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ia Apresentacao a Edicao Brasileira ‘A FORMACAO E DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO CONSERVADOR DE RUSSELL KIRK ALEX CATHARINO A Politica da Prudéncia' pode ser tomada como a melhor intro- dugao ao conservadorismo politico ¢ cultural de Russell Kirk (1918- 1994). O livro retine os textos de dezoito confer nicias apresentadas pelo autor, entre 1986 e 1991, na Heritage Foundation e a versio escrita de uma palestra ministrada, em 1988, no Hillsdale College, oferecendo, assim, um panorama final das reflexes kirkeanas sobre temas soci deeming the Time? |Redimir 0 Tempo}, coletanea publicada, postu- ‘mamente, em 1996, que trata dos aspectos cultural ¢ social, Essas duas antologias sintetizam algumas das ideias centrais do autor sobre s € politicos. A obra forma um diptico com o livro Re- ' A obra foi publicada pela primeira vez em 1993, numa edigao em capa dura, pelo Intercollegiate Studies Institute (1S culo The Politics of Pruden- ce. Em 2004 foi feita uma reimpressio da obra, na forma de brochura, com 0 acréscimo da introdugio de Mark C. Henrie, Sugerimos ao editor Edson Fi- tho, da E Realizagies, que incluisse como anexos na presente edigio os artigos “Russell Kirk: Redeeming the Time”, de Bruce Frohnen (Modern Age, v. 36, 1. 1, Fall 1993, p. 79-82), “Russell Kirk and Ideology”, de Gerhart Niemeyer, “Conservatism at Its Highest”, de Edward E. Ericson Jr. (The Intercollegiate Review, v. 30, n. 1, Fall 1994, p. 35-38; Ibidem, p. 31-34), cujos direitos autorais, via Russell Kirk Center for Cultural Renewal, foram gentilmente cedidos pelos editores R. V. Young da Modern Age e Mark C. Henrie da The Intercollegiate Review para a & Realizagées. * Russell Kirk, Redeeming the Time, Ed. int. Jeffrey O. Nelson, Wilmington, ISI Books, 1996. a a preservagio dos principios que T. S. Eliot (1888-1965) chamou de “coisas permanentes”® e representam o coroladrio de uma carreira in- telectual de quase meio século, Na autobiografia The Sword of Imagination: Memoirs of a Half- Century of Literary Conflict [A Espada da Imaginacao: Memérias de Meio Século de Conflito Literario],’ publicada, postumamente, em 1995, Russell Kirk relata a cruzada que moveu ao longo de toda a vida adulta contra os erros ideol6gicos da modernidade. Utilizando a ter- minologia do historiador Arnold J. Toynbee (1889-1975), a época em que nasceu foi definida por Kirk como um “periodo de desordem”* no qual “a antiga casca da ordem moral e social havia sido quebrada”™ em consequéncia da Primeira Guerra Mundial, da Revolugio Bolchevique e do colapso do Império dos Habsburgos. “O breve século XX”, cujos marcos temporais sio 0 inicio da Primeira Guerra Mundial, em 28 de julho de 1914, e a dissolugio da Unido Soviética, em 9 de dezembro de 1991, foi denominado “Era dos Extremos” pelo historiador marxis- ta Eric Hobsbawm (1917-2012).” O historiador catélico Paul Johnson descreveu que a identidade do século passado foi moldada pelo decli dos valores tradicionais cristdos ¢ a substituigao destes por ideologias io seculares de esquerda ou de direita, responsaveis, em tltima instancia, pelas guerras, revolugGes, genocidios, crises econdmicas, degradacao MTS. Eliot, The Idea of a Christian Soviery. Londses, Faber and Faber, 1939, p21 * Russell Kirk, The Sword of Imagination: Memoirs of a Half-Century of Lite- rary Conflict. Grand Rapids, William B, Eerdmans Publishing Company, 1995, No original, em inglés, a expressio de Arnold J. Toynbee na obra A Study of History |Um Estudo de Historia] & “Time of Troubles"; optamos, no entanto, pela tradueao “periodo de desordem” por acreditarmos que tal terminologia a mais apropriada para explicitar o contraste entre os acontecimentos hist- ricos do século XX e 0 ideal voegeliano de ordem adotado por Russell Kirk Russell Kirk, The Sword of Imagination, op. cit. p.2.. 7 Bric Hobsbawm, A Ena dos Extremos: O Breve Século XX, 1914-1991 “Trad, Marcos Santatrta. Sao Paulo, Companhia das Letras, 1995 A213 ircunstancias cultural e relativismo moral do periodo.* As desse novo “mundo antagonista de loucura, discérdia, vi vio pesar”,’ criado pelas diferentes ideologias, influenciaram muito a percepgao da realidade de Russell Kirk, que buscou na tradigio o remé- dio para os males ideolégicos que assolaram o século XX. Russell Kirk assumiu para o pensamento conservador norte-ame- ricano a mesma importancia de Edmund Burke (1729-1797) para a formacio do conservadorismo britanico. A grande erudigio e a pro- lifica produgao de Kirk impressionaram renomados contemporaneos, como 0 ja citado T. S. Eliot e, dentre tantos outros, Donald G. Davidson (1893-1968), Wilhelm Répke (1899-1966), Leo Strauss (1899-1973), Eric Voegelin (1901-1985), Malcolm Muggeridge (1903-1990), Ri- chard M. Weaver (1910-1963), Robert A. Nisbet (1913-1996), Ray Bradbury (1920-2012) ¢ Flannery O'Connor (1925-1964), com os quais manteve contato e trocou vasta correspondéncia,"® No conjunto da ampla produgio intelectual que antecedeu a pu- blicagao de A Politica da Prudéncia ¢ de Redeeming the Time, des- tacamos algumas obras que tratam mais extensivamente de temas politicos, antecipando alguns pontos apresentados nos ensaios da pre- sente coletanea. A primeira delas, sem diivida, 6 livro mais famoso de Kirk, The Conservative Mind |A Mentalidade Conservadoral,"! que * Paul Johnson, Tempos Modernos: O Mundo dos anos 20 aos 80. Trad. Gilda de Brito Mac-Dowell ¢ Sérgio Maranhio da Matta. 2. ed. Rio de Janciro, Instituto Liberal, 1998 * Edmund Burke, Reflections om the Revolution in France. In: The Works of the Right Honorable Edmund Burke, volume Ill Boston, Little, Brown and Company, 1865, p. 360, "0 historiador e bibliotecirio Charles C. Brown classifcou e arquivow av ta correspondéncia de Russell Krk, que faz parte do acervo do Russell Kirk Center for Cultural Renewal. Atualmente, o pesquisador James E. Person Jt est trabalhando na organizagio de uma coletinea da correspondéncia sele- cionada de Russell Kirk. "0 livro foi publicado originalmente, em 1953, pela Regnery Publishing ‘com titulo The Conservative Mind: From Burke to Santayana, A parti monica da Prudencia | Apresentacao a Edicao Brasileira para Conservadores}, langada em 1954 ¢ reeditada em 1989 como Prospects for Conservatives [Perspectivas para Conservadores},"” que destaca alguns pontos praticos que precisam ser enfrentados para a renovagao do entendimento das ordens moral e social. A curiosa obra The Intelligent Woman's Guide to Conservatism [O Guia do Conser- vadorismo para a Mulher Inteligente}," publicada em 1957, apresen- ta uma visdo sintética do conservadorismo e€ ressalta suas conexdes coma fé religiosa, a consciéncia, a individualidade, a familia, a comu- nidade, 0 governo justo, a propriedade privada, 0 poder e a educagao, discutindo, também, as relagdes entre permanéncia e mudanga. Vale destacarmos a coletinea intitulada Beyond the Dreams of Avarice: Essays of Social Critic |Além dos Sonhos de Avareza: Ensaios de Critica Social], de 1956, em que encontramos nalguns artigos a ‘mais sistemitica critica kirkeana 4 ideologia liberal contemporanea, A coletinea Enemies of the Permanent Things: Observations of Ab- normity in Literature and Politics |Inimigos das Coisas Permanentes: Observagées sobre as Aberragdes em Literatura ¢ Political" de 1969, discute, ao longo de diferentes ensaios, a maneira como os vicios mo- dernos, tanto na literatura quanto no estadismo, estio relacionados a0 processo de “desagregacio normativa” criado pelas ideologias se- cularistas, que tentam ocupar o lugar das verdades tradicionais sobre as normas internas da alma ¢ as normas externas da sociedade. '*A segunda edigao revista e ampliada é a seguinte: Russell Kirk, A Program for Conservatives. 2. ed. Chicago, Regnery Publishing, 1962. * Russell Kirk, Prospects for Conservatives. Washington, D.C., Regnery Publishing, 1989, "Idem, The Intelligent Woman's Guide to Conservatism. Nova York, The Devin-Adair Company, 1957. "A obra foi publcada em nova edicio como: Russell Kirk, Beyond the Dreams of ‘Avaric: Essays of Social Critic. 2. ed. Per, Sherwood Sugden 8 Company, 1991, " A obra foi reeditada como: Russell Kirk, Enemies of the Permanent Things: Observations of Abnormity in Literature and Politics. Peru, Sherwood Sugden ‘& Company, 1984, 16117 Merece nota, também, o livreto The American Cause |A Causa Americana}," langado pela primeira vez em 1957,em que Kirk explica 8 principios essenciais da nagdo norte-americana nas esferas da mo- ral, da politica e da economia. Outro livro que nao pode deixar de ser ‘mencionado é 0 monumental estudo de histéria comparada The Roots of American Order [As Raizes da Ordem Americana], publicado, originalmente, em 1974, Refutando o mito da historiografia liberal, segundo o qual a independéncia dos Estados Unidos foi um empre- endimento revolucionério iluminista, Kirk demonstra que a formacao cultural e institucional da nagao norte-americana foi uma experiéncia conservadora, caudataria dos legados do povo de Israel, da civilizacao Breco-romana, da tradigio medieval e da modernidade. Seguindo a mesma linha de argumentagao, lembramos a coletinea The Conserva- tive Constitution |A Constituigao Conservadoral,” de 1990, republi- cada, em 1997, numa versao editada com novos textos do autor, como Rights and Duties: Reflections on Our Conservative Constitution [Di- reitos ¢ Deveres: Reflexes sobre nossa Constituigéo Conservadora),* que, em diferentes artigos, traz a tese de que a Constituigo dos Es- tados Unidos nao foi um projeto lockeano como muitos acreditam, Segundo Kirk, o intento original dos criadores do documento foi o de Publicada originalmente pela Regnery Publishing, a obra foi reeditada pela mesma editora, em 1966, com o acréscimo de um prefiviv do exctitor € pin tor John Dos Passos (1896-1970), sendo reimpressa,em 1975, pela Greenwood Press, A obra se encontra disponivel na seguinte edigio: Russell Kirk, The ‘American Cause. Ed.c int. Geaves Whitney. 3. ed. Wilmington, ISI Books, 2002 Langado originalmente pela Open Court, o livo recebew uma segunda edi- io pela Pepperdine University Press, em 1977, e uma terceira pela Regnery Gateway em 1991, estando disponivel atualmente na seguinte edicdo: Russell Kirk, The Roots of American Order. 4, ed. Pref. Forrest McDonald ‘Wilmington, 1S1 Books, 2003. ® Russell Kirk, The Conservative Constitution, Washington, D.C., Regnery Garway, 1990, Idem, Rights and Duties: Reflections on Our Conservative Constitution. Ed, Mitchell S. Muncy, Int Russell Hittinger. Das, Spence Publishing, 1997, A Politica da Prudéncia | Apresentacao a Edicao Brasileira conservar a ordem, a liberdade e a justica via equilibrio entre direitos ¢ deveres, Ainda na linha das andlises sobre a cultura, a histéria € as instituiges dos Estados Unidos, o livro America’s British Culture [Cultura Britanica dos Estados Unidos},** langado em 1993, pouco antes de A Politica da Prudéncia, é ertos relativistas do multiculturalismo, tal como propostos atualmente pela esquerda liberal, e uma defesa da identidade conservadora norte- -americana, ao enfatizar que a manutengo da ordem social necesita da existéncia de fundamentos culturais comuns, expressos pela men- 10 mesmo tempo, uma eritica aos talidade, lingua e literatura, costumes e instituigdes sociais da nacao. Nessa relagio de obras que antecedem A Politica da Prudéncia e Redeeming the Time, no podemos deixar de citar © primeiro dos li- vros de Russell Kirk publicado em portugués, Eliot and His Age: T. S. Eliot's Moral Imagination in the Twentieth Century [A Era de'T.S. Eliot: A Imaginagio Moral do Século XX], langado originalmente em 1971 ¢ no Brasil em 2011.2 Além de ser a melhor biografia intelectual de'T. 5. Eliot, 0 livro pode ser considerado a obra-prima de Russell Kirk, pois a0 tomar como fio condutor o pensamento elioteano, assim como a biogra- fia e contexto hist6rico do literato, estrutura e condensa varias ideias da propria visio kirkeana de conservadorismo a respeito de t6picos como natureza humana, cultura, educagao, hist6ria, sociedade e politica, res- saltando o modo como a produgao artistica elioteana sempre esteve em tum grande dislogo com a tradigao, principalmente com as obras de Vit~ gilio (70-19 a.C.), Dante Alighieri (1265-1321) e William Shakespeare (1564-1616). dem, Americas Britis Culture, New Brunswick, Transaction Publishers, 1993, 2A obra oi publcadaoriginalmente pela Randon House. A Sherwood Sugden ¢ Company publicou, em 1984, uma ediio revista eampliada dolvo,reimpress pela mesma editora em 1988. Em 2008, 0 Intercollegiate Studies Institut (II) fer uma reimpressio da obra com uma nova introducio de Benjamin G. Locker Je ( livro foi publicado em portugués na seguinteedisios Rusell Kirk, A Ena de. lit: A Imaginago Moral do Séeulo XX. Ap: Alex Catharino, lt Benjamin G. ‘Locker Je, Trad. Matcia Xaver de Brito. Sio Paulo, E Realizagies, 2011 18] 19 Assim, 0 resultado do pensamento kirkeano é apresentado nas antologias de ensaios A Politica da Prudéncia e Redeeming the Time, cuja origem é a nomeagio de Russell Kirk, em 1978, como Distinguished Scholar da Heritage Foundation.2” Por isso, nessa ocasiio, iniciou um ciclo de quatro palestras anuais na sede da ins- tituicio em Washington, D.C., das quais participaram varios politi- cos ¢ formadores da opiniao publica. Proferiu um total de sessenta conferéncias, sendo que algumas das que versam sobre sociedade ¢ politica foram publicadas no presente livro ¢ outras, tratando da renovagao da ordem cultural e do ordenamento da sociedade, em Redeeming the Time. A ampla produgao intelectual kirkeana, no entanto, foi além das s6lidas muralhas do pensamento politico, abrangendo os vastos cam- pos da Filosofia do Direito, da Historia Filosofica, da Educagao, da Critica Cultural, da Analise Social e da Economia, bem como aden trou no campo literdrio ao legar uma vasta obra de ficcao sobrenatu- ral. Ao longo dos mais de cinquenta anos de trabalho como homem de letras, Russell Kirk nos legou cerca de 3.000 artigos de o para jornais, 814 artigos académicos, 255 resenhas de livros, 68 pre- facios ou introdugdes para obras de outros autores, 23 livros ou co- letdneas de ensaios académicos, 3 romances ¢ 22 de contos de terror, publicados em diversos periddicos ¢ reunidos em 6 livros diferentes.” ” Fundada em 1973, a Heritage Foundation & a principal instituigio conser vadora norte-americana dedicada a elaboragao de politicas piblicas que pro: ‘movam os principios dos valores tradicionais, do governo limitado, da eco- nomi de livre mercado, da defesa externa e da seguranga interna. A historia 0 trabalho desse think ta de Kirk, s40 objeto da seguinte obra: Lee Edwards, The Power of Ideas: The Heritage Foundation at Twenty-Five Years. Ottawa, Jameson Books, 1997. * Uma compilacZo parcial das referencias bibliogréficas da vasta produgio in- teleetual de Russell Kirk e dos estudos sobre o pensamento kirkeano foi onga- nizada pelo historiador Charles C. Brown, arquivistae bibliotecirio do Russell Kirk Center for Cultural Renewal, ¢ publicada na seguinte edigio: Charles C. Brown, Russell Kirk: A Bibliography. 2. ed. Wilmington, ISI Books, 2011 ‘APoltica da Prudéncia | Apresentacao & EdicAo Brasileira Nao é somente a ampla produgao intelectual kirkeana que impres- siona, mas também sua versatilidade, clareza, objetividade, profundi dade, erudigao ¢ elegincia estilistica, que associados a uma grande logica argumentativa ¢ excepcional capacidade em compreender 0 modo como os problemas atuais da civilizagao ocidental sio mente relacionados ao contexto cultural e & experiéncia hist6rica, nos conferindo uma prosa tinica e saborosa. Gragas a tais caracteristicas pouco usuais no mundo contemporaneo, Russell Kirk foi chamado de ‘(0 Marco Tullio Cicero (106-43 a.C.) norte-americano pelo historiador Forrest McDonald,” de 0 Santo Agostinho (354-430) de nossa era pelo cientista politico e historiador Jeffrey O. Nelson,” e de “Cavalei- to da Verdade™ pelo fildsofo Gerhart Niemeyer (1907-1997). Diferente da maioria dos intelectuais contemporaneos, Russell Kirk soube testemunhar com convicgao os valores que propagou nas proprias obras, o que o fez. muitas vezes utilizar exemplos pessoais na defesa da causa conservadora. Dentre os tragos caracteristicos de sua personalidade, destacam-se a timidez, a humildade, a sinceridade e a gentileza, o que, no entanto, nao o impediu de ser um firme ¢ enérgico defensor das verdades que apreendeu pelos estudos e pelas experién- cias pessoais. No ensaio “Reflections of a Gothic Mind” [Reflexoes de uma Mente Gética}, uma breve autobiografia publicada, em 1963, na coletanea Confessions of a Bohemian Tory: Episodes and Reflec- tions of a Vagrant Career [Confissées de um Tory Boémio: Episédios ¢ Reflexes de uma Carreira Errante}, afirmou ser a0 mesmo tempo uum fory, “afeigoado a ortodoxia da Igreja e do Estado”, e um boémio, © Forrest MeDonald, “Russell Kirk: The American Cicero”. In: James E. Person Je. (Ed.), The Unbought Grace of Life: Essays in Honor of Russell Kirk, Peru, Sherwood Sugden & Company, 1994, p. 15-18. » Jeffrey O. Nelson, “An Augustine for Our Age”. The University Bookman, v XXXIV, n. 2, 1994, p. 13-15, § Gethart Niemeyer, “Knight of Truth”. The University Bookman, v. XXXIV, 1,2, 1994, p. 6-7, “errante ¢ muitas vezes sem dinheiro, homem das letras e das artes, indiferente as fraquezas e aos modismos burgueses”.* Em Sword of Imagination, Kirk se autodefiniu com 0 bordao “eu sou o que sou, isso é tudo o que sou”,® utilizado por um de seus heréis de infancia, fa personagem marinheiro Popeye, criada, em 1929, pelo cartunista E. C, Segar (1894-1938). Mesmo sendo o mais respeitado icone do movimento conser- vador nos Estados Unidos, Russell Kirk ndo se deixou seduzir pelas riquezas materiais, preferindo cultivar uma vida intelectual plena, dedicada aos estudos e a escrita, longe da confusdo das cidades, na tranquilidade da vida comunitéria e do convivio com a natu- reza na pequena vila de Mecosta, no noroeste de Michigan, onde durante quase tarefa de plantar centenas de arvores, preservando a beleza natural do local para as geragdes vindouras. Em termos materiais viveu de forma modesta; contudo, foi contemplado com a “graga natural da existéncia”.* Um bom exemplo desse trago pessoal surge no seguinte inquenta anos dividiu o tempo de trabalho com a trecho de uma carta de 13 de outubro de 1953, que enviou para 0 itor Henry Regnery (1912-1996): [A pobreza nunca me ineomodou; posso viver com quatrocentos délares por ano, se for preciso. Tempo para pensar eliberdade de agio sio-me ‘muito mais importantes no presente que qualquer possivel vantagem cconémica. Sempre tive de viver a custa de meus esforcos, sofrendo a ‘oposigio,¢ nao tendo amparo, dos tempos ¢ dos homens que condu- zem as sas, ¢ nfo me importo em continuar dessa maneira.™* ® Russell Kirk, “Reflections of a Gothic Mind”. In: Confessions of a Bohemian Tory: Episodes and Reflections of a Vagrant Career. Nova York, Fleet Publishing Corporation, 1963, p. 3. © Idem, The Sword of Imagination, p. xi » Edmund Burke, Reflections om the Revolution in France, p. 331. % Henry Regnery, “Russell Kirk and the Making of The Conservative Mind”, 382, a “Mago de Mecosta”, denominagao que gostava de utilizar para se referir a si mesmo,” rejeitou a gloria transit6ria e a fortuna efémera que poderia ter conquistado nos grandes centros académicos ou nos bastidores da politica e preferiu viver de modo simples e modesto em Piety Hill, a casa ancestral da familia em Mecosta, cercado de pa- rentes, amigos, alunos, andarilhos e refugiados politicos ou religiosos oriundos do Vietna, da Polénia, da Tchecoslovaquia ¢ da Etiépia. Tal exemplo de hospitalidade o fez comparar a propria residéncia com Valfenda, o lar de Mestre Elrond, o senhor de Imladris, 0 sabio e valo- roso elfo da trilogia The Lord of the Ring [O Senhor dos Anéis| de J. R. R. Tolkien (1892-1973): a “tltima casa amiga”, um lugar de “enten- dimento, agdes e curas, para preservar todas as coisas imaculadas”..” Russell Kirk viveu uma existénci integrada, na qual os escri- tos e a atuacao publica se harmonizaram, numa concep¢io mistica e sacramental da realidade, com a vida privada.”* Mais do que como intelectual puiblico, o conservador Kirk dé testemunho de suas con- viegdes pelo modo como desempenhou na propria vida os papéis de marido, pai de quatro meninas, amigo ¢ orientador de varios jovens pesquisadores, © que torna o conhecimento da imaginagao kirkeana inseparavel da prépria vida do autor.” Russell Kirk, The Surly Sullen Bell: Ten Stories and Sketches, Uncanny or Unconfortable, with A Note on the Gostly Tales. Nova York, Fleet Publishing. Corporation, 1962; Louis Hiller, “The Wizard of Mecosta: Russell Kirk of Michigan”. Michigan History, v. 63, n. 5, Setember-October 1979, p. 12- M.E, Bradford, The Wizard of Mecosta”. National Review, v. XXXII, n.25, December 12, 1980, p. 1513-14, © J. RR. Tolkien, O Senbor dos Anéis: A Sociedade do Anel. Trad. Leni- ta Maria Rimoli Esteves e Almiro Pisetta. Sao Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 237, 299s p. 284. Fssas duas passagens da obra de Tolkien sao citadas em: Russell Kirk, The Sword of Imagination, op. cit, p. 344. an Boyd, C.S.B., “Russell Kirk: An Integrated Man”. The Intercollegiate Review, v. 30, n. 1, Fall 1994, p. 18-22. Alem dos proprios relatos de Russell Kitk no ensaio “Reflections of a Gothic ind” © na autobiografia The Sword of Imagination, ver, também: Annette Filho primogénito do maquinista de trem Russell Andrew Kirk (1897-1981) e da gargonete Marjorie Rachel Pierce Kirk (1895-1943), Russell Amos Kirk nasceu em 19 de outubro de 1918, na cidade de Plymouth, no sudeste do estado de Michigan. O menino herdou do pai o ceticismo em relagao as teorias sociais abstratas, a indiferenga ‘40s modismos e 0 aprego pela sabedoria do senso comum. A mie con- tribuiu decisivamente no despertar da imaginagao do filho pela leitu- 1a dos contos de fadas e est6rias, tendo estimulado nele 0 gosto pela leitura de obras literérias. Outra figura que exerceu grande influéncia na formagio do menino durante os primeiros anos de vida foi o avo materno Frank H. Pierce (1867-1931), que tanto pelo exemplo quanto pela amizade fez 0 neto se interessar pelos estudos, principalmente da Historia. O gosto pela poesia foi adquirido com a mae, com a avé ma- terna Eva Johnson Pierce (1871-1953) e com a bisav6 Estella Russell Johnson (1848-1936). As experiéncias familiares associadas as leituras ddos classicos abriram seus olhos para o fendmeno que G. K. Chesterton (1874-1936) chamou “democracia dos mortos”*” ¢ que Edmund Burke denominou “contrato primitivo da sociedade eterna”,"! ou seja, a alian- ‘ga que une todos os seres humanos em um pacto imortal “feito entre Deus ¢ a humanidade, ¢ entre as geragdes que desapareceram da Terra, fa geragio que ora vive, e as geragdes ainda por chegar”."? Kirk, Life with Russell Kirk. Washington, D.C., Heritage Foundation, 1995, (The Heritage Lectures, $47); Cecilia Kirk Nelson, “A Literary Patrimony”. The University Bookman, v. XXXIV, n. 2, 1994, p. 23-28; Alex Catharino, “A vida e a imaginagio de Russell Kirk", In; Russell Kirk, A Ena de T. S, Eliot, op. cit, p. 11-104, © G.K. Chesterton, Ortodoxia. Apres., notas ¢ anexo Ives Gandra da Silva Martins Filho, trad. Cliudia Albuquerque Tavares. Sao Paulo, Editora LT, 2001, p..69. “Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France, op. cit p. 359. “© Russell Kirk,“A Arte Normativa e 0s Vicios Modernos”. Trad. Gustavo Santos ce notas de Alex Catharino. COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia & Cultura, ¥. XXVIU, n. 4, outubro-dezembro 2008, p. 993-1017. Cit, p. 1006. A Politica da Prudéncia | Apresentacdo a Edicao Brasileira Entre 1923 ¢ 1936, Russell Kirk estudou na Starkweather School € na Plymouth High School, ingressando em seguida na Michigan ‘State University, onde se bacharelou em Histéria em 1940. Em 1941, defendeu 0 mestrado em Hist6ria pela Duke University com sua pes- quisa publicada, em 1951, como seu primeiro livro sob o titulo John Randolph of Roanoke: A Study in Conservative Thought John Ran- dolph de Roanoke: Um Estudo sobre Pensamento Conservador],"* que recebeu mais trés edigdes revistas ¢ ampliadas com o titulo John Randolph of Roanoke: A Study in American Politics [John Randolph de Roanoke: Um Estudo de Politica Americana]. Durante a Segunda Guerra Mundial serviu no exército dos Esta- dos Unidos, entre 1941 e 1946, nos estados de Utah e da Florida, sob a patente de sargento, realizando servigos burocraticos. Ingressou, em. 1946, na University of Saint Andrews, na Escécia, por onde recebeu 0 prestigioso titulo Literatum Doctorem, em 1952, com a tese que deu origem ao ja citado livro The Conservative Mind. Entre 1946 ¢ 1987. atuou como professor em diferentes instituigdes de ensino superior. Foi eleito juiz de paz, em 1961, da Morton Township, em Mecos- ta County, Michigan, ocupando 0 cargo até 1965. De 1979 a 1988 foi diretor do programa de ciéncias sociais do Educational Research Council of America, com sede em Cleveland, Ohio. Russell Kirk aceitou 0 convite do escritor William F. Buckley Jr. (1925-2008) para escrever na nascente National Review** uma coluna * Idem, John Randolph of Roanoke: A Sudy in Conservative Thought. ‘Chicago, University of Chicago Press, 1951. “A partir da segunda edigio, publicada em 1964 pela Henry Regnery ‘Company, o autor incluiu como anexo ao livro uma selecio de cartas ¢ de discursos de John Randolph. Em 1978, a Liberty Press publicou a terceira exigdo da obra. Postumamente,apareceu a sequint edigho revista pelo autor: Russell Kirk, John Randolph of Roanoke: A Study in American Politics ~ With Selected Speechs and Letters. 