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SOCIOLOGIA - PROBLEMAS E PRATICAS No, 3091, 1711 A memoria familiar Do individual ao colectivo* Francoise Zonabend** Antes de "se" scr, ¢-se “filho" ou “filha” de X ou Y: nasce-se numa “familia”, é-se marcado por um ‘nome de familia" antes de ser socialmente quem quer que se seja. Desde logo, a meméria original do individuo é feita desta inscrigdo numa "gencalogia’, Em qualquer lugar, as primeiras palavras que uma crianca apren- de so "papd’e ’mama’, palavras carregadas de sentido que designam o seu pai e@ asua mae; s6 depois surgem os outros vocabulos do parentesco. Desde entao, o mundo divide-se entre os "seus" e os "outros" que algures vivem também numa familia de que sio membros. Assim, a meméria individual vai estruturar-se a partir desta experiéncia naliva. Mas que sabemos nds destas formas de estru- turagio? Como se lorja ¢ s¢ transmite esta meméria, que eixos espaciais toma, que simbolos coneretos ou abstractos utiliza? Ora os universos genealogicos nas diferentes sociedades definem sempre os mesmos territdrios, fixam-se nos mesmos lugares, organizam-se em torno dos mesmos pélos, de tal modo que terminologias, antroponimias ¢ historiografias vao constituir os pedes com os quais vai jogar a meméria individual, 05 pontas a partir dos quais o individuo vai comstruir o “seu” tempo. Queriamos aqui abordar um aspecto espectfico da meméria individual: aquele que diz respeito a familia, ao parentesco, numa palavra, a essa memoria a que chamamos familiar onde esto armazenados os nomes ¢ apelidos dos diferentes parentes que qualquer individuo reconhece, assim come as diversas narrativas, mais ou menas fabulosas, que a propdsito daqueles se ransmitem. Nao vos digo nada de novo ao afirmar que 0 ctndlogo trabalha sobre e com ameméria dos seus interlocutores. Que grande parte do scu trabatho de terreno consiste em escular, em suscitar, em provocar rememoragées, em multiplicar essas “lembrangas” sobre as quais iré depois trabalhar, Ora esta forma de proceder, vémo-lo bem, coloca problemas metodolégicos fundamentais sobre os quais 0s investigadores nao tém reflectido. De facto, este tipo de testemunhos te texto retoma uma conferéncia dada pela professora F. Zonabend em Fevercira de 1989 no Ambito do Seminario *Pamitia e Mcios Sociais" do GRESF (Grupo de Estudos de Sociologia da Famiia/CIES. Traducao de Catarina Alves Costa e Joao Vasconcelos. Laboratoire d’Anthropologi Sociale/Ecole des Hautes Eiudes en Sciences Sociales, 180 Frangoise Zonabend parte de lembrangas retransmitidas ou vividas, lidas ou escutadas, de modo que 0 etndlogo deve incessantemente interrogar-se de forma a perceber se esté a registar o escrito falado ou antes 0 imemorial aprendido. Esta questao, que se levanta a propésito da meméria familiar, é ainda mais pertinente nas nossas sociedades por estar na moda a genealogia e a busca dos antepassados. De facto, em Franga, a genealogia constitui uma forma de lazer & qual se dedica grande ntimero dos nossos contempordneos, Ela é, por isso, submetida aum uso social diferente do uso cientilico que dela fazemos, 0 que pode causar uma certa confusdo, Para mais, a elaboragao do esquema genealégico, fim reconhecido da relagao de inquirigao que o etndlogo procura estabelecer com os seus interlocutores, vai, vé-lo-emos adiante, ao encontro de tudo 0 que sabemos sobre as formas e usos que 0 parentesco assume nas nossas sociedades. Por outro lado, estas precaugdes nao sao suficientes: o etndlogo deve também ter em conta a sua propria presenca no grupo, a sua incursao numa realidade social que, sem ele o querer, é afectada pela sua presenga. Cada sociedade tem a sua forma propria de pensar 0 Outro, aquele que a vem interrogar, perturba-la. Desde logo, entre 0 etndlogo e os seus interlocu- tores vio desenrolar-se uma série de processos de identificagao e de distingao onde a transparéncia tera de vencer a opacidade. Trata-se de ter em conta este conjunto complexo de relagdes que se dao entre observadores ¢ observados. Por outras palavras, trata-se se estar atento quilo a que G. Devereux chama “lagar de perturbagao"!, que constitui a situagao de terreno, lugar onde se produz uma interaccdo recfproca de enunciados; ¢ nos dialogos que se instau- ram, trata-se sem divida de estar atento ao contetido concreto dos enunciados, mas também aos reflexos que estes provocam