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Se sou pobre pastor, se n&io governo Reinos, nagdes, provincias, mundo, e gentes: Se em frio, calma, e chuvas inclementes Passo 0 veriio, outono, estio, inverno; Nem por isso trocara 0 abrigo terno Desta choga em que vivo, coas enchentes Dessa grande fortuna: assaz presentes Tenho as paixdes desse tormento eterno. Adorar as traigdes, amar o engano, Ouvir dos lastimosos 0 gemido, Passar aflito o dia, o més, e 0 ano; Seja embora prazer; que a meu ouvido Soa melhor a voz do desengano, Que da torpe lisonja o infame ruido. Eu, Marilia, no sou algum vaqueiro, Que viva de guardar alheio gado; De tosco trato, d’ expressdes grosseiro, Dos frios gelos, e dos séis queimado. Tenho préprio casal, e nele assisto; Daé-me vinho, legume, fruta, azeite; Das brancas ovelhinhas tiro o leite, E mais as finas las, de que me visto. Gragas, Marilia bela, Gragas & minha Estrela! Eu vio meu semblante numa fonte, Dos anos inda nao esta cortado: Os pastores, que habitam este monte, Com tal destreza toco a sanfoninha, Que inveja até me tem o proprio Alceste: Ao som dela concerto a voz celeste; Nem canto letra, que nao seja minha, Gragas, Marilia bela, Gragas 4 minha Estrela! Mas tendo tantos dotes da ventura, S6 aprego lhes dou, gentil Pastora, Depois que teu afeto me segura, Que queres do que tenho ser senhora. E bom, minha Marilia, é bom ser dono De um rebanho, que cubra monte, e prado; Porém, gentil Pastora, o teu agrado Vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono. Gragas, Marilia bela, Gragas 4 minha Estrela! DESAMPARADOS Foi no chapaddo extenso que chanfra as cumiadas da grande cordilheir. das Vertentes; naquele ponto dos limites entre Minas e Gois em que 0 dorso da serra parece morder as nuvens baixas e aprumar-se para abrir leito a0 re- mansado Paranafba. Passava como peregrino por aquelas paragens ermas, 140 cheias de sole dade e de beleza, cuja contemplarao levanta o espitito a indagagao dos grandes problemas cosmogénicos. 0 vento cabriolava pelas campinas solitérias, carregando panos de neblina, que se afunilavam, estendiam-se em amplos mantos de arminho rogagantes, ov voejavam ao longe, na comissura do horizonte, quais brancos albornozes nume escapada de cavaleiros do deserto. Pelas fraldas dos morros, cingindo-os, bordando os vales, em cujo funde se espreguicavam pauis sonolentos, o buritizal erguia suas verdes frondes, tc lavadas pelas chuvas e t40 brilhantes, que se afiguravam majestoso gorjal de pedras finas, A‘, neste quadro grandioso, em que tudo ere majestade e pujanga na na tureza, deparou-se-nos caminheiro singular, mofino e raquitico, mal coberto Por um esburacado chapéu de palha e uns farrapos de algodfo encardido, que estavam a calhar naquela pele cheia de lividez. Era uma pobre criatura incompleta, insexual, nem menino, nem homem, cujo rosto chupado tinha uma expresso de contrastadora alegtia, nos labios. descarnados que nem podiam se unir, nos olhos pequenos e admirativos que nos esguardavam como a coisas exéticas. ~ Um bandeira! bandeira! — gritou o misero e, espigando-lhe a estatura exigua, levantou a cabeca, abrindo os bragos em mengfo de quem quer abragar. De seu magro pescogo desceram sobre a pele do peito adusto e arrepanhado rosirios ¢ bentinhos. ~ Té 1é 0 bandeira! — acabou assim de exprimir 0 que queria dar a co- mhecer 20 viajor, que eu era, pela mesma mengao de abrago,e apontou, depois izal. Tinha visto estrada que jorro onde balougavam as frondes do burit onde tamandul Depois, deu uma gargalhada ¢ continuow pel E ya, tartamudeando palavras, cortando-as com risadas extravagan is pareciam vozes animais. Acompanhei vagarosamente aquele ente mirrado, to eae ae insciéncia, to forte na sua nenhuma forca, que mais se anulava diante Lureza pujante e infinita que 0 circundava. Perdzespiavam tristemente pelo campo chorando o tempo em dis veram nas matas, ode abundam os frtos e cantam as fontescrstalnas, Conta alenda que daf as expeliram as ja6s numa guerra cruel, cuja ae otras conservam no seu pio lamentoso ou no inolvidado desafio. Mudo, no meio do escampado, ¢ compadecendo daquela miséria humane eu seguia com os olhos 08 movimentos daqueleente sem ventura, ingurinds as feras 0 haviam poupado em suas monterias ou os cori por que motivo no meio das tempestades. ‘ote Foi entao que o idiots, dando pulos de contente, mostrou no meio ae ‘uma moita um casal de pequenas perdizes quase implumes, pipilando, ‘uma na outra os cotos das asinhas. ; ninho estava desamparado a beira da estrada ¢ também o tinham pow pado as enxurradas, em torrentes nesse tempo de grandes chuvas, € as rapos em sua ronda da noite. ; Também os mesquinhos ¢ desamparados encontram caricioso aconchego: no seio largo da natureza infinita. ‘Ao passo que as eaatingas so um aliado incorruptivel do serta- nejo em revolta. Entram também de certo modo na lute, Armam-s¢ para o combate; agridem. Trangam-se, impenetriveis, ante 0 forae feiro, mas abrem-se em tridhas multivias, para o matuto que all mas- cou e creseett. Eo jagango faz-se o guerrilheiro-thug, intangivel. .