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PSICOLOGIA SOCIAL editora brasiliense Filosofia © Comportamento Bento Prado Jr. Freud, Pensador da.Culeura Renato Mezan, 0 Minimo Eu ‘Christopher Lasch, ‘Sigmund Freud e © Gabinete do Dr. Lacan Peter Gay e outros ‘Tempo do Desejo Sociologia e pricandlive Heloise Feesandes (org) © que é Loucura Foto Frayze-Peseita 0 que é Paicanilise Fabio Herrmann, O que é Pricanilise 28 eiido (Oscar Cesarocto/ Marcio P. $. Leite O que é Pricologia ‘Matia Luiza S. Tetes 0 que é Psicologia Comunicésia Eduardo M. Vasconcelos © que € Psicologia Social Silvia T. Maurer Lane © que € Pricodraema Wilson Castella de Alincida O que é Pricoterapia eda Porchat © que é Psiquiatria Alternativa Alan Indio Sercanc SILVIA T. M. LANE WANDERLEY CODO (ORGS.) PSICOLOGIA SOCIAL © HOMEM EM MOVIMENTO ar edigao editora brasiliense . Copyright © Dos Autores, 1984 Nenhuma parte desta publicacao pode ser gravada, ‘armazenada em sistemas eletrOnicos, fotocopiada, reproduzida por meios mecdnicos ou outros quaisquer sem ‘autorizacio prévia do editor. ISBN: 85-11-15023-4 Primeira edicio, 1984 85 edicao, 1969 Revisao: José W. $. Moraes e Mansueto Bernardi Capa: Ettore Bottini Rus da Consolacao, 2697 ‘1416 Sao Paulo SP Fone (011) 286-1222 - Telex: 11 33271 DBLM BR IMPRESSO NO BRASIL Indice Apresentagio — Silvia T. M. Lane ........-+ PARTE 1 INTRODUGAO A Psicologia Social e uma nova concep¢do do homem para 1 Psicologia — Silvia T. M. Lane ‘A dialética marxista: uma leitura epistemolégica — Carone .. PARTE 2 AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL Linguagem, pensamento ¢ representastes sociis — Sivia T (. Lane . : ‘Consciéncia/alienagio: a ideologia no nivel individual — Silvia T. M. Lane : © fazer ¢ a conscitncia — Wanderley Codo Identidade — Antonio da Costa Ciampa . 10 865 8 ‘ INDICE : PARTE 3 O INDIVIDUO E AS INSTITUICOES O processo grupal — Silvia T. M. Lane .......sese2000006 78 Familia, emoco e ideologia — José Roberto Tozoni Reis ” processo de socializaydo na escola: a evolugdo da condicao social da crianga — Marilia Gouvea de Miranda ..... Relagdes de trabalho ¢ transformagio social — Wanderley Cod0 vseeeeeeeereeee 136 PARTE 4 A PRAXIS DO PSICOLOGO Psicologia educacional: uma avaliagdo critica — José Carlos Libiineo ween 154 0 psicélogo clinico — Alfredo Naffah Neto .......6.e000++ 181 © papel do psic6logo na organizagio industrial (notas sobre ‘0“lobomau”em psicologia)— WanderleyCodo .... Psicologia na comunidade — Alberto Abib Andery . 195 203 Apresentacio. Quando publicamos O que & Pricalogia Social 0 fizemos dentro das propostas da Colegio Primeiros Passos, procurando sintetizar a produg2o e discussio de temas que programa de pés-Graduago em Psicologia Social da PUC-SP vinha desen- volvendo. . Para nossa surpresa, o livro passou a ser leitura constante de alunos de cursos universitérios em todo 0 pats, indicando a necessidade de um conhecimento alternativo em Psicologia Social. Este livro se prope atender a essa necessidade com artigos de varios autores abofdando os tépicos que julgamos fundamental serem discutidos em disciplinas de Psicologia Social que compdem 0 currfeulo de Formago Geral do Psicblogo, assim como de outros cursos que necessitem de conhecimentos neséa area. * A Introdugio propde uma outra concepcao de homem ¢ suas implicagdes epistemolégicas; a Parte 2 analisa as categorias fun- damentais para a Psicologia Social, enquanto a Parte 3 aprofinda, fa anilise da relagio individuo-sociedade, pela mediagio grupal € institucional. Na Parte 4 os artigos analisam como, a partir desta concepelio de homem, possivel rever a prética do psicélogo nas suas diversas especialidades Esperamos assim contribuir para uma psicologia voltada para 0s problemas coneretos de nossa realidade, tornando o profissional um agente de transformagdo na sociedade brasileira, Silvia TM. Lane Parte 1 Introducio A Psicologia Social e uma nova concepcao do homem para a Psicologia Silvia Tatiana Maurer Lane "Quase nenhuma acdo humana tem por sujeito unt indi- viduo isolado. O sujeito da agéo é wm grupo, um ‘Nos’, mesmo se a esirutura atual da sociedade, pelo fendmeno da reificacéo, tende a encobrir esse ‘Nés’ e a iransformé-io numa soma de varias individualidades distintas e fechadas umas ds outras.” Lucien Goldman, 1947, A relagio entre Psicologia e Psicologia Social deve ser enten- did2 em sua perspectiva histérica, quando. na década de 50 se iniciam sistematizagdes em termos de Psicologia Social. dentro de duas tendéncias predominantes: uma, na tradigto pragmitica dos Estados Unidos, visando alterar ¢/ou criar atitudes, interferir nas relagdes grupais para harmonizé-las ¢ assim garantir a produti- vidade do grupo — é uma atuacdo que se earacteriza pela euforia de uma intervengio que minimizaria conflitos, tornando op homens “felizes” reconstrutores da humanidade que acabava de sair da destruigho de uma If Guerra Mundial. A outsa tendéncia, que também procura conhecimentos que evitem novas catistrofes mundiais, segue a tradigao filoséfica européia, com rafzes na fenomenologia, buscando modelos cientificos totalizantes, como Lewin e sua teoria de Campo. A eufotia deste ramo cientifico denominado Psicologia Social dura relativamente pouco, pois sua eficdcia comeca a ser questio- nada em meados da década de 60, quando as andlises criticas apontavam para uma “crise” do conhecimento psicossocial que n30 INTRODUCAO a conseguia intervir nem explicar, muito menos prever comporta- mentos sociais. As réplicas de pesquisas e experimentos nio permi- tiam formular leis, os estudos interculturais apontavam para uma complexidade de varidveis que desafiavam os pesquisadores ¢ estalisticos — & 0 retorno as analises fatoriais e novas (écnicas de angilise de multivariancia, que afirmam sobre relagdes existentes, mas nada em termos de “como” e “por qué”. Na Franga, a tradicio psicanalitica € retomada com toda a veeméncia apés 0 movimento de 68, ¢ sob sua ética é feita uma critica & psicologia social norte-americana como uma ciéncia ideo- Iogica, reprodutora dos interesses da classe dominante, e produto de condigdes histiricas espectficas, © que invalida a transposido tal ¢ quel deste conhecimento para outros paises, em outras condigies hhist6rico-sociais. Esse movimento também tem suas repercussbes na Inglaterra, onde Israel e Tajfell analisam a “crise” sob 0 ponto de vista epistemolbgico com os diferentes pressupostos que embasam o conhecimento cientifica — ¢ 4 critica ao positivismo, que em nome da objetividade perde o ser humano, ‘Na América Latina, Tereeiro Mundo, dependente econSmica € culturalmente, a Psicologia Social oscila entre © pragmatisme norte-americano € a visto abrangente de um homem que sb era compreendido filoséiica ou sociologicamente — ou seja, um homem abstrato, Os congressos interamericanos de Psicologia slo exce- lentes termémetros dessa oscilagio € que culminam em 1976 (Miami), com criticas mais sistematizadas © novas propostas, principalmente pelo grupo da Venezuela, que se organiza suma Associacao Venezuelana de Psicologia Sovial (A VEPSO) coexistindo ‘com a Associagdo Latino-Americana de Psicologia Social (ALAP- SO). Nessa ocasiio, psicélogos brasileiros também faziam suss ceriticas, procurando novos rumos para uma Psicologia Social que atendesse a nossa realidade. Esses movimentos culminam em 1979 (SIP — Lima, Peru) com propostas concretas de uma Psicologia Social em bases materialista-histéricas e voltadas para trabalhos ‘comunitérios, agora com a perticipagio de psicblogos peruanos, mexieanos¢ outros. ‘© primeiro passo para a superagio da crise foi constatat a tradigao biol6gica da Psicologia, em que 0 individuo era considerado ‘um organismo que interage no meio fisivo, sendo que os processos psicoldgicos (0 que ocorre “dentro” dele) s40 assumides como ‘causa, ou uma das causas que explicam 0 seu comportamento. Ou seja, para compreender o individuo bastaria conhecer 0 que 2 ‘SULVIAT. M. LANE ‘ocorre “‘dentro dele”, quando cle se defronta com estimulos do meio. Porém o homem fila, pensa, aprende e ensina, transforma a natureza; o homem é cultura, é histéria. Este homem biol6gico nio sobrevive por sie nem € uma espécie que se reproduz tal e qual, com ‘variagbes decorrentes de clima, alimentagfo, etc. O seu organismo é ‘uma infra-estrutura que permite o desenvolvimento de uma superes- ‘trutura que é social e, portanto, histérica. Esta desconsideragio da Psicologia em geral, do ser humano como produto hist6rico- social, é que a torna, se no inécua, uma ciéncia que reproduziu a ideologia dominante de uma sociedade, quando descreve compor- tamento ¢ baseada em freqléncias tira conclusdes sobre relagtes ‘causais pela descrigo pura e simples de comportamentos ocorrendo ‘em situagdes dadas. Nao discutimos a validade das leis de aprendi- zagem; & indiscutivel que 0 reforgo aumenta a probabilidade da ‘ocorréncia do comportamento, assim como a puniglo extingue comportamentos, porém a questo que se coloca & por que se apreende certas coisas e outras sto extintas, por que objetos sto considerados reforcadores e outros punidores? Em outras palavras, ‘em que condicSes sociais ocorre a aprendizagem e o que ela significa ‘no conjunto das relagtes sociais que definem concretamente 0 individuo na sociedade em que ele vive. ser humano traz consigo uma dimensdo que niio pode ser descartada, que € a sua condig&o social e histérica, sob 0 risco de termos uma visdo distorcida (idcologica) de seu comportamento. Um outro ponto de desafio para a Psicologia Social se colocava diante “dos conhecimentos desenvolvidos — sabfamos das deter- ‘minagées sociais e culturais de seu comportamento, porém onde 2 criatividade, 0 poder de transformagio da sociedade por ele construfda. Os determinantes s6 nos ensinavam a reproduzir, com equenas variagtes, as condigbes sociais nas quais o individuo vive. A Ideologia nas ciéncias humanas A afirmativa de que o positivismo, na procura da objetividade dbs fatos, perdera 0 ser humano decorreu de uma andlise critica de um conhecimento minucioso enquanto descrigio de comporta- ‘mentos que, no entanto, néo dava conta do ser humano agente de mudanga, sujeito da histbria. © homem ou era socialmente deter minado ou era causa de si mesmo: sociologismo vs biologismo? Se INTRODUGAG por um Indo a psicanilise enfatizava a hist6ria do individue; 1 sociologia recuperava, através do materialismo histérico, a eépe- cificidade