Casa Grande e Senzala

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PREFACIO A 1.* EDICAO vou-me primeiro @ Bahia; depois a Portugal, com escala pela Africa. O tipo de viagem ideal para os estudos e as preocupagées que este ensaio reflete. Em Portugal foi surpreender-me em.fevereiro de 1931 0 con- vite da Universidade de Stanford para'ser um dos’ seus visiting professors na primavera do mesmo ano. Deixei com saudade Lisboa, onde desta vez pudera familiarizar-me, em alguns meses de lazer, com a Biblioteca Nacional,com as colegdes do, Museu Etnoldgico, com sabores novos .dé*vinho-do-porto, dé “bacalhau, de doces de freiras. Juntando-se a‘isto o gosto.dée rever Sintra € os Estoris eo de abragar-amigos lustres. Um ‘deles, de Azevedo, mestre:admirdyel. Igual oportunidade*tivera na Boliia = minha velha conhe- cida, mas 56. de visitas rdpidas.. Demorando-mé'em Salvador pude conhecer ‘com todo o vagar-ndos6 “as. colegdes. lo Museu Afro- baiano Nina Rodrigues a arte do-trajo-das negras quituteiras ea decoragao dos, seus bolos e-tabuleiros como certos encantos mais intimos da cozinha eda ‘dogaria baiana que escapam aos simples turistas. Certos: (gostos.’ wais finos da velha cozinha das casas-grandes que fez dos fornos, dos fogées e dos tabuleiros de bolo da Bahia seu ultimo e Deus queira que invencivel reduto. Deixo aqui meus agradecimentos as familias Calmon, Freire de Carvalho, Costa Pinto; também ao professor Bernardino de fim outubro de 1930 ocorreu-me a aventura do exilio. Le- 1. Merecem um estudo A parte os motivos decorativos e porven- tura misticos que orientam as pretas quituteiras na Bahia, em Pernam- buco e no Rio de Janeiro no recorte dos papéis azuis, encarnados, ama- relos, etc. para enfeite dos tabuleiros e acondicionamento de doces, as formas que dio aos bolos, alfenins, rebucados, etc, A decoragdo dos tabu- leiros € uma yerdadeira arte de renda em papel, feita quase sem molde. xlv Sousa, do Instituto Histérico, a Frei Filoteu, superior do Con- vento dos Franciscanos, e @ preta Maria Indcia, que me prestou interessantes esclarecimentos sobre o trajo das baianas e a deco- racao dos tabuleiros. “Une cuisine et une politesse! Oui, les deux signes de vieille civilisation. ..”, Jembro-me de ter aprendido num livro francés. E justamente a melhor. lembranga-que.conservo da . Bahia: a da sua polidez e a da sua cozinha, Duas expressdes de civilizago patriarcal que Id se sentem hoje como em nenhumoa . outra parte do Brasil. Foi a Bahia que nos deu alguns dos maiores estadistas e diplomatas do Império; e os pratos mais saborosos da cozinha brasileira em lugar nenhum se preparam tao bem como nas yelhas casas de Salvador e do Recéncavo. Realizados os cursos que por iniciativa do Professor Percy Alvin Martin me foram confiados na Universidade de Stanford — um de conferéncias, outro de semindrio, cursos que me puse- ram em contato com um grupo de estudantes, mogas e rapa7es, animados da mais viva curiosidade intelectual — regressei da Ca- liférnia a Nova Torque por um caminho novo para mim: através do Novo México, do Arizona, do.Texas; de toda uma regiio que ao brasileiro do Norte recorda; nos seus irechos mais acres, 08 nossos sertdes ourigados demandacarus\e de xique-xiques. Des- campados em que a yegetagao parece uns enormes cacos de gar- rafa, de um verde-duro, ds vezes:sinistro, espetados-na areia seca. Mas regressando pela fronteiramexicana, visava:menos a esta sensagao dé paisagem sertanéja que a do'velho:Sul escravocrata, Este se alcanga ao chegar- o transcontinental’ aos.canaviais e ala- gadigos da Luisiana..Luisiana, Alabama, ‘Mississipi,.as Carolinas, Virginia <0 chamado “deep South”. Regio onde o regime. pa- triarcat- de. economia criou’ quasé o.mesm ipo dé aristocrata e de casa-grande, quase 0 