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COMO QUEM IA

PARA LONGE

J.T.Parreira

Página n.º 1
CONTOS DE INSPIRAÇÃO
EVANGÉLICA

Índice

Página n.º 2
• Como quem ia para longe

• Judas I

• Com água pelos artelhos

• A jumenta viu o anjo

• A Troca

• Os Pronomes

• Perto de uma aldeia chamada Jerash

• Nem sempre era deserto

• Uma conversa sobre ruínas

• Os olhos de Judas I.

• O Poeta do Salmo exilado

• O Visitante de Jericó

• O Hóspede

• Uma ponte levantada do remorso

• O aposento do dia anterior

• O Filho mais velho

• O Náufrago

• No sábado jantamos com Lázaro

Como quem ia para longe

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- Sobre tudo isso, é já hoje o terceiro dia desde que essas coisas aconteceram – disse
Cleopas, falando com o seu companheiro e com outro viajante ocasional, sobre quem
faziam cair olhos desconfiados.
Por de trás da fileira de árvores via-se perfeitamente que o dia estava a apagar-se, o sol
prestes a cair da linha longínqua cor de fogo, aquela que parece aos nossos olhos
desdobrar o Céu e a Terra.
Num outro lugar começaria a surgir o dia; dir-se-ia que o futuro a nascer com o sol. Mas
para aqueles dois homens, companheiros de viagem e da vida, que iam a caminho da
sua aldeia, não parecia haver dia de amanhã, horas felizes, apenas uma solidão que se
levantara debaixo dos seus pés.
Em Emaús, para onde se dirigiam, tudo continuaria envolto em passado; agarrada à
História sem retorno, a aldeia vivia ainda de suposições, que Judas Macabeu, quase dois
séculos antes derrotara aí, em terreno amplo, os sírios de Antíoco IV; que os sicômoros,
as pedras e o chão ainda desse tempo, seriam testemunhas mudas; que os escassos onze
quilómetros que a separavam de Jerusalém não a tinham beneficiado com a civilização.
Começava a pesar tudo isto no coração dos dois amigos, todo o passado vivido na aldeia
até ao período de tempo em que foram discípulos de Jesus, o Nazareno, que os arrancara
ao chão, às pedras, às figueiras mediterrâneas, aos fantasmas de Judas Macabeu e
Antíoco. A espera do dia declinar, a noite e o sono talvez viessem a constituir uma
densa mas abençoada névoa, capaz de tudo engolir sem deixar rasto, sobretudo aqueles
últimos dias que tanto os magoava.
Durante o caminho, porém, interessava-lhes a espécie de catarse que constituía o
conversarem, o mais possível, sobre os acontecimentos recentíssimos, daquela Páscoa
diferente de todas as anteriores.
- Somente um estranho em Israel desconheceria como os cordeiros reduzidos a cinza, o
fogo dos holocaustos, as cerimonias, tudo havia sido feito com um apressado
alheamento – sentenciou o mesmo Cleopas.
- Em toda a História da nação nunca houve uma vítima tão solitária – disse o
companheiro, parando um pouco para olhar no sentido de Jerusalém – Por isso todas as
atenções recaíram sobre ela – concluiu, com a voz a esconder-se sob um soluço.
Cleopas e o seu companheiro nunca haviam vivido tão perto de um acontecimento que
ia pondo cores de tristeza nos seus olhos e no fundo do seu coração. Pelo menos era o
que iam sentindo, com suposições e uma ou outra certeza enquanto caminhavam.
Mas depois que aquele terceiro viajante – para quem olharam desconfiados do que
parecia ser um alheamento das coisas que tinham sucedido – se acercou deles, e, como
quem ia para longe, fez questão de acompanha-los na jornada, começando a mitigar a
aspereza da viagem com palavras sustentadas por um firme conhecimento das
Escrituras, somente aí começou a correr, como um vento agradável, uma indescritível
alegria nas frases.
- Porventura não ardia em nós o nosso coração quando, pelo caminho, nos falava e
quando nos abria as Escrituras? – disseram um ao outro, já preparados para se deitarem
no sono.
Agora que o Mestre tocara o chão da sua humilde casa, estivera com eles, tinha tomado
nas Suas mãos o pão que repartiu com um gesto universal, vastíssimo até ao coração
dos homens, era realmente a memória doce da sua presença, ainda que por breves
instantes, o que lhes fazia recordar aquele pôr do sol, como único da sua vida.
- Cumpriu as suas palavras – comentou Cleopas, procurando alguma coisa.
- Os três dias no ventre do grande peixe – lembrou o companheiro – Do templo
derrubado e em três dias reerguido – disse ainda.
- Do grão de trigo sepultado para se levantar em inumerável fruto – relembrou Cleopas.

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Desde aquele momento, e de posse de toda esta sabedoria, não poderiam reter por mais
tempo aquela revelação; seria a alegria também que os impulsionava a distribuir a
notícia.
Olhando fixamente o campo da noite que estava à sua frente, o caminho de regresso a
Jerusalém pareceu-lhes mais curto, ainda que envolto no sono sem estrelas dos que,
àquela hora, dormiam.

J. T. Parreira

Judas I.

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O desperdício do unguento. O valor do nardo puro. O perfume libertando-se do
alabastro.
Ver o Mestre ceder ao sentimentalismo de uma bela acção, passo após passo tudo era
mais um motivo que Judas I. levava na cabeça.
Tinha acabado de assistir a um acto que não entendeu.
Frágil acto que não contribuía nada para a visão que havia o muito o acompanhava, uma
revolução que acabasse com os estrangeiros na sua pátria e levasse outros horizontes
aos pobres do país.
E, com uma frontalidade que não era seu hábito, mas com o segundo sentido que era a
capa da sua hipocrisia, manifestara ao Mestre o seu desagrado. Aproveitara mesmo o
momento para conduzir o grupo à razão da tarefa que achava prioritária.
- Por que não se vendeu este unguento para distribuir o dinheiro pelos pobres? – Inquire
Judas I.
- Não. – Diz Jesus.
- Por trezentos dinheiros, Mestre… – insiste Judas I., dirigindo a voz à bolsa onde se
guardava o sustento da pequena comunidade.
A noite consumira as formas e as cores, cercara já as casas de Betânia. Porém esse não
era o motivo de Judas I. estar sombrio, muito obscuro, no meio de todos os demais
convidados.
Jesus Cristo conhecia, de facto, o interior da observação do seu discípulo, estava a
verificar como ela poderia ser contagiosa, mas foi com a emoção de quem está próximo
da morte e repara que ninguém entende as palavras do drama, que o Mestre afirmou:
- Pobres, sempre haverá no meio de vós, mas a mim, nem sempre me hão-de ter.
Algum tempo levou Judas I. a perceber como o seu messianismo era diferente. Era
natural de uma região onde as conspirações se misturavam com o pensamento filosófico
e o temperamento selvagem, ou o modo de fazer as coisas; da região próxima da morte,
pela vastidão clara e inanimada do Mar Morto, de onde surgiram activistas românticos;
Judas I. não viveria porém o suficiente para ver Masada dar o último quartel de luta
contra os ocupantes romanos. O homem de Quiriote-Hezrom, do extremo sul de Judá,
era diferente, não custava admiti-lo, mas, também, não era seu hábito declará-lo
abertamente; ele tinha a visão dos zelotes.
Naquele jantar que Simão proporcionara, todos os convivas ficaram sensíveis diante do
desperdício, não estavam menos sensíveis – pensava Judas I. – ao espectáculo da
gratidão. Ele não podia permanecer nessa gratidão, porque esta era o sinal dos
necessitados, dos que não têm poder. Judas I. não poderia ser um dependente – e esta
divisa não parava de ribombar na sua cabeça. Tão pouco poderia continuar a esperar
uma mudança nos limitados ideias do grupo com quem andava: viviam todos muito
próximo do Mestre, reclinavam todos a cabeça no ideal do Mestre, os seus ouvidos já
não sabiam ouvir outras palavras. Por isso, naquele banquete, acentuar-se-ia outro sinal,
que ele, homem forte e activista apaixonado, estava sozinho.
Judas I. havia muito tempo que somava todas as renúncias; ele queria derrubar a
ocupação romana, enquanto o Mestre queria liberdade da alma; ele governava a sua
avareza, enquanto o Mestre praticava a inefável mordomia ao próximo; ele invejava, o
Mestre despojava-se. Sabia, com determinação, juntar todas as diferenças.
Judas I. tinha uma espécie de fome, enquanto Jesus, nazareno, oriundo da fértil Galileia,
saciava outros famintos.
Mas nessa noite as coisas tinham-se tornado claras na sua mente: os sinais para fazer
alguma coisa por si mesmo tocaram silenciosamente nos seus ouvidos, os olhos de
Judas I. não poderiam por mais tempo enganar. Como tinha suportado cerca de três anos
essa diferença entre messianismo, isso é que Judas não saberia ou não poderia exprimir.

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Sem um único vislumbre de claridade, a noite recebeu a exaltação e a dúvida no corpo
de Judas I. Este sem um senão que revelasse como era falsa a sua harmonia aparente,
precisava cumprir a atitude que lhe ocorrera, naquele momento. Precisava trair – pensou
Judas I. Trair, não Jesus, mas o Seu ideal de amor, de entrega à morte por razões
imponderáveis, o que era contrário à revolução. Precisava trair para que o seu acto
salvasse alguma coisa, salvasse algum proveito para si mesmo.
Portanto, talvez Judas I. pudesse ainda contribuir para a história, para outra história
como a do sue homónimo Macabeu, sem ter que recorrer afinal às colinas da Judeia:
com uma guerra de guerrilhas.
Foi, porém, com o seu amor próprio e com os ouvidos ainda feridos pelo que percebeu
ser uma repreensão em defesa da atitude da Maria – «Deixem-na em paz! Isto que ela
fez serve para o dia do meu enterro», dissera Jesus – que o discípulo de Queriote se
decidiu.
A noite adormeceu sem chuva, apesar de um vento com odor a Mar Vermelho. Alheia a
traições dos homens e a milagres da Divindade, ao sono ou à insónia ou às portas e às
aldeias fechadas.
No seu interior, milhões de pensamentos e de corações nada enxergam para além dos
olhos. Quando a noite desce, através do silêncio, as coisas acabam por não pertencer às
pessoas.
A partir dessa noite, todas as poucas noites de Judas I. deixariam de ser quietas.
- Quanto é que me dão se eu entregar Jesus? – Pergunta ao chefe dos sacerdotes.
Judas I. não fora nunca frequentador assíduo dos círculos do poder religioso da
Sinagoga ou do Sinédrio.
Mas, passo após passo parecia estar de posse do salvo-conduto para a sua traição.
O seu coração, agora, nem sequer pensava em Romanos, em derrubar a ilegítima
ocupação das hostes de Tibério. Se lhe tivessem perguntado, nesse instante, quais eram
suas ideias políticas, teria com certeza respondido:
- Agora, não tenho quaisquer ideias; o que eu tenho é pressa!
As trinta moedas de prata foram apenas a parte prática do plano. Exibiam um ar sinistro,
os rostos dos principais sacerdotes quando depositaram nas mãos de Judas I. o preço da
combinação.
Um ar sinistro e olhos oblíquos, trocados entre eles; teriam mesmo de agir contra o
povo, quando Judas encontrasse a melhor ocasião para lhes entregar o Mestre.
Até esse momento, Judas I. dissolvia-se no grupo, agora iria fazê-lo tremer.
O melhor dos Judeus, julgava-se Judas I. um herói, o mais forte e o melhor dos
apóstolos.
O futuro, decerto, escreveria românticos resumos acerca da sua personalidade – «o
melhor amigo de Jesus», «o mais leal», «persuadido a trair, como melhor amigo, para
ajudar o Mestre a consumar o plano divino».
A partir desse momento, porém, Judas I. estaria desprotegido, à mercê de uma muralha
de olhos que esperavam. Esses quatro ou cinco dias até à hora propícia iriam ser toda a
sua vida.
- Levei noites a pensar se entrega-Lo não era um favor menos útil a vós do que aos
estrangeiros – diz Judas I. aos homens do templo.
Procurava dar um sentido à sua traição, e isso afligia-o.
- Seria preferível que o Mestre fosse, de facto, um mais, um zelote; assim a traição seria
laica, preservaria a ordem estabelecida… – de pé, à saída, Judas I. procurava quebrar o
silêncio que as trinta moedas de prata vieram instalar.
De quando em quando, Judas I. com a memória sempre pronta a devolver-lhe os
momentos de rara comunhão passados entre os seus condiscípulos e o mestre, tempos

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de milagres e de doçura, não deixava de pensar em como já não pertencia a ninguém,
nem mesmo a si próprio.

**

Nessa manhã, Judas I. encontrou-se perante um beijo que dera ao Mestre, a amizade que
ainda ouvira nas palavras «amigo, a que vieste?», a multidão com espadas e varapaus,
cosida ás esquinas da noite, e por fim, a condenação pelo Sinédrio.
No templo, arremessou ao chão as palavras do remorso.
- Pequei, traindo o sangue inocente. – Diz perante a indiferença. E arremessou, também,
a prata.
Trinta moedas não podiam incluir a morte.
Depois, alguém o viu, náufrago a balançar no vento.
Judas I. acabou sozinho, com o céu distante, sobre a sua cabeça, claro.

J. T. Parreira

Com água pelos artelhos

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Nessa noite Jacob também não dormiu. Havia tarefas que à primeira vista pareciam
simples que tinha de executar, revestidas do aspecto prático; estavam porém carregadas
de significado.
- Qual é a minha transgressão para que não me deixes seguir o meu caminho? Pois bem,
se não há outra coisa a fazer… – Consentiu Jacob, diante do homem que estava de pé à
sua frente, dando-lhe a ilusão de que o olhava de um ponto algures entre o chão e o ar
escurecido. De poucas palavras, o desconhecido apenas dissera que a luta seria tão
inevitável como uma porta única de saída.
No rio, o Jacob, que é um pequeno tributário a encaminhar-se para o Jordão, um pouco
antes da morte os apanhar num enorme beco salgado, apesar de tudo as águas corriam
com a noite por cima. Era aí, na pouca profundidade do rio, num vau cuja água tocava
apenas nos artelhos, que as dificuldades se agigantavam perante Jacob.
A luta tinha que ser corpo a corpo, flancos contra flancos, se os olhos se atingiam
mutuamente, faziam-no por platonismo. A luta tinha que ocupar espaço e fazer sentir o
volume das formas. O combate que Jacob nunca travara para alcançar o desejado, teria
de realizar-se um dia no plano físico.
Houvera no passado, a uma distância de pouco mais de vinte anos, outras lutas não
menos dramáticas, porventura no aspecto psicológico, ao nível dos sentimentos feridos,
das fugas para evitar os homens que enganara.
Essas forma as lutas que conhecera; houve Raquel o caso do amor, e do acto de entrega
sempre adiados; os passos que dera longe da casa paterna; o dormir e o acordar dos
sonhos; os lugares que o seu corpo considerara terríveis, apesar de no seu espírito ter
admitido um dia que estava à porta dos Céus.
Apenas a sua vontade, as suas reflexões, a sua mente, o seu carácter em geral, se
entregar aos jogos agónicos, quando podia fechar os olhos e os alongava até aos dias em
que fugia do seu irmão Esaú.
As próprias palavras foram os meios com que pugnou ao não poder suportar mais o
cerco que a família da mulher erguia à sua volta:
- Estes vinte anos, eu estive contigo; as tuas ovelhas e as tuas cabras nunca abortaram, e
não comi os carneiros do teu rebanho – retorquiu Jacob às acusações. Para recordar toda
a vida passada, que de excepcional tivera apenas a sua juventude.
- De dia me consumia o calor, e de noite a geada; e o meu sono fugiu dos meus olhos –
dissera ele encontrando na imagem usada toda a sua natureza universal e agreste.
Não se esquecia da luta onírica que travara no sono, depois da saída precipitada da casa
dos pais, para evitar o desespero do irmão roubado. A sua cabeça deitada numa pedra
nem por isso repousara, mas fizera-o sentir a dureza da solidão emergindo uma vez mais
do campo da noite.
Embora recordasse ao seu espírito o bálsamo que os anjos em sonho fizeram descer do
alto dessa escada, que lhe parecia uma imensurável porta para a humanidade, o divino a
pisar a relva, os arbustos baixos, o orvalho perfumando as sólidas sombras da noite.
Desta recordava também o medo subtil a penetrar os seus ossos. As promessas de
bênçãos, a reafirmação do pacto longínquo com o seu avô Abraão, fizeram Deus
franquear os Céus, mas agora todo o universo de Jacob se resumia a uma pedra de
saudade que não fora ainda removida do seu corpo.
Talvez de todos os momentos em que foi agonista, de todas as lutas que travara sem
ferir a carne, o combate íntimo com as saudades de voltar a casa dos seus pais, ainda
que para testemunhar o facto de que já não existiam, fosse aquele que mais marcou o
rosto de Jacob. Revelando-se ao ponto de o deixar perceber.

