecer mais alguns aspectos do contraste pretendido e que agucei nos anos que se seguiram. Desejo aqui registrar brevemente, entretanto, alguns momentos da trajetoria do livro neste periodo, que ilustram as hipoteses que nele discuti sobre a academia do Brasil e dos Estados Unidos. Quanto a esta tiltima, duas ofertas foram feitas para publicagao deste texto em lingua inglesa. Em uma delas, propés-se sua inclusao em uma coleténea de “depoimentos” de estudantes de antropologia Il estrangeiros, que narrassem suas experiéncias nos Estados Unidos. Embora esta fosse, provavelmente, a mais rentavel do ponto de vista de proporcionar-me maior visibilidade no mercado, acabou sendo descartada, porque as modificagées sugeridas pelo editor im- portariam a desfiguragao teérica do texto, modificando sua insergio académica. Acabei por aceitar uma outra, do meu generoso amigo, colega, tradutor ¢ editor David Hess (KANT DE LIMA, 1992a). Mais interessante, entretanto, é registrar sua trajetéria brasileira. Embora nunca tenha sido formalmente langado ou divulgado, nem, que eu saiba, tenha recebido nenhuma resenha ou comentério da critica especializada, ou nao, este livro esgotou os dois mil exem- plares da primeira edigéo em dois anos. No entanto, embora eu tenha, por diversos meios, tentado reeditd-lo, nunca minhas tenta- tivas tiveram sucesso. Em uma destas ocasides, fui secamente informado pela responsdvel pela editora de que “obras sé devem ser reeditadas depois de, no minimo, 20 anos de sua primeira edi- cao!’””. Isto, meses apés haver-me informado de que o livro tinha sido 0 tinico que, levado a seu estande na Bienal do Livro daquele ano, havia vendido todos os exemplares... Em outra, enquanto a editora informava oficialmente a distribuidores e compradores in- teressados, sistematicamente, que nao dispunha de exemplares disponiveis em estoque, quando consultada sobre seu interesse em recditar 0 livro, enviava correspondéncia assinada pelo respon: vel declarando nao haver interesse em publicar uma segunda edic¢ao de um livro do qual nao havia ainda vendido todos os exemplares da primeira... Menos mal, pois assim readquiri sem problemas os direitos autorais para a tradugao em inglés deste encalhe, que, pa- radoxalmente, foi também excluido do catélogo das editoras que 0 publicaram... Quero dizer que foi muito importante para mim escrever este livro ce, ainda mais, que tenha sido tao lido. E relevante, também, que possa reedita-lo, especialmente dadas as circunstancias anterior- mente descritas. Continuo achando que devemos nos esforgar por encontrar cami- nhos prdprios de reflexao, fugindo 4 sanha modernizadora dos que nos querem impor, como se fossem universais, modelos particula- res, que sao, no maximo, mais ou menos majoritérios em outras culturas. Pretendo continuar criticando, explicitando e argumen- tando contra este ethos colonizado de nossas elites intelectuais, politicas ¢ econémicas, seduzidas, desde sempre, pelas facilidades da cépia e do lucro aparentemente mais facil e imediato. 12 NTRODUCAO Este trabalho’ pretende discutir algumas quest6es relativas ao tema do colonialismo cultural, em particular no que se refere 4 possibi- lidade da produgao de um conhecimento antropoldgico capaz de descobertas esclarecedoras no 4mbito da interpretagdo de paises do Terceiro Mundo e, em especial, do Brasil. Fundamentado em experiéncias pessoais, ficarei contente se for capaz de suscitar discussio e polémica, sem as quais a produgio intelectual é impossivel. O estilo é académico de propésito, como que a pretender implodir, de dentro, os préprios limites que nos cerceiam a criatividade ¢ 0 intelecto. E um de meus pressupostos a concepgio da Antropologia como um campo de conhecimento formado enquanto disciplina cienti- fica nos quadros do pensamento do século XIX, voltada para a investigagio de povos ex6ticos, progressivamente incorporados a cultura européia desde o inicio da expansio colonial. Sua traje- téria marcou-se pela perspectiva comparada que permitiu a critica das categorias empregadas na interpretacao de outras sociedades, culminando com uma investigagao voltada para a compreensao da sociedade ocidental ela mesma. E meu ponto de vista que a *~ Versdo preliminar deste trabalho foi apresentada na XIII Reuniao da Associacao Brasileira de Antropologia, 1982. TS Antropologia sempre foi e ainda é uma disciplina voltada para a compreensao dos problemas enfrentados pela sociedade que a originou, realizada através do método comparativo. E também meu pressuposto que 0 colonialismo e, mais tarde, 0 imperialismo, enquanto fendmenos de dominagio politica, eco- nOmica, social e cultural, nao se fizeram manifestar da mesma forma sobre todas as sociedades dominadas ou dependentes. No Brasil, por exemplo, interessa destacar um aspecto do colonialismo cultural em relagao a outros casos de dominaco: nossa identida- de “brasileira” nao advém de uma suposta recuperagao de um momento pré-colonial, como acontece com sociedades da Africa e da Asia, por exemplo, mas de um processo que se inicia com a colonizacdo ela mesma, enquanto descontinuidade da sociedade portuguesa que a realizou. As conse! dessa circunstancia sao relevantes para a discussao da possibilidade de uma produgio intelectual independente em nosso pais, em especial de uma pro- ducgao antropolégica, definida aqui como conhecimento permanentemente critico das categorias, moldes e teorias em que se investe. Acredito ser tarefa relevante desvendar as diferentes formas que a dominagao intelectual ou cultural reveste em diversas socieda- des, e mesmo dentro de uma mesma sociedade. Pois a dominagaio nao pode ser vista como determinada apenas por sua forma mais evidente, a econdmica, o que pode levar 4 conclusao ingénua de que sua supressdo pode ser alcangada com uma produgio e tecnologia independentes. Sio muito mais sutis os caminhos do poder, ¢ cabe a nds, antropdlogos, explicité-los como parte da vivéncia didria de nossas pesquisas. 14 1 O PROJETO — ANTROPOLOGICO NA ACADEMIA Chamo aqui de projeto antropolégico um objeto que se constituiu a partir de diversos ramos da disciplina antropoldgica ao se deter- minar como tarefa fundamental a comparagao entre sociedades ou grupos sociais, buscando a interpretagao ¢ compreensdo dos diversos aspectos da vida humana em sociedade. A perspectiva comparativa se desenvolveu, grosso modo, a partir do que se costuma denominar de etnocentrismo, isto é, do pressu- posto de que um dos termos da comparagao, aquele representado pelo observador e sua sociedade, era um dado privilegiado ao qual deveriam ser gradativamente ajustados os diferentes fatos apurados no estudo de outras sociedades. Tal ponto de vista so- freu sucessivas criticas e relativizagdes chegando-se a concepgdes mais flexiveis ¢ mais refinadas do método comparativo. Essa tra- jetéria, no entanto, nio se deu em um vazio social. Foi produto nao s6 de pesquisas de campo orientadas para determinados inte- resses, como também de instituigdes académicas responsaveis pela formagao de quadros profissionais incumbidos de realizar as ta- 15) refas de produgio intelectual que se definiram como de sua com- peténcia. De um ponto de vista substantivo, poderia dizer que a Antropolo- gia partiu de uma investigagiio sobre povos e instituig6es sociais exéticas, descobrindo nesse movimento que tais instituigdes nao cram tao exdticas nem “indigenas”, mas que em certos aspectos em muito se assemelhavam & prépria sociedade do investigador. Ao mesmo tempo, 0 conhecimento assim produzido passou a ser- vir de quadro comparativo em que a sociedade do investigador se insere como mais uma pega, perdendo quaisquer pretensdes heuristicas que sua posigao como ponto de partida antropolégico porventura pudesse ter. O conhecimento antropolégico, no entanto, nao é, nem poderia ser, neutro. A evidenciar seu cardter interessado esté 0 fato in- contestavel de que a relagio da Antropologia e dos antropdlogos assume a assimetria implicita em sua definigio como disciplina académica de carater cientifico: 0 que 0 antropélogo faz é cién- cia; 0 que o nativo diz é informagao. Responsaveis por esta situagao, muito mais do que antropdlogos particulares ou resquicios colonialistas da pratica antropolégica, sao as condigdes da produgio intelectual, onde se verifica a re- partigao, consumo e reprodugio do conhecimento cientifico. Tais condig6es sao marcadas principalmente pela circunstancia de ser a Antropologia aquilo que se denomina de disciplina académica. Para o que me interessa aqui discutir, isso implica, primeiro, que ela esta submetida a regras que controlam a quantidade e qualida- de do conhecimento a ser incorporado a seus dominios; segundo, que ela se constitui em uma disciplina, isto é, algo que se propde 4 produgao de um resultado mediante certas contenges ou cons- trangimentos. Nesse sentido, por exemplo, a repressio institucional se constitui em algo que Ihe é estranho e até mesmo contradité- rio. A repressao visa impedir a produgio de determinado comportamento fisico ou intelectual; a disciplina visa produzir certos comportamentos de uma determinada maneina, isto é, pre- ocupa-se muito mais com o controle da forma como qualquer conhecimento é produzido do que com seu contetido. E evidente que o descaso pelo contetido é apenas aparente: a énfase é colo- cada no que se diz e nao naquilo que ndo se deve dizer. A forma de controle disciplinar é mais dissimulada e por isso mesmo pode ser de maior eficdcia. 16 Essa caracterfstica se apresenta como paradoxal a uma “inten- cio” antropolégica supostamente fundada em uma reflexao informada por categorias de outras culturas e, portanto, sujeita a outros sistemas legitimadores. A questao que parece pertinente € a da possibilidade de uma produgio antropolégica nativa, nos quadros de uma academia. Apenas esse discurso nativo pode nao ser reduzido a mera “informagao”, constituindo-se ao mesmo tempo em suporte e produtor da comparagao ¢ da critica, ¢ fugin- do & reprodugio de conceitos e categorias produzidos sob outras circunstincias ¢ condicionamentos que nao os da instituigao aca- démica nativa, se é que assim se pode denominé-la. A socializagao académica dos antropélogos, sua educagao, assu- me desta mancira posicio relevante na discussio que se pretende, na medida em que € parte condicionante de sua produgao intelec- tual ao determinar nao s6 a diregao e contetido de seus interesses, como também as regras de seu desenvolvimento e legitimagao. Tendo as diversas academias formas diferentes, deverao apresen- tar diversidade no contetido de sua produgao. Eis ai, portanto, uma possibilidade a ser explorada na tentativa de pensar a Antro- pologia de forma criativa. * importante esclarecer a diferenga entre treinamento, que desenvolve instintos e inculca habitos, e educacao, que reprime instintos e inculca regras, as quais podem ser praticadas por nés sem que sejam habituais. (DURKHEIM, 1973, p. 648-649). If 2 O ADESTRAMENTO A experiéncia brasileira Como se faz um antropélogo no Brasil? A questio € bastante ampla, considerando principalmente a diversidade de formagoes profissionais 4 disposigao. Minha intengao aqui sera a de suscitar a reflexio para nossas condigGes de produgio intelectual e obter dos colegas as contribuigdes necessarias para a constituigdo de uma interpretacio plausivel e critica desses fatos. Estou ciente de penetrar em Aguas turbulentas, uma vez que arrisco uma situagao ideal de pesquisa: aquela onde 0 controle do conhecimento pro- duzido é feito pelos préprios informantes, cles mesmos confrontando suas teorias com a explicagao do antropdlogo. Por isso mesmo, usarei meu depoimento pessoal ¢ outras informa- des obtidas através de contatos com colegas brasileiros ¢ estrangeiros para relatar e interpretar minha formacdo profissio- nal nao como uma experiéncia paradigmatica, mas como uma das muitas possiveis experiéncias de antropélogos profissionais. A circunstincia de serem essas experiéncias tao diversas permite 19 perceber uma delas com suficiente especificidade para ser erigida em base qualitativa da reflexio sociologica. (GEERTZ, 1978). Faz-se necessdrio também destacar que as referéncias que vou fazer as diferentes formas de socializagao académica implicam reconhecer algo que pode ser identificado como uma comunida- de académica, isto é, como um grupo de pessoas que tem interesses proprios e mecanismos de relativa eficdcia para incluir/excluir membros. Essa “comunidade” encontra-se inserida na sociedade mais ampla, e as pessoas que a ela pertencem decerto tém muito desse ethos social mais geral. Para cfeito desse trabalho, no en- tanto, limito minhas avaliagdes a comunidades académicas determinadas, preferindo niio discutir suas telagdes com a socie- dade mais abrangente. Isto nio implica desprezar esse dado, que pesara nas interpretag6es, mas apenas escolher uma estratégia para iniciar a discussio. ao académica no Brasil constituiu-se em duas graduagoes (Direito, 1964-1968, e Ciéncias Sociais, 1971-1974) € uma pos-graduacao (mestrado em Antropologia Social, 1974- s experiéncias, além de terem sido obtidas em instituig6es e cidades diferentes, tiveram também pesos diferen- tes: nao ha dtivida de que, para a discussao que pretendo desenvolver, foram mais importantes as vivéncias relacionadas 2 graduacio em Ciéncias Sociais ¢ a p6s-graduagao em Antropolo- gia. No curso de Direito a didatica se resumia a aulas expositivas, dadas pelos professores de maneira bastante formal, sendo muito claro para todos os meus colegas que a profissdo de advogado, sua técnica, deveria ser aprendida em estdgios, a €poca informais, em escritérios de advocacia, obtidos mediante recomendagées pessoais. A faculdade restava o papel de formar bacharéis, cons- tituindo-se o diploma em requisito necessario, mas nao suficiente para a pratica da advocacia. O verdadeiro aprendizado ficava por conta de mecanismos, processos e praticas informais a serem so- cialmente (¢ nao tecnicamente) aprendidos. Assim, opunham-se relages distantes e formais com os professores a interacao inten- sa ¢ informal com colegas de curso e com profissionais da Area. AS excegées a esse tipo de comportamento ficavam por conta daqueles que aspiravam a Posicao de juristas, caso em que a pra- tica advocaticia e a formagao bacharelesca nao eram tidas como 20 necessarias 4 formagado erudita de um especialista em direito e jurisprudéncia.