de uma totalidade histérica concreta na anilise de cada sociedade. Portanto, caberia & Psicologia Social recuperar 0 indi- ‘viduo na intersecco de sua histbria com a hist6ria de sua sociedade — apenas este conhecimento nos permitiria compreender o homem ‘enquanto produtor da histéria. Na medida em que o conhecimento positivista descrevia comportamentos restritos no espago ¢ no tempo, sem considerar a inter-relagto infra e superestrutural, estes comportamentos, me- diados pelas instituigdes sociais, reproduziam a ideologia domi- nante, em termos de freqléncia observada, levando a considerd-los como “naturais” e, muitas vezes, “universais”. A ideologia, como produto hist6rico que se cristaliza nas instituigBes, traz consigo uma concepgo de homem necessiria para reproduzir relagées sociais, ‘que por sua vez sto fundamentais para a manutenclo das relagées de produgio da vida material da sociedade como tal. Na medida em que histéria se produz dialeticamente, cada sociedade, na organizagio da produgio de sua vida material, gera uma contra- digdo fundamental, que ao ser superada produz uma nova socie- dade, qualitativamente diferente da anterior. Porém, para que esta ccontradigo nfo negue a todo momento a sociedade que se produz, necessiria a mediagdo ideologica, ou seja, valores, explicagbes tidas como verdadeiras que reproduzam as relagdes sociais necesshrias para a manutengto das relagdes de produgio. Deste modo, quando as ciéncias humanas se atém apenas na descrigio, seja macro ou microssocial, das relag®es entre os homens das instituigbes sociais, sem considerar a sociedade como produto historico-dialético, elas nfo conseguem captar a mediaglo ideo- 6gica e a reproduzem como fatos inerentes 4 “natureza” do homem. E a Psicologia nfo foi cxcego, principalmente, dada a saa origem biologica naturalista, onde 0 comportamento humano decorre de um organismo fistolégico que responde a estimulos. Lembramos aqui Wundt e seu laborat6rio, que, objetivando construir uma psicologia cientifica, que se diferenciasse da especu- ago filos6fica, se preocupa em descrever processos psicofisiolégicos em termos de estimulos e respostas, de causas-e-efeitos, Nesta tradigio e no entusiasmo de descrever 0 homem ‘enquanto um sistema nervoso complexo que o permitia dominar € transformar a natureza, ctiando condigtes sui-generis para a ‘SILVIA T. M. LANE sebrevivéncia da espécie, os psicblogos se esqueceram de que este ‘homem, junto com outros, ao transformar a natureza, se trans- formava ao longo da historia. ‘Como exemplo, podemos citar Skinner, que, sem divida, causou uma revolugdo na Psicologia, mas as condigées hist6rico- sociais que o cercam, impediram-no de dar um outro salto quali- tativo. Ao superar o esquema S-R, chamando a atenco para Tela¢do homem-ambiente, para o controle que este ambiente exerce sobre 0 comportamento; criticando © reducionismo biol6gico, Permitiu a Skinner ver 0 homem como produto das suas relagées sociais, porém no chega a ver estas relagdes como produzidas a Partir da condicto histérica de uma sociedade. Quando Skinner, através da anilise experimental do comportamento, detecta 0s controles sutis que, através das instituigSes, os homens exercem uns sobre os outros, e define leis de aprendizagem — e niio podemos negar que reforgos e punigdes de fato controlam comportamentos — temos uma descrigio perfeita de um organismo que se transforma fem funcio das conseqiéncias de sua aco, também a anilise do ‘utocontrole se aproxima do que consideramos consciéncia de si € 0 contracontrole descreve ages de um individuo em processo de conscientizagao social. Skinner aponta para a complexidade das relagdes sociais e as implicagbes para a anélise dos comportamentos envolvidos, desafiando os psicélogos para a elaboracio de uma ‘tecnologia de anilise que dé conta desta compleridade, enquanto ccontingéncias, presentes em comunidades. A histéria individual 6 considerada enquanto histéria social que antecede e sucede & historia do Individuo. Nesta linha de raciocinio caberia questionar Por que alguns comportamentos sto reforgados ¢ outros punidos dentro de um mesmo grupo social. Sem responder a estas questBes, Passamos a descrever 0 status quo como imutével ¢, mesmo que. Tendo transformar o homem, como o préprio Skinner propde, jamais o conseguiremos numa dimensto histérico-social. Impasse semelhante podemos observar em Lewin, que procura a aranha para construir a teia tem. uma tarefa pela frente, o homem tem um problema que depende de uma AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 51 técnica e de um projeto. Ore, a aprendizagem da técnica eo projeto pressupiem o outro. Em outras palavras, a técnica pressupse uma divisto de trabalho tanto longitudinal quant transversal. Transversalmente, 0 homem se divide para produzir, por exemplo uns espantam a caga, enquanto outros a matam. Longitudinalmente, cada gera¢o aperfeigoa parte da técnica que o homem aprende num dado momento. Foi assim da roca de fiat, passando pela mule-jenny,* até as findoras modernas. Na cerne desta questo esté 0 problema da diviso de tra- balho, E é esta divisto de trabalho que permeia a linguagem, os instrumentos, 0 pensamento, a consciéncia. Passemos em revista a atividade produtiva do homem, procu- raremos demonstrat come 0 uso da atividade enquanto categoria. central da Psicélogia pode ser revelador. Tomar 0 fruto da terta, levé-lo A boca, deglutir. Como jé vimos, a “mera” atividade de apropriagdo é prenhe de uma relagio dialética homem-natureza: 1) 0 frato se transforma (se conforma) & imagem e semelhanga do homem; e, 2) ao mesmo tempo o homem se transforma (se conforma) & imagem e semethanga do fruto de que se aproprion, Em 1) 0 fruto se torna 0 homem no sentido fisico (motéculas que se incorporam ¢ passam a compor nosso corpo), biol6gico (energia que se transforma pelas ¢ para as células do home) ¢ psicologico (0 fruto passa a significar um fruto para o homen, se incorpora a ele um significado humano). Em 2) 0 homem se torna ofruto pelas mesmas razbes fisicas € biolbgicas, do ponto de vista psicolégico, o fruto ensina o homem a distingui-lo do ndo-fruto, nossas sensacdes, através da visio, porém, sioestruturadas pelo fruto. : Além das sensagdes, a apropriagio da natureza produz a agao do homem, estabelece relagdes de contingéncia entre os compor- lamentos, dispie 0 reforcamento, dispée sobre o gesto do brago, imdos, boca e, sobretudo, o fruta fornece um significado ao. gesto, Incorpora a ele um ‘elos, uma finalidade. Sensagdes, ago ¢ também percepedo, A natureza aproptiada liga © olho A boca, ao rariz. Plantar a semente, zelar pela planta, colher o fruto, (°) Uma das primeiras msquinas de fier. 2 WANDERLEY CODO- Aqui permanece a mesma relago dialética (ndo custa repeti- Ja, o homem é transformado pela natureza enquanto se transforma A imagem © semelhanga da naturezs) mas em um nivel qualita- tivamente superior? ‘Ao plantar o homem modifica para sio meio externo, j& nlo se ‘pode falar de natureza no sentido de contraposigio ao Humano, 0 mundo ao redor toma a face do Homer, € colocado a sen servigo, submetido as suas necessidades, portanto A sua vontade. Neste sentido a dupla relaciio Homem-Natureza, apontada acima, ganhe uum elo novo, o homem transforma a natureza que 0 transforma. Mas plantar pressupde também o fruto presente-ausente, ou Seja, 0 projeto do fruto, € preciso que o fruto esteja presente na couseiéncia do Homem, embora ausente da natureza. O fruto, pelo Homem, se torna transcendente, se eterniza na atividade do plantio. O aso de instrumentos de trabalho que é0 instramento de trabalho? Marx nos diz: “O meio de trabalho € uma coisa ov um conjunto de coisas que o homem interpde entre ele e 0 objeto do seu trabalho, como condutor da sua aco". . Portanto, o instrumento tem um carter mediador na medida em que funciona concretamente como extensio do homem, am- Pliando ou precisando seus gestos o eterniza. Um machado, por exemplo, & 0 ato do homem objetivado, perene, imortalizado, em uma palavra, transcendente ao proprio Homem. Neste sentido 0 instrumento de trabalho é um mediador entre o Homem e a sua, transcendéncia, em outras palavras a sua Hist6ria. ‘Um outro caréter mediador se ampara no fato de que, embora fitho legitimo da agdo, o instrumento de trabatho pressupde a aco ndo realizada, ou s¢ja, um projeto. Assim, 0 instrumento trans- forma através do trabalho a reflexdo em ago materializada e como se viu, transcendente. Os meios de trabalho exercem a mediagio entre a reflextio ea Historia, 12) A antlise do plantar pressupde 0 uso de instrumentos @ conco- mitantomente de linguagem; aqui, por questBes didéticas, apenss vamos ‘separer 06 processos. ASCATEGORIAS FUNDAMENTAISDA PSICOLOGIA SOCIAL $3 Fabricado pelo Homem como mediador entre ele a natures (meio de trabalho), o instrumento se amolda ao seu criador. B a natureza hominizada e meio de hominizacio da natureza ao mesmo tempo. Criado pelo Homem a sua imagem e semelhanca, 0 eterniza, transforma a atividade individual em Historia, a crisgdo cria 0 criador. Agiio e meio de agéo sintetizadas e eternizadas, a criaglo se liberta do criador, 0 machado que eu fiz, ao mesmo tempo que imortaliza meu gesto, recria o gesto do outro & minha imagem ¢ semelhanga, 0 machado reapresenta 20 Homem individual a Histéria da Humanidade, conforma ¢ insere o individuo & sua répria espécie; 20 contririo, o instrumento viabiliza a intervengio do Homem em toda a sua Histéria, pela via da atividade, o machado aperfeigoado pelo meu sucessor transforma o homem individual em ser genérico, a evolugio do seu gesto traz em si a revolucio da Humanidade. Através do instrumento de trabatho homem trans- formna a hist6ria dos homens e é transformado por ela. instrumento € produtor ¢ produto da abstrago. O conceito duro (ou mole) no emana diretamente da natureza, como pode haver na consciéncia humana algo que ndo se encontra no mundo? © conceito de duro é reflexo de uma interacBo entre dois, objetos de densidades diferentes. Ao bater com o machado em uma Arvore 0 homem interage com os dois elementos em questic ©, principalmente com a relagdo entre eles, a mediaglo do gesto realizado pelo instromente informa uma dimensio do real d'antes insuspeita, arma o homem com a possibilidade de interpretagao do mundo. Isto é verdade pera qualquer abstragio, qualquer pensa- mento, Ocorre que, amitide, 0 instrumento de intervengzo do homem no universo é a propria palavra que reorganiza relagbes dos ~ homens entre si, funclonando prioritariamente como uen instru- ‘mento de intervenco no outro ou do outro em mim.? ‘Embora filho legitimo da ado, a construcio do instrumento dde trabalho pressupbe a ago ndo reslizada, ou seja, um produto de acto, o instrumento de trabalho engendra a reflexSoe a materialza. Em outras palavras, 0 uso de meios de trabalho realiza a volta (3) No se faré aqui uma andlise de inguagern, apenes se ressalta c:seu papel como instrumento. 