Do prof. Cavaco ao último comentarista, toda a gente hoje manifesta a maior
confiança na "racionalidade" e, o que é pior, na "racionalidade" política. Na opinião geral, como na do Presidente, "o bom senso vai prevalecer". Não irá haver dissolução, porque a dissolução não convém a nenhum partido: ao PDS por isto, ao PS por aquilo e ao CDS por isto e por aquilo. Nem qualquer espécie de instabilidade, porque a instabilidade é má. A economia e as finanças serão tratadas com lógica e prudência para evitar a "explosão" ou a "bancarrota". Ninguém se portará irresponsavelmente ou, por outras palavras, ninguém porá deliberadamente em risco a saúde e a sobrevivência da Pátria, tal como a entende a ortodoxia de Estado. Ao contrário do que dizem os famigerados velhos do Restelo, com algum juízo, nada impede Portugal de "prevenir" o desastre. Admitamos, por um momento, que não existe uma única "racionalidade": a racionalidade de Cavaco, de Sócrates, de Ferreira Leite, do dr. Santos Silva (o do BPI) e mesmo de Louçã - no fundo, a da "classe dirigente". Mas que, como é sabido, existem muitas: desde a "racionalidade" do eng. Francisco Van Zeller, que não concebe viver com 400 euros por mês (nem sequer por dia) à "racionalidade" das pessoas que, de facto, vivem com 400 euros por mês; da "racionalidade" dos que já ouviram falar da dívida externa e do Orçamento à "racionalidade" das famílias que se endividam até ao pescoço; ou da "racionalidade", mais simples, das centenas de milhares de portugueses que dependem do Estado. O conflito destas "racionalidades" não faz, como julga Cavaco, "prevalecer" um "bom senso" universalmente aceite. Numa crise, talvez faça prevalecer a desordem. Mas, supondo que o "bom senso" de que fala Cavaco fosse indiscutível, era uma garantia? Não era. O "bom senso" produziu as maiores catástrofes da história. O bom senso (a "racionalidade") mandava a Inglaterra apaziguar Hitler, para defender o Império. O "bom senso" levou a França entre 1918 e 1939 a uma estratégia defensiva e assegurou a derrota em 1940. Por "bom senso" a República espanhola e a I República portuguesa hostilizaram e perseguiram o Exército e a Igreja com as consequências que se conhecem. E também "por bom senso" a Europa e a América escolheram a deflação e o proteccionismo depois do crash de 1929. A lista não tem fim. Confiar numa "racionalidade" mítica é sempre uma irracionalidade sem nome. Em 2010, qualquer erro, acidente ou acaso pode desequilibrar o desconjuntado edifício em que Portugal se tornou.