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- E agora se querias ir embora, porquanto tinhas saudades de voltar à casa de teu pai,
por que furtaste os meus deuses? – Perguntara-lhe com uma profunda censura,
indignação e espanto, o sogro.
Mal saíra dos seus recessos do passado, Jacob voltou a ter a sensação de que aquela
criatura singular estava ali perante ele para o julgar, e ao impedir-lhe que continuasse o
caminho decretava a inevitabilidade da luta.
- Se não há outra coisa a fazer… – Repetiu, dirigindo ao desconhecido toda a força do
seu corpo.
A mão que dirigia aquela luta estava para além das forças de si mesmo e do seu
antagonista. As escassas águas continuavam a correr pelo solo ondulado, onde as
margens do rio davam a impressão de se misturarem com o próprio caudal. Pelo meio
das árvores, numa ou noutra elevação pequena e acidental começava a subir e a descer a
luz cinzenta, da manhã.
Enquanto o rumorejar das águas fazia desfilar um cântico sentimental, os contendores
mediam corpos e forças, sobrava-lhes formas que não cabiam nas limitadas mãos.
Excediam-se em obstinações, com os corpos já clareando pela subida da alva,
agarravam flancos e largavam quando a resistência do outro desferia algum golpe com
maior ciência ou oportunidade. Tentavam imobilizar os músculos adversários, as
costelas, que pareciam alargar-se e diminuir conforme o momento agónico. Os rostos
incólumes no meio daquele corpo a corpo mantinham-se livres, como os olhos que viam
num segundo o alvo e no outro para além do que a mistura da noite com a manhã
permitia ver.
No começo tudo pareceu fácil, mas vendo o desconhecido que não prevalecia, tocou a
juntura da coxa do adversário, fazendo-a deslocar-se.
Então Jacob coxeou.
Deviam ser já as primeiras horas da manhã quando a luta deixara a sua beleza original e
se tornara num recorte de corpos exaustos, ainda que bem perto as águas continuassem
com o seu cântico, impregnando o silêncio.
Jacob, coxeando, parecia no entanto ter tolhido os movimentos ao adversário, o
desconhecido está agora como uma estátua presa ao solo.

**

- Deixa-me ir, porque já a alva subiu! – Suplicava.


Jacob, porém, não afrouxou o laço das suas mãos; estava certo agora que ao ter lutado
como m príncipe, conforme reconhecera o próprio adversário, ganhara para si direito ao
privilégio hebraico de uma bênção, preferia mesmo a todas as coisas materiais da sua
vida, umas palavras do Céu.
- Não te deixarei partir, se não e abençoares. – Afirmou com convicção, como se
desferisse um derradeiro e obstinado golpe.
A troca de nome, de Jacob, para Israel, parecera suficiente, como tudo o que está para
além de nós, no Universo, por mais íntimo que seja.
Sozinhos não tinham onde depor os quatro olhos já cansados de tanto se terem fixado, o
esgotamento e a ansiedade iam ficando pouco a pouco mais visíveis, e quando se
separaram, os passos dos lutadores arrancaram à terra um novelo de pó, lento e
prolongado, que se transformou numa nuvem entre ambos.

J. T. Parreira
A jumenta viu o Anjo

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- A claridade começa naqueles vidros. – Pensou José Demas, enquanto os olhava ainda
deitado.
Nessa noite quase não dormira, por isso aguardava impaciente que o dia despertasse, e
assim estava a olhar com alguma pressa para a janela.
O primeiro indício da manhã começou enfim a surgir para lá do vidro, que as cortinas
mal fechadas deixavam entrever.
O que tinha a fazer nesse dia era importante.
Colocar os seus préstimos de ministro religioso ao serviço de uma nova organização era
tarefa importante.
Requereria, da sua parte, muito tacto, passos de argumentação muito seguros e
fundamentados, cálculos dialécticos, prós e contras; tinha de cativar a comissão
pastoral, embora o convite para trabalhar com a nova organização partisse dela. O que
preocupava José Demas, é que sentia não ter, naquele momento, muita convicção sobre
as doutrinas que teria agora de aprofundar e tomar como suas, numa defesa heurística de
quem está por si próprio a descobrir verdades.
Assim que a claridade se instalou no quarto, levantou-se, preparou um duche rápido,
tomou um pequeno almoço que já inundava de odor a café forte todo o apartamento,
deu um último toque no nó da gravata de um arco-íris sedoso de que ele próprio se
maravilhara sempre, diante de um espelho que era cúmplice há anos desse gesto. Foi
sentar-se no escritório.
- A entrevista é somente às 10 horas e trinta minutos, tenho algum tempo para arrumar
alguns pensamentos. – Respondeu à mulher, que se preparava também para enfrentar
mais um dia de aulas, mas antes teria de defrontar-se com a corrente do trânsito da
grande cidade em permanente conflito com o relógio.
Era estranho, mas apesar das boas perspectivas que a organização levantara na primeira
abordagem, o seu espírito estava aborrecido. Sempre fora um bocado rebelde a
convenções, não entrava logo à primeira nas normas oriundas dos seus pares, que
visavam manter a unidade, desde alguns anos atrás sentia-se uma ilha de solidão no
meio de outras ilhas povoadas. Porém, nessa manhã tinha que fazer uma viragem na sua
maneira independente de pensar, tinha de enquadrar-se, de submeter-se a uma
presidência que lhe parecia próspera, embora ganha a pulso férreo, capaz no entanto de
dar prosperidade aos outros. O conforto que daí poderia advir, mantinha-se a custo à
superfície dos seus pensamentos, o pragmatismo, o egotismo, a vaidade, a sobrestima
pessoal passavam por cima de tudo. Teria de se submeter afinal. Com certeza por isso, o
seu espírito estava aborrecido.
- Deixem-me pensar esta noite – dissera no dia anterior ao convite. Amanhã vos trarei a
resposta, como o Senhor me falar. – Concluiu.
Colocadas as coisas como base do que iria responder, num plano prático, teria de
encaixar que se tratava de uma reunião tipo entrevista de recursos humanos, o género de
recrutamento de quadros que costumava ler, ao sábado no jornal “Expresso”, ou, então
de uma reunião de negócios, do negócio de almas, dogmas, fé, ética, emocionalidades
que teriam de ser puxadas para bem da organização.
Enfim tratar-se-ia, bem vistas as coisas, de um comércio do seu dom.
Apesar de estar havia vários ao serviço espiritual de outra denominação, não estaria de
todo desajustado da forma, e do conteúdo da nova organização que o disputava, com
vivo interesse, recados, telefonemas, incursões à sua casa de oração, há quase um ano.
- Aquele meu primeiro contacto com o grupo familiar da terra dos meus sogros, veio
despontar toda esta situação. – Recordou. – Bom, o modo de aproximação não é para

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aqui chamado agora, neste momento interessa mais como é que vou entrar na coisa. –
Pensou, como ponto final para afastar remorsos que ainda parecia possuir pela sua
cedência.
Aquiescendo consigo próprio, tinha de admitir que não ouvira nessa noite, em que mal
dormiu, nenhuma voz especial, da insónia para aqueles sonhos pequenos que Freud
colocou como escapes, manifestações do inconsciente, provou a si mesmo que já
desconfiava que toda esta mudança da sua vida se iria dar no plano meramente humano,
das conveniências, sem intromissão da vontade divina.
Pequeno, mas insistente, como uma mosca que voasse num quarto com as janelas
fechadas, um sentimento de culpa errava dentro da sua mente. Tinha-se levantado com
ele e agora sentado à secretária onde costumava estudar a Bíblia e preparar os seus
sermões, que a comunidade apreciava, esse sentimento teria de desaparecer por uma
abertura qualquer. Lançado um olhar retrospectivo à sua vida, pensou que as coisas
espirituais nuca chegaram até ele genuinamente, sempre lhe foram chegando através de
meios materiais, como aquela claridade a surgir no vidro. Longe do maravilhoso
momento do nascer do Sol. Lembrou-se daquela madrugada quando ia de viagem, com
a sua família, a caminho de umas férias em Torremolinos, e já sobre a ponte que liga
Portugal e Espanha viu um puro genuíno nascer do Sol. Como era diferente da claridade
que irrompia no vidro, na sua vida suburbana, do seu despertar citadino.
- Não se trata, de facto, de uma mudança de emprego. – Agora pensava alto.
Deixar uma igreja e tomar a responsabilidade de outra, mesmo levando comigo
bastantes crentes, é sempre uma mudança de fiéis, de métodos, existe no entanto o
aspecto monetário. – Aquiesceu, enquanto se levantava da mesa de trabalho e parecia
procurar qualquer coisa no ar.
Quando se preparava para abrir a porta do escritório e sair, os seus olhos fixaram-se
numa fotografia sua exibindo-o num púlpito, quando de uma dessas conferências de
avivamento em que tomou parte como convidado.

J. T. Parreira

A Troca
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O dia ainda não tinha nove horas, mas parecia enorme. A cidade exibia as marcas de
não ter caído no sono com a noite. Era notória a agitação nas ruas, todos os anos na
época da Pesach, as multidões pareciam rebanhos sem pastor, de um lado para o outro,
de uma língua para outra; mas, naquela manhã, a azáfama era outra coisa.
Começava a tomar forma, aos olhos dos menos atentos aos sinais urbanos, qualquer
acontecimento importante; e o que quer que fosse trazia a marca do Sinédrio, falava-se
mesmo em usar a lei dos invasores, em incomodar Pilatos, o próprio Herodes, que havia
chegado à cidade; tinha havido algumas prisões, alguns incidentes escondidos, poucos
judeus, em grupos furtivos, na penumbra, continuavam a inventar a resistência a Roma.
- Por isso coisa natural não é; nunca houve uma preparação da festa tão agitada –
comentou um velho, de um grupo habituado a conversar sobre todos os assuntos.
- E nós que vivemos perto do Vale de Hinon e nunca vimos tanta agitação às portas de
Herodes! – Disse, cioso da sua privilegiada vizinhança, outro velho do mesmo grupo,
que mais parecia de estátuas nunca tocadas pelo sono. – A agitação tem sempre uma
causa – atalhou um homem que parecia, apesar da barba grisalha, um dos mais novos do
grupo – e, desta vez, não é apenas a Páscoa, a causa de todo este barulho – continuou o
mesmo homem.
Mas como daquele tumulto em crescendo um nome começava a ser murmurado,
ninguém sabia por que razão. A verdade é que o nome começava a correr as bocas de
Jerusalém. Os assuntos, as sombras, que o nome suscitava, iam do esconderijo dos
lábios que apertavam letras, até aos ouvidos mais cúmplices. Era isso, sobretudo, que
surpreendia Barrabás, o seu nome circular sem que estivesse cosido às esquinas da
noite, fora dos lugares discretos em que era naturalmente apreciado.
Barrabás, que empurrava os acontecimentos da história do seu povo com os próprios
ombros, estava agora encurralado, e não conseguira sair por si desse interior de pedra,
ao qual mais uma sedição e um homicídio o arrastaram. No entanto, quando o povo
ouvia, recentemente falar de empurrar os romanos, de os fazer voltar para lá do grande
mar, de os difícil o quotidiano da guarnição das águias, que escondiam com a sua
presença e sua força na Judeia, as indecisões de Pôncio, quando o povo murmurava
revoltas através de olhares de soslaio, associava sempre todo esse sonho a um nome:
Barrabás. O messianismo torto, a tensão política e as confusões religiosas da época
tinham feito Barrabás.
Mas agora eram outras as perturbações que, de facto, erguiam o sedicioso como uma
bandeira.
- Prisioneiro onde? – Perguntavam alguns estrangeiros prosélitos que tinham chegado à
Cidade.
- Na fortaleza Antónia – responde, com firmeza, um homem, que parecia conhecer os
percursos da festa! – Quem é o preso? – Ouviu-se uma voz perguntar de trás do grupo. –
Um preso famoso, chamado Barrabás, que os romanos detêm. – E a resposta vinda do
mesmo homem conhecedor, parecia querer sublinhar a impossibilidade de se
desconhecer a importância do facto e do nome.
Barrabás ia juntando os murmúrios que subiam, nessa manhã, até à fortaleza, àquele
meio de o manter afastado do destino a que era necessário conduzir os judeus.
Não dormira bem, porque as correntes de ar eram quase tão cortantes quanto as
correntes de ferro que lhe prendiam os pés ao solo. O espaço que possuía mal dava para
ir à porta de ferro e pequena janela emparedada por onde o silêncio era quebrado; mas
quando lhe traziam comida e outros pequenos confortos à prisão, deixavam cair, aqui e
além, pequenas palavras que indicavam novidades! – Alguma coisa diferente,

