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Rare a Ona ori ‘guagem da psicandlise deu forma a cultura do século xx. Neste importante livro, Jan Parker proporciona uma exploragao fascinante e acessivel dos contornos do dis- curso psicanalitico relacionado com nossa sociedade Pen eeten De maneira sistemética, Parker passa em revista as teorias psicanaliticas para revelar processos sociais, TCO RIC est ec Mareen Pers Ora RCO esn acc rias de objeto de Freud e Klein. A leitura critica feita POOR Ser ungean tC oy re Roe ian PPR Ce COCR one OSE na cultura. A tradigio lacaniana é chamada em causa Peon etc ace tr nee a as Pee eC crt enn rey incorpora no decorrer de todo o volume o trabalho Pe rare aCe Ot Cea ead en ee cana eer Cultura psicanalitica revela-se uma soberba visio Peer ee er ne ee ers Pree or Me mcar tnt eter ry ¢studantes e académicos em psicanélise, psicoterapia, Peon sr ames o oR rer ttre y (pee i ay CULTURA PSICANALITICA en eae NW ers etree rca WON ae ees i Neral, eee Tan Parker CULTURA PSICANALITICA Discurso psicanalitico na sociedade ocidental JIDEIAS & LETRAS Dios Eon ou Eran Chrorda Sen hase dos Santos Reis Marcelo Ary corsa Re: fone Gos Moni Gimares Rls fake Grol coe Cesaousc on Cac: ‘Alex is iquin Stcos “ides AM Saber Noemi Mate Kon, Sa erste apa de Laci Fontan, Tsu Cones Space, 1964 eae) Selo Kreger ‘Tino origina: Paychosnslytic Culture ~ Paychoanalytic discourse in western society Sage Publications ~ Londres, Thousand Oaks Nova Delhi, (lan Paker, 1997 TSBN 07619 56425 ISBN 0 7619 56433 (pbk) ‘Todos os dsitos em lingua portaguesa reservados & Editor dns 8 Letras, ads Internaconats de Catalogagio na Publicagio (CIP) (Ciara Brasileira do Livro, SP Brasil) tr an Cotten peat: dicuso pcamitico ma sca oie! ln Pak, ‘tig Salo Krghe~Aparei SP: ne tin, 2008 (Cleo Pendle Sedo) ‘Tilo exit: Payton cl eyeamayedacoune in western soity angst se 3 1 Pane Linguagr 2 rcnioe~ Teas ~ Picola 3. Pcasne & cote Tao See saan op .soiss ices para eatlogo sistemstce: 1. Cultura pcan: Pscologa 150.195 2, Pecanliseeeutura 150.195 IDEAS & (LETRAS Era Iie & tetas Fae, Clare Monti, 942 Cento 12570-000 Aparecid Tel (12) 3109-2000 ~ Fax (12) 3104-2026 Televendas 0600 16 00 04 vendas@dearletrascomr ‘oeideseletascombr Pera ‘Adam e Ben Beechey & Jean e Hugh Ledigo SUMARIO Preficio a edigao brasileira, 9 Introdugdo: psicanilise e discurso, 15 Por que a psicandlise existe?, 16 Como estudar fenomenos psicanaliticos?, 22 O discurso psicanalitico de Freud, 27 Condigies culturais de possibilidade, 38 Primeira Parte ‘TEORIAS DE RELAGOES DE OBJETO: SELF E SOCIEDADE, 55 1. Grupos, identidade e formas de conhecimento, 61 Freud, 9 pai eo lider, 64 Para a mae, relagdes de objeto e Bion, 75 Culture, crises e herdis, 81 Psicologia social e identidade, 83 2. Crengas religiosas, caridade e curas fraudulentas, 97 Mito, evolugao e Ilustragao, 99 Contradiscurso religioso, 107 Objetos divinos de desejo, 115 Egpiritualidade e materialidade, 129 3. Irrupgdo de guerra no espago interno e externo, 133 A guerra de Freud, 136 ‘A guerra de Klein, 145 Guerras dos mundos, 153 Guerra de ficga0 cientifica, 167 Segunda Parte TEORIAS CRITICAS: INDIVIDUALIDADE B CULTURA, 171 4, Individdalidade, Ilustragio ¢ complexo-Psi, 177 Givilizagao, 179 Descortentes, 186 8| Cultura Psicanalitcn Freud e Frankfurt, 188 ‘Mapeando o futuro das ciéncias psicanaliticas, 196 5, Autoritarismo, ideologia e masculinidade, 213 Reich: energia, 215 Habermas: sentido, 221 ‘Homem, mito ¢ subjetividade cabeluda, 227 Resisténcia e reagio, 246 6. Cultura e natureza apés a Ilustragdo, 249 Culturas de narcisismo, 253 Pos-modernidade e fragmentagao cultural, 260 Narcisismo e natureza no movimento mew age, 264 Psicandlise e pés-modernidade, 282 ‘Terceira Parte POS-TEORIAS: A SUBJETIVIDADE E O SOCIAL, 285 7. Ordens simbélicas, sujeitos e ciberespaco, 289 A lingiistica de Lacan, 292 ( sujeito de Lacan, 300 Subjetividade cyberpunk e espaco pés-moderno, 308 Lembranga virtual, 315 8. Maneiras de espelhar e imaginar a economia local, ‘ou de escapar a ela, 325 Oespelho ea matriz, 327 deologia e interpelagao, 332 Espago semiético, 338 ‘Troca e débito local, 345 9. Coisas reais, recuperacao e terapia, 359 Mentiras sinceras, 363 Discurso terapéutico moderno, 372 ‘Tecnologias discursivas pés-modernas do self, 380 Conteadigées ¢ transforsuayGes analiticas, 388 Bibliografia, 393, Indice analitico, 423 PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA Por que tanto se fala em psicandlise,e por {que tanto debate em torno dos achados e erros de Freud? Em jornais ¢ revistas, a toda hora podemos encontrar um novo artigo apresentando Freud como uma fraude, para logo entao, nas colunas de antincios ¢ znas matérias assinadas, lermos sobre traumas de infancia, repressio, negacio e valorizacao da fala dirigida a outra pessoa ¢ tematizando seus problemas. No mundo de lingua inglesa, ¢ hoje mais do que nun- cannosmundos de lingua francesa, espanhola ¢ portuguesa, milhdes de pessoas vivenciam uma cultura psicanalitica, Nem sempre foi assim. A psicandlise tinha de ser reunida para 1nés, em seus pedagos, de modo que passasse a fazer sentido como algo certo, Hé uma série de sensagdes que tomamos por supostas para que a psicandlise se nos torne verdadeira. Neste livro, em vez de tratar a psicanilise simplesmente como chave para desvendar os segredos do sujeito, exploro o modo como a psicandlise tem se constituido como parte de um sistema particular de fala que se volta para si mesma ~ de tum sistema de auto-referéncia, A teoria psicanalitica deveria ser trata- da aqui como um poderoso arcabougo porque 0 conhecimento psica- nalitico ajuda a estruturar a cultura. Mas como investigar 0 papel da psicanalise nessa cultura? No livro, adoto quatros prineipios metodo. légicos, com o intuito de captar aspectos da cultura psicanalitica na ‘medida mesma em que é retransmitida por meio do discurso. © primetro principio poe-nos atrelados @ debates ja de longa data 1no émbito do movimento psicanalitico ¢ contra o movimento psicana. Iitico, que é o de que a psicanilise deve olhar para as fontes coletivas culturais que estruturam 0 sentido que fazemos de nés mesmos ¢ 08 20| Cale Pricnattn aspects de nossas vidas que residem fora da consciéncia de si cons- ciente. A viragem a partir de uma abordagem cientifica e materialis- ta da mente, e 0 encetamento, em vez disso, dos reinos da arte e da mitologia como fundagao alternativa para a psicandlise isentam-na de qualquer pretensio de ser ciéncia, em um evidente retorno a Jung. As tentativas, por Freud, de pesquisar na antropologia e propor modelos lamarckistas sobre a aquisigao de memérias hist6ricas fizeram-se em parte conduzidas por essa ma vontade ante o misticismo junguiano. No entanto, ¢ possivel tomar 0 argumento de Jung, segundo 0 qual existe alguma forma de “inconsciente coletivo’, mas vé-lo como fonte simbélica historicamente constituida em vez de algo residindo em um. misterioso reino espiritual. Fontes coletivas entio seriam vistas nao como flutuando sob o inconsciente pessoal de cada um de nés, mas no dmbito de um reino textual “inconsciente’, Uma multiplicidade de entendimentos tacitos, de postulados reconhecidos ¢ conseqiiéncias inesperadas que dimensionam nossas vidas & medida que vamos a0 encontro de textos e praticas sociais e interagimos com eles, Hé algumas semelhancas entre essa posigdo e aquela advogada Por Volosinov, a qual, embora critica do discurso freudiano, elabo rou muitos supostos psicanaliticos em um sistema de base lingiistica Fendmenos textuais coletivos estariam entio mais préximos de um nivel transpessoal de sentido a que se refere Foulkes, escrevendo na tadicao da andlise de grupo, ou ao inconsciente como um aspecto da ‘ordem simbilica descrita por Lacan. O inconsciente ¢ entao ele pré- prio abordado, conforme Lacan argumentava que deveria ser, como “o discurso do Outro” (com o “Outro” sendo aqui o sistema simbélico ‘que mantém a cultura no lugar e determina a localizagio de cada sujet- to falante individual), Essa nogao do inconsciente também dé conta da insistente e perpétua inconsisténcia de sentido na linguagem. Permite- nos desenvolver uma abordagem de postulados ticitos, condigdes reconhecidas e conseqiiéncias inesperadas, bem como dar conta dos modos contradit6rios pelos quais estas se enleiam a estruturas de po- der entdo retransmitidas por meio dos textos. segundo principio diz respeito & contradigao intrinseca ao dis- curso e psicandlise. Ha muitos recursos psicanaliticos diferentes com vocabulérios concorrentes, de modo que € preciso reconhecet que nio Precio u hé uma interpretacdo correta, ou um correto sistema psicanalitico para oredigir de uma interpretagao. E possivel que a localizagao cultural de sistemas psicanaliticos - Lacan na Franga, Habermas na Alemanha, na Eslovénia - 0s tornem especificamente aplicdveis a suas cul turas. No entanto, quando traduzidos por sobre fronteiras geogrificas, lingtifsticas e politicas que demarcam setores da cultura Ocidental, eles como que fisgam alguma coisa em nés, Ea natureza do inconsciente (0 inconsciente produrido para nés na cultura e agora) ser cindido pelos sentidos contraditérios, e a natureza da consciéncia contemporanea 6 tolerar essas contradigées, além de suaviz4-las. A psicandlise € um empreendimento terapéutico racional, um arcabougo teérico nas cién cias humanas para a constatagdo de contradigdes. Lutamos, pois, sobre 4 tensio entre diferentes entendimentos contraditérios. Cada versio da psicandlise exerce um apelo dentro de arenas culturas especificas, € seria um erro propor uma versio como aplicavel a todas. Eha que aprender um segundo aspecto dessa contradigao intrin- seca a cultura psicanalitica, que é 0 da existéncia de muitas formas de trabalho psicanalitico simultaneamente. Diferentes individuos podem ter recurso a diferentes formas de argumento psicanalitico em diferen- tes ocasides para se compreender a si mesmos. Mesmo a resisténcia ua tentativa de repudiar certa forma de psicandlise pode ganhar vox a partir de um arcabougo discursivo que é estruturado por outras di- ferentes suposicdes psicanaliticas concorrentes. Por exemplo, alguém pode declarar nao gostar da psicandlise porque ela nao leva a sério 0 que as pessoas dizem sobre as razdes pelas quais fazemos as coisas, ‘mas ento a mesma pessoa pode empregar a idéia de que ha coisas que cia imediata. sabemos sobre nés mesmos que estdo fora da consci © terceiro principio metodoldgico implica a elaboragto de uma abordagem do que denomino “subjetividade complexa’, uma subjeti vidade em que um sentido de agéncia se faz enleado em formas cultu- tas. Is0 esta em contraste com as formas de “subjetividade monéto- na” nz pesquisa behaviorista ou na de “subjetividade descomplicad? na pesquisa humanista. Essa noco de subjetividade vislumbra 0 modo como 0 sujeito ¢ sempre “complicado” por seu enredamento em for- ‘mas culturais dominantes, pertencentes ao autoconhecimento e que nl CcaltraPianatticn permeiam a sociedade circundante, A figura da “subjetividade com- plexa” leva a sério tanto as intengbes e desejos do individuo quanto a operagio de estruturas € discursos sociais. Parte crucial dessa nocio de subjetividade, no entanto, & a de que os elementos culturais a partir dos quais um sentido distinto de individualidade ¢ forjado devem ser freqiientados. Posigées construcionistas sociais avangadas na forma- «0 do self de uma vida emocional por meio da internacionalizagio de representages partilhadas de individualidade fazem-se aqui rele vantes. E de novo a psicandlise comega a se tornar importante, ja que opera como forma de autoconhecimento na cultura ocidental e aden- tra a subjetividade para tanto mais complic4-la. Formas de cultura si0 representadas em textos, ¢ assim também na subjetividade dos que po- dem dar-Ihes algum sentido quando os Iéem, e precisamos levar a sério ‘© modo como a cultura psicanalitica é transmitida no discurso (direta ou indiretamente, deliberadamente ou nao). Os textos de fundagio da tradigao de pesquisa em “representagdes sociais’ por exemplo, dao sustentagao a0 argumento aventado aqui, ro que diz respeito a natureza de conhecimento psicol6gico compar: tilhado na cultura contemporanea. Estudos de infusio da psicandlise por meio da cultura popular na Franga, e estudos detalhados sobre a representacio social da psicanilise naquela cultura sio desenvolvidos em paralelo com o trabalho social na América na década de 1960 € na Gra-Bretanha na de 1970, esbogando a “afinidade cultural” da cul. tura contemporinea com categorias psicanaliticas, Essas abordagens ‘io pois compativeis com uma concepeao construcionista e social da transmissio cultural de conhecimento psicolégico a partir do social pata o interior do sujeito. © quarto principio metodolégico consiste em desenvolver um dispositive espectfico analitico para captar as qualidades distintas de diferentes formas de discurso e experiencia psicanaliticos socialmente embutidos. O dispositivo analitico do “complexo discursiva? dé con- ta da natureza dual do discurso psicanalitico. O termo “complexo” é ‘usado aqui de mancira bem deliberada para evocar a peculiatidale dit natureza freudiana e p6s-freudiana da subjetividade que experimenta- ‘mos ¢ reproduzimos em descrigdes de nés priprios dadas a outros na ‘maior parte do tempo, Se fosse o caso de estudarmos nocdes compor- Preficie ub tamentais ou cognitivas transmitidas pela linguagem e experimenta- das por usuérios, talvez desejdssemos falar de “repertérios discursivos” ou “formas discursivas”. Complexos discursivos apreendem e refleterm discurso psicanalitico popular que transita pela cultura, Por um lado, 08 conceitos que os textos psicanaliticos empregam sao retransmitidos pela cultura como componentes de um discurso, como objetos que so circunscritos pelas definigées em escritos académicos ¢ profissionais vigorando na midia e em conversas do dia-a-dia, Nesse sentido, o dis. curso constitui lugares para que os sujeitos venham a set, seja 0 da crianga com problemas em se separar da mae, 0 do adolescente as. solado por frustragées e ressentimento em relagao a autoridade ou 0 do adulto ja mais velho refletindo sobre uma vida e necessidades nao satisfeitas. Assim, 0 discurso psicanalitico “posiciona’ o sujeito que esté a empregar 0 discurso para se compreender a si mesmo ou suas relagbes conturbadas. Por outro lado, o discurso toca uma forma jé existente de subjetividade para os que querem escrever ¢ falar sobre si priprios € sobre outros, seja na forma de autobiografias ou de colunas de aconse- Ihamento, em entrevistas televisivas ou no diva do terapeuta. Ble ace- nna com uma teoria do self que muitas vezes 0 sujeito é convidado a elaborar para si préprio, e assim reconfigura a cada ver, algumas das ‘emogbes que Ihe estao disponiveis. A medida que o discurso evidencia alguns tipos de experiéncia para o sujeito, ele também fornece uma cexplicagdo por aspectos de experiéncia que ainda nao foram explici- tamente formulados no discurso, Existe assim uma garantia de auto- compreensio que também, simultaneamente, atrela 0 sujeito aos siste- mas de discurso que compreendem as comunidades em que cle vive. Portanto, o complexo discursivo nao existe s6 para o sujeito individual, mas também fornece 0 meio pelo qual sujeitos podem tornar-se eles proprios um para 0 outro como detentores de propriedades psicol6gi- cas, como mulheres, por exemplo, ou como homens. 