tanto no inconscicnte do investi- gador como no dos seus interlocutores. Estas reflexdes sobre o método parecem afastar-nos da proposta anunciada - a saber, os territérios da memoria familiar - mas pareceu-me importante fazer-lhes alusdo, quanto mais no scja para salientar que se trata de um assunto de dificil abordagem em etnologia ¢ em sociedades como as nossas, sobretudo quando o investigidor pertence a cultura que estuda. Sabemos que se coloca entdo o problema da distanciagdo em relagéo ao objecto de estudo que de "familiar" deve passar a"estranho" parao investigador. Admitiremos que este alastamento se revela particularmente dificil em matéria de parentesco. Porque as situagdes que o etndlogo deve estudar sao prati mente idénticas 4quelas com as quais ele é confrontado quotidianamente na sua vivéncia pessoal ¢ nas quais cst implicado de forma recorrente. Ele tem entao que aceder a uma nova compreensao de um conjunto de relagdes sociais que Ihe parecem falar por si. A dificuldade é tanto maior quanto a intensa “familiaridade” do objecto “familia” se soma a profunda interiorizagdo dos discursos que lhe cstao ligados. “Falar de famflia" com qualquer interlocutor consiste sempre em abordar um dominio intimo, escondido, secreto, que toca a sexualidade, a afectividade, por vezes a moral social. Daf, se qucremos superar estas dificuldades, a lenta preparacao da investigagao e a longa duragdo i i { A memoria familiar 181 da relagdo que se instaura entre observadores ¢ observados. Aqui, tal como noutras situagdes, nado devemos economizar tempo. E alids o tempo, ou antes uma multiplicidade de tempos que 0 etndlogo vai descobrir desde que queira trabalhar sobre a memoria parental através da reconstituigdo de genealogias. Antes de mais, ele confronta-sc com 0 espirito da época, com a moda que transformou a busca dos antepassados e a reconstituigao genealogica numa forma de lazer 4 qual se dedica grande namero dos nossos contemporneos. Este gosto dove relacionar-se, sem diivida, com a nostalgia que manifestam as nossas sociedades urbanas ¢ em mutagao por tudo o que diz respeito ao passado, ao antigamente. Cagada aos antepassados remotos, busca dos lugares de ancoragem da linha de descendéncia, a gencalogia participa, sem diwvida, desse movimento de retorno as fontes, &s origens, em busca de uma identidade regional ou social esquecida. Mas ha mais, porquanto através da sua genealogia 0 individuo nao se procura enquanto tal, mas enquanto produto de uma descendéncia. Ele sabe-se membro de uma linha, destinatario de um destino inscrito ao longo de geragées, portador de um nome repetido de parente em parente, depositario de uma *arvore’ genealégica com toda uma terminologia aferente - raiz, tronco, ramo, botdo - bem evocativa de procriactio, de reprodugao. Nesse diagrama apagam- se os caos da histéria, suprime-sc 0 papel da comunidade, atenua-se a forga da singularidade. A genealogia, cssa visita ao pais dos mortos familiares, constitui um dos sinais do encerramento sobre a célula familiar, dessa clausura no universo dos parentes ancestrais que constatamos hoje em dia em muitas outras circunstincias. Mas voltemos a apresentacéo da memoria dita familiar. Em sociedades como as nossas, esta memoria toma, fundamentalmente. duas formas. Ela apresenta 0 parentesco sob a forma genealégica, ou seja, enumera os diferentes individuos, vivos ou mortos, que constituem a descen- déncia, Esta enumeragio é sempre feita dentro de uma ordem ¢ segundo cédigos culturalmente definidos. Em Franca, por exemplo, as genealogias ‘espontneas, orais, tomam quase sempre uma forma centripeta: 0 interlocutor parte de si mesmo, depois desdobra as suas ascendéncias remontando antes de mais a linha patcrna, depois 4 materna em linha directa, depois enumera a linha do irmao do pai, depois a do irmao do pai, etc. Uma vez esgotado o lado paterno, ele passa ao lado materno seguinde © mesmo esquema, Porém, na Irlanda”, existem certos grupos onde o interlocuter descreve a sua genealogia partindo, nao dele, mas do mais antigo antepassado conhecido € desce de gcracdo em geragao de modo a chegar até si, A organizagio social dos grupos considcrados explica perfeitamente estes diferentes modos de "apresentar” a gencalogia. Mas a meméria familiar pode tomar uma outra forma: a de uma série de narrativas transmitidas de geragao em geragao ¢ que constituem um verdadeiro legendario familiar. Iremos abordé-la um pouco mais a frente. 