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possivelmente sangue, poderá estar para suceder… – mas o guarda que dissera esta
suposição, ao fazer deslizar a porta do cárcere, não estaria, com certeza, muito
empenhado em esclarecer Barrabás.
Era um dos muitos estrangeiros que desejaria entender os murmúrios que andavam nas
ruas e já estavam nos corredores da Fortaleza.
Durante toda a noite, o prisioneiro percebeu, no meio do sono agitado mas sem
remorsos, que alguma coisa iria, nessa Páscoa, lança-lo para um protagonismo qualquer.
E uma vez mais não havia pânico nos seus olhos mal lavados. Por experiência, sabia
que era costume soltarem um preso no decorrer da Festa, um preso que cederia o seu
lugar no cárcere à demagogia dos dirigentes religiosos do país.
- Mais uma vez, sem dúvida, a traição romana vai esbofetear a nossa Pesach – disse
Barrabás, estremecendo um pouco ao frio daquela manhã de Abibe. Mas daí a algumas
horas saberia como o pedido dos judeus se concretizaria, como a boa vontade dos
invasores está sempre pronta, quando eles podem dispor da sua vontade soberana.
Barrabás ergueu o seu corpo pesado, quando vieram proclamar-lhe que tinha razão, que
não estava inocente, nem lhe assistia o direito de, por si próprio, sair da prisão, apenas
outro tomaria seu lugar. Não passou, como era costume, violentamente pelos guardas,
os seus passos eram ainda os da estupefacção, apesar dos pressentimentos de uma noite
em branco, por causa da agitação que se comunicava de pessoa a pessoa, nunca houvera
início da Páscoa assim. O seu nome enrouqueceu a multidão, finalmente os seus irmãos,
judeus simples, os próprios sacerdotes erguiam a cabeça em honra perante a indiferença
do Procurador.
- Eh! O teu aspecto não recomenda confiança, para estares tão perto da fortaleza –
gritou-lhe um, soldado – se não sabes eu digo-te. É como se estivesses em terra romana.
Eh! Não ouves? - E o guarda marcava cada palavra com um movimento da sua lança.
Mas, Barrabás passou ao largo, procurando envolver-se, em silêncio no meio de outros
judeus.
Que diferença havia agora no silêncio de Barrabás, não era mais o silêncio de quem
perscruta um momento apropriado para uma sedição ou um ataque; era um silêncio
daqueles que se desejaria fosse mais uma nuvem ou uma espessa névoa que esconda o
corpo dos olhares que nos rodeiam. Barrabás, agora, era somente um nome na multidão;
já nem sequer aspirava ter força, “potenza” contra os romanos, nem corpo.
- Que espécie de bulício era aquele? - Pensava para consigo – Na véspera do “Shabat”,
os cordeiros estão ameaçados – murmurou a meia voz o homicida – mas parece-me que
estou livre…
Barrabás voltava para a sua vida; não tinha a intenção de investigar quem fora aquele
que, por necessidade da Pesach e por um capricho da demagogia de Pilatos, o
substituíra na prisão, talvez na morte.
- Crucifica-O, crucifica-O! – Era o grito que vinha ainda do lado do monte da Caveira,
que Barrabás conhecia bem. – Ora, temos tempo para lidar com a morte – replicou a um
grupo que o convidava para assistir ao ponto alto daquela festa. – Tenho tempo para
lidar com a morte… – insistiu Barrabás. Não parou no caminho, não trocara os grilhões
para ficar quieto, nem sentado.
A tarde ia adiantada, quando Barrabás pensou que poderia ter sido feito um rei, um
dirigente a quem o povo perdoara e de quem esquecera os homicídios, mas, nessa tarde,
estava completamente só. – Mudaram-me os grilhões para dentro do corpo – pensou,
enquanto se afastava.
J. T. Parreira
Os Pronomes

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A caminho da fogueira, que chamava a atenção para os confortos da carne, ia com
passos inseguros e um talhe esguio e abatido de corpo, embora os olhos parecessem ir
firmes e uns bons metros adiante dele.
Assentou-se junto do fogo gratuito, nessa noite em que a temperatura oscilava entre o
fim do Inverno e o começo das brisas da Primavera. Parecia com a sua inquietude, estar
em busca da noite; provavelmente, para que dentro do escuro fosse igual aos demais,
que estavam também à roda do fogo ou vinham assentar-se, aproveitando o
aquecimento que as noites do pátio do sumo-sacerdote promoviam.
- “Não cantará hoje o galo antes que três vezes negues que me conheces”. – Dissera-lhe
Ele contrariando o seu voluntarismo, quase sempre pouco prudente.
Era uma frase a que não dera, no momento, o devido valor profético. Por certo que iria
procurar que tal não sucedesse, em toda aquela noite de grande azáfama e em que coisas
estranhas haviam acontecido. Sacerdotes, capitães do Templo, anciãos representativos
do povo, as forças vivas da cidade, toda a gente ligada aos meios religiosos de
Jerusalém, tinham chegado como que preparados para prender um qualquer malfeitor,
um inimigo público, e por isso munidos de espadas e varapaus.
- “Uma multidão orientada por um traidor, mas em tumulto consigo mesma”. – Pensava
ele, enquanto via chamas a lamberem o escuro ao redor da fogueira.
Não era tarde ainda, quando chegou ao pátio, mas estava cansado e agitado com toda
aquela balbúrdia a que assistiu, de que participou também, e que levara alguém num
gesto de defesa a perguntar:
– Senhor, feriremos à espada? – estava ainda longe de formar conclusões no seu
espírito. Era simples pescador/águas do Mar da Galileia, homem de trabalho artesanal e
não um jogador de políticas, fossem elas religiosas ou de Sinédrio; ele era um homem
sem premeditações, por isso custava-lhe a entender todo aquele ambiente criado à volta
do Mestre.
Quando se aproximou do fogo, foi apenas para compartilhar com ele a sua tristeza,
apenas para colocar seus olhos em alguma coisa que não fosse fria, diferente do coração
dos homens. O enredo viria depois.
- “Quem estenderá a sua mão para o fogo a negar o Mestre? Quem se aquecerá junto à
fogueira e negará seu Mestre?” – era já uma legenda contida no fogo, que mais tarde
passaria à história e à tradição. Entretanto Pedro procurava apenas o calor numa noite de
Primavera fria, e que não suspeitava sequer da solidão e de como o seu olhar seguindo o
Mestre voltaria igual ao daqueles seus colegas do fogo acendido no meio do pátio.
Em seguida foi buscando aqui e ali cumplicidades, tentando comparticipar das
conversas que abordavam, à margem, o crepitar das chamas que se elevavam da
fogueira. Era já noite agora, o que mais acentuava a pureza da luz em combustão. Não
sabia ele ainda como, apesar de tantas labaredas, mas o seu passado recente com o
Mestre estava a resvalar da claridade para o obscuro; estava prestes a misturar-se nas
sombras que falavam, gesticulavam, levantavam-se e assentavam ao redor do fogo,
esperando que amanhecesse o dia da preparação da Pesach judaica.
- “É galileu” – foi um golpe na madrugada já, que rompeu a obscuridade em que Pedro
se envolvia mais do que nunca. O homem que parece ter feito esta descoberta, não
pronunciara, no entanto, nenhuma novidade. – “Também este verdadeiramente estava
com ele, pois também é galileu” – reforçou, certo de que a insistência abriria a defesa.
Pedro sentiu que a sua fala aramaica, com pesado acento gutural, o identificava.
Naquela roda de amigos conviventes de muitas circunstâncias jamais existira uma
diferença, uma dissonância que fosse. E a aparição de um estranho, ainda por cima com

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um sotaque malquisto, actuou como a queda de um copo de cristal num jantar de
cerimónia, ou como uma tosse no momento mais solene de silêncio na sinagoga.
- “Este também estava com Ele”. – Disse uma criada, que ia e vinha servindo os que
estavam no pátio, mas que seriam íntimos da casa de José Caifás.
- “Mulher, não o conheço!” – esquivou-se ele, como se tentasse apresentar um outro
rosto diante dos olhos insistentes da criada.
Pela primeira vez, notou Pedro em si, e a força com que desmentia cada arremetida
tornava-o na árvore de toda aquela floresta de cúmplice de Caifás e do seu sogro, Anãs.
Aparentemente parecia ter-se desinteressado do que estava a ocorrer no interior da casa
com o seu Mestre. Tinha olhos só para si próprio.
Procurava com esforço incansável que o seu «eu» se diluísse e desaparecesse entre
tantos «eus» que ali o rodeavam. Estava a exercitar arduamente a sua sobrevivência
numa luta agónica de pronomes.
- “Tu és também deles” – juntou-o ao grupo dos discípulos um outro homem. Ao Pedro,
em evidente esforço, responde: - “Homem, não sou!”
Quando uma última negação se misturou com o cantar de um galo, que o escuro
devorava completamente, mas que agora já não podia resistir-lhe a força da cada bicada
do animal, quando a madrugada começou a apagar o clarão do fogo, a fortuna enfim
chegou primeiro aos olhos de Pedro, depois a todo o corpo alquebrado por uma noite
em branco. Nos seus olhos estavam lágrimas que, sem o saber, guardara para o
sacrifício do Mestre, como aquela mulher guardara o vaso de alabastro como o
unguento para a morte do Senhor.
Uma mudança profunda começa a amanhecer nele, e um outro fogo que não cessa
estava agora a iluminar o seu rosto, mesmo perante os homens que o reconheceram. A
esse fogo chamar-se-ia vergonha, humilhação, ou simplesmente maneira de testemunhar
doravante quem era e a quem estava ligado. Bastou que, do fundo da casa, do mais
fundo da zombaria e dos ferimentos que infligiam o Mestre, este colocasse sobre o
negador o seu olhar.
Pedro deixa para trás os pronomes com que estivera lutando nessa noite ao redor da
fogueira, este, ele, tu. E saindo fora do pátio, chorou amargamente.

J. T. Parreira

Perto de uma aldeia chamada Jerash

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A manhã dava a impressão de pôr as coisas ao contrário. A atmosfera parecia as águas
cinzentas e agitadas do mar da Galileia, com um ar carregado de nuvens e vento.
O homem com as suas vestes esfarrapadas, esguio como junco, balançando no próprio
vento que se levantara dos lados do lago, tinha um aspecto desagradável, cabelo hirsuto,
para aqueles que o conheciam estes aspectos passariam despercebidos.
O homenzinho encostava a orelha a um bloco de pedra mais alto do que a sua estatura,
um bloco de pedra que mais parecia um resto de coluna deixada de um passado
helenista; estava numa daquelas posições de quem espera ouvir alguma coisa, e batia
com a mão esquerda feita punho, como se batesse a uma porta. Sem expectativa, nem
comoção, com os olhos parados, sem imaginação, aguardaria, no entanto, uma resposta
do lado de dentro da pedra.
Sem perceber nem o seu presente nem o seu passado, somente os amigos de infância, os
vizinhos, sabiam que não fora sempre assim.
Menino, menino feliz da rua principal de Gerasa, esperara muitas vezes com o olhar
inquieto de obstinado nas portas dos amigos, para se deslocarem ao mar da Galileia,
para aí aguardarem que os peixes comparecessem ao logro das pequenas e artesanais
redes que lançavam às águas; acordava, na manhã cedo, com a mente nos saltos aflitos
dos peixes da pescaria da véspera.
Brincava também com o que tinha à mão, imitava lanças com que a guarnição de
romanos teimava, ano após ano, em fender o ar da Palestina e submeter os judeus mais
excessivamente inquietos. Menino feliz, menino faltava-lhe o tempo para utilizar a sua
sabedoria popular dos jogos de infância, que vinham de um tempo já nebuloso desde o
Egipto; brincava nas ruas, imitando a vida quotidiana dos pais, mas o jogo de que mais
gostava era, sem dúvida, o exercitar a destreza com ambas as mãos, mantendo ao
mesmo tempo no ar várias bolas; este jogo tipicamente feminino, contrastava com a sua
valentia mostrada quando entrava nas águas do lago para preparar as redes; era, de
facto, um rapazinho diferente. Menino feliz, mais do que uma vez mimara carros,
animais, tocara flauta.
O menino de outrora, estava completamente esquecido.
- É um endemoninhado – esclarece uma velha mulher para quem Gerasa não tinha
segredos.
Jovem já, foi o trabalho que o dominou; em perfeita união com seus pais, tornara apta a
fertilidade natural da terra de onde brotava um invejado trigo. Faltou-lhe muita vez o
tempo para a sinagoga, e, com seus familiares, descia a Jerusalém quando soavam os
ruídos das festas; também compartilhava o coração com outros cultos alheios que, na
sua juventude, ainda existiam em honra de Zeus e de Artemis. Na velha aldeia de
Gerasa, que crescera a caminho da água, perto do mar da Galileia, o jovem era olhado
com orgulho pelos seus progenitores; era um filho que crescera com a terra, e os
vizinhos, que também o admiravam, auguravam que iria ser fértil como essa terra.
Agora os habitantes de Gerasa fechavam seus olhos por medo, quando passavam pelo
endemoninhado, apesar de pensarem sempre que aquilo não era ninguém.
- Agora estimam-me menos, e um pouco de estima já era bastante. – Costumava replicar
para si mesmo, quando nos momentos de calma e lucidez apreciava a frieza, quando não
a repulsa com que o tratavam.
Mesmo assim, à força de gritos e de murros, o antigo menino feliz ia passando os seus
dias amargos entre as pessoas, que cada vez o suportavam menos. E por mais longe no
passado remoto a que levasse a memória, nada poderia recordar. O que conhecia agora,

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era somente aquela multidão abrasadora que o mutilava por dentro e o impelia contra as
pedras dos sepulcros.
Constrangido a obedecer a essa legião interior, que o dominava na mente, o gadareno
encontrava-se vezes sem conta agrilhoado pelos seus conterrâneos, que julgavam poder
assim atenuar os perigos que dimanavam dele.
- Tanto pior, se voltar a partir as correntes. – Ameaçava um velho guardador de porcos,
que conhecer bem os pais do infeliz.
- Voltamos a agrilhoá-lo. – Sentenciou outro homem.
E este prometeu a quem os demónios iam roubando o fogo da existência, quando
rebentava as correntes com as quais o pretendiam amarrar à terra não menos brava, mal
sabia que estava apenas a arrostar a multidão que carregava em si. Correntes postas,
correntes partidas, era este o seu reino.
Por isso, Gerasa ficou preocupada por não compreender a repentina mudança.
Para uma cidade habituada a não conviver com milagres, o que se passara, de certa
maneira causou pânico.
A tarde vinha com nuvens acinzentadas dos lados do grande mar. Sentado normalmente,
vestido e em perfeito juízo, o homem gadareno parecia agora o menino feliz de antes.
Suas mãos calejadas de agarrar as pedras, com as quais se dilacerava, estavam presas a
uma velha capa que havia muito não vestia, a qual, naquele momento, lhe cobria os
joelhos magros. Uma saudade fazia com que acariciasse aquele linho.
Naquele fim de tarde, fora também a hecatombe dos porcos, que se despenharam no
lago, a causa das bocas de Gerasa se segredarem pelas esquinas. O abismo das águas
que recebeu os animais imundos, estava em silêncio, como o mar Vermelho um dia
fechado sobre os egípcios.
O hábito do isolamento acabou por prevalecer, em Gerasa os habitantes consumiam os
acontecimentos, como quaisquer ilhéus não davam continuidade àquilo que vinha de
fora dos seus limites.
De modo que se fecharam sobre o acontecimento.
– Rogamos-te que saias dos nossos termos. – Disseram a Jesus, de Nazaré.
- A nossa religião é dura, de pedra; o nosso coração não atinge com facilidade. – Parecia
ser uma justificação para a despedida.
Apesar do rio Jordão fazer caminho através do mar da Galileia, este é fechado com os
corações dos namorados de Gerasa. – Pensavam os acompanhantes de Jesus.
- Para minha casa? – Exclamou admirado e triste, aquele que fora endemoninhado,
quando, ao contrário dos outros, o que desejava era ficar com Aquele que o curara.
- Vai para tua casa, para a tua família, e anuncia-lhes quão enormes foram as coisas que
o Senhor fez por ti. – Dissera-lhe Jesus, antes de entrar no regresso do barco.
Os outros gadarenos jamais se lembrariam daquele barco que se afastava do seu solo de
pedra, que parecia vogar como um ponto claro no interior da escuridão que viera
definitivamente com a noite, e que mais se acentuava entre as colinas de onde os olhos
mergulhavam nas águas.