4s diferentes formas de psicanslise que prevalecem na cultura contempoydnea sio assim fenémenos coletivos, ¢ esses fendmenos co- letivos sé manifestarao eles proprios para cada sujeito individual na clinica de diferentes modos idiossincraticos. O psicanalista precisa sa ber sobre as formas que a psicandlise assume na cultura, e sobre 0 que u| altura Pantin individuo traz da cultura para a clinica. Nao hé uma forma especifica de psicandlise na cultura, mas uma rede concorrente de nogbes con- tradit6rias, ¢ um trabalho clinico no ambito de um arcabougo teérico particular precisara saber algo sobre a série de nogées psicanaliticas que um individuo traré para a terapia & guisa de seus préprios quadros. te6ricos de auto-referéncia, Essa “subjetividade complexa” 0 local em que a psicanilise trabalhard (ou no), pois sem tal forma historica- ‘mente constituida de subjetividade nao haverd transferéncia, e nio faré nenhum sentido para o analisando haver algo “inconsciente” que seja outro para ele proprio, e desse modo nada para o analista interpretar & facil rechagar a terapia psicanalitica como sendo uma auto-in- dulgéncia, e muitos psicélogos despendem muitos esforgos a demons- ‘rar que Freud foi “acientifico” ou corrupto, quando na verdade a ques- tao nio é essa, A razio pela qual discussdes sobre Freud ¢ os freudianos arecem tao intermindveis e obsessivas ¢ que a psicanalise esté muito profundamente entretecida na trama de nossa cultura. Ela esti em nos- so blablablé sobre as experiéncias e idéias estranhas de outras pessoas ¢ em nosso blablabli sobre nds mesmos. Falamos psicanaliticamente quando nao percebemos que 0 fazemos, ¢ tal discurso psicanalitico nos faz ser quem somos. A globalizacao da economia é acompanhada pela globalizacio de formas da subjetividade. Sei, com base em minhas proprias conversas com colegas e amigos préximos no Brasil, que 0 mundo da lingua portuguesa jd desfruta de uma relagio mais profun- dac intensa com a psicandlise do que o mundo de lingua inglesa. Nao estou imputando a voces mais psicanilise, mas sinceramente espero que a anélise do discurso psicanalitico contida neste livro seja capaz de nos fazer compreender melhor como a psicandlise funciona em nossas diferentes culturas. INTRODUGAO: PSICANALISE E DISCURSO Onde o id era, 0 ego hd de ser. E trabalho da cultura ~ nao diferente da drenagem de Zuider Zee. Sigmund Freud (19338: 112) Novas conferéncias {ntrodutérias psicandise Depende de nés. Tudo 0 que alguns deles necessi- 1a é de uma pausa. Com um pouco de compreensao ¢ orientagdo talvez possames algo recuperar desse desperdico, William Holden (1948) In R. Maté, dit. The Dark Past, New York: Colombia Pictures A\ psicandise nem bern completa um séeu Jo de idade e parece querer remontar & pré-hist6ria da humanidade ao ‘mesmo tempo em que se estende para o mais profundo interior do self nacultura contemporanea. Para muitos, conceitos psicanaliticos e outros conceitos terapéuticos associados a psicandlise estruturam seu modo de compreender a si préprios e as relagdes sociais. Ainda assim, é preciso petguntar por que a psicanslise assentou raizes no Ocidente e para além dele, e como podemos melhor estudar esse fendmeno peculiar ¢ abran- gente. Este livro explora essas questdes mediante consideragSes de toda uuma variedade de preocupagGes culturais e de versbes da pratica psica- whe de nalitica. O argumento central que perpassa minha andlise d priticas culturais, tal como o encontraremos nos capitulos a seguir, & 0 de que 0 discurso psicanalitico pode ser encontrado em tais praticas, eas estrutara, a elas bem como a subjetividade dos que delas participam. Em | Clara Peicanaltica primeiro lugar, contudo, havemos de passar em revista alguns aspectos tedricos e metodolégicos gerais que subjazem as sendas em que essas «questdes sobre a mente moderna serao tratadas no decorrer do livro. ‘As abordagens mais convencionais do desenvolvimento da psicandli se remontam, é claro, aos escritos e portanto as influéncias e experiéncias, formadoras de vida, de Sigmund Freud. O ambiente cultural no Império Austro-Héingaro em fins do século XIX, quando Freud iniciou seus escri- ‘os, 6 muitas vezes retratado como tendo desempenhedo um papel fun- ‘damental, mas esse ambiente em geral ndo se constitui em mais do que 0 anteparo para descrig6es das inovagdes do trabalho de Freud. Os fatores «econdmicos que estruturam motivos culturais de crucial importancia para a psicandlise so ocasionalmente citados, mas a imagem predominante, ¢ deliberadamente fomentada pelo préprio Freud, éa do homem s6 utando para fazer emergir a verdade, Levando em conta tudo isso, seria de se ima- ginar que virfamos hoje, neste século XX, a ser brindados com perspicazes compreensdes de um génio singular a versar sobre persistentes problemas da condigéo humana; e seria de se imaginar que s6 agora viriamos a ter a linguagem para compreender 0 que impulsiona os individuos a amar e a trabalhar. E tempo de termos uma abordagem diferente. POR QUE A PSICANALISE EXISTE? Um exame sustentado de fendmenos psicanaliticos precisa com- preender os modos pelos quais nogées especificas de subjetividade, sensualidade e emogio tém sido construidas na cultura ocidental, 08 modos como essas nogées especificas tém sido governadas por apara- tos particulares de autoconhecimento e as formas pelas quais repre~ sentagdes ocidentais do selfe prescrigdes visando a satide psicoligica esto inseridas em redes de poder, e de poder em um contexto global. Acconstrugio do self Vale a pena enfatizar que enquanto formas ocidentais de teo- ria psicolégica, incluindo a psicandlise, freqiientemente pretendem Introdujao: Psicanalise e discurso |x7 explicar como a mente humana opera em toda e qualquer cultura desde 0 alvorecer da humanidade, “psicologias nativas” dos tempos atuais parecem ser tio variadas quanto os lugares em que habitam (HHeelas e Lock, 1981; Stigler et al., 1990). Diferentes psicologias na- tivas definem diferentes selves para pessoas que habitam, que sofrem ou que sentem alegria. O “self"é algo dificil de aprender e definir, ¢ ‘0s contornos do selfsao ambiguos ¢ mutaveis, Seus contornos muda- ram com o tempo, juntamente com os modos pelos quais as pessoas sio convidadas a elaborar uma teoria sobre o que é possuir um self (Harré, 1983), Teorias cotidianas sobre o self operam como formas de “senso comum’. Elas s4o construfdas, mas tém de ser mantidas ¢ verificadas como teorias, de modo que possam ser sentidas como naturais, boas e verdadeiras. Muitos cristaos, por exemplo, desejam que sua repulsa & homossexualidade seja sacramentada pela Igreja, e desse modo acreditam que a uniao pelos lacos sagrados do matriménio venha a refletir uma ordem natural de companheirismo. Aos que estio sozinhos s6 resta “completarem-se” a si préprios encontrando um outro que seja também necessariamente do outro sexo, Mas em primeiro lugar, 0 que € 0 “outro” sexo"? Laqueur (1990) descreve ‘0 medo como 0 modelo “um sexo/uma sé carne” de homem e mulher foi cindido e transformado ao final do século XVIT em um modelo “de dois sexos” de género que pavimentou e fez uma rees- crita dos caminhos do mundo ocidental. A partir das imagens da Renascenga, de um Cristo com o peito 4 mostra ¢ ilustragées des- secativas revelando os érgios genitais masculinos, enquanto os da mulher encontravam-se voltados para dentro ~ representagbes de uma semelhanca e simetria essencial entre os géneros ~ passa- ‘mos a uma condigao em que definimos nosso género por nossos genitais, pedagos de carne que agora nos parecem tao diferentes. E eniao, em segundo lugar, essa fixagio de diferengas no corpo & sedimentada em rituais de vinculagio religiosa que esquecem tum passado cm quc as Igrcjas catélica ¢ ortodoxa um dia ratifi- caram 0s géneros sexuais e as relagdes entre os sexos. Ambas as Igrejas tinham rituais para reconhecer ¢ abengoar o que viriamos a chamar de “casamento gay” com relatos de homens e mulheres x8| Caltura Psicanalitica tomando parte em tais cerimdnias no sudeste da Europa até fins do século XVIII (Boswell, 1994). Os prazeres sensuais que podem ser obtidos com 0 toque em partes do corpo do outro também parecem tio diretos e imediatos, ‘que & dificil imaginar como haveria de ser diferente. O beijar, por exemplo, como a jungao de duas bocas, assume um deleite que, tal como 0 sentimos, deve ser normal e universal. © beijo comega para muitos de nés como parte do ritual de saudagao, podendo entao con- duzir, como que naturalmente, a um pleno despertar sexual e a um sentido de libertagao, Mas nao é em todas as culturas que as pessoas se beijam quando se encontram, e o beijo, de acordo com algumas abordagens, pode ter uma histéria bem diferente; diz-se que os ho- ‘mens na Roma antiga, querendo detectar se suas esposas haviam be- bido ~ uma ofensa capital entre mulheres, na época - 0 melhor que podiam fazer era sentir 0 gosto bem no fundo da boca da compa- mheira (Toussaint-Samat, 1992). B como se 0 movimento para alm do estagio oral fosse mais um feito hist6rico desagradavel do que simplesmente um passo necessério de iniciagao de toda e qualquer cetianga na cultura, Emogées so sentidas tao profundamente em nosso intimo que talvez nao possam ser construidas a partir de recursos cultu- ralmente disponiveis, ¢ no entanto estudos experimentais em psi cologia social indicam que a pura e simples injegao de adrenalina pode ser interpretada como raiva ou como euforia, dependendo do contexto social (Schachter e Singer, 1962). Existem muitos estudos descritivos demonstrando que relagées ¢ soliléquios em diferentes culturas produzem emogées diferentes das vivenciadas no Ocidente (Harré, 1986). Desse modo, emogées na Inglaterra medieval, como a acedia, uma sensagao de desalento por nao se ter cumprido com suas obrigagdes para com Deus, desapareceram (Harré, 1983), e novos estados emocionais regurgitaram como se sempre tivessem estado ali, Uma histéria lacrimosa na Franga, por exemplo, um vale de légrimas que ao final nao passasse de um estratagema nas artes da sedugio no século XVIII, no XIX seria sentida como um né na garganta sequioso por uma vélvula de escape (Vincent-Buffault, 1991), Introd: Picandie¢ discus |x 0 “complexo-psi © desenvolvimento do capitalismo na Europa e na América do Norte proporcionou um terreno fértil para experiéncias ¢ explicagies “psicolégicas profundas’ A psicanilise forneceu um vocabulario para 1 experincia do self, 0 qual foi suscitado por um sistema econémico {que opera na maior parte do tempo fora do alcance do controle das pessoas, disfarcado e incentivado por um clima cultural de co-modi- ficagao ¢ individualizagao, Ocorre que esse vocabulirio psicanalitico também se desenvolveu no contexto de outros modelos mentais igual- mente poderosos, mas de todo institucionalizados. ‘© que se tem hoje é uma intrincada rede de teorias ¢ praticas loca- lizades que determinam até que ponto podemos fazer e refazer nossas :mentes ¢ nosso comportamento ¢ 0s mods pelos quais “desvios” emo- cionais devem ser compreendidos e curados. Essa rede tem sua maior densidade no cerne urbano do Ocidente moderno, onde ela dé forma as discussdes televisivas de nossos dias e programas de auto-evolugao asso a passo, e & medida que se espalha mundo afora, sobrecatre- ga-o de prescrigées sobre como o self moderno deve ser investigado e tralado, Essa rede é 0 “psi-complexo’, inclui a psicologia académi- cae profissional e todas as variedades de psicandlise sedimentadas na clinica e disseminadas pela comunidade mais ampla. Profissionais em diferentes setores do complexo-psi definem como se deve afigurar € ser sentido 0 fancionamento emocional atipico, bem como o correto fancionamento mental (Ingleby, 1985; Rose, 1985), ¢ como processos familiares e versando sobre guarda de filhos devem ser descritos e con: fiados a mies e pais (Donzelot, 1977; Riley). 0 desenvolvimento do complexo-psi em varios aparatos de su- pervisio e regulagio fornece o contexto para o aprender de idéias psicanaliticas sobre o inconsciente ¢ sobre o ego na cultura ocidental. ‘Também fornece um maquindrio para a implementacdo de certas te- orias da mente no Ocidente ¢, a partir daf, para a imposicéo dessas (eorias a9 resto do mundo como formas de dar conta de diferengas cul- turais e de garantir que outras culturas desenvolvam modos de pensar que jam tao “civilizados” quanto os nossos. Uma completa hist6ria critica da psicandlise precisaria localizar representagOes culturais do 20| (Calera Psicanaticn self que apelassem a nogées do inconsciente ¢ da fantasia infantil no contexto da pratica clinica, Talvex haja aspectos daquela pritica que de fato sejam Uiteis a selves escolados a falar ¢ pensar sobre seu interior € sobre seu passado em termos psicanaliticos. A histéria critica da insti- {uigéo da psicandlise e sua participagdo no complexo-psi esta além do escopo deste livro, mas retomaremos nogées de terapia na cultura no capitulo final Imperialismo cultural ‘Tem sido intimeras as tentativas de apreender 0 modo como no- ‘goes psicanaliticas “pegaram” na cultura ocidental. A psicandlise tem sido descrita como 0 “triunfo da terapeutica’, e como parte integrante do embate moderno com assuntos relativos a identidade e moralidade & medida que ancoras religiosas so abandonadas (Rieff, 1973). Uma discussdo tanto mais sardénica travada por iniciativa da filosofia e da antropologia social retrata a psicandlise como um escambo elaborado € eficiente executado por uma nova intelligenstia freudiana sob uma aparéncia acessivel, passivel de proporcionar apoio pastoral (Gellner, 1985). Abordagens socioldgicas tém explorado a “afinidade cultural” entre concepgées psicanaliticas da qualidade do self e da sociedade americana (Berger, 1965); sio abordagens utilizadas para descrever 0 quadro mais amplo da cultura de lingua inglesa do século XX (Bocock, 1976). No ambito da psicologia social, Moscovici (1976) estudou as “representagdes sociais” de idéias psicanaliticas encontradas em vel- culos da midia impressa de diferentes organizagées politicas ¢ religio- sas na Franga em fins da década de 1950, isso para demonstrar em ‘que medida modos cientificos de representacio se fizeram traduzir em ‘uma conversa cotidiana sobre “complexos” e “deslizes” inconscientes da lingua e de seu possivel significado, O imperativo civilizador da psicologia e da psicanilise pode ser visto em virias descrigSes do desenvolvimento mental cm trabalho colonial “intercultural” desde 0 inicio do século. Estagios do desen. volvimento cognitive e moral descritos por Piaget foram utilizados na Africa para graduar niveis de desenvolvimento cultural (Bulhan, did: Pune dacano [ax 1981), € avaliagdes semelhantes de culturas subdesenvolvidas foram {eitas por Vygotsky em toda a Unido Sovietica (Kozulin, 1994). 