182 Frangoise Zonabend Destas premissas deriva uma série de questées: como se constroi o saber genealégico? Como se transmite? Que relacao tem este saber com a memoria e que lugar devemos atribuir ao oral e ao escrito? Nao nos esquecamos, dissemo-lo ja, que actualmente esta na moda a busca dos antepassados, a reconstituigdo de gencalogias através de documentos de arquivo, de modo que um grande ntimero dos nossos interlocutores no terreno possuem genealogias pré-estabelecidas que apresentam em resposta as ques- técs do etndlogo. Mas, por outro lado, aqueles dos nossos interlocutorcs que nos parecem referir as suas ascendéncias a partir apenas das suas lembrancas, no terao tido, em diversos momentos da vida, recurso a escrita? Na estruturagao da meméria genealdgica existe entaéo uma conexao entre © oral e 0 escrito, e estas duas formas de conhecimento mantém entre elas pontos de contacto, mas também pontos de ruptura. De facto, as caracteristicas que esta escrita das genealogias apresenta fazem pensar que ela sc inscreve no trabalho da memoria: escrever a hist6ria das linhas de descehdéncia, das origens, numa palayra dos ascendentes nao é algo de neutro. Trata-se de uma operacao que se inscreve no trabalho do luto, é a morte dos antepassados que se relembra. Esta operagao consiste também cm tomar © passado como algo volvido ¢ separado da meméria colectiva, visto que € a nossa propria historia que escrevemos.., Mas, a0 mesmo tempo, cada um desenterra narrativas total- mente ignoradas pela meméria travando, de facto, uma luta contra a maré da memoria, visto que a tarefa da memOria consiste em apagar, safar, esquecer: esquecer as relagdes de parentesco para que novas aliangas matrimoniais se possam contrair; esquecer uma alianga para renovar um parentesco. De modo que nem tudo ficard escrito. De facto, se estudarmos alguns diagramas realiza- dos por genealogistas amadores, constatamos que nestes aparecem, quasce sempre, Os mesmos territérios de memoria. Soja o amador homem ou mulher, a linha seguida é, na maior parte das vezes, uma linha agndtica fazendo-se remontar as descendéncias do lado dos homens seguindo o patronimio paterno. As mulheres - maes, filhas ov irmas - sdo tratadas como casos particulares. Embora sejam referidas, é pouco [re- quente que se cnumerem os seus ascendentes ou descendentes, a nao ser que otracado da linha patronimica se perca demasiado cedo ou se considcre menos prestigioso. Nesse caso, uma av6 pode permitir a passagem para uma outra linha masculina. Vemos por aqui que a mulher &, no nosso sistema de paren- tesco de descendéncia indiferenciada, um operador que permite passar de uma linha a outra, e na escolha destas linhas masculinas reflecte-se a acentuagao patrilinear do nosso sistema. De resto, quer a genealogia scjaes ou oral, a meméria vai desempenhar 9 scu papel de filtro: filtro daquilo que se vai armazenar ou esquecer, filtro daquilo que sc vai transmitir, que se vai tornar tradigdo familiar. Por outras palavras, no espago da genealogia o trabalho da meméria é fundamental, Esta constatagao de evidéncia levanta varias quest6es: como € que, por excmplo, se transmite esta memoria gencaldgica? O que é gue se transmile, por quem é A meméria familiar 183 fcita a transmissao? Como se efectua a aprendizagem desta memoria e, sobre- tudo, como se transforma ela de geragao em geracao, j4 que, sabemo-lo, o saber genealogico sofre constantemente alteragdcs? De facto, é esta andlise do trabalho da meméria que é necessirio empreender. Assim, de que modo se dizem, se narram as genealogias consoante se é jovem ou velho, homem ou mulher? Perfilha-se entao o mesmo saber? Além disso, hé que contar em cada familia, ou pelo menos em cada comunidade, com aqueles que poderiamos denominar, de acordo com G. Dumézil, "os adminis- tradores da meméria", pessoas que sabem aquilo que deve ser transmitido, que detém o segredo ¢ o depésito daquilo que ha que confiar 4 meméria. S40 especialistas de um tipo particular: uma espécie de mnemotécnicos que conhe- cem nao apenas a sua gencalogia, mas muitas vezes as de uma aldcia inteira. Poderemos avangar um pouco neste dominio e mostrar brevemente, atra- vés de alguns exemplos, de que modo € que as genealogias permitem ler 0 trabalho de uma certa memoria social? A partir do momento em que tratamos