J. T. Parreira

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Nem sempre era deserto
Nem sempre era deserto. Às vezes, apenas o vento que estendia o calor pegadiço e
transportava a subtileza dos grãos de areia.
Chegava senti-lo na claridade que se agitava nas cortinas da porta; chegava vê-lo mexer
nos frutos do sicômoro, para Perez recordar que, entre ele e a casa longínqua, a distância
era o deserto.
- Este vento volta a trazer-me pequenos cheiros – exclamava. Mas o que doía
demasiadamente a Perez era a recordação do que fora para si a casa do Pai.
- Um limite – considerou, muitas vezes – O limite foi o que me levou a abandona-la, há
anos.
Agora a casa era mais do que isso. Sentia bem fundo, sentia-o em tudo.
- A minha casa é uma amputação infeliz da minha memória. – Dizia Perez a alguns
amigos, quando estes, raros já, lhe permitiam falar do passado.
No momento em que partiu, Perez desejava qualquer sítio que fosse o contrário de um
lar. Foi tudo quanto pôde exprimir na atitude audaciosa de rogar a sua parte da herança,
um escondido desejo de se livrar do sistema de educação do Pai.
Um dia, porque a aventura se avolumava nos seus olhos e no seu coração, chegou
mesmo a dizer:
- As minhas relações consigo, meu Pai, começam a não estar boas.
- Eis aí algo que me tem vindo a entristecer – respondeu-lhe o Pai – porque, em
verdade, o que mais desejo é um bom relacionamento contigo, mas que não coloque em
causa a obediência.
Perez, contudo, jamais tinha posto em causa o papel patriarcal do progenitor, e
costumava sublinhar isso naquelas conversas pequenas.
Na realidade, tudo como pretexto se confinava a querer abandonar – partir para uma
terra longínqua – era o sonho que Perez trazia, com frequência, à sua boca, e que já não
escondia de seu irmão e até de alguns jornaleiros da cada paterna.
O Pai, quando sentiu rumores, falou:
- Enquanto estiveres sob este telhado, onde tudo te pertence, quero que saibas o que
pedem o meu amor e o meu cuidado. - E pedia-lhe apenas obediência. Uma vez falou
em autoridade e disse:
-A minha autoridade será, como tem sido até hoje, o teu limite.
Perez, ao lembrar-se destas palavras, considerou que o seu Pai não lhe pedia, de facto,
obediência cega, mas impunha-lhe limitações, conveniências. Tinha, no entanto, a
compaixão de não dizer essas coisas, senão no seu silêncio, para não magoar.
E, por vezes, às refeições em que compartilhavam silêncios, com o pão de trigo e as
lentilhas, os fantasmas de Perez não resistiam.
- As tradições – dizia então – pegam-se-me à roupa desde a infância, aos meus
objectivos de uso pessoal, e, pior que isto, começam a colar-se às minhas ideias.
Desejava despojar-se do domínio das leis, dos costumes, das cerimónias; disse-o, certo
dia, ao seu irmão.
- Quero despojar-me das visões a que me obrigam.
- Ribbono Shel Olom – exclamou o irmão – Senhor do Universo! Que estás a dizer? –
Repetia a pergunta o irmão?
- Isto, tudo quanto querem de mim, não passa de um comportamento. Creio em deus e
na Torah. Oro três vezes ao dia, preservo na mente a libertação do cativeiro, como
apenas comida pura, observo o Sabbath…

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- Não observas – interrompeu-o o irmão – não observas que o nosso Pai é um anjo de
Deus.
Perez sabia, com certeza, que seu Pai era um anjo de Deus, que atravessaria até os sete
portões do inferno para que nada faltasse aos seus filhos. Todo este paternalismo
constrangia-o, porém. E o ter de conduzir-se conforme as tradições.
- Ouve, meu irmão. O que o Pai nos exige é que sejamos tudo de acordo com o
Talmude.
Seiscentos e treze mandamentos, modos judaicos de ver as coisas, xenofobia, eram
alguns dos limites, a consagração a Jeová do Destino colectivo, a forma de viver. Perez
precisava de partir o mais depressa possível.
- Aqui – disse ao irmão – confiamos todos em coisas, em sinais, em estatutos. Agora
quero confiar em mim mesmo.
Perez não era, de facto, um ortodoxo, embora procurasse respeitar a regra de ouro, o
cerne do comportamento social do judaísmo.
- Não fazer aos outros o que não quero que os outros me façam. Ainda procuro cumprir
isto – respondeu, naquela manhã, ao irmão.
- No entanto, estás decidido a ir-te embora, – replicou o irmão – a deixares o velho Pai.
Vais fazer uma coisa que ele não faria nunca: abandonar.

II

O velho Pai tinha algumas palavras nos olhos que não conseguia articular.
Perez tornara clara a sua decisão.
- Pai dá-me a parte da fazenda que me pertence.
Dias depois, partiria para uma terra distante. A natureza pura, sem moldagens, sem
peles de cordeiro, sem o fogo dos holocaustos, o ar com novos cheiros, tornaram-se o
alvo de Perez.
- Vou ser eu a minha própria aventura – filosofou para o Pai e para o irmão, com uma
alegria irresponsável.
- Vai! Conhecerás muita gente – disse, entre lágrimas, o Pai – perguntar-lhe-ás todos os
pormenores da sua vida, o preço dos bezerros do cevadouro, os nomes pelos quais se
chama essa gente, quanto gasta para ter alegria.
Naquela hora, os olhos do Pai amavam mais e eram testemunhos dos céus.
- Quem se regozijará, nos lugares para onde vais, na nudez dos seus cordeiros? –
Perguntou finalmente o Pai.
Sem compreender, Perez deixava sem resposta a casa paterna, como se deixasse um
rebanho: as regras, os constrangimentos, os caminhos sempre marcados.

III

Ali estava, agora, perto de cair em mais uma noite. Para trás ficaram, havia muito
tempo, a fluidez dos horizontes, o silêncio das claridades, o deserto cheio de sol para
nada. Até a vida sem regras, a dissipação.
A manhã estava próxima, Perez sentar-se-ia novamente, entre os porcos, guardando da
impureza os pensamentos. Mas nesse dia, subitamente, a indignidade surgiu e fê-lo cair
em si.
- Meu Pai continuará a prantear-me, como se o fizesse por um unigénito? – Inquiriu
Perez, dando a impressão de falar com alguém. – Quando parti, bastaria um olhar
indiferente do velho e eu não teria hoje pesadelos. Falaríamos linguagens diferentes –
exclamou Perez em voz sumida – assim falamos ainda a do amor, de um amor traído…

Página n.º 20
Porque ignorava se teria o amor do Pai, Perez decidiu experimentar a justiça.
- Levantar-me-ei, e irei ter com meu Pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e perante
ti; já não sou digno de ser chamado teu filho.
Pela primeira vez reflectia nas palavras que iria ouvir do seu Pai.
Até se anteciparia, reconhecendo com humildade, o último lugar.
- Não sou digno de ser chamado filho – repetiu – faze-me como um dos teus jornaleiros.
Perez desejava, acima de tudo, voltar para ocupar um espaço no velho coração de seu
Pai – «O amor afastará aquilo que fui.» - Cantou, em surdina.
- Pela primeira vez vou colocar o meu coração acima dos ritos, a minha obediência
acima da minha virtude.

IV

- Os meus vestidos estão rotos – afirmou Perez, voltando-se para si mesmo – nem
sequer disponho do albornoz ismaelita que o meu antigo patrão me deu. Meu Deus,
onde teria ficado, perdido nos dias, o meu talit, esse velho xale franjado de quatro
cantos?
Perez estava cansado, descalço, a poeira enovelava as dores, que, como lâminas, lhe
percorriam os pés. Porém, sem piedade por si, o que desejava era divisar, ao longe, a
sua antiga casa.
- Ainda, que me recorde do meu velho Pai, da sua figura austera quando me acenava
adeus, envelhecido e curvado de silêncios – pensou.

Já perto da casa, os silêncios romper-se-iam. Diversas vezes o Pai pensara naquele


momento, quando abraçou Perez, apesar da velhice o cansar quando correu ao encontro
do filho. Várias vezes preparara a sua emoção, com as palavras:
- Trazei depressa o melhor vestido, ponham-lhe também um anel no dedo e calcem-lhe
sandálias – gritou o Pai para o interior da casa.
Esta recobria-se já de alegrias antigas, quando o velho deu as últimas ordens.
Era necessário que tudo começasse assim. Esta afirmação do Pai não fazia o seu filho
mais velho desencostar-se da ombreira da porta.
- Não fiques aí parado – implorou. Parecia no entanto, que aquelas ombreiras eram
demasiado estreitas para o orgulho do irmão do reencontro de Perez.
Parecia não querer lançar-se num sacrifício de amor, em que temia colocar a sua
primogenitura.
- Não fiques aí parado – repetiu, suavemente o Pai – Essa porta, não poderá mais
desunir-nos.

J. T. Parreira

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UMA CONVERSA SOBRE RUÍNAS
- Este lanço da escada não leva a parte alguma – Jorge Temudo, arqueólogo, lembrou-se
repentinamente que já lera um poema que começava assim.
Se calhar, bem vistas as coisas, a recordação do poema não era despropositada, perante
as ruínas que naquele momento visitava, como complemento dos seus afazeres, em
Kefar Nahum.
Quando pisou o chão do aeroporto de Tel Aviv e olhou para o recanto mais distante da
vedação, pareceu-lhe que esse espaço e as ondas do calor se configuravam com um
aquário, contendo nele alguns aviões de pequena envergadura, carros de serviço à pista
e pessoas apressadas. Tudo parecia dançar, serpenteando acima do solo.
Antes, quando a porta do avião se abriu e lançou os passageiros e a ele também, no ar
quente que se dirigia ao Mediterrâneo, vinha a reflectir em outras coisas, a pensar no
seu trabalho que o levaria a um sítio arqueológico excelente, às ruínas de uma rua que
os seus colegas israelenses tinham descoberto a leste do Aeroporto de Ben Gurion, os
restos de uma cidade cananeia datados de há 5 mil anos.
-É a primeira vez que venho a Israel – disse Jorge Temudo a um passageiro como ele,
que viajara no mesmo voo e que ia ao seu lado no mini bus da El Al.
A declaração de circunstância nada teria de anormal, se Jorge não tivesse dito a seguir, e
a conversa ficara por aí, que aquela viagem não tinha sido do seu inteiro agrado. No
Aeroporto Internacional havia uma vigilância que beirava a histeria e a obsessão, carros
e pessoas que chegavam eram examinados por guardas armados com mini-uzis, polícias
à paisana patrulhavam o edifício e as zonas limítrofes do Aeroporto. A globalização da
segurança anti-terrorismo.
-Preferiria ter ido ver Persépolis ou Pasárgada a estar aqui, porque estas ruínas não
levam, de facto, a parte alguma – ia dizendo depois de se ter lembrado dos versos
seguintes do poema.
- «Há anos que dorme / esta pedra, nada acordará / o interior dos quartos.» – Ou então ir
rever o Taj Mahal, que quase toda a gente já sabe o que é, que é completo e volumoso –
e riu com a sua própria graça, motivado certamente pela companhia agradável.
Considerava-se com muito boa memória, pelo menos para decorar poesia e lembrar-se
de outras viagens que fizera.
- Mas a reconstituição da vida, quero dizer do quotidiano, que aqui se passou há vinte
séculos, é que dá sentido às pedras na arqueologia – respondeu-lhe a colega do
Departamento de Pré-História da Universidade de Jerusalém, que fazia parte da equipe.
Sheina Stern era uma jovem mulher nascida na mistura dum colonato de Gaza, nos anos
70, os seus olhos verdes e grandes funcionavam como dois sinais de alarme para quem,
de preferência do sexo masculino, se detivesse a olhar, por tempo demasiado, aquele
belo rosto em que o olhar tomava lugar preponderante de mistério e beleza.
Sheina estudara também arqueologia e aplicava-a num contexto de confirmação ou de
negação, conforme os casos estudados do que a história de Israel continha de bíblico,
embora as suas funções destacadas para aquele sitio onde se descobriram vestígios
arqueológicos de uma cidade cananeia com 5 milénios, não implicasse, de modo
nenhum, a teologia.
-Confio inteiramente nas pedras, no seu silêncio, no seu discurso silencioso – precisou
Sheina.
As pedras não a forçavam a posicionar-se numa religião, qualquer que fosse.

Página n.º 22
-As pedras não têm crença religiosa, tanto servem a Iavé como a Mamon, mas mostram
aquilo em que os homens acreditam – costumava dizer isso e repetiu-o ali.
Quando ouviu estas palavras, Jorge sentiu-se provocado no seu cepticismo e não pode
evitar um ligeiro meneio da cabeça.
Sabia que as pedras, em arqueologia, sobretudo na Palestina, têm que ser acompanhadas
da palavra escrita, histórica. São quase sempre materiais de cultura pré-histórica, mas
também indígena. E foi isso que lhe respondeu.
-Mas, correcto, e a oralidade histórica? Aquilo que tem passado de boca para boca? –
Perguntou-lhe Sheina, enquanto se preparavam para abrir a porta do «Land Cruiser» e
sair.
Jorge percebeu que não seria apenas sobre pedras que iriam divergir, mas isso era bom
para os consensos científicos que teriam de afirmar.
Lá fora, as pedras, como as pessoas em multidão, ainda se apertavam umas contra as
outras, na solidão. O que restava da sinagoga de Kefar Nahum era, de facto, para além
dos artefactos pétreos, toda a solidão de não pertencer a este tempo. Embora também
não pertencesse nem aos tempos nem a sinagoga original, narrados no Evangelho de
Marcos.
- Sabe, Sheina, lembro-me agora da parte final do poema, que se adequa a este caso,
cujos primeiros versos já lhe disse.
- «Há anos que as ruínas / misturam os telhados / e os pátios, as colunas / que repousam
do cansaço».
-O poema aqui não conta – Sheina contrapôs com uma brusquidão mal disfarçada na
voz. – Não, não é que eu não goste de poesia – emendou, ao ver uma retracção no rosto
de Jorge. - A verdade é que sempre podemos colocar vozes nestas salas, no que foram
estas salas, quero eu dizer, murmúrios nas paredes – concluiu.
-Murmúrios nas paredes que levantarmos na memória da história… isso é também
poesia – argumentou, já recomposto, Jorge, prosseguindo o que julgava ser uma
inspiração – A arqueologia tem por função também tirar véus que os séculos, os
preconceitos e os mitos, se encarregaram de manter.
E Sheina achou melhor concordar e perguntou, entrando no jogo:
- Já pensou em quantas conversas e orações se encostaram nestas colunas?
- Prefiro a essas análises mais do foro da espiritualidade, a história tradicional das
cidades, sejam elas bíblicas ou não – respondeu Jorge. Era apenas um profissional, a sua
relação com as pedras era fria, a sua emotividade reduzia-se exclusivamente à poesia. A
somar a isso, descendia de uma família que tinha um passado pouco dado a amar as
coisas judaicas, embora não fosse como os seus ancestrais do século XVI, um anti-
semita, desses que só viam, como o outro Jorge Temudo, os judeus num sítio, na
fogueira da Inquisição. Esse seu avoengo remotíssimo fora indigitado, no reinado de D.
João III, para espiar e acusar os marranos.
-Há milénios que nós, os judeus, lidamos com a frieza de uma boa parte da humanidade,
embora agora se justifique o anti-semitismo com preconceitos de esquerda – disse
Sheina, num tom irónico, depois de ouvir aquela pequeníssima parte da autobiografia do
seu colega português.
- Há anos que as ruínas / misturam os telhados / e os pátios… – Jorge já começara a
repetir os versos, quando Sheina o interrompeu:
-Bem vistas as coisas, o poema até se adequa bem ao que estamos a ver. E cá temos o
trabalho arqueológico que serve para destrinçar o que está misturado.
-Claro, para dar uma identidade às ruínas -afirmou Jorge com convicção.
Tinha procurado conservar uma distância razoável de fazer arqueologia fosse em solo
israelita fosse no chão palestiniano, por um imperativo de consciência. Jorge Temudo