4. ed. Indianapolis, Liberty Fund, 1997. “ Ahistria da National Review sua importincia para o movimento conser: vador,ressaltando em varias partes o papel de Russell Kirk como inspirador 24 |25 mensal, intitulada “From the Academy” [Da Academia}, que apareceu na primeira edigao em 19 de novembro de 1955 ¢ foi publicada até 17 de outubro de 1980, quando decidiu cessar sua colaboragao regular ‘com o periddico, escrevendo apenas ocasionalmente artigos, obitudrios ¢ resenhas de livros. Junto com o editor Henry Regnery fundou, em 1957, o periddico trimestral Modern Age, do qual foi editor até 1959. Visando difundir livros conservadores, fundou, em 1960, periddico trimestral de resenhas The University Bookman, do qual foi editor até a morte. Em 30 de abril de 1962 foi langado o primeiro artigo da colu- na diaria “To the Point” [Direto a0 Ponto], escrita por Kirk como jor- nalista sindicalizado e publicada até 29 de junho de 1975 em diferentes jomais de todo o pais. De 1988 a 1994 coordenou a The Library of Conservative Thought (A Biblioteca de Pensamento Conservador], uma colegao de livros de autores conservadores clissicos e contempo- rinos, publicada pela Transaction Publishers, para a qual escreveu pre- ficios ou introdugdes” na maioria dos mais de trinta titulos langados. Uma longa jornada espiritual e intelectual, que j4 vinha sendo trilhada desde 1948, fez Russell Kirk se converter ao catolicismo, re- ‘ecbendo o batismo e pela primeira vez o sacramento da Eucaristia no dia 15 de agosto de 1964, festa da Assungio de Nossa Senhora, € 0 sacramento da Confirmagio em 1974, adotando 0 nome religioso de e colaborador do petiédico, é narrado em: Jeffrey Hart, The Making of the American Conservative Mind: National Review and its Times. 2. ed ‘Wilmington, 1S1 Books, 2006. “ A coluna “To the Point” foi objeto da seguinte dissertagio de mestrado: ‘Thomas Chesnutt Young, Russell Kirk's Column “To The Point": Traditio- nal Aspects of Conservatism. Johnson City, East Tennessee State University, 2004. Uma listagem dos 294 artigos mais signficativos da coluna aparece ‘em; Charles C. Brown, “Section C ~'To the Point’ Column: A Selection”. In: Russell Kirk: A Bibliography, op. cit., p- 63-80. © A relagio completa dos sessenta e nove preficios ou introdusies escritos por Russell Kirk para livros de outros autores aparece em: Charles C. Brown, tion G ~ Introductions and Forewords to Books”. In: Russell Kirk: ‘A Bibliography, op. city p. 15-20, A Politica da Prudéncia | Apresentacao a Edicao Brasileira Russell Amos Augustine Kirk, em meméria de Santo Agostinho (354- 430) para testemunhar o proprio processo gradativo de aceitagao da f&.8 Apés 0 cultivo de uma profunda amizade ¢ de uma longa troca de correspondéncias, Russell Kirk se casou em 19 de setembro de 1964 com a bela ¢ inteligente jovem conservadora Annette Yvonne Cecile Courtemanche, vinte dois anos mais nova do que ele,a quem fora apresentado em fevereiro de 1960 numa conferéncia em Nova York patr ambos foram palestrantes. Os principais frutos dessa unio foram as quatro filhas do casal, a saber: Monica Rachel, Cecilia Abigail, Felicia Annette ¢ Andrea Seton. A vida matrimonial, repleta de amor ¢€ alegria, possibilitou a sistematizagao e um maior desenvolvimento inada pela organizagao anticomunista AWARE, em que das potencialidades intelectuais de Kirk, que, mesmo nao tendo des- cuidado dos estudos e da atuagao na vida publica do pais, passou a viver, principalmente, em fungao da familia, e tornou-se um marido exemplar, bem como um pai carinhoso e atencioso. Em 16 de fevereiro de 1994, uma quarta-feira de cinzas, Russell Kirk foi informado, numa consulta médica, que sofria de insuficién- cia cardiaca congestiva ¢, portanto, teria poucas semanas de vida. Diante da noticia aproveitou o tempo que Ihe restava para continuar © trabalho na organizagio da coletinea Redeeming the Time, além de escrever o texto “Is Life Worth Living?” [A Vida Vale a Pena?],** © epilogo da autobiografia The Sword of Imagination. Ao questionar © Alex Catharino,“A vida e a imaginagao de Russell Kirk”, op. cit, p. 46-56. © Russell Kirk, “Is Life Worth Living?”. In: The Sword of Imagination, op. cit, 1p-471-76.O titulo € uma referéncia ao lvro Is Life Worth Living? [A Vida Vale 4a Pena?] de W, H, Mallock (1849-1823), publicado originalmente em 1879, ‘que € listado por Russell Kirk no capitulo 4 (*Dez Livros Conservadores”, p. 138) da presente obra como um dos textos que, na diversidade do impulso ‘conservador, deve ser lido por todos que buscam a sabedoria politica e moral. Antecipando o langamento da autobiografia de Russell Kirk, 0 ensaio foi publi- ‘eado postumamente por Annette Kirk e Jeffrey O. Nelson em: Russell Kirk, “Is, Life Worth Living”. The University Bookman, ¥. XXXIV, n.2, 1994, p.29-34, me ‘© sentido da existéncia humana, o Mago de Mecosta relembra a im- portincia dos pais na formagao do carter, ressalta o papel da crenga na transcendéncia para a sobrevivéncia da civilizacio e defende que ‘© homem ¢ feito para a eternidade. No texto, o Kirk se define como alguém que foi ao mesmo tempo pré-moderno e pés-moderno, além de fazer a seguinte reflexdo: A presente vida na Terra, muitas vezeso vislumbrara Kirk, € efémera, du vidosa, mais parecida com uma arena que com um palco: alguns homens ‘estio destinados a ser gladiadores ou cavaleiros andantes, nio meros jogadores erradios. De espadas desembainhadas, postam-se na planicie uumbrosa em defesa de todos e contra tudo; quiio bem eles se conduzi- rem em tal luta mortal determinaré que condigio poderio atribuir & incorrupgio. Nao obstante os proprios pecados omissivos ¢ comissivos, nna arena do arruinado século XX, Kirk soara a trombeta, empunhara 4 espada da imaginagio e pudera investir contra as tolices do tempo.’ Russell Kirk faleceu serenamente em Piety Hill na presenga dos familiares, no dia 29 de abril de 1994, sendo sepultado no cemitério dda paréquia catélica de St. Michael, em Remus, Michigan. Atras da ova, a vitiva e as quatro filhas plantaram uma de suas amadas arvo- res e mandaram erigir uma grande lapide de granito negro em forma de ogiva gotica, onde se lé: “Russell Kirk / 1918-1994 / Man of Let- ters” € 0 seguinte trecho dos versos de'T. S. Eliot em “Little Gidding”, © iiltimo dos Four Quartets [Quatro Quartetos}, tantas vezes repe- tidos por Russell Kirk: “a comunicagio dos mortos se propaga, em linguas de fogo, para além da linguagem dos vivos”.*! Por defender esse elo entre as diferentes geragdes, que cha- mamos de tradigao, 0 alvo das reflexdes de Russell Kirk foram os * idem, The Sword of Imagination, op. cit, p. 475-76 °° S. Eliot, “Lite Gidding”. 1, 52-53. No original em inglés: “the ‘communication | Of the dead is tongued with fire beyond the language of the living”. TS. Eliot, “Little Gidding”. In Four Quartets, Nova York, Harcourt Trace 1943, p. 49°59, City p. 51, “remanescentes”, a minoria criativa da sociedade que, ultrapassando as divisdes de classe, as diferengas de raga e sexo ou orientagao poli- tica, age como o sal da terra, lutando pela preservagio dos principios permanentes da civilizagao ocidental. Visando contribuir na forma- ‘so de uma nova geragao de liderangas intelectuais conservadoras, © Mago de Mecosta recebeu na propria casa intimeros estudantes nor- ‘te-americanos ¢ europeus, que foram orientados como bolsistas da ‘Wilbur Foundation, muitos dos quais ocupam, atualmente, cétedras em importantes instituigdes de ensino superior. De 1973 até 1993, © Intercollegiate Studies Institute (ISI)* desenvolveu programas de formagao em Piety Hill, nos quais o Cavaleiro da Verdade, algu- mas vezes acompanhado por outros ilustres professores, lecionou em diferentes semindrios sobre assuntos diversos para centenas alunos. ‘Tanto 0s seminérios organizados em parceria com o ISI quanto a orientagio de pesquisas dos bolsistas da Wilbur Foundation foram a origem do trabalho desenvolvido, desde 1995, pelo Russell Kirk Center for Cultural Renewal, que, fundado e presidido por Annette Kirk, congrega diversos académicos, dentre os quais iniimeros ex- -alunos de Russell Kirk, ¢ dé continuidade ao legado do pensamento kirkeano, preservando 0s arquivos do autor, mantendo uma ampla biblioteca, promovendo seminérios académicos e dando suporte para varios pesquisadores. Mesmo tendo como alvo principal os “remanescentes”, Russell Kirk no se eximiu das responsabilidades de inspirador do movimento conservador norte-americano. O literato George Gissing (1857-1903) afirmou que “a politica é a preocupacio dos semianalfabetos”. Em diferentes momentos da vida publica, o Cavaleiro da Verdade se lem- brou dessa adverténcia, mas, a0 mesmo tempo, teve consciéncia que a ® A historia e a atuagio no movimento conservador do IS, instituiglo que desde a fundagio, em 1956, contou com o apoio de Kirk, é objeto do seguin- te livro: Lee Edwards, Educating for Liberty: The First Half-Century of the Intercollegiate Studies Institute. Washington, D.C. Regnery Publishing, 2003. politica “nao pode ser abandonada totalmente aos semianalfabetos”.** A responsabilidade intelectual diante de graves problemas, tanto em questées domésticas quanto nas relagdes externas, fez. com que Kirk se envolvesse, algumas vezes, com a pratica politica, mas sempre en- tendendo tal atividade como a arte do possivel ¢ evitando a associ ‘go com grupos radicais ou sectarios. Manteve um amplo e respeitoso didlogo com iniimeros adversarios politicos e intelectuais, sabendo di- ferenciar as divergéncias tedricas das relagdes pessoais. Um exemplo da atitude moderada e cordial do Mago de Mecosta nessas questes foi o contato com o historiador e critico social Arthur M. Schlesinger Je. (1917-2007), assessor do presidente John F. Kennedy (1917-1963) ‘€membro do Partido Democrata, com quem debateu inimeras vezes ‘em artigos para jornais ou em eventos pablicos, trocando uma vasta correspondéncia amistosa com esse interlocutor." Russell Kirk esteve em contato com iniimeros politicos de diferen- tes tendéncias, vindo a conhecer pessoalmente e a trocar correspondén- as, entre outros, com 0 ex-presidente Herbert Hoover (1874-1964), © pacifista e socialista Norman Thomas (1884-1968), 0 senador re- publicano Barry Goldwater (1909-1998), 0 senador democrata Eu- gene J. McCarthy (1916-2005), o vice-presidente Hubert Humphrey © Russell Kirk, The Sword of Imagination, op. cit. p. 167. Tanto, Russell Kirk quanto Arthur M. Schlesinger Jr. foram pioneiros nos estudos e na divulgagio do pensamento de Orestes Brownson durante 0 sé- culo XX. Uma apreciagio de Kirk sobre as ideias de Schlesinger aparece no sequinte artigo: Russell Kirk, “Arthur M. Schlesinger, Je". Los Angeles Times, August 24, 1962, (ID), p. 5. A edigio de 17 de julho de 1960 do The New York Times Magazine publicou os artigos “A Republican View of Democrats” ide Russell Kirk e “A Democratic View of the Republicans” de Arthur M. Schlesinger Jr, bem como em 6 de novembro de 1960 os ensaios “The Case for Nixon” de Kirk e “The Case for Kennedy” de Schlesinger. Além da vasta correspondéncia entre os dois intelectuais, os arquivos do Russell Kirk Center preservam um video de debate, gravado em Piety Hill na década de 1980, no ‘qual Kirk ¢ Schlesinger abordam de forma cordial as concepgdes divergentes {que sustentavam sobre Filosofia da Hist6ria, A Politica da Prudéncia | Apresentacao & Edicao Brasileira (1911-1978), o congressista republicano e futuro presidente Gerald R. Ford (1913-2006), os presidentes Lyndon B. Johnson (1908-1973), Ri- chard M. Nixon (1913-1994), Ronald Reagan (1911-2004) e George H. W, Bush, bem como o futuro presidente George W. Bush.” Por acreditar que sua missio era trabalhar além das pequenas disputas do corpo politico, Kirk declinou dos convites para assumir postos na ad- ministragao piblica feitos por Nixon e Reagan, dizendo ironicamente para 0 primeiro que “poderia ter tido esse tipo de cargo quando tinha trinta anos, se desejasse”, e brincando com o segundo afirmou: “como vvocé deve me odiar para tentar me transformar num burocrata”.** A coeréncia com os principios defendidos sempre foi mais impor- tante que as aparentes necessidades politicas do momento hist6rico, faror que fez Russell Kirk criticar 0 uso de bombas nucleares contra 0 Japao durante a Segunda Guerra Mundial, censurar a atuagio do se- nador republicano Joseph R. McCarthy (1908-1957) e da John Birch Society na perseguicao politica e na dentincia aos comunistas, notar 08 defeitos gerados pelo conformismo do chamado “American Way of Life” [modo de vida norte-americano], desaprovar a doutrina da guer- ra preventiva e a entrada dos Estados Unidos na Guerra do Viet, mnal da diplomacia norte-americana a Israel e o envolvimento, direto ou indi- reto, dos Estados Unidos nos problemas do Oriente Médio, tal como se deu na guerra entre 0 Ira ¢ Iraque, de 1980 a 1988, nos contitos no Libano, em 1983; ¢ na Primeira Guerra do Golfo, em 1991, Kirk apoiou, em 1976, a candidatura independente de Eugene J. McCarthy, por acreditar que nao existiam diferengas de programa politico entre 0 assim como avaliar negativamente 0 apoio quase incondi % 0 envolvimento de Kirk com a vida politica € abordado em The Sword of Imagination nos capitulos 10 (“The Art of Politics and the Art of Love”, p. 249-71), 11 (“Private Victory and Public Defeat”, p, 273-303), 12 (“Ima ination and Pratical Politicians”, p. 305-36) ¢ 16 (“Causes Gained, Causes Disputed”, p. 437-69), Russell Kirk, The Sword of Imagination, op. cit, p. 435. 30|31 republicano Gerald Ford e © democrata Jimmy Carter. Em 1992, assu- miu em Michigan a coordenago da campanha presidencial de Patrick Buchanan nas primérias do Partido Republicano como uma forma de ‘expressar a desaprovagao as diregdes tomadas pela administragao de George H. W. Bush na politica interna e nas relagdes externas. A atuagio de Russell Kirk em causas politicas no foi 0 apoio a campanhas eleitorais, ao contato com politicos ¢ a critica aos problemas governamentais, mas, também, pelo envolvimento em \¢o em intimeros debates nos quais en- itada causas sociais e pela part frentou, de forma cordial, varios oponentes famosos, como 0 lider do movimento negro Malcolm X (1925-1965), a filésofa e romancista libertaria Ayn Rand (1905-1982)* e o ativista social da “nova esquer- is batalhas travadas pelo Cavaleiro da Verdade em sua atuagio pablica foram 0 combate ao da” Tom Hayden,” entre outros. As princi avango do radicalismo andrquico nas universidades, a oposigéo a ® Malcolm X e Russell Kk partciparam juntos em Chicago de um debate no Programa de televisio do apresentador Irving Kupcinet (1912-2003). Apos 0 assassinato do lider do movimento, poucos meses apés o debate, Kirk escte veu 0 seguinte artigo relatando parte do evento e as impresses dele sobre Malcolm X; Russell Kirk, “Words about Maleolm X". The Helena Montana Independent Record, Wednesday, March 3, 1965,p. 4. * © debate entre Ayn Rand ¢ Russell Kirk foi mediado pelo apresentador Evie Sevireil (1912-1992) num programa de televisto no canal CBS, sendo relatado por Kirk no seguinte artigo: Russell Kirk, “An Encounter with Ayn Rand”. Los Angeles Times, August 6, 1962, (Il) p. 5. O texto fo reimpresso to livro Confessions of a Bohemian Tory, op city p. 181-82, 0 debate com Tom Hayden em 1968 na Michigan Universit relatado em: Russell Kitk, The Sicord of Imagination, p. 406 eral sobre a chamada “nova esquerda” aparcee no segunte ati Kirk," Prospects of New Left". The Spartanburg Herald, August 1, 1966, p. 3. 0 didlogo mantido entre Russell Kirk alguns lideres dos protstosestudan- tis da década de 1960 é narrado em: Russell Krk, The Sword of Imagination, 1p.405-17.A critica de Kirk ao avango do radicalism andrquico nos camp uni ‘vetsitiios aparece em diversos artigos de opiniio nas colunas From the Acade ‘my e Ta the Pointe em diversosensaios,dentr os quais destacamos o seguinte: Ann Arbor, é utilizagao do aborto como politica de satide pablica ou como direito pleiteado pelo movimento feminista," ¢ a luta contra a redugdo da li- berdade religiosa na esfera piiblica,® bem como o apoio a necessidade de uma reforma educacional pautada no primado da familia, na com- petigao de curriculos, na divers lade de instituigdes de ensino com Russell Kirk, “The University and Revolution: An Insane Conjunction”. The Intercollegiate Review, v 6, n. 1-2, Winter 1969-1970, p. 13-23, © Russell Kirk apoiou ativamente o trabalho de insimeros grupos pré-vida, atuando de forma efetiva, com a esposa Annette Kirk, na cruzada em defesa dos direitos do nascituro. Nessa ardorosa batalha, Kirk contribuiu escreven- do diversos artigos de opiniao em jornais de grande cireulagio e ministrando wérias palestras em diferentes cidades contra a legalizacio do aborto, sendo ‘© mais importante porta-vor da organizagio PTAAA (People Taking Action Against Abortion / Pessoas Agindo Contra © Aborto). envolvimento de Russell e Annette na causa pr6-vida, bem como a luta do casal contra os de- fensores do aborto, sio narrados em: Russell Kirk, The Sword of Imagination, OP. city p. 417-32, Os principais escrtos te6ricos kirkeanos nos quais aparece a critica a se- cularizagao da sociedade e a defesa da liberdade religiosa sio 0s respectivos ensaios: Russell Kirk, "Moral Principle: Church and State”. In: The American Cause, p. 35-46; Idem, “The First Clause of First Amendement: Politics and Religion”. In: The Conservative Constitution, p. 128-42; Idem, “Civilization without Religion”. In: Redeeming the Time, p. 3-15; Mdem, “A Christian Colle- se i the Secular City”. In: Rights and Duties, p. 166-79; kdem, “An Establish- ment of Humanitarianism?”. In: Rights and Duties, p. 180-93. Assumindo ‘uma posisio contréria ao secularismo, Kirk escreveu alguns artigos de opiniao sobre casos judiciais especificos, envolvendo a luta de determinados grupos de cidadaos contra a redugio da liberdade religiosa proposta por reformas ceducacionais estatais. Uma das principais agdes priticas envolvendo o proble- ‘ma em que Kirk se envolveu foi a participagio como um dos organizadores © como palestrante da National Conference on Religion Liberty [Conferéncia Nacional para Liberdade Religiosa], semindrio que reuniu mais de quinhentas pessoas, em Washington, D.C., no dia 22 de janeiro de 1984, em que intelec- tuais, juristas e parlamentares, a partir da anilise de casos judiciais espectficos, debateram 0 papel do executivo, do judiciirio e do legislativo na luta contra ‘ secularismo militante. Os anais do evento foram publicados como: The As sault on Religion: Commentaries on the Decline of Religious Liberty. Ed. ¢ Inte. Russell Kirk, Pref. James McClellan. Lanham / Cumberland, University Press of America / Center for Judicial Studies, 1986, 32(33 énfase em escolas privadas independentes, nos estudos clissicos, no retorno da Histéria em substituigdo aos “Estudos Sociais” nos curricu- los escolares e na instrugao dos principios morais para os alunos.® Tal atuagio politica pode ser resumida numa carta para 0 amigo e editor Henry Regnery, datada de 6 de dezembro de 1987, em que escreve 5 livros histricos, os escritos polémicos, a critica literéria e mesmo a ficgo que produzi foram no intuito de resisti as paixdes ideolégi ‘eas que tém devastado a civilizagio desde 1914 ~ aquilo que Arnold ‘Toynbee chamou de “periodo de desordem'” (...). Nadei contra a cor- rente da opinio dominante. Ao ver se aproximar meu septuagésimo aniversdrio, estou deveras surpreso de nio ter sido langado ao abismo profundo; de fato, fiz algum progresso contra a mare ideoligica e os ferozes apetites de nossa época.* © A tematica da educagio, com énfase na defesa do modelo clissico da edu «eagio liberal ena critica aos erros culturais e pedagdgicos disseminados pelas cconcepgies progressstas dos eformistas educacionais, € um ponto recorrente no pensamento kirkeano, tendo sido um dos principaisobjetos tatados nos artigos de opiniao das colunas From the Academy e To the Point e em ini- imeros ensaios académicos, bem como nos seguintes livros: Russell Kirk, Aca- demic Freedom: An Essay in Definition. 2. ed. Chicago, Regnery Publishing, 1962; The Intemperate Professor and Others Cultural Splenetics. 2. Pera, ‘Sherwood Sugden & Company, 1988; Decadence and Renewal in the Hi- her Learning: An Episodic History of American University and College sin- ce 1953. South Bend, Gateway, 1978. Dentre os insimeros ensaios escritos por Kirk que dissertam sobre a educagio, destacamos, além do capitulo 16 (Cale te (*Notas para uma Definigio de Propésito Educacional", p. $41-59) do capitulo 10 (“Iusdes e Afirmagies”, p. 541-84) no jd citadolivro A Ena de'T S. Bliot: A Imaginagio Moral do Século XX ¢ os capitulos II (*The Tension ‘of Order and Freedom in the University”, p. 29-40), 1V (“The Conservative Purpose of a Liberal Education”, p. 41-52), V (“Can Vitue Be Taught?”, p. 53:67) €1X (“Humane Learning inthe Age of the Computer”, p. 114-27) na coletinea Redeeming the Time. O pensamento educacional kirkeano é anali- sao em: Peter J. Stalis, “Prophet of Higher Education”. The Intercollegiate Review, v.30, 1, Fall 1994, p. 76-80; David G. Bonagura Jr.,“The Sword of Education”. The University Bookman, ¥. XLVI, n. 4, Winter 2008, p. 16-20. “A correspondéncia completa trocada entre Henry Regnery ¢ Russell Kirk, entre tas décadas de 1950 € 1990, se encontra arquivada na Hoover Institution Library sndo Desertos Educativos", p. 301) da presente obra, primeira par- ‘A Politica da Prudéncia | Apresentacao a Edicao Brasileira © brilhantismo intelectual de Russell Kirk foi amplamente reco- nhecido, 0 que o levou a receber intimeros prémios pelas obras acadé- micas e de fiego, bem como doze doutorados honoris causa, Tanto os textos académicos e os ensaios de opiniao quanto os escritos literdrios de Russell Kirk tém chamado a atengao de intimeros pesquisadores que, principalmente ao longo das tiltimas duas décadas, vém produ- zindo um niimero crescente de livros, capitulos de livros ou ensaios de referéncia,!* bem como, artigos em periddicos e trabalhos de dou- and Archives da Stanford University em Palo Alto, na Califia, Forocopias de toda essa vastacorrespondéncia entre Kirk e Regnery fazem parte do acervo dos arquivos do Russell Center for Cultural Renewal, em Mecosta, Michigan, « Alem da jé citada coletinea The Unbought Grace of Life: Essays in Honor of Russell Kirk, organizada por James E, Person Jy foram publicados, até 0 presente momento, quatro livros em inglés dedicados a vida e ao pensamento dle Russell Kirk, a saber: James E. Person Jy Russell Kirk: A Critical Bio- graphy of a Conservative Mind, Lanhan, Madison Books, 1999; W. Wesley McDonald, Russell Kirk and the Age of Ideology. Columbia, University of Missouri Press, 2004; Gerald J. Russllo, The Postmodern bmagination of Rus- sell Kirk. Columbia, University of Missousi Press, 2007; John M. Pafford, Rus- sell Kirk. Nova York, Continuum, 2010. Atualmente, historiador Bradley J. Birzr, ticular da Citedea Russell Kirk de Estudos Americanos do Hillsdale College, esti desenvolvendo uma pesquisa sobre a vida e o pensamento de Russell Kirk, eujo resultado dos estudos seré publicado em 2014 pela Univer- sity Press of Kentucky com 0 titulo The Humane Republic: The Imagination of Russell Kirk. Em polonés, foi publicada recentemente a seguinte biografia intelectual: Grecgore Kucharczyl, Russell Krk (1918-1994): Mysl Poitycena Amerykarskiego Konsereatysty. Varsovia, Wydawnictwo Prohibita, 2012, % Dentre os diversos capitulos de livro ou ensaios em obeas de referéncia {que abordam o pensamento kirkeano, destacamos os seguintes: John P. East, “Russell Kirk”. In: The American Consereative Movement: The Philosophi cal Founders. Inte. George H. Nash. Chicago / Washington, D.C., Regnery Books, 1986, p. 17-375 James McClellan, "Russell Kirk's Anglo-American Conservatism”. In: Bryan-Paul Frost ¢ Jeffrey Sikkenga (Ed.), History of American Political Thought. Lanham, Lexington Books, 2003, p. 646-65; Vigen Guroian, “Russell Kirk: Christian Humanism and Conservatism”, In: Rallying the Really Human Things: The Moral Imagination in Poli- tics, Literature, and Everyday Life. Wilmington, ISI Books, 2005, p. 31-45; W, Wesley McDonald, *Kirk, Russell (1918-94)”, In: Bruce Frohnen, Jeremy 34[35 torado ou de mestrado sobre a tematica,"” nao apenas nos Estados Unidos, mas, também, no Reino Unido, na Alemanha, na Ikilia, na Espanha, na Polénia, na Repiblica Teheca, na Hungria, na Russia, no Japio ¢ no Brasil. A maior honra prestada ao Cavaleiro da Verdade foi oferecida por Ronald Reagan, quando, em 18 de janeiro de 1989, © condecorou com a Presidential Citizen's Medal for Distinguished Service to the United States Ordem de Mérito da Presidéncia por Eminentes Préstimos aos Estados Unidos}, afirmando que: ‘Como profeta do conservadorismo norte-americano, Russell Kirk ensi- now einspirou uma geragio. De sua sublime e elevada posiglo em Piety Hill, penetrou profundamente nas raizes dos valores norte-americanos, escrevendo ¢ editando trabalhos centrais de flosofia politica. Sua con- tribuigao intelectual foi um profundo ato de patriotismo.