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Psicologia e sua ideologia: 40 anos de compromisso com as elites* Ana Mercés Bahia Bock’* Compromisso social da Psicologia é um tema bastante importante e tem estado em voga nos congtessos e nas reflexGes criticas no campo da Psicologia. A [Mostra Nacional de Praticas em Psicologia: Psicologia e Com- promisso Social, de iniciativa do Conselho Federal de Psicologia, realizada em 2000, em Sao Paulo, apresentou uma determinada concepcao de com- promisso social da Psicologia. Foram milhares de trabalhos que se inse- riam na tematica porque se constitufam como experiéncias de servicos pres- tados a camadas sociais que tradicionalmente nao tém tido acesso ao traba- Iho do psicdlogo; ou ainda porque inovavam instrumentos de trabalho, es- * Versio adaptada e revista de intervencdo em mesa-redonda apresentada no I Congresso Brasileiro Psicologia: Ciencia e Profissao, setembro 2002, Sao, Paulo, SP. * Psicdloga, Professora Titular do departamento de Psicologia Social PUCSP; Pesquisadors do Niicleo “Adolescente: concepces ¢ questdes emergentes” do Programa de Pos-Graduagio em __ Psicologia Socal PUCSP. ancbock@zaz.combr 6 ANAM. B,BOCK capando de perspectivas “psicologizantes”, em favor de perspectivas mais sociais; ou ainda porque eram experiéncias interdisciplinares. Sempre se apresentavam como trabalhos mais “sociais”, incluido nesse termo qual- quer um dos aspectos anteriormente citados. A I Mostra de Praticas em Psicologia marcou assim um novo compromisso dos psicélogos e da Psico- logia com a sociedade brasileira, mas nao inaugurou 0 compromisso da Psicologia com a sociedade. Explicando melhor: a Psicologia sempre esteve vinculada a sociedade brasileira e sempre respondeu a demandas sociais, portanto, manteve em toda sua existéncia um determinado compromisso com a sociedade. Mas qual compromisso? Eis ai a questo. Nao se pode permitir que 0 entusiasmo com 0 compromisso social que a Psicologia esta construindo com a sociedade brasileira oculte a hists- tia de um compromisso com os interesses das elites no Brasil. E preciso retomar essa historia para superd-la definitivamente. Esse ¢ 0 objetivo des- ta reflexao. Uma historia de compromisso com as elites ‘A tradicao da Psicologia, no Brasil, tem sido marcada pelo compro- misso com os interesses das elites e tem se constituido como uma ciéncia ¢ uma profissdo para o controle, a categorizacdo e a diferenciacdo. Poucas tém sido as contribuicées da Psicologia para a transformagao das condi- Ses de vida, tao desiguais em nosso pais. Se tomarmos a hist6ria da psicologia no Brasil, de acordo com estudos de Massimi (1990), Antunes (1991) e Antunes (1999), vamos ver queas idéias psicoldgicas produzidas e, posteriormente, as teorias responderam clara- mente a interesses das elites de controlar, higienizar, diferenciar e categorizar, interesses esses necessdrios 4 manutencao ou incremento do lucro e repro- dugao do capital. A colonizagao do Brasil, por Portugal, foi caracterizada fundamental- mente pela exploracdo, o que exigiu a construcdo de um forte aparelho re- pressivo. A Metrépole necessitava dominar e controlar os indigenas que viviam na Colénia, para que, doceis, permitissem e colaborassem na explo- ragdo da terra conquistada. Nesse periodo, as idéias psicol6gicas produzi- das, por representantes da Igreja ou intelectuais organicos do sistema por- tugues,-tiveram a marca do controle. Sao estudos que versam sobre as c2- racteristicas dos indigenas e as formas mais eficientes de controla-los: 0 3 NPD ite SEARS ISS Cea aR PSICOLOGIAE COMPROMISSO SOCIAL controle das mulheres e das criangas foi também objeto de estudo e de preo- cupagao. Estes estudos so considerados pertencentes ao campo da Psico- logia, por tratarem de comportamentos e de aoe toe morals que guiavam as condutas e as agdes da populacao que aqui vivia. No século XIX, o Brasil deixa de ser Col6nia e transforma-se em Impé- rio. As idéias psicolégicas vao ser produzidas principalmente no ambito da medicina e da educacio e responderam a outros interesses: 4 higienizacao da sociedade. Coma vinda da Corte portuguesa para o Brasil, surgiu uma demanda de servicos, até entao inexistentes, como a educacao nos seus diversos ni- veis, inclusive superior; e o século XIX assistiu a abertura de escolas que se tornaram referéncia no Brasil, como 0 colégio Pedro II, a Escola Normal em Niter6i e em Sao Paulo e o Pedagogium no Rio de Janeiro. Além disso, a vinda da Corte proporcionou um desenvolvimento rapido da cidade do Rio de Janeiro que, sem qualquer infra-estrutura para suportar esse desen- volvimento, se viu as voltas com doengas, miséria, prostituicdo e loucura. O século XIX assistiu, assim, ao desenvolvimento, no pais, das idéias de saneamento e higienizacao das cidades, higienizacio que sera entendida como material e moral. Estas idéias eram herdadas do pensamento euro- peu, mas encontraram no Brasil um terreno fértil. Buscava-se uma socieda- de livre da desordem e dos desvios. A educagio esteve marcada por praticas autoritdrias e disciplinares; a medicina, pela criagdo de hospicios como asilos higi8nicos e de tratamento moral (em 1842 é inaugurado no Rio de Janeiro o hospicio Pedro II; em 1852, em Sao Paulo, o Asilo Provis6rio de Alienados da cidade de Sao Paulo). A sociedade esteve dominada pela ideologia da ordem e da higienizacao. As idéias psicolégicas produzidas nesse periodo puderam colaborar significativamente no trabalho da educacao e da medicina, na busca da higienizagao moral da sociedade brasileira. A educa¢ao, marcada pela bus- ca do controle de impulsos considerados inadequados nas criangas, carac- terizou-se por praticas disciplinares e moralistas. Carregada de racionali- dade e de controle, a educagao buscou desenraizar o mal que caracterizava a natureza infantil. As idéias no ambito da medicina falavam da degeneres- céncia das racas e da imoralidade que isso acarretava na sociedade. Os pro- blemas sociais eram lidos a partir dessas perspectivas e a higienizaci cial almejada era obtida, se nao pela educacio, pela