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parecia, agora, ter recobrado a sua identificação com aquilo que era uma parte do berço
fundador da humanidade.
-Bem vê, Sheina, com um passado anti-semita na família, de expulsões e despojamento
de judeus, achava que não deveria vir aproveitar-me da história, ainda que artesanal,
monumental, ou o que seja, de um povo a quem se negou a existência – admitiu, com
um tom de tristeza na voz, e dirigindo o seu olhar para longe.
Sheina falou por ele, num tom interrogativo, mas a revelar compreensão:
- Porque seria um acto de hipocrisia, no mínimo…
- Pior – concluiu Jorge – seria um perfeito oportunismo.
Mas o que se passara na década de Quarenta com os judeus da Europa Central e os
acontecimentos recentes mudaram-lhe as ideias.
Aquele trabalho de campo arqueológico, a céu aberto, cujo sítio os seus colegas já
tinham isolado e sobre o qual recaíam agora os habituais gestos de filigrana na obtenção
de pequenas provas, estava porém longe de caber no pessimismo do seu poema de
estimação. Por mais que continuasse a lembrar-se desses versos.
«(…) as colunas / que repousam do cansaço. / Nossos olhos / as visitam, flutuam, / e
perdem-se na poeira das ruas.»
-Estafante este trabalho, mas tem um sabor de aventura – disse Sheinfeld, o outro colega
contratado pelo Departamento de Arqueologia da Universidade, que tinha estado a ouvir
a conversa entre os dois.
-Aventura, muita vez, connosco mesmo – contrapôs Jorge.
-Embora nós não tenhamos tempo para acompanhar a aventura da história – disse com
um ar sério Sheinfeld. Para logo acrescentar, rindo: - Por manifesta limitação de idade.
Aquele trabalho iria ser de largas horas diante de qualquer coisa que no fundo tinha sido
abandonada, involuntariamente, pela curta vida dos homens. ©

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OS OLHOS DE JUDAS I.
Judas I. tinha um olhar sempre enviesado e isso fazia com que os seus olhos, que
esgueirava e fechava levemente ao dirigi-los para pessoas e coisas, ficassem muito
escuros.
Somente vários séculos depois se deu por essa particularidade e foi um pintor
renascentista que descobriu no seu olhar uma tendência para as sombras.
Ninguém se apercebera da profundidade dessa escuridão, durante aquele jantar, o ponto
central onde recaíam os olhares de todos era sem dúvida o prato.
Um prato único, onde o cordeiro e o molho se tornavam pertença de todos, e onde as
diferenças, tantas como os feitios dos doze que rodeavam a mesa, seriam as mãos dos
comensais, retirando do mesmo prato o que era a comida da Páscoa de todos, no seu
significado límpido. O mistério daquela que iria ser a última ceia, estava, porém, na
frase de Jesus.
-O que mete comigo a mão no prato, esse me há-de trair. - Dissera Ele, sem tremor na
voz, sem azedume, mas sublinhando cada palavra com uma tristeza que tinia como os
cristais nos ouvidos dos discípulos, como uma inevitabilidade.
Nesse momento, os olhos de Judas I. enviesaram-se, tomaram uma posição de defesa e,
de soslaio, ficaram como duas raposinhas entre arbustos.
Sabia mais do que todos os companheiros, já possuía o peso da traição, nessa última
semana a sua vida já vivia de sombras.
A sua vida tinha sido até àquele dia um somatório de hipocrisias, que agora se
desnudavam na fronteira entre o amor ao dinheiro e o desamor à missão do Mestre.
Pouco habituado com Jesus, como de resto os demais condiscípulos, a situações limite,
o Mestre sempre lhes resolvera qualquer problema, estava agora no fio da navalha. E era
a hipocrisia que aflorava no limite, pois conhecendo-se, também perguntara –
«Porventura, sou eu, Senhor? –, fazendo coro com a inocência e a estupefacção dos
companheiros, que estavam sentados naquela mesa.
Estava ali como no derradeiro acto da sua encenação hipócrita. Já traíra ao receber as
trinta moedas de prata e continuaria a trair ao responder ao gesto de amizade e de
deferência do Mestre, respeitador dos usos e costumes da Palestina, quando distribuía
pedaços de pão ensopados de molho aos seus convidados.
Por isso não pode deixar de receber a frase «o que mete comigo a mão no prato, esse me
há-de trair», escondendo os seus olhos no soslaio da sombra, fazendo apenas avançar a
sua mão na ponta de um braço que mais parecia uma lança, arremessada ao peito de
Jesus, para receber o pedaço do pão da harmonia, que para ele poderia ter sido, mas não
foi, que foi o pedaço final da composição do seu carácter de traidor.
A claridade do aviso de Jesus, não o arrancaria do seu refúgio na sombra, apenas lhe fez
semi-fechar ainda mais os olhos, gelando-os.
-Ai do homem por quem eu sou traído! Bom seria para esse homem se não houvera
nascido.
O hebraísmo da frase continha toda a inevitabilidade da profecia e os olhos de Judas I.
já não tiveram tempo de recusar fosse o que fosse, nem o seu coração.

J. T. PARREIRA
Praia de Mira, 8-2003

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O Poeta do Salmo exilado
O rio não parecia correr no seu leito natural, circulava pela cidade, por entre as casas e
dava a impressão de estar ao nível das construções mais rectangulares, reflectindo as
faces dos edifícios.
Gedalias, um ancião de olhar já acomodado, sentava-se ao lado de Quebar, um canal
navegável, a jusante do Eufrates, e via subir e descer com o vento, até arrastarem as
folhas mais altas nas águas, os juncos que se pareciam com saltadores no momento do
mergulho.
Nas pedras, junto de si, tinha pousada uma tábua de barro com inscrições da história
recente e um papiro envelhecido no qual se via que já inscrevera algumas frases em
aramaico. O velhinho olhava-as, e quando o fazia espaçadamente era com uma tristeza
nos cantos da boca, como se alguma coisa tardasse em chegar.
E afirmava a si próprio: «Estes versos serão feitos como se esculpisse o sentir da
tristeza, a lamentação certa há-de chegar perfeita, do meu estado de espírito.»
Era um velho que trajava um longo vestido gasto, com motivos sumérios, e abrigava-se
da humidade do ar com uma pele de carneiro surrada, «Apesar das aparências, sou um
cativo muito bem tratado» – pensava, várias vezes, com algum reconhecimento, e
poucas vezes falava de vingança.
Fizera parte da primeira deportação, era um bom artífice, a quem reconheceram a sua
valia profissional para trabalhar em artes decorativas. Agora, porém, já não trabalhava.
Tinha as sandálias cheias de lama, porque costumava percorrer os montes de terra que
bordejavam as águas do rio.
O rosto evidenciava, com rugas, que havia percorrido uma estrada na vida que não fora
atapetada de lírios.
Tinha, no entanto, uma boa figura, e as mãos, quando andava, pareciam imprimir calma
a todo o corpo.
Vivia num lugar que as autoridades babilónicas tinham destinado aos judeus
deportados. Estes viviam em casas próprias, alguns até haviam enriquecido com o
esforço da sua aculturação e integração, vivendo não como escravos, mas semi-livres,
em pontos estratégicos um pouco acima das margens do Quebar. A sua casa e a da
família estava ao lado de um grande salgueiro, que em fins de tarde sem vento dava
bastante calma ao olhar, embora não acrescentasse nenhuma novidade, por isso nos
olhos de Gedalias havia, por vezes, uma certa acomodação.
Mas, na maior parte do tempo em que estava sozinho, os olhos iam buscar ao fundo do
rio sentimentos tristes, e, no entanto, davam a impressão de estarem a acompanhar o
subtil curso das águas.
Como quase sempre podia fazer, estava sentado ao lado do rio, e a luminosidade que
vinha da água, compartilhava-a no seu rosto. Nesses momentos baixava a cabeça e
olhava em direcção do seu manuscrito.
Trouxeram-nos, um dia, por volta do anoitecer, das suas terras da Palestina, ao velhinho
com uma dezena de milhar de outros judeus, e a partir de então aqueles canais da
Babilónia eram como uma praça onde juntavam os soluços e as palavras castradas.
Lembrava-se perfeitamente do dia, Jerusalém após um cerco breve capitulou no dia 16
de Março de 597, sem resistência digna de nota.
O rio possuía recantos aprazíveis e os salgueiros quando se reflectiam no retrato criado
no espelho das águas, faziam-no de margem a margem em alguns pontos.

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Uma parte do seu estado de espírito quereria fazer caber esse sentimento estético no que
viesse a escrever, a outra, era mais dramática, prendia-se com o aviltamento natural do
seu estado de exilado judeu, prendia-se com a religião.
- «Se eu fosse o nosso grande rei David, o salmo já arderia de beleza em todas as suas
palavras.» - Disse, um dia, a um moço que lhe perguntara o destino que daria ao
manuscrito.
- «Eu sou apenas um velho que quer deixar um pedaço de história para lá das nossas
ruínas. Mas talvez seja já muito tarde.» - Arrematou, voltando de novo à sua
contemplação.
- «Venha, meu pai.» - Julgar-se-ia que a filha o teria acordado, quando o veio chamar. -
«Venha preparar o Shabat, que apesar de estarmos em terra estranha, temos aqui de
perpetuar Sião.»
A noite caía sobre o Eufrates e o Quebar como uma peça única, compacta, a própria
sombra ténue dos salgueiros já não se distinguia, mais tarde seria somente o murmurar
das águas que indicariam, no escuro, o volume espesso dos rios.
Embora não desse excessiva importância à idade, como limite para produzir uma obra
salmódica, pensava com frequência que já não teria muito tempo, que talvez fosse já
muito tarde.
- «Ainda quero sair daqui, regressar à minha terra.» - Desejava sempre que a conversa
se metia por aí, embora lá não tivesse as margens de um rio como aquele onde se
poderia sentar. Sentar-se-ia debaixo do alpendre de uma casa. E pensava assim sempre
que se animava com uma possível longevidade.
Havia rumores de que os persas, sob o mando de Ciro, poderiam estar perto de invadir
Babilónia. E esses não eram propriamente bárbaros. E no que dizia respeito aos judeus,
a sua relação com estes não era assim tão complicada politicamente.
Mas um poema sobre o exílio obcecava-o e estava dentro das suas prioridades de
ancião.
Pensava muito no assunto, e talvez por saber que o mesmo não acontecia com outros da
sua idade, e, sobretudo, com alguns muito mais novos, que já haviam nascido em terra
estranha, muito mais pensava num retrato poético do exílio, numa forma que
sintetizasse a tristeza e o orgulho nacionais.
Foi nesse instante que um dos filhos, o mais velho, lhe interrompeu o que estava a
pensar. Ele falava de um modo pacificado e parecia inquieto, mais no olhar do que na
voz.
- «Pai, queria que me desse uns momentos da sua atenção.»
Esse seu filho era o predilecto, não por ser o primogénito, mas por ser rigoroso com a
sua vida secular, com ortodoxia de princípios para com a comunidade, cumpridor da lei
Mosaica e um excelente músico. Tocava lira na perfeição.
- «Já decidi, há muito tempo, que não vou tocar lira para a festividade dos nossos
opressores. No entanto, insistem. Vou debater-me com problemas.»
- «Deus reservou-te uma tarefa, que não será certamente tocares o cântico do Senhor em
terra estranha.» - Anuiu o velho pai, enquanto com a cabeça procurava o exacto ponto
cardeal para olhar, no vazio, rumo a Jerusalém.
- «Não sou o único a pensar desta maneira» – informou o filho – «Há muitos judeus a
pensarem o mesmo.»
E, no entanto, estavam todos aflitos com a situação. Era uma honra que os babilónios os
considerassem muito bons músicos e se deliciassem a ouvir as liras dedilhadas por uns
dedos que só sabiam, agora, contar salmos de angústia e tristeza, mas sempre com
aquele ritmo vivo que um dia fizera Miriã executar uma remota dança ou David saltar à
frente da Arca.

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- «Talvez.» - Concordou o velho – «Mas sempre é o cântico do Senhor em terra
estranha. Por muito que ambicionemos não poderemos tirar desta terra um cântico para
o senhor.» - Repetiu, enquanto um vento inesperado fez uma passagem rápida pelos
salgueiros, como uma música agreste, defrontando as ramagens. E entre as suas
pálpebras, já muito flácidas, começaram a brilhar umas pequeníssimas pérolas.
Uma nuvem mais branca, queria agora instalar-se entre as mais escuras que corriam, já
havia um bocado, pelo céu. Era uma nuvem muito simples, que não se parecia com
nada, nem suscitava qualquer desenho à imaginação.
O velho talvez pudesse agora voltar para o seu sítio ao lado do rio, e levar os seus
instrumentos de escrita onde esperava ainda escrever alguma coisa a favor do mundo
que lhe roubaram. A lua era uma quilha de um barco a subir e a descer na luminosidade
de espuma, quase alva, de algumas nuvens. Nessa noite, cheia do rumor com que as
águas, às vezes, substituem a ventania, sentia-se com pensamentos inspirados.
- «Junto dos rios da Babilónia nos assentamos e choramos» – disse em voz alta, e
achou que este começo do poema condizia com a verdade, porque já presumia a lição de
quanto mais poético mais verdadeiro. Poderia ser mais narrativa que poesia, mas era a
verdade sentida.
- «Filho – olhou para o primogénito – Não crês que esta é a melhor posição que
actualmente nos retrata, como um povo?»
Havia no entanto, que meter dentro do parágrafo, dissera-lhe o filho, a saudade, a
religiosidade e também um sentido comunitário. Fizera bem em referi-lo, porque o
velho concluiu os versos com «lembrando-nos de Sião.»
Depois veio aquela referência aos salgueiros. Havia inúmeros, junto às colónias
oferecidas aos judeus, nas margens do rio Quebar. «Nos salgueiros penduramos nossas
harpas.»
Mas como uma centelha que sai do fundo da fogueira que parece extinta, e revigora
todo o fogo, Gedalias recordou que nos primeiros anos de cativeiro, e mesmo muitos
anos depois, os babilónios insistiam para que cantassem as suas canções. Era verdade,
que tinham permissão para celebrar as suas festas, embora só cultivassem uma, a Festa
das Lamentações aliada ao novo costume de orarem com os olhos voltados para
Jerusalém, mas tocar para aqueles que os levaram ao exílio, jamais.
E, assim, começou a escrever: «Porquanto aqueles que nos levaram cativos, nos
pediam uma canção; e os que nos destruíram, que os alegrássemos, dizendo: Cantai-
nos um dos cânticos de Sião.»
Mas como numa terra impura, o homem se guarda de contaminar o corpo, sem lugar de
culto, sem referências físicas para situar a sua religião, a não se no plano dos costumes,
dando maior importância ao Sábado e à Circuncisão, o velho e todos os outros judeus
que puderam, enfim, regressar a Jerusalém, tinham imenso orgulho em poder afirmar,
como as palavras desse poema, a sua recusa: «Mas como entoaremos o cântico do
Senhor em terra estranha?».