* Atuando, de fato, como uma espécie de profeta do conservado- rismo, Russell Kirk foi um dos principais responsaveis pela recupe- ragio da credibilidade intelectual da corrente nos Estados Unidos, durante o periodo subsequente & Segunda Guerra Mundial, fator que Beer Jeffrey O. Nelson (Eds.), American Conservatism, p. 471-74; George H. Nash, “The Life and Legacy of Russell Kirk”. In: Reappraising the Rights The Past & Future of American Conservatism Wilmington, ISI Books, 2009, p. 72-83; Gerard J. Russello, “Russell Kirk: Tradicionalist Conservatism in 4a Postmoderm Age”. In: Kenneth L. Deutsch ¢ Ethan Fishman (Eds.), The Dilemmas of American Consersatiom. Les University Press af Ken: tuky, 2010, p. 125-49; Andre Gushurst-Moore, “Russell Kirk and the Ad ‘ventures in Normality". In: The Common Mind: Politics, Society and Chris: tian Humanism from Thomas More to Russell Kirk. Tacoma, Angelico Press, 2013, p. 217-30. Em lingua portuguesa, vero seguinte verbete: Alex Cathari no, “Russell Kirk (1918-1994), In: Vicente Barreto ¢ Alfredo Culleton (Eds, Dicionério de Filosofia Politica. Sio Leopoldo, Unisinos, 2010, p. 289-93. Uma listagem bibliogrifica parcial dos textos sobre Russell Kirk pode ser encontrada em: Charles C. Brown, *Section L ~ Writings about Russell Kirk”. Russell Kirk: A Bibliography, p. 169-89. ‘Transerevemos a referida passagem do documento original que se encontra ‘nos arquivos da biblioteca do Russell Kirk Center for Cultural Renewal, na cidade de Mecosta, em Michigan, nos Estados Unidos. desencadeou a criagdo e o fortalecimento de um movimento cultural € politico amplo que sobrevive até os nossos dias e que rompeu consenso liberal que parecia dominar 0 cenério norte-americano.” Mesmo guardando diversos pontos em comum com o pensamento liberal classico, o liberalismo na Inglaterra e nos Estados Unidos ao longo do século XX esté mais associado a uma visio politica pro- ‘gressista, influenciada pelo romantismo de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e pelo utilitarismo de Jeremy Bentham (1748-1832) € de John Stuart Mill (1806-1873), tal como se verifica nos escri- tos de Thomas Hill Green (1836-1882), John Hobson (1858-1940), Leonard T. Hobhouse (1864-1929), Woodrow Wilson (1856-1924), John Dewey (1859-1952), Hans Kelsen (1881-1973), John Maynard Keynes (1883-1946), Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), Lionel ‘Trilling (1905-1975), o j4 citado Arthur M, Schlesinger Jr, John Rawls (1921-2002) e Richard Rorty (1931-2007), entre outros.” Russell Kirk moveu, ao longo de toda a vida adulta, uma cru- zada contra os erros ideolégicos da modernidade. Numa perspectiva kirkeana, portanto, 0 cenério politico-intelectual dos iiltimos trés sé- culos poderia ser descrito como o conflito entre trés posturas distintas. © Uma anilise paradigmatica que reflet idea do liberalismo como tiniea cor rent intellectual nos Estados Unidos aparece em: Lionel Trilling, The Liberal Imagination: Essays on Literature and Society. Nova York, Viking Press, 1950. 7 Para uma visio histirica ampla sobre o desenvolvimenta do pensamenta li bral, ver: José Guilherme Merquios, © Liberalismo: Antigo e Moderno. Pref. Roberto Campos, Trad. Henrique de Araijo Mesquita. 2. ed. Rio de Janciro, Nova Fronteira, 1992. Acompanhada de uma atualizada relagio bibliografi- «ca, uma breve introdugio historia e a caracterizagio teérica do liberalismo aparecem no seguinte verberte: Alex Catharino, “Liberalismo”. In: Vicente Barreto ¢ Alfredo Culleton (Eds.), Dicionério de Filosofia Politica, . 307-11 [As principais criticas de Russell Kirk ao modemno liberalismo se encontram nos respectivos ensaios: Russell Kirk, “The American Scholar and the Ameri- can Intellectual”, p. 3-15; Kdem, “The Reform of American Conservatism and Liberalism”, p. 16-31; “The Dissolution of Liberalism”, p. 32-42; “The Age of Discussion”, In: Beyond the Dreams of Auarice, p. 43-50 “Liberal Forebo- dings”. In: Enemies ofthe Permanent Things, p. 172-196. A primeira € a reacionaria, que, pautada numa visio idealizada do pasado, tenta defender as tradigdes contra qualquer forma de mudan- {tal como advogada por Henry St. John (1678-1751), 1° Visconde Bolingbroke. A segunda é a ideia liberal ou progressista, defendida por ‘Thomas Paine (1737-1809), que, norteada por nogdes abstratas acer- a da natureza do homem e da sociedade, se volta de forma ideol6gica contra os costumes ¢ instituigdes, acreditando que a revolugio é 0 melhor meio de implantar as mudangas necessérias. Finalmente, temos 4 mentalidade conservadora, tal como apresentada pelo pensamento burkeano, que tenta preservar os prineipios fundamentais apreendidos pela experiéncia hist6rica e que, orientada pela virtude da prudén- cia, aceita, por reformas gradativas, as mudancas culturais ou sociais inerentes a dinamica hist6rica. Em termos te6ricos, os trés pilares da ordem na modernidade, segundo Russell Kirk, so 0 pensamento de Edmund Burke, de Samuel Johnson (1709-1784) ¢ de Adam Smith (1723-1790), que apresentam a defesa das “coisas permanentes” nos ‘campos da moral, das letras, da politica e da economi Tanto os liberais modernos ¢ social-democratas, esquerdistas moderados, quanto os diferentes tipos de socialistas ¢ comunistas, ‘esquerdistas radicais, podem ser vistos como parte do grande grupo dos progressistas. De certa forma, alguns elementos ideoldgicos do progressismo sio encontrados, também, em determinadas ideias de- fendidas pelos libertérios e pelos neoconservadores. De acordo com Russell Kirk, a mentalidade progressista pode ser caracterizada pela renga nos seguintes fundamentos: 1. A perfectibilidade do homem s radicais acreditam que a educacao, a legislagio positiva e a alte- ragio do ambiente podem produzir homens semelhantes a deuses; negam que a humanidade tenha uma inclinagdo natural a violencia © 20 pecado: meliorismo. jtado progresso da sociedade. » Russell Kirk, “Three Pillars of Order: Edmund Burke, Samuel Johnson, ‘Adam Smith”. In: Redeeming the Time, p. 254-270. ee 2. Desprezo pela tradiglo. A razio, 0 impulso eo determinismo materia- lista so respectivamente preferidos como guias mais confidveis para bem-estar social do que a sabedoria dos ancestrais. A religiio formal & rejeitada e virias ideologias sio apresentadas como substitutas. 3. Igualitarismo politico. Ordem e privilégio sio condenados;a democra- cia total, tio dreta quanto possivel,é 0 ideal declarado dos radicais. Aliadas a esse esptio estio, geralmente, a aversio ao antigo sistema parlamentaristae a asia por centralizagio e unificagio politcas. 4, Igualitarismo econdmico. Os antigos direitos de propriedade, espe~ cialmente a propriedade da terra, ‘05 radicais, ¢ os reformadores coletivistas decepam a instituigio da dio suspeitos para quase todos propriedade privada com raiz e galhos. Desde Edmund Burke até Russell Kirk, a luta do pensamento conservador foi contra esses elementos ideolégicos da mentalidade progressista. Apés o término da Segunda Guerra Mundial, o renas- cimento do conservadorismo norte-americano € descrito pelo histo- riador George H. Nash, no jé citado The Conservative Intellectual Movement in America: Since 1945 |O Movimento Intelectual Con- servador na América: Desde 1945], tendo como origem a coalizao de trés forcas distintas contra a agenda liberal dominante. A consciéncia de cada uma dessas forcas antiprogressistas foi incrementada, respec- tivamente, por trés livros especificos. A primeira vertente era a dos libertirios. Herdeiros das erit cas elaboradas por escritores individualistas” como Albert Jay Nock (1870-1945) ¢ Isabel Paterson (1886-1961) aos programas Russell Kirk, The Conservative Mind: From Burke to Eliot, p. 10. ® George H. Nash, “The Revolt of the Libertarians”. In: The Conservative Intellectual Movement in America, p. 1-29, Para uma analise hist6rica deta- hada do desenvolvimento da critica ao intervencionismo estatal ¢ da defesa do livre mercado no século XX, ver: Angus Burgin, The Great Persuasion: Reinventing Free Markets since the Depression. Cambridge, Harvard Uni- versity Press, 2012, rl governamentais do New Deal implementados pelo presidente Franklin Delano Roosevelt, condenavam a politica piblica liberal de solugio dos problemas sociais e econdmicos oriundos na Grande De- pressio.” O grupo congregou-se, inicialmente, em torno das ideias ‘expressas no livro The Road to Serfdom {O Camino da Servidao|”* de Friedrich August von Hayek (1899-1992), langado em 1944. A obra demonstra como o planejamento econdmico estatal conduz, hecessariamente, a0 aumento das fungdes governamentais na so- ciedade ¢ a0 centralismo administrativo, gerando, assim, a redugio, das liberdades individual e politica. O trabalho contra o avango dos poderes estatais ¢ a defesa do livre mercado promovidos pelos i- bertirios recebeu um grande impulso com a criagao da Foundation for Economic Education (FEE) por Leonard Read (1898-1983) em 1946, a publicagao dos livros Economics in One Lesson [Economia ‘numa Unica Ligao],’* de Henry Hazlitt (1894-1993), em 1946, ¢ Hu- ‘man Action [Agio Humana],” de Ludwig von Mises (1881-1973), ‘em 1949, ¢ a fundagio do periddico Freeman em 1950. ® As causas da Grande Depressio, compreendidas a partir da teoria dos ci- los econémicos, si0 apresentadas em: Murray N. Rothbard, A Grande De- pressio Americana. Int. Paul Johnson, Trad. Pedro Sette-Camara. Si0 Paulo, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012. Para uma visdo sintética da Crise de 1929, bem como das tentativas de solucio pelo New Deal, ver: Paul Johnson, “Degringolada”. In: Tempos Modernos, p. 191-217. % Acrescida de um longo estudo introdut6rio € de diversos anexos escritos por renomados economistas, foi publicada em inglés a seguinte edigi critica: FA. Hayek, The Road to Serfdom: Text and Documents ~ The Definitive Faition. Ed ¢ inte, Bruce Caldwell. Chicago, Chicago University Press, 2007. “Traducida com base na versio inglesa de 1976, a obra esti disponivel em por- tugués na seguinte ediglo: FA. Hayek, O Caminho da Servidao. Trad. Ana Maria Copovilla, José Italo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. 6. ed. Sio Paulo, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. % Heney Hazlitt, Economia numa Unica Ligdo. Trad. Leénidas Gontijo de Carvalho, 4. ed. Si0 Paulo, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, Ludwig von Mises, Ago Humana: Um Tratado de Economia. Trad. Donald Stewart Jr 3, ed. Sio Paulo, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. Toms Gs Prudence | Apresentacso 8 Edkso Brastewa No contexto da Guerra Fria, emergi o segundo grupo, formado pelos anticomunistas. Inspiraram-se, principalmente, na autobiografia Witness (Testemunha}” de Whittaker Chambers (1901-1961), publi- cada em 1952, em que o autor narra, entre outros fatos, o proprio envolvimento com ideias marxistas, sua conversio ao cristianismo ¢ a luta que iniciou contra a ideologia esquerdista, denunciando a infiltra- Gio de agentes comunistas no governo norte-americano, na imprensa € ‘nos meios educacionais ¢ culturais, além do papel que teve na delagio no julgamento do agente soviético Alger Hiss (1904-1996).” As ba- ses intelectuais da postura anticomunista nos Estados Unidos foram langadas pelos trabalhos pioneiros dos ex-militantes socialistas Max Eastman (1883-1969), William Henry Chamberlin (1897-1969), Eu- gene Lyons (1898-1985) e Freda Utley (1898-1978), recebendo maior impulso com a autobiografia de Whittaker Chambers e com os escritos tedricos de James Burnham (1905-1987).* Um dos grandes méritos de Chambers, junto com a National Review, para 0 movimento conserva- dor foi denunciar © proceso de paganizagio da direita norte-america- na promovido pelas obras de Ayn Rand. Em grande parte, a corrente do movimento conservador denominada por Russell Kirk de Conser- vadorismo Popular teve suas origens nos grupos anticomunistas. As duas correntes supracitadas do movimento conservador, em suas lutas contra o coletivismo, estiveram mais preocupadas com * A digo mais recente da obra, nunca tadurida para © portugues, € a se szuinte: Whittaker Chambers, Witnes. Pref. William F. Buckley Int: Robert D. Novak. Washington, D.C., Gateway, 2001 George H. Nash, “Nightmare in Red”. In; The Conservative Intellectual Movement in America, p. 74-117. Ver também: Patrick A. Swan (Ed), Alger Hiss, Whittaker Chambers, and the Schism in the American Soul. le. Wilfed M, McClay. Wilmington, ISI Books, 2002 © SamuctT; Francis, Power and History: The Political Thought of James Bur ‘nhar, Lanham, University Press of America, 1984; Daniel Kelly, James Burnham and the Struggle for the World: A Life. Pref. Richard Brookhieser. Wilmington, ISI Books, 2002. questoes politicas ¢ econdmicas, ao passo que a terceira vertente enfatizou a importancia das tradigées moral e cultural classica € judaico-ct ica." Os utores ligados a tal segmento do movimento conservador, por ist como fundamento da economia e da pol eonta da énfase nos aspectos imateriais da existéncia humana, foram denominados conservadores culturais ou tradicionalistas, recebendo, posteriormente, 0 epiteto de paleoconservadores no embate com os chamados neoconservadores, mas preferiam, no entanto, o simples rétulo de conservadores, sem acréscimo de ne- hum prefixo ou adjetivo. Tal como descrito no inicio do presente ensaio, 0 livro The Conservative Mind de Russell Kirk foi o grande divisor de aguas na formagio do movimento intelectual conservador nos Estados Uni- dos. A definigio dos seis canones que caracterizam a mentalidade eonservadora ¢ a exposigio de uma genealogia do conservadorismo britinico e norte-americano foi fator determinante para o surgimen- to de uma nova identidade politica nos Estados Unidos, o que ser- vyiu como uma espécie de catalisador num processo de precipitagio contra a hegemonia liberal. As rafzes dese movimento de retorno a tradigio foram gestadas na critica aos erros ideol6gicos do periodo, ‘que, por sua vez, esteve marcado pela negacao dos desvios te6ricos modernos.® A resisténcia intelectual ao consenso liberal dominante teve como marcos a publicagao dos livros The Attack on Leviathan [© Ataque ao Leviata]" de Donald G. Davidson em 1938, Ideas -orge H. Nash, “The Recovery of Tradition and Values”. In: ative Intellectual Movement in America, p.49-61 © Idem, “The Revolt Against the Masses”. In: The Conservative Intellectual Movernent in America, p. 30-48. © Donald Davidson, Regionalism and Nationalism in the United States: The Attack on Leviathan. Inet. Russell Kirk. New Brunswick, Transaction Publi- shers, 1991, Ver também o capitulo 7 ("Donald Davidson 0 Conservadoris- ‘mo Sulista”, p. 177-90) da presente obra. Have Consequences |As Ideias Tém Consequéncias}* de Richard M. Weaver em 1948, € The New Science of Politics [A Nova Ciéncia da Political" de Eric Voegelin em 1952. Juntamente com a obra The Quest for Community [Em Busca da Comunidade} de Robert A. Nisbet, também publicada em 1953, 0 langamento do livro The Con- servative Mind foi o apice de uma gradativa resisténcia aos desvios da modernidade. Como doutrina caracteristica da dade Moderna, 0 liberalismo é ao mesmo tempo, raiz ¢ fruto da modernidade. Mais do que um periodo histérico determinavel por eventos especificos, a modernidade pode ser entendida como um processo de libertagao das antigas cren- as, 0 que, paradoxalmente, sujeitou parte da humanidade aos novos dogmas da ideologia. Nesse sentido, é possivel compreender os desvios ideolégicos da modernidade como um conjunto de paradoxos intelec~ tuais e culturais com desdobramentos politicos e econémicos, em que a tentativa de derrubar as muralhas de protegao erigidas pela tradigio criou prises que subjugam pelo arbitrio, Ao negar os aspectos trans- cendentes da realidade, a busca pelo conhecimento puro ¢ objetivo, pautado exclusivamente na razio, levou ao subjetivismo ¢ a negagio do reconhecimento de qualquer verdade acerca da natureza humana ou da ordem social. Ao descartar os critérios objetivos da normativi- dade e romper com os canones estéticos universais, 0 moderno ideal de ampliagio da criatividade arti a valorizagao exacerbada da genialidade individual se transformaram nas raizes da cultura de mas- sa de modelos padronizantes. O empenho pela autonomia total do in- dividuo, liberto dos constrangimentos da moral tradicional ou das leis :m Consequéncias, Tad. Guilherme Araijo Ferreira. Sa0 Paulo, E Realizagbes, 2012. © Brie Voegelin, A Novi Ciéncia da Politica. Int. José Pedro Galvio de Sousa, ‘Trad. José Viegas Filho. Brasilia, Editora Universidade de Brasilia, 1982. % Robert A. Nisbet, The Quest for Community: A Study in the Ethics of Or der & Freedom. Pref, William A. Schambra. Sao Francisco, ISC Press, 1990. da comunidade, gerou agrupamentos de étomos sociais tutelados pelo igantesco poder massificante e uniformizante dos Estados nacionais. ‘A crenga no dogma democratico como garantia de maior igualdade social destruiu intimeros padrdes meritocriticos ¢ nivelou os indivi- duos por baixo, em condigdes inferiores as potencialidades humanas, mpliando o controle estatal na sociedade, ¢ criando, assim, nao uma Jinica classe de iguais, mas duas classes divididas por um abismo: a dos privilegiados burocratas governamentais € a da pacata multido amorfa, © anseio por progresso material ilimitado, alimentado pelo pirito da ganancia ¢ da avareza, produziu um gigantesco sistema Industrial desumanizante ¢ massificante, controlado pela burocracia ‘corporativa e pela regulamentagao e tributago estatais, que reprimem 4 pleno desenvolvimento das livres forgas empreendedoras. © conservadorismo kirkeano ressalta que as modernas sociedades \eologizadas sio assombradas pela ansiedade, produzida pela “desor- dem na existéncia privada”¢ pela “desordem na experiéncia social”, que ‘eresce “na fraqueza, imporéncia e frustragio” e, apesar dessa inquieta- ‘eo nunca poder ser totalmente abolida, s6 recuara quando estivermos ‘em conformidade com as normas, tendo recuperado, assim, “o propési- 10 da existéncia do homem”.*’ Dentre os aforismos repetidos pelo Mago dle Mecosta, recordamos a afirmagao de Henry Stuart Hughes (1916- 1999) de que “o conservadorismo é a negagao da ideologia”."* ‘A mentalidade conservadora defendida por Russell Kirk, por- tanto, nao deve ser entendida a luz do “logicismo” moderno como. Imera construgio intelectual, mas como uma disposigio de cardter que nos move a lutar pela restauragio e preservagio das verdades da natureza humana e da ordem social, legadas pela tradigao, e a rejeitar todos os esquemas racionalistas apresentados pelas diferen- tes concepcdes ideolégicas. Segundo tal perspectiva, a ordem social © Russell Kirk, “A Arte Normativa e os Vicios Modernos”, p. 1002-03. \ Henry Stuart Hughes, “The End of Political Ideology”. Measure, v.2,n. 2 (Spring 1951), p. 153-54. EN EDESIAES NUCENKIA | Apresentacao a Edigao Brasileira “comeca a se desintegrar ~ ou é suplantada por um controle muito diferente - quando 0 costume politico e a teoria politica so comple- tamente dominados pela ideologia”.” O entendimento kitkeano do cardter ideol6gico da modernidade fundamenta-se tanto nas criticas de Edmund Burke aos “metafisicos abstratos” € aos “reformadores fanaticos”” como na filosofia de Eric Voegelin,” que vé a ideologia como uma “existéncia em rebelido contra Deus e 0 homem””? Na tentativa de definir a natureza desse mal, afirma Kirk: “Ideologia” nao significa teoria politica ou principio, embora mui= ‘os jornalistas e alguns professores, comumente, empreguem 0 termo nesse sentido. Ideologia realmente significa fanatismo politico ~ e, ‘mais precisamente, a crenga de que este mundo pode ser convertido Russell Kirk, “O Opio das Ideologias”. Trad. Marcia Xavier de Brito, notas ‘Alex Catharino. In COMMUNIO: Revista internacional de Teologia e Cul- ‘ura, v. XXVIII, n. 3, Julho-Setembro 2009, p. 767-90. Cit, p. 767. “Um homem ignorante, que ndo é tolo 0 bastante para interferir no me- ccanismo do préprio rel6gio, é, contudo, confiante o suficiente para pensar ‘que pode desmontar ¢ montar ao bel prazer uma maquina moral de outro estilo, importincia e complexidade, composta de muitas outras engrenagens, ‘molas ¢ balangas e de forgas que neutralizam e cooperam. Os homens pouco Pensam quao imoralmente agem ao imiscuirem-se precipitadamente naquilo ‘que nao entendem. A boa intengdo iluséria nao é uma espécie de desculpa para a soberba. Verdadeiramente fariam bem aqueles que temessem agir mal” (Edmund Burke, Am Appeal from the New to the Old Whigs. ln: The Works of the Right Honorable Edmund Burke, volume IV. Boston, little, Brown and Company, 1865, p. 209-10) "0 pensamento voegeliniano € uma interpretagio moética que busca criar uma filosofia da ordem, irito, como alter nativa i desordem gerada pela crise da mod: no dé solugio completa para curar os problemas de nossa época, a0 idemtificar as raizes do ‘mal-estar social contemporaneo, aponta os meios de cura do mal eriado pela desculturagio, fruro das ideologias”. Alex Catharino, “Erie Voegelin (1901- 1985)”. In: Vicente Barreto ¢ Alfredo Culleton (eds.), Dicionério de Filosofia Politica, p. 538-41. Cit, p. 538. " Eric Voegelin, Ordem ¢ Historia ~ Volume I: Israel e a Revelagdo. Inte Maurice P. Hogan, Trad. Cecilia Camargo Bartolotti, Sio Paulo, Loyola, 2009, p. 32. 44) 45 ‘num paraiso terrestre pela agio da lei positiva do planejamento seguro. O ide6logo - comunista, nazista ou de qualquer afiliagao ~ sustenta que a natureza humana e a sociedade devem ser aperfeigoa- das por meios mundanos, seculares, embora tais meios impliquem ‘numa violenta revolugao social. O ide6logo imanentiza simbolos re ligiosos e inverte as doutrinas da religiso. (© que a religiéo promete ao fil numa esfera além do tempo e do espa- 0, ideologia promete a todos na sociedade ~ exceto aos que forem “liquidados” no processo.” A ideologia é uma “fanatica doutrina armada que s6 pode ser con- frontada por um poderoso corpo de principios sadios”.™ Diante de tal problema, Russell Kirk reconhece que a caracteristica decadéncia cul- tural e politica de nossa época nao é o resultado de “forgas inelutaveis, mas a consequéncia da desobediéncia & verdade ética”,” cujo resultado € a criagdo de um ambiente de anormalidade. Nas palavras de Kirk: © mal da desagrega soa ¢ da repaiblica. Até reconhecermos a natureza dessa enfermidade, seremos forcados a afundar, cada ver mais, na desordem da alma e do Estado. © restabelecimento das normas $6 pode comesar quando ns, ‘modernos, viermos a compreender a maneira pela qual nos afastamos das antigas verdades."* 10 normativa corréi a ordem no interior da pes: A correta apreensio das normas é possivel pela revelagao divina, Pelos costumes do senso comum e pelo discernimenta dos profetas, das forgas da tra- digo, responsdveis pela manutengao da ordem da alma e da comuni- dade. Ao distorcermos com visdes ideol6gicas as artes da literatura ¢ do estadismo, fomentamos a desagregacdo normativa, corrompendo 4 natureza humana ea ordem social, criando, assim, “uma geragao de 00 seja, pelo modo como sao transmitidas por Russell Kirk,"O Opio das Ideologias”, p. 767-68. "Idem, The American Cause, p. 4. "Idem, “A Arte Normativa ¢ 0s Vicios Modernos”, p. 994, * Ihidem, p. 993, eee a a ee ‘monstros, escravizada pela vontade e pelo apetite”.”” No processo de recuperagao da normalidade, devemos compreender que a socieda- de €*iluminada por um complexo simbolismo, com varios graus de compactagao ¢ diferenciagao”, que s4o partes integrantes da realida- de e, por conta disso, nossa tentativa de entendimento da ordem deve ser elaborada “a partir do rico conjunto de autorrepresentagdes da sociedade”.”* O conceito kirkeano de ordem € 0 arranjo harmonioso entre duas formas distintas e complementares de normatividade, a saber: 1*) a “ordem da alma”, denominada “ordem moral”; 2*) a “ordem da comunidade”, conhecida como “ordem constitucional”.” Na visio de Kirk: A ordem, no campo da moral, é a concretizagio de um corpo de nor- mas transcendentes ~ de fato uma hierarquia de normas ou padroes — que conferem propésito a e na sociedade, é 0 arranjo harmonioso de classes ¢ fungoes que pre servam a justiga, obtém o consentimento voluntario a lei e assegura téncia ¢ motivam a conduta. A ordem, ‘que todos, juntos, estaremos a salvo. Embora nao possa haver liber- dade sem ordem, num certo sentido, ha sempre um conflito entre os clamores da ordem e os da liberdade. Muitas vezes expressamos esse conflito como a competigio entre © desejo de liberdade © o desejo de seguranga.! © conservador deve assumir, assim, 0 papel de guardiao da or- dem, da liberdade ¢ da justiga, lutando pela restauragao e pela pre- servagaio das normas que informam as verdades acerca da natureza humana e da organizacio social. No livro The Conservative Mind, Russell Kirk elenca os chamados “seis canones do pensamento con- servador”, que caracterizam a doutrina e sio assim expostos: " Ibidem, p. 994. Eric Vocgelin, A Nova Ciéncia da Politica, p33. Russell Kirk, America’s British Culture, p. 83. Idem, “The Tension of Order and Freedom in the University”. In: Redeo- ‘ming the Time, p33. 