0 uso por Freud (1930) da antropologia comprou a idéia hoje desacredita~ da que se tem @ partir daquela disciplina, idéia segundo a qual uma descrigio detalhada de outras culturas existentes nos dias que correm, mas nao submetidas a um processo de industrializagio, poderiam ser tomadas como equivalentes as formas de vida “primitivas” que seriam 0 pasado profundo € negro do Ocidente, A priotidade atribuida a mentilidades do “primeiro mundo” industrializado em regimes de testes e comparagao psicoldgicos também se faz reproduzida no modo como instituigées académicas e profissionais legistam no que diz res- peitoa pesquisa e ao treinamento a partir do centro e para o “segundo” e“terceiro” mundos Issa priotidade também se reflete na divisio conceitual eorganiza- ional do mundo pela International Psychoanalytical Association (IPA) em tiés partes: América do Norte, onde a American Psychoanalytic Association (APA) supervisiona todo o treinamento de onde com tanta eficdcia governa aquele “terceiro” do mundo independentemente dda IPA; América Lat do Sul (dificilmente abrangendo quaisquer representagées de agrupa- mentos da América Central); eo resto do mundo, o que efetivamente significa os paises da Europa, Aftica e Asia sob o controle organizacio nal do Reino Unido. Esse mapeamento de estruturas institucionais sobre © mundo “real” tem tido suas repercuss6es no modo como 0 treinamento nas provincias é realizado (por exemplo, em visitas mensais por analis- tas trainees da Africa do Sul para Londres, para 0 centro) € no modo como as tendéncias oposicionistas tém sido conduzidas (por exemplo, 1no modo como analistas do Reino Unido desempenharam um papel fandamental na expulsio de lacanianos da IPA na década de 1950). A partir do ponto de vista privilegiado de um analista francés, passando «em revista o estagio do movimento apés a Segunda Guerra Mundial, “imptrio” psicanalitivo patecia ser estritamente controlado ¢ fechado para. dissidéncia: “As duas guerras mundiais tiveram o efeito de ga- rantir o triunfo do Ocidente sobre 0 Oriente e de um recentramento do controle dos negécios do império em uma cena cada vez mais an- a, que inclui 0 México e os paises da América ————————t—SS ra| ‘Cultura Psicanalitica ffona, la propria cada vez mais dominada pelo feudo americano” (Roudinesco, 1990, 171). ‘Nessa medida, € dificil para a psicandlise “nativa” dizer respeito as particularidades culturais de sociedades, digamos, indianas bu J- ponesas, desenvolvam-se sem que tal implique enn wm recu das ¢s- traturas ocidentais (Kakar, 1985; Doi, 1990), As repetidas tentativas te fart lo, As vezes sob orisco de expulsio da IPA, sio testemunho do node como a psicandlise tem tido de competir com outros modelos ddo sof, de emocoes e de angistia. Qualquer exame critico da psica- wilise, ainda que simpético, deve reconhecer que todas as variedades da psicologia se encontram permeadas de material cultural material este que tem una localizagao historica e geogréfica, e uma posigao nas redes de poder. ‘Nas psicologias dos dias tuais grassam nogSes psicanaliticas, mas 80 nogbes mais construfdas do que naturais € universais, Consttucoes contemporineas do sefencontram-se hoje em débito com a obra de fread ¢ com o movimento psicanalitco, mas sio também mantidas por instiuigSes que definem como a mente ¢ 0 comportament® de- pen aer descritos e experimentados. A teoria freudiana “funciona” nao por ser verdadeira, mas por estar estruturada na cultura ocidental. Um fenfoque na construgio social da psicologia em diferentes contextos hos ajuda a cunhar uma distancia critica a partir da psicandlise como lim tipo de “verdade, e nés podemos aprofundar esse enfoque com © desenvolvimento de ferramentas analiticas encontradas na linguagem- Este livro nos fard percorrer varios fendmenos culturais que trazem em seu bojo nogbes psicanalticas para ilstrar como podemos “ler” a cull fura com um olho psicanalitico ¢ com um olhat sabre o modo como a psicanilise opera na cultura, Para fazt-lo,precsamos de uma estrutura tebrica ¢ metodologica adequada. COMO FSTUDAR FENOMENOS PSICANALITICOS? Quando nos propomos.a considerat os muitos ugares que pica ndlise opera na cultura popular, vemos que ela assume uma variedade “Je formas em nossa fala, em nossa escrita ¢em nossa prética, enecessi- [33 introduc: Picandlise «discus tamos de ferramentas conceituais ¢analiticas para descobrir como est ‘construida e seu modo de operat Discurso ‘Um modo util de explorar ess fala, escritae pritica ¢ faz8-lo por meio de uma andlise dos padrdes de enunciados ov “discursos” que “Tefinem diferentes objelos, sa como coisas que es fora e sio inde- pendentes de nds ou entio dentro, sendo parte de nés. Um dos mais poderosos ards de inguagem, © como ve uma fonte de criatividade Pumana, ¢0 modo como ele pode construir uma representagio de um bjeto em dado momento, no que parece enito fazer referéncia aque- Ie objeto como se fosse algo externo, como algo estando “é” adiante. Sores humnanos vives em uum mundo entretecido de linguagem, ¢ 05 dlferentes sistemas simbdlicos que compreenden wis ‘comunidade humana sao organizados mediante discursos de distuinta competéncia t interconectados, que produzem um sentido do mundo como algo aque independe de nds. Essesdiscursos no s6 produzem para nés uma imagem do mundo “i mas com o cresciment9 do complexo-psi eles também se nos &40 como um incentivo para falar sobre sen queha arto objetos “aqui. A série de pulsdes,defesas do ¢e0 eapresentagbes de objeto a compor 0 discurso psicanalitico tem adquirido, para mui- tse anahtas e pacientes, um estatuto ainda mais slido Discursos também dispdem de especficagdes para certos HPO de bjetosextremamente compicados, os temas de comets, as coisas que sentimos serem a fonte de sentido, ena fala psicanaitica, aquelas coisas, tjqmemos, so sentidas como aoriger da angéstiae da cura ‘Accapaci dade reflexiva do ser human é vista por analistas de discusso OM algo tercamente bastante recente, e isso pode ser entendido coro " fungi do discurso na qual esse discurso por sua ver #6 “desdobra” em tum corpo e confere o efeito eo poder da consciéncia (Foucault, 1966). ae rews, deveros deixar claro que quando “posigles de sujeito” sio Alispostas no discurso, especialmente as fundadas em 108 inotituigio como uma pritica discursiva, certos poderes cio exercdos Por alguns felantese negados por outros (Bhaskar, 1989; Paker, 992)- 24| Cale Princ ‘Uma coisa é dizer que a psicandlise se mantém em discurso; outra € dar o devido peso aos mods como esta circula e ao poder de que cla desfruta. Nao se trata, antes de mais, “simplesmente” de um dis- curso, e seria um erro pensar que ela s6 existe como tipo de fala ou de escrita, Um discurso, ou uma rede de discursos contraditérios no caso do complexo-psi subsiste em um “regime de verdade” dificultando para participantes o desafio das “realidades” a que ela faca referencia. Regimes de verdade governam o que pode ser falado, e eles também definem 0 que sera visto como sem-sentido ou como loucura, Uma ‘vez que o trabalho discursivo-analitico é nao raro realizado em settings académicos, étentador descrever “discursos’, como se eles fossem ape- nas lingliisticos, dando-se tio-s6 na linguagem. Contudo, 0 trabalho de Foucault (1969), que tem sido uma inspiracio para perspectivas criticas no discurso em psicologia nos tiltimos anos, chama a atensa0 ara o modo como a fala, a escrita e outras formas de representagao se encontram implicadas em “préticas discursivas’, podendo set severas as sangées contra 0 sem-sentido ou contra a loucura (Parker, 1992; Parker et al., 1995), Em instituigoes como prisdes ¢ escolas, as pri- ticas discursivas séo “locais” em que padroes de sentido se assentam em técnicas disciplinares, nos quais somos feitos para agir e ser de determinadas maneiras. Para explorar 0 modo como a subjetividade psicanalitica “atua” na cultura, precisamos elaborar um pouco mais as abordagens analiticas do discurso. Complexos discursivos O recurso metodolégico do “complexo discursivo” capta a nature- za dual do discurso psicanalitico. O termo “complexo” é utilizado aqui de forma bastante deliberada para evocar a natureza peculiarmente freudiana e pés-freudiana da subjetividade que vivenciamos a maior parte do tempo e que é por nds abordada neste livro (no obstante o fato de Freud ter tomado 0 termo de empidstino a Jung). Se fosse 0 caso de estudar nogbes comportamentais ou cognitivas ocultas na lin- Buagem e experimentadas por usuérios, talvez. desejéssemos falar de “repert6rios discursivos” ou de “modelos discursivos”. Por um lado, os. rodeo: emis dcuse ls conceitos empregados pelos textos psicanaliticos perpassam a cultura como componentes de um discurso, como abjetos que sao circunscri- tos por definigdes em escritos académicos e profissionais ¢ utilizados em publicidade (Parker, 1995). Nesse sentido, o discurso constitui os ocais para que os sujeitos venham a ser, seja ao modo de uma crianga com problemas de se separar da mae, de uma adolescente cheia de frus- tracio e ressentimento em relagio autoridade, ou como um adulto jé ‘ais velho refletindo sobre a vida e sobre necessidades nao satisfetas. (0 discurso assim posiciona o sujeito que é visado por ou que esté em pregando o discurso para que entenda a si préprio ou suas tumultuosas relagies. Por um lado, o discurso toca uma forma jé existente de sub- jetividade para aqueles que escrevem e falam sobre si mesmos e sobre outros, seja na forma de autobiografia ou na de colunas destinadas a consultas e aconselhamentos, em uma entrevista televisiva ou no diva de um terapeuta, Ele dé sua aquiescéncia a uma teoria do self que 0 sujeito tena sido convidado a elaborar para si proprio nessa cultura, ce desse modo ele reconfigura a cada ver algumas das emogdes que Ihe esto disponiveis (Parker, 1997). Sea psicandlise fornece uma reflexio, uma compressio e uma redu- G40 de fendmeno societério 20 nivel do individuo, ela o faz de um modo que também revela algo mais da natureza desses fendmenos. Quando estudamos 0 modo como complexos discursivos estruturam fen6me- nos culturais, somos capazes também de melhor compreender 0 modo come eles atraem e mobilizam seus sujeitos. © complexo discursivo en- tio nio existe somente para o sujeito individual, mas também fornece ‘um meio para que se compreenda como a linguagem psicanalitica atua em relagio a fendmenos culturais especificos. Podemos entao esclarecer ‘oqueé sentido como o ‘compartilhar” da experiéncia por aqueles enwvol- vvidosnaqueles fendmenos, o ato de se dar dos sujeitos uns para os outros ‘como tendo propriedades psicoligicas semelhantes. Compreensio conceitual ¢ critica psicolégica Até aqui tenho feito referéncia ao discurso psicanalitico como se cle fosse algo singular e unitério, No entanto, a exemplo do que ocorre 26| ‘Cultura Pseanaltica com todo discurso, ¢ com a natureza humana nele assentadsa, ele nio € nenhuma dessas coisas. Somos feitos de muitas coisas, descrigdes e imagens, ¢ essas coisas dividem-se de muitas maneiras. O discurso psi- canalitico se dé de muitas formas concorrentes, e é construido a partir de uma série de conceitos reunidos de maneira um tanto frouxa e que se entrechocam e se mesclam com outras teorias comportamentais po- pulates e cognitivas do self. A nogao de “discurso psicanalitico” desempenhar4 um papel por ‘vezes dual neste livro, e definiré minhas duas principais tarefas nos ca: pitulos a seguir. Em primeiro lugar, mostram como é posstvel ler fend- ‘menos culturais contemporiineos com um olhar psicanalitico. Passarei a interpretar uma série de textos fazendo uso de conceitos psicanali- ticos € mostrando como esses conceitos nos capacitam a ilumind-los de um modo que nos torne possivel localizd-los. Aqui sigo 0 rastro de autores de varias inclinagdes te6ricas, que usam a psicandlise para dar sentido a experiéncias individuais e fenomenos culturais (por exem- plo, Rustin, 1991; Samuels, 1993; Young, 1994; Elliott & Frosh, 1995) € periddicos dedicados aquela tarefa (por exemplo, o Free Associations € 0 Journal for the Psychoanalysis of Culture and Society), Estou inte- ressado nao tanto no que se passa no pensamento de autores tomados individualmente, e sim mais com redes de discurso que fomentam os sentidos por eles produzidos, ¢ no que aquele sentido revela sobre a cultura e sobre condigées de possibilidade para que sejam autores de seu proprio selfnessa cultura. A psicanélise certamente pode ser usada para que se leiam e se iluminem textos culturais, mas em cada capitu- lo tornarei a perguntar por que ela pode ser usada de tal forma e por que certas versbes do discurso psicanalitico parecem tao apropriadas a certos t6picos. Minha segunda tarefa, entao, sera mostrar como fendmenos cul: turais so estruturados por complexos discursivas, e as leituras tam- bém fornecem oportunidades para que se explorem os modos como conceitos-chave do vocabuléio psicanalitico emergiram nos escritos de Freud e de seus sucessores. Aqui me vejo tum pouco mais cético em relagdo & psicanélise como pega-chave para desvendar os segredos da caltura, e quero mostrar como o discurso psicanalitico em si mesmo tem sido construfdo como parte do mecanismo que parece situar-nos nvdu:acantee dco ie zno aqui e agora. A psicanélise nos incentiva a nos movimentar sob a superficie a fim de ver 0s modos como 0 sentido é produzido, mas aqui passaremos a olhar para 0 modo como o sentido ¢ transformado e reproduzido na cultura em vez de tentar encontrar as fontes dos sen- tidos 0s individuos tomados individualmente. Quando o psicélogo criminal do filme The Dark Past (citado no inicio deste capitulo) olha pela janela para os jovens delingiientes, por exemplo, ¢ transforma a metafora de Freud sobre a estrutura da mente para distinguir entre a boa juventude, que pode ser salva da md, que esté perdida, com isso ele ao mesmo tempo esté se pautando por certo modo de estruturar ‘um feadmeno social para o piiblico. A psicanélise, entao, circula como ‘uma forma de representacao e pritica que posiciona sujeitos na medi- ‘da mesma em que usam refletem sobre o que Ihe é possivel dizer. Mas de onde vem esse discurso? © DISCURSO PSICANALITICO DE FREUD E claro que a contribuigao de Freud para o desenvolvimento da psicandlise foi de vital importancia, e deveriamos prestar alguma aten- sao nessa contribuigdo antes de nos voltarmos para as forgas culturais ¢ econdmicas que permitiram que suas idéias produzissem frutos. De que modo contamos a histéria de uma vida individual formada por culturas concorrentes e assentada em condi¢Ses econdmicas conflitu- sas, é algo que sempre receberé certo enquadramento tedrico € me todoligico. Em verde simplesmente tragar a biografia de Freud - de seu nasci ‘mento, em 1856, até a morte de seu pai ea primeira ver.em que se utli- zon do termo “psicanélise’, em 1896, para a fundagio da International Psychoanalytical Association em 1910, e daf até sua morte no exilio, ‘em 