reclusao dos “imorais” em asilos higiénicos. e ANAM. 8. BOCK As idéias psicolégicas falam da moral como caracteristica natural do homem, que a perde quando se degenera. A moralidade naturalizada fala- va de valores que eram dominantes na sociedade européia e que corres- pondiam a moral dos grupos dominantes. Bram valores distantes das pos sibilidades das camadas trabalhadoras e escravas da sociedade brasileira. Associava-se com facilidade a imoralidade & pobreza e 4 negritude. No entanto, essa associago ficava ocultada pelo discurso naturalizante e ser- via as teorias da degenerescéncia das racas. © final do século XIX trouxe a Repiiblica; e 0 século XX, a riqueza cafeeira ¢ o desenvolvimento do pélo econémico no Sudeste. A Psicologia adquiria o estatuto de ciéncia auténoma na Europa e, em seguida, nos Esta- dos Unidos. Na educacdo, o pensamento esteve marcado pelo movimento da Es- cola Nova, que colocou 0 individuo como eixo de sua construcao ¢ deu énfase a preocupacao cientificista, transformando as escolas em verdadei- ros laboratorios. A Escola Nova valorizou a infancia e trabalhou para preservé-la, Essa nova perspectiva aboliu os castigos ¢ a vigilancia discipli- nar, substituindo-a pela vigilancia psicolégica. Na busca de preservar a crianca que cada um possufa dentro de si. acompanhar 0 desenvolvi- mento sem interferir muito em seu curso natural, a Escola Nova demandou conhecimentos da Psicologia do Desenvolvimento. Assistimos entao ao sur- gimento de muitas teorias do desenvolvimento que vio embasar 0 traba- Tho pedagégico. As idéias psicologicas foram também associadas a administragao € a gestao do trabalho, baseadas no pensamento taylorista. A industrializacao no Brasil fez novas exigéncias a Psicologia que, com a sua experiéncia da Psicologia aplicada a educacao, pode colaborar significativamente com um conhecimento que possibilitou a diferenciacao entre as pessoas, para a for- magao de grupos mais homogéneos nas escolas e a selecdo de trabalhado- Tes adequados para a empresa. As guerras trouxeram o desenvolvimento dos testes psicolgicos, ins- trumentos estes que viabilizaram essa pratica diferenciadora e categoriza- dora da Psicologia. Foi com esse lugar social que 2 Psicologia se institucio- nalizou no Brasil, sendo reconhecida em 1962 como prot : Esta pequena retrospectiva mostra que a Psicologia esteve compro- metida com os interesses das elites brasileiras, ora para o controle, ora para PSICOLOGIAE COMPROMISSOSOCAL 1” higienizar e ora para diferenciar e categorizar. Foi com essa tradigao que a Psicologia se tornou profissao reconhecida, no Brasil, em 1962, Passados 40 anos, vale a pena refletir sobre a insergao que teve, neste periodo, na socie- dade brasileira. Os 40 anos de profissio regulamentada ‘Uma profisso que, durante seus 40 anos de vida, serviu As elites, sen- doum servico de dificil acesso aos que tém pequeno poder aquisitivo. Uma profissao com pouca inser¢ao social, baixo poder organizativo, com entida- des frdgeis com pequeno poder de pressdo e que negociou pouco com o Estado suas demarcacées e possibilidades de contribuicao social. ‘A pesquisa realizada pelo Conselho Regional de Psicologia de Sao Paulo (1995), junto & categoria dos psicdlogos, mostrou que, dos inscritos no CRP, 75,2% atuavam na profissao; 17,7% desistiram de exercer € 71% nao chegaram a exercer. Dos que atuavam na profissao, 54,7% estavam na Area clinica/satide; 17,86%, na educacao; 13,05%, em trabalho; 5,48%, em social; 859%, em outras areas (incluindo psicologia juridica, esporte, tran- sito) e 0,35% nao respondeu. Trabalhavam em consultério particular 41,15%, atuavam em hospital 12,31%, em unidades basicas de satide 3%, em ambu- latérios de satide mental 4%. Em instituicGes particulares trabalhavam 63,04% e no servico ptiblico 23,48%. Trabalhavam de 1 a 20 horas semanais 57%; recebiam até 10 saldrios minimos 59%. Estes dados mostram que, apesar de termos um indice alto de psicélo- gos na area da satide, poucos estdo em instituigdes. Ainda temos muitos psicélogos atuando em consult6rios particulares, como auténomos. Isto sig- nifica que o trabalho do psicdlogo nao esté ao alcance de quem precisa dele, pois os trabalhos em consultérios sao caros e, portanto, inacessiveis 4 po- pulacdo pobre do pais. A insercao do psicdlogo na sociedade ainda é pe- guena, dado seu potencial humano e técnico. ‘ Outro elemento nos ajuda a avaliar a inser¢ao social da Psicologia. A Psicologia como profissao ainda é fragil, pois ela da respostas pouco desen- Volvidas, que atendem as diferentes demandas com respostas genéricas. Ana Maria Carvalho (1988) debateu, a partir dos dados da pesquisa intitulada Quem é o psicélogo brasileiro, como as atividades dos psicdloges Sram pouco diversificadas. Dizia ela: B.B0CK o ANAM: (...) a atuago dos psicélogos se caracteriza como pouco diversificada, etende a se tornar ainda mais restrita no decorter da carreira individual. Este ultimo ‘ato pode estar indicando, por um lado, que hia uma tendénda a especializaco do profissional em tomo de uma ou pouces atividades que concentram sua prefe- réncia, ou séo mais valorizadas por qualquer motivo (..) (1988; 219) (..) omime- ro de atividades citadas por mais de 30% dos respondentes varia muito pouco ao longo desse periodo: 5 7 atividades (...) aplicacio de testes, psicodiagndstico e Aconselhamento psicol6gico estao entre as mais citadas... (1988: 221) .. Nesse sentido, 0 que define uma atuacio abrangente é 0 quanto essa atuacio reflete o potencial da utilidade e de contribuicao da profissao a sociedade. Se supuser- mos que a lista de atividades apresentada descreve, pelo menos parcialmente, a contribuicao potencial da Psicologia a sociedade, a limitacao dessa atuacio, caracterizada pelo pequeno ntimero de atividades desenvolvidas por uma proporsio expressiva dos psicélogos, significa que a profissao esté longe de apresentar uma atuagio abrangente. Por outro lado, é preciso reconhecer que ha sinais, embora ainda numericamente inexpressivos, de uma tendéncia diversificacéo da atuacdo; se esta tendéncia representaré um