1. A-crenga em uma ordem transeendente, ou corpo de leis naturais, que rege a sociedade, bem como a consciéncia. Os problemas politicos, no fundo, sio problemas religiosos e morais. Uma ra- cionalidade limitada, aquilo que Coleridge chamou de compre- ‘ensio, nao pod “Todo tory € um realista”, diz Keith Feiling: “sabe que existem grandes forgas nos céus ena terra que a filosofia humana nio pode sondar ou perscrutar”. A verdadeira politica é a arte de ‘compreender ¢ aplicar a justiga que deve triunfar em uma comu- niidade de almas. , por si s6, satisfazer as necessidades humanas. 2. Pendor pela prolifera variedade ¢ mistério da existéncia humana, ‘como algo oposto 4 uniformidade limitada, a0 igualitarismo e aos propésitos utilitérios dos sistemas mais radicais; os conservadores resistem ao que Robert Graves chama de “logicismo” na sociedade. Esse juizo prévio é chamado de “o conservadorismo da satisfagao” — tum senso de que vale a pena viver, e segundo Walter Bagehor, “a fonte apropriada de um conservadorismo vivaz”. |. Conviegao de que a sociedade civilizada requer ordens e classes, em ‘oposigdo a nogdo de uma “sociedade sem classes”. Com raziio, 05 conservadores foram chamados, muitas vezes, de “partido da or dem”, Caso as distingdes naturais entre os homens desaparegam, as oligarquias preencherdo o vicuo. A igualdade suprema no Jul- ‘gamento de Deus ¢ a igualdade perante os tribunais de justiga sto reconhecidos pelos conservadores, mas a igualdade de condigdes, creem, significa igualdade na servidio e no tédio. Gerteza de que propriedade ¢ liberdade esto intimamente rela~ cionadas: Separai a propriedade da posse privada e © Leviata se tornara o mestre absoluto. Igualdade econdmica, sustentam, niio é progresso econdmico, 5. Fé no uso consagrado e desconfianga de “sofistas,ealculistas e eco- ‘nomistas” que querem reconstruir a sociedade com base em proje~ tos abstratos, O costume, a convengio € os usos consagrados so freios tanto ao impulso anarquico do homem quanto 4 avide do inovador por poder. 6, Reconhecimento de que mudanga pode nao ser uma reforma sa- lutar: a inovagio precipitada pode ser uma voraz conflagragio em vez de uma tocha do progresso. A sociedade deve modificar-se, visto ‘que a mudanga prudente € 0 meio da preservagio, mas o estadista deve levar em conta a Providén a principal virtude do politico, segundo Platao ¢ Edmund Burke, € a prudéncia,"®" Ao buscar uma renovagio do entendimento das ordens moral ¢ social, sugerindo meios adequados para preservar as “coisas perma- nentes” na luta contra a ideologia, Russell Kirk elencou, no ja citado livro A Program for Conservatives, uma série de dez. problemas que devem ser enfrentados pelos conservadores, a saber: 1. © problema da mente, ou de como proteger 0 intelecto da esterili- ‘dade e da uniformidade da sociedade de massa 2. © problema do coragao, ou como ressuscitar as aspiragdes do es- 10 € 0s ditames da consciéncia numa época que foi tragada ha tanto tempo por horrores. 3.0 problema do tédio, ou como nossa sociedade industrializada e padronizada pode oferecer um significado novo para pessoas verda- deiramente humanas, 4. O problema da comunidade, ou como o coletivismo pode ser evita- do pela restauragio da verdadeira comunidade. 5. © problema da justiga social, ou como evitar que a inveja e a avare- za ponham o homem contra seu semelhante. 6. O problema do querer, ou como satisfazer as justas aspiragies € repudiar os desejos injustos. 7. O problema da ordem, ou como variedade e complexidade deve ser preservadas em nosso meio, 8. 0 problema do poder, ou como a forga posta em nossas mios pode ser conduzida pela reta razo, Idem, The Conservative Mi From Burke to Eliot, p. 8-9. 9.0 problema da lealdade, ou como ensinar aos homens a amar 0 pais, os antepassados e a posteridade. 10. © problema da tradicio, ou como, nestes dias em que o Tarbilhio”™ parece reinas, a continuidade poderd unir geracao a geragio."" Seguindo os ensinamentos de Edmund Burke, 0 programa con- servador apresentado por Russell Kirk reconhece que “um Estado sem meios de empreender alguma mudanga esta sem os meios para se conservar”,"™ ao mesmo tempo em que ecoa os seguintes versos de Robert Frost (1874-1963): “A maioria das mudangas que cremos ver ida / F devida ao favor e desfavor de verdades”."" A aceitagio de "No original em inglés: “ Whirl”. Referéncia a uma situago cbmica apresen- tadla na comédia As Nuvens de Aristofanes (447-385 a. C.),criadas a partir da palavra grega divn (dine /turbilhio), que tanto podiasignificar 0 movimento ‘que originow a Terra, tal como explicado por Platio (427-347 a. C.) no didlo- 40 Fédon (996) e por Aristoteles (384-322 a, C.) no tratado Sobre o Céu (Il, 13, 295a), como o fendmeno do vortice, como no caso dos tornados ¢ ciclo- nes, cujo termo, popularizado pelo dramaturgo Euripides (480-406 a.C.), ra ilizado para referir-se a qualquer objeto torneado, como um vaso de cerami- ‘a, Numa primeira passagem, apds receber instrugies do *sofista maluco” S ‘rates de Melos ~ uma sitira a0 filésofo ateniense Sécrates (469-399 a. C.) = ‘8 personagem Estrepsiades conclui que “Zeus nio existe, ¢ no lugar dele reina 6 Turbilhio” (381). Num segundo momento, apés clogiar para ofilho Fidipi: des os méritos da educagio recebida ¢ revelar que “Zeus nao existe!” (826), Escrepsiades afirma que “Quem reina é 0 Turbilhio, depois de ter expulsado Zeus” (827). Finalmente, ao destronar a divindade e passar a cultuar um vaso de ectimica, Estrepsiades acredita que esta livre das obrigagies de cumprie a promessa de pagar as dividas contraidas, afrmando a um dos eredores que “para os entendidos, o Zeus dos seus juramentos €ridiculo!” (1241), Utiiza ‘mos aqui os trechos da seguinte edigio: Aristofanes, As Nuvens. Trad. Gilda Maria Reale Starzynski. Sao Paulo, Abril Cultural, 1972. (Colegdo *Os Pen- sadores”, Volume I: Sécrates), p. 175-230. Cit. p. 193, 208, 222. Russell Kirk, A Program for Conservatives, p. 16-17. Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France, p. 259. Robert Frost, “The Black Cottage”, Versos 109-110..No original em inglés: “Most ofthe change we think we see i life Is due to truths being in and out of favour”. Robert Frost, “The Black Cottage”. In: North of Boston. Nova York, Henry Holt and Company, 1915, p. 50-55. Cit. p. 54-55. reformas saudaveis como meio de preservagao e o reconhecimento de que muitas das aparentes mudangas se dao pela aceitacio ou negagao da verdade sio fatores decisivos para entendermos que conservado- rismo kirkeano nao é uma proposta reaciondria que se volta contra toda ¢ qualquer alteragdo na cultura ou na sociedade, nem uma de- fesa do status quo. A proposta conservadora de Kirk é um conjunto de conselhos prudenciais que nos alerta para os riscos de desconside- rarmos totalmente os valores e costumes testados historicamente pela jo em nome da arrogancia racionalista de erigir de uma nova ordem social a partir dos caprichos humanos, A nogio de tradigao defendida pelo pensamento kirkeano pode ser compreendida melhor pela seguinte definicao do literato T. S, Eliot: ramente, a manutengio de cer- tas crencas dogmaticas; essas crengas vieram a ganhae forma vivida no decorrer da formagaio de uma tradigdo. O que chamo de tradigio abrange todas aquelas ages usuais, hibitos e costumes, que vio do Fito religioso mais significativo a0 nosso modo convencional de saudar lum estranho, que representam os lagos de sangue de um “mesmo povo {que vive num mesmo lugar”. Encerra muito do que pode ser chama- do de tabu ~ al palayra ser utilizada em nossa época em um sentido cexclusivamente depreciativo é, para mim, uma curiosidade de algum relevo. Tornamo-nos conscientes desses detalhes, ou conscientes de sua importancia, geralmente, s6 depois de terem caido em desuso, como tomamos ciéncia das folhas de uma drvore quando 0 vento de outono comega a fazé-| las eair quando cada uma delas ja perdera a vida." Aeesséncia do pensamento de Russell Kirk nao pode ser entendida como uma doutrina politica, mas, acima de tudo, como “um estilo de Vida, forjado pela educacao e pela cultura”, que se expressa numa “for- ma de humanismo cristo, sustentado por uma concepgao sacramental “TS. Bliot, After Strange Gods: A Primer of Modern Heresy. Londres, Faber and Faber, 1934, p. 18. Ver tambérn: Russell Kirk, “The Question of “Tradition”. In: Prospects for Conservatives, p. 227-254; Idem, A Ena de T. S. Eliot, p. 199-202, 373-74. Ala realidade”, em que fatos e circunstancias culturais, como a moral {48 instituigGes sociais, nao so acidentes historicos, mas “desenvolvi- inentos necessarios da propria natureza humana”."”" Ao sustentar que 9 convicgio nao ¢ produzida pela logica da linguagem, nem pela acu- mulagdo dos fatos” e que “o verdadeiro conhecimento nao é 0 produto de uma razio met6dica”,! 0 conservadorismo kirkeano encontra sua plenitude, via fundamento humanista, na promogio da concepgio de *imaginagio moral” ena defesa do ideal classico de “educagao li ‘Tendo como pontos de partida a metifora de Edmund Burke para definir a moderna perda de religiosidade e do senso de cavalheirismo, em como algumas reflexes de John Henry Newman, de G. K. Ches- terton, de Irving Babbitt, de T. S. Eliot e de C. S. Lewis (1898-1963), Russell Kirk define a faculdade da imaginagdo moral como um “poder de percepgio ética que atravessa as barreiras da experiéncia individual ¢ de eventos momentaneos”, e aspira “a apreensio da ordem corre- ta na alma e da ordem correta na comunidade politica” ao informar sobre a dignidade da natureza humana”. A imagina ‘opbe iis formas andrquicas ¢ corrompidas de imaginagao que domi- yn © cenério cultural de nossa época, colaborando no processo de desagregacio normativa da civilizagao ocidental. A primeira delas, tal “como denominada e analisada por Irving Babbitt," é a timaginagao idilica”, um tipo andrquico que, na busca pela emancipagio dos cons- trangimentos convencionais, se torna fantistica, isenta de restrigées, ral”. 10 moral. se Alex Catharino, “Russel Kirk (1918-1994), p. 292. Russell Kirk, The Conservative Mind: From Burke to Eliot, p. 284, Alex Catharino, “A vida e a imaginagio de Russell Kirk”, p. 94-98, Russell Kirk, “A Lmaginagi0 Moral”. Trad. Gustavo Santos € notas Alex Catharino. COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura, ¥. XXVIII 1, Janeiro-Margo 2008, p, 103-19. Cit p. 104, Leving Babbitt, Roussean and Romanticism. Pref.Claes Ryn. New Brunswick, ‘Transaction Publishers, 2004; Idem, “Rousseau and the ldllic Imagination”. In: Democracy and Leadership, p. 93-119; Idem, “Burke and the Moral Ima- ination”. In: Democracy and Leadership, p- 121-40. primitivista, naturalista e utpica, numa total rejeigao e revolta contra velhos dogmas, constrangimentos morais convencionais ¢ costumes tradicionais. De uma controversa obra de T. S. Eliot," a ideia de “ima- ginagio diabélica” foi extraida por Russell Kirk para definir 0 imagind- rio corrompido pela perda do conceito de pecado e por uma concepgio de natureza humana infinitamente maledvel e mutavel. A imaginagio diabélica entende as normas morais como valores relativos as preferén- asin iduais subjetivas ou a transitoriedade dos diferentes contextos culturais, defendendo a abolicao de qualquer norma objetiva. AA base cultural de uma sociedade sadia é dada pela vida familiar, pela religido © pela educago, que deve ser orientada pelo modelo clissico da chamada educagio liberal, pois Russell Kirk entende que “na falta de convengdes sensatas, a ordem civil e social se dissolve. E na falta da variedade da vida e da diversidade das instituigdes, a normalidade sucumbe & tirania da padronizagao sem padrdes”."" A decadéncia dos esquemas pedagégicos vigentes, marcados por con- cepgdes ideolbgicas que se refletem no fanatismo ¢ na mediocridade de professores ¢ alunos, deve ser combatida pela livre adogio de um “modelo educacional humanista, pautado no ensino dos clissicos da civilizagao ocidental, comprometido com a sensibilidade artisti- a, ¢ preocupado em despertar a busca da sabedoria e a pritica da virtude”. © caminho para que as novas geragées superem 0 fana- tismo, a trivialidade © a mediocridade de nossa época é a adogio da educagao liberal, renovar 0 contato com os classicos com 0 propésito. de conservar um corpo sadio de conhecimentos legados pelos “gi- gantes do passado”, aprender as verdades eternas sobre a pessoa € a comunidade e romper os grilhées “do cativeiro do tempo e do espago: $6 isso nos permitird ter uma visio mais ampla e entender 0 "TS. Eliot, Affer Strange Gods, p. 5 ° Russell Kirk, “A Arte Normativa ¢ 0s Viios Modernos”, p. 1005, ° Alex Catharino, “Russell Kirk (1918-19%4)",p. 292. 57. ‘que € ser plenamente humano ~ capacitando-nos a transmitir as ge- tagoes vindouras o patriménio comum de nossa cultura’ Kirk ressalea que: © objetivo primario de uma educagao liberal, entio, é 0 cultivo do intelecto e da imaginagio do proprio individuo, para o bem do préprio individuo, Nao deve ser esquecido, nesta era massificada em que 0 Estado aspira a ser tudo em tudo, que a educagio genuina € algo além de mero instrumento de politica publica. A verdadeira educagio deve desenvolver o individuo humano, a pessoa, antes de servir a0 Estado. (..) 6 ensino nao foi originado pelo moderno Estado-Nagio, O ensino formal comecou, de fato, como uma tentativa de tomar o conhecimen- to religioso ~ o senso do transcendente e as verdades morais familiar | geragio nascente. Seu propésito nio era doutrinar os jovens em civis- mo, mas sim ensinar o que é ser um homem genuino, que vive dentro de uma ordem moral. Na educagio liberal, a pessoa tem primazia. Contudo, um sistema de educagio liberal eambém possum propésito social, ou a0 menos um resultado social. Ajuda a prover um corpo de indi ‘grande ou pequena escala, luos que se tornam lideres em muitos niveis da sociedade, em ‘Ao reunir as principais conferéncias apresentadas por Russell Kirk ‘a Heritage Foundation, durante as duas iiltimas décadas de vida do ‘autor, as coletaneas A Politica da Prudéncia e Redeeming the Time re- presentam 0 corolario do pensamento cultural ¢ politico kirkeano. Os dezoito capitulos do presente livro se voltam mais para os aspectos politicos, ao abordar os principios do conservadorismo, alguns eventos ‘marcantes na luta contra 0 progressismo, a caracterizagao da doutrina por algumas obras ¢ personalidades, a diferenciagao de quatro formas do impulso conservador ¢ 0 entendimento do autor sobre os proble- ragio mas das relacdes externas, da centralizagao estatal, da det do sistema de ensino, da proletarizagio da sociedade e da ideologia TW Russell Kirk, “The Conservative Purpose of a Liberal Education”. In: Redeeming the Time, p.42. We thidem, p. 43. a do democratismo, a0 passo que os vinte e dois capitulos de Redeeming the Time apresentam, por um lado, a questo da renovagao da ordem cultural e, por outro, algumas reconsideragdes sobre a ordem civil, a0 tratar dos temas do secularismo, do multiculturalismo, do ensino das virtudes, da educagio liberal, da imaginagao moral, da consciéncia his- torica, da lei natural, da justiga, da igualdade, dos direitos humanos ¢ da degradagao politica e cultural promovida pelo dogma democratico. Ao negar as modernas ideologias, o conservadorismo kirkeano transita entre o particular e 0 universal, pois, por um lado, reconhece as especificidades culturais ¢ institucionais de cada nagio, alertando para os riscos da simples transposi¢ao de modelos politicos e econd- micos estrangeiros, mas, por outro lado, sabe que existem principios absolutos transcendentes que devem ser 0 fundamento iiltimo da or- dem, da liberdade e da justiga em diferentes contextos histéricos. Nes- sa perspectiva, é tarefa dos conservadores brasileiros aderir a0 que ha de universal na proposta de Russell Kirk para a defesa da civilizagio ocidental contra o processo de “desagregagio normativa”, mas, tam- bém, recuperar nossa rica tradigao de conservadorismo, cuja genealo- sia pode ser encontrada desde os escritos morais ¢ econdmicos de José da Silva Lisboa (1756-1835), 0 visconde de Cairu, até as obras litera- rias de Ariano Suassuna, passando, dentre outras, pelas contribuigées de Paulino José Soares de Sousa (1807-1866), 0 visconde de Uruguai, José Anténio Pimenta Bueno (1803-1878), 0 marqués de Sio Vicente, José de Alencar (1829-1877), Joaquim Nabuco (1849-1910), Gusta- vo Corgio (1896-1978), Gilberto Freyre (1900-1987), Joao Camilo de Oliveira Torres (1915-1973), José Pedro Galvio de Sousa (1912- 1992) e Dom Lourengo de Almeida Prado O.5.B. (1911-2009). Em uma carta datada de 31 de julho de 1952 ¢ enviada de St. Andrews para o editor Henry Regnery, acompanhando 0 ma- nuscrito do livro The Conservative’s Rout: Account of Conservative Ideas from Burke to Santayana [A Diaspora dos Conservadores: Uma Anilise das Ideias Conservadoras de Burke a Santayana] que viria a se tornar o classico The Conservative Mind, Russell Kirk descrevia 4 obra com as seguintes palavras: “€ minha contrib sforgo de conservar a tradigao espiritual, intelectual e politica da Alvilizagio; ¢ se temos de resgatar a mentalidade moderna, devemos dle faz2-lo logo”.""” Desde 0 langamento de The Conservative Mind, ‘em 1953, até a publicagéo de The Politics of Prudence, em 1993, 4 “espada da imaginagio” do Cavaleiro da Verdade foi erguida na ‘nesma luta pelas “coisas permanentes” contra o dragio da ideologia, Wve, alimentado pelos “metafisicos abstratos” e pelos “reformadores faniticos”, se contrapde a “democracia dos mortos”, transformando 4 modernidade numa “terra desolada”. Por defender a restauragio le normas que transcendem a “légica da linguagem” ¢ a “acumula- ho dos fatos”,o Mago de Mecosta foi coerente no conflito literario Mravado em quase meio século, defendendo ao longo de todo esse pe- Hodo os mesmos fundamentos descobertos, inicialmente, nos escritos ile Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, John Henry Newman, Paul Pimer More ¢ Irving Babbitt, acrescentando, posteriormente, a sabe- doria das reflexdes de T. S. Eliot, Eric Voegelin e Christopher Dawson (1889-1970), entre outros. Assim como uma sinfonia, composta por diversos movimentos, adornados com complexa variedade melédica ¢ ritmica, executada /por diferentes instrumentos, cujo tema principal é harmonizado, no @ntanto, por um baixo continuo, o conjunto da obra de Russell Kirk aracteriza-se pelo exame atento de temas distintos, sempre manten- todavia, a unidade na defesa intransigente da verdade normativa apreendida pela grande tradigio. Tal defesa das “coisas permanentes” ‘4 baseia na crenga de que 0 verdadeiro pensamento politico trans- ‘conde as instituigdes particulares e o periodo em que foi elaborado, devendo, por isso, ser transmitido para as geragdes vindouras. Em um ‘Henry Regnery, “Russell Kirk and the Making of The Conservative Mind”, p.339. discurso pronunciado na convengio nacional de 1954 da fraternida- de feminina Chi Omega, Russell Kirk afirmou: conservador esclarecido nao acredita que o fim ou 0 propésito da Vida seja a competigdo, o sucesso, 0 prazer, a longevidade, 0 poder ou as posses. Acredita, ao contrario, que o propésito da vida é 0 amor. Sabe que a sociedade justa e ordenada é aquela em que 0 amor nos ‘governa, tanto quanto o amor pode nos reger neste mundo de dores; sabe que a sociedade andrquica ou tiranica é aquela em que 0 amor «std corrompido. Aprendeu que o amor é a fonte de todo ser, ¢ que © préprio inferno é ordenado pelo amor. Compreende que a morte, ‘quando findar a parte que nos couber, é a recompensa do amor. Per- ceebe que a verdade de que a maior felicidade jé dada ao homem & privilégio de ser feliz na hora da morte. Nao tem intengio de converter esta nossa sociedade humana em uma miquina eficiente para operado- res de maquina eficentes, dominados por mecainicos-chefe. Os homens = a este mundo, conclui, para lutar, para sofrer, para combater © imal que esta no préximo € neles mesmos, ¢ para ansiar pelo triun- fo do amor Vem a0 mundo para vver como homens, ¢ para more? ‘como homens. Buscam preservar a sociedade que permite aos homens atingie a prépria humanidade, ¢ nao aquela que os mantém presos aos lagos da infincia perpétua. Com Dante, engue os olhos para além deste lamagal, deste mundo de gérgonas e quimeras, em diregdo & luz que ‘oferece seu amor para esta Terra e para todas as estrelas."" Apés vinte anos do langamento da edigio original em inglés, os leitores de lingua portuguesa tém a disposigo uma edigao brasileira dA Politica da Prudéncia gracas aos esforgos de “abertura cultural” promovidos pela editora E Realizagdes. Agradeco ao editor Edson Manoel de Oliveira Filho pelo convite para escrever o presente estudo introdut6rio. Aproveito a oportunidade para expressar aqui a minha gratidao aos saudosos professores Og Francisco Leme (1922-2004) © Ubiratan Borges de Macedo (1937-2007), meus grandes mentores, * Russell Kirk, “Conservatism, Liberalism, and Fraternity”. Eleusis of Chi Omega, v. LVIMl,n. 1, February 1956, p. 121-30, Cit. p. 125. cuja amizade e a orientagio nos estudos por mais de dez anos colabo- raram profundamente para minha formacao intelectual, despertando em mim o amor pela ordem, pela liberdade e pela justiga. Agradego, também, o grande apoio dado por Annette Y. Kirk, desde 2008, & mi- tha pesquisa sobre o pensamento de seu marido, ao partilhar valiosas informagdes e relatos familiares, sugerir leituras, apresentar pesquisa- dores e franquear 0 acesso aos arquivos e a biblioteca do Russell Kirk Center for Cultural Renewal, além de ter dedicado uma parcela signifi cativa de seu tempo para debater comigo, em diversas oportunidades, 0 capitulos da obra e 0 conteiido do presente estudo introdutério, ajudando-me a entender melhor 0 contexto de certas ideias de Russell Kirk. Finalmente, agradeco a Marcia Xavier de Brito pela gentileza de ter lido meu texto, debatido certos pontos e dado algumas sugestoes. Acredito que esta edigio critica do livro A Politica da Prudéncia per- mitira ao publico brasileiro ter uma compreensio mais ampla tanto do pensamento de Russell Kirk como do conservadorismo. Alex Catharino Vice-presidene executivo do Centro Interdiscplnar de fica e Economia Perso- ralista (Cl de Teologiae Cultura, yerente editorial do periico MISES: Revista Interdsciplinar P), editor assistente do periddico COMMUNIO: Revista Internacional de Filosofia, Direito ¢ Economia e pesquisador do Russell Kirk Center for Cultural Renewal. Cursou a Faculdade de Histéria na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) fez estudos nas éreas de Historia, Literatura, Filosofia, Teologia, Economia ecie na, Coldmbia e Uruguai, E coautor das obras Ensaios sobre Liberdade e Prosperida- de (UNA Editoria, 2001) ¢ Dicionério de Filosofia Politica (Editora UNISINOS, 2010}, além de autor de artigos em diferentes periddicos académicos e do estudo introdut6- rio “A vida e a imaginagio de Russell Kirk” para a edigio brasileira do livro A Ena de TS. Eliot: A Imaginagao Moral do Século XX (E Realizagies, 2011) de Russell Kirk. ia Poltica em diferentes instituigDes no Brasil, EUA, Portugal, Ilia, Argenti= Introducao RUSSELL KIRK EO CORACAO CONSERVADOR. MARK C. HENRIE £ um lugar-comum dizer que a caracteristica que define aquela forma literaria particularmente moderna, 0 romance, é a Ppreocupa- gio com a revelagio da vida interior do homem comum. Dai 0 uso frequente, desde o inicio da histéria do género literdrio romance, do antificio de didrios ou cartas ~ por exemplo, no Clarissa! de Samuel Richardson (1689-1761), ou no Robinson Crusoe? de Daniel Defoe (1660-1731) -,culminando, por fim, no estilo de fluxo-de-conscién de James Joyce (1882-1941). Esse foco interior da atengao apresenta- se em contraste com a preocupagio classica do épico com os feitos ‘externos do homem extraordinétio. A psique moderna anseia por identificar-se com um protagonista ©, acanhada, evita 0 julgamento impl ito contra 0 prosaico que é ‘expresso por meio da vida exemplar do herdi. O self moderno busca ter 05 gestos complacentes do sentimentalismo, confirmados como haturais, ¢ mesmo louvaveis, e espera que até a virtude burguesa seja reyelada como uma inautenticidade hipécrita. No seu dnimo critico, * Samuel Richardson, Clarissa, or, the History of a Young Lady. Ed. Angus Ross. Londres, Penguin Classics, 1986. * Daniel Defoe, Robinson Crusoe, Intt. John J. Richetti. Londres, Penguin Classics, 2001. [Em lingua portuguesa a obra foi publicada, entre outras, na seguinte edigio: Daniel Defoe, Robinson Crusoé. Inte. John J, Richetti, Trad. Sergio Flaksman, Sio Paulo, Penguin-Companhia das Letras, 2012. (N.T.)