1939 ~ mais itil seré aqui, tendo em vista 0s principais temas deste livro, focalizar a obra de Breud como localizada em uma série de acon- {ecimentos. Seus eacritos, suas atividades profissionais ¢ a mobilizagéo de colegas em favor da causa da psicandlise podem ser considerados ‘como governados por esses acontecimentos e, em certa medida, como sendo constitufdos por eles. 23| Cattare Pamala Materialidade da mente Otreinamento de Freud como médico clinico serviu para reforgar uma abordagem materialista do corpo e da mente que o marcou desde © inicio de sua carreira, Uma visita a Manchester em 1875 proporcio- nou-lhe a oportunidade de uma leitura mais atenta de trabalhos de ‘empiristas ingleses em ciéncias, uma visio da investigacéo como que cenraizada na descoberta de fatos observiveis e nas conexdes entre eles, ena época Freud se opunha fortemente & metafisica especulativa. O positivismo médico que ele absorvera de Ernst Briicke, seu mentor no laborat6rio fisiol6gico onde ele trabalhou de 1876 a 1882, mapeou esse quadro empirista da mente em uma critica incisiva a qualquer estirpe de romantisme. O romantismo na época era popular em teorias bio- logicas entre pesquisadores que buscavam forgas misteriosas na na- tureza para explicar 0 desenvolvimento, proporcionando explicagées vitalistas para processos biol6gicos. O primeiro livro de Freud, publi- cado em 1891, Sobre a concepgao de afasia: um estudo critico, abordava problemas referentes & produgio da linguagem, dos quais se pensava residirem em lesdes cerebrais. Freud redescreveu-os como relagdes entre sistemas de representagio, Esse trabalho pavimentou a via para se pensar a histeria operando como se fosse “a lesdo de uma idéia” (Forrester, 1980, 30). Foi nessa época que Freud veio a conhecer Wilhelm Fliess, que viajou de Berlim em 1887 para uma conferéncia do préprio Freud so- bre neurologia, e por volta de 1894 Fliess era, nas palavras de Freud, “o tinico Outro” (citagao de Gay, 1988, p. 56). HA uma tensio nessa re- lacéo com aquele “Outro” desde o inicio, e as idéias um tanto misticas de Fliess sobre o significado de certos niimeros nos ciclos reprodutivos femininos e masculinos - 0 que provocou em Freud uma persistente angistia com relagao a sua propria morte nas idades de 51, 61 ¢ 62 anos ~ juntamente com teorias radicais sobre bissexualidade consti- tutiva e especulagdes de cunho mais fantéstico sobre conexdes entre © nariz © of érgioe eexuaio (Gilman, 1993). Apesar dessas tentativas de escapar a nogSes roménticas, durante todo o percurso freudiano persiste a dualidade entre for¢as vitais (nas pulsdes) e mecanismos psi- col6gicos (como estruturas mentais), embora as discusses com Fliess Introduce: Psicandlisee discus 2» estabelegam um contexto para a elaboragio de uma abordagem que procurava fundar a psique na biologia, 0 Projeto para uma psicologia cientifica (Freud, 1950) foi escrito em 1895, na seqiiéncia de um dos “congressos” intimos com sew amigo em Berlim, em setembro. O manuscrito ainda incompleto foi enviado a Fliess no inicio do ano seguinte, A introdugio do editor para 0 Projeto na Edig@o Standard observa que este “contém em si mesmo o niicleo de grande parte das posteriores teorias psicolégicas de Freud” e que “seu fantasma invisivel” “assombra toda a série dos escritos tedricos de Freud, até o seu fim" (Strachey, 1966, p. 290). Ela assentou as bases para ‘uma leitura da psicanélise como psicologia cognitiva, ¢ para a redugao da explicagao terapéutica e cultural do arcabougo da ciéncia natural (Pribram e Gill, 1976). O Projeto, a que Freud chamou sua “Psicologia para neurologistas’, continha especificagses para 0 actimulo, retengao ce descarga de quantidades de excitagdo, e muitos desses temas, particu- larmente o da fundagao de processos mentais no cérebro, perpassaram uma de suas tltimas revises de uma teoria analitica geral da mente nos 40 anos que se sucederam a Um esbogo de psicandlise (Freud, 1940a). No entanto, o recorrente problema envolvendo uma abordagem cien tifica estritamente natural da psicandlise ¢ o de que desejo humano sempre vai além da biologia, ¢ Freud se debatia entdo com um sentido do seljcomo algo armado feito armadilha no corpo e como tentativa de transformagio de si mesmo e de sua relago com outros. Niveis de representagao Em seus estudos sobre a afasia, a consciéncia, por Freud, de que a ‘mente nao apenas era violentamente cindida por diferentes represen tacbes, e de que havia a possibilidade de se falar em niveis de repre- sentagio como que demarcando diferentes regides do pensamento € varieéades do processo mental acabaram por conduzi-lo ao incons- ciente. Uma visita a Paris de outubro de 1885 até marso de 1886, para estudlos com Jean Martin Charcot, na Salpétriére Clinique, introduziu Freud em um lugar onde o hipnotismo estava eliminando a histeria do corpo das mulheres. Um retrato de Charcot apresentando uma de suas 5s Cara Pcanaicn pacientes mulheres a um pliblico de colegas e alunos pendia na parede do consultério de Freud da Bergstrasse 19, em Viena, até 1938, quan- do entio foi orgulhosamente posto na parede sobre o diva do analista ro néimero 20 do Maresfield Gardens, em Hampstead. Freud também visitou o hipnotizador Hippolyte Bernheim ~ que argumentou contra aassergio de Charcot segundo a qual somente as histéricas seriam sus cetiveis & hipnose - em Nancy em 1889, e traduziu trabalhos tanto de Bernheim como de Charcot para o alemao, © argumento de Charcot cera 0 de que a histeria se dava nao s6 em mulheres, mas também em. homens, e que o estado hipnético reproduz de alguma forma a condi- io histérica, isso juntamente com a alegagao de Bernheim, segundo a qual o fendmeno vinha a ser uma linha divis6ria entre o normal © anormal, a anormalidade e a feminilidade em forma de chaves que teriam o poder de destravar processos ocultos na mente normal mas- calina, ‘Também aqui se tem a evidencia adicional de um sistema incons- ciente separado do sentido na mente, pois as queixas das histéricas de ‘Charcot néo poderiam ser mapeadas dentro dos contornos do corpo. A paralisia histérica e hipnética nfo correspondia a dutos nervosos, a reas fisiologicamente circunscritas de bragos ou pernas acometidos Algo mais estava acontecendo com a paciente, e algo poderia ser pro- duzido ou aliviado na paciente por sugestio, sugestao em algum nivel de consciéncia que nao era consciente. Charcot atentava para periodos de choques trauméticos que poderiam ter provocado aqueles estados mentais, e naquela época, em Salpétriére, pouca atencio se dava a pre- valencia e as conseqiténcias do abuso sexual infantil, Era como se hou- vvesse certo actimulo de experiéncias softidas e reprimidas a partir de coisas que entéo permaneciam como que a espreita, sob a superticie, um reino da consciéncia que poderia falar de experiéncias somente quando o sofrimento houvesse sido empurrado para baixo da superfi- cic. A condicao para o discurso cotidiano parecia ser a de que as coisas, passives de suscitar o trauma fossem impedidas de dele tomar parte. Freud (1895a) mais tarde elaborou uma abordagem do incons- lente como consistindo de “apresentagbes de coisas’, um nivel de representagio dividida a partir de uma consciéncia cotidiana que compreendia “apresentagdes de palavra” da linguagem. A propria Intuodugi: Psiandlisee discurso es capacidade de usar a linguagem, de conscientemente se comunicar com 0s outros e participar de um discurso comum haveria de ser predicada, na corrente principal da psicanilise, como a existéncia de um “outro lugar’, de uma vida mental inconsciente em que os trabalhos criativos do passado e do presente se encontravam con fundidos e combinados de modos distintos, passiveis de provocar distirbios e excitagdes. Sexo, sedugao e fantasia O relato que Freud fizera de maneira entusiasmada sobre a de- monstragao de Charcot da existéncia da histeria masculina e da na- tureza psicoldgica da queixa a seus colegas vienenses em 1886 no teve boa repercussio, Também ali houve uma confusdo entre qua- dros discursivos que buscavam pelo sentido da psicopatologia, com Freud dividido entre diferentes representagdes culturais ¢ académi- cas da anormalidade ¢ da sexualidade. © retorno de Freud @ Viena {oj também uma viagem entre imagens concorrentes de sua infincia. ‘A “Teoria da sedugao’, Freud a descreveu alguns dex anos depois a seus colegas, em abril de 1896, ¢ isso provavelmente se deveu, em parte, a suas leituras de chocantes relatos, na imprensa francesa, da extensio de abusos sexuais na infancia, bem como de pesquisas de Salpétriére quando ele esteve em Paris, mas aquela teoria destoava de historias sobre criangas manipulativamente mentindo, as quais eram populares na cultura de lingua alema. Abordagens de tormentos psi- quicos eram desacreditadas, ¢ exemplos de abuso sexual eram tan- to mais eficazmente ocultados gracas a essas imagens que se faziam de muitas criangas. Defendeu-se que Freud teria retrocedido de sua “Teoria da sedugéo” em razao da reacao incrédula e hostil que ela teria provocado em Viena (Masson, 1984), No entanto, a teoria em grande medida mais provocativa que ele veio a propor depois ~ a de {que comos todos fontes pululantes de fantasia perversa - tampouco poderia ser bem aceita por seus detratores. Quaisquer que fossem as razbes de Freud, a mudanga de enfoque da “sedugao” real para fanta- sias infantis foi um momento fundador da psicandlise a Cur Psicarattica Imagens de perverséo sexual cruzaram ambas as vias em psica~ nélise, 20 mesmo tempo legitimando e combatendo abusos (Glaser e Frosh, 1993), embora a forte associagio entre desenvolvimento madu- ro ¢ heterossexualidade normativa significasse que os aspectos mais desafiantes do trabalho de Freud fossem nao raro calados ou sepulta- dos, Fliess, por exemplo, fornecen a idéia da bissexualidade que consti- tuiria 0 sentido psicanalitico do fendmeno da histeria masculina, bem como da irrupgao de uma distingao essencialista entre os géneros e 0 modo pelo qual se convencionou que essa fosse mapeada relativamen- te diferenga biolégica entre os sexos. Os trésensaios sobre a teoria da sexualidade de Freud (1905) esclareceu esse aspecto, sobretudo em ‘uma famosa nota de rodapé acrescentada em 1915, segundo a qual diferencas biolégicas entre os sexos precisavam ser distinguidas de di- ferencas entre identidades de género masculino e feminino em socie- dade, e novamente distinguidas a partir da diferenca entre atividade e passividade. Porém, Freud prossegue insistindo, mesmo nessa nota de rodapé freqitentemente citada por autoras feministas simpaticas 4 psi- candlise, que a “libido” é“masculina’, “pois um instinto € sempre ativo, ‘mesmo quando tem em vista um objetivo passivo” (Freud, 1905a, p. Ml). Essa éa razdo por que Freud afirma, na passagem que traz apensa a referida nota de rodapé, que “a sexualidade das meninas é de carter completamente masculino” (Ibid). que Freud da com uma das mios, tira com a outra. A sexuali- dade é separada da biologia, ¢ desse modo se torna um prazer plistico a ser desfrutado pelas mulheres tal como o é por homens; encontran- do-se, porém, de certo modo atrelada & masculinidade, s6 podendo ser desfrutada por mulheres como se elas fossem homens. A decom: posicéo dos “impulsos” — em carga ou “pressio”, a parte ou processo do corpo como ‘fonte’, o “objetivo” sempre considerado como agente erosive de tensdo na origem, eo “objeto” por meio do qual o objetivo é realizado — também exerce um efeito contraditério no desenvolvimen- to da psicanélise como forma de politica social. Agora se faz possivel ‘uma abertura para quest6es de perveridade, e do que Freud chamou de “perversidade polimorfa” da sexualidade infantil, a fim de abordar © modo como a homossexualidade pode ser considerada, juntamente com a heterossexualidade, como uma resposta ao mesmo tempo con- Introd: Pacandliseediscurso ee fusa e compreensivel & confusio e ao trauma do desamparo e da ple- tora dos desejos infantis. A pratica da psicandlise tem freqiientemente Jidado com isso, ainda que o faga mais por uma ratificagao dos proc dimentos de cuidados com a crianga e de identidades sexuais na fan lia nuclear “normal” do que pelo questionar se os ataques brutais e a heterossexualidade compulséria que nao raro a danificam porventura nao podem ser vistos como sintomiticos de uma estrutura anormal’, ainda que culturalmente dominante. ‘A sextalidade infantil também desempenha um papel ao mesmo tempo subversivo e conservador em debates sobre 0 inconsciente de pa cientes e analistas, pois, envolver toda a vida cotidiana, a sexualidade, nessa medida, pe em questao a pripria relacio terapéutica. O analista sempre volta a ser confrontado com descrigdes € questies sobre desejo que reproduzem padrées de relagio sexual, ¢ iss0 no momento mesmo ‘em que clas sio discutidas. A “transferéncia, concebida como retomada de relagGes a partir de objetos significantes primevos na figura do ana- lista, ornou-se uma das pedras de toque no desenvolvimento da pratica psicanalitica, e € vista como estruturando a rota para a cura muito mais do que como um inconveniente bloqueio em canais de comunicacéo. TTalvez em virtude do papel da psicanélise como um incitamento & con- fissio no Ambito da comunhao analitica, nfo levou muito tempo para ue as fantasias sexuais do analista em relagio a seus pacientes ~ sua “contratransferéncia” ~ também fossem consideradas por analistas “re- ages de objeto’ parte necesséria do processo (por exemplo, Heimann, 1950). A fantasia, portanto, continua a aparecer no processo de cura, ‘mas ela tem de ser aproveitada com o intuito de tornar aquele processo ‘uma tentativa propriamente criativa e terapéutica Givilizagio e racionalidade Freud via a psicanilise como ciéncia, mas também como uma busca terapéutica e cultural. Algumas yezes ficava claro que com isso e'e intencionava que ela fosse uma ciéncia natural - uma das Naturwissenschaften ~ ¢ que a “cura pela fala’, morosa e cheia de circunléquios, pudesse entio finalmente ser abreviada com uma a4] Cultura Psicanaltca medicagao que alterasse a base quimica dos problemas neuréticos ‘ou histéricos. As descrigGes neuropsicolégicas no Projeto de 1895 reaparecem em distingdes entre processos primérios e secundarios de pensamento, e entre 0 correspondente principio de prazer e 0 principio de realidade. A nocio de repressao ~ a “pedra de toque” de Freud na psicandlise ~ ¢ muitas vezes situada em sua estrutura de ciéncia natural (Griinbaum, 1984). Em outros aspectos, quando Freud se refere ao pano de fundo cultural e literério em que um psicanalista em treinamento deve se enfronhar, Sendo esse pano de fundo mais atil que um treinamento médico, é facil aceitar as, reivindicagdes de que Freud via a psicandlise como uma das ci- éncias humanas, as Geisteswissenschaften, ciéncias do espirito nas ‘quais critérios de compreensdo e ressonancia vivencial séo mais importantes do que a geragio de hipéteses e os testes emptricos (Bettelheim, 1983). Seja como for, ao exame racional é atribuido alto valor; a racionalidade, como um selo de garantia da psicandli- se, hé de ser descoberta ao lado do processo secundario, do prin- cipio de realidade € no tipo de civilizagao “avangada” que tornaria possivel a psicanalise, A psicanalise também se perfila ao lado da razio quando se defronta com debates sobre o papel da religido como sistema de crengas em uma sociedade civilizada, O proprio Freud, na condigao de judeu vivendo em Viena, tinha boas razées para suspeitar da cristandade como inimigo potencial e patologicamente perigoso do pensamento racional. O prefei- to de Viena, Dr, Karl Lueger, por exemplo, foi um populista que garantiu sua eleigao com base em uma plataforma eleitoral de retérica anti-semi- ta, Preud estava determinado a garantir que sua identidade como judeu nio se fizesse obstéculo ao desenvolvimento da psicandlise Essa determinagao é algo que tem sido utilizado contra Freud ‘em argumentos anti-semitas pelos quais sua identidade cultural deve necessariamente ter engendrado uma secreta aderéncia 20 judafsmo, ¢ em caracterizagdes de Freud como reagao & cultura crist8, personificando uma “vinganga judaica” (Szasz, 1979). 