* A graduagio em Ciéncias Sociais diferia bastante disto, em apa- réncia. Aqui os professores tinham uma relagao muito mais informal com os alunos, reatirmada em sucessivos encontros em suas Casas, bares er ‘staurantes, onde ic complementavam os ensinamentos ministrados nas aulas da Faculdade. Até mesmo as aulas tinham aparéncia informal, realizando-se muitas vezes sob a forma de seminarios ou de discussdes em grupo. Dava-se bas- tante valor ao que se denominava de participagdo na avaliagao dos alunos, férmula que tentava aferir 0 grau de interesse e de aprendizagem do aluno através de seu desempenho oral em aulas e seminarios. Os trabalhos escritos eram também base para a ava- liagdo, mas um de seus critérios mais importantes de julgamento era a dose de “criatividade” que apresentavam. A mera repetigao do que diziam autores classicos ou mesmo 0 professor nao costu- mava arrancar aplausos. O hordrio e o contetido das aulas nao eram cumpridos com rigidez, nado havendo hora certa para come- car nem para terminar. Prolongavam-se as vezes noite a dentro em exposicoes orais de brilhantes teorias e divagagoes espiraladas de centro ignorado. Obviamente, nao havia como disciplinar con- versas paralelas e intervengées repetitivas, as quais muitas vezes eram responsdveis por uma mudanga completa de tema em dis- cussao, ou pelo menos da perspectiva de sua abordagem. Nao havia rigidez na programagao de provas e aulas, nem mesmo uma agenda que delimitasse compromissos didaticos reciprocos. Au- las nado eram dadas ou eram repetidas por falta de quorum dos alunos, assoberbados com tarefas de politica estudantil ou mes- mo empenhados em atividades sociais por ocasiao de feriados, etc. Os alunos procuravam estruturar-se em grupos que se reve- zavam na discussao da matéria na sala de aula, havendo mesmo graus atribuidos pelo professor de forma coletiva.* Embora hou- vesse biblioteca, era através dos livros dos professores, de sua biblioteca privada, que se tinha acesso 4 matéria. Para tal privilé- 3 Projetos de pesquisa voltados para o estudo das formas de socializacao juridica no Brasil e nos Estados Unidos, desenvolvidos por meu grupo de pesquisa “Religiao, Direito e Sociedade em uma Perspectiva Comparada”, produziram relevantes resultados, em seguida publicados em volumes desta Colecao. * Isto se opunha a pratica da Faculdade de Direito, onde as aulas eram conferéncias e a avaliagao feita através de provas individuais. 21 gio era em geral necessario estabelecer algum tipo de relagao pes- soal com 0 professor, que guindava o estudante A categoria de “bom aluno”. Na pés-graduagao a agenda tornou-se de mais rigido cumprimen- to, e a interagio com colegas e professores, mais dificil. Isso nio a tornou inexistente, pois com freqiiéncia comparecia a suas resi- déncias para conversas informais que sempre terminavam na discussao de assuntos relacionados coin as diferentes teorias e interpretagdes ou com a prépria pratica profissional da Antropo- logia. Os seminirios também se faziam mais “secos”, com menos divagagGes, embora essas nao tivessem desaparecido. As obriga- ges didaticas cram mais explicitamente definidas ¢ cobradas. Datas para a entrega de trabalhos eram objeto de eterna discussio e muitas vezes de sucessivas prorrogag6es. O grupo de referéncia formado na graduagao em ciéncias sociais funcionava ¢ expan- dia-se, auxiliado pelo fato de que a maioria de seus membros acabava, cedo ou tarde, vindo parar na mesma instituig&o de pés- graduacao ou mesmo vindo a trabalhar nas mesmas instituicdes onde havia sido aluno. Tal interagao era certamente facilitada por nossa residéncia comum na area do Grande Rio, dominada por determinadas instituigdes especializadas na transmissio e repro- dugao do conhecimento na area de Ciéncias Sociais. Até mesmo o habito de empréstimo de livros por parte de antigos professores nao se alterara, pois a biblioteca da pés-graduacio era ainda bas- tante pobre a época. Havia, é inegdvel, uma maior preocupagio de universalizagao e democratizagao do uso dos livros, que nao chegava, no entanto, a desparticularizar 0 acesso ao conhecimento. Quanto a avaliagao dos cursos, constitufa-se na observacio dos alunos em seminarios, onde pesavam suas interveng6es orais, ¢ também na corregao de trabalhos escritos, que envolviam em ge- ral algum trabalho de campo e deviam apresentar certa “originalidade” na interpretagao dos dados. Apés algum tempo, estabclecia-se distingao entre as pessoas que “escreviam bem” e as pessoas que nao o faziam. “Escrever bem”, tanto quanto me foi dado observar, referia-se a uma certa forma literdria na apre- sentagao correta da matéria conceitual. Por essa época, tornei-me professor da graduacio em Ciéncias Sociais, na mesma instituigio em que antes estudara, e passei a reproduzir as mesmas caracteristicas de minha experiéncia como aluno: énfase nas relages pessoais, atividade pedagégico-didati- 22 ca que alternava situagGes formais ¢ informais, comunicagao com énfase na oralidade, empréstimo de meus livros a determinados alunos, agenda flexivel, freqiiéncia ao “bar do instituto”, situado sempre em suas proximidades, apesar das mudangas de localiza- cao da instituigio. A experiéncia americana Em 1979 sai do pais para cursar uma pés-graduagio em Antropo- logia Social em nivel de doutorado numa Universidade dos Estados Unidos da América. Possufa na época limitados conhecimentos de inglés e, como de- pois vim a constatar, nenhum conhecimento dos procedimentos académicos adequados & pratica universitaria americana. Ao ini- ciar 0 curso, percebi que teria que desenvolver intenso trabalho de campo com 0 objetivo de identificar nao s6 as caracteristic da sociedade em que me encontrava, como também da “comuni- dade” académica a que me propunha pertencer, se quisesse ter sucesso em meu projeto académico. De inicio fui muito bem contemplado pela sorte, pois tive 0 bene- ficio de ser recebido na prépria residéncia de meu orientador. Tal deferéncia, extremamente rara, foi de imenso valor em meu ren- dimento académico, pois havia chegado com atraso, ¢ as aulas ja se haviam iniciado. Comovido ¢ incentivado por este tratamento social, pensei em dar continuidade ao tratamento informal da dis- ciplina académica a que me havia habituado no Brasil, como aluno e professor. Logo ficou evidente que nao se misturavam relagGes acontecimentos sociais com relagGes profissionais e académi- cas. Os assuntos a serem conversados socialmente eram desvinculados da pratica ou teoria antropoldgica. O lugar dessa discussao era a aula ou semindrio e entrevistas marcadas com os professores com essa finalidade expressa. O ensino académico se atualizava na forma de conferéncias (lectures) pronunciadas a partir de texto escrito € lido pelo pro- fessor, pelo periodo exato de uma hora, diante de platéias constituidas de alunos da graduacio e da pés-graduagao (undergraduates e graduates, respectivamente). Apesar de ter cursado ¢ participado com assiduidade como “ouvinte” de varios desses cursos, foram rarissimas as vezes em que presenciei per- 23 guntas por parte dos alunos, embora elas fossem permitidas. As ocasides de discussio e explicitagio de dividas eram as de semi- narios (seminars) quinzenais com 0 professor ou seus monitores (teaching-assistants), colegas nossos da pés-graduaciio mais adi- antados, que se realizavam em paralelo com os cursos de lectures. Os monitores também dirigiam semindrios semanais para os alu- nos da graduagdo matriculados nesses cursos. Havia ainda cursos exclusivos da pés-graduagao, constituidos apenas por seminari- os. Nesses, semelhantes aos da pés-graduagio brasileira, pelo periodo exato e predeterminado de duas ou trés horas, sentavam- se alunos ¢ professor em volta de uma mesa para discutir os temas da pauta do curso. Algumas vezes tais semindrios foram realiza- dos na casa dos professores, em casos de sua transferéncia, por algum motivo, do hor4rio normal. Os procedimentos, entretanto, seja na sala de aula, seja na casa do professor, permaneceram os mesmos: 0 professor dava inicio As discuss6es exatamente na hora aprazada, apés ligeira interag’o social em que se conversava so- bre amenidades, como o estado do tempo, por exemplo. Cada aluno entao intervinha ou era a isso expressamente solicitado pelo professor. As falas deviam ser curtas ¢ objetivas, e uma de cada vez, isto 6, havia que deixar alguém terminar para que se inicias- se outra intervengdo. Também nfo se admitia, nem eu nunca vi, aquilo que aqui se denomina de “conversas paralelas”, tao fre- qiientes e inspiradoras nos semindrios brasileiros. Caracteristico do ritual académico era que, mesmo quando esta- vamos no mesmo andar, nos “encontravamos” apenas na hora do semindrio, 10 a 15 minutos antes do seu inicio, e nos separdva- mos logo apés. Nao havia bate-papo, cafezinho, ou outra forma de interagao social relacionada aos temas discutidos ou a discutir, os famosos “comentarios” brasileiros. Esse contraste era tanto mais marcado porque as aulas eram dadas no mesmo andar ou no andar acima daquele em que tinhamos nossos offices, escritétios partilhados por trés alunos, no 1¢ano. Em meu cubiculo, também logo percebi que no eram bem-vindos bate-papos e que ninguém entrava em nenhum deles sem pedir licenga, mesmo quando a porta se encontrava aberta. Mesmo quando a licenga era dada, quer dizer, quando o ocupante se dispunha a falar coma pessoa, a conversa se limitava a combinar algum outro momento para se discutir assunto de interesse comum. Ficava claro, assim, que a disponibilidade das pessoas era limitada a temas, horas e locais determinados. 24 As atividades dos cursos eram complementadas por palestras (talks) ou conferéncias (lectures) ministradas por professores con- vidados. Desses eventos éramos informados através de’ cartazes impressos ¢ afixados nas paredes. Nao havia nenhuma referéncia pessoal a esses compromissos, nem qualquer tipo de cobranga quanto a sua assisténcia, ta0 comum no Brasil. Certa vez, logo no inicio de minha permanéncia, esqueci que apés um semindrio haveria uma palestra que me interessava. Dirigi- me ao cubiculo para guardar minhas coisas, como meus colegas, ao final da aula. Cada um entrou no seu, como de habito, guardou suas coisas e se retirou. Como eu quisesse estudar mais um pou- co, permaneci. Dez minutos depois, sai do escritério para beber Agua e deparei com um cartaz alusivo 4 palestra, a ser realizada no prédio ao lado. Apressei-me a chegar 14. Qual nao foi minha surpresa ao verificar que todos os meus colegas de seminario lotavam a sala: tinham ido todos, mas cada um por si. Acabada a palestra, como de habito, todos apressam-se a se retirar, como se algum compromisso urgente os impedisse de permanecer mais no local. Nenhum comentério, nenhuma discussao. Com 0 tem- po, no segundo ano, esse procedimento se tornou mais flexivel. Faziamos comentarios as palestras, mas nao logo apdés seu acon- tecimento e sim no outro dia, por exemplo. Também nao sofreu nenhuma alteragao 0 habito de irmos todos ao mesmo lugar, mas em separado. A atitude dessas pessoas durante tais palestras era também bas- tante contrastante com a brasileira: apés a exposigio, abriam-se os debates, de que participavam igualmente alunos ¢ professores, sem nenhum constrangimento. Faziam-se entao perguntas aos conferencistas, que as respondiam. Essas perguntas e respostas eram freqiientemente bastante agressivas quando comparadas aos padrées brasilciros, mas a sua aparente “objetividade” fazia com que 0 debate nfo fosse considerado de carater pessoal. Quando havia algum exagero, motivado por conhecidas desavengas pes- soais, o debate era considerado sem substancia, como se a discussao (ou a ciéncia...) fosse neutra, por definigéo sem parti pris. Por outro lado, nao havia hierarquia nesses debates, entre alunos e professores. Era bastante claro que apenas a pertinéncia da pergunta ensejava maior ou menor interesse em respondé-la. As quest6es também eram consideradas como “contribuigdes & 20) io” mesmo e, talvez, principalmente, quando divergiam A diferenca entre esses debates que explicitam publicamente as diferencas. 26 através de perguntas e respostas e as nossas declaragdes de principios que se constituem em conferéncias paralelas, muitas vezes sem nada a ver com © tema supostamente a ser debatido, é crucial. Também o medo de perguntar aponta para a presenga de uma rigida hierarquia entre os participantes de nossos debates. Talvez por isso eles sempre se tornem disputas pessoais, ao Invés de discussdes em toro de temas especificos. Sobre o significado da pergunta, no Brasil, ver Da Matta (1979) e Kant de Lima (1992b). 