avanco efetivo da profissao, e um ganho para a sociedade, depende de muitos fatores que estao fora do ambito desta analise, inclusive, e talvez principalmente, de qua- lidade da atuacao— um aspecto que nao podemos nos permitir esquecer em nossas reflexes € preocupaydes com a expansio da profissdo, (1988: 235) Esta contribuigao de Carvalho nos permite perceber os sinais da fragi- * lidade da profissao e de sua pequena institucionalizacio. Qs dados mos- tram que ainda estamos longe de atingir nosso sonho de colocar a Psicolo- gia a servico de quem dela necessita, A Psicologia se instituiu assim em nossa sociedade moderna como uma ciéncia e uma profiss4o conservadoras que nao constroem nem deba- tem um projeto de transformacao social. Aqui, cabe um Paréntese para ana- lisarmos esta questao. A Psicologia se afastou da tarefa de construcao de um projeto social principalmente por ter adotado uma Perspectiva natura- lizante de homem e de seu desenvolvimento psiquico. As teorias desenvol vidas tomaram o psiquismo como algo natural que tinha percurso certo. O trajeto do desenvolvimento psiquico estava dado pela natureza humana. Essa concepgio afastou as teorias das preocupagées sociais e nao & xigiu, dos psicélogos, um posicionamento, no sentido de adocdo de um projeto de sociedade e de homem. Mas nao se pode esquecer que fazem parte da historia as tendéncias progressistas minoritdrias na profissdo e na ciéncia, As forcas progressistas acompanharam todo esse desenvolvimento e vao obter vitorias apenas no ae: iia an tion inrmanaromr weer 5100.0GIAE COMPROMISSO SOCIAL decorrer dos anos 70, com a criacdo da area da Psicologia eee Nao pretendemos, aqui, fazer um balanco desse periodo, mas apenas ap tar que a Psicologia Comunitaria significou um avan¢o ae ae a Psicologia olhasse a realidade social como um principio 2 construc: fe ciéncia e da profissao, A partir dai se desenvolveu esta visao que Se trans formou em forgas progressistas na satide ptiblica, nos anos 80, e posierior- mente em outros setores — educaciio, assisténcia social, trabalho. Cabe ressaltar também que, nestes 40 anos, a Psicologia se tornou uma profissdo feminina. Como analisou Fulvia Rosemberg (1984), nos anos 80, a generalidade da area que permitia uma adaptagao ao mercado de trabalho, a possibilidade de conciliar 0 trabalho doméstico, a maternidade e o traba- Iho profissional (pelo cardter assistencial e pela possibilidade de adaptar seus hordrios de trabalho) levavam a Psicologia, no Brasil, a se constituir como uma profisséo feminina. Essa caracteristica deve também ser consi- derada para que possamos compreender a timidez e a acomodacio sociais da Psicologia, dada a pouca histéria de luta das mulheres em nossa socie- dade, até esse periodo. Silvia Leser analisou nos anos 70 (Mello, 1975) a profissdo em Sao Paulo, mostrando seu cardter elitista e sua falta de insercao social. Com essa tradigao, comemoramos, em 2002, os 40 anos da profissdo. Para ampliarmos nossa reflexdo, consideramos importante enrique- cer os elementos analisados com alguns aspectos ideolégicos que acompa- nham nossa profissio. Alguns elementos ideoldgicos da profissao Algumas idéias sobre o trabalho profissional foram desenvolvidas no decorrer dos anos de experiéncia institucionalizada da Psicologia e se tor naram dominantes, acompanhando a maior parte das praticas profissio nais. Destacaremos trés delas que nos parecem ajudar a compreender o rater ideolégico da Psicologia. Estamos aqui concebendo ideologia como © processo de ocultamento da base material e social das idéias, processo esse que pode se dar em decorréncia de construcdo teérica. 1. A Psicologia tem naturalizado o fenémeno psicoldgico; 2, Os psicdlogos nao tém concebido suas intervencOes como travally 5. A Psicologia tem concebideo os sujeitos como responsaveis e capa zes de promover seu proprio desenvolvimento. ana u M8. 206K A Psicologia tem raturalizado 0 fenémeno psicolagico doutorado (Bock, 1999) estudamos a concepcao icdlogos e encontramos expressdes que denotavam uma concepcao do fenémeno como algo enclausurado no ho- mem e como algo abstrato, que tem. vida propria e destino tragado. O fend- reno psicolégico é identificado com um “verdadeiro eu”, que por ser na- tural 6 visto como mais verdadeiro que 0 eu que aparece nas relacdes so- ciais, sendo esse resultado da negociacao feita pelo sujeito com o mundo social, para dar conta dos interesses e desejos do “eu verdadeiro”. O fené- meno psicolégico ¢ naturalizado, isto é, esta em todos nds, ao nascermos, em potencial e se desenvolvera conforme o homem for aproveitando as situac6es de estimulacéo que o mundo social the oferece. Como algo natu- ral tem destino tragado. Essa concepgio de fendmeno psicolégico teve como resultado uma Psicologia de costas para a realidade social, Nao se tem nenhuma necessi- dade de fazer referéncia ao cotidiano vivido pelas pessoas, a cultura e aos valores sociais, 4s formas de producdo da sobrevivéncia e as relagGes so- ciais para compreender 0 mundo psiquico: O fendmeno psicoldgico é visto como universal. ‘A conseqiiéncia para a pratica profissional dos psicdlogos é que esta surge como algo que da suporte ao desenvolvimento natural, reencami- nhando para o “seu trilho” quando se percebe um desvio. A Psicologia se constitui e se institui na sociedade como uma profissao corretiva, que deve ser utilizada apenas quando desvios ou patologias estejam instalados. Caso tudo esteja bem, é sinal de que a natureza faz seu trabalho e nao ha necessi- dade da Psicologia. A Psicologia ficou assim associada a patologias, des- vios, doenas, conflitos, desequilibrios e desajustes. Nao foi possivel de- senvolver uma profissdo que contribuisse para a qualidade de vida, pro- - movendo satide. O fenémeno psicoldgico nao deveria ser concebido como algo natural e universal. Nossas concepc6es sobre a subjetividade deveriam unir o mun- do objetivo com o mundo subjetivo, a fim de compreendé-los como cons- See hist6ricas a partir da atuacdo transformadora do homem sobre o mundo. Em nosso estudo de 0 de fendmeno psicolégico