8 possivel encontrar tragos de pensamento mistico judeu ~ particu larmente nogdes cabalisticas de texto e sensualidade ~ em escritos ena prética psicanalitica (Bakan, 1958), mas também é possivel Introducio:Pscandlis e dscurso ‘encontrar temas catélicos emergindo dali, com a trindade com- posta de id, ego e superego eventualmente citada como exemplo, € vyista como derivando talvez de sua experiéncia primeva com sua enformeira (Isbister, 1985). O que importa aqui ¢ 0 modo como a posicio marginal de Freud forneceu-Ihe simultaneamente uma distancia critica em relagdo & cultura dominante e a algumas fon- tes culturais alternativas a fim de forjar um modelo do individuo racional que seria capaz. a um sé tempo de adaptar e desafiar cos- tumes sociais tidos como estabelecidos (Klein, 1985). A psicana- lise em geral parece encetar seu percurso ao longo de uma linha ténue de conformidade e critica revolucionéria, e muitos dos mais acalorados debates tém se dado sobre seu carter “real”, em cujo lado devesse cair, como se tivesse mesmo de finalmente cair em um lado ou em outro, O anti-semitismo cristao repetidas vezes procurou dar conta das escolhas realizadas por Freud, de uma carreira em medicina a0 desenvolvimento do movimento psicanalitico. As esperangas depositadas em Carl Jung, por exemplo, como principe herdeiro do movimento psicanalitico, também foram condicionadas pelo anti-semitismo. Se Jung, como filho de um pastor suigo, viesse a se tornar a figura principal da International Psychoanalytical Association (IPA), teria entao sido possivel, esperava ele, quebrar 0 isolamento de que Freud se ressentia em Viena. Essas esperan- gas fizeram-se novamente atreladas a uma imagem da psicandli- ‘se como empreendimento racional, civilizado, e nao deixa de ser irdnico que 0 préprio misticismo de Jung (sempre um incémo- do comprometimento) veio a ser finalmente uma das razoes de seu rompimento com Freud. Contudo, talvez tenha sido mesmo providencial que Jung nao tivesse permanecido na lideranga da IPA, pois suas idéias foram sempre diametralmente opostas ds da psicanélise. Em vez de uma cuidadosa tentativa de deslindar as complexidades da experiéncia adulta pela via de um exame do passadn do individue, Jung protagonizou a saida facil para um “inconsciente coletivo”. A partir dai, foi um passo bastante curto para temas relativos & salvagio religiosa, e apelos a sentimentos taciais e anti-semitas (Samuels, 1993). 36| ColtraPscanlticn Aperfeigoamento cultural Freud muitas vezes mapeou o desenvolvimento da racionalidade cientifica com vistas ao desenvolvimento da cultura, e o desenvolvi- mento da racionalidade individual, da mesma forma, freqiientemente foi visto como recapitulando um movimento progressivo no processo, ivilizatério em diregéo a um melhor funcionamento mental e a uma melhor autocompreensdo. Sua caracterizagao da pratica psicanalitica na célebre citagio sobre 0 Zuider Zee, no inicio deste capitulo, torna esse liame tanto mais explicito, e 0 auto-aperfeigoamento se da parale- lamente e se faz modelado a partir de um aperfeigoamento cultural em. ‘uma imagem do ego sendo fortalecido e colonizando o id. Nas varias, descrig6es do aparelho fisico em esctitos de Freud, o ego orgulhosa- mente assume o lugar de representante e garante da racionalidade no individual e no prinefpio de que depende o crescimento cultural. Se 0 ego é visto como funsao de um compromisso coma realidade como um mediador entre a ordem social e o inconsciente, ou se é as sumido como precedendo relagdes sociais como avaliador ¢ filtro para a linguagem e outros materiais culturais, ele esta sempre ~ com a exce- sao paradoxal da abordagem de Freud sobre 0 narcisismo ~ no “cen- tro” da vida psiquica. O ego emerge pelos varios modelos mentais no desenvolvimento dos trabalhos de Freud como regulador, gerenciador, pponto focal e locus racional do self. £ possivel tragar um percurso pelos escritos de Freud passando pelo (i) modelo dindmico (no qual a ener- gia libidinal fui de um local do aparetho mental para outro, investin- do “tepresentantes adicionais” ao longo do percurso), pelo (ii) modelo econdmico (em que metéforas hidraulicas se apresentam por si pré- prias em abordagens do “exaurir” de energia sofrido pelas histéricas), pelo (iii) modelo topogréfico (no qual a distingao crucial se dé entre 0 inconsciente e 0 consciente como regides separadas da mente), e pot fim (iv) pelo modelo estrutural (tao decantado pelos autores de manu- ais de psicologia com sua simples compartimentalizagao da mente em. “id? “ego” e “superegn”), que coroa o ego como centro racional ¢ herdi da “ego-psicologia” anglo-americana (por exemplo, Hartmann, 1939). Cada modelo se mantém nos trabalhos de Freud, mas é 0 modelo es- trutural que costuma ser tomado para exemplificar a versio “estado Introd: Pecans ediscurso Fe final” de sua teoria (Greenberg ¢ Mitchell, 1983). Ali, contra a propria insistéacia de Freud (1925a) de que o inconsciente encontra seu cami- rnho em qualquer percepga0, assume-se a possibilidade de conceber 0 ego como regido da personalidade “livre de contflitos’ presente desde a racionalidade e guiando o individuo através das demandas impostas pelas cuas outras agéncias internas e pelo mundo exterior. Briste aqui uma patceria de néo fécil conciliagao entre 0 ego e 0 principio do prazer, € as fases iniciais dos escritos de Freud gravitaram ‘em tomo da tensao entre 0 ego como continente das pulsdes individu- ais de “autopreservacao” seguindo fielmente o principio de realidade eo inconsciente, além dos efeitos de ruptura do principio do prazer, que também facilitou a reprodugio da especie, Nestas primeiras abor- dagens é como se a parceria continuasse fundada no sexo, Nas fases posteriores dos escritos de Freud, tendo em suas discusses sobre 0 narcisismo em 1914 como ponto de inflexio (Freud, 1914a), 0 sexo auxilia na colagem do ego como local de pulses para a autopreserva- {lo e para o Eros, ¢ essas partes agora mais proximas sio confrontadas com uma nova ameaga de algo mais profundo no inconsciente com 0 “retorno do reptimide’, com algo “para além do principio do pra zer,com a morte (Freud, 1920). Eros faz-se ento conjugado a Tanatos como um impulso para a autodestruicéo a esguichar do interior do corpo, de cada célula individual a0 ataque da integridade do self, para entao sorvé-lo de volta a um estado inorganico. A civilizagio & progressivamente ilustrada por Freud como se de- senvolvendo no curso de uma diversidade de energias sexuais ¢ agres- sivas, por meio de uma “sublimagao” como um aperfeigoamento de energias que estariam em seu estado bruto. & como se a aparigao da violencia em grande escala na Primeira Guerra Mundial fosse inter- pretada por Freud como expressio do que sempre estivera subjacente ao verniz da cultura, Como o que jazia nos subterraneos se revelava cada vez mais destruidor, tornou-se tanto mais necessério fortalecer 0 verniz, laminar muitas camadas de cultura sobre o ego para tornar 0 prazer cexval, bem como a autopreservagio, partes de cua raison dre. Freud certamente se fez isolado pela guerra, e a dificuldade que ele ‘enfrentou para manter uma comunidade internacional de psicanilise a revelia de rivalidades nacionais tornou-se um ponto fulcral de seu 38 (Cultra Psicanalitica vigor uma vez terminado 0 conflito. O proprio movimento psicanali- tico durante muito tempo foi apoquentado por guerras civis de meno- res proporgées, como a cisdo que isolou Adler em 1911 ¢ em seguida Jung, pouco antes de a guerra comegar. A Primeira Guerra Mundial intensificou a luta entre a vida e a morte na comunidade psicanalitica, ¢ essa luta se tornou central 20 modelo do individuo descrito em textos psicanaliticos, nos iltimos escritos de Freud. As séries de acontecimentos que pontuaram a vida de Freud tam- bém marcaram sua Tuta teérica e organizacional em favor de uma visdo coerente e dindmica da mente ¢ em favor de uma comunidade de analistas para compreende-la, e 0s acontecimentos ainda se fazem Presentes, representados no sistema de conceitos que compreendem 0s debates psicanaliticos nos dias de hoje. Nogées da materialidade da mente, do inconsciente, da sexualidade infantil, da racionalidade civilizada e do aperfeigoamento cultural em psicanélise trazem em seu bojo, nao-resolvidas, as muitas questdes politicas que as incitaram ou as emolduraram. Tal se deu em parte por Freud ter se engalfinhado em embate com cada um dos temas, refletindo sobre seu sentido e suas conseqiiéncias. Freud foi um observador arguto, discutiu e elaborou ‘uitas de suas observagdes com outros. Uma anilise tao intensamente focada, uma auto-anélise ¢ entéo uma psicandlise condensaram cada tema e os prensaram a servigo de preocupagdes pessoais, de Freud, de Pacientes ¢ de colegas. Embora a “auto-andlise” que ele empreendeu em 1896, ap6s a morte de seu pai, sejafreqiientemente retratada como ‘uma jornada solitéria rumo a sua interioridade, a sua ativa reflexio sobre a familia, sobre eventos institucionais e politicos estiveram, na maior parte dos casos, inseridas em uma variedade de redes profis- sionais, como atividade publica. Nesse sentido, aquelas preocupacies individuais profundamente sentidas nao deixavam de ser também questoes culturais, CONDICOES CULTURATS DF POSSIRILIDADE Os temas que acorreram aos escritos de Freud nao se mostravam ali tao misturados no caldo comum da cultura de sua época. Os 44 9 ntrodusio; Psicandliseediscurso F ‘anos que se estenderam desde 0 inicio do século XX e 08 40 a seguir foram marcados por convulsoes de caréter intelectual e homicida. Foi ‘um tempo de idéias bastante novas ¢ movimentos de massa a provocar ‘ entrechoque das diferentes culturas da Europa e para além de suas fronteicas. Eles davam forma e impeliam a psicanélise como pratica modlerna e dinamica da mente, do modo como somos capazes de com- preendla e de dar conta de como cla surgiu. Esses temas culturais ndo raro precedem e precipitam, dio forma ao trabalho de Freud, ¢ atuam como intersecgdes a ele, passando entio a ser emoldurados pelo discurso psicanalitico. Nés os encontraremos eventualmente reapare endo no curso deste livro com relagao a versdes particulares da teoria analitica. A seguir, passarei em revista dez temas culturais de impor- tancia crucial, Eyolugio {A teoria evolucionista, como um primeiro caso em questo, pro- porcionou uma abordagem “cientifica” do desenvolvimento da huma~ nidade, mas havia mais do que uma teoria evolucionista e um actimulo de trabalho antropol6gico de cunho popular e menores pretensdes & cientificidade, Freud admirava a abordagem de Darwin da “selecio” das espécies, na qual as melhores mutagdes adaptativas sobrevivem com 0 empo se disseminam por toda um populagao, mas ele também foi influenciado pelo argumento de Lamarck em favor da heranga de qualidades obtidas durante o tempo de vida de um dos progenitores, € {ais nogdes foram empregadas na descricao psicanalitica da transmis so da meméria humana no curso da histéria. O complexo de Edipo, or exemplo, seria por vezes rastreado até acontecimentos na “horda primitiva” da pré-histbria, como se fossem adquiridos e trazidos na ‘meméria geneticamente codificada até o presente. E Freud também, repetidas vezes, tentou localizar o desenvolvimento individual no con- texto do desenvolvimento das eapécies com apelos ao dictum “ontoge nia recapitula filogenia® Aabordagem de Freud como “biélogo da mente” (Sulloway, 1979) ppauta-se em grande parte em sua preocupagao com esse liame causal +l Calta Pscanalitea centre uma teoria geral da psicologia humana e seu lugar na evolugiio. Enquanto Freud optou por certas leituras conservadoras sobre a emer- sgéncia da historia a partir da natureza, teoriasalternativas jé eram pos- tas em circulagao para que seus colegas as apreendessem e desenvol- vessem. Abordagens de uma forma matriarcal primeva de organizagio social que precedeu o patriarcado de nossos dias, por exemplo, eram mobilizadas como justificativas para criticas e mudangas nas relagies centre homens e mulheres, ¢ entre homens. Marxismo O incipiente movimento socialista ¢ comunista, que proporcio- nou abordagens evolucionistas para justificar modos alternativos de ‘organizar a sociedade, naquela época também se encontrava em busca de relagées de género contempordneas como sintomas de um sistema econdmico que priorizou a escolha individual em detrimento da co- ‘munidade tomada como algo mais amplo. Em A origem da familia, da propriedade privada e do Estado, por exemplo, Engels (1884) rastreou © surgimento da sociedade de classes para a apropriagio de exceden- tes agricolas por homens, suas tentativas de proteger esse excedente de outros pela forga, ¢ seu controle das mulheres para salvaguardar a heranga de seu actimulo pessoal. O “comunismo primitivo” foi visto no tanto como uma era de ouro primeva ~ embora fosse exatamente isso para muitos autores — como evidéncia de que as coisas poderiam ser diferentes e que poderiam prefigurar algo melhor do que o capita- lismo. Nogées evolucionistas também estiveram presentes em prescri- ‘goes em favor de mudanga, com o marxismo dos partidos socialista e depois social-democrata da Segunda Internacional sendo interpretado como uma abordagem do inevitivel declinio do capitalismo e da gra- dual emergéncia da sociedade sem classes. Freud era simptico as rei- vindicagSes morats dos cocialictas, mas pecsimista quanto ds possbili- dades de mudanga. Esse pessimismo foi intensificado com a ascendén- cia do “marxismo” soviético e com a Terceira Internacional sob Stalin, elegado a uma segunda geracao de psicanalistas radicais na Alemanha ntrodago:Pscanslise e discurso Ibe (como Wilhelm Reich e Erich Fromm), para usar nogées marxistas em sua descrigio da personalidade autoritéria e manter viva a possibilida- de de um marxismo anti-autoritario na esfera da psicologia. Autores ‘marxistas posteriores na tradico estruturalista francesa, como Louis lalthusser