} 0 self moderno busca vasculhar por debaixo dos feitos pablicos das figuras heroicas convencion: “teal”, demasiado humano, Dessa maneia, o self moderno reencon- tra a confianga na propria mediocridade ¢ nas falhas morais. A bio- grafia detalhada e reveladora é um deleite esp No livro The Sword of Imagination [A Espada da Imaginacio],? uma autobiografia ¢ sua tiltima obra, 0 finado Russell Kirk (1918- 1994) concluiu uma vida inteira de moderagio das paixdes ¢ dos interesses desregrados dos homens modernos. Nesse livro, o leitor que busca a revelagio confessional e a introspecgio melancdlica é rapidamente desconcertado, medida que o decano do movimento intelectual conservador nos Estados Unidos narra uma vida de muitos incidentes, tanto pablicos quanto privados, uma vida, como a chama, de “conflito literario”, E ainda, da maneira como foi escrita, perma- . para descobrir ai o homem privado, ial para os modernos. nece uma vida na qual a figura de Kirk fica a certa distancia, um pouco além do nosso alcance, em sua equanimidade decorosa. Euma vida de reserva formal, de corregao em meio a felicidade doméstica; e € uma vida que termina em silenciosa gratidao pelas gracas reco- nhecidas como imerecidas. As memérias de Kirk correspondem tio pouco A nossa moderna expectativa dessa forma literdria que ficamos perplexos: por que se dar ao trabalho de escrever um livro de mem6- rias, ¢ entdo esconder 0 proprio auténtico “self” por detras de uma mascara de trivialidades piedosas do século XVIII? O mais extraordindrio é que o leitor moderno fica desconcertado com a decisio de Russell Kirk de escrever as memérias em terceira pessoa, frustrando assim, definitivamente, ansia pela autorrevelagio, caracteristica do romance. Por certo ~ j4 podemos ouvir uma obje- do irritada -, isso é simplesmente impossivel, é uma afetagdo que vai longe demais. Para alguns criticos, essa tiltima escolha estilistica 7 Russell Kirk, The Sicord of Imagination: Memoirs ofa Half-Century of Lite rary Conflict. Grand Rapid, William B, Eerdmans Publishing Company, 199 constituiu uma espécie de prova que poderia descartar Kirk como alguém que nao era de fato um pensador, mas tio-somente um ma- neirista, que praticou uma forma elaborada de “pomposo cacocte Tory”. O estilo da prosa de Kirk — as frases tortuosas, as referéncias io atribuidas a John Bunyan (1628-1688), 0 uso promiscuo de afo- rismos € epigramas, o desinteresse pelos detalhes, a confianga pura € despreocupada nas afirmagGes historicas e tebricas ~ é certamente uma provocagao para a mentalidade académica contempornea. Sua prosa adornada é, com frequéncia, uma pedra de tropego até mesmo para aqueles que se aproximam dos escritos de Russell Kirk com boa vontade, Contudo, em vex. de descartar a mensagem por causa do meio, talvez fosse mais sibio considerar o estilo provocador de Kirk sob outra luz — como um convite ao ques Resta a resolver 0 maior “problema de Kirk”, passadas qua- se duas décadas de sua morte: 0 problema da categorizagio. Qual exatamente foi a natureza de seu projeto? Que tipo de pensador ¢ de escritor foi Kirk? The Conservative Mind [A Mentalidade Conservadoral,’ a grande realizagio de Kirk e 0 livro que deu 0 préprio nome ao movimento conservador norte-americano moder- ino, é em certo nivel, uma obra de pesquisa hist6rica. Como preten- jonamento. de ser uma histéria de teorias politicas normativas, uma dimensio normativa nao pode ser ignorada. Ao examinarmos o resto do gran- de corpo da obra de Kirk, encontramos os costumeiros ensaios, ‘Russell Kirk, The Conservative Mind: From Burke to Eliot 7. e, rev. Int Henry Regnery. Washington, D.C., Regnery Publishing, 1986. (0 lvro fo publicado originalmente,em 193, pela Regnery Publishing com o titulo The Conservative Mind: From Burke to Santayana. A partic da terccira edicio norte-americana, publcada em 1960, a obra passou a ter como subtitulo From Burke to Eliot. Em lingua poreuguesa, com traduciobaseada na stima edigio, 0 livro seri publicado pela E RealizagBes com o titulo A Mentalidade Conseruadora: De Edmund Burke a TS. Eliot. Uma reimpressio da primeira digo foi recentement langada como: Russell Kirk, The Conseruative Mind. Miami, BN Poblising, 2008. (N. A Politica da Prudéncia | Introducao- reminiscéncias, critica literdria, hist6rias locais universais, esbogos de personagens histéricas — até mesmo contos e romances de fan- tasmas e um livro-texto de economia — e, no presente livro, uma colegio de palestras, todas, exceto uma, proferidas pela primeira vez ‘em Washington, D.C., na Heritage Foundation, uma das principais instituicoes de pesquisa em politicas piblicas do pais. Com poucas variagdes, 0 estilo é sempre 0 mesmo. O que Kirk tentou produzir por meio da sua escrita idiossincratica? Ao que respondia? Em que sentido poderiam seus escritos constituir uma resposta? Mesmo que nos restrinjamos aos estudos mais académicos de Kirk, devemos considerar The Conservative Mind uma obra de teoria politica? Caso a resposta seja afirmativa, entao se trata de teoria po- itica de um tipo excéntrico. © livro comeca com uma condensagio do “pensamento conservador” em seis canones. No entanto, parecem ter sido ajuntados sem nenhum nexo légico, e nenhum deles tem mais do que uma relagio indireta com formas e instituigdes politicas. Os cAnones nao apresentam a claridade redutiva dos termos pelos quais poderiamos considerar o desenvolvimento, por exemplo, do liberalis- mo: representagao parlamentar, protegio de direitos individuais, pr cedéncia da propriedade privada, etc. A medida que Kirk avanga na narrativa, fica mesmo evidente que varias das suas “mentes conserva- doras” violam um ou outro desses cdnones. Devemos entio considerar The Conservative Mind uma obra de historia intelectual? Novamente, 0 livro seria uma contribuigio muito estranha a esse ramo do conhecimento. Kirk nao se preocupa absolutamente em demonstrar as cadeias de influéncias intelectuais, ficando satisfeito em aduzir algo como uma semelhanga familiar entre ‘0s pensadores por ele examinados. O trabalho negativo de cuidadosa discriminagdo, to necessario na historia intelectual, aparece apenas esporadicamente. As particularidades das circunstancias hist6ricas tendem a se esvanecer, ao passo que Kirk monta um arquétipo con- servador nesse prolongado “ensaio em definigao”. — ico ou historiador das ideias, Russell Kirk: im vez de teérico polit ‘eonsiderava-se um “homem de letras”, chegando a ter esse titulo ins- ‘tito em sua lapide no cemitério da paréquia catélica de St. Michael, ‘em Remus, Michigan.’ & um termo que quase desapareceu do uso eorrente. Visto que agora existe uma indiistria caseira de jornalistas Jamentando 0 esvaziamento do nosso estoque de “intelectuais pibli- cos”, 0 “homem de letras” esta tao distante da nossa experiéncia con- femporanea que mal podemos conjurar qualquer imagem desse tipo de pessoa. O homem de letras é um escritor; mas que tipo de escritor? Him sua imprecisio ¢ deliberado arcaismo, o termo parece meramente servir para manter Kirk a alguma distancia. Contudo, também nos eonvida a penetrar mais fundo na questio de como Kirk concebia a propria obra — ¢ como nés, também, podemos entendé-la. O lugar para comecar é The Conservative Mind, publicado pela primeira vez hhirmais de meio século. © ambiente intelectual em que o livro de Kirk apareceu foi ja teconstituido varias vezes, com destaque para o estudo definitive de George Nash, The Conservative Intellectual Movement in America since 1945 {© Movimento Intelectual Conservador nos Estados Uni dos desde 1945].* Em 1950, o critico literdrio Lionel Trilling (1905- 1975), da Universidade de Columbia, em Nova York, havia escrito ‘que, nos Estados Unidos de entio, “o liberalismo é nao s6 a tradigao "Na grande Lipide de granito negro em forma de arco g6tico ogival esto es- ‘ritas as palayras “Russell Kirk / 1918-1994 / Man of Letters” e uma citagao ddos versos 52 e 53 da primeira parte do poema “Little Gidding”, o ultimo dos Four Quartets (Quatro Quartetos| de T. S. Eliot (1888-1965), que afirmam: “the communication / Of the dead is tongued with fire beyond the language of the living” {a comunicagao / Dos mortos se propaga, em linguas de fogo, para além da linguagem dos vivos). (N.T) © George H. Nash, The Conservative Intellectual Movement in America: Since 1945, 2, ed. rev. Wilmington, ISI Books, 1996, ee ee ee ee dominante, mas a tinica tradi¢ao intelectual”.” Em 1955, o teérico politico Louis Hartz (1919-1986), da Universidade de Harvard, iria além de Trilling, a0 defender que, de fato, nunca tinha existido nem teria sido possivel existir qualquer coisa diferente de uma tradigéo liberal lockeana nos Estados Unidos, porque os Estados Unidos ha- * A maxima de Hartz era sem feudalismo, sem socialismo, mas um corolirio necessario ~ viam sido uma nagao burguesa desde o inici no dito, por ser tio patente e Gbvio ~ era: tampouco sem um verda- deiro conservadorismo. O livro de Daniel Bell (1919-2011) The End of Ideology [O Fim da Ideologia]? de 1962 - composto de capitulos escritos ao longo da década de 1950 — apreendeu bem o espirito do periodo. Foi o primeiro “fim da histéria”," com as elites americanas incapazes de imaginar qualquer coisa que nao fosse o infindavel avan- {60 de varias “sinteses” dos progressivismos liberais e socialistas. O livro de Russell Kirk emitiu um tom perfeitamente dissonante."! No primeiro pardgrafo de The Conservative Mind, defende que a sua * Lionel Filling, The Liberal Imagination: Essays on Literature and Society Nova York, Viking Press, 1950, p. 5. (Atualmente esgotada em lingua portu- suesa, a obra foi langada na seguinte edigio beasieia: Lionel Tiling, Lite raturae Sociedade. Trad. Rubem Rocha Filho, Rio de Janeiro, Lidador, 1965, (ST), * Louis Hartz The Liberal Tradition in America: An Interpretation of Ameri «an Political Thought since the Revolution. San Diego, Harcourt, Brace, 1955, * Daniel Bell, The End of Ideology: On the Exhaustion of Political Ideas in the Fifties. Glencoe, The Free Press, 1960. (0 livro foi publicado em lingua Portuguesa na seguinte edigio brasileira: Daniel Bel, O Fim da Ideologia “Trad. Sérgio Bath. Brasilia, Editora Universidade de Brasilia, 1980. (N.)} " Referéncia& nogiohegeiana apresentada no livro The End of History and the Last Man do filbsofo ¢ economista neoconservador Francis Fukuyama, Jangado originalmente em inglés no ano de 1992. A obra foi publicada em lingua portuguesa na seguinteedigio: Francis Fukuyama, O Fim da Histé- ria e 0 Ultimo Homem. Tradusio Aulydes Soares Rodeigues. Rio de Janciro, Rocco, 1992. (N.T.) "0 modo como o pensamento kirkeano desafiou o aparente consenso liberal nas décadas de 1950 1960 pode ser compreendido de forma mais detalhada Spoca nao é um tempo de triunfo liberal, mas ao contrario um tempo de desintegragao, tanto liberal quanto radical."* A unio, no contexto esse julgamento, do liberalismo e do radicalismo ~ e, portanto, de John Locke (1632-1704) e de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) ~ © significativa."* Nos Estados Unidos da década de 1950, 0 desafio ‘mais recente ao “progresso” esquerdista da sociedade norte-america- tu havia sido a oposigao de certos elementos das classes capitalistas 40 New Deal. A defesa de uma forma mais antiga do “liberalismo classico” diante do emergente Estado de Bem-Estar Social tinha sido equacionada, na mentalidade norte-americana, com “conservadoris- mo”. Kirk, no entanto, estava inaugurando um caminho bem diferen- {0, rejeitando a visdo de que as alternativas historicamente disponiveis, ios Estados Unidos iam somente de um liberalismo mais classico até ais encarnagdes entao correntes do liberalismo. De modo ainda mais, tendencioso, Kirk identificaria até mesmo 0 coquetel moderado que pela leitura do seguinte artigo: Bradley J. Birzer,"More than ‘Irritable Mental Gestures’: Russell Kitk’s Challenge to Liberalism, 1950-1960". Humanitas, w, XXI, n. 1-2, Spring-Fall 2008, p. 64-86. (N.T.) © Os termos “liberalism” ¢ “liberal”, no sentido norte-americano, sofreram uma modifcagao de significado no século XX, passando a conotar mais uma visio politica de esquerda nao marxista, ou “progressista”, que a classica defesa dd livre mercado e dos limites ao poder do Estado, chamada nos Estados Uni dos de “liberalismo clissico”. Para maiores explicagées sobre a tematica, ver as notas explieativas 40 (p. 356-57) e 381 (p. 389-90) da presente edicdo. (N.T) © Também é significativo que, em The Conservative Mind, Karl Marx (1818: 1883) & quase sempre uma presenga apenas marginal. Hi muitos que gosta- iam de considerar o movimento conservador norte-americano um artefato dda Guerra Fria. Os temas do “conservadorismo da Guerra Fria” ~ a critica dda economia planificada e do coletivismo, a defesa da “liberdade” e do *in- dividualismo” ~ esto quase totalmente ausentes da obra fundante de Russell Kirk. © bolchevismo revolucionério nio se encontra entre os temas domi- nantes do livro, mas a Revolugio Francesa ¢ a Revolugio Industrial, sim, ¢ essas duas sio frequentemente consideradas sob um mesmo ponto de vista De todos 0s conservadores norte-americanos, foram os seguidores de Kirk 0s que ficaram menos desorientados teoricamente pelo surpreendente colapso ddo comunismo entre 1989 ¢ 1991. misturava liberalismo com o Estado de Bem-Estar Social ~ que, para Bell, apontava para o fim da ideologia ~ como uma forma de ideolo- gia. sa era uma afirmagao portentosa. Na época imediatamente apés a Segunda Guerra Mundial, © movidos em grande parte pela obra de Hannah Arendt (1906- 1975), muitos intelectuais ocidentais da esquerda e da direita vie- ram a perceber o perigo do totalitarismo, uma forma de extremismo ideol6gico que se incumbira de transformar a natureza humana por intermédio da politica'* — com os resultados desastrosos que, agora, compreendemos tao bem. A grande bravata do liberalismo classico sempre fora a de ter fundamento na natureza humana e a de ser-lhe mais adequado ~ uma vez que tal natureza estivesse livre de ilusdes superstiges. Para a mentalidade liberal, poderiamos mesmo dizer que, caso a ideologia seja definida como um projeto de alcangar uma abstragio intelectual ut6pica, entdo o liberalismo classic é 0 oposto da ideologia. Para Kirk, porém, imerso na histéria, as enormidades da Revolu- cio Francesa no século XVIII eram tao préximas quanto aquelas das revolugdes bolchevique ¢ nacional-socialista do século XX. Kirk que a pretensio de estar fundamentado sistematicamente sobre certos “fatos” da natureza humana nao era uma propriedade exclusiva do liberalismo classico, mas algo compartilhado por todas as ideologias. © socialismo podia pretender ser uma adequagio mais verdadeira do que o liberalismo classico 4 igualdade natural dos seres huma- nos, € © nacional-socialismo, 4 desigualdade natural. O comunismo entendia-se como um tipo de “ciéncia natural” dos movimentos da historia humana. Cada um desses procedia mediante uma redugao racionalista de seres humanos re a “construgao” ideolégica de uma \ Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism. Nova York, Schocken Books, 1951. [0 livro foi publicado em portugués na seguinte edigio: Han- rnah Arendt, Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo, Sio Paulo, ‘Companhia das Letras, 1989. (N.T.)) 667 ‘tureza humana abstrata, unida as instituigées apropriadas aquela abstr idorismo era a verdadeira “negacao da ideologia” e, portanto, a ladeira (c largamente inexplorada) alternativa na era moderna, Se 0 mundo moderno é, em grande parte, heral, em vez de uma “revelagao (e libertagao) liberal da nature- /", entio o conservador deve aplanar ¢ recuperar o terreno. Se essa fio. A resposta de Kirk foi a afirmagio notavel de que 0 con- uma “construcao strugio liberal representa um “salto” para fora, supostamente, de ultrapassado mundo da “tradigio”, entio existe 0 énus de se de- jonstrar que uma tradicZo conservadora alternativa persiste como sibilidade hist6rica. E tive Mind, um livro que repre isso 0 que Kirk tentara fazer em The Con. -nta a si mesmo, em primeira ins- Wicia, como uma recuperagao intelectual do “submundo” da histéria pensamento social e politico moderno. Kirk daria voz aqueles que iciparam do “grande dissenso” do projeto moderno ~ mas, em ticular, Aqueles cujo senso de responsabilidade politica impedia ‘eaissem em uma mera contraideologia da reagdo, No polo oposto politica ideolégica encontra-se a politica da prudéncia. Quando buscamos perceber a substincia de uma ideia, politica ou Jal, € Gtil examinar aquilo que € por ela negado. Quem sao os alvos um tratamento altamente desdenhoso em The Conservative Mind? primeiro lugar, os racionalistas do Tluminismo francés: Marqués Condorcet (1743-1794), Anne Robert Jacques Turgot (1727-1781), ire (1694-1778), seu discipulo inglés, Thomas Paine (1737-1809) ‘4 menos parte de Thomas Jefferson (1743-1826). Sao 0s utilitaristas: amy Bentham (1748-1832), James Mill (1773-1836) e John Stuart ll (1806-1873). E Augusto Comte (1798-1857), em uma categoria ipria. E os romanticos naturalistas: Ralph Waldo 1882) ¢, sobretudo, por toda parte, Jean-Jacques Rousseau. Todos so ‘como partidarios da inovacao. Contra eles, mnservadora, comegando com o Edmund Burke (1729-1797) das Re- Hions on the Revolution in France [Reflexdes sobre a Revolugdo em :merson (1803- irk retine a tradigao ee Frangal"’ e seguindo com John Adams (1735-1826), John Randolph (1773-1833) e John C. Calhoun (1782-1850), Sir Walter Scott (1771- 1832) e Samuel ‘Taylor Coleridge (1772-1834), Thomas Babington Macaulay (1800-1859) ¢ Alexis de Tocqueville (1805-1859), Benjamin Disraeli (1804-1881) e John Henry Newman (1801-1890), ¢ assim por diante (apés um grupo bastante desanimador de personagens em torno da virada do século XX), até Irving Babbitt (1865-1933), Paul Elmer More (1864-1937) e George Santayana (1863-1952) ~ mais tarde, iria até T. S. Eliot (1888-1965), Representam 0 “partido da ordem”, os de- fensores da “tradigio” ~ entendida como a plena verdade a respeito do homem que é desbastada pela abstragio ideolégica. Uma politica da prudéncia faz justica Aquelas verdades que sio conhecidas, de um modo especial, na tradigio. Como se pode ver rapidamente, mesmo a partir desse relato parcial, a genealogia de Russell Kirk nao era somente um ato de recuperagio, ou reabilitagao, de um grupo de mentes conservadoras marginalizadas, ‘Também estava engajado na reinterpretagao, ou na retomada, de certos pensadores renomados que, parece, poderiam, com igual plausibilida- de, ser reclamados pelo “outro lado” tais como Macaulay, Newman ou Coleridge. Kirk traria a luz certas dimensdes do pensamento desses homens que haviam sido deliberadamente obscurecidas no “relato pa- dro” do progresso do pensamento moderno. Onde outros pod descontar os elementos conservadores do pensamento de tais perso- nagens como lapsos compreensiveis perdodiveis e, alternativamente, '" Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France. In: The Works of the Right Honorable Edmund Burke, volume Ill. Boston, Little, Brown and Company, 1865. [Em lingua portuguesa a obra foi langada na seguinte digo: Edmund Burke, Reflexes sobre a Revolugio em Franca. intr. Connor Cruise O'Brien, Trad. Renato de Assumpcio Faria, Denis Fontes de Souza Pin to ¢ Carmen Lidia Richter Ribeiro Moura. Brasilia, Editora Universidade de Brasilia, 1982. Mais recentemente, houve uma nova edigio: Edmund Burke, Reflexes sobre a Revolucdo na Franca. Trad, Eduardo Francisco Alves. Rio de Janciro, Topbooks, 2012 (N. 68/69 rin Woncentrar-se nas visdes mais progressistas tidas como “centra “WValiagdo que Kirk fazia dos indicios ambiguos era exatamente inversa. Simplesmente por destacar os pensamentos conservadores de intelectu- sis que podk ‘som 08 vieses mais profundos da historia intelectual de seu tempo. Ora, a0 longo da iltima metade do séulo, 0 progresso da Wissenschaft'* nas universidades norte-americanas criou montanhas dle monografias a respeito de praticamente todas as figuras maiores iam ter sido “semiliberais”, Kirk confrontava os leitores f menores da historia europeia e norte-americana, incluindo aquelas ‘eicontradas em The Conservative Mind. Também exper *renascimento da Filosofia Politica” em varias “escolas” importantes, yentamos 0 “tisejando uma geragao de leitores particularmente sofisticados nes- campo. Muitas vezes, encontramos um preconceito cético contra ‘Russell Kirk, ja que nao teve um cargo universitério normal ou par- Hicipou das rotinas da vida académica. Como resultado, varios ques- Hionamentos diretos foram feitos a respeito dessa versio de tradigio ‘eonservadora kirkeana, e tais questdes s40, com frequéncia, expressas ‘4m forma de acusagio. Por exemplo, notam, as vezes, que Edmund ike foi um Whig a vida inteira, em ver de um Tory:"” poderia ele, maneira, ser considerado um conservador no sentido robusto 0 termo alemio wissenschaft é utilizado pata defini qualquer estudo ou isciptina que envolva pesquisa sistemitica, incorporando as ciéncias, as for- mas de aprendizado e os diferentes tipos de conhecimento cujo processo de va- lidagiio decorra da metodologia. A ideia de wissenscbuf foi considerada como ‘ ideologia oficial das universidades alemas ao longo do século XIX. (N.T) ¥ Whig e Tory sio os dois principais partidos, ou agrupamentos politicos, da Inglaterra do século XVII ao século XIX, e termos historicamente locais, ni diretamente traduziveis pelos nomes dados is correntes politicas contempo: fincas. Em suas origens, anteriores a época a que o presente relato se refes ‘08 Whigs cram defensores dos limites constitucionais ao poder do soberano, ‘€cm especial as prerrogativas do Parlamento, enquanto os Tories defendiam 4 monarquia absolutista; mais tarde, os whigs viriam a se identifcar com 0 liberalismo e suas bandeiras inovadoras, ¢ 0s tories, com 0 conservadorisino politico e a defesa dos valores e das instituigées tradicionais, (N.T.) | que the é atribuido por Kirk? A rejeigao por John Adams do direito canénico e da lei feudal ndo demonstra uma fundamental antipatia para com os tipos de instituigdes pelas quais Burke (e Kirk) nutriam tanto desvelo? Por outro lado, 0 lluminismo foi realmente tio dog- matico quanto Kirk afirma? Nao ha tragos “conservadores” entre as lumieres, ¢ até mesmo em Rousseau? De um modo mais geral, Kirk realmente recuperou uma tradicao ou inventou uma? O livro escrito por Russell Kirk se sai muito bem, na verdade, se comparado com o nivel das produgdes intelectuais norte-americanas de sua 6poca, fato que os criticos mais severos de Kirk parecem igno- rar" Igualmente, continua sendo um valioso corretivo para tendén- cias enganosas presentes, até na melhor producao académica atual. Por exemplo, com relagao as questdes da Filosofia Politica, os norte- -americanos tém, caracteristicamente, nas diltimas décadas, tomado pensadores alemies como referéncia, um produto da germanizagio da mentalidade norte-americana apés a década de 1930, Antes do século XX, no entanto, o mundo anglo-americano mantinha somente um leve contato com o pensamento alemao. A orientagdo de Kirk re- lativa aos pensadores franceses é, seguramente, um ponto de partida mais defensdvel para a compreensio correta da historia dos Estados Unidos. Além disso, alguns dos julgamentos hist6ricos aparentemente excéntricos de Kirk, embora contrérios, ainda hoje, aos entendimen- tos convencionais, demonstram potencial para um dia se tornarem mais amplamente aceitos: por exemplo, a visio de que Alexander Hamilton (1755-1804) fora essencialmente um mercantilista com os olhos no passado, ao paso que John Adams, profundo no estudo dos antigos, possufa uma compreensio mais correta das problematicas fururas da economia polit norte-americana. Uma exposigio detathada dos argumentos dos principais erticos do livro ‘The Conservative Mind e uma defesa do posicionamento de Russell Kirk so ‘o objeto do seguinte artigo: Gerald J. Russello, "Russell Kirk and the Critics”. ‘The Intercollegiate Review, ¥. 38, .2, Spring 2003, p. 3-13. (N..) ‘Quase sempre, quando as interpretagdes de Russell Kirk diferem do {que “agora sabemos”, podemos demonstrar que Kirk tinha consciéncia dda alternativa excluida; s6 chegou a uma conclusio diferente. Isso verdade, de maneira muito mais significativa, no que toca ao tratamen- todo carter Whig da filosofia de Edmund Burke. Muitos estudiosos de eoria politica tendem agora a considerar Burke mais estadista que filé sof0,¢ caso tenha sido um (mero) estadista, entio, necessariamente, era Jum estadista operando num horizonte politico “legislado” por um ver- Aladeiro filésofo. John Locke foi o grande filésofo Whig o fundador Ad democracia liberal moderna; é, portanto, um equivoco descobrir ‘em Burke, um Whig, qualquer revolta fundamental contra o mundo imoderno. Kirk, todavia, nao partilha da opinido contemporiinea a res- Peito da supremacia dos fildsofos: defendia claramente, de fato, que 0% poetas sao os verdadciros legisladores deste mundo, identificando ‘maior parte do século XX como “A Era de Eliot”." Kirk, por outro’ também se esforga por demonstrar que, apesar dos compromissos Politicos de carter Whig, Burke, nas Reflections on the Revolution “in France, “repudiou grande parte dos principios de Locke”.