J. T. Parreira

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O visitante de Jericó
-Trazes-me água? – Pergunto, tacteando o odre que o homem me entrega.
- É o odre velho, este está quase gasto. – Digo ainda, antes de o levar aos lábios.
À volta de mim, o ar áspero de poeira, o chão suspenso na poeira, as árvores sem
química nem vegetação, apenas poeira.
Esse pó da velha estrada para Jerusalém fica entre mim e os olhos dos que passam. Há
muito tempo que é assim, que me vêem como que através da névoa. A névoa que é uma
espécie de indiferença que cai sobre a paisagem e que abate uma a uma as suas cores.
Junto da estrada, eu olho sem ver, sentado ou de pé, mas dadas as circunstâncias tenho
sempre os olhos abertos somente para dentro de mim.
Quem conhece o mínimo do nosso psiquismo, do nosso comportamento face à cegueira,
ao não possuirmos o sentido da vista, dos contornos e do volume das coisas, sabe que o
nosso verbo ver é pessoal, que tem um sentido profundo e íntimo. Por isso eu vejo a
estrada que leva as pessoas a Jericó e que as trás de volta, como neste dia branco, igual
aos outros dias, para mim sempre brancos, mas coalhado de poeira.
Ahab Timeu acordou-me destes pensamentos, quando surgiu do meio da poeira e me
trouxe o odre com água fresca.
Um pouco acima do nível da estrada há uma concavidade numa rocha, que lembra uma
cadeira revestida de musgo, de natureza espontânea, e que passou a ser o meu ponto de
paragem, onde o meu corpo se encaixa perfeitamente.
As pessoas que vão passando por esta estrada nem imaginam como eu as vejo, através
do ruído que fazem e me dá um frenesi no corpo, porque necessito das esmolas. O
tempo, a chuva, ou o sol, também influem no volume dos rendimentos.
Quando os dias exibem um grande sol brilhante, porque o céu está com a sua nudez
completa e azul, por incrível que pareça, não são muitos os transeuntes, ao contrário das
belas manhãs ou fins de tarde, em que o látego do ar quente e de poeira é menos
caustico. Em todo o caso, faz parte da minha missão por necessidade esperar por quem
passa.
Por alturas das chuvas, há sempre um familiar que irrompe pelas águas dentro, quando
não consegue ser mais rápido do que a promessa que as nuvens negras carregam, e me
leva, a custo, para casa.
- Bartimeu sentes-te bem hoje? – É sempre um dos habituais transeunte que passa, ao
finalzinho da tarde, e cuja voz reconheço, a sua saudação neutra não tem tanto a ver
com o estado do meu corpo, mas com o dia que ele presume estar a correr de feição.
- Deves ter tido mesmo um dia muito frutuoso com o movimento que vai por estas
redondezas – comenta ainda.
- Hoje está ameno, apesar do pó que perdeu toda a subtileza, que um cego o pode ver –
respondo, ainda não refeito do trovão que a sua voz pareceu eclodir dentro de mim. –
Estava cá com os meus pensamentos, Bar-Josué – concluo.
Estou assim muitas vezes, apoiando as minhas tristezas na parede espessa da memória,
esforço-me todavia por empurra-la no retorno a um passado já remoto. É um caminho
de regresso à infância, que gosto de percorrer, absorto nos meus pensamentos.
- Sabes, se as vozes me fazem companhia, a imaginação e a memória ainda mais. – Quis
explicar-lhe, mas percebi que já não estava junto de mim, pelo silêncio que os seus
passos arrastados iam deixando ficar para trás.
Quando era rapazinho brincava nas ruínas da velha Jericó, o seu silêncio, a sua
desabitação, a sua antiga, angustiante história cananeia, eu e outros meninos
costumávamos brincar aí com essa história.

Página n.º 29
- Depois, foi a cegueira – repetia com um tom resignado e religioso, de quem sabe que
há uma soberana vontade acima do homem judeu ou qualquer outro.
Noutros dias já longínquos, chegava a inventar brincadeiras que reproduziam os relatos
dos livros históricos das Escrituras, que mimavam Josué e Caleb, e ao exército armado
de trombetas de pau emprestávamos uma imitação de música gutural. Levávamos mais
longe o tema das brincadeiras, fazendo rolar algumas pedras que estavam ao alcance da
nossa força, embora algumas delas fossem maiores que as nossas mãos. Contudo, era
nesse tempo, com as nossas mãos cheias de alegria, que refazíamos a história. A nossa
vozearia incontrolada caía no vasto silêncio que habitava as ruínas. Pensávamos,
contudo, como a chegada ruidosa de um povo, com uma música constante, inexplicável,
estranha e pouco suave, deveria ter enchido de estranheza aqueles lugares há muitos
séculos. As interrogações desvanecer-se-iam com a queda dos muros fracassados da
cidadela.
Como a pergunta que cresce dentro de mim, neste momento, que cresce como uma
excitação bem no centro do meu peito, assim parte de um ponto não distante um tropel
em crescendo, uma entoação desusada.
Vozes, cânticos, passos a espezinhar o pó que eu imagino estar a levantar-se. Vejo-o e
sinto-o, uma vez mais, nas narinas. Mexo-me na cadeira improvisada na pedra, nem ligo
às marcas do musgo que me devem estar a esverdear, outra vez, a capa.
- Que som é este? – Pergunto, e os meus ouvidos abrem-se para apanhar algum indício
da grande coisa que se avizinha. Uma enervação percorre-me o rosto, os meus olhos
apagados parece que se movimentam dentro de uma caverna, as órbitas quase não os
podem conter, querem saltar por cima do som que me chega aos ouvidos, querem ver a
causa de tanto entusiasmo.
- É uma multidão arrebatada – diz um companheiro, também cego, agora mais perto de
mim.
Mais alto, o som da multidão avança em direcção de Jerusalém. O que subitamente, me
leva a perguntar o que pode vir da velha Jericó.
- Com certeza um daqueles grupos que costumam ir protestar à cidade santa pelos
pesados impostos que os publicanos exorbitam, quando cobram – diz um outro colega
de mendicidade.
- Eles abusam – concordo com ele – Como o rico Zaqueu, de quem já tinha ouvido falar
– acrescento, apenas para dar algum sentido útil e histórico à conversa do outro.
Uma voz, fazendo lembrar um jovem alegre e a compartilhar da euforia, corta o ruído
geral.
- Olha que grande multidão aí vem, nestes caminhos, estar junto e falar aos gritos, é a
melhor maneira de afastar possíveis salteadores – pelo tom que emprega parece saber do
que afirma.
Eu tenho, porém, outro conceito sobre as multidões. Estas costumam ser cegas,
avassaladoras, não podem ver, porque não querem ver, onde pisam.
As multidões, quando correm, só olham para o alvo a atingir, e movem-se como se
sobre inimigos o fizessem.
Seja como for, nesta multidão entusiástica, provavelmente com grandes motivos para
vir assim alegre, quase infantil, pode haver corações e braços atentos para as desgraças
do próximo.
Com a multidão tão perto de mim, eu já não posso viver de imaginações e de
aparências. Existem diferenças, que o meu apurado ouvido percebe.
O motivo que faz esta quantidade de gente estar junta é outra coisa, é diferente de tudo o
que já tentara contornar e tactear, dentro do branco dos meus olhos. Algo inexplicável

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parece estar ao alcance do meu coração, algo que dimana e sobressai deste turbilhão de
pessoas.
- En…tão, …ainda… não o viste? – Pergunta, ao meu lado, uma voz que eu não
reconheço, que pelo arfar das palavras e pelo tom exaltado, veio certamente a correr.
Agora a multidão é já todo um mundo próximo de mim. Distingo já o que torna esta
multidão diferente, ouço alguns salmos judaicos por cima das conversas da turba.
- Não vi, quem? – Respondo à pergunta, interrogando e rendido à sensação de que algo
especial, anormal mesmo, se está a passar.
- É Jesus de Nazaré – dizem-me.
- É quase meia nação que vem com ele – exagera outro.
De facto, a multidão já alardeia um nome, que se percebe nitidamente, Jesus de Nazaré,
no meio da vozearia e dos cânticos que homens mais felizes, e parecendo mais sinceros,
por assim dizer, desperdiçavam na confusão geral.
- Mas, é bom ou mau? – Pergunta, receoso, José, o companheiro de estrada, igualmente
cego, e sinto que a sua cabeça está a espreitar por cima do meu ombro.
Depois de eu ter dado conta que gritei, não sei por que impulso divino e de um modo
vital, a plenos pulmões «Jesus, Filho de David, tem misericórdia de mim», tudo se
passou incrivelmente depressa.
Houve empurrões da multidão quando Ele me chamou, antes as palavras ferinas
daqueles que desejavam que os ferros da minha prisão não se quebrassem, aquela
pergunta de Jesus que me soou como se o Universo estivesse todo a reconstituir-se, com
harmonias celestiais, em torno de mim.
- Que queres que te faça? – Perguntou-me, com voz de quem não conhecia o
impossível, Jesus de Nazaré. Nos seus olhos vi depois a eternidade e na sua voz o
intacto poder com que ordena à Criação.
Gostaria de lhe ter chamado muitos nomes que nada tinham a ver com o costume
religioso, semeador de árvores, desenhador de homens, pintor de paisagens, obreiro de
casas com o sol a derramar-se nos terraços, acolhedor de pássaros que se refugiavam
nas brisas…. Somente me ocorria «Filho de David», porventura devido ao seu olhar de
monarca, que ao pousar nos homens reinava nos seus sentimentos e até nas coisas
inanimadas.
Mas, a multidão apressou-se, e como uma enorme onda, num movimento contrário,
começou a refluir. Sem esmorecer o seu entusiasmo, pelo contrário, foi afastando-se. Eu
contemplava-a, não a achando muito diferente de como a imaginara, embriagada,
amorfa, impessoal. Vi-a agora com as janelas abertas no meu rosto, a essa mole imensa
de gente alegre, quase que forçando o Filho de David a seguir, como em uma correnteza
de águas insensíveis.
Eu esquecera as esmolas, e seguia-O, agora com os meus próprios olhos, ainda
inadaptados e desabituados dos raios de sol que a poeira insistia em turvar.

J. T. Parreira

Página n.º 31
O Hóspede
- Tu és rico e podias dar-te a benfeitorias – disse um dos empregados.
- Dei quase tudo – respondeu, receoso no entanto de não o acreditarem.
- Pois, mesmo assim… – insistiu outro, sem ter porém coragem para continuar.
- Procuro esquecer as riquezas – retorquiu.
- Adormecendo sobre elas, porque estão seguras e a aumentar? – Ironizou um colega
concorrente da administração pública de Jericó.
- O meio que conheço agora é o melhor. Dou aos pobres… – declarou Z.
Os ecos do seu mundo chegavam-lhe assim, através das insistentes evocações
insinuosas da pequena comunidade dos cobradores de impostos.
Mas a declaração, que chocara a comunidade, as atitudes sociais de Z. que doravante
tomava, a sua convicção religiosa que cedia sempre lugar ao materialismo, estavam a
estruturar e a erguer uma onda de respeitabilidade junto do povo, por um lado, e, por
outro, um receio de que tão repentina mudança e abalo moral tivessem réplicas
profissionais. Temia-se que pudesse colocar mesmo em causa os métodos usados por
toda a administração da fazenda, no que dizia respeito à cobrança dos tributos.
Alheia, naturalmente, a toda esta convulsão que se registava na aldeia, a ancestral
figueira-brava, quase com as palmeiras e tamareiras um símbolo da teimosia de Jericó,
continuava a sua vegetal existência, os homens diminuíam-se, ela restava não se
sabendo bem há quantos séculos.
Revestida de folhas, que serviam de esconderijo às brincadeiras das crianças da
vizinhança e aos cansaços das aves, que debicavam a clorofila da folhagem, a figueira
bravia era por isso um instrumento quase social de auxílio aos homens e mulheres da
aldeia, com a sua ampla copa, raízes profundas e largos ramos.
Esses ramos eram fortes, secos, e as ventanias quentes de Verão da Palestina, ou mesmo
os furacões do mês de Adar já tiveram embaraços ao tentarem partir alguns desses
tamanhões daquela figueira tutelar.
Acima do lugar onde Z. construíra a sua casa, existia essa figueira-brava ou sicômoro,
que abarcava com sua largueza uma boa parte da estrada e às vezes quase confinava
com as nuvens.
Z. estava sentado na ampla sala do primeiro andar da sua casa, a um canto duas ânforas
de um barro trabalhado com mãos de geómetra, uma mesa longa de madeira de carvalho
sustentava, quase aereamente, uma taça de prata com tâmaras, uma banqueta com
embutidos de osso e um leito. A casa estava sossegada, somente lá fora corria um
burburinho, uma multidão de passos empoeirados deslocava-se com ruídos naturais.
Não era homem azedo, nem mesquinho, somente procurava passar à frente dos outros,
usando maneiras variadas, não via na sua pequena estatura nenhum impedimento, nem
possuía do defraudar o próximo um conceito rígido, olhava para a sua sala, para o
mobiliário, e pensava como a sua riqueza fora até ali fruto da sua esperteza para os
negócios.
Conhecia bem o que dele se pensava, em Jericó, provavelmente em Jerusalém apesar
dos mais de vinte quilómetros de distância, mas era aí que estava a fortaleza Antónia, a
administração romana. Os judeus cobradores de tributos tinham duas coisas graves
contra eles, o serem cobradores e os impostos.
No entanto, aparentava estar despreocupado, parecia sentir-se feliz, ainda que um
desusado nervosismo tomasse conta das suas mãos.
Dava a impressão de estar à espera.