entre os psi A humanidade deve ser vista como algo que esté no mundo objetivo, na medida em que o homem, ao transformar o mundo material para suprit suas necessidades, uitrapassou os limites de sua natureza animal e huma- PSICOLOGIA E COMPROMISSO SOCIAL “i nizou-se e se pos no mundo, transformando-o e humanizando-o. Os obje- tos culturais, criados pelos homens, contém as caracteristicas humanizadas deste homem. Nascemos candidatos 4 humanidade e, ao atuarmos sobre 0 mundo € nos apropriarmos dos objetos culturais criados pelas geracdes anteriores, nos tomamos humanos, nos humanizamos, isto é, adquirimos as caracteristicas construidas pelos homens no decorrer do processo histé- tico de sua humanizagao. A humanidade esta posta, pelo homem, no mundo objetivo. A huma- nidade é retirada do mundo objetivo pela agao transformadora do homem e utilizada para construir sua singularidade, sua individualidade. O mun- do psicolégico nao deve ser concebido como algo natural, mas como algo construido. O mundo psicolégico, como registro singular das relag6es vivi- das por cada um de nés, nao tem nada de natural e nao carrega potenciali- dades. Se constitui, como uma obra do proprio homem, na experiéncia de contato com o mundo cultural e social. Poderiamos nos perguntar, antes de terminarmos este ponto, sobre a importancia ou a diferenca de termos uma ou outra concepcao sobre 0 fe- némeno psicolégico. A diferenca esta em que as concepgées naturalizantes nos afastam do mundo social e acobertam a construgao social do psiquis- mo, tornando-se ideol6gicas. Ao contrario, os psicdlogos devem buscar cons- truir leituras que, ao falarem do mundo psiquico, falem do mundo social e, ao pensarem em transformacées, psiquicas, exijam um projeto social. Os psiedlogos néo tém concebido suas intervenes como trabalho Retomamos, para poder falar da concepcao de trabalho, as idéias an- teriormente expostas e criticadas, mas dominantes na Psicologia: 9 mundo psicolégico nasce conosco e tem destino tracado. As teorias afirmam esse destino nas formas de pensamento/cognicao, na forma de afeto e sociabili- dade e na forma que deve tomar a sexualidade madura. As principais ca~ racteristicas do psiquismo sao vistas como dadas pela natureza. Assim, se ‘os homens estivessem colocados em situacGes de vida ideais para o bom desenvolvimento do fenémeno psicolégico, nada nos restaria a fazer, pois Seu trajeto poderia ser percorrido sem intercorréncias. No entanto, esse mundo social é visto pela Psicologia como um mundo perverso, ruim, di cil, que nos obriga, como psicdlogos, a estarmos atentos a0 desenvolvimen to do psiquismo e a possuirmes instrumentos que possam “corrigir”, " |ANAH.B.80CK ” sa missao € sublime! Nos: z a socie- tue na o ie se desviou. mediar”, “curar”, “consertar” 0 qué planejou ¢ ° que Temos uma missdo que conserta 0 que a natureza dade desviou. : ‘co, est conce- Além disso, o homem, suporte desse mundo a bido como um ser auténomo e capaz de produzir set PrOpHO By de individualizacao. Assim, os psicdlogos passam a entender ae Be cue so € “ajudar as pessoas a se desenvolverem’. Isto quer dizer mals £0 1" parece: significa que nosso trabalho é uma forma de a. a venciio, mas é somente do sujeito o processo de produgao despmicamo. 4 se autoconhecendo podera se autoconduzir e se autodesenvolver. ES Gostariamos de chamar a atencdo para essas nogdes & Suapeconceqten- cias em nossas concepcées. Os psicélogos nao acreditam que direcionam o desenvolvimento de seus clientes, pois a direcao desse desenvolvimento est dada pela natureza. O trabalho da Psicologia € desvelar, desvendar as “yerdades” sobre 0 sujeito, para que ele mesmo possa se conduzir. Assim, 0 psicélogos se isentam de assumir um projeto social — de homem e de sociedade — para promover e incentivar por meio do seu trabalho. Essa discussdo, sobre que sociedade e que homem estamos promovendo e esti- mulando com nossas concepgées e com nosso trabalho, nem se coloca para a maioria dos psicélogos. © trabalho, intervencdo intencionada e direcionada sobre 9 mundo, nao existe para a maioria dos psicdlogos. Nao se pode nem mesmo cogitar a idéia de que direcionamos as pessoas, de que as influenciamos a partir de nossas intervengGes profissionais. Todos os nossos recursos de trabalho so vistos como neutros. Todas as nossas teorias sobre 0 mundo psicolégico sao universais e ndo estéo relacionadas a concep¢6es estas ou aquelas. Nossa pratica ndo tem nada a ver com os interesses sociais e com as disputas poli- ticas da sociedade. Por isso, concluimos em nosso trabalho de doutoramento: A pritica profissional é apresentada na maioria absoluta das respostas como uma prética técnica, isto é, uma pratica que contém um saber (métodos, técni- cas e teorias) que auxilia o desenvolvimento do homem. Auxilia a retomada de um “caminho desviado”; auxilia a reducao do sofrimento, 0 autoconheci- mento necessario para 0 equilibrio e a adaptacao ao meio social. O trabalho também, na maioria das respostas, busca esclarecer, permitir a compreensio, favorecer a escuta, conhecimento de aspuctos desconhecidos, explicitar aspec- tos do individuo que ele desconhece. Nao se coloca uma finalidade social ou politica para esta pratica. As tinalidades esto ligadas apenas ao individuo ¢ a ) | : I corlitsitive SICOLOGIA E CONPROMISSO SOCIAL um movimento que the é proprio, natural, e que deve ser conservado ou reconduzido. (..) 