®” O con- adorismo, apés Burke, ndo deve “quase nada” a Locke. irmagdes fortes ¢ cuidadosamente refletidas. De modo semelhante, os estudiosos da teoria politica que aderem nogio da supremacia dos filésofos e que no conseguem encontrar Burke um sistema adequadamente rigoroso buscaram alhures um \lador filosGfico para o conservadorismo moderno, questionando licitamente, dessa forma, um pilar central dos feitos de Kirk. Na joria das vezes, tentam encontrar tal “verdadeiro” fundador em ® Russell Kk, Eliot and His Age: S. Eliot's Moral Imagination inthe Tien fieth Century. ln. Benjamin G. Lockerd Je. 2.ed. re. Wilmington, IS Books, 2008. [0 lvro fo recentemente publicado em lingua portuguesa na seguinte edigio brasileira: Russell Kirk, A Era de T:. Eliot: A Imaginagao Moral do Séeulo XX. Ape Alex Catharino, Ins Benjamin G, Lockerd Je, Trad. Marcia Xavier de Brito. Sio Paulo, Realizagdes, 2011. (N.T)]}. * Russell Kirk, The Conservative Mind: From Burke t0 Eliot p. 27. ———— David Hume (1711-1776) ou G. W. F. Hegel (1770-1831), ambos filé- sofos “respeitiveis. Kirk rejeita ambos, porém, descrevendo-os como conservadores somente “por acaso”. Hi amplos indicios em The Con- servative Mind da ponderagao de Kirk no que concerne a certas ques tes sofisticadas de intepretagao historica ¢ te6rica, mas, ferente da maior parte dos escritos académicos, tal trabalho intelectual é repri- mido, em vez de destacado, no texto. Caso queiramos aprender com Kirk, temos de aprender um jeito diferente de fazer a leitura, A afirmagio proferida por Russell Kirk a respeito do reptidio de Burke aos principios lockeanos suscita ainda outra pergunta. O que pode significar, no caso de um pensador, a rejeigio dos principios de Locke, enquanto se mantém a defesa de instituigdes politicas essen- cialmente whigs, ou “lockeanas”, como aparentemente o faz Burke? Essa pergunta esti ligada a outra objecdo kirkeana apresentagao da tradigdo conservadora. Sera que os pensadores citados por Kirk em seu livro no estéo primordialmente engajados em alguma forma de critica social e cultural? Nao deixam de oferecer, com raras excegdes, um conjunto de instituigdes qualquer que poderia ser considerado uma alternativa concreta ao mundo “construido” do liberalismo? Nas ocasides em que realmente desenvolvem argumentos sobre ins- tituigdes, as “mentes conservadoras” descritas por Kirk aparentam estar tanto em desacordo como em acordo, e Kirk nunca organiza a argumentagao em torno de questdes constitucionais. Por carecer de qualquer programa institucional evidente, em que sentido pode ser entendido 0 conservadorismo de Kirk? Como uma forma de pensa- ‘mento politico? Voltamos assim & nossa questdo original. Que tipo de pensador foi Kirk? © que tentou alcancar com seus escritos? Em certo sentido, também voltamos 4 questio do estilo e da ma- neira de escrever de Russell Kirk, Em The Conservative Mind, apos al- ‘guns pardgrafos superficiais que introduzem o tema, testemunhamos 72\73 fazer uma digressio para contar uma historia, ou melhor, esbogar vinheta pessoal. Pausa para fazer uma observagio sobre a Arran \, niimero 12, em Dublin, na Irlanda, o local de nascimento de wnd Burke. Kirk, um pretenso peregrino, lamenta que, logo apés, ja renha sido demolida em nome do progresso ~ em seu lugar, 1ra-se um edificio malcuidado de escritorios do governo. Como *eonservadores” irlandeses pouco fizeram para celebrar seus gran- homens! Aqui, Kirk demonstra preocupagio por uma heranga eta; suscita ¢ afirma um impulso pela conservacio em oposigio ‘espirito definidor da época, a autossuficiéncia inovadora; desapro- sardonicamente as tolices modernas dos filhos dos homens. Antes w de comegar, ja “vagueou” para longe do academicismo. De quer forma, do livro, ¢ por isso devem ser intrinsecas aos propésitos de Kirk. Apesar de sua reserva formal, Kirk sempre uma presenga real 10 nos escritos mais académicos, quase uma “personagem” na ria”, € essa presenga tornou-se cada vez mais proeminente a ila que Kirk progredia na carreira. A qualidade inesperadamente mal da prosa de Kirk, que sob outros aspectos & arcaicamente ail, nunca foi, a0 que parece, alvo de devida consideracio, Nada mnte, ndo é exagero dizer que € a “figura” de Kirk, 0 “sibio de 1a", que, hoje em dia, permanece mais vivida em seus textos. depoie que este ou aquele julgamento sobre um pensador parti- tiver sido esquecido, bem depois que 0 avango disciplinado da juisa académica tiver obscurecido o insight original dos argumen- {© que sera lembrado ~ ¢ muito sutilmente ~ € o tom elevado, im- ial, a recusa gotica em simplificar a prosa, de modo a atender as tas necessidades da comunicagao “eficiente”, a estrutura de um peculiar de sentimento romantico Tory, que “trocaria quaisquer les neoclissicos por uma insignificante gargula desgastada”.2! igressdes como essa parecem ser intrinsecas & estru idem, The Sword of Imagination, p. 69. © que continua a se insinuar é ta sensibilidade, associada, na com- preensio de Kirk, a expresso “imaginagdo moral” de Burke. Pelo final da década de 1950, Kirk havia, ele préprio, se tornado 0 ico- ne da mentalidade conservadora, mas essa mentalidade parece ter se concentrado no esforgo de falar, comumente de modo bastante indi reto, a0 coragio. Existe talvez um precedente para esse tipo de escrita no lugar mais improvave s obras de Jean-Jacques Rousseau. Tebricos politi- cos académicos tém nos ensinado, ultimamente, a apreciar a sutileza € a perspicacia dos argumentos filoséficos de Rousseau a respeito do estado de natureza e da vontade geral, da virtude republicana e da religiao ci I ~ os elementos basicos do distinto pensamento politi~ co de Rousseau. Tais julgamentos favoraveis, no entanto, constituem uma evolugao bastante recente. Entre os contemporineos, Du Con- trat Social [Do Contrato Social], publicado originalmente em 1762, foi considerado 0 menos exitoso esforgo de Rousseau. Até mesmo os philosophes consideravam os escritos politicos rousseaunianos pouco mais que fantasias visionarias. Todavia, Rousseau foi um fendmeno ririo. As obras Les Confessions [As ConfissGes|* de 1770 e Emile [Emilio de 1762 foram best-sellers internacionais de amplo e es- candaloso interesse. Em ambos, o proprio Rousseau é uma “perso- nagem”. Para além dos argumentos especificos dos livros, 0 que é ‘mais memoravel nessas obras (e o que era mais falado nos sal6es) € 0 P priv “Jean-Jacques”, 0 “Cidadio de Genebra” por algum tempo, Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France, p. 333. [Em portugués, ver: Edmund Burke, Reflexes sobre a Revolucio em Franca, p. 101. (N.T)h » Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. Int. Maurice Cranston, Trad. Eduardo Brandio. Sio Paulo, Penguin-Companhia das Letras, 2011. (N.T.) % Idem, Confissies. Trad. Raquel de Queiroz ¢ José Benedicto Pinto. Bauru, Edipro, 2008. (N.T.) * Idem, Emilio, ou Da Educagao. Intr. Michel Launay; Trad. Roberto Leal Ferreira. Sio Paulo, Martins Fontes, 1991. (N..) {que agora encarnava uma nova “virtude”: 0 amor compassivo pela Humanidade. ‘Como muito bem explicou professor Clifford Orwin, se conside- farms que Nicolau Maquiavel (1469-1527) trabalhou na construgao dle “novos modos ¢ ordens” na politica, Rousseau, por sua vez, buscou inuar “novas atmosferas e sentimentos” na mais privada das esferas. objetivo foi uma revolugio interna, nao racional, vinda daquelas, woes do coragio que a propria razo desconhece” 2 escreve Orwin, jusseau viria a introduzir uma nova “sensibilidade”, que poderia insformar tudo ~ deixando, ao mesmo tempo, “tudo” relativamente act ‘Ws burguesas, no coragao da vida moral. Naturalmente, esse esforco de dio sentimental estava relacionado a um grupo de ideias polit wlicalmente diversas, uma concepgao distinta da natureza ¢ das neces- © humanitarismo suplantaria tanto as virtudes classicas como ules daquele ser histérico, o homem moderno, que habita os modos as ordens de uma civilizagao burguesa. A “obra” de Rousseau, contu- nfio seria consumada por um programa politico; no seria efetuada implesmente por um avango filoséfico; foi concluida por um apelo ito a0s movimentos mais profundos do corago, Rousseau participa ultaneamente, gostemos ou nao, dos grupos dos legisladores filos6~ € potticos de nossa era, Edmund Burke compreendeu bem o carater do projeto de Jean- Jacques Rousseau quando observou que “Rousseau é um moralista iio é nada”. Muito da obra posterior do proprio Burke pode ser endida como um método de educacao sentimental (moral), com 0 jetivo de contrabalangar as conquistas de Rousseau ~ especialmente Glifford Orwin, “Moist Eyes ~ From Rousseau to Clinton”. The Public Interest, 0.128, Summer 1987, p-4. * Bdmmand Burke, A Letter toa Member ofthe National Assembly, in Answer to some Objections to his Book on French Affairs. n: The Works of the Right Honorable Edmund Burke, volume IV. Boston, Litle, Brown and Company, 1866, p. 25. na medida em que a sensibilidade romantica rousseauniana formou uma sintese mortal com o racionalismo do Iluminismo francés. Essa, ‘40 menos, parece sera ligdo decisiva que Kirk aprendeu de Burke, ¢ que continua a ser 0 modelo extremo da mentalidade conservadora. Ao segui sivo desencantamento do mundo, produto da obra dos iluministas. Ao seguir Burke, Kirk inquietou-se com a “cura” sentimental oferecida % Consideremos, por exemplo, o famoso trecho sobre a rainha Maria An tonieta (1755-1793) da Franca em Reflections on the Revolution in France (p. 331). Edmund Burke foi aconselhado repetidas vezes a remové-lo, porque fo sentimento antiquado desse trecho tenderia a minar a forga persuasiva dos scus argumentos politicos e econdmicos. Burke, porém, insistiu na sua incl so ¢, dois séculos depois, permanece o trecho singularmente mais memo- rivel de todo 0 seu corpus. [O autor se refere 3 seguinte passagem da obra: “Fax dezesseis ou dezessete anos que vi a Rainha da Franga, entio Delfina, cm Versalhes; ¢ certamente, jamais desceu & terra, que ela parecia nem tocar, alguma visio mais deliciosa. Vi-a logo acima do horizonte, decorando e ale- ‘grando a esfera elevada na qual comegava a se mover ~cintilante como uma estrela da manha, cheia de vida, de esplendor e de alegria. Ah! Que revolu- ‘que coragao precisaria ter para contemplar sem fiear comovido tanta clevagio e tanta queda! Quando poderia imaginar que, enquanto acumulava protestos de veneragio e de amor entusiastico, distante e respeitoso, ela seria obrigada a esconder em seu scio 0 antidoto contra a desonra! Quando po dria imaginar que veria tais desgragas ocorrem-the numa nagio de homens galantes, numa nagio de homens de honra ¢ de cavalheiros! Julgava que dez mil espadas pulariam de suas bainhas para vingar até mesmo um olhar que ameacaste insuleé-a. - Mas a idade do cavalheiriemo jé passou. — Sucedev-a aquela dos sofistas, dos economistas, dos calculadores; ¢ a gléria da Euro: pa esté extinta para sempre. Nio veremos nunca mais as manifestagées de sgenerosa lealdade A classe dos individuos ¢ ao sexo, de submissio orgulho- sa, de obediéncia digna, de subordinagio do coragio, que, até na servidio, conservava vivo 0 elevado espirito da liberdade, Foram-se a graga natural da existéncia, a defesa desinteressada da nagio, o bergo dos sentimentos viris e de empreendimentos heroicost Foram-se a delicadeza dos principios e a castidade da honra, que faziam sentir como ferida a macula, que inspira ‘vam coragem a0 mitigar erueldade, que enobreciam tudo quanto tocavam, sob cujo dominio o vicio perdia toda a forca de seu mal, a0 desttuir-se, a0 mesmo tempo, de toda a vulgaridade” (Edmund Burke, Reflexdes sobre a Revolugao em Franca, p. 100). (N.T.)} Edmund Burke, Russell Kirk inquietou-se com 0 opres~ ‘Jean-Jacques Rousseau, que consentia na construgao da gaiola de de autointeresse racional do liberalismo, ao mesmo tempo que como compensagio apenas o idilio naturalista da compaixio jcriminada. Ao seguir Burke, Kirk apreciava as reais conquistas sas de varias instituigées modernas; 0 problematico eram os (ilos ideoldgicos ¢ sentimentais que cercavam essas instituigdes, Jos quais 0 progresso era guiado. Assim, se o corte ideolégico € wessiio sentimental das ideias tinham de ser superadas para 0 . por tradigao, recuperar a nobreza que Ihe cabia como direito ‘nascenga, seria necessaria uma educagio da imaginagao moral. splexidade do bem humano e a exigente vida das virtudes pre~ yyain ser tornadas atraentes via um novo ~e bem diferente -apelo ‘coragiio. “O conservador vé-se (...) um peregrino em um reino de io ¢ maravilhamento, onde o dever, a inecessirios ~¢ onde a recompensa é aquele amor que excede toda ligencia.”® Sao trechos como esse que marcam o legado central sciplina e o sacrificio rk, © quinhao de um moralista e educador dos sentimentos. Vista de outra maneira, a qualidade critica das “mentes con- wloras” na genealogia construida por Russell Kirk ilustra, com iia, o fato de o conservadorismo nio ser uma questio ape- de preservar 0 status quo, seja ele qual for. A intuigao original do jadorismo € a do descontentamento com a época presente. Ha, into, certa semelhanca formal entre o conservadorismo ¢ 0 radi . fato a que 0 proprio Karl Marx (1818-1883) prestou certa ho- sm: grandes porgdes do Manifesto do Partido Comunista,” em trechos, parafraseiam as tipicas criticas conservadoras do sécu- IX a respeito do liberalismo, Nao obstante, o descontentamento Tuwsell Kirk, “Liberarians: Chrping Sectarics™ In: Redeeming the Time. Wake ins Jfiey O. Nelson. Wilmington St Books, 1996, p. 281. Karl Marx ¢ Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista. Org, ¢ intr. “Marco Aurélio Nogucita, Trad. Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder. 1$.ed. Petsipolis, Vozes, 2010. (N.T.) conservador se estende também a todas as solugdes proferidas na tra- igio radical. O conservador procura recuperar a natureza humana escondida sob as construgées ideolégicas; mas, em acentuado contras- te com Jean-Jacques Rousseau, 0 conservador reconhece que essa na- tureza é complexa,¢ nio simples. A natureza do homem é descontinua e mais nobre do que a natureza nao-humana. Quando 0 véu sombrio da dvida iluminista cobrir tudo, tal convicgio tornar-se-4 fecunda to somente pela educagdo da imaginagio moral, E sob essa luz que devem ser entendidos os seis canones que trodugao do livro The Conservative Um deles, © quarto, diz respeito a relagio entre a proprie~ Russell Kirk articula na Mind. dade ¢ a liberdade. E 0 nico elemento de John Locke que sobrevi- ve no pensamento conservador, um reconhecimento das conquistas priticas das instituigGes politicas modernas.® Os primeiros trés ca- nones, porém, so os mais substantivos, e consistem praticamente num catélogo dos costumes aristocraticos que 0 proprio Alexis de Tocqueville considerou inviaveis no estado social democratico que marca a nossa era. O primeiro cinone é “a crenga em uma ordem transcendente (...) que rege a sociedade, bem como a consciéncia”:** na era p6s-Huminismo, a bravata é, justamente, a de que 0 homem € auténomo, o verdadeiro soberano do mundo. © segundo é um "No presente volume, os seis cdnones do «« “dex prineipios conservadores”, jf que Russell Kirk fora solictado a proferir ‘uma série de palestras na Heritage Foundation sobre varios grupos de “dex” ~ eventos, livros, principios, ete. Os seis cAnones originais do livro The Con- servative Mind também diferem, e em alguns pontos consideravelmente, das “seis premissas” do conservadorismo que Kirk apresentou em sua introduga The Portable Conservative Reader [O Guia de Bolso de Textos Conservado- res] (Nova York, Penguin Books, 1982). A flexibilidade, para nio dizer indi ferenga, com que Kirk tratava de principios politicos abstratosilustra muito bbem o que ele queria dizer com a afirmacio de que 0 conservadorismo é a negagio da ideologia, ® Russell Kirk, The Conservative Mind, p. 9. Ibidem, p. 8. ervadorismo sio estendidos a ‘pendor pela prolifera variedade e mistério da existéncia humana” Wicional: a construgao liberal resulta na homogeneizagao de to- 1 as esferas sociais, O terceiro é a “conviegao de que a sociedade pulso ilizada requer ordens ¢ classes”:** 0 oposto direto do Kirk buscava cultivar algo como uma wualitarista democriti wibilidade “aristocratica” no interior da moderna sociedade de isa, nao obstante as diividas de Tocqueville. Os dois ailtimos cinones de Russell Kirk dizem respeito & ade- cia a0 “uso consagrado”* € a0 ceticismo diante da “inovagao {pitada”,” introduzem o resto da problematica que Kirk acre~ va estar enfrentando, Sao “metaprincipios” conservadores ~ nao bens sociais substantivos, mas, antes, posturas criticas em relagio permanéncia © mudanga. Os primeiros pensadores liberais esta- 1m engajados em um grande esforgo para construir instituigées nas is © “progresso” poderia se tornar aurossustentivel. Pensadores sais subsequentes, tais como John Stuart Mill, desenvolveram ar- jentos em favor da natureza benéfica da inovagao experimental ralizada. Até mesmo Alexis de Tocqueville, que possuia diividas fundas a respeito dos efeitos da democracia sobre a dignidade hu- ina, nao pode ver nenhum modo de interromper 0 progresso do * Ibidem, p. 8. * ibidem, p. 8. % No original: “prescription”. Tal como apeesentado nas notas explicativas $3 (p- 359-60), 54 (p. 360) e 434 (p. 396-97) do presente livro, para ga- fantir maior fdelidade conceitual ¢ historica ao termo, evitando confusdes ‘60m fermos juridicos e falsos cognatos, optamos por traduzir 0 mesmo pela texpressio “uso consagrado”. Retiando a palavra do pensamento burkeano (Fadmund Burke, Reflections om the Revolution in France, p. 307), 0 autor,no Hivwo The Conservative Mind, define prescription como “o direito consuetu- inirio que surge da convengio e que une sucessivas geracies" (p. 42). Sobre i tematica, ver também o seguinte artigo: Michael P, Federici “The Polities| ‘of Prescription: Kirk’s Fifth Canon of Conservative Thought”. The Political jence Reviewer, v. XXXV, 2006, p. 159-78. (N.T.) # Russell Kirk, The Conservative Mind, p. 9. espitito moderno. No fim, o elemento mais incapacitante da era mo- derma é a convicgao generalizada de que © progresso € inevitavel, ey portanto, 0 conservadorismo, estritamente falando, é impossivel. sem dizer coisa alguma, sentem ¢ pensem, ou mesmo que apenas sentem”;* mas tal avaliagéo nao pode ser correta. Na era do pro- sresso, ficar sentado em siléncio equivale a ser levado de roldao “para adiante” — em diregao a que, exatamente, nunca fica muito claro. A crenga moderna fundamental de que 0 progresso € “inevitavel” ~ uma crenga especialmente pronunciada na terra em que foi funda- da para ser novus ordo seclorum" ~ convenientemente dispensa 0 partidario liberal da exigéncia de argumentar que este ou aquele pe- dacinho esperado do “progresso” é de fato, no fim das contas, bom para os seres humanos. A “inevitabilidade” hist6rica, afinal, atreve a atribuirse a qualidade dificil de “fato”, e dessa forma paira incontes- tavelmente por sobre todas as disputas subjetivas a respeito de meros “valores”. “Fats” nao podem ser discutidos. O estilo da prosa de Russell Kirk era um anacronismo impossivel.. Mesmo assim, na segunda metade do século XX, publicou mais de “J.C. Hearnshaw, Ue Soctaland Political Idea of Some Representative Thinkers of the Revolutionary Era. Londres, G. G. Harrap & Company Ltd. 1931, p. 8. Gitado em: Russell Kirk, The Conservative Mind, p.3 (ref. p. 503, bibl, p. $19). A frase em latim se traduz para © portugués como: “a nova ordem dos séculos”, A sentenca foi inspirada nos versos 6 e 8 da quarta écloga das Bucé licas do poeta latino Virgilio (70-19 a.C.), que afirmam: “Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo / iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna, {iam nova progenies caelo demittitur alto” (A grande série de séculos recomega. ! J também retorna a virgem, voltam os reinos de Saturno; / do alto céu enviada uma nova geragio.|- inscrigio aparece no Great Seal [Grande Selo} dos Estados Unidos, utilizado para autenticar documentos, e, também, no verso das notas de um délar.(N.T.) *. J. C. Hearnshaw (1869-1946) observou, certa vez, que “em: geral é suficiente, para propésitos praticos, que os conservadores, inta volumes dessa mesma prosa, merecendo um amplo e dedicado Wingente de leitores. A publicagio dos livros provou a falsidade *fato” de que apenas uma prosa académica incisiva e-eficiente € jpossivel” em nossa época. Foi possivel revelar os “fatos” da era pro- jsta como uma congérie de opiniao e sentimento. A propria vida de Russell Kirk seria igualmente considerada im- vel. Por ter sido criado perto de Detroit, em sivel de * jacobino mecanico”, e parece, de fato, nunca ter apren- adirigi. Quem quer que visitasse a economicamente aflita e com- uwente trivial vila de Mecosta, em Michigan, passaria a noite na tica casa gética de Kirk cantando misicas ao piano, ou escutando 9s a0 redor da lareira, Em passeios pelos bosques, Kirk podia saltar {nis de uma arvore para representar uma cena de um livro de Walter +higan, rotulou 0 . Deveriamos entender esses atos como anacronismos? Como incrasias encantadoras? Como retiros fantasticos longe das duras lidades” da era moderna ou como provas vivas de que o impossivel inua a ser possivel, mesmo nos dias de hoje, para aqueles que tém a yinagio moral? Como vislumbres do que estamos perdendo ~ e nao Jisamos perder, ou como afirmagdes de que a nossa “mera” nostalgia iramente aponta o coracéo na diregio do bem humano? A educa~ sentimental da imaginagio moral levada a cabo por Kirk incluia palavras quanto atos. E é impressionante perceber que a prosa \la” de Kirk revela, de fato, um homem auténtico, um homem imaginou um caminho para fugir da prisio intelectual da ideologia sma ~€ acenou a outros para que fizessem 0 mesmo. ‘Ao longo de seus escritos, e com intensidade especial nos iltimos diante de audiéncias mais jovens, Kirk pregou com sincerida- que “a vida continua valendo a pena” — apesar de o “Gigante No original: “lifes worth living”. Referénca ao ivr Is Life Worth Living? JA Vida Vale a Pena?] de W. H. Mallock (1849-1823), publicado originalmen- teem 1879, que ¢ listado por Russell Kirk no capitulo 4 (“Dex Livros Conser- adores”, p. 138) da presente obra como um dos textos que, na diversidade ‘Tédio” caminhar sobre a terra. Era um conselho curioso a ser dado Para uma geragdo emergente, cheia de planos € projetos ambiciosos, € alguns, sem diivida, consideravam um cliché. Visto que a mentalidade de Kirk era muitas vezes descrita como medieval," tal tema esta longe de ser medieval: um escolastico teria oferecido uma demonstracio da bondade da ordem criada, e ficado por af, Essa insistente exortagao demonstra quo profundamente Kirk havia perscrutado 0 coragio da acédia moderna, com que imensa capacidade havia diagnosticado as tendéncias da sensibilidade especificamente moderna. Burke descre- veu a interpretagio liberal da natureza humana em termos assusta- dores: “Nesse novo esquema de coisas, um rei é apenas um homems uma rainha, uma mulher; uma mulher, um animal; e nio um animal de ordem muito clevada”.*® A quase irresistivel tentagio moderna aquiescer a essa redugdo da dignidade humana ¢ compensé-la com uma frenética atividade lockeana ou com uma idilica indulgéncia rousseauniana, Kirk sabia, no entanto, que 0 coracdo humano é digno. de algo mais nobre; procurou capacitar seus leitores para alcangarem a mesma convici 10, por meio do cultivo da imaginagao moral: Nio é inevitavel que nos submetamos a uma vida-em: uniformidade e igualdade entediantes. Nao ¢ inevitavel que indultemos (05 apetites até uma saciedade exaurida. Nao ¢ inevitivel que reduza. mos 0 ensino ao menor denominador comum. Nio é inevitivel que ‘do impulso conservador, deve ser lido por todos que buscam a sabedoria politica e moral. O titulo do livro de Mallock é utilizado por Kirk como titulo, ddo epilogo da jd citada autobiogeafia péstuma The Sword of Imaginagion (p- 471-76), tendo sido escrito pelo autor logo apés receber, na quarta-feira de cinzas de 1994, a noticia do médico de que devido ao estado de satide Ihe restava pouco tempo de vida. (N.T.) “Ver, em especial, o seguinte texto autobiogrifico: Russell Kirk, “Reflections of a Gothic Mind”. In: Confessions of a Bohemian Tory: Episodes and Re- feections of a Vagrant Career. Nova York, Fleet Publishing Corporation, 1963, 330. (N.T) © Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France, p. 333. [Edmund Burke, Reflexdes sobre a Revolucto em Franca, p. 101. (N. T) {1 obsessio com confortos criaturais tenha de eliminar a erenga em ‘uma ordem transcendente. Nao é inevitavel que © computador deva suplantar 0 poeta." Seria demasiado atribuir a Kirk uma forma excéntrica de so- jstismo? Enquanto os homens modernos em toda parte perseguem Jetivos limitados, certos da retidao historicamente inevitavel da dis- Jio moderna, Kirk estava convencido de que, em nossa época, \\ vida inimaginada nao é digna do ser humano. Trabalhou para re- mar nossas sensibilidades, de modo que nos pudéssemos ver tanto ¥ aquilo que nos tornamos quanto pelo que somos. Trabalhou para isponibilizar uma tradigao intelectual discordante da era moderna. balhou para libertar os coragdes da escravidao da ideologia. Mark C. Henrie Diretoracadémico do Imercollegite Studies Inaiute (SI) ¢ editor do » Inercollegiate Review. Carsou os estudos superiores em Filosofia Politica no vimouth College, na Cambridge University e na Harvard University. E autor do li A Students Guide tothe Core Curriculum (1S Books, 2000) ¢coautor das obras Enduring Edmund Burke: Bicentennial Essays (SI Books, 1997) ¢ American ratism: An Encyclopedia 1S Books, 2006), publicou diversos artigos em dif Wes peridicos académicos e organizou as coletineas Doomed Bourgeois In Love ‘on the Fibns of Whit Stilman (St Books, 2001) e Arguing Conseratism: Four es ofthe Intercollegiate Reviw (IS Books, 2008) WT Russell Kirk, “The Wise Men Know What Wicked Things Are Written on. the Sky”. In: Redeeming the Time, p. 308. Nota sobre a Traducao e as Notas Explicativas MARCIA XAVIER DE BRITO Por conta da rara formacao intelectual, Russell Kirk (1918-1994) um autor de muitos dons literdrios. Dono de recursos estilisticos tidos por muitos como “barrocos”, {Kirk leva seu tradutor a empenhar-se por conhecer nao s6 suas fontes ‘influéncias literarias, visto que recorre a expressbes e citagdes de um yastissimo repertério erudito adquirido durante a vida dedicada aos ‘estudos, mas forca o tradutor a mergulhar em sua obra e terminologia ‘especificas, j4 que menciona trechos € faz. referéncias cruzadas aos ‘seus quase trinta livros. Outra caracteristica distintiva de Kirk é fazer-se notar ao longo dos textos pelo uso recorrente de certas expresses, que soam, a0 fim de uma obra longa, como “estribilhos”, conferindo, suavemente, Ainidade e coesio a escrita, ao mesmo tempo em que tornam a prosa, inegavelmente, kirkeana, Assim, recheados de idiossincrasias, os e>- “gritos de Kirk possuem um sabor “anacrénico”, sem, curiosamente, perderem a atualidade. ‘Tais caracteristicas, nem sempre perceptiveis ao leitor comum ‘que desconhece a rotalidade do corpus kirkeano, so, para o tradutor desafios constantes, visto que a consisténcia da traducao esté sempre fem cheque. No caso especifico dA Politica da Prudéncia, acrescemos ‘s dificuldade de manter a sonoridade do discurso, uma vez que 0s ‘eapitulos sao, na verdade, conferéncias. A tradugao e edigio d’A Politica da Prudéncia foi uma ardua empreitada conjunta. Dadas as dificuldades encontradas no percurso, editor, tradutores ¢ revisores concordaram que haveria necessidade de alguns acréscimos para que um piiblico tao culturalmente diverso como 0 nosso pudesse apreciar a obra na integralidade. Assim, surgiu a ideia de uma edigio critica e anotada. Na primeira citagio das per- sonagens histéricas ja falecidas, fizemos constar, entre parénteses, os respectivos anos de nascimento e de morte, para facilitar a compreen- so cronolégi No que diz respeito & terminologia, as solugdes tradutorias foram dos acontecimentos. obtidas, em parte, gragas ao recurso a obras como A Dictionary of the English Language, do dr. Samuel Johnson (1709-1789), na edigao de 1785, e The Century Dictionary and Cyclopedia (Nova York, The Century Co., 1904. 