34 WANDERLEY CODO, completa, promove a consciéncia do qual é produto, produz a cons- ciéneia que promove. Em suma, o instrumento de traballio transforma o homem de animal em ser transcendente: através da agdio mediatizada o homem transcende a si mesmo, em dirego ao seu projeto, portanto em relagdo 20 outro, portanto em directo a Historia, O homem ¢ o outro Evidentemente o trabalho enquanto modo de produydo de sua propria existéncia exigiu do homem a convivéncia em grupos, o desenvolvimento da linguagem e a divisio de trabalho, Os processos grupais e a linguagem esto formulados em ‘outros momentos deste livro. Posso ent&o me poupar desta anilise ¢ abordar alguns aspectos da divisdéo de trabalho que considero relevantes para a andlise em questo. AA divisio de trabalho une e separa (une porque separa, separa porque une) os homens ao mesmo tempo. Se a caca ¢ grande € perigosa o suficiente para que o homem nao possa abaté-Ia sozinho ¢ se organizam grupos encarregados de abaté-la e outros encarregados de espanté-la, esta divisio de trabalho tende, por uma questo de competéncia, a se cristalizar, o que impliea que percepcdes, abs- tragdes ¢ também conscigncias diferentes da realidade se estabe- Jecam em homens diferentes, por outro lado é igualmente obri- gatério que os mesmos homens “separados” pelas atividades Giferencladas se unam em um plano superior, que € 0 plano do projeto e dos objetivos da atividade em pauta. Assim, & preciso que 0s homens estejam ligados entre si pelo produto do seu trabalho {atividade objetiva) para que possam sobreviver. A caga no seria abatida se cada homem nfo cedesse a seus instintos imediatos & comungasse do projeto do grupo. Como se veri adiante, esta dialética unido-separacdo & fundamental para o proceso de conscientizagao, assim como a relacdo homem-homem, homem-natureza que analisaremos a seguir. Ja repetimos ad nauseam que é a relagto pritica do homem com a natureza, sua atividade que 0 constitui. No trabalho produtivo este carter de determinacao da pratica aparece de forma etistalina; € a caga que instrui ao cagador a fora do golpe. ASCATEGORIAS FUNDAMENTAISDA PSICOLOGIA SOCIAL $8 Ao mesmo tempo que a atividade eminentemente pritica empurra 0 homem para o contato vis-a-vis a natuteza, seu modo de ser social € histOrico, portanto transcendente, o obriga a uma relagio com 0 outro que implica “‘afastamento” (ressalte-se as aspas) com a natureza, Vejamos, A construgio de instrumentos imbricada com a linguagem permite que o engenho, a criatividade, a compettncia de um trabalhador em particular tratiscenda a si mesmo ¢ passe a pertencer a toda a humanidde. A rigor, basta que um homem em ‘uma tribo primitiva inventeo arcoe a flecha para que esta atividade objetivada no produto de sua arte passe a pertencer a toda a coletividade, imprimindo sua existéneia no existir do outro, que por sua vez 0 reformula, até ttingirmos todos nés 0 estagio da bazaca, por exemplo. Percorrendo caminho inverso: 0 ato de um homem particular ‘com um machado particular ao bater em uma arvore permeado de toda a historia da humanidade até entao. Aqui a dupla apropriagdo homem-meio (transformar e ser transformado pela natureza) se funde e tem como requisito a dupla apropriagio homem-hortem (transformar e ser transformado pelo outro). © machado é uma via de consciéncia do mundo € do social porque € 0 homem genérico, toda a histbria, toda a sociedade representada, quanto mais técnica se aperfeigoa mais o meio ambiente natural do homem se torna humano. Hoje encontramos opettios lidando com maquinas feitas por maquinas. per omnia, produzindo a vida de pessoas através da eletricidade que nao sabemos ao certo em qual momento hist6rico foi produrida pela primeira ver. Assim se promove um ““afastamento” aparente que se concre- tiza por um poder cada vez maior sobre a natureza pela via sozial, vale dizer, histérica. ‘A minha atividade mediada pela atividade do outro pela via da linguagem e do instrumento de trabalho €exatamente o que permite que a atividade se reapresente a um sujeito particular em um “reflexo da realidade conereta destacado das relagées que existem entre ela € sujeito, ou seja, um reflexo que distingue sujeito, ou seja, um reflexo que distingue as propriedades objetivas estaveis da Realidade”. Estamos falando do fendmeno da consciéncia humana. Marx nos revela que a linguagem & a conscitncia pritica. Ou seje, &a atividade dos homens representada & um sujeito individal, 6 WANDERLEY CODO portanto passivel de ser reproduzida na auséncia do mundo objetivo imediato ao mesmo tempo que permanece fiel a ele. Vimos que a atividade produtiva humana, pela via do desenvolvimento imbricado da linguagem, dos instrumentos de trabalho e da divisto de trabalho produz a consciéncia através da dialética homem/natureza, homem/homem que se expressa por uma tensio perene entre o individuo como sujeito individual e eoletivo do seu préprio destino, contradigéo esta que s6 poderé evoluir pela apropriaco coletiva do destino individual. Talvez um exemplo possa deixar as coisas mais claras, Tomemos um operério que ingressa hoje em uma fébrica: encontra ali, ja construido, um modo de producdo coletivizado altamente evoluido que o insere em toda a hist6ria da humanidade, cada produtorealizado, cadagestoreapropria e transforma o mundoe os homens. Ao apertar um boto que aciona uma méquina, nosso operério ¢invadido pela hist6ria e torna-se seu portador, se insere em sua classe na luta de sua classe na medida em que se organiza coletivamente. Ao mesmo tempo encontra o produto do trabalho rompido, ivorciade do produtor. O produto do seu trabalho se the apresenta, como ser estranho, independent do produtor, nos diz Marx, o trabalho ¢ alienado, por isto dividido entre trabalho intelectual e trabalho bracal, ou seja, 0 gesto é expropriado da criagao, O trabalho coletivizadoe as relagdes de trabatho competitivas, 0 irmao do qual o trabalho depende ¢ pelo qual o produto se cria reapresen- tado como inimigo. © operirio. viverd entre estes dois fogos 0 tempo todo, 4 apropriagio de si pelo mundo ¢ a reapropriaglo do mundo. O momento da greve, por exemplo, ao promover a ruptura da producao alienada (mesmo que parcialmente) rompe também com isolamento de um individu para com 0 outro. A nio-produgio Produz um produtor ativo, de si, do outro, do mundo. Pela luta, via ‘aso, recompondo, recriando a atividade até 0 momento em que pelo outro.o homem reencontra a si mesmo, até que 0 existir coletivo Feencontre o sujeito individual. = ASCATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 7 Bibliografia Lebninger, A. L., Bioguimica, trad. da 2* ed. americans, Sto Paulo, Edgard Bidcher, 1976. Leontiev, A. N., Actividad, consciencia y personalidad, Buenos Aires, Ed. ‘Ciencias del Hombre, 1978, + 0 Desenvolvimento do Psiquismo, Lisboa, Livros Horizonte Ltda, 1978. . ‘Marx, K., £f Capital, Fondo de Cultura Eoonbmica, 3 vols., 48 ¢d., México ‘= Buenos Aires, 196. " Marz, K. ¢ Engels, F., Dialétiqa da Natureza, in Obras Escogidas, EA. Progreso Mosc6, 3 vols., URSS, 1978. ; +, Manuscritos Econémicos e Filesdficos, in Obras Escopidas, idem, ‘bide. —— . A ldeologia Alem, in Obras Escogidas, idem, ibidem. . “= + Contribuigio & Critica da Economia Politica, in Obras Escogidas, ‘dem, ibidem. Identidade Antonio da Costa Ciampa Uma pergunta aparentemente simples ‘Quem € yoo’? Euma pergunta que freqientemente nos fazem que as vezes fazemos a nds mestios.. “Quem sou eu?" . Quando esta pergunta surge podemos dizer que estamos pesquisando nossa identidade. Como em qualquer pesquisa, esta- mos em busca de respostas, de conhecimento, Por se tratar de uma Bergonta feta a nosso rexpeto € fii Garmoe ume repost ox nip Se € um conhecimento que buscamos a respeito de_nés mesmos podemos supor que estamos em condigdes de fornecé-lo. Afinal se trata de dizer quem somos... Experimente! Nao continue lendo antes de responder a esta pergunta: quem é voce? Pronto? Respondeu de forma a qualquer pessoa, depois dé ouvir sua resposta, poder afirmar que o conhece? Sua resposta torna possivel vos8 se mostrar ao outro (e, ao mesmo tempo, voce se reconhecer) de forma total e transparente, de modo a nfo haver nenhuma divida, nenhum segredo a seu respeito? Sua resposta produz um conheci- mento que 0 torna perfeitamente previsivel? Ninguém (nem mesmo ‘vocé), depois de conhecer essa resposta, tera diivida sobre como vocé vai agir, pensar, sentir, em qualquer SituacZo que surja? [AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 59 ‘Acredito que, se voc8 foi sincero, estas questdes todas podem ter levantado algumas dividas. Seré tio facil dizer quem somos? Se, como-estou supondo, ndo é tho facil camo pode parecer 8 primeira vista, podemos admitir que este é um problema digo de uma pesquisa cientifica (e nlo s6 por causa disso). PsicSlogos, socidlogos, antropélogos, os mais diversos cientistas sociais tm estudado a questo da identidade; filésofos também. Nao :6 pela dificuldade, mas também pela importincia que esta questdo apre- senta, outros especialistas tém se envolvido com ela ¢ nao s6 cientis- tas filésofos: nos tribunais, juizes, promotores, advogados, peritos, etc.; na administrago, tanto piblica como privada; na poltcia, na escola, no supermercado etc., enfim, em praticamente tedas as situagdes da vida cotidiana, a questao da identidade aparece, de uma forma ou de outra (e também fora do cotidiano: “quem era ‘mesmo aquela personagem com quem sonhei ontem?”). Voc€ j& reparou como as novelas de TV exploram esse filo? £ freqilente uma personagem viver um grande drama porque de repente des- cobre estar enganada a respeito da identidade de outra personagem (seu pai, sua mae, seu filho, sua irma etc., e nto quem pensava que fossc); conseqientemente, descobre ao mesmo tempo que também estava enganado 4 respeito da propria identidade (afinal, se esse desconhecido é meu pai, entio eu sou seu