na década de 1960, mostraram-se indispostos ante nogoes essencalistas ¢ humanistas, ¢ nessa medida conceitos provenientes da psicanslise, como “o inconsciente’, foram abordados de maneira caute- Josa, suspeitosa, mas tais autores ainda sentiam que Freud havia tatea- do algo verdadeiro acerca da natureza da subjetividade humana, Oinconsciente Anogio de “inconsciente” desde hé muito tem se revelado impor- tante em uma série de abordagens marxistas da represséo em um nivel pessoal como algo que perpassa e perpetua a opressio em um nivel social. Freud elaborou uma descriggo de algo “outro” & experiéncia do dia-a-dia, adquirindo idéias sobre alienagio e falsa consciéncia que jé residiam como postulados subjacentes a politica socialista, reunindo idéias sobre atividade mental criativa & parte da consciéncia imediata que eram prevalecentes na filosofia ¢ na literatura européias (Whyte, 1960). © sentimento de que havia processos cognitivos importantes e determinantes fora do reino da consciéncia remontava a Marx, Engels, Kant, no século XVII, ea outros autores ainda anteriores. A presen- {ade espectos inconscientes de instintos, de emogdes e da imaginagao pode ser rastreada jé até antes de Shakespeare, no século XVI. A patologia como expresso de motivos e desejos inconscientes jé cera central na pesquisa sobre hipnotismo de Charcot e Bernheim, ¢ de seus precursores que realizaram trabalhios em magnetismo, o mais im- pportante sendo o trabalho de Anton Mesmer no final do século XVI, O inconsciente como forga vital da natureza foi apreendido no ini cio do século XIX pelo romancista alemio Jean Paul Richter, na frase evocativa e extraordinsria, “a Africa interna” (citada em Whyte, 1960, p. 192) € captado, tan nial particular. A consciéncia como problema, como camada super- ficial ¢ perigosa de engano, perpassou a obra de Friedrich Nietzsche, Arno terco final do século XIX. Freud deliberadamente evitou a obra én ali, Cony indiciv de uns momento colo- (CaltraPsicanaltca de Nietzsche, em parte em razio da grande semelhanga de conceitos entre os dois autores, e foi com imenso desconforto que descobriu a existéncia de visdes convergentes entre o inconsciente, por ele elabora- do em sua teoria, ¢0 “es no Das Buch von Es, de Groddeck ~ isso para ficarmos em um tinico exemplo. Linguagem ‘A linguagem estava se tornando cada vex mais importante nos esforcos de varios autores, por volta do inicio do século XX, em de- ‘marcar os limites entre processos conscientes e inconscientes. A lin- guagem ja fora central no trabalho de Freud sobre a afasia, e houve ‘uma insistente inquietago com os modos pelos quais alinguagem ora exclui, ora proporciona lugar para a cura ~ a “cura pela fala” (Forrester, 1980). Apés a morte de Freud, um dos debates mais acalorados deu-se em torno do “retorno a Freud” por Jacques Lacan, na Franga, tendo como eixo gravitacional um pér de pernas para o ar a relacio entre inconsciente e linguagem ~ 0 inconsciente como pré-condigao para a linguagem ~; 2 linguagem ento passou a ser vista como pré-condigao para o inconsciente (Archard, 1984). © apelo de Lacan ao estruturalismo, no qual o sistema da lin- ‘guage é visto como cortando a massa amorfa de pensamentos em conceitos discretos passfveis de serem manipulados por vezes obs- curece o recurso, para ele igualmente importante, presente nos es- ctitos de Hegel (1807), no qual “a palavra ¢ o assassino da coisa’. © importante ai é 0 modo como estruturalismo ¢ pés-estruturalismo, como teorias da linguagem, se posicionam ao longo de uma tradicéo fenomenolégica mortificada pelo pensamento do que a linguagem cexclui, em uma tradigao que remonta a um tempo ja bem anterior a Freud. Saussure, 0 pai do estruturalismo ~ cujo filho veio a se tor- nar psicanalista ~ jé em 1907, ems Genebr, nistrava conferenctas sobre a linguagem que mais tarde vieram a ser reconstruidas por seus alunos como o Curso Geral de Lingiistica (Saussure, 1974). A psicandlise ja era, independentemente do trabalho de Saussure € Introduso: Pecaniliseediscurso i ‘muito antes da ascenséo do estruturalismo, uma espécie de semio- ogia, ama “ciéncia dos signos” Sexualidade Pata criticos da psicanélise ¢ muitos de seus entusiastas, todos ‘0s signos conduziam sexualidade. Uma das razbes pelas quais a “digao Standard” das obras de Freud fot produzida em tradugao i lesa (Freud, 1953-1974) afigurou-se como uma resposta e um cor- retivo is abordagens sensacionalistas da psicandlise que estavam apa. recenco nos Estados Unidos. Por volta de 1930, 0 editor do American Journal of Psychology, pot exemplo, declarou seu horror a uma nova Sinvasio” de “temas imigrantes’, que incluiam a psicandlise como uma chocante doutrina de prazer em criancinhas” (Bentley, 1937, p. 464). A sexualidade, na época do surgimento da psicanélise, cer- tamente deve ter assumido a forma de um inoportuno segredo repri- mido no coragio da criatividade e da miséria burguesa, Imagens de criangas eram tanto mais contraditérias do que hoje, pois por mais ‘que as pessoas idealizassem a crianga como inocente, suspeitavam que els estaria tendo conhecimento da sexualidade e sendo culpavel por sua propria “seducao’ Hi um recorrente melindre a assolar de diferentes lados a imagem, cindida da crianga como boa ou mé, ¢ isso se faz evidente também ‘no modo como alguns psicanalistas sentem calafrios ante 0s abusos gue, segundo sentem, eles préprios sancionam em suas abordagens da sexualidade infantil; dai sua atual insisténcia em que a crianga é essen- cialmente inocente (A. Miller, 1985). Fantasias sexuais séo, em diltima anilise, assumidas como residindo no niicleo de cada sujeito moderno, €. psicandlise é apenas um dos convites para se falar sobre o que re side em nosso interior com o intuito de aliviar nossa culpa quanto a0 ‘que pensamos, ou possamos pensar, ou pensamos mesmo sem o saber (Foucault, 1976). A psicandlise ajuda a atrelar a sexualidade & contis- ‘io, mas também abre as possibilidades de liberacdo quando a crianga, ‘assim potencialmente 0 adulto, poderia ser vista como “naturalmen- te” polimorficamente perversa e constitucionalmente bissexual. | altura Psicanalitica Feminismo Mesmo com 0 inconsciente ainda como territério nio-descober- to, a sucumbir palmo a palmo ao mapeamento psicanalitico, Freud ja- mais deixou de se revelar intrigado com a sextalidade feminina, tendo algumas vezes descrito a vida sexual da mulher como “wm continente obscuro”, Sua questao “o que quer uma mulher?” passou a ser cada vez, mais respondida pelas proprias mulheres, e a emergéncia da liberagio feminina e os movimentos feministas introduziram algumas questoes capciosas para a psicandlise. O feminismo preparou o terreno para des- crigoes da sexualidade da mulher e para o destino de sua passagem pelo complexo de Edipo. Deixava de ser um bom negécio rivalizat, como. Karen Horney (1967) tentara fazer, a suposta inveja do pénis da mulher com a “inveja do titero” que assaltaria os homens. As feministas nao esta- ‘vam tao interessadas em construir a sexualidade dos homens como um. espelho da sua propria, Estavam mais interessadas em reconstruir para clas préptias 0 modo como a sexualidade poderia existir fora do ambito da reprodugao e de anseios por uma familia nuclear. feminismo também proporcionou as mulheres um espaco para que pensassem as questoes da sexualidade fora da psicandlise, para entio decidir, por exemplo, se era mesmo o caso de ter Freud como “a mais poderosa forga contra-revoluciondria na ideologia da politi ca sexual” a partir da década de 1930 até a de 1960 (Millett, 1975, p. 178). A hostilidade & psicanélise no movimento feminista atingiu 0 auge durante a década de 1960, ¢ mesmo com as releituras de Freud (por Lacan) defendendo ser a psicandlise ‘ndo uma recomendacéo para uma sociedade patriarcal, mas uma andlise de uma” (Mitchell, 1974: xv), persiste uma compreensfvel suspeita, que se faz tanto mais politizada com a visibilidade da critica lésbica dentro e fora da pritica terapéutica (O'Connor ¢ Ryan, 1993; Maguire, 1995). Romantismo A psicandlise teve parte na obsessio e celebragdo mais ampla da fragmentagao mental e corporal na cultura do século XIX. Essa frag- Introdusio: Pecans discurso Jas entagio continuou até os dias de hoje, ja sob 0 signo do “pés-mo- dernismo’, onde ¢ abordada como algo peculiar 20 final do século XX. Para cada tentativa de restaurar um sentido de integridade e unidade 4 experiéncia, e para toda busca de inocéncia e pureza no coragio do self, hoave uma correspondente atensio & qualidade alquebrada e cat dda da humanidade e da natureza. Nesse sentido, os “neo-romanticos” e “g6ticos” p6s-modernos repetem motivos culturais do século passado, mas jé sem sua profundidade angustiada e sua obscura decadéncia ‘Variedades alemas do romantismo foram particularmente marcadas portals temas desde os escritos do Sturm und Drang do final do século XVII, essa mescla de tormento lacrimoso e melancélico nos impetos e interapéries do mundo sofrido dos poetas foi anunciada e, a partir dai, projetada em cada individuo a época da aparigao da psicandlise. destino da ficcio gética a partir de meados do século XVII tambén reflete um encontro com nogbes protopsicanaliticas e, a partit dai, uma participacao mais completa em nogdes freudianas de subjet vidade e alteridade. O horror gético encapsula uma transigdo histéri- ‘a do maravilhoso para 0 sobrenatural que encontra um paralelo nos encontros freudianos com o romantismo e nas inspiracdes pela morte; hd uma “internalizagao e um reconhecimento progressive de medos como que gerados a partir do self (Jackson, 1981, p. 24). O movimento romintico do qual a psicanélise deve ser tida como co-participante, apesar dos esforcos de Freud em desenvolver uma abordagem cien- tifica da subjetividade como uma alternativa ao vitalismo, foi, dentre foutras coisas, uma prova da tentativa de se aliar um sentido de desi {egragio a um notavel retorno ao organico, & Natureza. Surrealismo © movimento surrealista reuniu muitos temas romanticos, mas também buscou sistematizar a investigacao sobre a mente criativa que reside, pensava-se, sob 2 superficie da cultura burguesa. Havia um duplo movimento contraditério no Surrealismo, procedente de seu Precursor Dadaista, na década de 1920, e passando por seus herdeiros situacionistas na década de 1960, Dada havia revelado o sem-sentido e wl Car Pica aloucura da criatividade inconsciente, ¢o Situacionismo depois veio a se rebelar contra 0 sem-sentido mistificador da “sociedade do espeta- culo” (Plant, 1993). Por um lado, no Surrealismo houve uma tentativa de se perceber 0 desejo espontaneo direto, e aqui o movimento repetiy gestos de desespero e desconfianga no modo como a linguagem tem necessariamente de representar o mundo de maneira equivoca ~ como “o assassino da coisa” ~ em cujo entorno gravitavam a fenomenologia hegeliana e o existencialismo sartriano. O modo como o principio da realidade desvirtua e sabota 0 processo primario ao mesmo tempo em que ajuda o individuo a participar de maneira bem-sucedida na socie- dade foi freqiientemente dirigido aos escritos de Freud, e o problema tornaria a aparecer nas descrigdes por Marcuse (1972) de “dessubli- ‘magio repressiva” sob o capitalismo, por exemplo, ou, em um cenétio pior, na abordagem por Lacan (1977) de um reconhecimento desvirtu- ado no nticleo da identidade em toda a ordem simbélica. Por outro lado, Surrealistas realizaram uma pesquisa detalhada sobre a “escrita automitica” e sonhos a fim de descobrir as vias re- ais para a subjetividade liberada, André Breton, lider do movimento Surrealist, foi um dos primeiros a adotar as idéias de Freud na Franga, € 0 “Segundo Manifesto do Surrealismo’, em 1929, declarou que o cri ticismo freudiano teria sido 0 nico a proporcionar uma base segura para o trabalho do movimento (Rosemont, 1978). Lacan participou do ‘movimento Surrealista em Paris no inicio da década de 1930, e chega- sea atribuir 0 método critico-parandico da pintura de Salvador Dali a uma afinidade com a obra de Lacan (Macey, 1988). Modernidade Diferentes autores de varias tradigbes filoséficas descrevem mu- dangas culturais ao final do século XVIII e inicio do XIX usando uma série de termos, mas todos captam algo da mesma dinémica reflexiva © eutotransformadora, A psicaudlise teu « ser vista como parte da “modernidade” ow da “era moderna’, motivo pelo qual € avaliada nega- tivamente por autores do estruturalismo e pés-estruturalismo frances, ‘como Foucault (1966). Enquanto Descartes ~ separando a mente do Introd: Picanliseediscurso ee ‘corpo€ o racional do irracional ~ é visto como um dos pélos intelectu- ‘is damodernidade, 6a Revolugio Francesa de 1789 que estampa ara ‘ionalidade no coragao de priticas modernas de supervisio e controle. ‘O conceito de “ideologia’, por exemplo, chega a ser visto como a opera- ‘go de idéias falsas que podem ser dispersadas por uma andlise rigoro- tae poruma persuasio politica, eo caréter coercitivo desse esforgo em definice implementar uma verdade sobre a sociedade e os individuos é descrito em hist6rias de Foucault do presente, e em abordagens sobre a ‘emergéncia de novos “regimes de verdade”. O marxismo, por exemplo, proporcionando ilustragao e libertacao, é visto compondo um par com ‘apromessa, por Freud, de que a miséria histérica pode ser aliviada pelo sujeito que olha para dentro, chegando assim realmente a um conhe- cimento de si Freud também é visto como desempenhando um papel crucial ‘em descrigées paralelas, sobretudo por historiadores alemaes, da “flustragao’, embora aqui a avaliagao tenda a ser positiva, com o mar- zxismo também sendo um referencial para a realizagao de algo de va- Jor pela cultura ocidental. Tem-se ai algo que possibilita uma reflexo cnitice sobre o modo como as pessoas, individual e coletivamente, dio sentido e sobre as estruturas sociais que restringem toda liberdade hu: mana, E claro que a psicandlise é uma expressio de crengas no valor do sentido pessoal, do progresso cultural e da racionalidade cientifica, Seessis idéias podem ser escarnecidas como “grandes narrativas” anti- ‘quadas, modernas, ultrapassadas por autores franceses pés-modernos (por exemplo, Lyotard, 1979), elas sio vigorosamente defendidas pela segunda e terceira geracdes da teoria critica alema (Habermas, 1971; Honneth, 1995). A teoria critica apropria-se das idéias de Freud e as transforma na medida mesma em que as radicaliza, embora heja algu ‘mas transformacbes ainda mais radicais protagonizadas por autores franceses que parecem fazer a psicanilise pés-moderna, Narcisiomo HA um prego a ser pago pela existéncia da ilustragao, com cada individuo perdendo a conexio com outras pessoas ¢ com seu proprio 43| CaltraPacanaltia desejo, ao mesmo tempo que adquire a capacidade de refletir critica: mente sobre si mesmo e de avaliar racionalmente diferentes rumos de agbes. Mesmo no ambito da tradigio da teoria critica alemd, a psicand- lise é vista tanto como solugao como parte do problema nesse processo dde maestria sobre a natureza, e separagio dela (Adorno e Horkheimer, 