Página n.º 32
- Não há duvidas de que esse Jesus, de Nazaré, ou como lhe chamam, terá que passar
perto – disse alto para a sua mulher.
Quem desejasse sair de Jericó deveria cruzar esse principal, cuja figueira dava a
impressão de ser a praça, onde residiam os melhores mercadores de bálsamo e outras
famílias abastadas. Assim, estava a aguardar.
- Daqui a pouco sairei para o ver passar – concluiu, voltando os olhos para o terraço,
que alongava a casa pelo ar livre. Um dos filhos, o mais novo, chegou ao aposento,
excitado apontando a cabeça várias vezes para o local de onde vinha o burburinho, disse
que o Homem estava com alguma dificuldade em avançar devido à muita gente.
- Cá para mim, deve ser tudo verdade o que dizem desse Jesus, mas entusiasmo a mais
da parte da multidão – disse ainda para o pequeno, embora estivesse no íntimo a pensar
na cura de um tal Bartimeu, de que ouvira falar.
Quando Z. imprimiu vontade ao seu corpo pequeno para se erguer, foi pela premência
do nervosismo, porquanto o cortejo ainda estava para lá da velha figueira.
Gostava de pessoas que se elevam acima das turbas entusiasmadas, que de certo modo
as conduzem, por isso também estava curioso de ver a tal figura.
A pensar nisso, saiu de casa.
A rua, com muitos transeuntes, estava como o átrio do templo, lá em Jerusalém, cheia
de palradores. E foi ao encontro da figura singular que assim arrastava uma multidão,
foi com a mente em branco, esta seria preenchida certamente com o que iria ver.
Poucos lhe chamavam Deus, e isto acontecia mesmo quando lhe pediam que os
abençoasse. O suor saia dos poros da multidão e um nome tradicional de judeu
ressumava entre as conversas movediças dos grupos de homens.
Novamente teve necessidade de se erguer. Querer observar sem ser observado ou a
dimensão pequena do corpo, em altura, alcandoraram-no no topo da vizinha figueira.
Já pertíssimo vinha o sinal que parecia uma respiração ofegante, profunda, de uma parte
da multidão, a que estava mais perto daquele homem trajando uma túnica cujas orlas
rodeavam o corpo magro, comum, e pairavam sobre o chão.
Sentiu-se incómodo, sustentado por uns ramos, que tanto o aproximavam, do ridículo
como da curiosidade e foi daí que lançou seus olhos, depositando-os, admirado, em
cima de Jesus.
Então, uns olhos escuros, de judeu típico, que falavam como os olhos das crianças
quando olham, depois da ausência, para a regressada mãe, fizeram estremecer Z. que se
julgava inexpugnável na árvore, e sentiu seus próprios olhos como dois tições dentro
das órbitas.
Já me casa, a luz ténue do dia e os ruídos da multidão a dissipar-se, era o que entrava
pela janela. Jesus e Z. conversavam, sentados numa das cadeiras longas que
demarcavam no quarto o lugar das riquezas bem empregadas. Agora os dois rostos não
eram tão diferentes, como quando Z. foi convidado a descer de cima da figueira e a
entrar na própria casa, com um convite em cujo tom havia uma ternura, ao mesmo
tempo um cansaço, uma necessidade de um copo de água fresca. O seu rosto ficara
vermelho, depois envergonhado. O de Jesus, bem formado, com uma barba jovem a
encher as maçãs da face, um pouco pálido, era um rosto varonil entusiasmado com uma
missão.
Z. levantou-se da cadeira e a sua pequena estatura tornou-se ainda menor sob o tom da
declaração proferida, uma afirmação como essa iria brilhar em muitas casas como um
bilião de estrelas. Que resolvia dar aos pobres metade dos seus bens, e, admitindo que
nem sempre tinha sido honesto, que iria restituir quatro vezes mais àqueles a quem tinha
defraudado.

Página n.º 33
Poucos, lá fora, esfregando nas mãos o frio da noite, compreenderam como as paredes
da casa de Z., tão longe de serem um templo, puderam albergar a voz de Deus e como
uma parte da singular teologia da salvação ali se fundara.
- Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o perdido – dissera Jesus, ao despedir-
se, e estas palavras eram tão consistentes que letra a letra pairaram sobre a luz das
lâmpadas de bronze.

J. T. Parreira

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Uma ponta levantada do remorso
Então Judas, atirando para o santuário as
Moedas de prata, retirou-se e foi enforcar-se.
Mateus 27:5

Fê-lo triste pensar que a única ideia que tinha naquele dia era sobre a morte.
Foi na véspera da preparação do Sábado e também da grande festa da Páscoa que se
encontrou perante o desfecho do caso. Desde a madrugada daquela sexta-feira que a
conduta pessoal lhe causava, apesar de tudo, enorme surpresa.
Já não cultivava a mesma frieza da noite anterior, nem pensava que fora a coisa menos
usual o que acabara de fazer, talvez só mesmo o espírito amargo de sempre. Limpou,
com a manga da túnica, a saliva dos cantos da boca, que se acumulara ao gritar aos
principais sacerdotes e anciãos, limpou o suor que seguia na direcção dos olhos.
- «Eu condenei um homem inocente à morte! Traí um inocente!» – foi o que Iscariotes
gritou, engolindo em seco um nó na garganta.
Até ali fizera tudo com discrição, para evitar tumultos, usara a astúcia, mas pensava
com tristeza que o dinheiro não tinha necessariamente que o transformar dessa maneira,
mas era tarde.
- Se a minha alma fosse material, estaria agora destroçada em farrapos – disse-me
Iscariotes, quando se despediu, à pressa, nessa manhã.
Seria como um sentimento desagradável e simbólico que quase fizera em farrapos a sua
capa, se não fosse apenas o acaso de a rasgar numa esquina afiada de uma das paredes
do templo ao fugir apressadamente.
Quem o visse, naquele momento, com toda aquela agitação, diria que estava ali um
sicário, desesperado para se vingar dos romanos, procurando nas sombras entre as
esquinas sinuosas da rua que levava para fora da cidade, como uma criança que procura
no ar o lado de onde vêm as vozes dos pais.
Quem o conhecesse de perto, como eu, diria que aquele homem estava agora com uma
crise de fé, balbuciava um nome ininterrupto «Mestre», como um agnóstico de boa
vontade. A ironia já não era o seu anteparo, a ironia que sublimara naquele sinal
identificador, do beijo no mestre, com que completou o processo da rejeição que sempre
demonstrou em relação a Jesus.
Vi-o afastar-se com o cabelo coberto por um talit, curvado, sem cabeça, como a querer
cozer às sombras o seu rosto.
Ali na rua estava instalado aquele burburinho com que se iniciam as manhãs muito
cedo, havia a um canto oito ou nove pessoas que conversavam sobre uma condenação
invulgar, que o Sinédrio efectuara de noite.
- Foi uma rusga e uma acareação.
- Com certeza, porém foi tudo um pouco às escuras.
- Sim – disse um homem alto que estava à ponta do grupo, que percebeu outro sentido
na alusão à obscuridade – sim, às escuras, à margem da própria legalidade religiosa.
- Mas não, o politicamente correcto vai prevalecer, Pilatos dará a palavra derradeira. –
Sentenciou alguém, que se evidenciava da mediania do grupo.
Ao olhar Iscariotes deste ponto, parecia um homem que ia decidido a fazer uma viagem.
E na última casa da rua, onde se virava a esquina para o caminho dos arredores da
cidade, como se virasse uma página, deitou para trás um olhar de medo, escorregou ou
tropeçou numa relevância do terreno, não vi bem, e desapareceu repentinamente.

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Soube que começara bem com o dinheiro que os sacerdotes lhe tinham dado na noite
anterior. Mas durante a mesma, o toque naquelas trinta pratas não se diferenciara
daquele com que costumava passar a mão nas moedas do saco das esmolas.
Tais remorsos, por assim dizer, sensoriais, revelaram-se através de uma náusea
incontida. Há sempre um momento em que os pecadores têm vergonha, porque esta é,
desde as origens do homem, uma forma de conhecimento.
Mas o seu voltar atrás foi apenas materialista: foi só para devolver aquilo de que mais
gostava, levado sem esperança pela angústia da culpa.
Cabisbaixo, Iscariotes dissera-me qualquer coisa apressadamente sobre a repulsa que
sentia por si, como aguentara a indiferença dos principais do templo, e como depois de
se aproveitarem dos seus préstimos sem ética, o deixaram entregue ao seu destino
solitário.
Iscariotes não podia absolver-se, porque não tinha nenhuma dúvida razoável sobre o seu
acto. E nunca fora homem para possuir uma apreciação moral de um acto daquela
natureza.
A menos de dez estádios de distância, já em pleno campo, levantou os olhos por entre
os fiapos da manhã enevoada, uma névoa que parecia consistente, e lá estava a árvore
raquítica, plantada como um rubor floral no meio do verde, carregada de flores
purpúreas.
A chegada da morte, media-se agora em metros, não em tempo, porquanto Iscariotes
estava a levar seus últimos passos a aproximarem-se do local.
E aí deteve-se bruscamente.
- Foi acossado pelo remorso – comentou um publicano que era apóstolo de Jesus, a
quem chamavam Levi mas na realidade era Mateus, enquanto nos aproximávamos do
campo do oleiro.
- Foi tocado de remorso – repeti eu com voz triste, enquanto procurava ver fragilidades
na árvore que Iscariotes usara, já o sol fazia ângulos rectos entre os objectos e as
sombras.

J. T. Parreira

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O aposento do dia anterior
A iluminação subia as escadas de tijolo degrau a degrau, até ao primeiro andar.
Era um percurso em linha recta, fácil, embora fosse a subir. Seria íngreme para os
pescadores da Galileia, de condição pobre e casas térreas, habituados a viver com o mar
sempre à mão.
A luz consubstanciava-se com as próprias escadas, dando-lhes uma tonalidade que as
tornava imateriais, quase voláteis, antes de se instalar definitivamente numa ampla sala
clara, onde era naturalmente absorvida.
Como um rio em forma de delta profundamente turvado que entra pelo mar, nas suas
espumas, nas suas ondas desfeitas, assim eram a luminosidade e as escadas que levavam
até ao espaçoso aposento da casa.
- «Encontrareis um homem com um cântaro de água; segui-o até à casa em que ele
entrar» – foi o que disse Jesus com toda a precisão. E isso fazia sentir que alguma coisa
ia acontecer, sentia-se isso perfeitamente, e não apenas pelo clima de fervor religioso
que se apoderava dos judeus, nesse cruel mês de Abibe.
Para o grupo do carpinteiro oriundo de um artesão de Nazaré, as coisas não eram muito
simples quando se tratava de arranjar uma casa condigna e grande para aquela ocasião
importante; discípulos e Mestre não possuíam riqueza. No entanto, este compartilhava
com todos os homens o Universo, mas na sua pátria não possuía nada, e, pior do que
isso, foi até por ela rejeitado, pelo menos era esta a opinião de um membro do grupo
chamado João.
Pedro e João, como os restantes condiscípulos, já iam considerando mesmo as mais
pequenas afirmações do Mestre como coisas fora do mundo. Por essa razão quando a
escolha recaiu sobre eles, irem à frente do grupo para preparar a festividade da Pesach,
apenas se limitaram a perguntar qual o lugar onde o Mestre desejaria realizá-la. Dir-se-
ia mesmo que tinham um conjunto de lugares que poderiam escolher, e, no entanto, em
Jerusalém, exceptuando João que teria casa própria e posses de família que lhe
proporcionavam certo conforto económico, a maioria não tinha quaisquer referências,
nem porventura possuía amigos hospitaleiros, com casas frescas prontas para albergar
galileus pobres.
- «Onde queres que a preparemos?» – ainda assim perguntaram. Mas a sua pergunta
estava revestida de uma forma activa com a palavra exacta que revelava a vontade de
tornar as coisas prontas, desde a instalação ao material necessário, como quem parte
para um quarto escuro com móveis que sabe ir encontrar no sítio certo, em sítios
imutáveis há muito nos seus olhos.
Há sempre lugares mágicos que fazem parte da nossa justa ambição, de um dia os
vermos ou, melhor ainda, estamos neles. Todos os homens daquele grupo já tinham
preparado e celebrado outras Páscoas ao longo das suas vidas desde a infância.
Definitivamente alheios a posteriores dissensões histórico-teológicas, não tinham ainda
diferenças de opinião sobre a observância do período da Páscoa, porque nada disso
sabiam, o único cordeiro que por agora conheciam era o anho pascal.
Haveria quem explicasse bem como havia sido a primeira Páscoa, quando os hebreus
saíram do Egipto, com certeza com o legítimo desejo de ter estado aí, nesse tempo
heróico. Porventura também haveria quem não soubesse nada de história. Mas numa
cosia todos estavam de acordo, a festividade da Páscoa era uma lembrança, antes de
tudo, que fazia os judeus voltarem para Deus que os havia libertado da escravidão.
Sem nenhum plano, nem pensamento sobre a Páscoa, com certeza, Ariel passou
fugazmente na rua, atarracado, mas de porte leonino, não era alto, tinha porém amplas

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mãos, e estas poderiam sugerir a qualquer goy inculto que eram mãos arredondadas
pelas bilhas de água que seguravam.
Contudo, nesse fim de tarde, era o primeiro dia em que Ariel ao cabo dos seus quarenta
e cinco anos esperava que a rua ficasse sozinha para ele, sem receios, curvar o corpo sob
o peso da água que transportava, sem muitos olhos caindo sobre si. A ninguém ocorreria
questionar a igualdade social entre o homem e a mulher, como ninguém perguntaria por
que razão apenas as mulheres se deslocavam ao poço para encher cântaros com água
para a família.
Nesse fim de tarde, Ariel quebrava uma tradição. Por isso, sentia-se contente por ter
enfim ultrapassado o último degrau da portada da casa. A argamassa e os tijolos de
barro em que se assentavam as traves e ombreiras da porta, escondiam-no da luz e dos
olhares que recaíam sobre ele. Haveria, porventura, um estranho motivo, uma razão
forte que assistiria ao chefe da família, porque Ariel fora inesperadamente incumbido de
substituir na líquida tarefa, naquela tarde, as mulheres da casa.

J. T. Parreira

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O filho mais velho
Antes dos seus olhos arrefecerem, já os ouvidos recebiam cada som como se fosse um
cubo de gelo a cair na concavidade de um copo. Sentia-se um vidro, ainda que não
soubesse bem o que estava a suceder.
Mas não disse uma palavra até ver o mais antigo servo da casa, que acompanhava todos
os eventos com a sabedoria calma retirada dos provérbios, e agora corria apressado, de
m lado para outro, cruzando o alpendre.
- O que é isto que está acontecer? – Perguntou-lhe, com a mesma autoridade com que na
infância lhe perguntara coisas na pista do conhecimento.
- Ouviste ao longe a festa? – Entusiasmou-se o velho mordomo, esquecendo-se que ele
estiver a trabalhar nas propriedades mais distantes da casa.
- Veio o teu irmão – informou, com mais cerimónia, o homem. E perante o ar glacial do
filho mais velho da família, imprimiu um tom mais excitado às suas palavras – Perez
Levi regressou, vivo, com saúde, e teu pai mandou fazer uma festa.
Passara tanto tempo que se esquecera a i próprio como irmão do Pródigo, como era
recordado pelos vizinhos, por isso desejava, naquele momento, jamais haver tido esse
irmão.
Judá Levi Stein resolveu, contudo, continuar o seu caminho para mais próximo da casa,
a fim de melhor ouvir as músicas e ver os graciosos corpos a dançarem. Porém não
entrou.
As suas roupas tinham um ar cansado, quase como o seu corpo, via-se que jamais
deixaram de acompanhar Judá Stein para as lides agrícolas. Era um trabalhador
compulsivo, e, apesar de não ter mais de quarenta anos, as rugas na cara e na testa, ao
lado dos olhos, estavam intensamente cravadas no pó que trazia do campo. E ali
especado, a poucos metros da porta, um ligeiro vento sul fazia brandir as suas vestes e,
sem nenhum milagre, movia-se no pó que trazia nos cabelos.
Parara à porta de casa, como se estivesse a rever-se, nas suas roupas gastas pelo trabalho
e não pelas dissoluções, no seu moral, na sua força de filho sempre pronto a sacrificar o
seu bem-estar pela família. Que se recordasse, fora a primeira vez que parara à porta de
casa, retardando a sua marcha rumo ao olhar de aprovação e bênção do velho pai.
Estava sem vontade, não parecia, devido ao seu porte, mas estava à deriva como um
navio a aguardar apoios para vencer as vagas do seu pensamento, as ventanias
interiores, e entrar na barra.
Todavia, não estava a lutar contra a sua natureza, estava intimamente a lutar contra esse
seu irmão, que após anos de estúrdia e amoralidade resolvera encher o cinzento da casa
com cores dos vestidos alegres das mulheres da família e da vizinhança, dos parentes
mais próximos, até o sorriso que se via longe da boca do velho, parecia-lhe das muitas
cores com que o sol faz arco-íris da chuva. Não fizera planos para isto, não se entregaria
incondicionalmente ao milagre, se outra coisa não pudesse fazer, naquele momento,
faria de juiz entre todo aquele entusiasmo. E assim foi.
No entanto, foi a voz do pai que primeiro se fez ouvir, e as palavras não eliminaram por
completo o sorriso que trazia entre os lábios. Como um fio de água feliz entre rochas,
disse:
- Perdi a minha primeira serenidade, nesta mesma porta, não quero perder agora a
segunda, que readquiri, Judá Levi. Conheces a extensão do meu coração, conheces… –
e foi interrompido pelo filho…
- Conheço, sobretudo, o meu desprezo por esse teu filho dissoluto. – Afirmou forte Judá
Stein.