10¥.), coordenado por William Dwight Whitney (1827-1894), muito consultadas pelo proprio autor, alé mos valido, também, da edigao de 1789, do Diccionario da Lingua Portugueza, de D. Rafael Bluteau (1638-1734), na busca pela preciso conceitual da linguagem antiga empregada por Kirk. A uniformiza- de nos ter- io de conceitos ¢ definigao da terminologia contou com 0 auxilio da equipe de professores do Russell Kirk Center, além da valorosa ajuda de Alex Catharino, cuja visio abrangente do corpus kirkeano possi- bilitou um amplo debate terminolégico com tradutores ¢ revisores durante o longo inverno de Mecosta. Sempre que possivel, procuramos utilizar os trechos das obras ci- tadas por Kirk em tradugdes ja existentes em lingua portuguesa, além. de oferecer a indicagao bibliogrifica das edigdes em nosso idioma. Para os trechos biblicos, utilizamos a versio da Biblia de Jerusalém (Sa0 Paulo, Paulus, 1995). A opcio pelas polémicas notas explicativas no presente livro deu-se no s6 pela distancia temporal e geogréfica de alguns fa- t0s ¢ localidades citados a0 longo das palestras, mas também por sabermos faltar, ao leitor de lingua portuguesa, conhecimento de particularidades da cultura e das instituigbes dos Estados Unidos que Ihe permitam ler e compreender uma obra dirigida ao public Horte-americano. Assim, as notas dA Politica da Prudéncia podem ser divididas nas seguintes categorias: 1, Referéncias bibliogrificas das citagoes; 2. Explicagio das referéncias inseridas no texto; 3, Definigio de termos e conc 4, Esclarecimento do contexto hist6rico-cultural dos exemplos; 5. Pequenas biografias de personalidades menores da cultura norte~ 6, Remissio a outros livros e textos do autor. Como o livo é uma coletinea de palestras que podem ser lidas indi- YVidualmente, sem necessidade de seguir a ordem estabelecida pelo autor, ‘optamos por tratar cada capitulo como unidade independente; portan- 10, algumas notas podem repetirse de maneira resumida em diferentes ‘eapitulos, mas sempre fazendo mengao a nota original e mais extensa. A primeira edigao em portugués surge no ano das comemoragoes de duas décadas da publicagao dA Politica da Prudéncia, por isso sugerimos ao editor acrescentar, além dos dois estudos introduto- 10s, de Alex Catharino ¢ de Mark C. Henrie, trés ensaios anexos ao final do livro, a saber: “Russell Kirk: Redeeming the Time”, de Bruce Frohnen (Modern Age, vol. 36, n. 1, Fall 1993, p. 79-82), “Russell Kirk and Ideology”, de Gerhart Niemeyer (1907-1997) ¢ “Con: vvatism at Its Highest”, de Edward E. Erieson Jr. (The Intercollegiate Review, vol. 30, n. 1, Fall 1994, p. 35-38; Ibidem, p. 31-34), cujos direitos autorais, obtidos por intermédio do Russell Kirk Center for Cultural Renewal, foram gentilmente cedidos pelos editores R. V. Young, da Modern Age, e Mark C. Henrie, da The Intercollegiate Review, para a E Realizagées. ee ee ey ee Em nome de todos os que trabalharam para que A Politica da Prudéncia surgisse em portugués, agradego a0 nosso editor, Edson Manoel de Oliveira Filho, nao s6 por nos permitir trabalhar com tem= po e liberdade, visando um produto final digno da grandeza e pro~ fundidade do autor, mas também por oferecer aos leitores de lingua portuguesa, pelas obras escolhidas para o catélogo da E Realizagées, uma visio Gnica do melhor que ja foi produzido nas humanidades. Novamente, nao s6 em meu nome, mas em nome do meu querido Wilbur as, e de meu comp: colega de tradugio, Gustavo Santos, Ph.D., dos revisores ¢ e fellows, Me. Flavio L. Alencar e Me. Rodrigo F nheiro no “monastério intelectual” de Mecosta, Prof. Alex Catha agradeco a hospitalidade da viva do autor, sra. Annette Y. Kirk, com quem mantivemos longas conversas para esclarecer duividas e debater © contetido das notas, € que nos permitiu franco acesso a biblioteca € a0 arquivos da instituigdo, assim como somos gratos pelo carinho com que fomos e sempre somos tratados por toda a equipe do Russell Kirk Center for Ci cial, na ocasiao da preparagdo da presente tradugao. ltural Renewal, em Mecosta, Michigan, em espe- Mecosta, MI ~ Primavera de 2013 Marcia Xavier de Brito Vice-presidente de relagies institucionais do Centro Interdisciplinar de Exi: a ¢ Econ ia Personalista (CIEEP), editora assistente do periédico COMMU- NIO: Revista Internacional de Teologia ¢ Cultura, ¢ pesquisadora do. Russell Kirk Center for Cultural Renewa dade do Estado do Rio de Ja elés na Universidade Gama Filho (UGE). Entre outros trah hi mais de quinze anos, destacamos a tradugio do livro A Ena de T. S. Eliot: AA Imaginacdo Moral do Século XX de E Realizagbes. Cursou a Faculdade de Dircito na. Univers de Tradugio de In. 10 (UERJ) ¢ a ps-graduag ssl Kirk pat A Politica da Prudéncia Capitulo 1 | Os Erros da Ideologia Fiste pequeno livro € uma defesa da politica prudencial, em opo- (0 A politica ideol6gica. O autor espera persuadir a geragio emer- te a se firmar contra 0 fanatismo politico € esquemas ut6picos, los quais o mundo tem sido muito afligido desde 1914. “A politica Je pensa nas politicas de Es g arte do possivel,”* diz 0 conservador » como as que intentam preservar a ordem, a justiga e a liberdade. ide6logo, ao contrario, pensa na politica como um instrumento_ joluciondrio para transformar a sociedade e até mesmo a natureza smana. Em sua marcha para a utopia, 0 idedlogo € impiedoso. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a tendéncia da opi- (0 publica norte-americana tem sido mais ou menos conservadora, certo perigo, no entanto, de que os proprios conservadores caiam uma ideologia ou quase-ideologia estreita ~ muito embora se diga, 0 Henry Stuart Hughes (1916-1999) escreveu ha uns quarenta 10s, que “o conservadorismo é a negagio da ideologia”. Este livro € especialmente dirigido aos conservadores. Os seus spitulos so ensaios (originalmente palestras) que examinam prin- ios, pessoas, livros ¢ problemas conservadores, ¢ que contrastam, ss conservadoras com dogmas ideolégicos. Neste primeiro capitulo, fago a distingao entre as crengas con- adoras ¢ a ideologia. Nos quatro capitulos seguintes, examino ‘principios conservadores, eventos conservadores significativos, livros ‘A Ponta a Prudéncia | Os Erros da ideologia Napoleio desprezou os idedlogos ao observar que 0 mundo nao yovernado por ideias abstratas,' mas pela imaginagio.* John Adams 1735-1826) chamou essa recém-criada ideologia de “ciéncia da idio- *) Mesmo assim, durante o século XIX, idedlogos surgiam como alguém, a moda de um Cadmo, semeasse dentes de dragio que se Jysmutavam em homens armados. Tais idedlogos eram, em geral, imigos da religiao, da tradi ys c dos antigos estatutos. © conceito de ideologia foi consideravelmente transformado em sadios do século XIX, por Karl Marx (1818-1883) e sua escola. As jas, Marx argumentou, nao sao nada além da expressio de interes- dle classe, definidos em relagio & produgio econdmica. A ideolo- «assim chamada ciéncia das ideias, torna-se, entio, uma apologia ematica das demandas de uma classe ~ nada mais.* Para expressar esse ponto nos termos diretos ¢ maliciosos do conservadores ¢ lideres conservadores ~ dez de cada, Em seguida, nos capitulos 6, 7, 8 ¢ 9, descrevo quatro escritores conservadores do sé culo XX. Nos capitulos 10, 11, 12 ¢ 13, examino quatro tipos ow facgdes dos conservadores norte-americanos. Depois, nos capitulos 14, 15, 16 17, defronto-me com alguns dilemas com 0s quais o$ conservadores tiveram de se bater ~ questdes de politica externa, da centralizagao politica, dos padres educacionais ¢ a do proletariado. norte-americano. No capitulo de conclusio, fulmino a ideologia do Democratismo, vox populi vox Dei. Permitam-me iniciar com uma tentativa de definir a ideologia.? 10, dos costumes, das convengdes, dos termo ideologia foi cunhado na época de Napoleso Bonaparte (1769-1821). Antoine-Louis-Claude Destutt de Tracy (1754-1836), 0: autor de Les Elements d'Ideologie [Os Elementos da Ideologia],* era um “metafisico abstrato” do tipo que, desde entao, se tornou comum na margem esquerda do Sena, um ponto de encontro para ideslogos incipientes, entre os quais, em décadas recentes, o famoso libertador do Kampuchea Democratico, Pol Pot (1928-1998). Destutt de Tracy € seus discipulos planejavam uma larga reforma educacional, que seria prio Marx, aquilo que se chama de filosofia politica € meramen- \uma mascara para o egoismo econdmico dos opressores’ ~ assim Jararam os marxistas. Marx escreveu numa carta a Friedrich En- ls (1820-1895) que as ideias e normas dominantes constituem uma iyeara ilusGria sobre a face da classe dominante, revelada aos ex- fundada sobre uma assim chamada ciéncia de ideias; eles se inspira~ yradlos como um padrio de conduta, em parte para ocultar, em ram fortemente na psicologia de Etienne Bonnot de Condillac (1715+ 1780) e, em menor grau, na de John Locke (1632-1704). Rejeitando a religiio e a metafisica, esses primeiros idedlogos acreditavam que poderiam descobrir um sistema de leis naturais = sistema que, caso obedecido, poderia tornar-se o fundamento da har- monia ¢ do contentamento universais. Doutrinas de autointeresse, produtividade econémica e liberdade pessoal estavam ligadas a essas nogdes. Filhos temporaos de um moribundo Huminismo, os idedlogos pressupunham que o conhecimento derivado das sensagées, sistema- tizado, poderia aperfeigoar a sociedade por meio de métodos éticos € educacionais ¢ de uma diregao politica bem organizada. ite para prover apoio moral & dominagio. Entretanto, os explorados, como disse Marx, também desenvol- sistemas de ideias para avangar seus projetos revolucionarios. ssa forma, 0 que chamamos de marxismo é uma idcologia com objetivo de alcangar a revolugao, triunfo do proletariado e, por |, comunismo, Para o marxista coerente, as ideias nao tém ne- wim valor em si mesmas: como toda arte, valem apenas como um jo para alcangar a igualdade de condigdes € a satisfagio econd- |. Ao mesmo tempo em que escarnece das ideologias de todas as tras convicgdes, © marxista constréi, com astuciosa paciéncia, a propria ideologia. Apesar de ser uma das ideologias mais poderosas, o marxismo = que recentemente tem perdido forca ~ possui competidores: varias formas de nacionalismo, a ideologia da negritude, o feminismo, o fase cismo — uma quase-ideologia que nunca se concretizou por completo na Itilia -, 0 nazismo ~ uma ideologia em embrido, como escreveu Hannah Arendt (1906-1975)"" -, 0 sindicalismo, 0 anarquismo, a so= cial-democracia ¢ Deus sabe quais mais. Sem diivida, outras formas de ideologia ainda sero criadas durante o século XXI. Kenneth Minogue, no livro Alien Powers: The Pure Theory of Ideology" [Poderes Estrangeiros: A Teoria Pura da Ideologial, utiliza 0 termo “ideologia” para “denotar qualquer doutrina que apresente a verdade salvifica ¢ oculta do mundo sob a forma de anilise social. E caracteristica de todas essas doutrinas a incorporag4o de uma teoria geral dos erros de todas as outras.” Essa “verdade salvifica e oculta” s € falsos, disfarga- do de hist6ria, sobre a sociedade por nés herdada, Raymond Aron (1905-1983), no livro L’Opium des Intellectuels {O Opio dos Intelec- tuais],!? analisa os trés mitos que seduziram os intelectuais parisien- € uma fraude — um complexo de “mitos” artif ses: os mitos da esquerda, da revolugao e do proletariado. Para resumir a anilise da ideologia levada a cabo por estudio- sos tais como os ja citados Kenneth Minogue e Raymond Aron, bem como por Jacob Talmon (1916-1980),!’ Thomas Molnar (1921- 2010),!* Lewis Feuer (1912-2002)* e Hans Barth (1904-1965),"* esta palavra ~ ideologia ~ significa, desde a Segunda Guerra Mundial qualquer teoria politica dogmatica que consista no esforgo de colo- car objetivos e doutrinas seculares no lugar de objetivos ¢ doutrinas religiosas; e que prometa derrubar dominagdes presentes para que 0s oprimidos possam ser libertados. As promessas da ideologia sio o que Jacob Talmon chama de “messianismo politico”. O idedlogo promete a salvagio neste mundo, declarando, ardentemente, que nao existe outro tipo de realidade. Eric Voegelin (1901-1985),"” Gerhart Nie- meyer (1907-1997)"* e outros escritores enfatizaram que os idedlogos a Juma série de infernos na Terra. Abaixo listamos alguns dos vicios ideologi siyanentizam os simbolos da transcendéncia” — isto é, corrompem a \o da salvagio pela graca apés a morte, com falsas promessas de unplea fel ‘A ideologia, em suma, é uma férmula politica que promete um idade neste reino terreno.” 9 terreno & humanidade; mas, de fato, 0 que a ideologia criou J. A ideologia é uma religido invertida, negando a doutrina cristi de salvagio pela graga, apés a morte, e pondo em seu lugar a salva- io coletiva, aqui na Terra, por meio da revolugio ¢ da violencia, ‘A ideologia herda o fanatismo que, algumas vezes, aferou a fé reli- giosa e aplica essa crenga intolerante a preocupagdes seculares. 2, A ideotogia faz.do entendimento politico algo impossivel: 0 idedlo- 0 nio accitara nenhum desvio da verdade absoluta de sua revela- .a visio limitada ocasiona guerras civis, a extirpagio ‘glo secular, p dos “reacionirios”, ¢ a destruigdo de instituigGes sociais benéficas e em funcionamento. Ideélogos competem entre si, em uma imaginada fidelidade & sua verdade absoluta; e sio ripidos em denunciar os desviantes ou traidores de sua ortodoxia partidaria, Dessa forma, facgées pro- nnunciadas se criam entre os préprios idedlogos, e fazem guer- ra sem piedade e sem fim, uns com 0s outros, como fizeram os trotskistas e stalinistas. tram A nossa volta. Como a Os sinais da ruina ideolbgica se enc logia ainda pode exercer tanto fascfnio na maior parte do mundo? eee A resposta a essa questo é dada, em parte, na seguinte observa- de Raymond Aron: comunidade mem Quando o intelectual nio se sente mais ligado nem 4 religio de seus antepassados, pede as ideologias progressivas toma- em conta da alma inteira. A diferenga maior entre o progressismo do discipulo de Harold Laski (1893-1950) ou de Bertrand Russell (1872- 1970) e © comunismo do discipulo de Vladimir Lénin (1870-1924) relaciona-se menos com 0 contetido do que com 0 estilo das ideologias da adesio. Sio dogmatismos da doutrina e a adesio i militantes que constituem a originalidade do comunismo, inferion, no plano intelectual, as versdes abertas ¢ liberais das ideologias progress vas etalvez superior para quem esta & procura de uma fé. 0 intelectual, «que no se sente mais ligado a nada, nao se contenta com of tuma certeza, um sistema. A revolugao traz-Ihe seu 6pio." Na primeira pagina deste ensaio, sugeri que alguns norte-ameri- ios, dentre eles alguns com inclinagdes conservadoras, poderiam vir ubragar uma ideologia do capitalismo democratico,” ou da Nova lem Mundial2* ou de um democratismo internacional. Entretanto, ‘aioria dos norte-americanos, com um afeto dissimulado pela pala deologia, nao busca varrer violentamente todas as dominagdes € 1 08 poderes existentes. O que essas pessoas, de fato, demandam ica” € uma formula para a ido civil, uma ideologia do americanismo ou, talvez, do mundo re, © problema com essa nogao de religido civil reside no fato de ‘a grande maioria dos norte-americanos acredita que jé tenha uma Jigiio propria, ¢ nao uma fé preparada por algum departamento fernamental em Washington, D.C. Se tal religido civil oficial, ow suave ideologia, viesse a ser projetada para, por meio de algum ides, quer indo exigem uma “ideologia democr: A ideologia oferece uma imitagao de religiao ¢ uma filosofia frau- dulenta, confortando, dessa forma, aqueles que perderam, ou que nunca tiveram, uma fé religiosa genuina ¢ aqueles que nio possuem’ inteligéncia suficiente para aprender filosofia de verdade.." A razao. fundamental por que devemos francamente nos opér a ideologia = assim escreveu o sabio editor suigo Hans Barth ~ é que a ideologia € contraria a verdade: nega a possibilidade da verdade na politica ow em qualquer outro campo, pondo motivos econdmicos e interesses. de classe no lugar de normas permanentes, A ideologia nega até a consciéncia e 0 poder de decisio dos seres humanos. Nas palavras de Barth: “O efeito desastroso do pensamento ideolégico em sua forma radical nao é apenas lancar duividas a respeito da qualidade e da es- trurura da mente humana, caracteristicas distintivas do ser humano, mas também enfraquecer as bases da vida social”, A ideologia pode atrair os entediados da classe culta, que se des- ligaram da religido e da comunidade, ¢ que desejam exercer 0 poder. A ideologia pode encantar os jovens, parcamente educados, que, em sua solidio, se mostram prontos a projetar um entusiasmo latente em qual- quer causa excitante ¢ violenta. E as promessas dos ide6logos podem arregimentar seguidores dentre os grupos sociais postos contra a parede— ainda que tais recrutas possam nao entender quase nada das doutrinas. dos idedlogos. A compo: cesso insidioso, suplantar as miriades de credos que, atualmente, sscem nesta Terra ~ ora, a hostilidade para com a crenga no trans- «lente seria enorme, bem como seria tamanho o desprezo pelas “al- & religides”. Eis precisamente o artigo mais amargo do credo dessas slogias, que tém castigado o mundo pelas dltimas oito décadas. Provavelmente, tudo o que pretendem os entusiastas dessa nova yposta de ideologia anticomunista é uma declaragao de prineipios ‘eonceitos econdmicos, amplamente promulgados, aprovados legis- vamente como um guia para politicas piblicas, e ensinados em ‘las piiblicas. Se isso € tudo 0 que se espera por que insistir em ilar tal nogdo como uma ideologia? Uma ideologia inocente é tio jprovavel quanto seria o “diabolismo cristo"; aplicar 4 alguma ia 0 sinistro rétulo de “ideologia” seria como convidar os amigos wa uma inocente fogueira de Halloween, anunciando, porém, a fes- como 0 “novo Holocausto”. ‘aso essa “ideologia democratica” acabasse por se revelar, na 1, como nada além de um programa nacional de civismo para iada com muito cuidado. Exaltar (0 inicial do partido nazista ilustra, suficien= temente, o poder de uma ideologia para atrair elementos tao diversos. solas, ainda assim mereceria ser Vi sobejamente as belezas do capitalismo democratico em todas as salas de aula entediaria a maioria dos alunos ¢ provocaria repulsa nos mais inteligentes. E nao sio aulas de educagio civica que formam, prima riamente, as mentes ¢ a consciéncia das novas geragGes: esse é, sobre= tudo, 0 papel do ensino das humanidades. Nao gostaria de ver 0 que resta dos estudos literdrios na escola piblica tipica sendo suplantado. Por uma propaganda oficial sobre a santidade do American Way Life, do mundo livre ou do capitalismo democratico.2® Nao compartilho da opinido de que seria bom jogar o inebriante vinho de uma nova ideologia goela abaixo dos jovens norte-ameri« anos. Se invocarmos os espiritos das profundezas abissais, sera que poderemos esconjuri-los? O que precisamos transmitir é prudéncia Politica, nao beligerancia politica. A ideologia é a doenga, nao a cura, Todas as ideologias, incluindo a ideologia da vox populi vox Dei, sio. hostis a permanéncia da ordem, da liberdade e da justiga.”* A ideolo- gia €a politica da irracionalidade apaixonada. Permiti-me, portanto, tecer aqui, em uns poucos parigrafos, al- gumas reflexes sobre a prudéncia politica, em oposigao a ideologia, Ser “prudente” significa ser judicioso, cauto, sagaz. Plato (427- 347 a.C.),” € mais tarde Edmund Burke (1729-1797), ensinaram- -nos que, no estadista, a prudéncia é a primeira das virtudes. Um estadista prudente é aquele que olha antes de se langar; que tem visio. de longo alcance, que sabe que a politica é a arte do possivel. Algumas paginas atras especifiquei trés erros profundos (vicios) ; do politico ideolégico. Agora, contrasto-os com certos principios da politica da prudéncia: 1, Conforme dito antes, a ideologia € uma religiio invertida. No entanto, © politico prudente sabe que “utopia” significa “lugar rnenhum”;* que nao se pode marchar em direcdo a uma Sido terre nna; que a natureza ¢ as instituigdes humanas sio imperfeitas; que cre, A verdadeira 1 *justica” agressiva na politica acaba em mass ligido é uma disciplina para a alma, nio para o Estado, A ideologia torna impossivel 0 compromisso politico, como fiz notat. O politico prudente, au contraire, tem plena consciéncia de {que © propésito original do Estado é manter a paz. Isso s6 pode ser alcangado via a manutengio de um equilibrio toleravel entre fos grandes interesses da sociedade. Partidos, interesses, grupos € classes sociais devem realizar acordos, caso queiram manter as fa- cas longes dos pescogos. Quando o fanatismo ideol6gico rejeita a, os fracos vio para o paredio. As qualquer solugio conciliaté > . atrocidades ideolégicas do “Terceiro Mundo”, nas dltimas déca- das, ilustram 0 ponto: os massacres politicos no Congo, Timor, Guiné Equatorial, Chade, Camboja, Uganda, Iémen, Fl Salvador, Afeganistio e Somilia. A politica prudencial busca a reconcilia- 0, ndo 0 exterminio. As ideologias s4o acometidas de um feroz facciosismo, na base do ‘ou morte. As revolugdes devoram os politicos prudentes, rejeitando a i principio da fraternidade seus flhos. Por outro lado, so de uma verdade politica absoluta, diante da qual todo cidadzo deve se curvar, entendem que as estruturas polit Jo sio meros produtos de uma teoria, a serem erigidos num dia € demolidos noutro; pelo contrario, instituigdes sociais se desenvol- vvem a0 longo dos séculos, como se fossem orginicas. O reformador radical, proclamando-se onisciente, derruba todos os rivais para ais rapidamente ao Paraiso terreno. Conservadores, em ni heya " tido contraste, tém 0 habito de jantar com a oposigao. Na frase anterior, utilizei, deliberadamente, a palavra conserva- na realidade, como sindnimo da expressio “politico prudente”. lider conservador que, determinado a resistir a todas as ideolo- . € guiado pelo que Patrick Henry (1736-1799) chamou de “o we da experiéncia”."' No século XX, foi o conjunto das opinises iimente denominado de “conservador” que defendeu as “coisas inentes” contra os assaltos dos idedlogos. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, o piblico norte-ai ricano tem visto, de modo cada vez mais favoravel, 0 termo cons uador.