estas fontes orais como um texto, ou seja, quando escutamos o interlocutor revelar o seu universo familiar segundo a sua prépria pratica, surge um certo ntimero de tragos singulares. Apereebemo-nos entao, descobrindo as linhas que a genealogia segue, que existe sempre uma diferenga entre o lado paterno ¢ 0 lado materno, Um & melhor conhecido do que o outro, tem um maior nimero de parentes, listados com mais exactidéo. Do mesmo modo, em cada um destes Jados, certas linhas de descendéncia sao retidas, outras esquecidas. Do lado ou linha que retém, que conhece, o interlocutor vai mencionar todos os parentes ¢ detalhar com exactiddo a sua origemc o scu percurso; do outro lado, que conscientemente ou nao esqueceu, as linhas de descendéncia apresentam lacunas sistematicas ¢ a informagao escasseia. De facto, cada um utiliza a genealogia a sua mancira, manipula a sua identidade. A meméria genealégica € proporcional ao valor dado a cada uma das linhas de origem, ¢ pelo desbaste nas suas ascendéncias cada um opera cortes sociologicamente significativos. Estas diferengas de mem6ria no se explicam somente por factores demograficos ou geograficos: elas respondem a normas, a préticas sociais especificas de cada formagao social estudada, Da centena de genealogias recolhidas numa investigacdo levada a cabo numa aldeia de Bourgogne, apenas duas ou trés oferecem linhas de descendén- cia harmoniosamente desenvolvidas de um e do outro lado, todas as outre surgem amputadas e desequilibradas. Nesta regio, apesar dos vastos mov mentos migratérios, a comunidade local detém um lugar importante ¢ a escolha entre linhas desaparecidlas e descendéncias memorizadas opera-se em funcao da implantagao espacial de cada uma delas. As pessoas esforgam-se, aqu através da genealogia, por provar que so de facto membros do grupo local’ Mas ha outros tragos da realidade social que podem estar na origem destas amnésias genealégicas. Assim, Robin Fox ilustra, na sua monografia sobre a ilha irlandesa de Tory, outro tipo de arranjos: aqui, os cortes na rede de 184 Francoise Zonabend cognaticos operam, ao que parece, em fungao do acesso a posse das parcelas de terra cultivavel*, Na itha de Karpathos 0s bens so transmitidos bilinearmen- te - em cada familia a filha mais velha herda os bens da sua av6 matcrna ¢ 0 filho mais velho os do avé paterno - sendo gue as linhas memorizadas sao evidentcmente as dos primogénitos paternos ¢ maternos”. Sao, alias, estes mesmes arranjos, sejam eles sociais, palrimoniais ou ma- trimoniais, que intervém para decidir quem esta no topo da meméria gencald- gica. Na grande maioria das socicdades ocidentais, a meméria precisa da genealogia nao remonta mais do que duas ou trés geragécs para cima de ego, a partir daf torna-se imprecisa, fluida. Contudo, cada um destes dois tipos de memoria, um preciso, o outro vago, descmpenha um papel fundamental, Apercebemo-nos efectivamente deste facto quando recolhemos genealo- gias orais. Na nossa sociedade o parentesco usual de um individuo, aquele ao qual cle se refere espontaneamente no curso da vida social, centra-se sobre cle mesmo e € constituido pelos seus consanguincos nomeados - primos germanos, tivs, lias, ete. - e pelos seus aliados no caso de ser casado. Estas duas esferas, a da afinidade e a da consanguinidade, estao estreitamente ligadas néo tendo nem uma nem outa limites claros, frontciras precisas. Prolongam-s¢ numa espécie de halo onde gravitam individuos ndo nomeados por termos de parentesco ¢ que, contudo, nao sao considerados estranhos. Daj, alids, a estranka impressio quando “falamos de familia” com interlocutores, quando tragamos com eles a sua gencalogia, de nunca a termos corclufdo. Certamente eles sabom bem onde termina "a familia”, Sabem bem de quem “sao parentes” e de quem "nao 0 sao", e estabelecem uma nitida dilerenga entre os parentes nomeados como tais ¢ aqueles que ndo nomeados por um lermo de parentesco € que, por isso, nao fazcm propriamente parte da familia. Portanto, acham natural ver cssas pessoas, esses ndo-nomes, figurarem na sua drvore genealégica. Este circulo extremo do parentesco € entao constituido, a um tempo, por consanguineos tao afastados que deixaram de ser tratados pelo termo "primo", mas com os quais aconsciéncia de parentesco se liga a um nome de lugar ou ao uso de um mesmo patriménio, e por consanguineos de aliados de consanguineos