filho ¢ nao de quem pensava); a identidade do outro reflete na minha ¢ a minha na dele (afinal, ele s6 meu pai porque ew sou filho dele). Outro exemplo: nas hist6rias “policiais” quase sempre 0 enredo € todo montado para que se descubra a identidade do eriminoso (nao 6 no sentido de saber quem cometeu o crime, mas também como se tornou “criminoso"}; por vezes, a hist6ria se desenvolve de tal medo que 16s (os espectadores ou leitores) sabemos quem ¢ 0 criminose, mas as demais personagens da histéria nao sabem; isto nos levanta uma outra questo: pely {ato de os outros no saberem cle deixa de ser criminoso? Que é ser “‘criminoso"? & cometer um ato criminoso? (Pense no exemplo, digamos, ficticio, de poderosos cidadios que cometem atos que vocé considera criminosos mas nao so perse- guidos pela policia ¢ pela justiga...) Podemos falar numa identidade ‘oculta? Pense numa historia de “espionagem’ “espitio" exatamente se caracteriza como uma {pelo menos para os espionados...), sendo que suas aventurss prati- camente terminam ou deixam de ser atraentes quando essa identidade 6 revelada. Até os super-herbis tém sua identidade seereta (aquilo de que o Super-Homem tem mais medo € que co ANTONIODA COSTACIAMPA descubram quem ele € na vida cotidiana... como muitos de . . nés que ‘escondemos algum aspecto de nassa identidade e morremas de medo, ue 0$ outros descubram esse nosso lado “oculto”...), A literatura, 0 cinema, a TV, as historias em quadriohos, as artes num sentido bem amplo também lidam com o problema da identidade e podem nos \ar muito a respeito, Voltemos 9 nosso ponto de partida. Se, como afi - Se, irmamos, estamos falando de nossa identidade quando respondents 4 Pergunta “quem sou eu?", a primeira observacao a ser feita 6 que nossa identidade se mostra como a descrigio de uma personagem {como em uma novela de TV), cuja vida, cuje diogralia aparece ‘numa narrativa (uma histéria com enredo, personages, cendrios, ete.), ou Seja, como personagem que surge num discurso (nossa Fesposta, nossa histria). Ora, qualquer discurso, qualquer histéria costuma ter um autor, que constr6i a personagem. Cabe perguntar tentio: vocé ¢ a personagem do seu diseurso, ou o autor que cria essa ersonagem, ao fazer o discurso? Se voo8 é a personagem de uma historia, é dessa _§ a » quetn & 0 autor hist6ria? Se nas historias da vida real nfo existe o autor da histOia, serd que no sdo todas as personagens que montam a histéria? Todos nés — eu, voce, as pessoas com quem convivemos — somos as ersonagens de urna hist6ria que nbs mesmos criamos, {azendo-nos autores € personagens ao mesmo tempo. Com esta afirmago ja satelpames © que se poderia dizer caso nos consideremos o autor jue cria nossa personagem; o autor mesmo é persot di historia. Na verdade, assim, poderiamos afirmat que hi una autoria coletiva da histéria; aquele que costumamos designar como {fut seria dessa forma um “nartador”, um “contador” de his: rial Com isto podemos pereeber oulre fato curloso: nao st 4 outro fato curloso: Oa identidade de uma personagem constitu! a de outra ¢ vice-versa (0 pai do filho ¢ 0 filho do pai), como também a identidade das ersonagens constitui a do autor (tanto quanto a do autor constitui a das personagens). A trama parece complicat-se, pois sabido it } ‘que muitas vezes ‘os escondemos naquilo que falatnos; 0 autor se oculta por tris da Personagem. Mas, da mesma forma como um autor acaba se Fevelando através de seus personagens, & muito freqlente nos reelarmos através daquilo que ocultamos, Somos ocultacao e reve- ASCATEGORIAS FUNDAMENTAISDA PSICOLOGIASOCIAL —&1 ‘Até agora falamos das pessoas como se elas fossem de uma determinada forma e no se modificassem. 0 que é falso. Baste obscrvarmos nossos proximos, basta nos observarmos. No minimo, as pessoas ficam mais velhas: a crianga se torna adulto; 0 adulto, ancifo, No méximo... 0 que seria no méximo? “Nao reconhego mais Fulano, é outra pessoa!” Ha mudanges mais ou menos previsiveis, ‘mais ou menos desejéveis, mais ou menos controlaveis, mais ou menos... mudangas. O estudante que se torua um profissional depois de formado representa uma mudinga bem mais previsivel do que a do jover, nosso amigo de infincia, que se torna umn eriminoso (€tégice que, implicitamente, estamos também considerando certas condigdes de classe social); numa outra situagao social a previsi bilidade pode ser invertida, infelizmente. Outro exemplo: a moci- ha que se torna dona-de-casa, mae de filhos etc. vive uma mudanga mais desejavel do que a daquela que se torna prostituta {novamente hé algo implicito nese julgamento: valores, etc.). 0 desempregado que se torna alcoélatra (ou criminoso, etc.) sofre uma mudanga provavelmente menos controlével do que a do escriturério que se torna gerente (como voet consideraria aqui a questo de classe, de valores. etc.?). H& mudangas ¢ mudaagas... quem mude mais: o heterossexual que se torna homossexuel ou 0 adepto de uma religido que se torna atev? O slienado politicumente que se toma revoluciondrio ou © civil que se toma militar? Nés nos tornamos algo que nao éramos ou nos tornamos algo ‘que jé ramos eestava como que “embutido” dentro de nds? Parece que quando se trata de algo positivamente valorizado, a tendénci nossa € afirmar que estava “embutido” em nés ("‘sempze tive vecagao para ser médico”): quando ndo desejavel, freqientemente estava “embutido” outros (“sempre achei que ele tinha propensdo para o crime”, “... que ele tinha um jeito de “bicha™™). (Que dizer da jovem que s¢ torna dona-de-casa? E du religioso que se tora ateu? O escriturdrio que se torna gerente esté realizando uma “fendéneia”. uma "vocacio"? ‘Podemos imaginar as mais diversas combinagBes pata con- figurar uma identidade como uma totalidade. Uma totalidade contraditoria, miiltipla © mutével, no entanto una. Por mais contraditério, por mais mutivel que seja, sei que sou eu que sou ‘assim, ou seja, sou uma unidade de contrérios, sou uno na moltipli- cidade e na mudanga. ‘Quando nossa unidade é percebida como ameagada, quando corremos 0 risco de no saber quem somos, quando nos sentimos a ANTONIODA COSTA CIAMPA desagregando, temos maus pressentimentos, temos 0 pressenti- mento de que vamos enlouquecer; aprendemos a ter horror de sermés “outro” (quando queremos ofender alguém cantarolames tum refrdo bastan{e conhecido: "Fulano nfo é mais aquele,.."); nlio 68 toa que o tipo classico de piada de louco envolve alguém que diz que é quem no é: “Napoledo”, “Jesus Cristo”, ete.: nestes casos, € facil verificar que ele nao é quem diz que é. Porém, sera sempre facil saber que alguém & (ou nao €) quem diz que €? Num certo sentido, pode-se considerar a chamada “doenca mental” como um problema de identidade: 0 “‘louco” ¢ rosso “outro”, tanto quanto o “curado” €e outro do “Jouco”. Nao afirma o dito popular que “de médico ¢ de louco cada um tem um pouce"? Desde 0 inicio estamos jogando perguntas em cima de per- guntas, provoeativamente, para uma questio que parecia tho simples. Talvea valesse a pena segurar essas dividas e examinar a questio de forma menos interrogativa. Vamos (entar separar dois tipos de problema: os de natureza empirica, pratica, © os de natureza teérica ¢ filoséfica, No principio era o verbo Quando queremos conhecer a identidade de alguém, quando nosso objetivo é saber qucm alguém é, nossa dificuldade consiste apenas em obter as informagdes nevessarias. © pai que deseja saber Guem so 0s amigos que andam com seu filho, a mie que procura, conhecer 0 namorado da filha, o empregador que seleciona um candidato para trabalhar, o comereiante (Iojista ou banqueiro) que procura se assegurar da credibilidade de um cliente 2 quem vai fazer ‘um empréstimo, todos eles procuram “‘tomar informasdes"” através dos mais variados meios e formas; a natureza das informayies pode variar, mas todas tém em comum o fato de permitirem um conheci- mento da identidade da pessoa a respeito de quem as informagdes séo tomadas. Assim, obter as informagdes necessérias € uma questo pri tica: quais as informagses significativas, quais as fontes configveis (quem d& as “referéneias"), de que forma obter as informagzes, como interpretar e analisar essas informagdes ete. Enfim, o mesino Procedimento que um cientista adota a0 fazer uma pesquisa empt- rica (talvez sem a sofisticayo habitual numa pesquisa cientifica...), ASCATEGORIAS FUNDAMENTAIS Da PSECOLOGIA SOCIAL 69 Aqui, no problematizamos o resultado obtido; nao compl cameos a questo; supomos que as informagdes nos revelam a reali- dade. . Essa crenga € a mesma que guia nossas agdes mais cocri- queiras da vida cotidiana, Nossos rituais sociais Cenc dificuldade implicita nessa maneira de pensar ¢ de agir; & imaginar como se tornaria dificil conviver com outras pessoas s¢ ane ‘houvesse a suposigao compartilhada por todos. wnés de que, nom I. mente, um individuo é a pessoa que diz que é(e que 05 outros dizem que é). Pense numa apresentagio social: um amigo chega com =" desconhecido ¢ “Este é Fulano, meu solega’ €, apos we ° cumprimentar, 0 novo conhecido diz: “Muito prazer, sou Fulano’ ou sou Fulano, a sev dispor”, etc. om as informagdes sdo verdadeiras, entio a realidade esté conhecida (pelo menos agimos como se estivesse: depois ome apresentagao, dizemos que o apresentado & nosso ‘conhecido”...). ‘Como sio fornecidas essas informagies? A forma mais simples, habitual ¢ inicial é fornecer um nome: um Substantivo; se olharmos o dicion4rio, veremos que substantiro ‘apalavra que designa o ser, que nomeia o ser. Nos nos idenlificamos com nosso nome, gue nos identifi mum eonjunto deovtros sees, que indica nossa singularidade: nosso nome proprio. le “chamo-me Fulano”, sem prestar muita atengio ao fato de que, antes que eu “me chamasse Fulano”, eu “era: chamado Fulano” ‘oe seja, nds nos chamamos da forma como os outros nos chamam. nos “torhamos” nosso nome: pense em vocé mesmo com outro ome (no como otra pessoa, mas voc mesmo com outro nome); h& um senttimento de estranheza, parece que no “encaixa’’. Geraimene as pessoas se sentem ofendidas quando, por qualquer motive, tr ‘camos seu nome; é sinal de amizade e respeito nfo esquecer a ‘o nome das pessoas que prezamos. oo. omen serem casos excepcionais, o primeiro grupo social do qual fazemos parte € a familia, exatamente quem nos dA nosso nome. Nosso primeire nome (prename) nos diferencia de nessos familiares. enquanto o wltimo (sobrenome) nos iguala “ oe Diferenga ¢ igualdade. E uma primeira nogao de ident ade Sucessivamente, vamos nos diferenciando e nos igual conforme os varios grupos sociais de que fazenios parte: basi iro, igual a” outros brasileiros, diferente dos estrangeiros (‘“n6s. 05 brasileiros somos... enquanto os estrangeitos sao..."); omen oe mulher (“os bomens s%o... enquanto as mulheres sao...’ ) a ANTONIODA COSTA CIAMPA exemplos podem se multiplicar indefinidamente (“os corintianos slo... enquanto 0s torcedores dos outros chubes sBo..."). © conhecimento de si & dado pelo reconhecimento recfproco dos individuos identificados através de um determinado grupo social que existe objetivamente, com sua histéria, suas tradigbes, suas formas, seus interesses, etc. (Um grupo pode existir objetivamente, por exemplo, ume classe social, mas seus componentes podem no se identificar como seus membros, e nem se reconhecerem reciprocamente. E facil, ‘parece, perceber as conseqiléncias de tal fato, seja para o individuo, seja para o grupo social.) Mas, se é verdade que minha identidade € constitulda pelos diversos grupos de que faco parte, esta constatacdo pode nos levar 2 ‘um erro, qual seja o de pensar que os substantivos com os quais nos descrevemos ("“sou brasileiro”, “sou homem”, etc.) expressam ou indicam uma substancia (“brasilidade”, “masculinidads”, etc.) que ‘nos tornaria um sujeito imuthvel, idéntico a si-mesmo, manifestagio daguela substincia. Pare compreendermos melhor a idéia de ser a identidade constituida pelos grupos de que fazemos parte, faz-se necessirio refletirmos como um grupo existe objetivamente: através das relagBes que estabelecem seus membros entre si e com o meio onde vive, isto é, pele sua pratica, pelo seu agir (aum sentido amplo, podemos dizer pelo seu trabalho); agir, trabalhar, fazer, pensar, sentir, etc., j& nto mais substantivo, mas verbo. Usamos tanto 0 substantive que esquecemos do fato original do agir: Eva comeu a mag Prometeu roubou 0 fogo dos céus; Oxalé com seu cajado separou 0 mundo dos homens do mundo dos deuses. Como devemos dizer: 0 pecador peca, o desobediente desobedece, 0 trabathador trabalha? Ao dizer assim, estamos pressupondo antes da acio, do fazer,"uma identidade de pecador, de desobediente, de trabathador, ‘te.; contudo € pelo agir, pelo fazer, que alguém se torna algo: a0 pecar, pecador; ao desobedecer, desobediente; ao trabalhar, traba- Thador. Estamos constatando talvez uma obviedade: nés somos nossas ‘agdes, nés nos fazemos pela prética (a nfo ser por gozagBo, oct chamaria “trabalhador” alguém que nao trabalhasse?). E essa obviedade que nos coloca frente a um complicadissimo problems teérico. Até aqui estivamos tratando a identidade como um dado” a ser pesquisado, como um produto preexistente a ser conhecido, AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DAPSICOLOGIA SOCIAL 6S deixando de lado a questo fundamental de saber como se df esse dado, como se produz esse produto. A resposta & pergunta “quem sou eu?” & uma representaclo da identidade. Entio, torna-se recessério partir da representacdo, como um produto, para analisar © préprio processo de produgio. Uma questio complicada O que ¢identidade? Jécvimos que nos satisfazer com a concepcao de que se trata da resposta dada a pergunta “quem sou eu?” € pouco, € insatisfatério. Ela capta 0 aspecto representacional da nosio de identidade (enquanto produto), mas deixa de lado seus aspectos constitutivo, de producdo, bem como as implicagdes reciprocas destes. dois aspectos. Mesmo assim, nosso ponto de partida poder ser a propria, represetitaso, considerando-a também como processo de prodngao, de tal forma que a identidade passe a ser entendida como 0 proprio proceso de identificacao, Dizer que aidentidade de uma pessoa é um fendmeno sozial ¢ nto natural é aceitével pela grande maioria dos cientistas sociais. Exatamente isso nos permitiré caminhar. Com efeito, se esta- helecermos uma distingdo entre o objeto de nossa tepresentacto € a sua representagdo, veremos que ambos se apresentam como fend- menos sociais, conseq{ientemente como objetos sem caracteristicas de permanéncia, ndo sendo independentes um do outro. Nao podemos isolar de um lado todo um conjunts de elementos — biolégicos, psicolégicos, sociais, ete. — que podem caracterizar um individuo, identificando-o, ¢ de outro lado a tepresentagdo desse individuo como uma duplicacdo mental ou simbélica, que expressaria a sua identidade. Isso porque hé como que uma interpenetragiio desses dois aspectos, de tal forma que a individualidade dada j& pressupde um process anterior de repre- sentacdo que faz parte da constituigao do individuo represen:ado. Por exemplo, antes de nascer, 0 nascituro ja ¢ representado como fitho de alguéme essa representagio prévia 0 constitui efetivamente, objetivamente, como “fitho", membro de uma determinada fami- Jia; posteriormente, essa representacdo ¢ assimilada pelo individuo de tal forma que seu processo interno de representacdo € incor- porado na sua objetividade social como filho daquela familia. 6 ANTONIODA COSTA CIAMPA E verdade que nao basta a representag&o prévia. O nas uma vez. nascido, constituir-se-& como filho na medida em que as relagdes nas quais esteja envolvido concretamente confirmem essa representagio através de comportamentos que reforcem sua conduta como filho e assim por diante. Temos de considerar também esse aspecto operativo (e nao sé o representacional). Contudo, é na medida em que é pressuposta a identificago da crianga como filho (e dos adultos em questio como pais) que os comportamentos vio ocorrer, caricterizando a relagao paterno- filial. Desta forma, a identidade do filho, se de um lado é conseqtiéncia das relagbes que st dio, de outro — com anterioridade € uma condigdo dessas relagdes. Ou seja, € pressuposta uma intidade que € re-posta a cada momento, sob pena de esses objetos sociais “filho”, “pais”, “familia”, ete. deixarem de existir objeti- vamente (ainda que possam sobreviver scus organismos.fisicos, ‘meros suportes que encarnamn a objetividade do social). Isto introduz uma complexidade que deve ser considerada aqui, Uma vez que a identidade pressuposta é reposta, cla vista come dada — ¢ nde como se dando num continuo processe de identificagdo. E como se uma ver identificada a pessoa, a praducio de sua idéntidade se esgotasse com © produto. Na linguagem corrente dizemos “eu sou filho”; dificilmente alguém dir “estou sendo filho”. Dai a expectativa generalizada de que alguém deve agir de acordo com 0 que é (e conseqtentemente ser tratado como tal). De certa forma, re-atualizamos através de rituais sociais uma iden- tidade pressuposta que assim é reposta como algo jé dado, retirando em conseqiéncia o seu caréter de historicidade, aproximando-a mais da nogio de um mito que prescreve as condutas corretas, reproduzindo ¢ social. O cariter temporal da identidade fica restrito a um momento originétio, quando nos “tornamos” algo: por exemplo, “sou professor” (= “tornei-me professor”) ¢ desde que essa identificagio existe me é dada uma identidade de “professor” como uma posigio {assim como “fitho” também). Eu como ser social sou um ser-posto. A posigo de mim (0 ew scr-posto) me identifica, discri- minando-me como dotado de certos atributos que me dio uma iddentidade considerada formalmente como atemaporal. A re-pasicio 4a identidade deixa de ser vista como uma sucessio temporal, AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 67 passando a ser vista como simples manifestac&o de um ser idéntico a siemesmo na sua permanéncia e estabilidadc. ‘A mesmice de mim & pressuposta come dada permanentemente nao como reposicio de uma identidade que uma vez. foi posta. Veiamos um exemplo: quando alguém é identificado coro “pai”? Pode-se responder que é quando nasce uma crianca gerada por esse individuo; esse fato, contudo, assim considerado ainda é um fate fisico, eser “pai” €um fato social. ‘A paternidade torna-se um fendmeno social quando aquele evento fisico é classificado como tal, por ser considerado equivalerte ‘outras paternidades prévias. O pai se identifica (e é identificado) como tal por se encontrar na situacdo equivalente de outros pais {afinal, ele também é filho de um pai). Se ele é pai e a mesmiee de si esta assegurada, sua identidade de pai esta constituida permanen- temente; de fato, ele se “tornou” pai e assim permanecerd enquanto reconhecer e for reconhecida essa identidade, ou seja, enquanto ela cestiver sendo re-posta cotidianamente. Ora, mas ao mesmo tem30 le também é filbo: esse “outro” que ele &, & negado na sua posigiio ‘como pai, pois se ele permanecesse como filho, a posigto de seu filo «staria ameacada, j6 que a diferenca niio se estabeleceria, Dessa forma, cada posico minha me determina, fazendo cer ‘que minha existéncia concreta seja a unidade da multiplicidade, que se realiza pelo desenvolvimento dessas determinagdes. Em cada momento de minha existéncia, embora eu seja uma totalidade, manifesta-se uma parte de mim como desdobramento das miltiplas determinagdes a que estou sujeito, Quando estou frente a meu filho, relaciono-me como pais com meu pai, como filho; ¢ assim por diante, Contuda, meu filho no me vé apenas como pai, nem meu pai apenas me v6 como fitho; nem eu comparego frente aos outros apenas como portador de um nico papel, mas sim comoo representante de mim, com todas minhas determinagdes que me tornam um individuo concreto. Desta forma, estabelece-se uma imtrincada rede de representagies que permeia todas as relag8es, onde cada identidade reflete outra identidade, desaparecendo qual- quer possibitidade de se estabelecer um fundamento originério para cada uma delas, Este jogo de reflexdes muiltiplas que estrutura as relacdes suciais é mantida pela alividade dos individuos, de tal forma que licito dizer-se que as identidades, no seu conjunto, refletem a esirutura social ao mesmo tempo que reagem sobre ela conser- vando-a ou a trausformando. 