3 A DISCIPLINA PELA FORMA Durante o primeiro ano atribu{ grande parte de minhas diticulda- des de interagio com a comunidade académica 4 minha condigao de estrangeiro. Pouco a pouco fui-me apercebendo de que meus problemas, ou pelo menos parte deles, cram comuns a todos os meus colegas. Eram eles de outros estados, moravam sozinhos, nao eram antigos colegas nem interagiam entre si, ressentiam-se de mais discuss6es académicas e convivio social, etc. Culpavam muitas vezes a instituigféo em que estavamos, caracterizando-a como extremamente formal. Entretanto, no pareciam muito dis- postos a transformé-la, discutindo sua estrutura ¢ organizagao, como ¢ habito no Brasil. Os inconvenientes eram como que parte necessaria ou mesmo indispensavel de sua formagio (education). ®~ Para exemplificar o que digo, narro um fato ocorrido no final do primeiro ano. Ao entrar no prédio onde tinha meu escritério, encontro um dos colegas com quem o dividia. Ele esta acompanhado por outro rapaz e, apresentando-o como seu irmao, diz que sou seu melhor amigo na Universidade. Disse-lhe que me sentia muito lisonjeado, embora surpreso, pois haviamos conversado apenas trés ou quatro vezes durante o ano todo. Ele retrucou que era verdade, mas que eu havia sido a pessoa da Universidade com quem ele havia mais e proveitosamente conversado naquele ano!?! 27 Participei de situagao exemplar desta atitude quando de uma dis- cussao sobre a distribuigao dos offices entre os alunos. Os nossos escrit6rios estavam situados em dois dos andares do prédio que ocupavamos. No andar de cima havia gabinetes de professores, a sala de aula para semindrios, escritérios de alunos ¢ 0 lounge, espécie de salio de recreagao onde ficava a maquina de fazer café, 0 telefone para recados, sofa ¢ poltronas. Neste local, todas as quintas-feiras realizavam-se beer hours, sess6es de beber cer- veja, paga pelo Departamento, encarregadas de promover e institucionalizar nossa interag’o social, contando com a presenga de professores, alunos e convidados (minha mulher, por exem- plo). Neste andar os offices eram mais espacosos e claros, sendo ocupados por dois alunos. No andar inferior, que era dividido com o Departamento de Sociologia, os offices eram menores ¢ alguns nao tinham janela. A praxe era que os espagos de cima fossem destinados aos alunos mais adiantados, ou Aqueles que, de volta do campo, estavam redigindo suas dissertag6es. Os de baixo ficavam para os mais modernos, que os ocupavam aos dois ¢ trés,” Certa vez, tendo sido aprovado um projeto da rea de Antropolo- gia Bioldgica, disseram-nos que terfamos de desocupar os offices, pois nem mesmo direito a eles tinhamos, enquanto estudantes, sendo a permissao para seu uso mera concessio departamental. ‘Tratou-se logo de fazer uma reuniao, onde se discutiu a questao de como encaminhar nossas reivindi ‘agdes, uma vez que os alu- nos nao tinham assento nas reunides departamentais. A distribuigio dos offices era considerada uma tarefa administrati- va, realizada pela secretéria do Departamento. A brasileira, quis politizar e ampliar a questio, comegando por reivindicar nossa representagao no Departamento, o direito adquirido pelo costu- me de nos darem os offices, 0 arbitrio implicito na medida, a impossibilidade de nos deslocarmos para outros espagos, etc. Meus colegas, com condescendéncia, explicaram-me que concordavam ’ A disposigao interna e uso social do espago dos offices obedecia aquela ia referida por Hall (1959, p. 200) para os escritorios americanos em geral. Dado um certo espago, este é dividido igualmente entre seus participantes. Os recém-vindos tém direitoa ocupacao de seu espaco, que deve ser cedido voluntariamente, mesmo que seja necessdrio efetuar deslocamentos de antigos ocupantes. Distribuem-se ao longo das paredes escrivaninhas e estantes, deixando-se o centro livre para eventuais encontros. 28 comigo, mas que isso era outro assunto, e eu devia ser mais “ob- jetivo”. Outras reunides foram feitas, tendo eu ido a algumas ¢ a outras nao. Religiosamente, entretanto, era informado por um colega, membro de uma comissiao de representantes, “para as suntos de office”, do que havia sido discutido. Mais, se eu tinha alguma restricdo as decisées tomadas, quando nao havia podido comparccer. Era como se minha auséncia nao implicasse sangdes ou perda de direitos, pelo contrario, em seu respeito ¢ conserva- cao obrigatérios.* Depois de muita discussio, chegou-se a uma comissao mista de professores e alunos que negociou a distribuigio dos espagos. Foram criados varios Laboratorios, que tiveram seus espagos dis- tribuidos pelos andares e ocupados pelos alunos ¢ pelos membros. do projeto. A estrutura e organizagio do Departamento continua- ram as mesmas, é claro.” Do ponto de vista das discussées, os cursos nao apresentavam maior novidade se comparados com os que realizei na graduagao pos-graduagao brasileiras. A bibliografia era mais ou menos a mesma, talvez com a caracteristica de ser mais classica, isto é, voltada para dar a visao ja cristalizada dos progressos e trajetéria da disciplina antropoldégica, sem enfatizar aspectos contempora- neos controversos. Tal caracteristica se expressava na proporgdo muito maior de livros nas relagGes de bibliografia e de bem me- nor némero de artigos do que os daquelas da pés-graduagao brasileira. A rea coberta pela bibliografia era bem vasta, tanto teérica como geograficamente falando. Os alunos faziam questao de ser expos- Isto 6 exatamente o oposto do que ocorre em nossa pratica politica; se eu nao estiver presente, “dango”, quer dizer, perco todo o direito de discordar. Os individuos s6 existem enquanto grupo, atualizando-se este independentemente daqueles. Sobre essas praticas holisticas veja-se 0 irénico artigo de Walzer (1977). Sobre o papel e as caracteristicas contraditérias da escola americana na promogao dos ideais de individualizagao e estimulo a criatividade e da necessidade de padronizagao, em fungdo de prover oportunidades iguais para todos — sendo a diferenga fruto de mérito individual -- e de socializar os individuos para integra-los a classe média (mainstream), considerada a utopica realizagdo da igualdade, veja-se Garretson (1976). 29 tos ao maior nimero de correntes e experiéncias pos que pudessem com e siveis, para cia realizar sua formagao profissional." Apesar destas caracteristicas, surpreendente para mim como bra- sileiro era a falta de referéncias & sociedade americana. Acostumada a nossa sociologia e antropologia autocentradas, tranhava que essa reflexao fosse considerada como do dominio exclusivo da Sociologia, mesmo porque esta, nos Estados Uni- dos, nao incorpora na maioria de sua produgio a critica metodolégica 4 reproducéo de conhecimentos de forma etnocéntrica ¢ positivista, j4 acatada por certas correntes da An- tropologia 14 radicadas (GEERTZ, 1978 ; SAHLINS, 1979, por exemplo). Por outro lado, tal divisio de competéncias revelava algo que acredito seja também existente aqui. Tanto em um como em outro caso, a parti¢éo das Ciéncias Sociais atende precipuamente a interesses politicos de divisio do trabalho. Ou seja, isto € “sociologia” ou “antropologia” para que Departamen- tos, professores, recursos escassos ou abundantes possam ser distribuidos com algum critério explicito de limites da concor- réncia, associando ¢ implementando interesses comuns. Um exemplo dessa aversio pela explicitagio do “proximo” ocor- reu quando, no final de outubro, tivemos uma nevada fora de €poca: a neve, que “inicia” o inverno, s6 cra esperada em dezem- bro. No dia seguinte, um coro de vozes no Departamento, que ecoava o clamor dos veiculos de comunicagao locais: “Ridiculous!”, “a neve veio cedo demais”, etc., embora ja hou- vesse parado de nevar ¢ 0 tempo tivesse melhorado. Comecei entao a observar a meus colegas ¢ professores que nao parecia haver nenhuma diferenga substancial entre aquela sociedade ¢ a dos Nuer, na questio das divisées ecolégicas do ano e na regulagem do seu tempo social pelas estagdes, marcadas por even- tos meteoroldgicos, no que pesassem 1s diferengas estruturais ¢ tecnolégicas entre as duas sociedades. A parte sorrisos amarclos, nao recebi nenhum incentivo pela originalidade e carater antro- poldgico de meus comentarios eruditos. Tais situacdes, que passei © Nada daquele “nao li endo gostei” brasileiro, que olha sempre com suspei¢do © que nao 6 coerentemente apresentado como parte de um pensamento ja definido em suas premissas. Esta Ultima postura, de necessidade de “coeréncia”, como se sabe, tem sistematicamente levado a experiéncias repressoras em nosso meio académico, por parte de seus membros mais tadicais. E como se, no fundo, a diferenca fosse desorganizadora por definigéo, alunos querendo ouvir-se nos professores e vice-versa. 30 com freqiiéncia sistematica a repetir, comprovaram 0 tacito acor- do existente de dirigir o olhar antropolégico para coisas “realmente” longinquas. Tal postura € reforcada pela convicgio arraigada na sociedade americana de que ela nao possui “cultura” no sentido antropold- gico do termo, ja referida, entre outros, por Marshall Sahlins (1979). Tudo, assim, é “natural”, ou seja, a mancira como se faz é a “melhor” maneira porque € a mais “saudavel” ou a mais “sim- ples” ou mais “racional”. Quando os assuntos sao comida, bebida, estética corporal e relagGes sexuais, bem se vé 0 grau de confusto a que um estrangeiro tera que se submeter para compreender quais os modos mais “salutares” ¢ “simples” nessas quest6es.'! Minhas intervencoes nos seminarios marcavam-se por diferentes perplexidades, que eu atribufa as deficiéncias do meu inglés. Com o tempo, no entanto, ao constatar que 0 que eu dizia era entendido com perfeigdo em outras situagdes ¢ 86 causava surpresa nos sc- minarios, é que percebi que as questdes que estava acostumado a enderegar aos textos é que cram diferentes das questdes conside- radas relevantes pelos meus colegas. Outra circunstancia também me confundia: a bibliografia dos cursos, a ser discutida em cada semindrio, me parecia enorme, especialmente para quem a via pela primeira vez, 0 que nao era, quase sempre, 0 meu caso, mas era o de meus colegas. Fichavam e separavam com premonit6ria exatiddo as questées que o professor lhes iria perguntar, quase que de cor respondidas de imediato, como se estivessem ensaia- das, quando para mim eram extremamente inesperadas ¢ diticeis, Outro ponto que me intrigava era o porqué de meus colegas si lerem em inglés, quando todos tinham obrigatoriamente conheci- mento de pelo menos uma lingua considerada “académica” nao-inglesa, como francés, italiano, alemao, etc. O fato de que todos também estudavam sua “lingua de campo”, isto é, a lingua que iriam usar em sua pesquisa de campo na regiao do mundo onde a efetuariam (chinés, arabe, swahili, etc.), tornava a questao ainda mais pertinente, pois meus colegas nao tinham, com certe- za, dificuldades relevantes no aprendizado de outras Iinguas. Com 0 prosseguimento dos estudos, chegou, no primeiro semes- tre, a época da entrega dos trabalhos escritos. Um colega meu, nativo, prestativo ao extremo, prontificou-se a “editar” meu pri- meiro trabalho (to edit). Foi um terror! Estava tudo, literalmente, 1 Neste sentido, veja-se também Garretson (1976). 3], “fora do lugar” e “unclear”, “vague” ¢ outros adjetivos que ates- tavam a extrema confusio mental em que eu deveria me encontrar, apesar de toda a minha impressao em contrario. Fiz como pude este primeiro texto, ao qual se sucederam os exames escritos. Estes, em geral, constavam de questées a serem escolhidas pelo aluno em um elenco dado e que consistiam em comparar por semelhan- ¢a ou por diferenga (compare and contrast) abordagens de varios autores de posigdes tedricas distintas. Pareciam-me, a primeira vista, quest6es impossiveis de serem respondidas no ¢ pago de tempo e papel dados — cada resposta nao podia ultrapassar cinco laudas datilografadas, com espaco dois, a serem produzidas em um dia para cada questio, trés a quatro para cada exame. Acima de tudo, comparar, em uma mesma questio, Malinowski, Durkheim, Marx, Gadamer, Weber, Bateson, Laroui ¢ Bloch me pareciam tarefas gigantescas. Conversando com meus colegas, vi que isso em nada os admira- va, sendo suas eventuais criticas dirigidas a outros aspectos dos exames, como 0 fato de ter havido pouca discussao sobre um ou outro “ponto” ou autor, etc. Para fazer os exames, observei que se serviam de suas anotagGes, nao voltando aos livros para efetuar nova leitura dos autores. Isto em muito me bencficiava, porque, como nao havia discussGes informais, 0 vinico acesso aos autores cram 0s textos e, embora a biblioteca fosse estupenda, nao dispu- nha sempre de muitos exemplares do mesmo livro, alias, como politica de economia de espaco. A mancira de resolver 0 proble- ma do acesso democratico ¢ universal bibliogratia era reservando os exemplares disponiveis para os estudantes daquele curso e de permitir scu uso por trés horas de cada vez. O que € que eu ia fazer com trés horas para ler Coral Gardens and Their Magic, Knowledge and Human Interests, The Griindrisse ou The Protestant Ethic and The Spirit of Capitalism? Aparentemente minha condigéo de estrangeiro em um Departa- mento de Antropologia e minha prévia e razodvel formaciio na disciplina deram-me alguns privilégios e suficiente jogo de cin- tura para que me saisse bem da experiéncia inicial. Com tolerancia, fui advertido de que os trés primeiros meses cram os piores, quando nao se entende muito e nao se é entendido; que apds seis meses ja poderia me fazer entender razoavelmente e que apés o primciro ano meu inglés se normalizaria. Isto acontecia com todos os es- trangeiros... 