- ‘As caatingas nio 0 escondem apenas, amparam-no. ‘Ao avisté-las, no vero, uma coluna em marcha néo se surpreen- de. Segue pelos caminhos em torcicolos, aforradamente. E os soldax dos, devassando com as vistas 0 matagal sem fdlhas, nem pensara D0 inimigo. Reagindo & canfcula e com 0 desalinho natural As marchas, prosseguem envoltos no vozear confuso das conversas travadas om toda a linha, virguladas de tinidos de armas, cindidas de risos joviais mal sofreados. E que mada pode assusté-los. Certo, se os adversérios impru- prudentes com éles se afrontarem, seréo varridos em momentos. ‘Aqueles esgalhos far-se-do em estilhas a um breve choque de espa- das © ndo é erivel que 0s gravetos finos quebrem o arranco das me- nobras prontas, E Ja se ao, marchando, tranquilamente herdicos... De repente, pelos seus flancos, estoura, perto, um fire ‘A bala passa, rechinante, ou estende, morto, em tet mem, Sucedem-se, pausadas, outras, passando sdbre as +abilos Tongos. Cem, duzentos olhos, mil olhos perserutadores, vol- ‘vem-se, impacientes, em roda. Nada véem. Ha a primeira surprésa. U outra ponta das fileiras E 08 tiros continuam raros, mas insistentes ¢ compassados, pela esquerda, pela direita, pela frente agora, irrompendo de téda a banda. Entdo estranha ansiedade invade os mais provados valentes, ante 6 antagonista que vé ¢ nio é visto. Forma-se eéleremente em atira- dores uma companhia, mal destacada da massa de batalhées cons- tritos na vereda estreita. Distende-se pela orla da caatinga. Ouve-se uma vox de comando; ¢ um turbilhao de balas roln estrugidoramente dentro das galhadas. . Mas constantes, longamente intervalados sempre, zunem 08 pro= jetis dos atiradores invisiveis batendo em cheio nas fileiras. fluxo de espanto corre de uma a io rupidamente engravece, exigindo resolugdes enérgi- can. Destncam-se outras unidades combatentes, escalonando-se por {du a extensio do caminho, prontas & primeira voz; — e 0 coman- resolve carregar contra o desconhecido. Carrega-se contra os jes. A forca, de baionetas caladas, rompe, impetuosa, o mata- ga! numa expansio irradiante de cargas. Avanga com rapidez. Os dversarios parecem recuar apenas. Nesse momento surge o antago- 10 formidavel da caatinga. AS seegdes precipitam-se para os pontos onde estalam os estam- Pidos e estacam ante uma barreira flexivel, mas impenetravel, d> ju- remas. Enredam-se no cipoal que as agrilhoa, que Ihes arrebats das indios as armas, e nao vingam transpé-lo. Contornam-no. Volver ai Indos. Vé-se um como rastilho de queimada: uma linha de baione- tas enfiando pelos gravetos secos. Lampeja por momentos entre 0s raios do sol jocirados pelas arvores sem folhas; e parte-se, faiseando, adiante, dispersa, batendo contra espessos renques de xique-xicues, unidos como quadrados cheios, de falanges, intransponiveis, fervi- hando espinhos.. Gireuitam-nos, estonteadamente, os soldados. Espalham-se, cor- 4 toa, num labirinto de galhos, Caem, presos pelos lagos corre- 'os dos quipas reptantes; ou estacam, pernas imobilizadas por for- mos tentdculos. Debatem-se desesperadamente até deixarem em pedagos as fardas, entre as garras felinas de aciileos recurvos das macambiras.. re Impotentes estadeiam, imprecando, 0 desapontamento e a riiva, agitando-se furiosos ¢ intiteis. Por fim a ordem dispersa do combate faz-se 2 dispersio do tumult m a esmo, sem pontaria, numa indisciplina de fogo que vitima os préprios companheiros. Seguem reforgos. Os mesmos transes reproduzem-se maiores, acrescides a eonfusio ¢ a desordem; — enquanto em torno, circulando-os, rf-mi- antes, seguros, terriveis, bem apontados, caem inflexivel- mente os projetis do adversario De repente cessam. Desaparece o inimigo que ninguém viu As secgdes voltam desfaleadas para a coluna, depois de intiteis Pexquisas nas macegas. E voltam como se saissem de recontro brago 4 brago, com selvagens: vestes em tiras; armas estrondadas ou per- didas; golpeados de gilvazes; claudicando, estropindos; mal repri- mindo o doer infernal das folhas urticantes; frechados de oapinhos, Reorganiza-se a tropa. Renova-se a marcha. A coluna estirada a dous de fundo, deriva pelas veredas em fora, estampando no cln+ zento da paisagem 0 traco vigoroso das fardas azuis listradas de ver- melho ¢ 0 corusear intenso das baionetas ondulantes. Alonga- afasta-se; desaparece. Passam-se minutos. No Iugar da refrega, entio, surgem, dentro moitas esparsas, cinco, dez, vinte homens no miximo. Deslizam, r&- Pidos, em siléncio, entre os arbiisculos secos. . Agrupam-se na estrada. Consideram por momentos a tropa, in- distinta, ao longe; € sopesando as espingardas ainda aquecidas, to- mam precipites pelas veredas dos pousos ignorados. A forga vai prosseguindo mais cautelosa agora. Subjugam 0 Animo dos combatentes, caminhando em silencio, 0 império angustioso do inimigo impalpavel e a espectativa torturante dos assaltos imprevistos, O comandante rodeia-os de melhores res- guardos: ladeiam-nos companhias dispersas, pelos flancos: duzentos metros na frente, além da vanguarda, norteia-os um esquadrao de Pragas escolhidas. No descair de encosta agreste, porém, escancela-se um suleo de quebrada que € preciso transpor. Felizmente as barrancas, esterili- zadas dos enxurros, esto limpas: escassos restolhos de graminess; eactos esguios avultando raros, entre blocos em monte; ramalhos mortos de umbuzeiros alvejando na estonadura da séca... Desce por ali a guards da frente. Seguem-se-lhe os primeiros batalhées. Escoam-se, vagarosas, as brigadas pela Indeira agreste. Em baixo, coleando nas voltas do vale estreito ja esté téda a van- guarda, armas fulgurantes, feridas pelo sol, feito uma torrente eseura transudando raios. E um estremecimento, choque convulsive e irreprimivel, tala estacar de stibito. Passa, ressoando, uma bala, Desta vex os tiros partem, lentos, de um s6 ponto, do alto, pare- cendo fei ; debela o panico emergente; ¢, como anteriormente, uma secgio se destaca ¢ val, encosta acima, ras- diregio dos estimpidos. O torveli lorna aquela varidv 10 dos ecos numerosos, e 08 tiros nfo revelados, porque 0 io se condensa naqueles ares ardentes, continuam Jentos, as- es, seguros. Afinal cessam. Soldados esparsos pelos pendores pesquisam-nos intitilmente. Volvem exaustos. Vibram os clarins. A tropa renova a mareha coin algumas pragas de menos. E quando as tiltimas armas desapa- recem, a0 longe, na ititima ondulagao do