ou por aliados de consanguineos de aliados, sobrinhos ou sobrinhas de uma tia ou de um tio por alianga, irmos ou primos de cunhados ou de cunhadas. Com estas pessoas, com estes nao-nomeados que nao sc frequentam, a quem nao se visita, cm relagao aos quais nao existe qualquer obrigagao, mas a quem "se fala” em virtude do facto de se estar apesar de tudo “em familia’, com quem "se conversa quase na qualidade de parente" em virtude do facto de se estar apesar de tudo entre “primos”, com estas pessoas nado nos sentimos estranhos, “conhecento-nos", estamos praticamente “entre nds", Ora em pequenas sociedades rurais, tal como, parece-nos, na aristocracia ou na alta burguesia francesa®, 6 entre esses membros aparentados de maneira imprecisa, esses consanguineos afastados ou esses consanguineas de aliados de consanguincos, conjunto de individuos que a meméria evoca de forma vaga, € A memoria lamiliar 185 nesse circulo da mais longinqua familiaridade que se vao contrair um grande namero de aliangas. E assim, mostrémo-lo nos nossos trabalhos sobre Minot, que entre parcntclas com 0 mesmo estatuto social as aliangas se "reencadeiam", se "renovam”, que as linhas de descendéncia se ligam continuamente entre si por intermédio dos casamentos dos scus membros’. Através destcs renovamen- tos de aliangas esclarecem-se ¢ explicam-se essas genealogias que 0s no’ interlocutores continuamente enriquecem ¢ essas duas memorias com as quais jogam constantemente. Os néo-parentes, as pessoas conhecidas que se deseja ver figurar nas genealogias, constituem de certo modo uma reserva de cdnjuges potenciais que, de forma explicita, séo considerados conjuges preferenciais. Mas constituem também uma reserva de parentes potenciais j4 que, uma vez contrafda a alianga, esses "conhecidos" so conducidos da periferia da genea- logia para o seu miolo ¢ tornam-se entdo parentes nomeados. Assim, as praticas matrimoniais permitem comprecnder 0 modo como estas formagées sociais pensam a sua genealogia, utilizam a sua parentela e administram a sua meméria. Noutros lugares, a memoria genealogica vai basear-se em regras diferentes. Na Irlanda, em Tory, onde a terra pertence ao grupo de descendéncia e nao a cada individuo particular, a memoria apical € precisa e profunda: os velhos da ilha percorrem, semesforgo c sem recurso a escrita, sete geragbes ascendentes. Em Bali, C. ¢ H. Geertz” contrastam da seguinte forma os dois grupos que compéem a sociedade balinesa: h4 aqucles a quem poderfamos chamar as pessoas comuns, que sao amnésicas, € os outros, os aristocratas, que dao prova de uma vasta memoria genealégica. Os Geertz demonstram que estes dois tipos de meméria conotam duas formas de cndogamia: a primeira, a das pessoas comuns, é dita de "localidade” ¢ impde que os lagos de parentesco que unem os membros do grupo local sejam rapidamente esquecidos para que se possam contrair, a todo o momento, casamentos no scio desse mesmo grupo. Os aristocratas, que se apoiam no parentesco para confirmar o scu poder, desen- volvem, inversamente, uma vasta memoria geneal6gica, praticando uma exoga- mia de localidade. Deste modo, as memérias familiares, verdadeiras cronicas genealdgicas, constiluem a utensilagem mental que 0 individuo € 0 grupo utilizam para tecer o seu proprio tempo. A genealogia é, com efeito, um discurso sobre o tempo. Qualquer pessoa se encontra inscrita numa rede genealdgica organizada espa- cial e temporalmente onde se misturam 0 passado ¢ 0 presente, onde se esboga o futuro. Antes de mais é-se pai, filho, esposo, irmao deste ou daquele individuo designado com um nome, ¢ todas estas denominagoes parentais reflectem uma posigdo numa constelagao social: a genealogia situa, a terminologia suspende cada destino num lugar onde 0 tempo estd como que imobilizado. Mas é-se sucessivamente filho, pai, avé, 0 ciclo roda sobre si. A genealogia estimula de crta mancira uma oscilagdo reversivel do tempo na qual anterioridade ¢ posterioridade sao efectivamente confundidas. 