32 Para acelerar este processo, matriculci-me em curso de redagao (composition), ministrado pela propria Universidade ¢ pago por meu Departamento. Tais cursos, freqiientados com exclusividade por estrangeiros, destinavam-se a inicié-los na redagio de textos em inglés necessarios 4 expressio de sua produgio intelectual. Em contato com esses colegas, também alunos da Universidade em sua maioria, pude constatar que meu Departamento era bas- tante tolerante quanto a essa questio da expressio escrita. Meus colegas pareciam sofrer toda a sorte de vexames em fungio de sua “ignorincia do idioma”. O que escreviam nem mesmo cra algumas vezes lido ou considerado por seus professores, estando 0 apice desta relagao etnocéntrica situado na Business School (Es- cola de Administragio de Empresas). Nestes cursos, que freqiientei durante dois anos consecutivos, tive oportunidade de discutir as questoes que estou levantando aqui com colegas oriundos da Africa, Asia ¢ América Latina, assim como da Europa nao-inglesa. Apliquei-me ao estudo das regra da composition e aos poucos fui-me apercebendo de determina- dos aspectos da socializagio académica antes sequet vislumbrados por mim. Aprendi, por exemplo, que, “em inglés”, a primeira ou a Gltima sentenga de um paragrafo é a mais importante, devendo sintetizar a idéia principal que nesse paragrafo se quer exprimir. O recheio é mero qualificativo desta sentenga principal, que rece- be o nome de topic sentence. Assim também em cada pa agrafo se deve desenvolver uma idéia ¢ apenas uma. Se ha mais de uma idéia, deve-se fazer tantos pardgrafos quantas estas forem. Cada lauda deve ter de dois a trés paragrafos, e em cada capitulo, ou parte do trabalho, o primeiro € 0 ultimo pardgrafos devem sinteti- zar seu contetido por inteiro. Se se trata de um livro ou trabalho de maior envergadura, a Introdugao e a Conclusao terao 0 mesmo papel. Deve-se escrever sempre utilizando conscientemente as opera- codes légicas de classificar, contrastar, comparar, estabelecer correlagées, relagdes de causa ¢ cfeito e, em especial, fazendo-se sempre referéncia a exemplos concretos (examples, evidences), sem os quais 0 texto se torna “abstrato” ¢ “genérico demais”, perdendo o sentido. Como explicitava um dos manuais utilizados no curso, as relacdes antes mencionadas sao relagGes logicas que nao vale a pena conhecer profundamente para que nao nos veja- mos envolvidos em esotérica discussao sobre Logica. O aluno de redacgio, ainda segundo esse manual, deve aprender a operar com 88 essa logica, mas nao deve ser estimulado a discutir-lhe as premis- sas, sob pena de perder-se a “objetividade do curso”. Devo frigar que tais manuai: ‘a0 especificos para estrangeiros, ma O livros utilizados nos cursos secundarios (high school) ¢ também nas Universidades.! As aulas de redagao eram bastante ricas em discussio e talvez porque cu fosse o dnico antropdlogo cabia-me sempre a parte comparativa da conversa. Como os professores eram todos ame- ricanos com experiéncia no exterior, a discussio tornava-se bastante interessante ¢ aos poucos fui-me apercebendo de que meu inglés nao estava tio mau quanto eu julgara ¢ que o principal problema era a maneira como estava acostumado a organizar meu pensamento. Tal circunstancia se esclareceu mais ainda quando constrastada com a evidéncia de que essa “forma” havia sido ha pouco incorporada a “lingua” inglesa, pois Shakespeare definiti- vamente nao escrevia assim.’ Nesse interim passei a escrever como estava aprendendo. De ime- diato fui agraciado com comentarios de que meu “inglés” estava melhorando muito. Descobri, porém, que se estava sendo melhor compreendido, nao havia ganhos substanciais no contetido de minha comunicagao escrita. Aprendera a expressar-me em inglés de forma adequada e podia ser explicito a mais nao poder sobre aquilo que pensava conhecer. Entretanto, minhas dificuldades eram imensas para expressar minhas perplexidades ou mesmo para exprimir 0 que me parecia como a complexidade do meu assunto, a vida humana em socicdade. A clareza me tornara mais “simples”, mas de certa forma simplificara 0 objeto sobre o qual escrevia. Tal percepgao foi reforgada quando, em uma das muitas es de editing com o colega ja referido, perguntei-lhe, diante de uma situagdo para mim indecomponivel em operagées analiti- ‘2 “Many of the logical relationships overlap, of course. Classification is a form of contrast; prediction is a kind of cause-and-efect inference; chronological order and causality are related. The teacher can point out these interrelationships to the students. It is not necessary, however, to become involved in.an elaborated, esoteric discussion of logic. In fact, such discussions are to be avoided as they detract from the writing practice. The students must, however, master the meta-language of the course, that is to say, they must be able to identify and name the logical methods they are practicing” (LAWRENCE, 1972, p. 6). Ocorre-me que, contemporaneamente, Henry Miller também néo escreve assim, sendo esta, talvez, a razéo do “escandalo” que provoca, ligado mais & forma como se expressa do que ao conteUdo de seus trabalhos. 13 34 cas exigidas pelos manuais de estilo, o que ele faria diante da mesma situagao. Apés uma longa explanagao sobre gramatica (?!), ele respondeu-me que preferiria nao escrever sobre o tema en- quanto nao estivesse totalmente “claro” em sua mente (clear). Nao é demais ressaltar nesse contexto 0 papel que a lingua ingle- sa tem no contexto mundial ¢ o papel que a academia americana desempenha na sociedade americana enquanto produtora de cé- rebros e saberes tteis. Minha experiéncia mostrou que as caracteristicas formais a que me estou referindo para qualificar a comunicagao escrita “académica” sao validas em instituigdes como a Business School, Law School ¢ School of Government (Faculdade de Negécios, Direito e de Governo !?!) e outras simi- lares, Estas regras vao permear ¢ orientar a expressao de executivos das 4reas dos negécios, do planejamento, do dircito, da econo- mia —c nio s6 de nacionalidade americana, dada a posigao que as Universidades e a sociedade americanas ocupam no cenario mundial. Cheguei mesmo a observar que as Business Schools, por exemplo, sio muito mais rigidas na aplicagao dessas regras, estendendo-as a treinamentos de executivos, preparagao de reu- nies, etc. Nesses casos, 0 papel que tais “formas” desempenham € maior ainda, na medida em que a clientela a que se aplicam esta 4vida de aprendé-las ¢ apropriar-se de seus beneficios colaterais, tornar-se um dos membros dessa fechada comunidade. As conse- qiiéncias desta disciplina formal estio, portanto, diretamente vinculadas 4s formas de negociar, pensar ¢ organizar assuntos referentes ao comércio internacional de trigo, petroleo ¢ café, as negociagoes diplomiticas entre Estados, a formulagao de politi- cas econdmicas e A atuacao do FMI... Nao se deve também esquecer 0 papel da lingua inglesa enquanto meio privilegiado de difusio de informagées em nivel mundial. Tal posicao transmite especial status aos trabalhos publicados em inglés, visto que amplia seu campo de influéncia e contato, com todas as conseqiiéncias que isso possa representar em termos de maior acesso a recursos do mercado intelectual. Na medida em que a padronizagao dos estilos ¢ das formas de expressio escrita sao condigio sine qua non pata a penetragao neste mercado, algumas conseqiiéncias sao evidentes. A primeira € que a padronizagao dos estilos, além de domesticar outras légicas, reduzindo-as a padroes preestabelecidos quando expressas nesse inglés académico, tem também 0 efeito de do- 35 mesticar as tradugdes consumidas em lingua inglesa. Essa, alids, € a mancira dominante de consumo de literatura estrangeira nos Estados Unidos, mesmo quando o leitor conhece o idioma origi- istancia bastante dos consumidores brasilciros, em especial quanto aos textos clasificados como técnicos ou ci- entificos. Isto ocorre porque 0 que interessa nessas comuni agoes nao € seu “estilo”, mas seus “pontos” (points) fundamentais, mais compreensiveis quando despidos da mpurezas” estilisticas. Nunca me esquego de como fica mais “facil” ler Weber na tradu- cao inglesa, 0 mesmo acontecendo com Foucault, Marx ¢ outros ilustres estrangeiro Mas € bom notar que nao me estou referindo simplesmente a uma “traigdo” de versdes originais, implicita no trabalho de quaisquer tradutores em quaisquer idiomas. O caso aqui € que, de maneira semelhante ao Reader’s Digest, com rarissimas excegées, pai sando os autores estrangeiros por esse tipo de “dominagao” estilistica, sofrem uma distor¢ao uniforme, implicita, de seu pen- amento. Os estilos estrangciros sofrem, mesmo (ou principalmente) por parte dos intelectuais, rotulagdes que denun- ciam os preconceitos envolvidos na questao e¢ reforgam a necessidade de ler tradugGes. Assim, a sociologia francesa é mui- to “frouxa”, “metafisica”, “geral” e “repetitiva”; a alema, muito “densa” ¢ “complexa”, com scus “pardgrafos intermindveis”; a latino-americana, muito “prolixa” ¢ “pouco objetiva”." Tal dis- criminagio atua também contra autores em lingua inglesa que se afastam dos padrées desse inglés académico: Clifford Geertz, por exemplo, € considerado excessivamente literdrio, no sentido pe- jorativo de nao ter o necessario rigor eslilistico-cientifico adequado a produgao académica. Tal é 0 sentido da terccira epigrafe deste trabalho, sobre a critica ao estilo “brasileiro” de tese. “* Veja-se este trecho inicial da Introdugao de Mary Douglas a edigao inglesa (Paladian) do Homo Hierarchicus de Louis Dumont: “A challenge from across the Channel is issued to contemporary thought. This has been a regularly recurring event. Usually the English-speaking people ignore it for the first twenty years. The problems as initially posed in Europe seem either too metaphysical, too local, too remote from our professional concerns, or, if relevant, too lax in the manner of their posing. It takes time to anglicize the basic ideas. As they are often subversive, either of government or of religion, italso takes time to neutralize their explosive power. So we might easily have been tempted to shrug off Professor Dumont's Homo Hierarchicus as just another French gauntlet flung down. But this particular challenge cannot be dismissed” (DOUGLAS, 1975, Pp. 181) 36 Ascgunda conseqiiéncia da padronizagao é que ela facilita 0 con- sumo. Pode-se absorver muito mais informagGes isoladas sabendo com exatidao onde procurd-las. Desenvolvem-se técnicas de lei- tura onde se léem apenas trechos selecionados do texto, de antemao conhecidos como significativos: prefacio ou introdugao, conclu- sao, algum capitulo central, primeira e tltima pardgrafos iniciais e finais, etc. Aperfeigoa-se a técnica dos tichamentos (abstracts), auxiliada pela consulta sistematica aos indices de assuntos e€ autores citados, no final dos livros (Index), no destaque ec identificagio de certos autores a certos pontos con- siderados expressivos de seu pensamento. A possibilidade da divers cao das informagées diminui, tornando muito dificil a realizado de varias leituras de um mesmo texto. A concepgio do conhecimento como um processo cumulativo e linear ganha for- ca. E um pouco como se as versdes consagradas fossem a matéria-prima sobre a qual se edifica a atividade intelectual, que se limita a “avancar” a partir dai, sem contestar seus préprios alicerces. A terceira conseqiiéncia é a previsibilidade dos efeitos da comu- nicagdo académica. E muito mais facil, entao, escrever, pois sei que meu trabalho serd julgado dentro de regras rigidas de pertinéncia ao passado da disciplina, quanto a seu contetido c, quanto & sua forma, por sua adequagao aos rigidos modelos ja expostos. Sc colocar bem 0 meu “ponto”, isto é, se puder formaliza- lo com adequagio, meu trabalho sempre sera defensdvel. Se eu nao tiver a pretensao de construir grandes teorias ou mesmo de contestd-las ou alterar-lhes a estrutura profunda, garanto meu lugar ao sol como mais um produtor intelectual. Compartimentalizando, individualizando 0 conhecimento, sempre posso escrever sobre algo ou, quando instado, sempre posso criticar algo. Nao tenho compromissos com uma “obra” enquanto um todo, mas apenas com os pontos que queria discutir, dos quais posso sempre aceitar alguns ¢ rejeitar outros. Essa técnica, responsdvel pela imensa producao intelectual americana, se resume na expressio com que se julgam, afinal, os trabalhos e argumentos: alguém tem ou nao tem um ponto (fo have or to have not a point), conjugada dquela que compara constantemente a atividade cientitica com a deci- fragio de: quebra-cabegas (puzzles), ou sua montagem, sempre referindo o todo pelas suas partes.'* 18 A polémica Camille Paglia, em conferéncia proferida no Massachusetts Institute of Technology (MIT), discute e confirma a presenga deste estilo de avaliagao de produtividade na academia dos Estados Unidos (PAGLIA, 1993). 