6 ANTONIO DA COSTA CLAMPA, As atividades de individuos identificados sto normatizadas tendo em vista manter a estrutura social, vale dizer, conservar as identidades produzidas, paralisando 0 processo de identificagao pela re-posi¢do de identidades pressupostas, que um dia foram ostas. Assim, a identidade que se constitui no produto de um permanente processo de identificago aparece como um dudo € nfo como um dar-se constante que expressa © movimento do social. Para prosseguirmos, h& necessidade de uma répida digressao sobre o movimento do social: ele & em iltima andlise, a Histéria. A Historia €a progressiva e continua hominizago do Homem, a partir do momento que este, diferenciando-se do animal, produ2, suas condigies de existéncia, produzindo-se a si mesmo conse- Gentemente. A Histéria, entio, como a entendemos, & a historia da autoprodugdo humana, o que faz. do Homem um ser de possibi- Tidades, que compéem sua esséncia histérica Diferentes momentos hhistéricos podem favorecer ou dificultar 0 desenvolvimento dessas possibitidades de humanizagéo do Homem, mas é certo que a continuidade dese desenvolvimento (concrotizagio) constitui_a substancia do Homem (0 concreto, que em si é possibilidade e, pela contradigao interna, désenvolve-se levando as diferencas a exis- trem, para setem superadas); aquela s6 deixard de existir se no sais existir nem Histéria nem Humanidade. Assim, 0 Homem como espécie € dotado de uma substancia ‘que, embora ndo contida totalmente em cada individuo, faz deste ‘um participante dessa substncia (jé que cada homem esté enredado num determinado modo de apropriagio da natureza no qual se configura 0 modo de“ suas relagdes com os demais homens). Ento, eu — como qualquer ser humano — participo de uma ‘substncie humana, que se realiza como historia ¢ como sociedade, nunca como individuo isolado, sempre come humanidade. Nesse sentido, embora no toda ela, eu contenho uma infi- nitude de humanidade (o que me faz uma totalidade), que se realiza ‘materialmente de forma contingentc ao tempo e ao espago (fisicos ¢ sociais), de tal modo que cada instante de minha existéncia como individuo € um momento de minha concretizacdo (o que me toma parte daquela totalidade), em que sou negado (como totalidade). sendo determinado (como parte); assim, cu cxisto como negagao de ASCATEGORIAS FUNDAMENTALS DA PSICOLOGIA SOCIAL. 69 mim-mesme, a0 mesmo tempo que o que estou-sendo sou eusmesmo, Em conseqiéncia, sou 0 que estou-sendo (uma parcela de minha humanidade); isso me dé uma identidade que me nega naquilo que sou sem estar-sendo (a minha humanidade totel). Essa identidade que surge como representagdo de meu estar- send se converte num pressuposto de meu ser (como totalidade), 0 que, formalmente, transforma minha identidade concreta (enten- dida como um dar-se numa sucessio temporal) em identidede abstrata, num dado atemporal — sempre presente (entendida como identidade pressuposta re-posta). Isso ocarre porque comparego perante outrem como repre sentante de mim-mesmo & partir dessa pressuposi¢ao de identidade —-que se encarna como uma parte de mim-como totalidade. Essa identidade pressuposta no é uma simples imagem mental de min-mesmo, pois cla se configurou na relagio com outrem que também me identifica como idéntico a mim-mesmo; desse modo, a0 me objetificar(e ser objetificado por outrem) pelo cardter atemporal formalmente atribuido A minha identidade, 0 que estou sendo como parte surge como encarnagdo da totalidade de mim (seja para mim, seja para outrem): isso confunde o meu compatecimento frente a outrem (em como representante de mim) com a expressto da totalidade do meu set (de mim como representado).. Isto se 44 porque cada comparecimento meu frente a outrem envolve representacdo num triplice sentido: 1) cu represento enquanto estou sendo o representunte de mim (com uma identidade pressuposta e dada fantasmageri- eamente como sempre idéntica); 2) en represento, em consegtiéncia, enquanto desempentio papéis (decorrentes de minhas posigbes) ocultando outras partes de mim nio contidas na minha identidade pressuposte e re-posta (ctso contrario eu no sou o representante de mim); 3) eu represento, finalmente, enquanto reponho no presents 0 que tenho sido, enquanto reitero a apresentagio de mim — re-apre- sentado como o que estou sendo — dado o cariter formalmente temporal atribuido a minha identidade pressuposta que esté serdo reposta, encobrindo o verdadeiro cardter substancialmente temporal de minha identidade (como uma sucessao do que estou sendo, como devir). ‘Ao me representar (no primeiro sentido — representante de mim), transformo-me num desigual de mim por representar (no 70 ANTONIO DA COSTA CIAMPA seyundo sentido — desempenho de papéis) um “outro” que sou eu mesmo (o que estou sendo parcialmente, como desdobramento de tninhas méitiplas determinagdes, e que me determina e por is30 me nega), impedindo que eu deize de representar (no terceiro sentido ‘2-apresentacdo) para expressaro outro “outro” que também sou eu (© que sou sem estar sendo) — que negaria a negagdo Je mim indicada pelo representar no sentido anterior (o segundo). _ Ora, essa expressio do outro “outro” que tam>ém sou ex consiste na “alterizagao" da minha identidade, na supressio de minha identidade pressuposia © no desenvolvimento de. uma identidade posta como metamorfose constante em que toda hutia- nidade contida em mim pudesse se concretizar pela negagdo (do epresentar no terceio sentido) do que me nega (representar no segundo sentido), de forma que eu possa — como possbiidade « tendéncia — representar-me (no primeiro sentido) sempre como diferente de mim mesmo — a fim de estar sendo mais plenamente, __ Ou seja: s6 posso comparecer no mundo frente a autre efetivamente como representante do meu ser real quando ocorrer 4 Begaydo da negagio, entendida como deixar de presentificar wine apresentag2o de mim que (oi cristalizada em momentos anteriores Scat Fpor una iene presenta ~ ser mevinento $0, ou, para utilizar uma palar 4 : sz rset, ou. para sua ma palava. mst supe ben Nem anjo, nem besta: apenas homem A anilise teérica feita até aqui invert 4 te totalmente a nc {adgicional que se tem de identidade, ou seja, “o que é, &"; vam éidéntico a ele mesmo": decorreria da nex lac pars states da nceessidade para o ser de Mas, que quer diver“ sersero que"? ‘ejamos um exemplo clissico: uma semente j4 contém i . om si ame Pequena plantinha, a planta plenamente desenvolvida e seus itos, de onde sairio novas sementes. Entdo, ser semente & ser semen mas Ao $6 a mesma semente, como também a plantinha, 4 plante desenvolvida, 0 frutoe a nova semente, uma moKiplicidade aves naturalmente, j& est contida na semente ¢ que se concretiza Pele transformagio em fruto, ou seja, pelo fazer-se outro para entio thar a si mesmo (outro outro). So distintos momentos cuja [AS CATTEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 71 unidade constitui o conereto, uma unidade méltipla, como vimos, € também contraditéria, pois a semente no permanece como se- mente para ser o que 6; ela precisa ser negada, morrer: uma semente que permanecesse indefinidamente semeate... no seria semerte! Nao germinaria, no seria negada; ela precisa deixar de ser semente pare ser plenamente semente... Entdo, “o ser ser 0 que &” implica 0 seu desenvolvimento conereto; a superaco dialética da contradiglo que opde Um e Outro fazendo devir um outro outro que € 0 Um que contém ambos. E para o Homem: 0 que € para o ser humano ser 0 que é? Voltemos a uma afirmagao feita anteriormente sobre 0 movi- mento do social, o qual constitui a Histéria: ela € a progressiva € continua hominizago do Homem, a partir do momento em que este, diferenciando-se do animal, produz. suas condigdes de evis- téncia, produzindo-se a si mesmo conseqUentemente. ‘Assim, oexistir humanamente no est garantido de antemao, nem € uma mudanga que se dé naturalmente, mecanicamente — exatamente porque ohomem ¢ historico. E, afinal, a Hist6ria nem ‘um Deus que conduz os homens a seus designios secretos, nem é um proceso com um fim ltimo; isto seria reduzir 0 homem & condigio de coisa, desconhecer a infinitude humana, conceber os homens ‘como seres que chegardo a realizar sua plenitude © nada mais pudessem vir-a-ser depois de um momento dado; seria considerar que tudo 0 que foram, slo, serdo © podem ser se esgotasse rum absoluto que negasse a dialética do fendmeno humano; é verdade que um fato ocorrido € irtecorrivel definitivamente, mas seus desdobramentos (assim como seus significados) sao imprevisiveis suas transformaydes infindaveis — 0 que nfo significa que certas alternativas nfo possam ser impossiveis. ‘Uma alternativa impossivel & 0 homem deixar de ser social € hist6rieo; ele ndo seria homem absolutamente, Outra impossinil dade é deixar de ser também umm animal, conseqdentemente subme- ido as condigdes dessa sua natureza orgdnica (tal como planta & sta natureza vegetal). Contudo (e por isso foi grifada a palavra também"), nfo pode ser s6 animal (dada sua natureza social © hist6rica). Entdo, nem anjo, nem besta, o homem é homem — nao como oma afirmagdo tautolbgica — mas como uma afirmagao da mate- Hialidade da continua ¢ progressiva hominizacto do horem. De um lado, portanto, 0 homem nao esté limitado no sew er por um fim preestabelecido (como a semente); de outro, vir: 2 ANTONIO DA COSTA CTAMPA, no esté liberado das condigdes historicas em que vive, de modo que seu vir-a-ser fosse uma indeterminagzo absoluta, ‘A primeira constatagdo acima — de que o vit-a-ser do homem no pode se confundir com 0 de uma semente — deve servir para questionar toda e qualquer concepedo fatalista, mecanicista, de um destino inexoravel, seja nas suas formas mais supersti pobre porque Deus quer”, “nasceu para ser criminoso’ , ete.), seja em formas mais sofisticadas de teorias pseudocientificas (por exemplo em certas versbes de teorias de personalidade). ‘A segunda constatacio — de que o homem nao esta liberado de suas condigies histéticas — nos coloca um problema e uma tarefa. © problema consiste em que nao & possfvel dissociar o estudo da identidade do individuo do da sociedade. As possibilidades de diferentes configuragies de identidade estio relacionadas com as diferentes configuragées da ordem social. Foge as finalidades ¢ aos limites deste artigo analisar sob quais condigdes vivemos hoje em nossa sociedade brasileira e, conseqtientemente, como considerar as alternativas de identidade possiveis aqui e agora. Fique claro, contudo, que uma andlise geral como a que esta sendo feita precisa ser traduzida para uma andlise das circunstancias concretas ¢ especificas atuais; € do contexto histérico e social em que o homem vive que decorrem suas determinagdes e, conseqentemente, emer ‘gem as possibilidades ou impossibilidades, os modos ¢ as alterna tivas de identidade. O fato de vivermos sob 0 capitalismo ¢ a complexidade crescente da sociedade moderna impedem-nos de ser verdadeiramente