® Pesquisas de opinido sugerem que, em politica, a maioria d eleitores se considera conservadora. Se eles entendem bem os prit pios politicos conservadores, isso € outra questio. No meio da segunda administragao do presidente Ronald Rea (1911-2004), um estudante universitério de minhas relagdes conver sava, em Washington, D.C., com um jovem que havia conseguido u cargo politico na administracao federal. Aquele jovem e inexperis homem piiblico comegou a falar de uma “ideologia conservadora”, © universitério recordou-lhe, de modo algo rispido, o significado ma: léfico da palavra “ideologia”. “Bem, vocé sabe o que quero dizer™, respondeu-lhe 0 jovem politico, meio sem jeito. irmava oferecer uma ideologia aos Estados Unidos. “Talvez eu me ne, mas sempre me pareceu que ideologia significa o poder das las”, diz essa correspondente. “O mundo é governado por ideias, 1s © mas, Precisamos de uma grande ideia ou de um ideal para Ibstituir as falsas ideias, hoje dominantes. Quanto tempo podemos Jbreviver como uma nagio livre, uma vez. que a palavra liberdade ‘corrompida?” ‘A conclusio dessa senhora é perspicaz. Contudo, tenho de acres- tar, “Por quanto tempo podemos sobreviver como uma nagio li- | uma vez que a palavra ideologia, com seu poder corruptor, foi mnfundida como a guardi da liberdade ordenada?” Nao tenho a intengao de escarnecer, pois encontro essa confusio pessoas quee conhego bem e respeito profundamente. Uma dessas soas, uma escritora capaz ¢ de espirito arrojado retruca possuir Jondrios — Webster e Oxford - que discordam da definigio mais Jensa de ideologia proposta por Russell Kirk, “Se 0 Oxford esté 410 ¢ ideologia significa ‘a ciéncia das ideias', nao poderiam ser boas Jas? Concordo plenamente que muitas ideologias causam grande J, mas certamente ndo sio todas, nao é? De qualquer maneira, sou «1 pragmatista inata”, conclui a senhora, “e a semantica nao é 0 yeu ponto forte”. Nio, senhora, todas as ideologias causam confusio. Fico mais De toda forma, nao é certo que aquele recém-empossado funcio= nario publico soubesse, ele mesmo, o que verdadeiramente significava aquilo. Sera tinha em mente ideologia como um corpo de principios politicos bem estruturados? Queria ele talvez descobrir um conjunto. de formulas simplistas, pelas quais o capitalismo pudesse se estender a todo 0 mundo? Ou desejava, de fato, derrubar, por meio de ages vViolentas, nossa ordem social vigente e substitui-la por uma sociedade artificial mais proxima de seus ideais? Vivemos numa época em que o significado de antigas palavras, como tantas outras coisas, se tornou inseguro. “As palavras se disten- ynimado pela carta escrita por um publicista conservador influen- dem, / Estalam © muitas vezes se quebram, sob a carga”, como T, S. itica aos jovens idedlogos Eliot (1888-1965) 0 diz. “No principio era o Verbo” (Jo 1,1). Hoje em dia, porém, 0 Verbo esta sendo confrontado pela ideologia gigante, que perverte a palavra falada e escrita. Nio sio apenas os talentos politicos emergentes de nosso tempo ‘que nao conseguem aprender 0 uso apropriado de certas palavras importantes ~ e que, particularmente, entendem mal 0 emprego de ideologia, Uma senhora idosa me escreve em defesa do antigo mo- vimento chamado “Rearmamento Moral”,?* que, ha trés décadas, experiente, que aplaude a minha «1 [que se imaginam conservadores, € aos jovens conservadores espe- do apaixonadamente se converterem em idedlogos. Esse dltimo “torrespondente concorda comigo que a ideologia esta fundamenta- ‘da meramente sobre “ideias” ~ isto & sobre abstragdes, sonhos, sem Yelagio, na maior parte das vezes, com a realidade pessoal e social; fenguanto as visdes conservadoras esto fundadas sobre costumes, ‘eonvencdes, na longa experiéncia da espécie humana, Ele se vé con- frontado, de tempos em tempos, por jovens, que se autodenominam es conservadores, que nao tém nogao alguma de prudéncia, tempera compromisso, tradiges da civilidade ou patriménio cultural. “Os bosques estiio cheios dessas criaturas”, escreve esse cavalhei 10. *O ‘movimento’ conservador parece ter criado uma nova geragai de inflexiveis idelogos. Preocupa-me encontré-los tio numerosos em tantas instituigdes. ios sao libertarios, nao conservas dores. Do que quer que se chamem, sao ruins para nosso pais ¢ nos civilizagao. A concepgio de vida deles é brutal, desumana”. Amém. O conservadorismo é uma ideologia? Somente se, junt com Humpty Dumpty, arrogarmo-nos a prerrogativa de forcar as pas lavras a significar 0 que quer que desejemos que signifiquem, de mod que a questo “é saber quem é que vai mandar ~ s6 isso”. Que nés conservadores, conservemos a lingua inglesa, juntamente com varias outras boas coisas que restam. Levantemos a bandeira de um vocabut lirio honesto e preciso. Venturemo-nos, sejam quais forem os riscos, a lutar contra a “novafala”” dos idedlogos. O triunfo da ideologia seria o triunfo do que Edmund Burke chaz mou de “mundo antagonista”™ — 0 mundo da desordem; ao passo que aquilo que o conservador busca conservar é 0 mundo da ordem que herdamos, ainda que em estado imperfeito, de nossos ancestrais. A mentalidade conservadora e a ideol6gica gravitam em polos pos laro, vai tos, ¢ a controvérsia entre as duas mentalidades nio sera menos ar dorosa no século XXI do que 0 foi no século XX. Possivelmente, este livro podera auxiliar aqueles da nova geragaio que tém a coragem de fazer oposigao aos zeloras ideol6gicos. pre esse tema geral, proceder Capitulo 2 | Dez Principios Conservadores Nio sendo nem uma religido nem uma ideologia, 0 conjunto fpinides chamado de conservadorismo nao possui Sagradas Es- Jturas, nem um Das Kapital, como fonte dos dogmas. Até onde é sivel determinar o objeto das crengas conservadoras, os primeiros Incipios do pensamento conservador derivam do que os mais ilus- ‘escritores e homens pablicos conservadores professaram ao lon- dos diltimos dois séculos. Apés alguns comentarios introdutérios a uma lista de dez desses principios. © sr, Eugene McCarthy (1916-2005), um espirituoso candidaro ssidéncia em uma eleicao recente,” disse publicamente, em 1985, . hoje em dia, emprega a palavra “liberal”® meramente como ad- Ivo, Essa reniincia ao uso do termo “liberal” como substantivo da litica, um rétulo partidério ou ideolégico, dé alguma medida do info da mentalidade conservadora durante a década de 1980 ~ Juindo-se 0 triunfo do lado conservador na propria mentalidade € iter do st. McCarthy. “Talver fosse adequado, na maioria das vezes, utilizar a palavra servador”*! mormente como um adjetivo. Nao existe um modelo xvador,¢ 0 conservadorismo éa negacdo da ideologia: é um estado espirito, um tipo de caréter, um modo de ver a ordem civil e social. ‘A posigdo chamada conservadora se sustenta em um conjunto sentimentos, ¢ nao em um sistema de dogmas ideolégicos. E quase Primeiro, 0 conservador acredita que hd uma ordem moral duradou- Fiisa ordem é feita para o homem,¢ o homem € feito para ela: a natu- verdade que um conservador pode ser definido como alguém que sa. em si mesmo como tal. © movimento ou o conjunto de opini conservador é capaz de acomodar uma diversidade considerdvel pontos de vista sobre um bom ntimero de assuntos, nao exisitin “Atos de Prova” Juumana 6 uma constante, ¢ as verdades morais so permanentes- A\palavra ordem significa harmonia. Ha dois aspectos ou tipos de sn ordem interna da alma e a ordem externa da comunidade po- .# Platio (427-347 a.C.) ensinou tal doutrina ha vinte e cinco sécu- ‘mas hoje em dia até mesmo pessoas instruidas tém dificuldade para wé-a.© problema da ordem é uma preocupacio primaria dos con- lores desde que conservador se tomou um conceito em politica Nosso mundo do século XX experimentou as terriveis conse- vias do colapso da crenga em uma ordem moral. Tal como as cidades ¢ os desastres ocorridos na Grécia do século V oe de 10, ruina de grandes nagdes no nosso século mostra 0 abismo no J caem as sociedades que confundem o autointeresse inteligente ‘controles sociais engenhosos com alternativas agradaveis a uma ou “Trinta e Nove Artigos”* da fé conservadora, Em esséncia, o conservador é simplesmente alguém que acha coisas permanentes mais agradaveis que “o Caos ¢ a Noite Antiga”s No entanto, os conservadores sabem, com Edmund Burke (172! 1797), que uma saudavel mudanga é 0 meio de nossa preservagios A continuidade histérica da experiéncia de um povo, diz 0 cons vador, oferece um guia politico muito melhor do que os projet abstratos dos filos6fos dos cafés; mas é claro que ha mais na cre conservadora que esse propésito genérico. Nao é possivel esbogar um catalogo sistematico das convic dos conservadores; mesmo assim, oferego, sumariamente, dez. pri cipios gerais. Nao seria temerdrio afirmar que grande parte dos cot servadores aceitaria a maioria dessas maximas. Em varias edigdes meu livro The Conservative Mind (A Mentalidade Conservadoral, enumerei certos cannes do pensamento conservador ~ a lista vari um pouco de edigao para edicdo; em minha antologia The Portal Conservative Reader |O Guia de Bolso de Textos Conservadores}, oferego variagdes sobre o tema. Agora, apresento um resumo dos Pressupostos conservadores que difere um pouco dos meus cénones moral ultrapassada. Ji foi dito por alguns intelectuais de esquerda que 0 conservador 1 que todas as questdes sociais si, no fundo, questdes de mo- lade privada. Entendida corretamente, essa afirmagio € bastante ladeira. Uma sociedade em que os homens ¢ as mulheres sio g0- sados pela crenga em uma ordem moral duradoura, por um forte » de certo e errado, por conviegdes pessoais de justiga e de honra, Juma sociedade boa — seja qual for © mecanismo politico utiliza- enquanto, na sociedade, homens e mulheres estiverem moralmen- A deriva, ignorantes das normas ¢ voltados principalmente para a tificagio dos apetites, essa sera uma sociedade ruim ~ nao importa daqueles meus dois outros livros. A rigon a exist ia de diversos modos pelos quais os pontos de vista conservadores podem ser ex Pressos é, em si mesma, uma prova de que 0 conservadorismo nao € uma ideologia fixa. Quais principios especificos serio enfatizados pelos conservadores, em cada época, dependeré das circunstancias € necessidades daquele determinado periodo. Os dez “artigos de f6” seguintes refletem aquilo que os conservadores, nos Estados Unidos de hoje, poem em relevo, sntas pessoas votem, ou quio liberal seja a ordem constitucional .al. Para corroborar o ultimo argumento, basta apenas olhar para triste Distrito de Colimbia.*! Segundo, o conservador adere aos costumes, a convengao e a con- jidade,® Sdo 0s antigos costumes que permitem que as pessoas A Politica da Prudéncia | Dez Principios Conservadores vivam juntas ¢ em paz; os destruidores dos costumes demolem mais do! que suspeitam, ou desejam. E por meio da convengio - uma palavra excessivamente utilizada em nossos dias ~ que conseguimos evitar per- pétuas disputas sobre direitos e deveres: a lei é basicamente um corpo de convengées. A continuidade € 0 meio de unir geragio a geracio; importa tanto para a sociedade quanto para o individuo; sem ela, a vida nao faz sentido. Quando revoluciondrios alcangam o poder tendo apagado velhos costumes, escarnecido de antigas convengdes, ¢ rompido a continuidade das institui a necessidade de estabelecerem novos costumes, novas convengies, € continuidade; mas 0 processo é lento ¢ doloroso e a renovada ordem social que finalmente emerge pode ser muito inferior a antiga ordem derrubada pelos radicais, zelosos na busca do paraiso terreno. Os conservadores sio defensores dos costumes, da convengao da continuidade, porque preferem o mal que conhecem ao mal que no conhecem. Ordem, liberdade e justica, acreditam, sio os produ- tos artificiais de uma longa experiéncia social, 0 resultado de séculos de experimento, reflexao € sacrificio, O corpo social é, dessa forma, um tipo de corporagao espiritual, comparavel Igreja; pode até ser chamado de uma comunidade de almas. A sociedade humana nao € uma maquina, para ser tratada de modo mecanico. A continuidade, © fluido vital de uma sociedade, n3o pode ser interrompida. A lem= branca, feita por Burke, da necessidade de uma mudanga prudente esta sempre na mente dos conservadores; mas a nec ‘sdria mudanga, argumentam, deve ser gradual e judiciosa, nunca desenraizando anti- 0s interesses de um s6 golpe. Terceiro, os conservadores acreditam no que se pode chamar de Principio da consagragao pelo uso.’ Os conservadores percebem que as pessoas da era moderna sao andes nos ombros de gigantes, capazes de enxergar muito além dos antepassados apenas por causa da gran- de estatura daqueles que os precederam. Portanto, os conservadores al san (ae De modo similar, nossa moralidade é, em grande parte, ¢onsagrada pelo uso, Conservadores afirmam ser improvavel que nés, Mmodernos, fagamos qualqu wioral, politica ou gosto. ‘do por base o julgamento ea racionalidade privados. “O individuo é iter ' sociais ~ ora, logo descobrem wwengio ao risca de novos abusos, ai Orr {yequentemente enfatizam a importncia da “consagragio pelo uso” — {sto 6, dda fruigdo das coisas estabele {que a meméria humana nao corra as avessas.% Ha direitos cuja prin idas pelo uso imemorial, de modo io é a antiguidade ~ e abrangem, muitas vezes, 0s direitos de descoberta nova ¢ extraordinaria em rriscado ponderar cada fato ocorrido ten- Wolo [..] mas.a espécie é sébia”* declarou Burke. Na politica, faremos them se permanecermos figis a preceitos e precognigdes, e até inferén- ‘as, que 0 grande e misterioso grémio da raga humana obtém, pelo ‘ys0 consagrado, uma sabedoria muito maior do que qualquer mesqui- ‘who raciocinio privado de um ser humano individual. Quarto, os conservadores sao guiados pelo principio da prudén- ia. Burke esta de acordo com Platao acerca da proposigio de que, ‘estadista, a prudéncia é a maior das virtudes.** Qualquer medida Iblica deve ser julgada pelas suas consequéncias de longo prazo, nio yPenas por vantagens ou popularidade temporarias. Os esquerdis- 0s radicais, diz conservador, sao imprudentes, pois se langam petuosamente em direcio aos proprios objetivos, sem dar muita ida piores que os males que es- -am debelar. Como dizia John Randolph of Roanoke (1773-1833), “Providéncia anda devagar, mas o diabo sempre urge”.*” Complexa mo & a sociedade humana, as solugdes no podem ser simples, se de ser eficazes. © conservador declara agir somente apés sufi- inte reflexao, tendo sopesado as consequéncias. Reformas ripidas ‘agressivas so tao perigosas quanto cirurgias rapidas e agressivas. Quinto, os conservadores prestam atengao ao principio da varie- % Sentem afeigio pela complexidade prolifera das instituigdes sociais ha muito estabelecidas e seus modos de vida, em contraposi io a uniformidade estreita ¢ ao igualitarismo sufocante dos siste radicais. Para a preservagio de uma diversidade saudével em qu quer civilizagao, devem remanescer ordens ¢ classes, diferengas condigao material, e muitos tipos de desigualdade. As tnicas form reais de igualdade sio a do Juizo Final e a perante uma corte de j tiga; todas as outras tentativas de nivelamento levam, na melhor hipéteses, a estagnagio social. A sociedade almeja por uma lidera honesta e capaz; se as diferengas naturais ¢ institucionais entre pessoas forem destruidas, em breve algum tirano ou alguma sér oligarquia criardo novas formas de desigualdade. posse privada, o Leviatd se transformard no senhor absoluto. re o fundamento da propriedade privada grandes civilizagbes so igidas. Quanto mais difundida for a propriedade privada, tanto is estivel e produtiva sera uma comunidade politica. A igualdade yomica, assim afirmam os conservadores, nao é progresso econd- co. Adquirir e gastar nao sio os principais objetivos da existéncia ‘mana; mas uma base econdmica s6lida para a pessoa, a familia e a winidade politica é o que se deve desejar. Sir Henry Maine (1822-1888), na obra Village-Commumities in Fast and West (Comunidades de Aldeias no Oriente ¢ no Ociden- J articula com vigor a defesa da propriedade privada, em oposiga0 Jpropriedade comunal: “Ninguém tem a liberdade de atacar as diver- propriedades e dizer, ao mesmo tempo, que valoriza a civilizagio. histéria dessas duas coisas nao pode ser desvinculada”. A insti- gio das diversas propriedades — isto é, da propriedade privada ~ até hoje um poderoso instrumento para ensinar responsabilidade a mens e mulheres, para dar incentivos integridade, apoiar a cul- ra geral, elevar a humanidade acima do nivel de uma mera lida itiva e opressora e proporcionar as horas vagas para pensar ¢ a dade para agit. Poder conservar 08 frutos do proprio trabalhos ler ver que o proprio trabalho € duradouro; poder deixar as pro- ins posses aos descendentes; poder elevar-se da condigao natural uma pobreza opressora seguranga das conquistas permanentes; suiir algo que é realmente seu ~ sio vantagens inegaveis. © con- aador reconhece que a propriedade estabelece certos deveres aos s morais € legais. Sexto, os conservadores sao disciplinados pelo principio de perfectibilidade.” A natureza humana sofre irremediavelmente co certas falhas, sabem os conservadores. Por ser 0 homem imperfei to, uma ordem social perfeita jamais pode ser criada. Por conta desassossego humano, a humanidade pode se rebelar caso sujeita a qualquer dominagao ut6pica, e vir a explodir novamente em um di contentamento violento ~ ou serminar enfadada. Objetvar a utopia é terminar em desastre, dizem os conservadores: nao fomos feitos para perfeigdo. Tudo o que razoavelmente podemos esperar é uma socieda- de tolerantemente ordenada, justa e livre, na qual alguns males, desa- justes e sofrimentos continuam a espreita. Ao dar a devida atencio reforma prudente, podemos preservar ¢ melhorar essa ordem toler vel. Se as antigas defesas morais ¢ institucionais de uma nagao forem esquecidas, irrompe o impulso anarquico no homem: “a wsuidores; aceita com satisfagao tais obriga eae rim6nia da inocéncia é afogada”.® Os idedlogos que prometiam a perfeigao do homem e da sociedade converteram grande parte do mundo no século XX em um inferno terreno. Oitavo, os conservadores defendem comunidades voluntarias, da sma forma que se opéem a um coletivismo involuntério.® Embora jpovo norte-americano tenha sido sempre muito afeito a privacidade direitos individuais, também sempre foi um povo notavel pelo io. Em uma verdadeira comunidade, Sétimo, os conservadores esto convencidos de que a liberdade € 4 propriedade esto intimamente ligadas.*' Separai a propriedade aos ‘sucesso de seu espirito comunit ——— as decisdes que mais diretamente afetam a vida dos cidadaos sio fortes e inteligentes que seus semelhantes. A anarquia se madas local e voluntariamente. Algumas dessas fungoes sao leva a cabo por organizagées politicas locais; outras, por associacées pri- vadas: desde que permanegam locais e sejam caracterizadas por ui concérdia geral entre aqueles a que se destinam, tais corpos con: jo mai wedem a tirania ou a oligarquia, nas quais 0 poder é monopoli- wlo por uns poucos. conservador procura limitar ¢ equilibrar 0 poder politico, de jo que a anarquia ou a tirania nao tenham chances de surgir. Em to- 1s épocas, porém, homens e mulheres sio tentados a derrubar as li- des impostas ao poder por causa de alguma imaginada vantagem wis6ria. E uma caracteristica do radical pensar no poder como uma 41 para o bem ~ desde que o poder recaia em suas mios. Em nome liberdade, os revoluciondrios franceses € russos aboliram anti Arigdes sobre o poder. Entretanto, o poder nunca é abolido; sempre tba nas maos de alguém. Aquele poder que os revolucionarios ha- sn julgado opressivo nas maos do antigo regime se tornou intimeras mais tiranico nas maos dos novos senhores radicais do Estado. Sabendo que a natureza humana é uma mistura de bem e mal,** 0 Restri- tuem uma comunidade saudvel. Quando essas fungdes so automat camente transferidas ou usurpadas por uma autoridade centralizas entio a comunidade se encontra em sério perigo. O que quer que sej beneficente e prudente numa democracia moderna é possibilitado voligdes cooperativas. Se, portanto, em nome de uma democracia al trata, as fungdes da comunidade sio transferidas a uma diregao litica distante - ora, ai o verdadeiro governo pelo consentimento d governados da ensejo a um processo padronizante, hostil a liberdai 4 dignidade humana, Uma nagio nao é mais forte do que as varias pequenas comue nidades que a compdem. Uma administragio central, ou um cor seleto de gerentes ¢ servidores piiblicos, nio importando quio bem- servador no deposita a confianga na mera benevoléneci constitucionais, freios e contrapesos politicos, um cumprimento 's sobre a von- tuado das leis, a velha e intricada rede de restric lec 0 apetite — sio aprovados pelo conservador como instrumentos liberdade e da ordem. Um governo justo mantém uma tensio sau- Wvel entre as pretensdes da autoridade e as pretensdes da liberdade. -intencionados ¢ treinados sejam, nao é capaz de conferir justi prosperidade e tranquilidade a uma massa de homens e mulheres privados de suas antigas responsabilidades. Essa experiéncia j4 foi feita no passado e foi desastrosa. F a execugio de nossos deveres na comunidade que nos ensina prudéncia, eficiéncia e caridade Décimo, o conservador razodvel entende que a permanéncia ¢ a idanca devem ser reconhecidas e reconciliadas em uma sociedade rosa. O conservador ndo se opde a melhorias sociais, embora wide da existéncia de qualquer tipo de forga semelhante a um pro- ss0 mistico, com “P” maitisculo, em agio no mundo. Enquanto 1a sociedade progride em alguns aspectos, geralmente retrocede outros. © conservador sabe que qualquer sociedade saudavel € tada por duas forcas, que Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) vamou de permanéncia e progressio."” A permanéncia de uma so- cledade € 0 conjunto daqueles interesses e convicgdes duradouros que Nono, 0 conservador vé a necessidade de limites prudentes son bre o poder e as paixdes humanas. Em termos de politica, o poder é a capacidade de fazer o que se quiser, independente da vontade dos outros. Um Estado em que um individuo ou um pequeno grupo é capaz de dominar as vontades dos pares sem restrigies & despético, seja chamado de monarquia, aristocracia ou democracia. Quando cada um pretende ser um poder em si mesmo, entio a sociedade cai na anarquia. A anarquia nunca dura muito, por ser intoleravel para todos ¢ contriria ao fato inelutavel de que algumas pessoas nos dao estabilidade e continuidade; sem essa permanéncia, as fontes do grande abismo se rompem, jogando a sociedade na anarquia. A Progresso em sociedade consiste naquele espirito e conjunto de ta {Quem afirma esses dz prineipios conservadores nos dias de hoje? Jim politica pratica, um conjunto de convicgies gerais comumente en- ontra-se ligado a um grupo de interesses. Os marxistas argumentam, de fato, que os principios politicos professados sio um mero véu que feulta o avango dos interesses econdmicos de uma classe ou facgio: isto lentos que incitam a reforma e a melhora prudentes; sem tal progres: so, 0 povo fica estagnado, __ Portanto,o conservador inteligente procura reconciliar as exiga ; cias da permanéncia e as exigéncias da progressio. Considera que esquerdistas e os radicais, cegos as justas pretensdes da permanéncia, colocariam em perigo a heranga recebida, na tentativa de impelir a 4, nio existe qualquer principio verdadeiro ~ apenas a ideologia. Nao {essa a minha visdo, mas devem ser reconhecidas as conexdes entre cas e interesses econdmicos ou sociais, quando tais co doutrinas pol hexdes existem; podem ser relativamente inocentes, ou podem avangar um duvidoso paraiso terreno. O conservador, em suma, favorece ut Progresso refletido ¢ moderado; opde-se ao culto do progresso, cuji devotos acreditam que tudo 0 que é novo é necessariamente superior 0 que é antigo, ‘A mudanga € essencial ao corpo social, pensa o conservador, da mesma maneira que é essencial ao corpo humano. Um corpo que para de se renovar comega a morrer. Caso 0 corpo deva ser vigoroso, a mudanga tem de ocorrer de uma maneira regrada, harmonizando-se com a forma ea natureza desse corpos ou entéo a mudanga produzi ra um crescimento monstruoso, um cdncer que devora 0 hospedeiro, © conservador trata de que, em uma sociedade, nada seja totalmente velho ou totamente novo. Essa é a maneira pela qual se conserva uma nagao, da mesma forma que se conserva um organismo vivo. A exata medida e 0 tipo da mudanca exigida por uma sociedade depen- dem das circunstancias de determinadas época e nacao."* Tais sio, portanto, os dez prines jios que tém sido preeminentes durante os dois séculos de pensamento conservador modern. Outros principios de igual importancia poderiam ter sido discutidos aqui: a compreensao conservadora da justiga,’ por exemplo, ou a visio conservadora da educagio.” Tais assuntos, por falta de tempo, sou obrigado a deixar para a vossa investigacio pessoal. {\custa do interesse piiblico geral. Que interesse ou grupo de interesses ‘sti por tras do elemento conservador na politica norte-americana? AA pergunta nao € facilmente respondida. Muitos norte-america- subiirbios afluentes nos ricos apoiam causas radicais ou de esquerd: Votam muitas vezes em homens em medidas esquerdistas; 0 apego a sentimentos conservadores nao segue a linha que os analistas politicos narxistas esperariam encontrar, Os donos de pequenas propriedades tendem, como classe, a set mais conservadores do que os possuidores dle grandes propriedades (essa tiltima frequentemente encontrada sob 4 forma abstrata de agGes e titulos). Podemos notar que a maioria dos eonservadores tém conviegdes religiosas; no entanto, os ministros das Jgreias protestantes das principais denominagdes, junto com as buro~ ‘eracias eclesiais, frequentemente aliam-se a organizagoes radicais; a0 mesmo tempo, algumas declaragdes politicas curiosas foram recente- mente ouvidas dentro da hierarquia catlica. Ha meio século, poderia ser dito que a maioria dos professores universitarios era conservado- a; 0 mesmo nao se poderia dizer, sem mentir, hoje em dia; entretanto, mmédicos, advogados, dentistas e outros profissionais auténomos — ou 1 maioria deles — assinam periddicos conservadores e, em geral, vo- tam em pessoas que tomam por candidatos conservadores. Em suma, o interesse conservador aparenta transcender a classifi ‘eagio rotineira da maior parte dos setores do eleitorado norte-ameri- ‘ano por riqueza,idade, origem étnica, religido, ocupagao, educagio ¢

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