mesmo.tipo de escravo e de senzala que no norte do Brasil’e em certos treci mesmo gosto pelo sofd, pela“cadeira.de-balanco,-—p miilher,- pelo-~ cavalo, pelo jogo; que: Sofreu, € 5, quando nao as feridas abert ainda-sangrando, do mesmo regime devastador fe exploracao agraria — o fogo, a derrubada, a coivara, a “la- voura parasita da natureza”,* no dizer de Monteiro Baena refe- rindo-se ao Brasil. A todo estudioso da formagdo patriarcal e da economia escravocrata do Brasil impde-se 0 conhecimento do chamado “deep South”, As mesmas influéncias de técnica de pro- dugao e de trabalho — a monocultura e a escravidéo — uniram- 2, Anténio Ladislau Monteiro Ba fic Provincla do Pard, Pats, fonteiro ena, Ensaio Corogrdfico Sobre a xlvi gf. se naquela parte inglesa da América como nas Antilhas e em Jamaica, para produzir resultados sociais semethantes aos que sé verificam entre nés. As vezes tao semelli.nte que sé varia 0 aces- sOrio: as diferengas de lingua, de raga e de forma de religiao. Tive a fortuna de realizar grande parte da minha excursao pelo sul dos Estados Unidos na companhia de dois antigos cole- gas da Universidade de Colimbig — Ruediger Bilden e Francis Butler Simkins. O primeiro yem se especializando com o rigor ea fleuma de sua cultura germénica no estudo da escraviddo na América, em geral, e no Brasil, em particular; 0 segundo, no estudo dos efeitos da aboligéo nas Carolinas, assunto que acaba de fixar em livro interessantissimo, escrito de colaboragaio com Robert Hilliard Woody: South Carolina During Reconstruction (Chapel Hill, 1932). Devo aos meus dois amigos, principalmente a Ruediger Bilden, sugestées yaliosas para este trabalho; e a0 seu nome devo associar o de outro colega, Ernest Weaver, meu companheiro de estudos de Antropologia no curso do Professor Franz Boas. renee ee O Professor Franz Boas & a figura de'mestre de que me ficou_ até hoje maior impressio. Conheci-o NOS meus primeéiros dias em Columbia. Creio que nenhum estudante russe,’ dos roméaniicos, do século XIX, preocupou-se:mais intensantente pelos destinos da ‘yRussia do que eu pelos do‘ Brasil nafase em que conhech Boas. ira como. se.tudo -dependesse_de-inim-@ dos-de-minha- geracao;- da nossa. maneira, de resolver: questées .secularesE dos’ roble- nas. brasileiros,-nenhum que’ me inquietasse tattto.comio.oHa | cigenacao. {Vi uma. vez, depots de mais-de trésanos»macicos dé ‘ausénciado Brasil;'um Bando de marinhelros nacionais’ — mu- latos e cafuzes'— descendo nag»me lembro:se'do-Sio Paulo ou do Minas ‘pela neve mole dé Brooklyn::Derani-me a impressao de caricaturas de homens. E veio-mevé lembranca a frase de um livro de viajante americano’ que*acabara de ler sobre o Brasil: “the fearfully mongrelaspect of most of the population”. A mis- cigenagao resultava naquilo. Faltou-me quem me dissesse entao, como em 1929 Roquétte-Pinto aos arianistas do Congresso Bra- sileiro de Eugenia, que nao eram simplesmente mulatos ou ¢a- fuzos os individuos que eu julgava representarem o Brasil, mas cafuzos e mulatos doentes. Foi_o_estudo_de Antropologia sob a orientaciio do Professor Boas que primeiro me révelou o fegro € 0 mulato no seu justo valor —~ separados dos tragos de raga os efeitos do ambiente ou da experiéncia cultural. Aprendi a considerar. fundamental..a. di- ferenca entre raga e clltura; a discriiiliiar entre os efeltos de pee pty ber os — pref. a 14 ed, xlvii relagdes puramente genéticas e os de influéncias sociais, de he-.