3h 4 A PARTICULARIZACAO DO PUBLICO E O SIGNIFICADO DA REPRESSAO Minha questdo fundamental, meu point, como cles a chamam nos Estados Unidos, é que o controle exercido sobre a produgao inte- lectual e antropolégica em particular enquanto disciplina cientifica académica nio se exerce na academia pela censura do contetido das proposigées, ou, pelo menos, nao sé por esta. Ea imposigao da forma académica de expressao que, em tltima anilise, orienta e organiza o pensamento e impée limites 4 produgao intelectual, domesticando-a. O que importa nao é se o contetido da proposi- co € ou nao revolucionario, mas se ele se insere comportadamente nas formas de expressio permitidas pela academia, se ele 6 um produto disciplinado, décil e, portanto, titil dessa mesma acade- mia,'® %® Neste sentido note-se a segunda epigrafe deste trabalho, bem como a polémica afirmativa de Barthes: “Mas a lingua, como desempenho de toda linguagem, nao 6 nem reacionéria, nem progressista; ela é simplesmente: fascista, pois 0 fascismo nao é impedir de dizer, é obrigar a dizer.” (BARTHES, 1980, p. 14) a2) Tais mecanismos disciplinares estao, entretanto, ligados a certas concepgoes da sociedade como um todo, em especial na maneira como cla se representa constituida."” Assim, representagdes de individualismo, igualitarismo, hicrarquia, dominios do publico ¢ privado, valor positivo ou negativo do acesso universal ou parti- cularizado as informagées — fundamentos da ordem social — nao sao idénticos ou ocupam a mesma posigio nas sociedades ¢ aca- demias americana e brasileira, refletindo-se tais diferengas na constitui¢gdo e controle da produgao intelectual. Essas diferengas se manifestam nas manciras distintas de “tornar publico” o pensamento e as regras que presidem sua expressdo: a uma produgao escrita, cristalizada, disciplinada formalmente, li- teral e explicita opde-se uma oral ¢ fugaz, a que correspondem formas repressoras, implicitas e interpretativas de controle soci- al. E claro que os dois mecanismos de produgio e¢ controle niéo sao exclusivos, mas a minha experiéncia nas duas comunidades académicas permite que eu as considere como mais enfatizadas, dominantes, ou caracteristicas de cada uma delas, de acordo com as sociedades em que estio inseridas. A academia americana é parte de uma sociedade letrada, em que as pessoas esto condicionadas para produzir mensagens escritas a serem assimiladas literalmente, mesmo quando essas mensa- gens sao verbalizadas. E como se 0 seu idcal fosse “falar como se escreve”, expresso através do qualificativo elogioso de “muito bem articulado” (extremely articulated), atribuido a quem o rea- liza. Tal circunstancia agrega-se ao cardter de explicitagio, tacionalidade ¢ naturalidade que presidem a cultura americana, atribuindo-se importancia social ao que esté formalmente enun- ciado, como se a literalidade fosse a forma por exceléncia de atribuir significados sociais. Exemplo dessa paixao pelo grafico € a difusao de mapas que orientam as pessoas nas cidades ¢ estra- das e que sao fornecidos, muitas vezes, de graga, ao invés da informagio oral, em especial na chamada Costa Leste. Na academia essas caracteristicas se exprimem nao se conceben- do um intelectual que nao escreva, quanto mais se for aluno ou professor universitario (PAGLIA, 1993), Isto contrasta com a nossa academia, onde é freqiiente o caso de professores sem obra escri- Para uma discussao dos significados da repressdo e da disciplina como estratégias de poder, na Franga e na Inglaterra, veja-se FOULCAULT, 1974, 1977. 40 ta, mesmo assim consagrados enquanto detentores de um saber e de uma técnica adequada 4 sua transmissao, capazes de garantir insofismavelmente sua posicio institucional. Exemplos destes contrastes académicos podem também ser reti- rados das respectivas Reunides das Associagdes de Antropologia e das regras e praticas que ali estao presentes. As da American Anthropological Association (AAA), anuais, com uma agenda rigida que se programa com um ano de antecedéncia, estabele- cendo varias etapas para a aceitago de trabalhos que devem ser apresentados em varias versées ¢ que tém seu nimero de pala- vras controlado, até em sua versio final, lida num espago de tempo preciso ¢ improrrogavel. As da Associacado Brasileira de Antro- pologia (ABA), com uma agenda flexivel, admitindo inscrigdes de trabalhos na hora (apesar de ser bianual) sem disciplinar o tempo ou o ntimero de exposig6es por grupo, nem a ordem das apresentagdes, 0 mais das vezes orais, mesmo quando esta dispo- nivel um texto escrito para leitura. Alids, a leitura nado deve nem mesmo ser tentada, pois “cansa” o auditdrio... '8 Mais, as reunides dos grupos de trabalho da ABA, 4 semelhanga dos semindrios da pos-graduacio, se tém hora para comegar, nao a tém para termi- nar. Desta forma, nao dispdem de limites de tempo, sendo sua extensdo além do perfodo previsto um sinal de interesse e motivo de orgulho de participantes e organizadores. Na AAA, qualquer extensdo do tempo das reuniGes é vista como um extremo incon- veniente: cla prejudica 0 schedule (agenda?) que cada um dos assistentes fez previamente, privando-os do direito de compare- cer a outros eventos, em principio tao ou mais importantes para eles.'” Representam, assim, uma tentativa de romper um equilf- brio entre o individuo e 0 grupo, existente através da enunciagao de regras explicitas para sua interagao. Tornam 0 individuo mais disponivel para um grupo do que para outro, contra a sua vontade. No Brasil ocorre 0 oposto: a permanéncia para além das regras demonstra a jé prevista hierarquia dos eventos, vindo apenas confirmé-la, dando legitimidade 4 desigualdade, com o consenti- mento implicito dos participantes. Dai a necessidade de se pedir desculpas pelo néo-comparecimento a eventos, desnecessarias nos 18 Este trabalho teve uma versdo preliminar apresentada “de improviso” e oralmente a XIII Reuniao da ABA. Aeste respeito e sobre outras caracteristicas que assumem as concepgdes de tempo e espago na sociedade americana, ¢ em especial na Costa Leste, ver Hall (1959 , 1977 , 1977a). 4] Bstados Unidos, pois tenho o direito de preferir um evento a ou- tro sem preteri-los, pois cles sio, em principio, apenas diferentes. claro que ambas as AssociagGes pertencem a academias distin- tas,” que se situam em sociedades distintas, seguindo-lhes as regras basicas do convivio social. Tais diferencas ficavam claras quando observadas nas atitudes de brasilciros e nativos nas reuni- des da AAA, e também na Universidade onde eu estava. A forma preferencial de representar e atualizar a interagio social entre os americanos objeto deste estudo, tanto nas relagdes for- mais como informais, era a forma dual (ou diddica), aquela em que dois individuos se defrontam e se apresentam (so introduce). Desta mancira de conceber as relagGes sociais decorre uma série de regras para a interagio social, seja em lugares piblicos (con- vengoes politicas, rua, bares, restaurantes) ou privados (festas, seminarios, reuniGes ¢ conversas informais, beer hours ou open houses). A primeira surpresa quanto a regras € que diferem as concepgées de publico e privado das IS proprias concep- goes. O “ptiblico” para nés esta associado a uma interaciio social indiscriminada: se 6 ptiblico, é ou do Estado — da “vitiva” — ou “de todos”; se € de todos, é “geral”, nao é de ninguém em particu- lar e, por isso, pode ser apropriado particularizadamente por qualquer um... E 0 lugar da auséncia da regra de aplicacio uni- versal. Jé nos Estados Unidos, public é algo coletivo, cuja apropriagao se faz através de regras locais universais, porque se aplicam a todos os que constituem aquela coletividade especifi- ca. Assim, é 0 reino do controle ¢ da disciplina. Em especial quando reunidos, os individuos nado devem abdicar de suas individualidades em favor de uma identidade comum, grupal.”! Nessa comunidade académica 0 “grupo” é algo que sé * Nos Estados Unidos meus colegas achavam que nao existia algo como a “Academia”, sendo sua referéncia a “Academie Frangaise” representada como rigida e exageradamente estratificada. 2! A apropriagdo particular do dominio ptiblico esta mesmo oficialmente incorporada a-nossa tradig&o politica, expressando-se no famoso conselho de D. Joao VI a seu filho Pedro, para que tomasse a coroa antes que algum aventureiro dela se apossasse. O ptiblico é para nés, claramente, a auséncia de regras, terra de ninguém em que todos e qualquer um pode “adonar-se”, lugar por exceléncia da repressao e da impunidade, do “Vocé Sabe Com Quem Esta Falando?”, por oposigaio ao “Who Do You Think You Are?” americano, que pretende estabelecer no espaco publico 0 convivio regrado das diferencas sob regras universalmente soberanas e nao sua elimina¢éo. 2 pode se estabelecer pela vontade de individuos iguais e diferentes se unirem em um contrato especffico, debaixo de regras de proce- der expressas a que todos estiio submetidos. O resultado disso é a valorizagio da “solidao disciplinada”, do autocontrole individu- al, em detrimento do “aconchego” grupal. Tal disciplina se reflete mesmo na distancia corporal que as pes- ilizam quando em conversa, muito maior do que aquela a que se est acostumado no Brasil. Seus gestos sao contidos, aponta- se com os bracos ¢ dedos apenas para seres inanimados, nao se toca a pessoa com quem se esta falando, o cumprimento de mao € utilizado apenas na primeira apresentagio, nao se beija a nao ser pessoas muito intimas.” Essa formalidade permite a contrapartida da descontragio da moda do jeans, das bermudas, calgdes € ca- misetas, utilizaveis em qualquer ambiente social, inclusive até mesmo em salas de aulas, conferéncias e festas. Como sempre se sabe 0 que esperar dos ambientes ¢ de seus freqiientadores, tal descontragio nado ameaga. Em qualquer lugar € necessario que cada um se apresente, indivi- dualmente, a cada um dos presentes. Nao ocorrem aquelas apresentagdes gerais do tipo “oi, pessoal”, tio comuns entre nds. Nao ha “rodas de papo”, onde todos falam ao mesmo tempo. Nao se senta na mesa de pessoas que nao nos convidaram formalmen- te, mesmo que estejam sozinhas ou acompanhadas de conhecidos comuns. Quando em multidées, como em uma formatura ao ar livre de que participei, ou na Convengao do Partido Democrata, em Boston, a que assisti, ou na Assembléia Geral da AAA, as 2 Como diz Hall: “Na América Latina a distancia de interagao 6 muito menor do que aquela dos Estados Unidos. Na verdade as pessoas nao podem falar a vontade umas com as outras a nao ser que estejam muito proximas, a uma distancia que evoca sentimentos sexuais ou hostis nos norte-americanos. O resultado é que, quando eles chegam perto, nés recuamos. A conseqliéncia que eles pensam que somos distantes ou frios, reticentes e inamistosos. Nos, de outro lado, estamos sempre acusando-os de respirar em nossas nucas, apertar-nos e langar perdigotos em nossas faces. Os americanos que passaram algum tempo na América Latina sem aprender estas caracteristicas espaciais fazem outras adaptag6es, como utilizar suas escrivaninhas como barricadas, usando cadeiras e mesas de maquinas de escrever para manter os latino-americanos naquela que é para nds uma distancia confortavel. Q resultado é que o latino-americano pode mesmo passar por cima dos obstaculos até atingir uma distancia na qual ele possa falar confortavelmente” (HALL, 1959, p. 209, minha tradugao). 43 pessoas est&o juntas, mas aos pares ou trios, jamais numa relagao difusa. Cada um vibra e se estusiasma por si, de um certo modo, € nao se pressupGe que seja pela mesma razio de seu vizinho. Quando se conversa com uma pessoa, nao se observam outras, ou se desvia 0 olhar para outros pontos que nao os imediatamente disponiveis. Isso é valido mesmo para ambientes abertos, como praias, por exemplo. A atitude contraria, regra no Brasil, cons- trange aquele com quem se fala e aquele para quem se olha. Nao se interrompe uma pessoa quando esta falando, mesmo que seja uma pessoa intima e se esteja sozinho com ela. Ha que deixa- la terminar de falar ¢ entao fazer nossa intervengio. Por isso mesmo as pessoas nao devem falar demais, devem disciplinar ¢ limitar seu tempo, para nao tirar 0 tempo dos outros: o tempo da fala & um “bem limitado”, enquanto coisa piiblica a ser utilizada por diversos individuos por igual. Tal procedimento contrasta com os habitos brasileiros, onde se age como se o tempo da fala fosse infinito. Nao s6 nao se para de falar na hora aprazada, como tam- bém se interrompem as pessoas que estio falando para concordar ou discordar delas. Até mesmo 0 uso social da lingua é assim: no Brasil, o discurso de um “emenda” no do outro; nos Estados Uni- dos, os discursos sao nitidamente escandidos por pausas.™ Nao € outro 0 procedimento brasileiro designado por deter 0 “mo- nop6lio da palavra” cujo sentido é ambiguo. Pode ser pejorativo, mas também pode ser elogioso, significando competéncia na con- servagao do poder. Na sociedade americana essa forma de apropriar-se do poder € sempre vista como abusiva, mesmo quando a interagao é apenas social (ou talvez, principalmente...). Tais técnicas se refletem nas situages de interagao académica. Assim, cada aluno deve dizer seu nome (mas apenas isso) na ses- sao inicial do semindrio. Isso ocorre mesmo quando os alunos *8 Hall (1959) chama essa forma caracteristica de utilizagao cultural do tempo nos Estados Unidos de “monocronismo”: os americanos fariam uma coisa de cada vez, o que inclui falar cada um a seu tempo. No Brasil até mesmo. em ocasides extremamente formais podem acontecer essas superposigdes de discursos, como no caso noticiado pela imprensa a respeito do primeiro encontro formal entre o Presidente da Reptiblica (Gen. Figueiredo) e 0 Governador do Estado do Rio de Janeiro na ocasiao (Leonel Brizola), supostamente separados por divergéncias profundas, advindas do periodo de governo militar. Dizia a noticia que seu encontro foi um pouco tumultuado porque, excitados, falavam ao mesmo tempo. 