sujeitos. A tendéncia geral do capitalismo € cconstituir 0 homem como mero suporte do capital, que o determina, negando-o enquanto homem, j4 que se torna algo cvisificado (torna-se trabalhador-mervadoria e nio trabalha autonomamente; torna-se capitalista-propriedade do capital e no proprietério das coisas). Recorfendo a uma metafora jA utilizada anteriormente, 0 homem deixa de ser verbo para ser substantivo. Esta constatacdo deve ser entendida como indicagio de fato que resulta histori- camente ligado a um determinado modo de producto © nao como algo inerente 2 ‘‘natureza’” humana, Genericamente falando, questio da identidade se coloca de maneira diferente em diferentes sociedades (pré-capitalistas, capitalistas, pos-capitalistas, ete.); hé especificidades inclusive dentro de um mesmo modo de produgio, ligddas A ordem simbélica de cada sociedade; ha, quase sempre, a sobrevivéncia de formas arcaicas de identidade, etc., ete. ASCATEGORIAS FUNDAMENTAISDA PSICOLOGIA SOCIAL 73 Este problema, assim formulado, sugere um amplo programa e pesquisas empfricas que, certamente, mostrariam como pano de fundo 0 verdadeiro problema de identidade do homem modetno: & tltlo entre 0 individu e a sociedade, que faz com que cada Individuo nio reconhega 0 ontro como ser humano e, conseqien- tamente, no sc reconheya a si proprio como humano. Isto esté ‘tsim expresso num verso magistral de Mario de Andrade, quando fala de Sio Paulo: “Ninguém chega a ser umnesta cidade. “Chegar a ser um" ou (0 que é 0 mesmo) “ser uma metamorfose ambulante” Se 0 problema que consideramos esti na relacio individuo ¢ sociedade, que tarefa dai decorre? A realizagio de um projeto politico. A questio da identidade nos remete necessariamente a um projeto politico. ‘Tentando explicar: chegamos até aqui partindo da pergunta: “a que & para o ser humano ser o que 67"; buscamos uma resposta considerando sua natureza social ¢ histérica, expressa pela “conti- ‘mua ¢ progressiva hominizardo do homem'. Com isso, procuramos eaclarecer que o homem (em si humanizivel), humaniza-se por sis este o devir humano, Desta forma, 0 futuro se coloca como continua e progressive, realizagio da humanidade; porém, como no é possivel, aprioris- ticamente, esgotar a definigéo do contetido de ser humano, esta infindavel tarefa se nos impde de maneira inescapével. Nao se trata, evidentemente, de conceitos abstratos e definitivos que considerem 0 homem como pura consciéncia, s6 como subjetividade (este 0 tisco idealista); nem também de reduzi-lo & simples condicdo de coisa, 86 vomo objetividade (esta a armadilha materialista-mecanicista). ‘Irata-se de considerar a superaydo dialética desse dualismo pela précis. Trata-se de no contemplar inerte © quieto a histéria. Mas, de se engajar em projetos de coexisténcia humana que possibiltem um sentido da hist6ria como realizago de um porvir a ser feito com os outros. Projetos que nilo se definam aprioristicamente por um modelo de sociedade e de homem, que todos deveriam sofrer totali- lariamente (e identicamente), mas projetos que possam tender, ™ ANTONIODA COSTA CIAMPA convergir ov concorrer para a transformagio real de nossas condigdes de existéncia, de modo que o verdadeiro sujeito humano vonha & existéncia. Qualquer tendéncia, convergéncia ou concor- Téncia que se arvore em Verdade, em ago, em expressio definitiva e acabada de um tinico projeto de transformacio, absolutiza-se, tornando-se antidialética, anti-hist6rica, anti-humana, A formulagio de tal politica, de uma politica de identidade do Homem da nossa sociedade, a realizagdo de tais projetos, para ser ‘socrente com seus propésitos hd de ser feita coletivamente © de forma democratica (entendida aqui como forma raciona). A questio se coloca como uma questo prética e como tal deve ser enfrentada, conscientemente, por nés — cada um de nds, todos nés, Acredito que, além de outros, dois fatores podem impedir esse ‘engajamento consciente num projeto politico, Oprimeiro 6 ter uma atitude, de um lado intelectual, frente & questio da relacio individuo ¢ sociedade, semelhante aquela que nos leva a discutir quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha: o que Prevalece, primeiro a sociedade ou primeiro o individuo? De outro lado, uma atitude pratica, semelhante & do asno indeciso entre dois montes de feno. permanccendo to imobilismo: 0 que atacar Primeiro, o individuo ou a sociedade? O segundo fator € uma concepeio de identidade como perma: néncia, como estabilidade; mais que uma simples concepcao abstrata, € vivermos privilegiando a permanéncia e a estabilidade, e Patologizando a crise ¢ a contradigdo, a mudanga e a transfor. mage, Assim, como que estancamos o movimento, escamoteamos a contradi¢ao, impedimos a superacao dialétic: Hdentidade € movimento, € desenvolvimento do concreto. [dentidade é metamorfose. E sermos 6 Um e unt Outro, para que cheguemos a ser Um, numa infindavel transformagao, Bibliografia Fausto, R., Marx: Légica e Polticn, Sto Paulo, Brasiliense, 1983, Giannotti 1. A., Trabaiko e Reflexéo, Sto Paulo, Brasiliense, 1983, Habermas, J., Pare a Reconstrugdo do Materialismo Histérico, S80 Paulo, Brasiliense, 1983. Heller, A.,.A Filosofia Radical, S80 Paulo, Brasiliense, 1983. ASCATEGORIAS FUNDAMENTAISDAPSICOLOGIA SOCIAL 75 1 O Quotidiano ea Histéria, Rio de Janeiro, Pez ¢ Terra, 1972. Dentro de uma preocupago mais empirica que filosifica, podem ser mencionados esperificamente: Berger. P. e Luckmann, T., Construpdo Social da Realidade, Petrépelis, Voxes, 1973, Erikson, E., Identidade, Juventude e Crise, 2# ed., Rio de Janeiro, Zatar, 1976, " -_ Goffman, E.,A Representayiin do Eu na Vida Cotidiana, Petropolis, Vores, 1975. Sarbin, T. R. ¢ Scheibe, K. E. (eds.), Studies ax Social Identity, Nava Torque, Praeger Publishers, 1983. Parte 3 O individuo e as instituicdes O processo grupal* Silvia Tatiana Maurer Lane Este trabalho é 0 resultado de cursos de pés-graduago onde alunos e professor se propuseram rever a nogio de pequenos grupos ‘em fungdo de uma redefinigdo da Psicologia Social, onde 0 grupo néo & mais considerado como dicotimico em relagdo ao individuo {Individuo soxinho X Individuo em grupo), mas sim como condigao necessdria para comhecer as determinacdes sociais que agem sobre 0 individuo, bem como a sua agi como sujeito bistérico, partindo do pressuposto que toda ago transformadora da sociedade so pode ocorrer quando individuos se agrupam. ‘Assim, 0 nosso objetivo foi dar inicio a uma forma sistematica de refletir teoricamente sobre processos grupais, alternando obser- vagdes € toorizagdes, na tentativa de definir algumas premissas bisicas para o conhecimento concreto de pequenos grupos sociais, Tradicionalmente, os estudos sobre pequenos grupos esto vinculados a teoria de K. Lewin, que os analisa em termos de espaco topolégice ¢ de sistema de forgas, procurando captar a dinamiea que ‘corre quando pessoas estabelecem uma interdependéncia seja em relagdo a uma tarefa proposta (sécio-grupo), seja em relaglo aos préprios membros em termos de atraco, afeicdo ete, (psico- erupo). (°) Este capitulo 6 uma revisto © ampliac80 do artigo “Uma Andliso Diolétice do Processo Grupal” por S.T.M. Lane ef ali, publicado em Cadiernos PUC ~ Psicologia, n° 12, Educ.,. Cortes Editara, 1981. OINDIVIDUO E AS INSTITUIGOES * E nesta tradigo que conceites como de coeséo, lideranca, presso de grupo foram sendo desenvolvidos em base de observagiex c experimentos. Tem-se assim descrigées de processos grupais que permitem apenas a reprodugio, através da aprendizagem de grupos produtivos para sistema social mais amplo. Pudemos observar que os estudos sobre pequenos grupos nesta abordagem tem implicitos valores que visam reproduzir os de individualismo, de harmoniae de manutencio, A funcao do grupo & definir papéis e, conseqiientemente, a identidade social dos indivi- duos; é garantir a sua produtividade social. O grupo coeso, estruturado, & um grupo ideal, acubado, como se 0s individuos envolvidos estacionassem e as processos de interagao pudessem se lwrnar cireulares. Em outras palavras, 0 grupo é visto como ‘historico numa sociedade também a-histériea, A tinica perspectiva histérica se refere, no maximo, a historia da aprendizagem de cada individuo com os outros que constituem ogrupo. , De uma outra perspectiva, encontramos alguns autores cue Procuram analisar processos grupais na sua insergao social ¢ institucional, como é o caso de Horkheimer € Adorno, que véem o microgrupo como a mediagao necesséria entre o individuo ¢ a socie~ dade © cuja estrutura assume formas historicamente varidveis. Loureau prope uma andlise das instituigtes através das relagdes grupais que nelas ocorrem, caracterizando os grupos em termos de grupo-objeto, onde a segmenteridade se dé de forma a manter os individuos justapostes sob uma capa de coeréncia ahsoluta — 6 0 que o autor denomina de grupo tipo bando ou seita, Um outro grupo-objeto seria aquele onde os individuos se justapdem para a realizacio de um trabalho ¢ onde a divisio de trabalho determina hierarquias de poder. E através da andlise da transversalidade que se torna possivel © conhecimento da segmentaridade do grupo ¢ da sux autonomia, bem como de seus limites, condigao para um gropo se tornar grupo-sujeito, isto é, aquele que percebe a mediacio institucional, objetiva e conscientemente, Também Lapassade analisa grupos quanto a sua dindmica ¢ seu nivel de vida oculto que seria o nivel institucional o qual iré determinar as caracteristicss do grupo se processando numa contradigdo permanente entre serializagdo ¢ totalizagio. Retona Sartre para caracterizar a serialidade como sendo a propria negacdo «lo grupo, onde apesar de haver um objetivo comum, a relacao entre os membros nao passa de uma somatoria, ou seja, eles formam » SILVIAT. M. LANE, ‘uma sétie tipo primeiro, segundo, terceiro, ete. Somente quando os membros se organizam ¢ que podemos falar em grupo que define, preci- sar uma metodologia de andlise e permitiram concluir sobre a ndo-neutralidade do observador ¢, principalmente, sobre a sua interferéncia no processo grupal, mesmo quando afastadc fisiea- mente e sem qualquer participasdo no processo. Foram casts onde © proprio grupo, se avaliando, comentava a preseaca do obscrvador como responsével pela maior produtividade do grupo, ou ainda, no caso jé citado, 0 carater perturvador do observador, exigindo dele tum compromisso de sigilo e de participagto no