__ ranca cultural e de meio. Neste critério de diferenciagao funda- mental entre raca e cultura assenta todo o plano deste ensaio. Também no da diferenciagéo entre hereditariedade de raga e hereditariedade de familia. Por menos inclinados que sejamos ao materialismo histdrico, tantas vezes exagerado nas suas generalizagdes — principalmente em trabalhos de sectdrios e fandticos — temos que admitir in- fluéncia considerdvel, embora nem sempre preponderante, da téc-. nica da produgio econémica sobre a estrutura das sociedades; na ~ Vv caracteriza¢ao"da sua fisionomia moral. E uma influéncia sujeita oes a reacdo de outras; porém poderosa como nenhuma na capaci- dade de aristocratizar ou de democratizar as sociedades; de de- senvolver tendéncias para a poligamia ou a monogamia; para a estratificagdo ou a mobilidade. Muito do que se supGe, nos es- tudos ainda téo flutuantes de eugenia e de cacogenia, resultado de tracgos ou taras hereditdrias preponderando sobre outras in- fluéncias, deve-se antes associar @ persisténcia, através de gera- des, de condigées econémicas e sociais, favordveis ou desfavo- raveis ao desenvolvimento humano: Lembra, Franz Boas que, admitida a possibilidade da eugenia eliminar'os elementos indese- jdveis de uma sociedade,-a selegiio eugénica deixaria de suprimir as condigdes soci sponsdveis pélos proletariados miserdveis — gente doente e mal nutrida; e° persistindo tais condigdes sociais, formariam os°mesmos proletariado: % oN , 3. Boas salienta’o fato de que nag. classes‘ de -condigdes econdmicas desfavordveis de “vida-\os individuos:. desenvolvem-se’ lentamente, apresen- tando estatura baixa, em comparacdo com a, das classes ricas. Entre as classes,‘pobres encontra-se_uma estatura baixa aparentemente hereditaria, ue, entretanto, parece para'a mobilidade. Isto sem deixar. jos de reconhecer.0 fato-de que em Pernambuco e no Recén- ‘avo a terra se-apresentou excepcionalmente favordvel para a cul. tura intensa do agiicar’é para a estabilidade agrdria e patriarcal, A verdade € que em torno dos senhores de engenho criou-se © tipo de civilizagGo mais estdvel na América hispdnica; e esse tipo de civilizagio, ilustra-o a arquitetura gorda, horizontal, das SN, 22, Walter B. Cannon, Bodily Changes in Pain, Hunger, Fear and Reage, Nova Iorque, Londres, 1929, ation” ;Arihur Keith, On Certain Factors Concerned jn the Be n_of Human ”, i 5 tute, Londres, vol SLY, ‘ fournal ‘of the Royal Anthropological Insti- hii Hh \ casas-grandes. Cozinhas enormes; vastas salas de jantar; nume- rosos quartos para filhos e hdéspedes; capela; puxadas para aco- modagao dos filhos casados; camarinhas no centro para a reclu- sao quase mondstica das mogas solteiras; gineceu; copiar; sen- zala, O estilo das casas-grandes — estilo no sentido spengleriano —— pode ter sido de empréstimo; sua arquitetura, porém, foi ho- nesta e auténtica. Brasileirinha da silva,,Teve alma. Foi expres- sdo sincera das necessidades, dos interesses, do largo ritmo de vida Patriarcal que os proventos do acucar e o trabalho eficiente dos negros tornaram possivel. Essa honestidade, essa largueza sem luxo das casas-grandes, sentiram-na varios dos viajantes estrangeiros que visitaram o°| Brasil colonial. Desde Dampier a Maria Graham. Maria Graham ficou encantada com as casas de residéncia dos arredores do Re- cife e com as de engenho, do Rio de Janeiro; sé a impressionou mal o nimero excessivo de gaiolas de papagaio e de passarinho penduradas por toda parte. Mas estes exageros de gaiolas de pa- pagaio animando a vida de familia do que hoje se chamaria cor local; e os papagaios tao bem-educados,.acrescenta Mrs. Graham, que raramente gritavam ao mesmo tempo. 