0s 186 Frangoise Zonabend ssa reversibilidade do tempo, essa oscilagdo temporal que se descobre na genealogia através da terminologia de parentesco, surge claramente a partir das formas de nomeagao ¢ da sua transmissao de geragdo em geracao. A genealogia é também uma suc: de nomes proprios. Os antropéni- mos, que constituem outros tantos lugares de meméria uma vez que classificam cada individuo numa linha de descendéncia, inscrevem-no num tempo ¢ num espago conhecidos e impdem-lhe uma identidade que ele nao escotheu. Nao podemos deixar de nos interrogar sobre a natureza, o sentido ¢ a fungao desses termos que outros nos outorgam ¢ que por isso nos s40 préprios. Se nos colocamos nesta perspectiva, se desejamas compreender como joga oconjunto de nomes atribufdos a cada individuo, entao precisamos de conhecer © modo como cada sociedade, cada grupo, elaborou as suas préprias normas de atribuicdo dos antropénimos. E indispensdvel comprecnder os principios segundo os quais se classificam, ao nomeé-los, os individuos semelhantes ¢ diferentes, quanto mais nao seja pelo sexo, pela pertenca a uma familia ou a uma geracdo. Porque na origem é disso mesmo que se trata com os nomes. C. Lévi-Strauss ensina-lo num dos seus capitulos de La pensée sauvage: "nunca nomeamos, classificamos 0 outro (...) ou classificamo-nos a nds proprios"; "(...) 0 nome proprio encontra-se sempre do lado da classificacao, consignando ao individu uma posigéo num sistema que comporta varias dimensoes, confir- mando a sua pertenga a uma classe pré-estabclecida: um grupo social num sistema de grupos, um estatuto natal num sistema de estatutos"”. Estas reflexdes sobre os paradoxos da nomeagao individual conduziram os etndlogos a interrogarem-se, por exempio, sobre as regras que presidem a escolha dos nomes que sdo atribuidos a cada pessoa, tentando por essa via identificar as linhas de forga que sé articulam em torno de todos esses antro- ponimos. Nas nossas sociedades, cada pessoa tem um patronimio, um ou varios nomes préprios. Além disso, pode ter também alcunhas de linhagem, de bairro, até de freguesia, e mesmo um cognome individual. Todas estas denomina funcionam como classificadores, confirmande a pertenga do sujeito nomeado. a uma classe "pré-estabelecida’: grupo familiar ou sexual, de linhagem ou de freguesia, local ou profissional; elas assinalam também as tendéncias dominan- tes que ordenam o sistema social: a énfase patrilinear nas regras que governam a transmissao do patronimio, a importancia do parentesco espiritual e do estatuto 4 nascenga naquelas que presidem a escolha do nome préprio, a residéncia, a pertenga local, 0 estatuto social através da atribuicdo de alcunhas, etc... O individuo surge de facto como o suporte de maltiplas classificagdes que vém enriquecer, ao longo da sua vida, a sua definicao social. Consideremos alguns exemplos, Na maioria das sociedades ocidentais 0 recém-nascido recebe 4 nascenga um nome de familia. Trata-se, na maior parte das vezes, de um patronimio visto transmitir-se do pai para o filho e para a filha, ou do pai da mac em caso de ilegitimidade. Todavia, nesta tltima eventualidade, acontecia, A meméria familiar 187 em certas formagées sociais como a Grécia ou a Normandia, que 0 nome proprio da mac era atribuido a crianga como nome de familia: tinhamos entao um matronimio. Através da observagao dos nomes nas linhagens aristocraticas da Idade Média europeia, sabemos, também, que 0 matronimio assinala de certo modo 0 acontecimento hist6rico ¢ familiar (auséncia de um herdeiro masculino, outorgamento da coroa a uma mulher) que pode sobrevir numa linha de descendéncia, ao passo que patronimio permanece como indicagao daquilo que néo muda ao longo de uma descendéncia!!. O nome de familia manifesta bem a énfase patrilinear de que séo portadores os sistemas de parentesco europeus de descendéncia bilateral. A regra patrilinear de trans- miso $6 6 interrompida por uma geracdo, no caso de habitos peculiares marcados ou, 6 que vai dar ao mesmo, em circunstancias excepcionais, Nas nossas sociedadcs, a mulher continua a scr aqucla através de quem chega a desordem ou a alteracdo: 0 matronimio € disso sinal manifesto. 