1944), Os impulsos subversivos da psicanslise, refletidos na adogao das idéias de Freud pelo Surrealismo, por exemplo, foram tomados como indo de encontro a ordem estabelecida das coisas pelos “psicélogos do go” anglo-americanos, que nutriam ojeriza pela reifcayio da mentee pela adaptagao da pessoa A sociedade (por exemplo, Hartmann, 1939), Freud trabalhou com a pulverizagao sintomética do capitalismo flores- cente no final do século XIX, quando as doencas da época conhece- ram uma erupgio em desordens histéricas, Psicanalistas posteriores, incluindo os psicélogos do ego americanos, teorizaram esse processo como problemas do desenvolvimento e funcionamento do ego, obser ‘yando um aumento nas desordens narcisicas e de personalidade “bor- derline” (por exemplo, Kernberg, 1975). E novamente, anélises paralelas da doenga na cultura contem- porinea foram elaboradas tanto por autores “pés-modernos” como por outros, “pés-ilustragio” Estes, trabalhando na trilha da obra de Foucault (1976), por um lado contemplarao o fim da psicanélise, uma ‘vez que aquelas préticas modernas de disciplina ¢ confissio que ajuda ram a proporcionar suas condig6es de possibilidade também parecem se dissolver. Uma descrigio bem diferente, ¢ mais pessimista, encon- tra-se, por outro lado, em autores que usam conceitos psicanaliticos para nos auxiliar a entender como a Ilustragao disseminow uma nova “cultura do narcisismo” (Lasch, 1978). O narcisismo é tanto mais como menos a auto-absor¢io que seu nome sugere; ele € obsessivo em sua atencio ao se expensas das relagbes e desesperante em seu sentido de que nada a sua volta pode ser fonte de forga ¢ valor. No lugar di plenitude do crescimento pessoal no alvorecer da psicandlise, somo defrontados com um escancaramento do vazio do self, ¢ isso acontece no momento mesmo em que a psicanallse, mais du que nunce, tem ‘operado uma saturagao da cultura. Embora a psicanalise tenha assumnido seu lugar no centro da cults ra, ela se desenvolveu pelas bordas, ¢ paradoxalmente se fez mais forte roduc: Pscanieedscurso hg como fente de auto-reflexto critica justamente por esse motivo. Viens foram cos prncipas cadinhos da cultura moderna, ¢ um pontofuleral para rellexbes modernists sobre os valores ¢ sobre as incertezas da popa do final do século XIX (Mitchell, 1974), Freud se encontrava fe margens do caleidoscbpio de inovapbes culturas ¢ de movimentos focits, mas seu texto teve um sentido particular, mas uum sentido que the jamais desejou para seu legndo, qual seja, um sentido que o insere fo contexto dessa miscelinea contraditoria, O sentido que a psicand- Hse tem hoje ainda se encontra intimamente atrelado a tal miriade de formas culturai, € mesmo a prética clinica mais rigida encontra-se auelads a coisas que individuos pensam e sentem. Freud comprimit cces temas culturais ainda mais, i medida que os identifiava e explo- fava nas mentes e vidas de seus pacientes. Cada um de seus pacien tes tinka de manejar a tensio entre a auto-absorgao e o envolvimento fem relagbes sociais, cada um deles lutava com o impulso para ser 20 mesmo tempo espontineo e seriamente reflexivo. Cada estudo de caso ostré os tacos de representagdes culturais da sexualidade bem como fs concepgées freudianas da feminilidade, e em cada caso encontra- tos uma tensio entre a cura pela fala e uma consciéncia de coisas que nfo podem ser convertidas em linguagem. Os relatos de Freud sio es- truturados por tentativas de encontrar causa, sentido ¢ possibilidades de mudanca. © contexto cultural satura as tentativas psicanaliticas de descrever e aliviar a miséria histérica e a infelicidade comum. Pré-condig6es econdmicas Formas culturais especificas sem duivida tiveram sua importincia tna moldagem de certas descrigbes e experiéncias da subjetividade ma ‘Buropa e depois nos Estados Unidos no final do século XIX e no infcio do século XX, mas precisamos perseguir ainda um pouco essa revisio de condicoes culturais a fim de abordar o papel de fatores econémicos ‘mais amplos, e 0 modo como esses fatores se fazem exercer nas forgas erelagies de producio. Descrigées do processo civilizatério na cultura ocidental e a producio de uma nova “economia de instintos” (Elias, 1994) ou da individualizagdo da experiéncia em novos modos de con- | fissio (Foucault, 1976) podem entio ser localizadas na tensio entre forcas motrizes historicas de desenvolvimento industrial os varios conjuntos de relagoes sociais entre pessoas que podem atuar ou como propulsoras dessas forgas, ou como obsticulos a elas. Trésfatores apa- recem aqui como de particular importancia IMPORTANCIA F LUGAR A Buropa Central do século XIX cera um lugar em que 0 passo do desenvolvimento econdmico estava acelerado, e era como se 0 préprio tempo estivesse correndo a uma vyelocidade cada vez maior, e onde as pessoas eram arrancadas de loca- lidades geogréficas que até entao Ihes haviam proporcionado razodvel fonte de identidade. O Manifesto Comunista de 1848 descreveu o de- senvolvimento do capitalism como um vértice de mudanga: “Tudo ‘© que é s6lido desmancha no ar” (Marx e Engels, 1848, p. 37). A frase notavel tornou-se emblemética do modo como nossa sensibilidade os- tensivamente “pés-moderna” inaugurou-se no inicio da modernidade capitalista (Berman, 1982). Nogdes de progresso, ¢ a abertura de hori- zontes para o futuro faziam-se passiveis de ser encontradas em um nf- vel societirio e em experiéncias pessoais do passado e de um presente sempre em mutacio, Essa civilizagao foi marcada por uma realizagao tecnoligica e por esperangas no futuro, ao mesmo tempo em que um descontentamento proliferava entre individuos, refletindo sobre as in- certezas de seu proprio desenvolvimento e trajetéria. ‘Tempo e espaco, até entdo estabelecidos e governados pelos deuses, ppassaram a ser rompidos por imperativos de répida fragmentacao e pro- _gtesso: “Todas as relagées fixas, anquilosadas, com seu séquito de anti- gos € veneriiveis preconceitos e opinides, sfo varridas, ¢ todas as recém- formadas se tornam antiquadas antes mesmo de se ossificarem (Marxe Engels, 1848, p. 36). Podemos descobrir cada uma dessas dimensoes de incerteza ~ tempo e espago ~ no modo como a identidade social sob 0 capitalism sofre rupturas ¢ ¢ reconstrufda (Harvey, 1989). A psicanilise ‘expressa esses distirbios em narrativas e locais de identidade, e recons- ‘ti, « partir de fragmentoa de antiges imagens do self, uma nova subje tividade que traz em seu bojo um sentido de ambivaléncia e ansiedade. “Teve-se ai uma espécie subjetividade psicanalitica antes de Freud té-la captado nas livres associagdes e autodescrigdes de seus pacientes. trode: Prcaniis discurso fe ComopipAD E IDENTIDADE No momento mesmo em que a modernidade provoca a ruptura de todas as “relagdes anquilosadas’, ‘a economia de mercado aburguesante parece resolver problemas de jdentidade, voltando sua atenga0 aos objetos que perpassam as rela- gees entre as pessoas, em vez de o fazerem na natureza humana toma da em si mesma. Essa nova economia se constréi em torno da forma da ‘comodidade ~ algo que pode ser separado do labor humano - e tal for- ma setorna o modelo nao s6 para os objetos que um selfhumano pode criar na jornada de trabalho, mas também para 0 tipo de self que se ‘vende asi proprio para outro por certo perfodo de tempo, disso 56 es- capando por um tempo suficiente para que se recupere e se reproduza ‘fim de dar continuidade ao trabalho. Trabalho ¢ lazer encontram-se apartados, e cada self, eparado dos demais. Assim como a dinémica da inovagao posta em jogo pelo capitalismo possui uma face tao excitante quanto ameagadora, 2 mudanga do foco da ateng4o economicamente conduzida da esséncia humana para as relagoes sociais faz-se, a um $6 ‘tempo, itil e mistificadora, ilustradora e obscurecedora. Todo self deve participar da ordem social para sobreviver, mas isso ocorte téo-somen- te sob a condigio de que cada um deles se venda a si préprio perante ‘0s demais. Novamente, todas as incertezas da condigéo pés-moderna revelam-se como estando conosco desde 0 nascimento do moderno, € a selfmoderno esta dividido entre a esperanca de que as coisas possam. mudar para melhor e o medo de que tudo se ponha a perder por uma mndanga acachapante (Frosh, 1991), Por um lado, esse é um clima econdmico em que faz algum senti- do diner, com Marx (1845, p. 423), que a esséncia humana nao ¢ algo previamente dado, sendo, isto sim, “o conjunto das relagoes sociais’, Por outro lado, a circulagdo de mercadorias ~ produtos, quantias em dinheiro e trabathadores ~ confere a seu mundo social a aparéncia de serapenas um mundo de coisas, objetos a serem buscados e vendidos. Pata os seres humanos, isso poe em jogo uma tensio; entre seu estatuto de mercadoria em sistema mecanico de produgio ¢ consumo, por um. Jado, esu9 experiencia de envolvimento criativo & aproveitamento dos frutos daqucle sistema, por outro. Hé um segundo aspecto a compor © enigma da identidade, o qual se encontra no modo como olhamos Para objetos externos como sendo as tinicas coisas reais do mundo, e s| Cua Pricnaitin definimos o selfem relacio a essas coisas. A psicandlise, & claro, move- sena tentativa de localizar a subjetividade em relago aos outros como “objetos’, uma via para o autoconhecimento atendo-se na luta para in- corporar tais objeto sem um sentido do self, ¢ na transferéncia de re~ aco para outros (em psicoterapia psicanalitica). Outros devem entio ser experimentados como separados, mas é tio-s6 mediante relacio ‘com eles que uma separagao saudavel pode ser realizada. INCERTEZA B CARACTERISTICAS DO st MESMO ——_Bsse sistema econdmico insiste em que individuos esto livres para vender sua forga de trabalho para quem quer que ofereca um prego mais alto. & claro que h4 aqui uma medida necesséria de coergao econémica, uma ver que os trabalhadores tém de dedicar seu tempo para outrem em ou- tro lugar a fim de ganhar dinheiro para viver. Contudo, 0 postulado ideoldgico orientador que funda essa relagio de poder entre mestre € escravos-remunerados ¢ 0 de uma firmagao do contrato como que entre individuos soberanos. Dé-se a aparéncia de venda e compra se- rem expressdes de livre escolha. Novamente, a atribuigo de acio a0 individuo, com uma visao da pessoa como capaz de sensa¢io idiossin- critica e reflexao racional, é a um s6 tempo progressiva e reacionétia. Essa imagem do selfé bastante localizada e tardia no estigio da hist6ria hhumana, sendo uma realizagao valida. Ao mesmo tempo, existe uma nogio idealizada de um self independente e autocontido, nio-dividido e unitério sendo aqui produrido, a qual nem sempre é ttl Para cada momento em que o seifse sente seguro, hd um momento de incerteza sobre quais possam ser as fundagies do sel. Para cada his- toria de sucesso do individualismo possessivo, existem tentativas agd- nicas de encontrar 0 que foi perdido, e de definir onde aquele centro intangivel do self pode ser encontrado, O capitalismo entao posiciona quest6es aos que Ihe estio sujeitos, sobre de onde vieram e para onde vido, sobre qual sua natureza em relagio aos outros e sobre como eles podem refletir sobre aqueles problemas na condigao de individuos, € resolvé-los, Essas questoes estruturam 0 modo como as pessoas si0 convidadas a pensar a si préprias, e, embora nao possam ser respont- didas enquanto tais, reiteradamente suscitam enigmas de identidade, 0s quais as pessoas lutam para responder. O capitalismo constréi um node: Pscanilis dscurso is ugar para que as pessoas vivenciem sua angiistia econdmica como um problema psicolégico, no qual olhem para si mesmas como se fossem ‘las a causa de doengas sociais. ‘Oesforco psicanalitico & uma redugao quintessencial de fendme- nos econdmicos piblicos para o espaco privado da mente individual, Qs espititos do capitalismo sio redescobertos ver. por outra nas ex- ‘entricidades da psique humana, e a angéstia pessoal na maior parte das descrigdes de psicopatologias tende a ser vista mais como causa do que como efeito de alienagao, co-modificagéo e reificagso (Patker et al, 1995). A psicandlise reflete, comprime e reduz, fendmenos sociais ao nivel do individuo. Freud Ié processos culturais de destocamento e fragmentas3o nos textos de queixas de seus pacientes sobre relagdes familiares e sexuais e buscava suas fontes em um nivel mais profundo, ‘Ao mesmo tempo, na comunidade analitica paira sempre uma suspei- ta de que os aspectos essenciais da vida psiquica inconsciente sto na yerdade fenémenos coletivos simbélicos (Jacoby, 1977; Samuels, 1993; Wolfenstein, 1993), Este livto é parte de uma tentativa interna e exter nia i psicandlise de fundar a abordagem do inconsciente e da cura pela fala por Freud na cultura e de entender como essa abordagem assenta suas raizes. O exame de conceitos no discurso psicanalitico em cada ‘um dos capitulos e a andlise de fendmenos culturais que sao estrutu- rados por esse discurso devem ajudar-nos a compreender por que a psicanilise deve ser levada a sério ¢ por que ela parece verdadeira a tantos de nés neste um século apés ter se iniciado. Primeira Parte TEORIAS DE RELAGOES DE OBJETO: SELF E SOCIEDADE Sim, “normais" que sao excéntricos, infelizes € mal-ajustados também necessitam terapia. Suas necessidades com o tempo serdo reconhecidas, ja que so realmente as necessidades de toda a nossa ivilizagéo, de modo que a psicoterapia de grupo ‘com esses “normais” na verdade é importante para toda a nossa estrutura social. J. W.Klapman (1948, p. 23) Group Psychotherapy: ‘Theory and Practice A\ teotia clinica psicanalitica no mundo de lingua inglesa foi intensamente influenciada por conceitos in- troduzidos bastante tardiamente por Freud em seus escritos. Um exemplo importante se tem na afirmacao de que 0 préprio ego pode ser “cindido” por um trauma psiquico, e que isso permitiria um v6o da realidade que poderia ocorrer em pacientes que de outro modo no seriam tidos como psicdticos (Freud, 1940b). Esse tipo de de- fesa foi antecipado por Freud (1923a) em sua descrigao de “nega gio” — em que h4 uma recusa e uma incapacidade de perceber algo traumitico — posteriormente em sua abordagem do “fetichismo” = na qual a auséncia de um pénis em um corpo de mulher é sentida como traumética, sendo, dese modo, negada (Freud, 1927a). Essa ‘modificaggo do modelo estrutural (de id, eyo e superego) ex psi- canilise Veio dar sustentagao & idéia de que o ego, como aparelho interno de auto-representagao, poderia ser fragmentado, e que esse tipo de distribuicdo psicética de “identidade” pode manter, na vida 56 CaltuzaPsicanalitica adulta, investimentos em toda uma variedade de diferentes objetos da tenra infancia. Tendeu-sea ver o texto de Freud como se estivesse sempre em um curso de desenvolvimento légico rumo a uma versio de “estado final” ‘um aparelho teérico sistematico no qual a descrigao dos conflitos edi- picos, do narcisismo e da pulsdo de morte poderiam encaixar-se com preciséo. E claro que, no curso do processo, a ambigiiidade e o carter de “tentativa e erro” da especulagio psicanalitica, presentes no origi- nal alemo, se fizeram