24 Alias, em matéria de domesticacgaéo patriarcal de anitnais, d’Assier°observou exemplo ainda mais expressivo: macacos tomando..abéngdo aos muleques do mesmo modo que estes‘ aos negros velhos e os negros: velhos aos senhores brancos.8 A hierarquia. das casas ‘grandes, esten- dendo-se aos papagaios e aos’ macacos. A casa-grande, embora’ “associada particular ente ao: éngenho de cana, ao patriarcalismo, nortista, nose deve considerar ex- pressio exclusiya‘do agucar, mas da: ‘monocultura’ escravocrata € latifundidriayem geral: criou-a:.no° Sul-d café tao. brasileiro como no Norte o agticar. Percorrendo-se’ antiga. zona fluminense paulista dos cafezais, sente-se,nos casaréesem ruinas, nas terras ainda sangrando das derrubadas’é dosprocessos de lavoura lati- fundidria, a expresso’ do,‘mesmo’ impulso econdmico que em Pernambuco criou*as casas-grandes de Megaipe, de Anjos, de No- ruega, de Monjope, de Gaipid, de Morenos; e devastou parte con- siderdvel da regido chamada “da mata”. Notam-se, é certo, va- riagées devidas umas a diferengas de clima, outras a contrastes psicolégicos e ao fato da monocultura latifundidria ter sido, em Sdo Paulo, pelo menos, um regime sobreposto, no fim do século 24. Maria Graham, Journal of a Voyage to Brazil and Residence there During the Years 1821, 1822, 1823, pg. 127, Londres, 1824. 25. Adolphe d’Assier, Le Brésil Contemporain — Races — Moeurs — Institutions — Paysages, pig. 89, Paris, 1867. pref. d 14 ed. xii XVIII, ao da pequena propriedade.?6 Nao nos deve passar doy percebido o fato de que “enquanto os habitantes do Norte pty. curavam para habitagdes os lugares altos, os pendores das serras, | os paulistas, pelo comum, preferiam as baixadas, as depressdes yo solo para a edificagdo de suas vivendas [... .]”.47 Eram casas, qs | paulistas, “sempre construidas em terreno ingreme, de forte plo. no inclinado, protegidas do vento sul, de modo que do lado ye baixo o prédio tinha um andar térreo, o que the dava desse lag | aparéncia de sobrado”. Surpreende-se nos casarées do Sul um or mais fechado e mais retraido do que nas casas nortistas; mas 9 “terraco, de onde com a vista o fazendeiro abarcava todo o orgy- nismo da vida rural”, € 0 mesmo do Norte; o mesmo terrago hospitaleiro, patriarcal e bom. A sala de jantar e a cozinha, as mesmas salas e cozinhas de convento. Os sobrados que, viajandy. 26. Alfredo Ellis Junior, em Raga de Gigantes, demonstra, baseadg nos Inventdrios e nas Sesmarias, que até o fim do século XVII dy. minou em S&éo Paulo o regime da pequena propriedade, as casas de morada nao passando de edifficios de taipas @ pilio, a principio cobertas de sapé: “Tinham em ordinério trés lancos, com o seu quintal, e erat Pessimamente mobiliadas [....}.” Porém grandes, com imensas salas de jantar, © j4 com “casa dos negros’,~ou senzala..,Na casa setecentistg le Francisco Mariano da Cunha\achou Ellis Junior dezesseis quartos de andes dimensdes e sala de-jantar de 13.x°5,40. Oliveira Viana, no sey ani lagdes Meridionais do Brasil, salienta’o contraste entre as fazendag pa istas anteriores ao século do café’—, 0 XIX — fazendolas “que se fazenda as bragas; sendo as maiores, de'uma léguaem quadra, com ag res ‘ous mineiras~e fluminenses que ‘sio latifandios de> dez mil alquel- buco mais”. Os verdadeitos, latifindios foram porém .os de Pernam. £ a Bahia, do. tipo. do. dé Garcia d’Avila, ©” coe . o 6. a eects . Sio Paulo, Rh ‘Fatos ¢ Festas' na Tradigio » Rev. Inst. Hist, Deve- entar que C, A. Taunay, em seu Manual do Agricultor Reauileira, ublicado no Rio de Janeiro~em 1839, aconselhava os senho- “eleva cag eenho © fazendeiros do Brasil a> tevantarem suas casas em palavras medfocre”.'e dando a. frente para “o oriente € sul”. Nas suas favordveig oe 20-21)3'“O oriente “e sul sio as duas exposi¢ées mais local opt a frente das‘ casas, por haver menos sol e melhor viracio, com hun glerivel hechuma;:“elevagéo mediocre, no centro da_planicie. fos. fundo: leclive suave da“parte da frente e quasi insensivel da banda haver a, on para collocac¢déo das dependencias. Bem entendido que deve dades 84%, Proxima, ¢, se possivel, dentro de casa; mas as locali- regras,” Circunstancias peculiares de cada fazenda modificio