44 sao do segundo, terceiro ou quarto ano, pois sempre ha a hipétese de algum dos presentes nio o saber. O mesmo faz 0 professor, apresentando-se formalmente. Cada pessoa fala por sua vez, de forma breve, sendo a sintese a maior qualidade do orador. Nao se admitem conversas paralelas, mesmo em ambientes mais amplos, como em conferéncias. Na medida em que todos esto ali associados por suas prdprias vontades, ninguém “cobra” de ninguém nem mesmo a leitura do Ultimo livro langado pelo oricntador comum. As trajetérias aca- démicas repetem as trajetérias individuais: sao representadas como Unicas ¢ singulares. Se nao li este livro, li outro que devera ser, para mim, mai: importante. Como ja mencionci, ninguém entra no escritério de ninguém sem ser convidado, ou lhe interrompe o estudo. Isto implica atribuir hora ¢ local especificos para atividades distintas, sempre passi- veis de previsio. Tal formalidade ¢ explicitagao das regras permite mais informalidade no relacionamento de professores e alunos, por vezes. A repressao nao se faz necessdria para a manutengao da hierarquia académica. As caracteristicas anteriormente mencionadas se afastam bastan- te das praticas académicas brasilciras. Aqui ninguém se apresenta a ninguém, mesmo em situagdes formais como seminarios € con- feréncias, estando sempre implicito que todos se conhecem. As conversas paralelas se multiplicam em qualquer circunstancia, sendo inclusive fonte de reflexao critica ¢ inspiradora, originan- do os “saques geniais”, gratificantes ¢ desorganizados, que “roubam” a conferéncia do scu autor, numa surda disputa pelo brilho e talento. A “roda de papo”, em que cada um fala para todos, é uma instituig&éo e constitui-se em arte apreciada saber domina-la pelo maior tempo possivel. Todos estao permanente- mente ameacados por nao terem lido alguma coisa a respeito de algum assunto, ou de nao conhecerem um interlocutor “famoso”, 0 que nos obriga a conversar com pessoas que nao sabemos quem so, mas a quem nio podemos pedir que se identifiquem, sob pena de ofendé-las e de expor nossa ignorancia. Uma conversa s, com a porta trancada e a “luz verme- vezes, nem mesmo assim... privada s6 é possivel a s Iha” acesa. E. A esta altura é pertinente a discussio das formas de disponibili- dade praticadas nas duas academias. Nos Estados Unidos, em especial na Costa Leste, a disponibilidade das pessoas — e de seu 45 tempo, portanto — esta rigidamente cronometrada em fungio de uma regra impessoal, definida, de antemao estabelecida e que delimita hora, duracdo, lugar ¢ participantes de qualquer evento social, politico ou académico. Todos estio a cla submetidos, por igual, mesmo que diferentemente dispostos na cstrutura perma- nente (professores/alunos) ou eventual (conferencistas tentes) dos eventos. Assim, ninguém é “dono” do tempo de ninguém, a nao scr © pr6prio individuo que em tltima andlise decide como utiliz-lo. Como se faz uma coisa de cada vez, 0 principio do monocronismo aponta para uma temporalidade ordenada em su- cessio. No Brasil, a disponibilidade, seja de assistir a uma aula, ir a uma festa, marcar um encontro, comparecer a uma discussio politica, implica abdicar do sew tempo, cedendo-o a outrem que dele se apodera, marcando assim a necessaria ¢ indispensdvel ordem hi- erdrquica com que concebemos os eventos sociais. A disponibilidade se dé em relagao a pessoas e acontecimentos, implicando 0 arbitrio do que dispde ¢ a perda de controle do que esta disponivel ou “em disponibilidade” (como certos funciona- tios ptiblicos). Por i ¢ pode sair dos lugares antes que acabem as discussdes — que, alias, nao “acabam” nunca, pois sem- pre ha alguém insatisfeito com o tempo concedido a qualquer tema. Assembléias de Associagées Docentes, reunides de Depar- tamento, aulas, conferéncias, estabelecem tempos préprios com regras implicitas, sujeitas a interpretagdes diferenciadas. Desta mancira, cada participante tem sempre a escusa de que nao ficou até o fim, para justificar sua ignorancia ¢/ou derrota. Quanto aos que ficam, estio de imediato promovidos a “donos” do evento, intérpretes fiéis do que, “afinal”, se decidiu. Os , assim, po- dem apresentar versées miltiplas e contraditérias, e no entanto todas legitimas, podendo ter varios “donos” ao mesmo tempo. A. auséncia de uma regra literal e explicita que subordine a todos, ao mesmo tempo, impede a negociagio entre individuos em princi- pio diferentes mas de iguais direitos e promove 0 compromisso entre pessoas supostamente iguais mas com posigGes diversas. No primeiro caso, a igualdade esta fundada na pressuposigao da diferenga; no segundo, na presungio da homogeneidade. As desi- gualdades estruturais, nos dois casos, sao tratadas de maneira diversa, com diverso resultado. Reflexo das concepg6: mia americana é 0 fato de que as ndividualistas e iguali drias na acade- carreiras” dos scholars sao 46 representadas como individuais ¢ nao como institucionais. Elas se organizam de modo que o professor ascende ao-mesmo tempo em que muda de instituigao, tendo seu desempenho julgado pela sua obra escrita e por sua capacidade de se adaptar a ambientes distintos. Nesse caso a publicizagio ampla de seu trabalho é con- digdo fundamental para a consecugao de posigdes cada vez melhores. Isto contrasta com as carreiras dos professores ¢ pes- quisadores brasileiros, onde as promogoes & reconhecimento devem ocorrer dentro de suas préprias instituigées, significando a transferéncia quase sempre um desprestigio. Muitos sao, mes- mo, graduados da prépria instituigao. Isto é bastante raro nos Estados Unidos, onde se da especial relevo a exposigao a varios ambientes, teorias ¢ instituigdes como indicadores seguros de s6lida formagio académica ¢ social. A propria ideologia do campus supe um regime de internato com © conseqiiente deslocamento do aluno para fora da esfera de in- fluéncia de sua familia, grupo de vizinhanga e amizades. E comum também os alunos cursarem graduacdo ¢ pés-graduagio em insti- tuicdes e cidades distintas, concebidas como fruto de sua escolha pessoal ¢ nao como dados do ambiente geografico e social. Du- rante a graduagio em especial, instituem os colegas lagos de substancia que os acompanharao por toda a vida. Serao sempre Harvard men, por exemplo, ¢ chamarao sua Universidade deAlma Mater, reunindo-se periodicamente a sua turma, designada pelo ano de formatura e nao pelo do inicio do curso, como fazemos muitas vezes no Brasil, principalmente depois da implantagdo do tema de créditos. Os professores nao sao selecionados por concurso piblico — pro- cedimento que jamais consegui explicar totalmente a meus colegas americanos que apenas conhecem mecanismo semelhante para ingresso nocivil service, que traduzimos por “servico piblico”—, mas por searchs, processo de buscas ¢ escolhas. Procura-se um professor como se procura um companheiro de apartamento para morar (roomate), tentando explicitar ao maximo quais as condi- goes de trabalho e quais os atributos que 0 candidato ideal devera ter, com o objetivo de adequar interesses que se pressupdem, em principio, divergentes. E um pouco como se cada individuo tives- se para si “reservada” uma posigao ideal, bastando acha-la, o mesmo sc dando com os Departamentos c com os individuos. As diferengas (especialidade, Area geogratica de interesse académi- co, etc.) c nao as semelhancas (pds-graduagao, trabalhos 47 publicados, interesses e conhecimentos teéricos de ordem geral ctc.) € que sao teoricamente responsdveis pela escolha deste ou daquele candidato. Aqui ressalta-se 0 contraste entre as varias concepgdes de “piibli- co” novamente. Li 0 dominio do ptblico é 0 dominio da explicitagao das diferengas, debaixo de regras que a todos sub- metem; aqui, 0 culto da semelhanga ¢ da homogencidade, que tornam, em tese, desnecessaria a explicitagao de regras. Todos os candidatos sao iguais nao por terem direito a diferenga, mas por- que ocupam a mesma posigao na hicraquia académica. A vaga é uma categoria que explicita este vazio, onde qualquer “aventurei- ro” pode-se estabelecer. As preferéncias e privilégios, que certamente existem, tém que ceder a uma suposta impessoalidade, que apenas os torna implicitos, criando situagdes de constrangi- mento para aqueles que participam dos concursos. Porque se eu nao for aprovado, afinal, isto nao significa apenas que no sou adequado aquela posigdo (position). Quer aqui dizer que deixei de ocupar um espago vago, indiferenciado, certamente por in- competéncia genérica, que me coloca abaixo dos demais candidatos. La 0 processo supde que professor e Departamento mantenham suas individualidades intactas; aqui, supde-se que ou 0 professor se amolda a identidade do grupo departamental, ou a transforma pelo contégio com a sua propria, moldando o Depar- tamento 4 sua imagem e semelhanga. Processo semelhante ocorre quando os alunos se candidatam (to apply) para as diferentes p6s-graduacdes. Os americanos concor- rem a muitas ¢, se escolhidos, recebem uma carta da Universidade onde se diz mais ou menos: nds o escolhemos ¢ gostarfamos que vocé nos escolhesse. Imagine-se aqui um candidato fazendo pro- va, publicamente, para varios mestrados, ao mesmo tempo! Sempre se diré que os melhores o reprovaram ¢ os piores 0 apro- varam, estabelecendo-se uma hierarquia onde ha apenas diferenga. Mais, a diferenga é percebida como injusta ¢ resultado de abuso de poder, nao como fruto de posigées diferenciadas.”* * Exemplo flagrante disto 6 a dificuldade de se pensar em um projeto consensual para a chamada carreira do magistério superior no Brasil. Uma das medidas tomadas nas Universidades Federais igualou todos os professores, transformando-os, por decreto, em assistentes. Dentro de poucos anos tornaram-se todos adjuntos, sem possibilidade de promogdes funcionais ou diferenciagées salariais que atendam a suas diferengas de qualificagaio e capacidade profissionais. Estas tém que permanecer implicitas, acabando sempre por resultar em privilégios, obtidos sempre com boas justificativas. 48 As diversas formas de conceber os dominios do publico ¢ do pri- vado sio também fundamentais para instituir a forma privilegiada de producio, repartigao, consumo & reprodugao intelectuais. As- sim é que a publicizagao pela escrita, privilegiada por uma sociedade onde as regras literais e explicitas devem presidir esta esfera da vida social, opomos a oralidade da interpretagao parti- cularizada, autorizada pela performance scdutora das aula: brilhantes, a serem perenemente renovadas para afirmar a propri- edade dos respectivos “territérios de caga”.” Certamente a escolha da oralidade como forma privilegiada da publicizagio da produgao intelectual em nossa academia esta re- lacionada a isto. O alcance da oralidade € mais limitado, 0 audit6rio mais seleto, privado e controlavel. Depois, a transmissao pela oralidade no deixa margem s diividas de que o saber tem dono, e de que é necessario ouvi-lo para aprender. Daf 0 habito de “as- sistir aulas”, que sao aqui “indicadas”, como se faz com a bibliografia nos Estados Unidos. La a assisténcia a aulas e confe- réncias tem motivacées inteiramente diversas: faz-se isso para rotular mais facilmente um.autor e scus “pontos” fundamentais, sem ter que percorrer sua obra. Dai o constante convite a profes- sores estrangeiros para 1é deixarem sua “etnografia”.* Havia uma colega minha, pessoa muito competente ¢ interessa- da, a quem nunca consegui convencer a ler um livro de certo autor porque ela ja havia assistido a uma de suas conferéncias. Por ou- tro lado, é habito brasileiro as pessoas se identificarem como tendo feito esse ou aquele curso com certo professor, como se isso OS unisse cm comunhio de idéias e interpretagdes comuns. Alias, na ® A fugacidade das posigdes sociais parece apontar para a liminaridade (TURNER, 1974), caracteristica da sociedade brasileira, onde nenhuma posigao é definitiva. Neste sentido, vejam-se as declaragdes do jogador Zico 20 Jornal do Brasil, quando de sua transferéncia para a Europa. Afirmou ento que no Brasil o jogador tem que ser “le&o” todos os dias, tem que ser craque em todos os jogos, enquanto que, na Europa, nao - as posigdes sao muito mais asseguradas. 25 forma de escrever tais aulas e conferéncias segue um certo padrao, constituindo-as em texto preparatorio para publicago, o que costuma ocorrer. Sobre este estilo, discursivo no inicio, abreviado e segmentado no final, vejam- se, entre outras, as consideragdes do editor sobre a publicagaio de How to do Things With Words (AUSTIN, 1962). Pessoaimente, pude observar nos. rascunhos de meus professores 0 mesmo padrao de elaboracao. Camille Paglia faz polémica critica sobre tais habitos (PAGLIA, 1993). Para uma discussao do papel da oralidade na academia brasileira ver dissertagaio de mestrado de Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, a ser publicada nesta colegdo. 