3 () Cabe apontar que no discurso dos psicélogos, é possivel detectar oe nogées ou suposigées importantes: onipoténcia, ajuda ao outro, finalidade le adaptagao, busca da felicidade e do equilibrio. Os psicdlogos evidenciam, em seus discursos, principalmente quando relatam seus trabalhos, uma no¢ao onipotente da profissdo e de si préprios como profissionais. Duas frases pode- riam estar aqui representando esse pensamento: “acredito que o trabalho te- rapéutico é um fazer alma (...) buscar sentido na vida’; “tentamos (...) chegar a esséncia do Homem’. A idéia de ajuda incondicional ao outro 6 também presente nos discursos. Ajuda na busca da adaptacao e da felicidade. O psicdlogo parece ter em suas méos a possibilidade de fazer do outro um homem feliz, coloca-lo em movimento, estimula-lo, acompanhar seu destino, converter percepcao em consciéncia, estruturar, transformar, humanizar, en- fim, acredita que muito pode ser feito e muitas mudancas podem ser opera- das com a ajuda do psicdlogo, enquanto portador de um conhecimento e en- quanto um ser humano dotado de intuicao. No entanto, esse discurso vem acompanhado da fala: mas 0 psicdlogo nao muda o homem, apenas contribui para que ele proprio se modifique. E a oni- poténcia se traveste de humildade absoluta e o psicélogo nega o seu proprio trabalho. Nega a sua intervencao na qual emprega sua energia para transfor- mar 0 que se apresenta naquilo que surge em seu pensamento como o fim desejado. (Bock, 1997: 272 273) E af estd a questao: o psicdlogo efetivamente, a nosso ver, trabalha, ou seja, emprega energia para transformar em determinada direg&o. Nao fosse. assim, nao saberia quando dar alta e nao saberia quando alguém precisa de seu trabalho, Isso mostra que ele tem sim um modelo, um padrao do que considera certo, normal, esperado, desejavel. No entanto, a Psicologia cons- truiu um discurso que nega essa intervengao direcionada. Escondeu-a atras de um discurso de que o homem se autodeiermina e se autodesenvolve. Ocultou, em seu discurso, seu projeto social. Tornou o discurso sobre seu trabalho ideoldgico. Um bom exercicio critico sobre essa questao consiste em levantarmos critérios que nos permitem, como psicdlogos, julgarmos as condicdes de satide psiquica de alguém. Nos surpreenderemos com 0 fato de nossos cri- térios nao serem mais do que as regras morais dominantes em nossa socie- dade. Como profissionais do comportamento, das emocdes e pensamentos Se % ANAM. B. 800K nao poderiamos esperar estar distantes da moral vigente. A questao esta em nao percebermos essa relacao e naturalizarmos o que é moral e social. A Psicologia tem concebido os sujeitos como responsaveis e capazes de promover seu proprio desenvolvimento Recorreremos aqui a imagem ja reconhecida do Bardo de Miinchhausen, que deu nome a nosso trabalho de doutoramento, exatamente porque per- mitia refletir sobre e criticar a nogdo de homem e de desenvolvimento presen- tes na Psicologia. O Barao de Miinchhausen aparece em histdrias infantis alemas e conta que o Bardo saiu do pantano, em que caiu com seu cavalo, puxado pelos préprios cabelos. A nocdo de um sujeito que pode se erguer pelos seus proprios cabelos, como fez o Bardo para se tirar do pantano, marca a maioria das teorias em Psicologia. H4, nas concep¢ées em Psicolo- gia, uma idéia de que o homem possui em si mesmo uma forca motriz que © movimenta para 0 destino de seu desenvolvimento. O Homem esta pen- sado como alguém que possui capacidade de produzir seu proprio desen- volvimento e individualizacgao. Esta idéia se torna forte e possivel, exata~ mente porque nosso desenvolvimento esté pensado como natural, nos apre- sentando como possuidores desta forca que nos movimenta. Nestas concepcbes, a sociedade nao tem papel algum. Esta vista como algo externo ao sujeito que nada tem a ver com seu desenvolvimento. O homem se desenvolve pela sua natureza. A sociedade é vista muitas vezes como algo que impede, algo que deve ser driblado, controlado, para que nao impeca o desenvolvimento das potencialidades que jé estao no homem, @ priori. A sociedade ajuda ou atrapalha, mas nunca é vista como algo do humano, construcdo do préprio homem, objetivacao do humano que per- mite transmitir de geracdo para geracao a humanidade criada pelo homem. Assim, os psicdlogos se puseram de costas para a realidade social, acreditando poder entender o fenémeno psicolégico a partir do proprio homem. Com esse discurso, a Psicologia, mais uma vez, ocultou as deter- minag6es sociais, construindo ideologia. As conseqiiéncias destas concepgdes aparecem, na pratica profissio- nal, de forma bastante clara, pois ha uma responsabilizacéo das. pessoas pelos seus proprios processos de desenvolvimento, pelo sucesso e pelo fra €asso obtidos. Nas tcorias de ensino, chega-se mesmo a pensar em dificul- dade de aprendizagem como algo de responsabilidade do sujeito. No tra- PSICOLOGIA ECONPROMISSO SOCIAL a _ balho ey ° Psicélogo ve sua intervencao como uma contribuicao para que 0 proprio sujeito possa se desenvolver ese curar, quando for o caso. Os testes, muitas vezes, séo utilizados como se fotografassem 0 sujeito ” or dentro”, desvendando a realidade e a verdade de cada um. Acaba-se Hee tando a idéia de que ha um outro “eu” em nés, capaz de uma forca propria produtora de nosso movimento. : A Psicologia tem concebido os sujeitos como responsaveis e capazes de promover seu proprio desenvolvimento; essa concepsao isola 0 sujeito e sua subjetividade do mundo social e isenta as instituicdes sociais e modos de producdo da sobrevivéncia de qualquer responsabilidade pelos sofri- mentos psicolégicos. Os problemas e caracteristicas do mundo psiquico sao explicados pelo seu proprio funcionamento e movimento. Fechando a reflexao Nossa reflexao apontou para que a Psicologia, nestes anos de desen- yolvimento no Brasil, como ciéncia e profissdo, tem produzido ideologia, ou seja, tem ocultado a producao social do humano e de seu mundo psico- légico. Os psicslogos tém se isentado de discutir projetos sociais, porque o homem e seu psicolégico, da forma como sao concebidos, nao exigem essa discussao. As manifestagdes de psicdlogos contra as desigualdades sociais 840 muito poucas; sao raras as manifestacGes em relacao as questOes sociais de nosso tempo, porque se tem pensado que nada disso tem a ver com a Psicologia e com o mundo psicoldgico, seu objeto de intervengao e estudo. A Psicologia tem construfdo idéias que precisam ser superadas, como por exemplo: criangas nao aprendem na escola porque ndo se esforcam ou porque tém pais que bebem e maes ausentes; as maes pobres nao tratam adequadamente seus filhos porque nao conhecem os saberes da Psicologia; as pessoas*nao melhoram de vida porque nao querem; os trabalhadores perdem suas maos