estas do nivel go de todas as habitagdes e (Officinas deve ser levantado acima bosta de to terreno visinho: huma mistura de barro, tubatinga, aréa e © serve oi applicada e soccada torna-se quasi tio dura como ladrilho No om Para argamassar tanto os terreiros como os pavimentos.” “menos sok near do Manual que possuo hf, com relagéo & expressiio ‘ol e melhor viragéo”, este comentério do antigo dono do livro, Ixiv gf se de Santos ao Rio em vapor pequeno que venha parando em todos os portos, avistam-se a beira da dgua — em Ubatuba, Séo Sebastido, Angra dos Reis — recordam os patriarcais, de Rio For- moso. E as vezes, como no Norte, encontram-se igrejas com alpendre na frente — convidativas, doces, brasileiras. A histéria social da casa-grande é a historia intima de qua- se todo brasileiro: de sua vida doméstica, conjugal, sob o pa- triarcalismo escravocrata e poligamo; da sua vida de menino; do seu cristianismo reduzido a religido de familia e influenciado pelas crendices da senzala. O estudo da histéria intima de um povo tem alguma cousa de introspeccéo proustiana; os Goncourt id 0 chamavam “ce roman vrai”. O arquiteto Liicio Costa diante das casas velhas de Sabaré, Sdo Jodo del-Rei, Ouro Preto, Ma- riana, das velhas casas-grandes de Minas, foi a impressio que teve: “A gente como que se encontra... E se lembra de cousas que a gente nunca soube, mas que estavam Id dentro de nds; nao sei — Proust devia explicar isso direito.”*® _ Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu 6 ae cardter brasileiro; a nossa continuidade .social. No estudo da sua | Y histéria intima despreza-se tudo o-que a histéria:politica e mi- litar nos oferece de empolgante\por uma quase rotina de vida: \ mas dentro dessa rotina é.que melhor sessente o cardter de um | povo. Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos \ aos poucos nos completar: é outro-meio de procurarsse o “tempo | perdido”. Outro meio de nos-sentirmos nos outros =nos que \ viveram antes de nds; e-em cuja-vida se antecipou @'nossa. Bum | passado que se estuda@ tocando em nerves; um-passado. que emen- da com a vida-de-cqada‘um; uma)aventura de sénsibilidade, nao apenas um:esforco de pesquisa-pelos arquivos. “ee oT Isto,-é claro, quando se consegue penetrar tia intimidade mes- ma do passado; surpreendé-lo suas verdadeiras tendéncias, no fazendeiro contemporaneo de. midade, N&o é€? Orn ‘va.rezar =. Sobre o assunto..vejam-se: também: Cartas Econémico-Pollticas s0- bre o Comércio e a “Agricultura da Bahia, Lisboa, 1821, F, P. L, Wer- necke, Memdria Sobre a Fundagdo de uma Fazenda, Rio, 1860, F. L. C. Burlamaqui, Monografia da Cana do Agicar, Rio, 1862, Alberto Lame- go Filho, A Planicie do Solar e da Senzala, Rio, 1934, Afonso Varzea, Geografia do Agucar no Leste do Brasil, Rio, 1943., “Geografia dos Engenhos Cariocas”, Brasil Acucareiro, vol. XXII, janeiro de 1944, n.° 1, “Engenhos dentre Guanabara-Sepetiba”, Brasil Agucareiro, vol. XXV,; fevereiro de 1945, n.° 2, Miguel Calmon du Pin e Almeida, Ensaio sobre o Fabrico do Agucar, Bahia, 1834, 28. Lucio Costa, “O Aleijadinho ¢ a Arquitetura Tradicional”. O Jornal, edigho especial de Minas Gerais, Rio de Janeiro. A. Tatnay: “e mais chuva e mais hu- pref. d 1." ed. Ixv SN seu G-vontade caseiro, nas suas expressdes mais sinceras. O Que nao é facil em paises como o Brasil; aqui o confessiondrio absor. yeu os segredos pessoais e de familia, estancando nos homens, & principalmente nas mulheres, essa vontade de se revelarem adx outros que nos paises protestantes prové o estudioso de histérix intima de tantos didrios, confidéncias, cartas, memorias, autobio. grafias, romances autobiogrdficos. Creio que nao hd no Brasil ur sé didrio escrito por mulher. Nossas avés, tantas delas analfabe. tas, mesmo quando baronesas e viscondessas, satisfaziam-se err contar os segredos ao padre confessor e 4 mucama de estimacao: e a sua tagarelice dissolveu-se quase toda nas conversas com as pretas boceteiras, nas tardes de chuva ou nos meios-dias quentes, morosos. Debalde se procuraria entre nds um didrio de dona dé casa cheio de gossip no género dos ingleses e dos norte-america, nos dos tempos coloniais.