49 medida em que se trate de professores Agrafos, nao ha dtivida de que esse grupo passa a deter um conhecimento exclusivo, a que mais ninguém tera acesso. Mais uma vez se coloca a questao do conhecimento como um bem limitado, que nao deve ser desper- digado ou distribuido igualmente na sociedade, sob pena de “faltar” para alguém... Valoriza-se aqui, positivamente, a origem ¢ distri- buicdo particularizada do conhecimento, para ter eficdcia em eventos ptiblicos ¢ até mesmo judiciérios (KANT DE LIMA, 1992b), desde a “dica” até a “informacao de cocheira”, que nossa elite intelectual costumava obter nos tiltimos langamentos das editoras estrangeiras, cujos produtos até ha bem pouco tempo eram de acesso limitado, mesmo aos que podiam ler em outros idio- mas. J4 nos Estados Unidos, 0 conhecimento sé pode produzir efeitos em ptblico quando é acessado universalmente, sendo a inside information penalizada quando descoberta, como nos ne- gocios efetuados em pregio da bolsa de valores A relagao entre a oralidade ¢ a privacidade e exclusividade do conhecimento esta também presente na tradicio dos professores “repetidores”, categoria recentemente abolida de nc a academia, mas que tive oportunidade de observar desempenhando, embora oficiosamente, sua fungao na Faculdade de Direito. Bu mesmo, quando monitor, utilizava a técnica de ouvir aulas de meu orientador para reproduzi-las mais tarde. i Para tal fato parece também apontar a diversa acepcio da catego- ria “discussio” nos meios académicos americanos e brasileiros. Em portugués, discutir é desentender-se, inclusive em termos i ) necessariamente sobre um tema; em inglés, to ignifica esclarecer algum tema especifico, é diferente do to debate, que supde pontos de vista divergentes. Dai, por outro lado, © carter repressor da expressao em publico e a “timidez” ou “vergonha” que assola nossos auditérios, bem como 0 estilo tao brasileiro de nao se perguntar nada, mas efetuar-se declara- goes de principios que nem sempre tém direta ligagdo com 0 tema objeto da aula ou conferéncia. E como se 0 conhecimento esti- vesse ordenado em hierarquia absoluta ¢ diante dele cu sé tivesse duas atitudes: concordar com tudo ou discordar de tudo, subme- tcr-me ou dominar. Os efeitos repressivos que tal concepgao tem 50 0 faceis de ima= na producio intelectual e na expr ginar...°7 io publica Estes processos orais de validagio do conhecimento assemelham- se ao estilo escolastico jesuita, que consistia ern opor teses diversas, em debates onde apenas uma sai vencedora. Opée-se as formas: de construgdo de conhecimento por consenso, em que os fatos (evidences) sao de antem&o acordados € no qual se procura vali- dar o conhecimento pela concordancia de todos os envolvidos, inclusive aqueles que discordam.” Quanto 4 expressio escrita, j4 me referi 4 valorizagio do estilo literdrio presente em nossa socializagdo académica. A expresso escrita deve seduzir, “empolgar”, como sabe qualquer bom ora- dor. Isto contrasta com a tentativa de se atingir uma espécie de neutralidade pelo despojamento e padronizagio da forma, pre- sentes tanto nos discursos falados quanto nos escritos americanos (PAGLIA, 1993) . A nao-explicitagio, aqui, de padrdes académi- cos de redagdo (cu mesmo nunca deles me dei conta quando de minha redagao de mestrado, por exemplo) implica a necessidade de percorrer 4 exaustao todo 0 texto ad infinitum, sempre arris- cando a possibilidade de se ter deixado de lado algum aspecto 2 © professor Marco Antonio da Silva Mello fez-me referéncia a comentario de Sol Tax sobre sua experiéncia didatica na Colémbia, onde os alunos the perguntavam sobre literalmente tudo, o que parece contradizer minhas observacgées. Acredito, no entanto, que seja decisivo para esse comportamento 0 fato de que o referido professor era um estrangeiro, fora, portanto, da hierarquia local, acrescendo-se a isto a provisoriedade de sua permanéncia. Minha experiéncia pessoal é a de que, a nao ser que os alunos. sejam seus amigos, ou seja, desde que eles nao estejam perguntando ao “professor”, a capacidade de dialogar fica sacrificada pelo pavor de errar ou de demonstrar ignorancia no assunto, 0 que, de modo paradoxal, 6 exatamente o que deles se espera — ignorancia de assuntos sobre os quais temos maior dominio, 0 que nao nos faz nem oniscientes nem onipotentes. Sol Tax também informa que seus alunos americanos nao costumavam perguntar. Tal nao foi minha experiéncia. HA que se notar, porém, que ha ocasides para perguntar (seminars) ¢ outras mais formais (lectures), quando as perguntas escasseiam, talvez pela propria situagdo de “conferéncia”. Nossos julgamentos pelo Tribunal do Juri refletem bem 0 uso que 0s advogados fazem dessas técnicas escoldsticas, opondo-se radicalmente as técnicas judicidrias das arbitragens por jurados, nos Estados Unidos (KANT DE LIMA, 1995). E também relevante o uso dos “argumentos de autoridade”, no Brasil, por oposigéo & prevaléncia da “autoridade dos argumentos” na argumentagao cotidiana da sociedade americana. 28 Bil crucial que inverterd totalmente nossa interpretagio e que nosso colega, mais atento, nao deixar escapar, dando-nos um “tom- bo”, uma “rasteira”.”” Cada leitura ¢, portanto, uma exegese, uma tentativa de decifrar 0 autor, penctrar em seu pensamento para dele apropriar-se e usd- lo para coisas criativas e inesperadas, de preferéncia imediatamente supcradas por nds mesmos, j4 que o tempo da oralidade é fugaz e o conhecimento se torna velho com velocidade muito maior, mes- moO porque Os auditérios s4o muito mais limitados.” O objetivo ideal com os textos é, pois, confundir-se com o autor, fundir-se a ele, reproduzi-lo. De preferéncia conhecé-lo em pessoa, para com mais autoridade afirmar sua versio como verdadcira, sua repro- dug&éo como a mais fiel. Atitude impensével na academia americana, onde as intengdes do autor nado contam absolutamente diante das versdes consagradas, cuja autoridade se assenta na su- posta literalidade. La, 0 controle do conhecimento e de sua reprodugao €, pois, exercido pelo auditério, pelo ptiblico leitor. Se fui mal interpretado, nao sio meus ouvintes que sao burros, mas cu € que me expressei mal. 9 not6rias as conseqiiéncias rclagao com a escrita em nosso meio académico. Escrever € expor o fntimo a multidao ané- nima, perder por completo a privacidade. O texto, a fala, é algo a ser conservado em privacidade, compartilhado apenas por aque- les que nos sio caros. Mesmo quando se escreve, nao se deve dizer tudo, explicitar completamente, porque sempre se corre 0 risco de ser possuido pelo espirito alheio. Sendo o conhecimento indestacével de seu produtor, toda a critica é pessoal; indecomponivel como nossa visao holistica da identidade, a criti- ca s6 pode ser globalizante, direta a nossos “marcos teéricos”. Nada mais € necessario para que inventemos interminaveis teses de mestrado, grau que nenhum valor ou prestigio desfruta em termos internacionais ¢ a que damos extensao ¢ importincia injustificadas. Nunca pude explicar convenientemente a meus colegas americanos como é que depois de ter “trabalhado” quatro anos em um programa de p6s-graduagao de nivel internacional, ter realizado uma pesquisa individual e ter escrito uma tese (nes- % “A recente moda de manuais de redacao editados por empresas jornalisticas parece ter 0 objetivo de padronizar nossa forma escrita, para tornar-nos mais “modernos” (PAGLIA, 1993). A propésito, refiro comentario de um amigo. Ao me pedir um texto para publicagéo, entreguei-Ihe um ja lido por ele mas ainda inédito. Perguntou-me se nao tinha outro, porque aquele ele ja conheci 52 0 se caso cufemisticamente denominada de dissertagio), ainda es- tava “trabalhando” para obter um grau de doutor. Ou seja, o dificil era explicar por que tanto investimento em um grau intermedid- rio, distraindo-nos do principal ¢ definitivo amadurecimento académico, que nos constitui em definitivo como sujeitos e pro- dutores legitimados de conhecimento, com direitos iguais na comunidade a que pertencemos. Nao vejo outra solugao senao apelar para nossas tradigdes mediterrancas e catélicas, onde a ten- déncia para as sucessivas ¢ interminaveis gradag6es nao dispensa o instituto da confissao para revelar o verdadeiro sentido das agées, nem a hicrarquia ¢ a patronagem para manter a ordem social. Alias, uma visita a Coimbra contirmou estas origens, pois depois do doutorado ¢ da titularidade ha um outro ritual, de “aposigaéo de insignias”, que se destaca das defesas de tese ¢ concursos propri- amente ditos, retardando a cidadania plena para os graduados em, as vezes, cinco anos! Aqui no Brasil, também grassa uma tendén- cia para se diferenciarem e atribuirem distintas competéncias, hierarquicamente dispostas, a “recém’”-doutores e doutores com mais de cinco anos de doutoramento. Esta fabrica de hierarquizag6es inverte 0 modelo dos Estados Unidos, onde os doutores mais recentes sio mais valorizados, porque mais atualizados e, 4s vezes, chega ao ridiculo de transformar os esta- gios de especializagao de pés-doutorado em titulos de pés-doutor, registrados orgulhosamente cm curriculos e contemplados em formularios oficiais... 5a) 5 DE CAOS E ESTRELAS Para concluir, devo reiterar 0 fato de que esse é um relato de mi- nhas experiéncias como as interpreto, dentro daquilo que julgo ser a melhor técnica antropoldgica. As pretensdes generalizantes basciam-se na especificidade e qualidade de minha experiéncia ¢ nao em eventuais quantificagdes que descubram 0 que de comum ela possui com outras experiéncias. O texto é propositadamente polémico e persegue o desafio de uma Antropologia nao-domi- nada culturalmente, que esté sempre posto para nos, quer 0 queiramos quer nao. Acredito que 0 primciro passo para essa cons- trugio é a accitagao de que a especificidade do saber antropolégico, entendida como critica permanente de nossas categorias de andli- se organizadas em nossa produgio intelectual, faz-se indissociada ea partir de nossas préprias experiéncias culturais, emocionais e intelectuais, sempre presentés em nossa tradicdo de estudos com- parativos. Essa perspectiva, somente possivel quando se exercita a tolerancia com a diferenga, aprendida por reconhecé-la inevita- velmente em nds mesmos, devera ser nosso guia por esses, sem divida, arduos caminhos. A simples troca de teorias “boas” por “mas”, “nao-criticas” por “criticas”, “nacionalistas” por “impgerialistas”, “liberais” por “con- servadoras” nao enfrenta o cerne do problema. A possibilidade de uma interpretagao brasileira do Brasil esta diretamente relaci- onada a nosso compromisso com o poder desorganizatério e andrquico do pensamento e com a necessiaria liberdade absoluta de sua expressao ptiblica, seja na forma oral, seja na escrita, aca- démica, literaria ou vulgar. Esta da mesma forma na capacidade que tivermos de convencer nossos interlocutores, tanto aqueles que nos dominam quanto aqueles por nés dominados, de que é fundamental a percepgao das diferentes formas de controle da produgio intelectual a que estamos todos submetidos, embora de maneiras desiguais. Este € um paper académico, vazado no estilo formal que critica, Esse esforco € realizado no tnico intuito de produzir conseqiién- cias académicas, locus apropriado, a meu ver, para essa discussdo. Sp) Uma antropologia que pretenda descolonizar-se ha que voltar seus olhos para outras sociedades que nao 0 Brasil, num esforgo deli- berado de libertacao e criagio de novos conccitos ¢ interpretagdes de nossa propria sociedade, na melhor tradigdo antropoldgica. Urge voltar nossos olhos para a Europa ¢ para os Estados Unidos, en- quanto campo privilegiado para o entendimento das raizes de nossa dominacao cultural. Ha também que pensar comparativamente as sociedades do Terceiro Mundo, em especial nossos vizinhos lati- no-americanos, cujas respectivas diferengas ¢ semelhangas deverao agucar e transformar nossa compreensao sociolégica dos outros e, atinal, de nds mesmos. A explicitacao das relagGes entre a forma ¢ 0 contetido de nossa producao intelectual se faz necessdria. As duas formas aqui ana- lisadas, cujos controles residem respectiva mas nao exclusivamente na disciplina ¢ na repressao, convivem em nossa academia. Sua contrastagio com outras eventuais formas de pro- ducio académica preestabelecidas ¢ consagradas sera indispensdvel para iluminar e corrigir aspectos deficientes deste trabalho, obviamente (c ainda bem!) limitado. A discussao deve- rd ter por objetivo a explicitagio do modelo brasileiro de produgao, repartigéo, consumo e reprodugao intelectual, sem justificd-lo por enigmaticas influéncias hegemGnicas, mas ancorando-o a nossa cultura e sociedade, a sua implicitude e imprevisibilidade institucionais. O caminho para uma produgio intelectual que seja sempre critica de si mesma passa pela identificagio desse modelo para agilizar sua capacidade criadora e original. Ha que utilizar ¢ com fecundidade nossas formas de expressao literdrias capazes de descobertas bem comportadas; nossa oralidade e prolixidade; nossa impontualidade e falta de objetividade, sem reificd-las mas sem reprimi-las, percebendo-as pelo que sdo en- quanto expressao de nossa identidade e reflexo de choques com outras identidades. Ha que também conviver e exercitar-se revolucionariamente nessas caracteristicas individualistas e dis- ciplinares, fundadas no rigido controle da produgao individual e na suposta liberdade de questionamento ilimitado dentro da for- ma académica preestabelecida, exigente de um grande caos interior para parir estrelas bailarinas Nossa via pode ser a uniao desse caos interior ao grande ¢ perma- nente caos exterior que nos desafia o intelecto e a emogio, para 56 implodir os rigidos canones da forma académica, seja ela qual for, produzindo um conhecimento inédito e politicamente eficaz na tao desejada transformacio de nossa realidade social e cultu- ral, afirmando nossa identidade tinica ¢ contrastante, que nos faz indios e antropdlogos, scholars ¢ informantes, antropdlogos genas ou, definitivamente, nds mesmos, ANTROPOLOGOS. 