comprimir em especificagdes técnicas precisas de normalidade e anormalidade em diferentes idades e estigios. Para psicanalistas da Gra-Bretanha e dos Estados Unidos, uma vantagem de se ver Freud dessa maneira estava em que ela sustentava suas preten- ses de um comprometimento com um estudo € com um tratamento da mente propriamente cientifico. A tradugio autorizada da Standard Edition, que distorceu os escritos de Freud para mais facilmente os adaptar a forma de um discurso natural-cientifico e médico, reforgou essa versao de “estado final” da teoria. A “teoria de relagdes de objeto’, um dos termos para essa ver- tente de trabalho intelectual, idealizon abordagens de comporta- mento individual ¢ de grupo que trilhavam a via segura e con= fortavel do humanismo burgués e do empirismo: do humanismo burgués porque uma versio da psicandlise teria sido forjada ali a partir de uma preocupagio com o equilibrio de percepgoes e pre- feréncias no seio do seif no contexto de uma divisio, tomada como “ponto pacifico’, entre individuo e sociedade; do empirismo, por- {que sua atengao aos conflitos percebidos no interior do sujeito foi tida como passivel de ser estudada mediante observacoes diretas do comportamento infantil. A elaboragao de modelos de mecanismos cognitivos inter- nos juntamente com uma observacio detalhada de criancas nos Estados Unidos (por exemplo, Stern, 1985) e na Gra-Bretanha (por exemplo, Miller et al., 1989) tem ajudado as relacdes de objeto em psicanalise mais atraentes para psicélogos anglo-americanos que durante muito tempo aliaram a uma preocupacao empirista com aspectos que podem efetivamente ser vistos como uma tentativa de mapear algo dentro da cabega que possa explicar 0 comporte: primeira Parte Tern de elages de objets scedae |s7 mento humano. F preciso dizer que a tradigao das relagdes de ob- / jeto também deve estar envolvida com o desenvolvimento moral coma defesa da ética em um mundo hostil, e quanto a isso essa mesma tradicao insistiu em pensar algumas preocupagoes do hu- mmanisno burgués, tais como a manutengao do self contra relagoes, fopressivas no mundo social e sua elaboracao com outras partes de \ uma comunidade. Mr nd wma teoria unica de “relagbes de objeto ¢ além das diferencas no aprender das abordagens de relagdes de objeto em diferentes paises (incluindo a tradugao das teorias para o frances, para o portugués ¢ para o espanhol, por exemplo), ha discordan- cias dentro da comunidade psicanalitica quanto aos tebricos que devem ser inclufdos. Alguns autores americanos comprazem-se em reunir Melanie Klein e Donald Winnicott, da Gra-Bretanha, com Margaret Mahler ¢ Harry Stack Sullivan como professando as mes- ‘mas relagdes de objeto (por exemplo, Greenberg ¢ Mitchell, 1983), porgue esses autores mantém seu foco na relacéo da crianga com pbjetos” (isto é, outras pessoas ou partes de pessoas). Hé quem yeja Klein como estando por demais preocupada com processos in- ternos de cisio que operam independentemente de relagées com objetos parentais que para cla sejam considerados como um teori- tador adequado de relagdes de objeto (por exemplo, Frosh, 1987), ecertamente ha algo de mais cruel ¢ irremediavelmente destrutivo relacionado ao tema de Klein, algo que nao ha de satisfazer quem quer cue esteja preocupado com uma visio otimista e humanista da pessoa, Nio obstante, a psicanilise de Klein desenvolveu-se lado a lado eem tensio com os escritos de tedricos de relagoes de objeto, estendendo-se até 0 ponto de viragem de algumas especulagoes sobre a experiéncia infantil que encontramos nos trabalhos de Winnicott e Wilfted Bion. O campo teérico de relagdes de objeto € ele proprio fragmentado, mas podemos rastrear alguns temas comuns « Winnicott, Bion c Klein encontrar representagées do self por esses analistas em seus transitos pelo ambito mais amplo @acultura, Em primeiro lugar hé uma preocupacao com a estru- ura -como matriz interna e externa de relag6es com Ancoras, ela s8| Cake Pcie contém e sustenta 0 ego em desenvolvimento ~ ¢ encontramos essa ampliagdo de maneira mais proficua nos esctitos de Bion, em sua abordagem de grupos e “agrupamentos” da natureza hu- ‘mana. Bion foi uma influéncia kleiniana de carter crucial para 0 desenvolvimento da psicoterapia de grupo psicanalitica na Gri. Bretanha, e veremos, no capitulo 1, que a nogéo de continente e a tensio entre o lider € 0 grupo desempenharam um papel im- portante na apreensao ¢ na transformagao dos escritos de Freud sobre a “psicologia das massas”. Bion também descreve imagens de estado mental ¢ continéncia que encontramos em discursos e praticas institucionais. Em segundo lugar, hé uma atengao voltada 0s modos pelos quais os sistemas de crengas funcionam para a manutengao das estruturas, ¢ ao papel da ctenga como um espago de pensamento positivo, potencial, “transicional” para o pensa- mento bem como para um sistema que trancafia as pessoas em re~ petidos padroes individuais e grupais, e essa questio é explorada no trabalho de Winnicott. Aqui se tem uma tensao entre 0 modo como esses processos podem ser entendidos ¢ reproduzidos como formas de patologia ou compreendidos e sustentados como ativi- dade e fortalecimeno do self. A crianga winnicottiana também a um s6 tempo concebida como local ¢ como fonte de cuidados, e, conforme demonstrard 0 capitulo 2, nossos discursos sobre ca- ridade encontram-se atrelados a alguns dos temas que Winnicott delineia e celebra. Em terceiro lugar, hé uma anélise da estrutura ¢ da crenga como formas de acio. As estruturas de mentalidade de grupo descritas por Bion, por exemplo, ¢ 0s espagos transicionais des- critos por Winnicott, nao sao estéticos, mas esto em constante mutacao, constituindo-se em locais de conflito e desenvolvimen- to. Klein neles introduz um impulso energético particular, no qual 05 instintos puxam ¢ repuxam para dentro ¢ para fora, dila- ceram, retorcem 0 ego e seus objetos em muitas diregdes contra- ditéries de uma 96 vez. A obra Klciniana, cntao, tem a atividede da explicagao em tensio com uma tentativa de evitar que cet tos processos saiam do controle, Certamente aqui a continéncia opera na inferéncia de diferentes linhas de forga, de modo que Dest Ter dens bets scat Iss pi uma atencio particular voltada & violéncia ~ interna, exter- pa, interpessoal e social. A crianga Kleiniana esta em guerra, € encontraremos, no capitulo 3, 0 self kleiniano ¢ as imagens da sociedade por ele projetadas inscritas nos textos de guerra em formas de discurso psicanalitico. 1 GRUPOS, IDENTIDADE E FORMAS, DE CONHECIMENTO Entre as caracteristicas especiais de rmultidoes, ha diversas ~ como impulsividade, irritabilidade, incapacidade de raciocinar, auséncia de juizo e es- irito critico, exagero de entimentos ¢ outras - que flo quuase sempre observadas em seres pertencentes 4 formas inferiores de evolugio - em mulheres, selvagens e criangas, por exemplo, Gustave Le Bon (1896, p. 36) The Crowd: A Study of the Popular Mind Somos todos membros de grupos = de mul- 10s grupos. Nossa identidade se constréi a partir de nosso envolvimen- {o, voluntario ou nao, com grupos que nos impulsionam, simultane- amente, em diferentes direOes. A estrutura desses grupos constitui nosso sentido de self e teorias psicanaliticas de identidade de grupo podem nos ajudar a entender esse niicleo de “psicologia social’, A ‘maior parte da psicologia social acadlémica se ocupa com 0 que faze- ‘mos em grupo, mas suas categorias sao insuficientes para compreen- der nossa experiéncia de ser parte de uma massa mais ampla (Turner etal, 1987). Uma abordagem psicanalitica efetivamente desconstréi [posigies tradicionais em psicologia social como uma disciplina aca Adémica; entre grupos primérios (onde nos relacionamos frente a fren- te com os outros membros) e secundérios (onde nos relacionamos apenas indiretamente, quando muito), e entre grupos de referéncia {os que huscam orientagao) ¢ grupos de associadas (aqueles em que simplesmente acontece de sermos participantes). Para a psicanzlise, 08 aspectos substitutivos e fantésticos de vivenciar outros em grupos Drimérios atuam téo poderosamente quanto nos grupos secundérios, ¢ @ (Caltura Psicanaliticg a deferéncia, a um s6 tempo incémoda e irresistivel, que sentimos em relagio a nossos grupos de referencia, opera tao poderosamente em re- lagao aos grupos de pessoas que desejamos evitar como em relagao aog de pessoas que escolhemos, Freud, ¢ a psicandlise de um modo geral, vé todas as percepgdes como mediadas por representacoes de relagoes, € essas representagbes constroem categorias de geupo como as formas mais profundamente centripetas de relagdes com que nos deparamos, ‘Um grupo secundatio é sempre, antes de mais nada, um grupo prima. rio, e um grupo de associados & sempre, antes de mais, um grupo de referéncia, No seio da estrutura do grupo esté a familia, ¢ aquela unidade social determina o desenvolvimento de outros tipos de grupo. Em so- ciedades ocidentais, tal familia ¢ 0 mais das vezes a forma de familia nuclear dominante, e o grupo de referéncia imaginério que esti em ado ali conterd representac6es do pai trabalhador, da mae em casa e dos irmaos ¢ irmas que emulam e duplicam os atributos e poderes de seus pais. Essa constelagdo de objetos nos cerca em nosso préprio lar se tivermos uma familia desse tipo, ¢ na midia, quer vivamos de fato, ‘ou no, em um lar com tais caracteristicas. E essa constelagio de repre: sentages emocionalmente carregadas que organiza nossas percepbes de outros. Dizer que essa é a forma familiar dominante nfo equivalea dizer que € a mais disseminada Gittins, 1993). Ela é dominante como ‘uma imagem, e essa imagem estrutura nossas percepgdes de nossos grupos familiares “incompletos” ou “quebrados’. As relacées no aml to da familia sfo construidas como se a familia fosse, ou pudesse ser ou devesse ser, uma estrutura nuclear, Aquela estrutura esta entio jé sempre lé, em grupos secundarios, mesmo que jamais a tenhamos vie venciado diretamente em um grupo primério quando criangas, e esté sempre li como ponto de referéncia, ainda que jamais tivermos sido membros de uma familia Formas de uma estrutura de grupo operam mediante uma série de arenas sociais desde as salas de aula, na escola, pasando por grupos de trabalho, até festas e multidées, ¢ Frend (1991) procurou mostrar que os padroes de ado em organizagbes formais como Igrejas e exérci- tos também poderiam, uma ver desenvolvido um “entendimento” das lagos libidinais inconscientes envolvidos, langar luz. a outras formas |: npos ental eformasdeconheczeato | temente cadticas de agdo de massa. A compreensio “psicana- Htca no entanto, também recria uma estrutura de grupo quanto & profndicade e encrgia, precisamos ter em mente que essa é uma Juz poderosamente artificial Essa concepeio psicanalitica das coisas semente pode limitar o que gostariamos de pensar como nossa atvidade live e espontanea em grupos, mas grupos jamais sio simples ‘contenedores de pessoas pululando aqui e ali. Fingir que nao ha estru- turaem funcionamento pode redundar em distribuir o poder e condu- sir a uma “tirania da estruturalidade” na qual aqueles que controlam fo grupo fiwzem-no muito secretamente e sem contestagao (Freeman, 1970). Estcutura sempre hé, ¢ ela inclu a estrutura de grupos familia- res imagindrios. ‘Atcoria psicanalitica de grupos alterou-se no curso dos anos, pas- sando de uma abordagem de comportamento de massa desorganizado, comportamento este compreendido como amparado por estruturas inyisiveis e poderosas (Freud, 1921), para estudos de insttuig6es pre hes de regras e estritamente organizadas contendo desejos cadticos ¢ inconscientes (Trist e Murray, 1990). Se considerarmos como isso mu- dou e situarmas essas abordagens em um contexto cultural, podemos também situar a psicologia social como disciplina que reiteradamente se arvora a compreender grupos, mas continuamente falha em com- preendé-los. © desenvolvimento da teoria psicanalitica pode aju- dar-nos a compreender um intrigante paradoxo em psicologia social. A psicologia de grupo inadvertidamente reproduz, na forma por ela assumida em psicologia social européia, representagées ideol6gicas de Individuaiidade, das coisas que o individuo pode conhecer e de como ele as pode conhecer. Podemos utilizar a teoria psicanalitica para ex- plorar ansiedades sobre distingSes disciplinares entre psicologia so- ial e campos e relacdes vizinhas nessas instituigBes que tém ajudado Acondicionar esses problemas conceituais na disciplina. Iniciaremos, entio, com a formalizagio, por Freud, do caos aparente antes de passar Ayisualizar a fantasia, ea atuar sobre ela em organizagées formais, bem como sobre o modo como conhecimento e identidade s&o fabricados e destruidos em grupos, em representacSes de grupos na cinematogra- fia, para por fim fazé-lo em representagées de relagdes em instituigdes académicas, | Cataract FREUD, 0 PAI, EO LIDER ‘A Psicologia dos grupos e andtise do ego (1921) de Freud inclu um debate sobre amplas aglomeragdes de pessoas. Ha problemas com a trax ducéo direta da palavra alema de Freud “Massenpsychologie” em “psi- cologia de grupos’, pois os fenémenos pelos quais ele se interessa aqui de forma alguma se fizeram restritos a pequenos grupos organizados, como sugere o titulo em inglés (Bettelheim, 1983). 0 termo “psicologia ddas massas” jé € um pouco melhor, uma vez que dé conta do comporta. ‘mento da multidao, mas ainda assim é 0 caso de se levar em conta que Freud também incluiu grupos organizados em sua abordagem. A Igreja crista ¢ 0 exército sao dois exemplos de peso abordados pelo autor, que também faz referéncias a racas, nagbes, castas, profissbes e insttuigdes (Freud, 1921, p. 96). Freud discute uma série de comportamentos de ‘massa, organizados ou nao, e declarou que o objetivo de seu livro estar na compreensio da vida mental de uma pessoa, na qual “alguém mais ‘encontra-se invariavelmente envolvido” (Ibid, p. 95). ig (1976) indica a existéncia de trés niveis de explanacéo nos es- critos de Freud: processos individuais, nos quais Freud descreve 0 con- flito como derivando do entrechoque de impulsos; processos interpes- soais, vistos como sendio a causa em que se enratzam:; e 0 processo soctal propriamente dito, no qual fatores culturais ¢ sociais e propriedades de grupos sao estudados, Muito embora Freud eventualmente rediiza even: tos.ao biol6gico,e dessa mancira a um nivel individual, em Psicologia das ‘massas ¢ andlise do ego ele desfere ataques flagrantes a essas tentativas, No entanto, no obtém éxito algum em produzir uma abordagem cunho completamente social, j4 que os trés tipos de explanagao por ele ‘considerados ainda se restringem a instintos, desenvolvimento ¢ evolt- fo, Cada um desses explananda veio a imbuir o modo como as pessoas na cultura ocidental pensam suas relagdes com outros em grupos Instintos As variedades ais simples de explicagdo em psicologia académi «popular, € uma variedade em que toda explanacéo mais aprofui 1. Grupos identidadee formas de conhecimento

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