*® Em compensagao, a Inquisigdo escancarou sobre nossa vida intima da era colonial, sobre as alcovas com camas que em geral arecem ter sido de couro, rangendo ads pressées dos adultérios e dos coitos danados; sobre as camarinhas e os quartos de san- tos; sobre as relag6es de brancos-com escrayos — seu olho enor- me, indagador. As confiss6es.e dentincias:reunidas pela visitagao do Santo Oficio ds partes ‘do Brasil’ constituem material pre- cioso para o estudo‘da vida sexual’ e de familia, no Brasil do século XVI e XVII. Indicam-nos.q,idade das mogas casarem — doze, quatorze anos; o principal regalo e passatempo dos colonos — 0 jogo.de gamiio; .a.pompa dramdticasdas procissoes — homens vestidos de Cristo:e de ‘figuras da-Paixda e devotos com caixas 29. “Livros de assentos”. de’ sentiores..de engenho, existem alguns. Gracas ‘A’ gentileza de uma-velha-parenta; Dona’ Maria (Iaid) Cavalcantl de Albuquerque Melo,.\ foi-me‘dado‘ para:consulta o “livro de assen- tos particulares” iniciado..em Olinda em) 1 de marco de 1843 por seu pai Félix Cavalcanti-de’ Albuquerque Melo (1821-1901), registrando fatos néo s6.de interesse,para-a°familia de Francisco Casado de Ho- Janda_Cavalcanti “de Albuquerque (1776-1832), antigo senhor do enge- nho Jundié, que yendeu.em 1832, e para as familias de seus filhos e enros, como de interesse geral — epidemia de célera, mata-mata mati- nheiro, hecatombe de Vitéria, etc. 30. Primeira Visitag@o do Santo Oficio as Partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonca — Confissdes da Bahia — 1591-92. S80 Paulo, 1922; Primeira Visitagéo do Santo Oficio as Partes do Brasil, etc. — Denunciagdes da Bahia — 1591-1593, Sio Paulo, 1925; Primeira Visitagéo do Santo Oficio as Partes do Brasil, etc. — Denun- ciagdes de Pernambuco, Séo Paulo, 1929. Esses documentos fazem parte da série Eduardo Prado, editada por Paulo Prado; os dois pri- eiros volumes trazem introdugdes de Capistrano de Abreu; © terceiro, de Rodolfo Garcia. xvi gf de doce dando de comer aos penitentes. Deixam-nos surpreender, entre as heresias dos cristiios-novos e das santidades, entre os bru- xedos e as festas gaiatas dentro das igrejas, com gente alegre sen- tada pelos altares, entoando trovas e tocando viola, irregularida- des na vida doméstica e moral cristé da familia — homens casa- dos casando-se outra vez com mulatas, outros pecando contra a natureza com efebos da terra ou da Guiné, ainda outros come- tendo com mulheres a torpeza que em moderna linguagem cien- tifica se chama, como nos livros cldssicos, de felagio, e que nas dentincias vem descrita com todos os ff e rr; desbocados jurando pelo “pentelho da Virgem”; sogras planejando envenenar os gen ros; cristdos-novos metendo crucifixos por baixo do corpo das mulheres no momento da cépula ou deitando-os nos urindis; se- nhores mandando queimar vivas, em fornalhas de engenho; es- cravas prenhes, as criangas estourando ao calor das chamas. Também houve — isto no século XVIII e no XIX — esqui- silées Pepys de meia-tigela, que tiveram a pachorra de colecio- nar em cadernos, gossip e mexericos: chamavam-se “recolhedo- res de fatos”. Manuel Querino fala-nos deles com relagao @ Bahia; Arrojado Lisboa, em conversa, deu-me noticia de‘uns cadernos desses, relativos a Minas! e em Pernambuco; na antiga zona rural, tenko encontrado trac¢os de “recolkelores de fatos". Al- guns “recolhedores de.fatos”, antecipando-se aos pasquins, cole- cionavam casos vergonhosos, que}ema massa escrava, Roy Nash'ficou surpreendido’com o fato;de-haver terras no Brasil, nas maos de um’sd homem, maioresque. Portugal in- teiro: informaram-lhe:que no Amazonas.os Costa Ferreira eram donos de uma propriedade-de drea mais extensa que a Inglaterra, a Escécia e a:Irlanda.reunidas.