solo, desenterra-se de mon- tées de blocos — sinistra em ruinas ciclépicas — um rosto bronzeado e duro; depois um torso de atleta, encourado ¢ rude; e transpondo velozmente as ladeiras vivas desaparece, em momentos, o tragico cagador de brigadas. Estas seguem desenfluidas de todo, Dai por diante velhos luta- dores tém pavores de crianga. Ha estremecimentos em cada volta do inho, a cada estalido séco nas macegas, O exército sente na pré- fraqueza aun Sem plasticidade segue numa exaustio continua pelos ermos, atormentado no golpear das ciladas, lentamente sangrado pelo inimi- go, que 0 assombra e que foge ‘A luta é desigual. A f6rea militar decai a wn plano inferior Batem-na o homem e a terra. E quando 0 serto estua nos bochor- nos dos estios longos nfo é dificil prever a quem cabe a vitéria, En- quanto 0 minotauro, impotente ¢ possante, inerme com a sua en- vergadura de ago e grifos de baionetas, sente a garganta exsicar-se-The de séde ¢, aos primeiros sintomas da fome, reflui A retaguarda, fu- gindo ante o deserto ameagador ¢ es! ja flora agressiva abre no sertanejo um seio carinhoso ¢ amigo Entio — nas quadras indecisas entre a séca ¢ 0 verde, quando se topam os iiltimos fios de agua no lodo das ipueiras e as tiltimas folhas amarelecidas nas ramas das baratinas, ¢ o forasteiro se assusta € foge ante o flagelo iminente, aquéle segue feliz nas travessias longas, pelos desvios das veredas, firme na rota como quem conhece a palmo todos os recantos do imenso lar sem teto. Nem the importa que a jornada se alongue, ¢ as habitagdes rareiem, e se extingam as cacim- thas, e escasseiem, nas baixadas, os abrigos transitérios, onde sesteiam os vaqueiros fatigados. Cercam-the relagées antigas. Tédas aquelas arvores sio para éle yelhas companheiras. Conhece-as todas. Nasceram juntos; cresce- ram irmémente; cresceram através das mesmas dificuldades, Iutando com as mesmas agruras, sécios dos mesmos dias remansados, desaltera-o ¢ di-Ihe a sombra escassa das derradeiras folhas; 0 araticum, 0 ouricuri virente, a mari elegante, a quizaba de frutos pequeninos, alimentam-no a fartar; as palmatérias, despidas em combustio répida dos espinhos numerosos, os mandacarus talhe- dos a facdo, ou as félhas dos juds — sustentam-Ihe 0 cavalo; o8 il timos Ihe dio ainda a cobertura para o rancho provisorio; os carods fibrosos fazem-se cordas flexiveis e resistentes... E se é preciso avan- gar a despeito da noite, ¢ 0 olhar afogado, no escuro apenas lobriga a fosforescéncia azulada das cunands ° dependurando-se pelos ga- Ihos como grinaldas fantasticas, basta-lhe partir ¢ acender um ramo verde de candombé ¢ agitar pelas veredas, espantando as suguaranas deslumbradas, um arehote fulgurante. . A natureza téda proteje o sertanejo. Talha-o como Anteu, indo- mavel. & um titd bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exéreitos. © uml DV. vies. 342 0 436, Mudanga Na PLANICIE avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes, Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansa- dos e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem trés léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. Arrastaram-se para 14, devagar, sinha Vité- ria com o filho mais novo escanchado no quarto eo bat de folha na cabega, Fabiano sombrio, cam- baio, o aid a tiracolo, a cuia pendurada numa cor- reia, presa ao cinturao, a espingarda de pedernei- ra no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrés. Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, su- miram-se, O menino mais velho pés-se a chorar, sentou-se no chao. — Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai. Nao obtendo resultado, fustigou-o com a bai- nha da faca de ponta, Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os clhos, Fabiano ainda lhe deu algumas Ppancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto nao acon- tecesse, espiou os quatro cantos, zangado, prague- jando baixo. A catinga estendia-se, de um vermelho inde- ciso salpicado de manchas brancas que eram ossa- das. O véo negro dos urubus f: irculos em redor de bichos mmoribundos “ alts aI See pirralho nao se mexeu, e Fabiano desejou maté-lo, Tinha o corago grosso, queria at sabilizar alguém pela sua desgraca, A seca apare- cia-lhe como um fato necessdrio — e a obstina- ¢ao da crianga, irritava-o. Certamente esse obsté- culo mitido nfo era culpado, mas dificultava a cae € 0 vaqueiro precisava chegar, nao sabia Tinham deixado os caminhos, chei i- nho e seixos, fazia horas que pisavam & mae eae tio, a lama seca e rachada que escaldava _ , Pelo espfrito atribulado do s ji ® idéia de abandonar o filho pei do, Pensou nos urubus, nas ossadas, cocgou a bar- ba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredo- res, Sinha Vitéria estirou o beigo indicando vaga- Mente uma direc&o e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturéo, acocorou- Se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados no estémago, frio como um defunto. Ai a célera desapareceu e Fabiano teve Pena. Impossivel abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a sinha Vitéria, Na) o filho no cangote, levantou-se, agarrou os ae que Ihe caiam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinha Vitéria aprovou esse arranjo, lancou de novo a interjeigéo gutural, designou os juazeiros invisiveis. a viagem prosseguiu, v arrastada, num siléncio grands, ries ‘Ausente do companheiro, a cachorra Baleia tomou a, frente do grupo. Arqueada, as costelas a mostra, corria ofegando, a lingua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se retardavam. Ainda na véspera eram seis viventes, contan- do com o papagaio, Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, & beira de uma poga: a fome apertara demais os