nas maquinas devido a impulsos incontrolaveis que ca- racterizam sua relacéo com o trabalho. Os jovens matam criangas com tiros ‘porque tém natureza violenta ou porque seus pais... E assim a Psicologia vai explicando todas as questdes sociais a partir de mecanismos naturais do mundo psicolégico. E preciso trabalhar criticamente e investe compreender as relagGes sociais e as formas de produgo da vida como fato- tes responsaveis pela producao do mundo psicolégico. E preciso incluirmos essas explicagdes. E preciso oe ANAM. B BOCK é 4 reen- ) © mundo cotidiano e o mundo cultural e social na produgao ena comipisen o : cae 2 tru. s8o do mundo psicoldgico. A Psicologia precisa, para superar suas cons ape! ne e constituem como de- co no interior do indi- mudanca Ges ideoldégicas, analisar todos os elementos que St terminacdes do humano, sem isolar 0 mundo psfquit viduo, como algo natural, universal e dotado de forca propria. Am nesta concepgao permitira a superacéo da ideologia presente na Peicologia * econsolidaré um novo compromisso dos psicélogos ¢ da Psicologia com a sociedade, um compromisso de trabalho pela melhoria da qualidade de . Vida; um compromisso em nome dos direitos humanos e do fim das desi gualdades sociais. sib Referéncias bibliograticas ANTUNES, Mitsuko A. M. A. O processo de autonomizacio da Psicologia no ‘Brasil 1890/ 1930 — uma contribuicao aos estudos em Histéria da Psicologia. Tese de doutora- mento. Sao Paulo, PUC-SP, 1991. . A Psicologia no Brasil: leitura hist6rica sobre sua constituicao. Sao Paulo, Enimarco, 1999. BOCK, Ana M. B. As aventuras do Barfio de Miinchhausen na Psicologia: um estudo sobre 0 significado do jendmeno psicolégico na categoria dos psicélogos. Tese de doutora- mento. Sao Paulo, PUC-SP, 1997. . Aventuras do Barto de Miinchhausen na Psicologia. Sio Paulo, EDUC/Cortez, 1999, CARVALHO, Ana M. Almeida, Atuagio psicolégica: uma anuilise das atividades desem- penhadas pelos psicélogos. In Conselho Federal de Psicologia — Quem é o Psicé: logo Brasileiro. Sao Paulo, EDICON, 1988. CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA. Psicologia: formagao, atuagto profissional e mercado de trabalho — estatisticas 1995. Sao Paulo, 1995, MASSIMI, Marina. Histéria da Psicologia brasileira da época colonial até 1934, Sao Pau- lo, EPU, 1990. MELLO, S. L. Psicologia ¢ profissdo em Sdo Pauilo. Sio Paulo, Atica, 1975. ROSEMBERG, F. Afinal, por que somos tantas psicdlogas? In: Conselho Federal de Psicologia. Revista Psicologia Ciéncia e Profissdo, ano 4, n. 1/84, p.6-12. * © que a historia pode dizer sobre a profissao do psicdlogo: a relacao Psicologia-Educacao* Maria Helena Souza Patto’* Num ensaio intitulado “O que a hist6ria tem a dizer-nos sobre a socie- dade contemporanea?”, 0 historiador inglés Eric Hobsbawm. responde: “o que ela nao pode nos dizer €0 que acontecera: apenas quais problemas tere- mos que resolver”. Porque 0 estudo da historia desvela recorréncias, linhas de forca do processo histérico, feito de continuidade e de descontinuidade. O estudo da histéria da Psicologia vem tomando novos rumos em varios centros académicos onde se ensina e se faz essa ciéncia, aqui e la fora. E cada vez maior o ntimero de pesquisas de fontes documentais que querem fazer uma historia critica — isto é, que leve em conta as determina- goes politico-sociais — da constituigao da Psicologia, em sua relagao com a Pedagogia, nas sociedades industriais capitalistas. Em outras palavras, uma * Versio adaptada ¢ revista de intervencio em mesa-redonda apresentada no I Congreso Brasileiro Psicologia; Ciéncia e Profissdo, setembro 2002, Sao Paulo, SP +> Professora titular do Instituto de Psicologia da USP. E-mail: mhspatto@usp.br 0 ANAM 00K: historiografia que parte parte da pergunta: qual o lugar ocupado pelo conheci mento produzido pela Psicologia cientifica nas relacoes de eae aval i vi ram numa sociedade dividida em classes? ae Importante assinalar que, ao partir de uma concepcao de critica de filiagao materialista historica — ou seja, ao entender critica do conhecimen- to como situa-lo, ir em busca de suas raizes, de seus compromissos sociais © histdricos ¢ descobrir 0 que est alojado em seus conceitos fundamentais essas pesquisas superam a concepcio de Historia como mera seqiiéncia tem- poral de nomes e fatos (teorias e sistemas) pendurados numa linha tempo- ral. Superam uma concepcao de historia das idéias como “yaral”, no qual autores pendem descolados do chao histérico em que produziram concei- tos € praticas. Nao que isto nao sirva para nada; é catélogo que pode facili- tar a escritura de uma Histéria da Psicologia que supere a celebracao de “pioneiros” ou “precursores”, sem que se pergunte sobre os compromissos politicos inerentes as teorias (isto é, incrustados em seus conceitos) de que se apropriaram e que veicularam no pais Uma historia das idéias, sem mais nada, ¢ abstracao que reforca a con- cepcio de que a Ciéncia é neutra, de que 0s conceitos que a integram nada devem 8 realidade hist6rico-social em que foram geradas e/ou aplicadas. Segundo correntes historiograficas mais recentes e mais férteis, a historia das idéias é sempre social. O que existe é uma historia social das idéias, impres- cindivel a reflexio sobre o presente de uma ciéncia e de uma profissao. Hist6ria é unidade de passado, presente e futuro. Para entendermos o pre- sente, ¢ preciso ir em busca de sua constituicio hist6rica. Para pensar o seu futuro é preciso conhecer seu passado e seu presente, sobretudo em busca da identificagao dos problemas que terao de ser entrentados. Impossivel pensar o futuro da Psicologia sem conhecer sua instituigio num lugar e ntim tempo social e politicamente determinados. E quando falo em “politi- ca” no estou obviamente me referindo a doutrinas politico-partidérias, mas a dimensdo das relagées de poder em vigor em sociedades coneretas, das quais as teorias e as praticas fazem parte, seja para reafirmar essas relacées, seja para contesté-las. Por tudo isso, quem se dedica a historiografia da Psicologia ndo pode declarar-se culpado por se voltar para 0 