0 nome de famflia qualquer que seja, surge como “classificador da linha de descendén- cia”: inscreve imediatamente a crianga no scio de uma descendéncia, Em Franga, a crianga nascida de pai e mae desconhecidos nao recebe apelido, mas apenas dois nomes proprios dos quais 0 tiltimo vird a ser 0 scu nome de familia. Onome préprio ¢ atribufdo ao recém-nascido pelos seus pais ou padrinhos. Esta atribuigao nao é feita ao acaso € 0 doador, seja cle quem for, emite uma mensagem de ordem familiar c/ou social. Com cfeito, esse doador pode esco- Iher 0 nome prdprio entre os nomes usados pelos membros das linhas paterna ou materna de que a crianga procede. £ de uso relativamente corrente, em Franca pelo menos, atribuir ao filho mais velho o nome proprio do avé paterno, filha mais velha o da av6 materna, ao segundo filho e a segunda filha os nomes proprios do avé materno ¢ da avé patcrna, respectivamente; os outros filhos recebem os nomes de colaterais escolhidos alternadamente numa ou noutra linha, Mas existem muitas outras normas de transmissdo: a rapariga e 0 rapaz mais velhos podem reccber os nomes préprios da mae e do pai; o padrinho ¢ a madrinha - escolhidos entre os parcntes - podem transmitir os seus proprios nomes aos/as afilhados/as. Qualquer que seja a pratica adoptada, a atribuigao dos nomes préprios dentro de uma familia obedece sempre a regras precisas que evidenciam um certo niimero de tracos da realidade social. E assim que, escolhido alternadamente numa linha ou-noutra, 0 nome proprio, tomado ao nivel de um grupo de irmaos, permite recuperar a bilateralidade caracteristica dos sistemas de parentesco curopeus ¢ atenuar 3 énfase patrilinear do apelido que identifica o individuo com uma tinica linha! Se olharmos agora nao para o grupo mas para o individuo, vemos que o nome proprio funciona como uma verdadeira marca familiar. Um ou dois nomes préprios, perpetuados de geragdo em geragao no interior das mesmas linhas de descendéncia, constituem para certas familias um emblema de per- tenga, um brasio de reconhecimento. Usar esse nome é desde logo estar inserido no seio da comunidade familiar: a nomeagao é antes de mais um rito de agregacdo. Estes nomes assinalam também uma posigao dentro de uma 188 Frangoise Zonabend gencalogia; gracas a eles descobrimos os av6s ¢ 0s netos, distinguimos os mais velhos dos mais novos. As posigdes genealdgicas podem estar associados bens e saberes simbélicos ou materiais, que os novos nomeados passarge automati- camente a possuir. De modo que dar a um recém-nascido o nome de um parente nao € apenas cumprir um acto de piedade filial, € predestinar a crianga a perpectuar 0 seu epdnimo e, além disso, a prolongar uma linha. As normas de atribuigao de nomes préprios, quaisquer que sejam, dao sempre origem a ciclos a repeticdes dos mesmos nomes, a Lransmiss6cs continuas. Os nomes préprios perpetuam-se ao longo das linhas de descendéncia ¢ favorecem a inscrgao familiar dos novos membros. Esse nome recebido e constantemente retomado, esta imbuido do espirito de todos os parentes mortos que 0 usaram. Assim, estes nomes encarregam-se de unir Os vivos € os mortos do grupo € constituem uma forma de sobrevivéncia de uns através dos outros. Tudo se passa como se no intcrior do grupo familiar as perdas humanas reais fossem perpetuamente compensadas através dos novos membros portadores dos nomes antigos. Mas ‘i memoria familiar pode seguir outros caminhos. A gencalogia ndo é 0 seu tinico suporte: um espago de vida, "papéis de familia’, ritos domésticos, oferecem outras tantas formas possiveis da sua inscrigdo, que importa explorar detalhadamente. Se atentarmos na unidade de residéncia que agrupa habitualmente o par conjugal ¢ os seus filhos solteiros, vemos que a sua Vida intima ¢ doméstica se inscreve num espaco, num lugar onde se desenrola um conjunto de comporta- mentos quase ritualizados que definem a especilicidade de cada unidade. Além de fornecer indicagées sobre a categoria social, 0 meio cultural, a origem regional do grupo que nele reside, este espaco constitui, ainda hoje, um lugar da mem6ria familiar. Os méveis ai dispostos, 05 ornamentos com que sao decorades, os varios bibe/ots que afse encontram, todos estes objectos possuem uma hist6ria passivel de ser esclarecida ¢ narrada vezes sem conta. Cada um tem um sentido que familiarmente sc sabe decifrar, cada um tem uma histéria que se sabe contar. Contabilidade minuciosa dos bens recebidos, partilhados, transmitidos, Memorizagdo tangivel da gencalogia através destes objectos, destes méveis cuja origem, histéria ¢ destino se conhecem. E subitamente, nestas habitagdes, vemos dispostos 0 papel e o lugar das relages de parentesco, subitamente lemos a perenidade da familia. Nestes espagos ordenados, incum- bidos de representar os valores familiares, (udo testemunha as diferentes etapas da constituigéo da familia, durante uma geracdo, a0 longo das geracées!