retirantes e por ali no existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabega, os ossos do amigo, e nfo guardava lembranga disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estra- nhava n&o ver sobre o bat de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano também as vezes sentia falta dela, mas logo a recordacaéo chegava. Tinha andado a procurar rafzes, & toa: o resto da farinha acabara, nao se ouvia um berro de rés perdida na catinga. Sinha Vitéria, queimando o assento no chao, as maos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que nao se relaciona- vam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusao. Despertara-a um grito dspe- ro, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados, numa atitude ridicula. Resolvera de supetéo aproveita- Jo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inttil. Ndo podia dei- xar de ser mudo. Ordinariamente a familia fala- va pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra. As manchas dos juazeiros tornaram a apare- cer, Fabiano aligeirou o passo, esqueceu a fome, a canseira e os ferimentos, As alpercatas dele esta- vam gastas nos saltos, e a embira tinha-lhe aber- to entre os dedos rachaduras muito dolorosas, Os calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e sangravam. Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a esperanga de achar comida, sentiu desejo de cantar. A voz saiu-Ihe rouca, me- donha, Calou-se para ndo estragar forga. Deixaram a margem do rio, acompanharam a cerca, subiram uma ladeira, chegaram aos jua- zeiros. Fazia tempo que nao viam sombra. Sinha Vitéria acomodou os filhos, que arria- ram como trouxas, cobriu-os com molambos. O menino mais velho, passada a vertigem. que o der- Tubara, encolhido sobre folhas secas, a cabega encostada a uma raiz, adormecia, acordava, E quando abria os olhos, distinguia vagamente um monte préximo, algumas pedras, um carro de bois. A cachorra Baleia foi enroscar-se junto dele. Estavam no pdtio de uma fazenda sem vida. O curral deserto, o chiqueiro das cabras arruina- do e também deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido. Fabiano procurou em vio perceber um toque de chocalho. Avizinhou-se da casa, bateu, tentou forcar a porta. Encontrando resisténcia, penetrou num cercadinho cheio de plantas mortas, rodeou @ tapera, alcancou o terreiro do tundo, viu um barreiro vazio, um bosque de catingueiras mur- chas, um pé de turco e 0 Pprolongamento da cerca do curral. Trepou-se no mourao do canto, exami- 12 nou a catinga, onde avultavam as ossadas e 0 negrume dos urubus. Desceu, empurrou a porta da cozinha. Voltou desanimado, ficou um instan- te no copiar, fazendo tengo de hospedar ali a familia. Mas chegando aos juazeiros, encontrou os meninos adormecidos e nao quis acordé-los. Foi apanhar gravetos, trouxe do chiqueiro das eabras uma bracada de madeira meio roida pelo cupim, arrancou Ree) de macambira, arru- ‘udo para a fogueira. men ae ponto Baleia arrebitou as orelhas, arre- gacou as ventas, sentiu cheiro de preas, farejou um minuto, localizou-os no morro préximo e saiu -correndo. Fabiano seguiu-a com a vista e espantou-se: ‘uma sombra passava por cima do monte. Tocou © brago da mulher, apontou o céu, ficaram os dois algum tempo agiientando a claridade do sol. Enxugaram as lagrimas, foram agachar-se perto dos filhos, suspirando, conservaram-se encolhi- dos, temendo que a nuvem se tivesse desfeito, ven- cida pelo azul terrivel, aquele azul que deslum- brava e endoidecia a gente. . Entrava dia e saia dia. As noites cobriam a terra de chofre. A tampa anilada baixava, escure- cia, quebrada apenas pelas vermelhidées do poen- © siuainhos, perdidos no deserto quelmado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgra- gas e 0s seus pavores. O coragio de Fabiano bateu junto do coragfio de sinha Vitéria, um abrago cansado aproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram & fraqueza, afastaram-se envergonha- dos, sem Animo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperanga que os alentava. Iam-se amodorrando e foram: despertados por Baleia, que trazia nos dentes um prea. Levan- taram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as palpebras, afastando pedagos de so- nho. Sinha Vitéria beijava o focinho de Baleia, e como 0 focinho estava ensangiientado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. Aquilo era caga bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver. Olhou o céu com resolugéo. A nuvem tinha crescido, agora cobria o morro inteiro. Fabiano pisou com segurancga, esquecendo as rachaduras que lhe estragavam os dedos e os calcanhares, Sinha Vitéria remexeu no bat, os meninos foram quebrar uma haste de alecrim para fazer um espeto. Baleia, 0 ouvido atento, o traseiro em repouso e as pernas da frente erguidas, vigiava, aguardando a parte que Ihe iria tocar, provavel- mente os ossos do bicho e talvez o couro. Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, enca- minhou-se ao rio seco, achou_no bebedouro dos animais um pouco de lama, Cavou a areia com as unhas, esperou que a Agua marejasse e, debru- gando-se no chao, bebeu muito. Saciado, caiu de papo para cima, olhando as estrelas, que vinham nascendo. Uma, duas, trés, quatro, havia muitas estrelas, havia mais de cinco estrelas no céu. O poente cobria-se de cirros — e uma alegria doida enchia 0 coragao de Fabiano. Pensou na familia, sentiu fome. Caminhan- do, movia-se como uma coisa, para bem dizer nio se diferengava muito da bolandeira de seu To- mas. Agora, deitado, apertava a barriga e batia os dentes. Que fim teria levado a bolandeira de seu Tomas? 