passado da Profissdo e, assim, descuidar de seu presente. Estudamos 0 passado nao por interesse inuitil e recriminavel pelo que ja foi, mas para entendermos 0 presente. Historiadores precisam ter clareza a fespeito dos motivos pelos quais se dedicam a escrita da historia. SICOLOGIA E CONPROMISSOSOCIAL = A historia das Ciéncias Humanas, em geral, e da Psicologia, em parti- cular, nao se dé acima da hist6ria politica, social e econdmica do lugar em que sao produzidas, como se nada tivesse a ver com ela. Nao é também uma historia que se escreve sobre o pano de fundo da histéria do pais. A histéria da Psicologia no Brasil é parte integrante da histéria brasileira, é um de seus elementos constitutivos, esta implicada nos rumos por ela tomados, é determinada por ela e um de seus determinantes. Quando um psicdlogo diza um pobre que ele nao esta conseguindo se escolarizar porque nao tem capacidade intelectual para isso (afinal de contas, seu QI é baixo...), ele esta “ colaborando para o conformismo dos que nao tém garantido 0 seu direito de educacao escolar, mesmo que se encontre dentro de uma escola — mas de uma escola cujo ensino é de ma qualidade e as relacdes dos professores com os alunos sao mediadas por preconceito. Para ilustrar o enraizamento sociopolitico da Psicologia, podemos toma-la em sua relacao com a Pedagogia no interior da Primeira Republica brasileira (1889-1930). Historia compiexa que nao cabe contar aqui. Limito- me a destacar alguns aspectos. A Republica instalou-se sem a participacao do povo, resultado que foi de cisao no interior das oligarquias, e nasceu sob o lema positivista da “ordem e progresso”. Alias, todo o discurso republi- cano é marcado por obsessao ordeira. Com o fim da escravidao e com a imigracao estrangeira como forma de suprir necessidades de mao-de-obra, grande numero de pessoas convergiu para os centros urbanos maiores & valeu-se de varias estratégias de sobrevivéncia, 0 que criou uma situaca0 assustadora que os intelectuais da burguesia chamaram “caos urbano”. O medo de insurreicdes, de movimentos populares reivindicatérios, que sem- pre esteve presente na classe dominante, desde o tempo das casas-grandes e das senzalas, fora acentuado pelas teorias raciais, para as quais 0 povo brasileiro era degenerado, porque mestico. No por acaso, data dessa época a criminalizacao das estratégias de vida no desemprego e na pobreza que pusessem em risco 0 direito & pro- priedade. As sutilezas das instituicces disciplinares, localizadas por Foucault nha passagem do século XVIII para o século XIX europeu — caracterizacas por um modo de organizar 0 espaco, de controlar o tempo, de vigiar e re- gistrar continuamente 0 individuo e sua conduta, de disciplinar nao mais pela violéncia da punicio fisica, mas por meio de praticas mais incorporais de disciplina pela sujei¢ao & norma —, ndo eram tao necessarias na socieda- de bresileira quanto o foram na Europa liberal. No entanto, apesar dee: mes num pais em que os poderosos sempre primaram pela barbarie nas ANAM. 8 BOCK 2 jos econdmicos relagGes com os subaltemos e adotaram apenas 0S pune ea que a do liberalismo, foi nesse periodo da historia republicana BN igo educacdo escolar e suas ciéncias auxiliares — 2 Biologia © cidadaos exem- comecaram a ser difundidas, tendo em vista a formaga0 de adicos e edu- plares com base num conceito de normalidade plantado por MET cadores. Normal é quem trabalha e obedece. Normal ¢ quem Bie alaste nao reivindica e colabora com a ordem estabelecida. Tudo q do j 2 x . jentistas, sobretudo juris- disso € rotulado como patologia. Por quem? Por cien' a tas,médicos (higienistas, psiquiatras, pediatras) eeducadores, 77°") 1-1 estavam os primeiros porta-vozes dos conhecimentos produzidos pe’ cologia.’ ‘ Rui Barbosa, nos importantes Pareceres de 1882-1883 — a ziram aqui concepgoes de escola e de pedagogia de prestigio no Leste cus ropeu capitalista industrial —, ndo podia ser mais claro quanto a0 objetivo da escola nas sociedades de classes: “investe-se 2% em educagao e 21% em despesas militares. E melhor pagar ao professor que ensina 0 Tespeito a propriedade do que pagar um guarda para protegé-la”. Nas palavras do dr. Esposel — médico psiquiatra da Liga Brasileira de Hygiene Mental (1925) que recomendava aos médicos que se aproxi- massem dos “psychologistas” — transparece a relacio entre Ciéncia ¢ rela- 6es de poder: ele pregava a necessidade da criagio de um sistema médico- pedagégico de formacao moral profildtica “das psiconeuroses, de distiir- bios elementares do sistema nervoso, que podem gerar paixdes, crimes, idéias extremistas reivindicadoras ou revoluciondrias”. E nesse chao que a Psicologia vai sendo constituida como ciéncia que avaliara aptidGes e selecionaré quem merece e quem nao merece um lugar no sistema regular de ensino. Que designara os destinados a mandar (quem sera preparado para ser a elite dirigente) e os talhados para a obediéncia. -Quem desempenhard o trabalho intelectual e quem se ocupara do trabalho bracal. Quem deveré ser extirpado do corpo social por meio de “seqiiestra- 40”, que era como na época se denominava a internacao, Na verdade, nao poucas vezes quem sera externtinado, pois os indices de mortalidade em instituic6es corretivas para menores, manicOmios e prisdes eram sabidamente altos. 