* Sabemos além disso que enquanto algumas familias podem acumular, partithar, repartir, outras ndo © podem fazer. Sabemos também que a vida moderna impoe cada vez mais 0 abandono das casas familiares. As geragoes ja nao se sucedem num mesmo lugar, os irmaos dispersam-se e¢, mesmo no interior das familias, os divorcios ¢ os segundos casamentos implicam mudancas de residéncia, Apesar de tudo isto, cada familia continua a possuir um conjunto de recordacées - objectos, papéis "de familia’, fotografias - que consolidam a sua memdéria. As fotografias, vieram ocupar um lugar equivalente ao dos A memoria familiar 189 emblemas familiares tradicionais, substituindo-os por vezes. Retratos dos avés e das criangas, fotografias das solenidades ¢ festividades que pontuam o desenrolar da vida familiar: estas fotografias, expostas nas paredes ou discre- tamente pousadas sobre os méveis, ou ainda arranjadas numa espécie de altar comemorativo, ou cuidadosamente guardadas no album de familia, t¢m por funcao “entesourar a heranca familiar’. Distribuidas, trocadas entre parentes, as fotografias participam na manu- tencao das relagoes familiares. Contempladas, comentadas “em familia’, clas contribuem, tal como os papéis de familia ou os objectos herdados, para a insergdo dos recém-chegados, para a consolidagdo da meméria do grupo. Os habitos sociais a que a fotografia deu lugar constituem assim verdadeiros ritos de memorizagdo ¢ de integragao na familia. Existem outros comportamentos que se enquadram neste espago da inti- midade familiar e que funcionam também como forgas de perpetuagio e de reprodugao do grupo. Sao os ritos de convivialidade (refeigdes tomadas em comum), de sociabilidade (serdo, oracéo colectiva) ou os comportamentos (abragos ou apertos de mao entre parentes) que diferem de uma classe social a outra, de uma regido, por vezes de uma familia a outra. A participagao nestes costumes quase ritualizados reforga a unidade do grupo familiar. Praticé-los é com efeito instituir uma diferenga entre aqueles que os conhecem ¢ aqueles que os ignoram, entre o estranho que nao os usa ¢ os membros do grupo que a eles se conformam. Além disso, estes costumes oferecem a possibilidade de volar a contactar com um outro tempo. Esse tempo dos antepassados que cumpriam os mesmos gestos, que se conformavam aos mesmos habitos. Assim, no espaco familiar, cada dia se renova uma historia ja vivida ¢ que deve prosseguir clernamente. Ceder a estes habitos da vida "de familia” é entao aderir a uma historia propria, a um tempo fora do tempo, ¢ através deles estar unido as geragdes passadas e futuras. Este espago intimo onde a familia vive, estes codigos de comportamen- to aos quais se sujeita, inscrevem-na num tempo familiar comum. Pela enumerag’o dos lugares e dos territérios da memoria familiar ou individual, apercebemo-nos de que esta acaba por revelar as formas mais perenes da vida social, logo, aspectos do colectivo. Afinal, todos os processos de memorizagao que tentamos explicar, 0 tra- balho da meméria que procuramos apreender através de genealogias, denomi- nagdes ou terminologias, traduzem na realidade a ideologia profunda das nossas sociedades: uma luta sempre recomegada contra a morte Notas 1 G, Devereux. De langoisse d la méthode dans les sciences du comportement. Pats, Flammarion, 1980, p. 435, 190 Frangoise Zonabend R. Fox, The Tory Islanders. A people of the Celtic Fringe. Cambridge. Cambridge University Press. 197% 3. F. Zonabend, La mémoire longue, Paris. P.U.F.. 1980, R Fox. op. cit, 5 B. Vernier. "La circulation des biens, de la main-d’oeuvre et des prénoms a Karpathos”. Actes de la Recherche en Sciences sociales. n°31, 1980. 6 M. de Saint-Martin, "Une grande famille". Actes de la Recherche en Sciences sociales. n° 31, 1980. F, Zonabend, op. cit 8 C.eIl. Geertz, “Teknonymy in Bali: parenthood. age graduez and genealogical amnesi Journal of Roval Anthropological Institue, 94, N22, 196A, 9 C, Lévi-Strauss. La pensée sauvage, Paris, Plon, 1962, p. 240. 10 C. Bromberger. "De L“anthroponymie”. 1 Vora. VU. n*1/2. 1983. rhe 11 C. Lévi-Strauss. La voie des masques. Paris. Plon, 1979. 12 C, Lévi-Strauss. La pensée sauvage. Paris. Pion, 1962. p. 256 13 F. Zonabend, op. cet. 14 B. Le Wita, "Memoire: avenir du présent”. Terram, n®%4, (985, 15 P, Bourdieu (ed). Uin art moven. Essay sur les usages sociaux de la photographie, Paris, Bd. de Minuit, 1965.

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