1 Olhou 0 céu de novo. Os cirros acumulavam- se, a lua surgiu, grande e branca. Certamente ia chover. , Seu Tomas fugira também, com a seca, a bo- Jandeira estava parada. E ele, Fabiano, era como a bolandeira. Nao sabia porqué, mas era. Uma, duas, trés, havia mais de cinco estrelas no céu, ‘A lua estava cercada de um halo cor de leite. Ia chover. Bem. A catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria 0 vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de ossos animariam a solidado. Os meni- nos, gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, sinha Vitéria vestiria saias de rama- gens vistosas, As vacas povoariam 0 curral, Ea catinga ficaria toda verde. Lembrou-se dos filhos, da mulher e da ca- chorra, que estavam 14 em cima, debaixo de um juazeiro, com sede. Lembrou-se do pred morto. Encheu a cuia, ergueu-se, afastou-se, lento, para nao derramar a Agua salobra. Subiu a ladeira. A aragem morna acudia os xiquexiques e os man- dacarus. Uma palpitacio nova. Sentiu um arte- pio na catinga, uma ressurreicao de garranchos e folhas secas. . Chegou. Pés a cuia no chao, escorou-a com pedras, matou a sede da familia. Em seguida aco- corou-se, remexeu 0 aid, tirou o fuzil, acendeu as raizes de macambira, soprou-as, inchando as bo- chechas cavadas, Uma labareda tremeu, elevou- se, tingiu-lhe o rosto queimado, a barba ruiva, os olhos azuis, Minutos depois o prea torcia-se e chiava no espeto de alecrim. . Eram todos felizes. Sinha Vitoria vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de sinha Vitéria remocaria, as nédegas bambas de sinha Vitéria engrossai a roupa encarnada de sinha ‘Vitoria provocaria a inveja das outras caboclas. A lua erescia, a sombra leitosa crescia, as es- trelas foram esmorecendo naquela brancura que enchia a noite. Uma, duas, trés, agora havia pou- cas estrelas no céu. Ali perto'a nuvem escurecia o morro. ‘A fazenda renasceria — e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria dono daquele mundo. Os trocos minguados ajuntavam-se no chao: a espingarda de pederneira, o aid, a cuia de agua 20 bai de folha pintada. A fogueira estalava. O prea chiava em cima das brasas. Uma ressurreicéo. As cores da satide volta- riam a cara triste de sinha Vitéria. Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores, A catinga ficaria verde. Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como no podia ocupar-se daquelas coisas, espe- raya com paciéncia a hora de mastigar os ossos. Depois iria dormir. — O meu nome € Severs © RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM £ E A QUE VAI ‘no tenho outro de pi Como ha muitos Severinos, que é santo de rom deram entéo de me chamar Severino de Maria; como hé muitos Severinos com maes chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. ‘Mas isso ainda diz pouco: h4 muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias ¢ que foi o mais antigo senhor desta sesmaria, Como entao dizer quem fala ora a Vossas Senhorias? Vejamos: € o Severino da Maria do Zacarias, da Serra da Costela, ites da Parafba filhos de tantas Marias mulheres de out finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra ¢ ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabega grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, © iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta, E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doenca € que a morte seve ataca em qualque e até gente nfo nascida) Somos muitos Sever iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais a de querer arrancat algum roado da cinza. ‘Mas, para que me conhecam melhor Vossas Senhi € melhor possam se a histéria de minha vida, asso a ser o Severino que em vossa presenga emigra. ta, ENCONTRA. POIs HOMENS CARREGANDO UM DEFUNTO, NUMA REDE, AOS Gairag. BE; SQIRNAGS DAS ALMAS! IRMAOS DAS ALMAS! NAO FUI EU QUE MATET — A quem estais carregando, irmaos das almas, embrulhado nessa rede? dizei que eu sail — A um defunto de nada, irmao das almas, que hé muitas horas viaja a sua morada. — E sabeis quem era ele, irmaos das almas, sabeis como ele se chama ou se chamava? — Severino Lavrador, irmfo das almas, Severino Lavrador, mas jé nfo lavra. — E de onde que o estais trazendo, irmios das almas, onde foi que comegou vossa jornada? — Onde a Caatinga é mais seca, irmio das almas, onde uma terra que néo dé nem planta brava. — E foi morrida essa morte, irmaos das almas, essa foi morte morrida ou foi matada? — Até que nao foi morrida, irmao das almas, esta foi morte matada, numa emboscada, E 0 que guardava a emboscada, inmios das almas, e com que foi que 0 mataram, com faca ou bala? Este foi morto de bala, irmio das almas, mais garantido é de bala, mais longe vara, E quem foi que o emboscou, ismaos das almas, dizer, irmfo das almas, sempre ha uma bala voando desocupada. E 0 que havia ele feito irmaos das almas, © 0 que havia ele feito contra a tal péssara? Ter uns hectares de terra, irmao das alma de pedra e areia lavada que cultivava. ‘Mas que rocas que ele tinha, irmaos das almas, que podia ele plantar na pedra avara? Nos magros labios de areia, imo das almas, dos intervalos das pedras, plantava palha. — E era grande sua lavoura, irmaos das almas, layoura de muitas covas, tao cobigada? — Tinha somente dez quadros, irmao das almas, todos nos ombros da serra, nenhuma vérzea. — Mas entéo por que o mataram, irmaos das almas, mas entfo por que o mataram com espingarda? — Queria mais espalhar-se, irmio das almas, queria voar mais livre essa ave-bala. — E agora o que passard, irmaos das almas, (© que & que acontecerd contra a espingarda? — Mais campo tem para soltar, irmfo das almas, tem mais onde fazer voar as filhas-bala, — E onde o levais a enterrar, irmios das almas, ‘com a semente de chumbo que tem guardada? — Ao cemitério de Torres, irmao das almas, que hoje se diz Toritama, de