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- Conheces a extensão do coração de Deus? – Pôde concluir o velho. Mas o silêncio do
filho maior foi uma concludente resposta.
- Não, não conheces, deverias conhecer, no entanto ela está aqui reflectida à tua frente,
no meu coração tão grande onde podem caber dois filhos, um com suas falhas, outro
inteiriço, como se nunca houvera falhado – disse o pai, com um esforço evidente.
E ao fazer uma pausa para recuperar o fôlego, que na sua idade já lhe ia escasseando,
quando se emocionava, sentiu que um aperto humedecido lhe fechava os olhos.
Espremeu duas lágrimas contra as pálpebras e perante um gesto atrás de Judá Stein,
insistiu:
- Pensas que os pecados são apenas o abandono da casa paterna, a dissipação dos bens?
Pior do que abandonar é ficar, mas sem sentimentos, sem existir para além de nosso eu,
de coração fechado, é muito pior querer estar sempre em pé, hirto, mas sobre o que
julgamos ser destroços dos outros…
Uma tensão como um céu escuro a gerar entre nuvens um relâmpago inesperado,
pairava naquele momento entre dois. Porém, o velho pai continuava com os seus olhos
dóceis a questionar uma brecha no rosto fechado do filho primogénito.
- Eis que te sirvo há tantos anos, sem nunca transgredir as tuas ordens, e nunca me deste
um cabrito, para alegrar-me com meus amigos – disse, por fim, Judá Stein, pensando
apenas na sua alegria, que, segundo as suas palavras, o pai não lhe proporcionava.
- E hoje, a esse teu filho, que devorou uma fortuna com mulheres de má vida, dás o
bezerro mais gordo… – e esta acusação foi demasiada.
- Filho, tu estas sempre comigo. Temo, no entanto, que te tenhas perdido dentro da casa,
como teu irmão se perdeu fora… Eu quero ficar com os dois, quero encontrar-te, Judá
Levi, como encontrei Perez.

J. T. Parreira

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O Náufrago
Levantou a pena direita, dobrou o joelho quase à altura da cabeça e saltou. Esse salto
naquele momento pareceria um acto temerário não para o escuro, embora estivesse
muito escuro, mas um salto para o universo azul do deslumbramento.
Foi assim que Simão Barjonas transpôs a borda do barco que se inclinou com risco e
pisou, firmemente, o lago Tiberíades.
-Sempre foi impetuoso! Mas como é que ele vai conseguir? – Perguntou Tomé ao
colega do lado.
- Vai, porque o Mestre está a dizer-lhe – atalhou J. Boanerges, enquanto uma vaga
mais alta lhe fez descer e subir a voz.
Aquelas águas, que o vento confundia com pequenos montes de terra acastanhada que
se erguiam e caiam, tiveram sempre grande significado para ele.
Nunca havia pensado nisso, senão reduzidamente, que o seu pai Jonas, a sua família,
nascera, fadados para explorarem as águas do lago, que os do sul chamavam mar da
Galileia, cujos produtos eram consumidos por toda a Palestina. Pertencia à classe dos
pescadores que integrava a classe geral dos pobres, remediados pelo seu próprio labor
como artesãos. Pior estavam os que dependiam da terra que, por norma, era sempre a
terra pertencente às grandes famílias. Comia peixe, pão trigo, lentilhas e favas. Nunca
havia pensado nisso com apego, naquela altura em que levantara o corpo para pisar as
águas compactas do lago, menos pensava. Estava decidido.
- Senhor, se realmente és tu, manda-me ir ter contigo caminhando sobre a água –
gritou Pedro de longe.
Eram quatro da manhã; a túnica inquieta do Mestre recebia agora uma ligeira claridade
que acentuava o vento, o qual estava a levantar-se dos lados do Hermon, por isso a
túnica parecia uma bandeira inquieta sobre as águas.
Mas não viu nenhumas vestes a esvoaçarem, nem pensou em bandeira alguma. Os seus
olhos afeitos à pesca nocturna, às imprecisões da madrugada, não se tiravam do corpo
que parecia correr sobre as águas, com passadas estendidas sobre o lago. A palavra do
Mestre ressoava sobre o marulho das ondas como ressoava nos seus ouvidos.
-Vem! – Correspondeu o Mestre.
Simão Barjonas, devido a ser um homem voluntarioso, funcionava muito sob comando.
O vento atravessava o lago, torrencialmente. Devido ao seu leito, com uma
profundidade média de 20 metros, estar cavado no vale do Jordão, cercado de colinas,
era propenso à criação de diferenças de pressão atmosférica e de pés-de-vento, curtos
mas rigorosos. Mesmo assim, naquele dealbar da noite, Simão Barjonas entrou na
torrente do vento e pisou firmemente as águas. Caminhar sobre o lago Tiberíades,
jamais havia sido para ele uma aspiração daquelas que às vezes se tem desde criança.
Caminhar sobre as águas seria como andar sobre uma esfera à procura do centro, era
assim que se sentia, naquele momento especial. O vento frio atirava fortes bátegas,
mornas de água à cara de Simão Barjonas. Atrás ficara o barco e o espanto nos olhos
dos companheiros, os seus corpos embalados pelo balanço quase perigoso do barco, por
breves instantes, não estavam em pânico. Mas o rosto de Simão Barjonas começou a
fechar-se como o temporal. Começou a água a fugir-lhe debaixo dos pés, deixara,
naturalmente, as sandálias no barco. Os dois pés pareciam agora perdidos sob as águas.
Vieram e tornaram a vir à superfície. Simão Barjonas era cedro do Líbano, seco e
espesso, o seu cerne fá-lo-ia afundar-se mais depressa. A voz do Mestre flutuava-lhe
nos ouvidos – Vem! – E fora a força do milagre, essa voz inteira, acima da terra, do
mar, do céu, estava a ser substituída, paulatinamente, pelo vento e pelo marulhar das

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águas do Tiberíades. Só agora Simão parecia estar a dar conta de que estava a dar
passos inseguros sobre o mar.
Aquilo era como estar a sonhar acordado. Havia redes com enormes buracos prenhes de
peixes; peixes com coroas de louro, quais vencedores romanos, à volta de cabeças com
escamas; barcos a navegarem pelas costas de pescadores com narizes aduncos e
compridos; asas mil e umas cores de borboletas a tomarem o lugar das velas dos barcos;
estes pontilhavam e cobriam com suas formas o lago a que os gentios chamavam Yam
Kineret; a forma de harpa que o lago tinha soava-lhe, musicalmente, aos ouvidos; via a
sogra a arder em febre e as bagas de suor da sua testa a molharem as mãos de Jesus; a
cabeça cortada de João Baptista dava a dimensão trágica às águas do lago, o sangue
cobrira o acastanhado das águas, e Simão Barjonas queria apanhar a cabeça do Baptista
que lhe escapava entre os dedos e ondulava nas vagas que se erguiam sob os pés, como
um meteorito enorme nos cosmos; os milhares de pedaços de pão que saltava dos
cestos, caíam nas águas e regressavam de novo aos cestos…
Quando o Mestre lhe deitou a mão e o fez subir para o barco, olhou pela primeira vez
para as estrelas, quando voltaram a aparecer. Mediu-lhes a altura, sacudiu a água da
túnica enrolada no baixo-ventre como um calção e sentou-se. Passou as mãos calejadas
pelos olhos, queria ver o corpo do Mestre por inteiro, na arca do peito o seu coração
estava em repouso.

J. T. Parreira

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No sábado jantamos com Lázaro
- Enfim, eis que regresso a casa passados quatro dias – teria dito o nosso amigo
Lázaro, se tivesse alguma intuição sobre o espaço e o tempo que o afastara da sua casa
em Betânia. E o lugar onde estiver retido. Mas tinha um buraco negro na memória.
Todas as coisas que ouvia, decorridas já algumas semanas, integravam-se apenas no
hiato, vago, com uma ligação esbatida entre um momento antes e outro depois. Mesmo
aquele último jantar de sábado em sua casa, cujo convidado especial foi o Mestre,
tratou-o simplesmente como um acontecimento repetido, que já ocorrera noutras
ocasiões. No entanto, atribuía a esta ceia um sentido especial, porque estavam a uma
semana da festa da Pesach.
Não obstante, o que o nosso amigo Lázaro sabia era tudo o que os seus conterrâneos
contavam, e também o estado de permanente alegria e assombro em que a sua família
andava, os modos com que as suas irmãs Marta e Maria o tratavam. Nesses dias, perante
tantos afectos, dava-lhe para pensar:
- «Estive doente, talvez seja por isso, com uma febre que me tirou o conhecimento,
mas sinto-me agora sem debilidades…»
Suspeitava, assim, que alguma coisa extraordinária acontecera. Ouvia falar de uma
ressurreição, de um regresso da morte, mas nada sabia sobre esse portento. Vinha e ia
gente, durante aquelas semanas, de Jerusalém para Betânia, uma correria que somente a
curiosidade permitia entender. Os judeus da cidade, mais politizados, com obrigações
urbanas, instruções mais refinadas e cultura, olhavam para Lázaro com os mesmos
olhos cheios de espanto, um espanto quase rural, como qualquer aldeão das margens do
rio, todos procuravam passar por Betânia, a propósito de qualquer tarefa.
- Esta gente olha para mim coo se eu fosse de outro mundo. – Retorquiu Lázaro a um
companheiro, que aludira a como ele estava famoso, mas que se remeteu, depois, a um
silêncio mais comprometedor que os olhares.
Continuava, no entanto, a pensar que toda aquela popularidade que de repente
alcançara, não seria mais do que o efeito do seu relacionamento, que sentia agora ser
mais profundo, inexplicavelmente intenso, com Jesus Cristo.
- Diz-se, em Jerusalém, por entre dentes, que os principais dos sacerdotes querem
exercer represálias sobre ti, e também contra esse a que vocês chamam Mestre –
Segredou-lhe um vizinho, colega de adolescência da cerimónia de profissão de fé
chamada «Bar-Mitsva».
- Parece que o acusam de uma situação absurda como é a de estar vivo… – Voltaram-
se e quem tinha falado era judeu gordo, de gestos lentos e de olhar irónico, com um ar
pegajoso que eles não conheciam de Betânia, nem as restantes pessoas que estavam com
ele.
Aquelas palavras foram ditas com um tom de intriga.
E Lázaro não conseguia atinar por que razão se dizia tudo isto.
- Fala-se até de morte, de tirar a vida a alguém, há pessoas a atrapalhar os desígnios
dos responsáveis eclesiásticos – escutou Lázaro, mais do que uma vez, ao passar junto à
sinagoga, num fim de tarde em que as sombras já não tinham as formas definidas.
Assim corriam os dias do nosso amigo Lázaro, um cadáver que estivera em
decomposição, restaurado, revivificado, testemunho vivo de um milagre do qual podiam
participar, os crentes, os cépticos, os cultos e os incultos.
Os que sabiam do Poder de Deus e os que teimavam em ver tudo isso como um jogo de
política religiosa. Bastava que o vissem ao longe, que pousassem nele os olhos. Havia
até um certo arrepio quando alguns mais sensíveis passavam muito perto.

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- Que esplêndido sinal divino que presenciamos! – Exclamara mesmo uma piedosa
mulher, por certo uma crente, batendo com a mão direita no peito.
- Esse Jesus que o ressuscitou, deu provas de domínio sobre o mundo dos espíritos,
ao fazer voltar a alma de Lázaro – comentou, com assombro, um amigo da família,
habitante da cidade.
- E então, também não demonstrou ter domínio sobre a matéria? – Contestou outro –
Basta que olhemos para o corpo de Lázaro, é como se nada de anormal tivesse
passado por esse corpo – conclui o mesmo, que era um reputado estudante das
Escrituras.
Era disso que os principais, e, supostamente, mais argutos intérpretes da Torah, tinham
pavor. Um medo que passava nas conversas religioso-políticas, que ia longe, em todos
aqueles que foram testemunhas, mas hostis.
Havia até quem ultrapassasse as próprias fronteiras da nação, na sua dialéctica, quem
fosse até à suposição do que poderia acontecer, se os romanos soubessem.
A falta de uma explicação racional e humana para a magnitude desse milagre, que fora
dado a alguns deles presenciar, era um dos elementos que constituíam o medo, quiçá a
inveja por serem apenas testemunhas e não amigos íntimos do Mestre, e, também, a
impotência, porque não tinham meios para anular com desmentidos o que os seus
próprios olhos viram. A ressurreição do nosso amigo Lázaro deixara o sobrenatural
inconsumível pela razão e inatingível pelo espírito limitado dos homens, e passara para
o domínio do facto, da realidade que tinha substâncias, que se podia tocar.
Lázaro podia ser tocado, ainda que poucos tivessem coragem para o fazer.
Abordavam-no pelo lado do olhar e do falatório.
A própria atmosfera do jantar de sábado, reflectia esse desconforto dos habitantes de
Betânia.
- No sábado jantamos com Lázaro – era o que alguns judeus vinham dizendo.
Estava a ser uma notícia muito espalhada, que não disfarçava suficientemente com
naturalidade o sentimento de assombro, de respeito, mesmo de temor, apesar de terem já
passado muitas semanas sobre o milagre da ressurreição.
Esse jantar recuava o tempo, viam-se, de novo, em frente a um sepulcro com uma
enorme pedra, e diante do corpo repentino do amigo Lázaro, com vida, enfaixado, mas
com vida, de pés atados, mas de pé.
Sobretudo, não deixavam de ver-se perante aquele nazareno, Jesus, para o qual a morte
jamais foi imodificável.

J. T. Parreira

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