*® Em Pernambuco e Alagoas, com o desenvolvimento das usinas:de aguicar, oclatifundio sé tem feito progredir nos ultimos anos, subsistindo’d sua\sombra e por efeito da monocultura a. irregularidade; ea deficiéncia no suprimento de viveres: carne, leite, ovos,-legumes, Em Pernambuco, em Ala- goas, na Bahia coritinua-@ consumir-se a mesma carne ruim que nos tempos coloniais.’ Ruimne cara? De modo que da antiga 39. Roy Nash, The Conquest of Brazil, Nova Jorque, 1926. 40. Segundo estatisticas oficiais (Anudrio Estatlstico de Pernam~- buco, Recife, 1929-1930) a zona sacrificada em Pernambuco & mono- cultura abrange uma drea de 1.200.000 hectares com apenas 138.000 cobertos com lavoura. Em palestra realizada no Rotary Clube do Re- cife o Sr, André Bezerra, da empresa arrendatéria do Matadouro da ca- pital pernambucana, salientou o fato de que 88,5% da referida zona s¢ acham completamente incultos, enquanto 20% do total da zona, ou 240.000 hectares, “transformados em campos de pastagem com gramineas selecionadas, convenientemente divididos em cercados, com bebedouros pref. & 1* ed. Ixxiii ordem econémica persiste a parte pior do ponto de vista do bem- estar geral e das classes trebalhadoras — desfeito em 88 0 Patriarcalismo que aé entéo amparou os escravos, alimentou-os com certa largueza, socorreu-os na velhice e na doenga, propor- cionou-lhes aos filhos oportunidades de acesso social. O escravo foi substituido pelo paria de usina; @ senzala pelo mucambo; o senhor de engenho pelo usinetro ou pelo capitalista ausente, Mui- tas casas-grandes ficaram vazias, os capitalistas latifundidrios ro- dando de automdvel pelas cidades, morando em chalés suigos é palacetes normandos, indo a Paris se divertir com as francesas de aluguel. Devo exprimir meus agradecimentos a todos aqueles que me auxillaram, quer no decorrer das pesquisas, quer no preparo do ms. e na revistio das provas deste ensaio. Na revisto do ms. € das provas ajudou-me principalmente Manuel Bandeira. Outro amigo, Luis Jardim, auxiliou-me a passar a limpo o ms. que en- tretanto acabou seguindo para o Rio todo riscado e emendado. Agradeco-lhes 0 concurso inteligente, como também o daqueles que gentilmente me auxiliaram na‘tradugGo de‘trechos antigos de latim, de alemio e de holandés e em pesquisas de biblioteca e folcloricas: meu pai o.Dr. Alfredo Freyre; meu primo José Anténio Gonsalves.de“Melo, neto; meus amigos Julio de Albu- querque Belo e-Sérgio Buarque’de Holanda; Maria Bernarda, que bastante me O estudo realizado entre as sociedades primitivas da Amé- rica, em torno dos valores de cultura desigualmente acumulados nas varias partes do continente — acumulagio que, elevando-se em semicivilizagSes no centro, achata-se, em grande pobreza de relevo, na regio da floresta tropical para estender-se ainda mais rente com o solo na da Patagonia — deixa grande parte da populagio indigena do Brasil nessas duas dreas menos favore- cidas, Apenas as margens, como em Marajé, verificam-se ex- pressdes mais salientes de cultura. Resultado, naturalmente, do contagio com o centro da América. O mapa de dreas de cultura da América, organizado por Kroeber, da-nos idéia exata da maior ou menor quantidade ou elaborag&o de valores. Dos altos e baixos carateristicos da for- macéo cultural do continente. Vé-se que a drea da Patagonia, mais rasteira que a da floresta tropical. contrasta notavelmente com as duas ou trés dreas que dao relevo cultural & América. Nem da cultura nativa da Améfica pode-se falar sem muita e rigorosa discriminagio — tala ‘desigualdade,de relevo cultural — nem da Africa basta excluir o Egito,°com a sua opuléncia inconfundivel de civilizagio, para falar-se entéo 4 vontade da cultura africana, chata e uma_s6:° Esta se apresenta com notd- veis diferencas ‘de’ relevo, -variando’ seus valores “na -quantidade € na elaboracio. Um.mapa das diferentes. Areas ja ‘identificadas, umas por Leo Frobenius, ‘diversas, de, modo. geral, por Melville J. Herskovits,* nos’ permitiria apreciar mais a cOmodo. que atra- vés de secas*palavras de antropdlogds ousde etndlogos, essas variagdes,As vezes profundas, .da* cultura continental africana. Semelhante mapa nog-‘alertaria,..pelo puro alarme dos altos e baixos, contra 9 :perigo:-das.generalizagoes sobre os coloniza- dores afticanos' do Brasil: on sn tantnns Porque ‘add’ mais’ anticientifico que falar-se da inferiori- dade do negro africanoyem relagdo a0 amerindio sem discri- minar-se antes que amerindio; sem distinguir-se que negro. Se © tapuio; se o banto; se o hotentote. Nada mais absurdo do que negar-se ao negro sudanés, por exemplo, importado em nimero considerdvel para o Brasil, cultura superior a do indigena mais adiantado. Escrever que “nem pelos artefatos, nem pela cultura dos vegetais, nem pela domesticacio das espécies zool6- gicas, nem pela constituigio da familia ou das tribos, nem pelos conhecimentos astronémicos, nem pela criagio da linguagem c das lendas, eram os pretos superiores a0S nossds silvicolas”, € produzir uma afirmativa que virada pelo avesso € que da certo. eng. &e@ 235 Lon ARtica > NOROESTE 2 a CALIFORNIA! o nm PLATO 2 LATO Ss c 2 PS Ss > z my, za a > ", PATAGON! Le “Baseado em A. L. Kroeber.) Por todos esses tracos de cultura material e moral revelaram-se Os escravos negros, dos estoques mais adiantados, em condi- ges de concorrer melhor que os indios a formacio econémica © social do Brasil. As vezes melhor que os Pportugueses. Pode-se juntar, a essa superioridade técnica e de cultura dos negros, sua Predisposi¢iio como que biolégica e psiquica para a vida nos trépicos. Sua maior fertilidade nas Tegides quentes. Seu gosto de sol. Sua energia sempre fresca e nova quando em contato com a floresta tropical. Gosto e energia que Bates foi o primeiro a contrastar com o facil desalento do 286 9.7. indio € do caboclo sob o sol forte do norte do Brasil, Bates notou nos indios — que conheceu, nio superficialmente, mas na intimidade, tendo vivido entre eles de 1848 a 1859 — “constitutional dislike to the heat”. Acrescentando que sempro os viu mais alegres, mais bem dispostos, mais vivos nos dias de chuva, 0 corpo nu escorrendo dgua. Nostalgia, talvez, dos gelos ancestrais. “How different all this is with the negro, the true child of tropical climes!” 5 O escritor Waldo Frank, em admirdvel ensaio sobre 0 Brasil, quase repete Bates nessa exaltagio do negro como 0 ver- dadeiro filho dos trépicos;® como o ungido do Senhor para as regides de sol forte; como o homem melhor integrado no clima e nas condigdes de vida brasileira. Adaptagio que talvez se realize por motivos principalmente psfquicos fisiolégicos. Questo de constituigio psicolégica, como pretende McDougall. E fisiolégica também, através da capacidade do negro de trans- pirar por todo o corpo e niio apenas pelos sovacos. De transpi- rar como se de todo ele manasse um dleo, e niio apenas escor- ressem pingos isolados de suor, como do branco. O que se explica por uma superficie méxima’ de evaporaciio no negro, minima no branco.7 oe om Um tanto & maneira de Bates, Wallace contrastou o ind!- gena do Brasil, taciturno ¢ moroso, com o negro, alegre, vivo e loquaz.® Em-termos modefnos

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