madrugada. — E poderei ajudar, irmaos das almas? cnet iat tame sae, ., : cetmaanlill vou passar por Toritama, € minha estrada. Bem que poderd ajudar, immo das almas, 6 irmao das almas quem ouve nossa chamada. E um de n6s pode voltar, irmao das almas, pode voltar daqui mesmo para sua casa, Vou eu, que a viagem é longa, irmfos das almas, € muito longa a viagem ea serra é alta. Mais sorte tem o defunto, irmaos das almas, pois jf nao faré na volta a caminhada. Toritama nao cai longe, irmao das almas, seremos no campo santo de madrugada, Partamos enquanto é noite, irmio das almas, que € o melhor lengol dos mortos noite fechada. — Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem no, Deus esteja. Alvejei mira em érvore, no quin- tal, no baixo do cérrego. Por meu acerto, Todo dia isso fag, \ gosto; desde mal em minha mocidade. Dai, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser — se viu —; e com méscara de cachorro, Me disseram; eu nao quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebita- do de beigos, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cio: determinaram — era o demo. Povo prascévio, Ma- taram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas Nao tenho abusées. O senhor ri certas risadas... Olle: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a armas, cei latir, instantaneamente — depois, entio, se vai ver se deu mor- tos. O senhor tolere, isto ¢ o sertao, Uns querem que nao seja: que situado sertio é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Uructia, Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, entio, 0 aqui nao ¢ dito sertio? Ab, que tem maior! Lugar sertio se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; ¢ onde criminoso vive seu cristo- jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Uructia vem dos monties oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo da — fazendées de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vavantes; culturas que vio de mata em mata, madeiras de gros- sura, até ainda virgens dessas li ha. O gerais corre em volta, Esses gerais sio sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, 0 senhor sabe: pio ou pies, é questio de opiniies... O sertio esth em toda a parte. Do demo? Nao gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome dele — dizem 6: 0 Que-Diga Vote! no... Quem muito se evita, se convive. Sentenga num Aristides — o que existe no buritizal primeiro desta minha mio direita, chamado aVereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita — todo © mundo cré: ele nao pode passar em trés lugares, designados: porque entio a gente escuta um chorinho, atris, e uma vozinha que avisando: — “Eu ja vou! Eu jé vou! que é0 capiroto, 0 que-diga... E.um Jisé Simpilicio — quem qualquer daqui jura ele ‘tem um capeta em casa, mitido satanazim, preso obrigado a aju- dar em toda ganancia que executa; razio que 0 Simpilicio se empresa em vias de completar de rico. Apre, por isso dizem tam- bém que a besta pra ele rup@ia, nega de banda, nio deixando, quando ele quer amontar... Superstisio. Jisé Simpilicio c Aristides, mesmo esto se engordando, de assim nio-ouvir ou ouvir. Ainda © senhor estud \gora mesmo, nestes dias de época, tem gente porfalando que 0 Diabo prépric parou, de passagem, no Andrequicé, Um Mogo de fora, teria aparecido, ¢ Id se louvou que, para aqui vir — normal, a cavalo, dum dia-e-meio — ele era capaz. que s6 com uns vinte minutos bastava... porque cos- teava o Rio do Chico pelas cabeceiras! Ou, também, quem sabe —— sem ofensas — nao ter sido, por um exemplo, até mesmo 0 senhor quem se anunciowassim, quando passou por li, por prazido divertimento engracado? Hi-de, nio me dé crime, sei que nao foi. E mal eu nao quis. Sé que uma pergunta, em hora, as vezes claréia razao de paz. Mas, o senhor entenda: o tal mogo, se hi quis mangar. Pois, hem, que, despontar 0 Rio pelas nascentes, ser a mesma coisa que um se redobrar nos internos deste nosso Estado nosso, custante viagem de uns trés meses... Entdo? Que- Diga? Doideira. A fantasiagio. E, o respeito de dar a ele assim es nomes de rebugo, é que é mesmo um querer invocar que ele forme forma, com as presengas! Nio seja. Eu, pessoalmente, quase que ja perdi nele a cren- a, mercés a Deus; ¢ 0 que ao senhor Ihe digo, 4 puridade. Sei que & bem estabelecido, que grassa nos Santos-Evangelhos. Em ocasifo, conversei com um rapaz seminarista, muito condizente, conferindo no livro de rezas ¢ revestido de paramenta, com uma vara de maria-pretana mio — proseou que ia adjutorar o padre, para extrafrem o Cujo, do corpo vivo de uma velha, na Cachoei- ra-dos-Bois, ele ia com 0 vigirio do Campo-Redondo... Me con. cebo. O senhor nio é como eu? Nao acreditei patavim. Compa- dre meu Quelemém descreve que 0 que revela efeito so 0s baixos espiritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas e com ansias de se travarem com 0s viventes — dio encosto. Com- padre meu Quelemém é quem muito me consola— Quelemém de Géis, Mas ele tem de morar longe daqui, na Jijuja, Vereda do Buriti Pardo... Arres, me deixe la, que —em endemoninhamento ou com encosto — senhor mesmo deverd de ter conhecido diversos, homens, mulheres, Pois nio sim? Por mim, tantos vi, que aprendi. Rincha-Mae, Sangue-d’ Outro, 0 Muitos-Beigos, 0 Rasga-em-Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, 0 Azi- nhavre... o Hermégenes... Deles, punhadio. Se eu pudesse es- quecer tantos nomes... Nao sou amansador de cavalos! E, mes- mo, quem de si de ser jagunco se entrete, ja é por alguma competéncia entrante do deménio, Seré no? Sers? De primeizo, eu fazia e mexia, ¢ pensar nao pensava. Nao possuia os prazos. Vivi puxando dificil de dificel, peixe vivo no moquém: quem méi no asp'ro, nio