1, Tratei mais longamente desse tema em “Estado, Ci 2 desqualificacio dos pobres” Estudos Avancados, 13 ¢ ¢ Politica na Primeira 8: 1, 199, p, 167-98, niblica. side india esi uals 2 soe iat PSIGOLOGIAE COMPROMISSO SOCIAL ‘A Psicologia foi convocada, desde a elaboracao das teorias pedagégi- cas no século XIX, a colaborar com um ensino escolar de talhe taylorista, estruturada sob a égide da eficiéncia, da rapidez, da producao em série de alunos perfeitamente adaptados aos diferentes lugares que lhes sero des- tinados numa realidade social inquestionada. Eis a via da naturalizacdo da desigualdade que tem origem na maneiza como a sociedade se estrutura, mas é lida como diferenca biolégica ou psicolégica de aptidao intelectual entre grupos e individuos. Ao realizar essa tarefa num pais como 0 nosso, em que 0 povo sempre foi zelosamente afastado dos direitos civis, sociais e politicos, os psicdlogos servem a justificagio de uma sociedade dividida em que os direitos sao de- siguais. Ao reforcar cientificamente a crenca de que os lugares sociais sao distribuidos segundo 0 mérito de cada um, colabora com a impressao de existéncia de igualdade de oportunidades, quando, na verdade, nunca fo- mos liberais, muito menos democraticos. Aqui o autoritarismo e 0 descaso das elites pelos direitos sociais e civis de todos os cidadaos — independen- temente da cor e do nivel social e econémico — sempre foram a marca re- gistrada de suas relacgdes com os subalternos. Uma leitura critica da historia da educacao escolar publica brasileira revela, desde os primordios, um claro desejo de controle, por meio da edu- cacao, dos conflitos de classes que marcaram 0 periodo primeiro-republi- cano. A Pedagogia, para ser eficiente, precisava conhecer a matéria-prima a ser processada pelo ensino — as criancas — para classifica-la e, assim, molda- la para um exercicio estreito de cidadania e para diferentes carreiras escola- yes, Dai o seu encontro com uma Psicologia evolutiva de cunho normativo, indispensdvel a esse projeto. Dafa relevancia assumida pelos instrumentos psicométricos. Daf uma apropriagao da Psicandlise em sua versao adapiativa, “gestora de riscos sociais”, como diz Robert Castel. Esta maneira de contar a historia da Psicologia vem para mostrar que ela nao gera seus conceitos e ieorias no vazio, num espaco neutro, o que permite que eles sejam aplicados para o bem ou para 0 mal. O que se esta dizendo de modo cada vez mais claro é que a invencao da Psicologia acompanha uma necessidade historicamente posta de justificacdo da desi- gualdade estrutural e de controle do corpo social com procedimentos com- pativeis com a ideologia liberal e a servico dos que querem reproduzir a erdenacao social em vigor porque se beneficiam dela. Como parte desse controle, a patologizacao dos comportamentos indesejaveis. O que equiva- 4 ANAM. 3, BOOK ee : sempre engajada, que 0 conhecimento ¢ sempre eee ea le ae a Psicologia como cientistas OU profissionais Bee eG ar esi fa questao. Aética do exercicio de uma profissio Esliaean pee od ae Pragmiticas que visam garantir a confiden= seal es re lentes. Attica do exericio da proviso refeream — que orienta essa pratica. Para ingressar no ambito ético- Politico da Psicologia, é preciso rever concep¢des e praticas de avaliacao e de psicoterapia meramente adaptativas que contribuem para a reprodu- Gao de uma sociedade hierarquizada e injusta. O estudo da Psicologia a partir desta perspectiva histdrica traz elementos relevantes a resposta a duas indagacdes que fundam esta Mesa: a que demandas a Psicologia vem res- pondendo desde a sua origem? De que instrumentos tedricos e praticos se muniu para dar esta resposta? O que significa afirmar que a Ciéncia tem poder. Que o cientista esta investido de poder. Que 0 psicdlogo 0 exerce quando produz conhecimento e quando realiza as suas praticas de diag- néstico e tratamento. Pois bem, poder de dizer exercido em nome de quais interesses presentes nas sociedades de classes? Comprometido com o qué? No interior dessas questdes, 6 preciso repensar 03 cursos de formacao. de psicdlogos. E certo que os curriculos, desde a sua primeira versao, quan= do da criacdo dos cursos de Psicologia, foram incorporando perspectivas teéricas que nao constavam do projeto inicial. Ampliou-se 0 objeto, o cam- po ¢ 08 métodos da ciéncia psicoldgica e algumas disciplinas vieram para pér 0 estudo do sujeito e da intersubjetividade em chave hist6rica, politica ¢ social. No interior do elogio da Filosofia, muitos docentes e pesquisadores vém assumindo uma atitude interrogativa perante 0 conhecimento psico- légico estabelecido, em busca de suas origens, de seus pressupostos episte- molégicos e de seus compromissos. Mas exatamente onde reside a forca da Psicologia atual pode morar também a sua fragilidade. De quase monolitico, o curriculo vem passando gradativamente a curriculo plural que, no entanto, so confundira os for- mandos se nao thes fornecer instrumentos tedricos para pensar as dliferen- tes correntes tedricas que habitam o campo da ciéncia que escoiheram. Dai a necessidade de revisio curricular rumo a aquisicio, pelos psicdlogos, de instrumentos filoséficos que lhes permitam pensar 0 pensamento ca Psico- logia; ou seja, que os forme como intelectuais e nao como técnicos que apli- cam mecanicamente procedimentos de avaliacdo e de psicoterapia i desconhecem os funclamen‘os. Para isso nao é preciso um de cinco anos de duragio. PSICOLOGIAE COMPRONISSO SOCIAL - sé assim poderemos Superar trés situacdes: a) lamentdveis defesas emocionais e corporativas de opiniGes, que impedem debates epistemolé- gica, ética e politicamente fundamentados; b) a formacdo cada vez mais precaria de psicdlogos que vém reduzindo a complexidade da psique a con- ceitos mergulhados no mais absoluto senso comum, como 6 0 uso dissemi- nado do termo auto-estima, influéncia nefasta dos livros de auto-ajuda que se, por um lado, revelam o grau de desamparo e solidao a que as pessoas se yéem condenadas no mundo atual, por outro, seduzem psicdlogos sem cri- tica com um arsenal de prescricdes faceis, porque superficiais e mistifica~ doras; ¢) a crenca de que basta exercer a profissao junto aos pobres para estar incluindo a Psicologia num projeto emancipador. £ preciso considerar, a cada passo, nao sé 0s limites e possi historicamente postos 4 realizagdo de uma sociedade mais justa, mas as possibilidades e limites da propria Psicologia, de seu arsenal de teorias técnicas que nao sao nem podem ser neutras, Caminhar no sentido contra- tio da amnésia da génese (expressao cunhada por Adorno e Horkheimer), fazendo 0 inventario dos compromissos politicos inscritos na Psicologia, e ~ que recebemos como heranca: eis um problema fundamental que uma his- toriografia critica da Psicologia nos diz que teremos de enfrentar.

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