37” Sobre as possibilidades anarquicas da literatura, ver especialmente Barthes (1980), bem como seu posfacio. on REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS AUSTIN, J. L. How to do things with words. Oxford : Oxford University Press, 1982. BARTHES, Roland. Aula. S40 Paulo : Cultrix, 1980. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbélicas. 2. ed. Sio Paulo : Perspectiva, 1987. __. Problemas do estruturalismo, Rio de Janeiro : Zahar, 1968. p. 105-146: Campo intelectual ¢ projeto criador. DA MATTA, Roberto. Canaviais, malandros ¢ herdis : para uma Sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro : Zahar, 1979. p. 139-193: Vocé sabe com quem esta falando? DOUGLAS, Mary. Implicit meanings. London : Routledge and Kegan Paul, 1975. p. 185-192: Louis Dumont’s structural analysis. FOUCAULT, Michel. A verdade e¢ as formas juridicas. Rio de Janciro : PUC/RJ, 1974. .Vigiar e punir. Petrdpolis : Vozes, 1977. GARRETSON, Lucy R. American culture : an anthropological perspective. Dubuque: C. Brown Company Publishers, 1976. GEERTZ, Clifford. A interpretagdo das culturas. Rio de Janciro + Zahar, 1978. p. 13-44: Uma descrig&o densa : por uma teoria interpretativa da cultura. GODELIER, Maurice. Racionalidade e irracionalidade na eco- nomia. Rio de Janciro : Tempo Brasileiro, [s.d.]. V. 3. HALL, Edward T. Beyond culture. New York : Doubleday, 1977. .A dimensdo oculta. Rio de Janeiro : E Alves, 1977. . The silent language. New York : Doubleday, 1959. KANT DE LIMA, Roberto. The Anthropology of academy : when we are the indians. In: RIPP, Arie, LAYNE, Linda, HESS, 59 David (Ed.). Knowledge and society : the Anthropology of Science and Technology Greenwich, London : Jai Press Inc., 1992a. v. 9, p. 191-222. . Cultura do desperdicio ou politica de opuléncia? In: EINGENHEER, Emilio (Org.). Raizes do desperdicio. Rio de Janeiro : ISER, 1993. p. 83-94. . A policia da cidade do Rio de Janeiro : seus dile- mas e paradoxos. 2. ed. rev. Rio de Janeiro : Forense, 1995. —_________. Tradic¢ao inquisitorial no Brasil, da Coldnia & Re- publica : da devassa ao inquérito policial. Religido e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1-2, p. 94-113, 1992b. LAWRENCE, Mary S. Writing as a thinking process. Ann Arbor : The University of Michigan Press, 1972. LUKES, Steven. Emile Durkheim : his lite and work : a historical and critical study. New York: Penguim Books, 1973. PAGLIA, Camille. Sexo, arte e cultura americana. Sao Paulo : Companhia das Letras, 1993. SAHLINS, Marshall. Cultura ¢ razdo pratica. Rio de Janeiro : Zahar, 1976. TURNER, Victor W. O processo ritual. Petrdpolis : Vozes, 1974. WALZER, Michael. Das obrigagées politicas. Rio de Janeiro : Zahar, 1997. p. 197-205: Um dia na vida de um cidadao soci- alista. 60 POSFACIO Nao pude resistir ao impulso de aproveitar essa segunda edigéo para fazer algumas reflexGes sobre a luz que o contetido deste livro pode langar sobre areas ainda opacas de nossa vida acadé- mica. A primeira diz respeito as dificuldades encontradas para a sua reedigao, j4 referidas no prefacio, caracteristicas das relagdes muito especificas que nosso campo editorial tem com a circula- cio de informacgdes, em especial a valorizagéo positiva do conhecimento apropriado particularizadamente, cuja validade acaba sendo medida pela énfase na dificuldade de sua obtengao, que precisa ser criada e reproduzida estrategicamente. Por isso mesmo, talvez, a dificuldade de algum editor publicar pela segunda vez algo que ja tenha sido editado por ele —¢, ainda mais, por outro —, 0 que tira do produto, em principio, a conotagao de descoberta original. Caracteristica que seria pré-requisito para a publicagdo académica, porque empresta ao editor responsavel pela escolha dos autores a serem consagrados um valor extra na competicao por prestigio que hierarquiza os agentes no mercado, sendo 0 livro esgotado o signo explicito de seu acerto, espécic de diletantismo autorizado pela sua fonte de renda principal, o livro didético (BOURDIEU, 1968, 1987). Ainda mais quando aqui 0 mercado se encontra alicergado, 0 mais das vezes, em relagdes pessoais e em critérios particularizados de selegao editorial, que reproduzem os critérios implicitos de hicrarquizagio social pre- 61 sentes em nossa cultura e sociedade. Provavelmente, um “efeito nao desejado” desta politica seja o estimulo da “cultura” da cépia xerocada, que circula de modo restrito ¢ particularizado, aparen- temente causando prejuizos comerciais aos editores universitarios, mas valorizando os direitos e os exemplares, naio-reeditados, pu- blicados e esgotados ha décadas. Ora, hé muito aprendi com Godelier (s.d.) que a raridade nao se confunde com a escassez. Esta é um fendmeno possibilitado pelo perfil e escala da produgao como ela se apresenta nas sociedades industriais, onde 0 consumidor individual esta impedido de apro- priar-se, itil e concomitantemente, de todas as unidades — e, mesmo, opgdes de um mesmo produto — disponiveis para aquisi- cdo, num momento dado, precisando, necessariamente, escolher entre uns e outros. Esta escolha, se satisfaz sua necessidade de utilidade, produz, ao mesmo tempo, sensagao de insatisfagao por coloca-lo em inclutavel es Z, porque a posse de uns implicou a rentincia 4 posse dos outros. Ja a raridade implica j contrario, a auséncia de opgées, pois ha menos objctos disponi- veis, em geral de carater tinico, do que potenciais possuidores. A sua posse por um representa, por definigéo, a exclusao dos ou- tros. Assim, a escassez seria prépria de mercados de acesso universal, no qual os participantes fazem suas escolhas dentro de um clenco limitado de unidades teoricamente ilimitadas e em que, como no caso dos sanduiches do MacDonald’s, nao se pode con- sumir todos os produtos oferecidos ao mesmo tempo, nem se pode inventar um que nao esteja listado no elenco afixado no cardapio. A liberdade de escolha, assim, é exercida, mas apenas no ambito das escolhas possiveis. O mercado da raridade, ao contrario, pre- vé o acesso particularizado a bens limitados (KANT DE LIMA, 1993). A constatagio da presenga desta politica de producao sistematica da raridade, que enfaticamente preside, consciente ou inconsci- entemente, nosso movimento editorial, acabou por levar-me a representar 0 Centro de Estudos Gerais de minha Universidade na Comissao Editorial da EDUFF onde, por iniciativa de todos os membros da comissao e de uma nova administracao, alteraram- se os critérios e procedimentos anteriormente vigentes, voltando-os para o estimulo a universalizagdo do acesso do pi- blico produtor ¢ leitor ao produto editorial altamente qualificado, obtido com a utilizagao dos recursos piblicos alocados a Univer- 62 sidade, aos seus programas de pds-graduagio e aos seus profes: sores/pesquisadores pelas instituigdes de fomento. Procura-se, assim, atualizar, verdadeiramente, sua vocagao de instituigao pu- blica, cujo produto deve ser avaliado, em ultima anilise, pelo mercado académico e pelas agéncias que o constituem, integran- tes da sociedade mais ampla, pois esta avaliagéo somente seré justa e democratica se produtores e consumidores interessados tiverem acesso ao mercado. Em especial, em uma cultura onde os critérios respons4veis pela legitimagdo e consagragao de autores ¢ produtos so sempre implicitos e sujeitos 4s mais diversas in- terpretagdcs sobre quem consagra o qué de quem... O trabalho esta apenas em seu inicio, mas conta com significativos frutos, como se pode ver dos textos avulsos jé editados e das colegGes da area de Letras e de Antropologia ¢ Ciéncia Politica, ja iniciadas ¢ com vasta e qualificada programagio. Finalmente, também motivado pelo contetido deste ensaio, bem como por outras etnografias de membros do projeto de pesquisa que coordeno, versando especificamente sobre praticas usuais em arquivos e bibliotecas de Universidades no Estado do Rio de Ja- neiro, interessei-me, na qualidade de coordenador do projeto (1990-1993) ¢, posteriormente, do Programa de Pés-Graduagao em Antropologia e Ciéncia Politica (1993-1997), juntamente com a direc&o, alguns colegas professores do Instituto de Ciéncias Humanas e Filosofia (ICHF) e a bibliotecdria Vera Pitanga, pela implantagao de uma politica de gerenciamento da biblioteca do ICHE Também estavamos interessados em resolver quest6es es- pecificas, relativas ao peso negativo deste item na avaliagao de nossos programas de pés-graduacio pelas instituigses de fomen- to. Durante as discussdes prévias havidas na ocasiao, tivemos oportunidade de identificar a existéncia de resisténcias cristaliza- das, ha décadas, em hostilidade aberta entre docentes, pesquisadores e alunos do ICHF e funciondrios encarregados das. bibliotecas da Universidade. Tais resisténcias nao podiam ser re- duzidas a incompatibilidades pessoais, mas, ao contrario, estavam uniformemente distribuidas entre professores, alunos e bibliote- carios, apresentando-se profundamente vinculadas a concepgdes e interpretagdes distintas do papel ¢ significado institucional das bibliotecas na circulacdo das informacées, téo oportuna e magis- tralmente retratadas por Umberto Eco em seu livro O Nome da Rosa. Neste texto, como se sabe, 0 autor opde uma cultura que procura preservar 0 piblico leitor das informagoes e pretende pro- 63 duzir a verdade através de comprovagées do que supostamente ja se sabe, de antemao, de forma particularizada, a uma outra cultu- ra, em que se procura cstimular e disciplinar a circulagéo de informag6es, tornando-as acessiveis a todos os interessados e onde se valida apenas 0 conhecimento produzido através de demons- tragdes a posteriori, deduzidas de fatos evidentes, disponiveis, universalmente, a qualquer interessado. Hoje esta implantada, com recursos dos Programas de Pés-Gra- duagio do ICHF, uma biblioteca de pés-graduagao em Antropologia, Ciéncia Politica e Histéria, situada em dependén- cias da Biblioteca Central do Campus do Gragoaté, na qual ha acesso universal para consulta e cépia no local, mas com retira- das restritas 4s necessidades da pesquisa e ensino da pés-graduagio. Nao é tudo, mas ja é um comego. Paralclamente, em conjunto com meus colegas de Colegiado do Programa de P6s-Graduagao, procuramos também adaptar e descnvolver me- canismos que democratizassem e universalizassem as oportunidades de acesso ao conhecimento ¢ ao mercado acadé- mico, atualizando-os, em especial, nos concursos de ingresso € na distribuigio de recursos em nosso Programa. Em todas estas iniciativas, sempre conduzidas com autorizagao ¢ mandato de meus colegas da Universidade -- ai incluidos alunos, funcionarios e professores —, fizemos, coletivamente, bom uso das reflex6es empreendidas neste ensaio. Quanto aos rumos tomados pela pesquisa prenunciada neste li- vro, consolidaram-se, atualmente, em projeto integrado de produtividade em pesquisa, financiado pelo CNPq e intitulado “Religiao, Direito e Sociedade em uma Perspectiva Comparada”. Além do CNPq, apoiaram 0 projeto em diversas de suas pas inclusive na realizagao de etnografia de praticas judi liciais nos Estados Unidos, a UFE, a CAPES/MEC, o USIS ea Comissio Fulbright. O trabalho, que foi sendo organizado aos poucos, contou, nos tiltimos 15 anos, com a decisiva colaboragao de dezenas de alunos de graduagao e de pos-graduagio, que em- preenderam etnografias de processos de administragao de conflitos e produgao de verdades, no campo religioso, académico ¢ judic: ario, no Brasil e nos Estados Unidos Além de diversos artigos ¢ capitulos de livros, escritos por mim ¢ pelos meus colegas de projeto, e de algumas dissertagdes de 64 mestrado em andamento sobre a problematica, contam-se entre seus produtos um livro j4 publicado com resultados parciais des- ta reflexio (KANT DE LIMA, 1995) ¢ outros dois que § encontram no prelo para publicagao nesta Colegao. Destes, um uma coletinea de alguns dos artigos de meus colegas de pesqui- sa, discutindo dados de nossas ctnografias, realizadas em organizagocs religiosas, cartorios, arquivos, hospitais e cursos universitarios de graduacao em Historia, Dircito, Medicina ¢ Ci- éncias Sociais, aos quais se retinc um texto meu sobre as relagdes entre direito, religiio e sociedade, no Brasil ¢ nos Estados Uni- dos, que dard prosseguimento as reflexGes ja contidas no presente ensaio; 0 outro é uma reflexio comparativa sobre os principios que regem a administragao de conflitos no campo juridico, no Brasil ¢ nos Estados Unidos, recolhida nos textos juridicos e nas praticas judicidrias e policiais de: paises ¢ analisados na pers- pectiva antropolégica, tendo sua primeira versao se constituido em tese aprovada no meu concurso para Professor Titular de An- tropologia da UFE, realizado em 1995. Enfim, este livro dew no que deu, como dizia uma figura que teve relevante papel na politica brasileira sobre o resultado de seu aces- so a instrugio superior formal... 65

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