fantaséia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. Eme inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe € nao existe? Dou o dito. Abrentincio. Essas melancolias, O se- hor vé: existe cachoeira; e pois! Mas cachoeira é barranco de chao, ¢ 4gua se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa Agua, ou desfaz 0 barranco, sobra cachoeira alguma? Viver & negécio muito perigoso... Explico ao senhor: 0 diabo vige dentro do homem, 0s cres- pos do homem — ou é 0 homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadio, é que nio tem diabo nenhum Nenhum! — é 0 que digo, © senhor aprova? Me declare tudo, franco — é alta mercé que me fiz: ¢ pedir posso, encarecido, Este caso — por estiirdio que me vejam — é de minha certa importincia. Tomara nao fosse... Mas, nio diga que o senhor, assisado ¢ instruido, que acredita na pessoa dele?! Nao? Lhe agra- dego! Sua alta opiniio compde minha valia. J4 sabia, esperava por ela — jé 0 campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradego. Tem diabo nenhum. Nem espirito, Nunca vi. Alguém devia de ver, entio era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse Ihe contar... Bem, diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas criangas —~ eu digo, Pois nao é ditado; “menino — trem do dia- bo”? E nos usos, nas plantas, nas 4guas, na terra, no vento... Es- trumes. ... O diabo na rua, no meio do redemunbo... CABOCLO Caboclo triste, de cara enrugada fica sentado & porta do rancho Fuma ‘Nao conversa com a mulher Os olhos endureceram naquela solidao da linha do mato mutilado a machado O escuro apaga as Arvores Fogo desanimou na cozinha Mia um gatinho magro no terreiro: Mei-s-é-r-i-a Queixam-se os sapos naquele siléncio enorme Nada Ihe adoga os pensamentos apagados alma copiada pela geografia Cresce a area das derrubadas Aspera Erigada de tocos de arvores Caboclo cisma dentro do seu horizonte limitado pela linha do mato Fuma o cigarro lento Miséria O SERTANEJO FALANDO. 4 fala a nivel do sertanejo engana: as palavras dele vém, como rebugadas ipalavras confeito, pilula), na glace de uma entonago lisa, de adocicada. Enquanto que sob ela, dura e endurece 9 carogo de pedra, a améndoa pétrea, dessa arvore pedrenta (0 sertanejo) ncapaz de néo se expressar em pedra. Daf porque o sertanejo fala pouc as palavras de pedra ulceram a boca eno idioma pedra se fala doloroso; o natural desse idioma fala a forga. Dai também porque ele fala devagar: tem de pegar as palavras com cuidado, confeité-las na lingua, rebug-las; pois toma tempo todo esse trabalho. Tr Retrato de um poste mal afincado ele era. Sendo um vaqueiro entrementes; petio de campo. No jeito comprido de estar em pé seu corpo fazia trés curvas no ar. | Usava um defeito de ave no labio. Desde 0 vilarejo em que nasceu podia alcangar 0 cheiro das arvores. Esse Malafincado: Sempre nos pareceu feito de restos. Ventos 0 amontoavam como folhas. Foi sempre convidado a fazer parte de arrebéis. (Sintomatico de tordos era 0 seu amanhecer.) Falava em via de hinos - Mas eram coisas desnobres como intestinos de moscas que se mexiam por dentro de suas palavras. Gostava de desnomear: Para falar barranco dizia: lugar onde avestruz, esbarra. Rede era vasilha de dormir. Tragos de letras que um dia encontrou nas pedras de uma gruta, chamou: desenhos de uma voz. Penso que fosse um escorgo de poeta. O vaquetro Na earacterizagio do vaqueiro, elemento tipieo do medi- terriineo nordestino, influfram valores diversos, entre os quais a prépria condigio de trabalho, que Ihe acarreta uma permanente atividade, Na regifio que vimos estudando, 6 0 tipo humano mais caracteristieo; constitui o elemento social mais representative do meio; étniea ou eulturalmente, traduz ® bomem que, conduzindo os rebanhos, guiando 0 gado, abrindo caminhos ¢ formando currais, permitiu a formacio da sociedade sertaneja, Além déle, pouco a pouco, 6 que foram surgindo, depois, outros elementos dessa pa'sagem social, na diversifieagio do sen modo de vida: 0 beiradeiro, © lavrador, 0 extrator de carnafiba ou de babagu ete. Vaqueiro 6 denominagio genériea, que se aplica a todos @uintos trabalham com o gado. A principio, foi, no Nor- deste, a prépria denominagéo dada ao proprietario. E, se- gundo cronista coevo, os titulos de vaqueiro, ou eriador, ou homem de fazenda — ainda no se usava fazendeiro — tor. navam-se honoriticos entre éles. Sio sindnimos com que se distinguem aquéles a cujo cargo estd a administragio ¢ a eco. nomia da fazenda. Depois, a expressio vaqueiro caracterizon © trabalhador de gado, a denominagio de criador pasando & referir-se ao proprietirio ou dono de fazenda, ‘Ao lado do vaqueiro, ha 0 “alugado”, ane é 0 seu aju- dante. Inicialmente, difereneiavam-se no modo de pagamen- to; 0 vaqueiro reeebia o seu pagamento em erias, sistema hoje {nase em completo desuso, eo “alugado” tinha um pequeno ordenado, com comida e direito a uma ou duas roupas anuais fornecidas pelo patriio. 'Também 6 conheeido como “empre- gado”. Agquéle que aspira a ser vaqueiro, e por isso desem- penha pequenas tarefas Ligadas 20 gado, conhece-se como “vaquejador”, Hs, porém, denominagées especificas, ligadas em parti- cular 4 atividade que cada um desempenha na distribuigio de encargos ¢ fungdes. © que doma o animal, amansando-o, 6 0 “amansador”, ao passo que se chama “amadrinhador” ¢ que auxilia o domador, ou procura acostumar um animal com outros. Ao vaqueiro chefe, isto é 0 que comanda a tropa, chama-se comumente “eabeca de campo”, E? também denominado “guia”, on ainda “candee'ro”, pois vai na frente, tangendo o gado. Ainda na vida interna da fazenda distribuem-se os en- cargos. O “eampeiro” 6 0 que cuida do gado nos eampos ou pastos, enquanto se denomina “marruciro” 0 “pastor de gado”, O que ferra 0 gado com a marea do dono ou coloea forraduras nas patas de animais 6 0 “ferrador”. O “olheiro” ‘via uma fazenda ou apenas um cereado, 1 se o animal adoece, recorre-se a0 ‘curador”; é 0 tratador das moléstias do gado, tendo oragGes e meziuhas para as bicheiras, as mor- Geduras de cobra, ou outra qualquer doenca, CGhamam-se “passadores de gado” os vaqueiros encarre- ados de levar o gado a feira, Si0 conhecidos também como oiadeiros”, 'Trata-se de homens que merecem a completa confianga do fazendeiro, pessoas honestissimas e também ¢o- rajosas, pois nfo raro tém de defrontar-se com ladrées ou ‘As travessias sempre so longas, mas a con- fianca ea honestidade dos “‘passadores de gado” fazem com que a boiada chegue completa ao seu destino, Quando a boiada se dirige de um ponto a outro mais dis- tante, varios vaqueiros a acompanham. Um déles, de boa vo2, A frente eantando o aboio; 6 0 “abo‘ador”. Ha vaquei- ros afamados como cantadores de aboio; guiado por sua voz, © gado caminha, O aboio é 0 notavel canto de trabalho das regides pastoris. Cada um dos outros, ao Jado da sua fungiio prépria, tem ‘a sua posigfo na boinda, Os “eabeceiras” ou “dianteiras” sfio os que vio na frente; guardando os flaneos das bo'adas Vio 08 “esteiros”; atrés se colocam os “‘eostaneiras” e en- terrando, na retaguarda, colocam-se os do “coice”. Sio ex- presses corriqueiras no Nordeste para os vaqueiros que acom- panham_as boiadas. Conhecem-se ainda, de modo geral, como Ufangerinos”. Os que auxiliam os vaqueiros viajando a pé, no lado das boiadas, reeebem popularmente o nome de “tan- gedor salta moita”, “As relagées tradicionais entre o proprietiirio ¢ 0 vaqueiro yém sofrendo modificagées sensiveis. O antigo sistema de pagar o vaqueiro com crias esti desaparecende, pouco © Memdo ainda, O que eonstitui um prejuizo nfo apenas para a propriedade como para o proprio vaqueiro, porque éle se desprende da terra, perde o motivo de fixar-se a cla. Hoje, quase tédas as fazendas estabelecem o sistema de pagamento ae ainheito, tornando-se assim, o vaqueiro, um assalariado, © desenvolvimento de outras atividades, mesmo na pré- pria regio, como 6 0 caso do extrativismo da earnaiiha, tem contribuido, de igual maneira, para a transformagio do va- queiro tradicional ; novas geracGes vaio deixando os eentros de eriagio para transformar-se em “tiradores de palhas”, dedi- cando-se ao corte dos earnaubais. Os melhores salérios atraem e criam uma idéia nova para o antigo vaqueiro, Misticos ¢ cangaceiros Em faco das condi¢ées em que se verificon 0 processo de desbravamento e ocupagio do mediterrineo nordestino, criaram-se certos tipos sociais, muito ligados a elas, que as transformagdes dos nossos dias vio, por efeitos diversos, fa- zendo pouco a pouco desaparecer. Dois déles sio particular- mente ligados ao process do desenvolvimento social da re- giao: 0 mistico ¢ o cangaceiro, Nio é muito longa a d'stfincia que vai entre um e outro, em sua formaeio psfquiea, Do fandtico ao eangacciro, ov esto Aqnele, a influéneia do meio social — do deserto’ hu. mano gue mara a regio o- eonisibnin de manna des va aminho a ser percorrido nfo sé psieoldgicamente como também socialmente. Os elementos caraeteristicos de um e@ de outro, quase sempre irmanados, encontram-se ¢ diversos, Entre o fandtico e o eanga- anca, tanto mais quanto represen- ade sertancja, Do fanitico, surgido desde os primeiros momentos da oeupagio humana no século XVI, ainda em nossos dias temos visto casos dos mais earaeteristieos. Fanatismo, por exem- plo, foi o que se eriou em térno da figura do Padre Cicero, do Judzeiro; nfio deixain de ser fanatismo easos como outros que se tém desenrolado na paisagem eultural da regifio: o do heato José Lonrengo, ainda recente, por exemple Um aspecto a salientar 6 0 de que, quase sempre, 0 cangaceiro 6 dominado por forte sentimento de religiosidade, dentro do conceito que se possa cmpregar para traduzir ésse sentimento, © uso de oragdes fortes por eangaceiros, por exemplo, 6 coisa comum. De Lampiio sabe-se que mio ad- mitia a’ presonga de protestantes na sua frente; para éle tam expressées da. soei ceram os piores inimigos. J6 Anténio Silvino, nfo menos pos crajor de erenga religiosa, preferia ontras oragdes fortes, as que, por exemplo, se expressam nestes versos de literatura, de eordel: Ouvir bem e ve: Conhiecer tha © outelro Néo volto por onde vou, Néo conflo em compantetro. 0 herdieo — eneontramos quanto o fanatismo es ‘As oragdes para benzimentos e curas sfio em grande niimero; othe menos numerosas as destinadas a “fechar @ corpo” ‘wadaa prineipalmente pelos eangaceiros. | Outras oragies ‘fio Jeualments eomuns nesta regio: a Sio Campeito, por exem: plo, dirigem-se oracées para se achar wm objeto perdido, para © que se acendem ‘yvelas pelos campos. Entre os doeumentos eneontrados nos despojos de ‘Lampifio, em wicos, havia um offeio do Nossa Senhora que pertencia a Mi ‘A atitude do sertanejo em relagio ao cangacel sempre a de entusiasme, a de admiragio pelo her6i, um motivo que Rese sentimento ‘ao cangaveiro note-se, por exemplo, muito ex iteratura de cordel. De uns vorsos sébre An- si ;mas de Anténio Sitvino por Tem- pesinde” — destacam-se ates qe traduzem tal a! tude: Nos cangacelros que ow tinha Nao havia um insolento Pogavase em um daqucles ora uma alma Inocente, Nao sendo seus intrigados Bram po Muito delieadamente. ‘Dasse modo, prolonga-se no eangaceiro a atitude do, ser- tanejo; como que aquéle exprime a reagio que éste desejaria ter, o sentimento de traduzir o que éle pensa. 1 isto como conseqiiéncia mesmo das cond'gées de deserto; deserto nfo 86 humano, mas sobretudo social, que 26 bene que marca o Nordeste me-

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