grupo. Diante destes fatos, novas observacdes foram feitzs, mas assumindo a intervengio como inevitivel, colocando-se 0 observador A disposiggo do grupo para narrar a sua anilise @ qualquer ‘momento, pois também aclarou para nbs que © grupo s6 di saltos qualitativos no seu proceso quando ocorrem anilises e reflextes criticas no proprio grupo. Com isto esperavamos precisar as condi- iis: ” SILVIA T. M. LANE bes nevessérias para que um grupo se tornasse consciente € transformador. Esta nova etapa de observacdes participantes foi sendo também conérontada com as observacbes feitas anteriormente, o que nos permitiu precisar slgumas categorias fundamentais para a anélise do processo grupal. A primeira calegoria detectada foi a de produglo, onde a produgio da satisfagdo de necessidade, como apontado por Cal- derén e De Govia, implica necessariamente a produgio das relagbes grupais, ou seja, a produgo do grupo & produgko grupal — é 0 Processo histérico do grupo. Ou seja, 0 proceso grupal se carac- teriza como sendo uma atividade produtiva. ‘Uma segunda categoria definida & a de dominagio, no sentido de que na sociedade brasileira capitalista as condigbes infra- estruturais para serem reproduzidas implicam mediagdes tais que, de formas as mais diversas, reproduzem relagies de dominago, € ‘que estas implicam a unicidade dominagdo-submissio, ou seja, nos grupos onde a proposta de relacionamento é de igualdade entre os membros detecta-se a dominagao pela submissio dos membros a uma outra pessoa, Esta categoria leva necessariamente & andlise das instituigBes que fazem a mediagZo infra e superestrutural, através da definigdo de pepéis como necessirios para a reproducio de selagdes sociais conforme previstos pelas instituicdes de uma dada sociedade, A categoria de grupo-sujeito (adotamos a denominagio de Loureau) de fato s6 pode ser precisada nessa diltima etapa de observagdes quando 0 observador, como participante, analisava as contradigdes decorrentes das relagdes de dominagdo, levando o grupo a uma auto-anilise, porém, em nenhum momento conse- guimos detectar um grupo como um todo egindo em plena cons- cigncia, Detectou-se pessoas em processo de conscientizagio, enquanto outras resistiam a mudangas, ¢, quando a pressio oriunda da andlise se tornava perturbadora, a tendéncia era sempre de 0 grupo se desfazer, soja pela separacto fisica, seja pela re-orga- nizaglo de tarefas de forma a torni-las independentes entre si, fazendo com que o produto final fosse apenas somat6ria de produtos individuais, ou seja, uma re-organizagio que é a propria negagdo do grupo. Esta _negaclo do grupo, controntad com observagio de grupos onde as tarefas eram sempre individuais, sem haver ages necessariamente encadeadas para se atingir um produto, nos leva OINDIVIDUCE AS INSTITUIGORS ” Acategoria de ndo-grupo e A comprovagito de que s6 € grupo quando ‘a0 se produzir algo se desenvolvem e se translormam as relagves entre os membros do grupo, ou seja, 0 grupo se produz. Um exemplo tipico de ndo-grupo é aquele onde as pessoas se reuniam em ‘uma instituigo pata apreender e fazer trubalhos manuais, cada um envolvido com o seu. Fisicamente as pessoas esto “agrupadas”, elas se relacionam conversando assuntos os mais diversifizados, porém o fato de cada uma ter 0 seu trabalho faz com que as relagBes entre elas no se alterem, por mais tempo que permanegam juntas.* Acreditamos que para um grupo como tal ser um grupo- sujeito & necessdrio haver cireunstincias como pressio exterior ao grupo (como no presidio) ou uma condigao de marginalizacao ‘como um grupo observado de pessoas ceges), ou entio haver um forte compromisso entre os membros, como 0 politico ou do tipo de sociedade secreta, pols os processos de conscientizagio ocorrem em individuos em momentos diferentes, passando por estégios dife- rentes, 0 que gera contradigies, em geral, dificeis de serem supe- radas, fazendo com que ocorra a dissolugao do grupo, antes de uma conscientizagSo grupal, E, obviamente, na nossa sociedade mil ¢ um recursos stio oferecidos para evitar esta conscientizacio grupal, perturbadora para ostatus quo. Esta andlise nos permitiu constatar com clareza, por um lado, que o grupo social & condi¢to de conscientizagao do individuo , por outro, a sua poténcia através de mediagbes institucionals, na produgio de relagaes sociais historicamente engendradas para que sejam mantidas as retacdes de produgao em uma dada sociedade. ‘Outro ponto de fundamental importéacia para 0 processo grupal ¢ ara superacdo das contradigdes existentes & a necessidade de 0 grupo analisar-se enquanto tal. O grupo que apenas exceuta tarefas sobre transformacdes que, se nao forem sesgatadas conscientemente pelos membros, ele apenas se re-ajusta, sem que ocorra quelquer mudanga qualitativa nas relagdes entre seus membros. (1). Este nfo grupo sa identifica com 9 que Sartre Lapassade chamam de serisidade, © 22 aproxima da nogSo de segmentaridade de Loureau. S80 ‘agrupamentos onde, tanto as necesskdades como of motives e as atlvdades ecorrentss 880 individuals e n8o consecUéncias de ume relapao onde redamina 0 “‘nés'” e que exige a cooperacdo da todos. 8 SILVIA. M, LANE, Bibliografia Barremblitt, Gregorio (org.), Grupos — Teoria ¢ Téenica, Rio de Janeiro, Graal-IBRAPSI, 1982. Carrera Damas, G., “Puntos. de vista de um historiador acerea de la Pricologia Social hist6rica”, in Boletim Avepso, n° OL, vol. 1, 1979. Doise, William, L articulation Psychossoctologique et les Relations entre Groupes, Bruxelas, Ed. A. de Bock, 1976. Fernandes Calderén, J.'e De Govia, G_C. C., El Grupo Operativo — Teoria y Pritica, 28 ed., México Df, Edit. Extempordneas, 1978 Horkheimer, M, ¢ Adomo, 'T., Temas basicos de Sociologia, Sto Paulo, ‘Cultrix e EDUSP, 1973, Lane, S. T. M., "Uma Redefinigao da Psicologia Social”, in Educagdo Sociedade, n? 6, jun. 1980, ; Lapassade, George, Grupos, Onganizagées ¢ Instituigdes, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1977, Loureau, René, A Andlise Institucional, Petropolis, Vozes, 1975. Mao-Tsé-Tung, Tese da Contradicao, Betém, Bd. Boitempo, 1978, Marz, K, e Engels. F., Lideologie Allemande. trad. de R. Cartelle, Paris, Eds. Sociales, 1953. Mars, K., “These sur Feuerbach” in Marx, K. ¢ Engels, F. Etudes Phi- Tosophiques, Eds. Sociales, 1951. Montero, Maritza, “Psicologia Social e Historia”, in Boletim AVEPSO, af, vol. 1, 1978. Nallah Neto, A., Psicodrama — Descolonizagio Imaginéria, S40 Paulo, Ed. Brasiliense, 1979, Ofshe Richard, J. (e4.), Interpersonnat Behavior in Small Groups, Nova Jersey, Prentice Hall, 1973, Pichon Riviére, E., E! Proceso Grupal — Del Pricoanalisis a la Pricologia ‘Social, ed., Buenos Aires, Ed. Nueva Vision, 1980, Sartre, JP., Critique de ta Raison Dialeshique, Paris, Gallimard, 1960. Familia, emocio e ideologia José Roberto Tozoni Reis A familia tem estado em evidéncia, Por um lado ela tem sido 0 centro de atengao por ser um espaco privilegiado para a-rogi- mentagdo ¢ fruigdo da vida emocional de seus componentes. Por outro, tem chamado a atengdo dos cientistas, pois, ao mesmo tempo ue, sob alguns aspectos, mantém-se inalterada, apresenta uma grande gama de mudangas. E comum ouvirmos referéncias a “erise familiar”, “conflito de geragdes”, “morte da familia”. Ela também suscita polémicas: para alguns, familia é a base da sociedsde ¢ ‘garantia de uma vide social equilibrada, célula sagrada que deve ser ‘mantida intocévet a qualquer custo, Pata outros, a institaigo familiar deve ser combatida, pois representa um entrave ao desenvolvimento social; € algo exclusivamente nocivo, € 0 local ande as meuroses slo fabricadas ¢ onde se exerce a mais implacivel dominagdo sobre as criangas e as mulheres, No entanto, 0 que nao pode ser negado é a importincia da fam{lia tanto a0 nivel das ‘elagdes sociais, nas quais ela se inscreve, quanto ao nivel da vida ‘emocional de seus membros. E na familia, mediadora entre o indi- viduo € a sociedade, que aprendemos a pereeber o mundo e a nos situarmos nele. F-a formadora da nossa primeira identidade social. Ela € 0 primeiro “nés” a quem aprendemos a nos refrir. A instituigdo familiar tem ocupado a atengdo de estudioses de todas as citncias sociais. O que essas abordagens tém tido em comum, vie de regra, € 0 fato de ver a familia apenas através da Stica de uma disciplina cientifica especializada. Pode-se verificar que muitas vezes se repete, com argumentos tiradox do repertério 100 JOSE ROBERTO TOZONI REIS cientifico, o que a ideologia tem veiculado dentro da propria familia: 4 representagio da instituiglo familiar como algo natural ¢ imut4- vel. Assim, por exemplo, Taleott Parsons? dé a familia uma grande importancia, pois para ele a sociedade & um sistema no qual as relagdes desta com o individuo se dio de forma harmoniosa ¢ auto-reguladora. A familia teria por fungdo desenvolver a sociali- ago basica numa sociedade que tem sua ess@ncia no conjunto de valores ¢ de papéis. Parsons fala da sociedade capitalista ¢ toma familia dessa sociedade como universal e imutével: a familia nuclear ‘burguesa torna-se sindnimo de familia. Outras formas, quando existontes, s20 consideradas, no méximo, estruturas que ainda vao se diferenciar em direc30 a esse modelo ideal de familia. Freud? também enveredou por essa mesma senda. Noentanto, isso nfo significa uma negagao de suas importantes descobertas, ‘mas impoe a necessidade de situa-las em seu devido lugar. Ele colo- cou as claras o funcionamiento interno da familia, desmontande os ‘mecanismos psiquicos envolvides na estrutura familiar ¢ que tém como corolério a dominagRo € a repressio sexual, Mas 0 que para Freud "a familia" na realidade trate-se apenas de uma das formas que a instituig8o familiar assume em determinado momento histo rico — a familia burguesa. O reducionismo psicoligice de Freud. a falta de uma visio social fazem-no também naturalizar ¢ uni versalizar a familia burguesa, Os antolhos ideolégicos fazem com que 0 autor da grande descoberta da fung2o repressiva da faratlia nao consiga inserir suas descobertas na contexto da Historia c, em conseqiiéncia, postule uma universalidade para a familia burguesa, consagrando come natural ¢ inevitivel a dominagao c a repressio. ‘A determinagao histérica da estrutura familiar coloca em discussdo uma importante questo: a das relagbes enire familia © sociedade. Essa discussio teve seu primeiro grande passo nos tra- ‘balhos de L. Morgan, que estudou as relagdes de parentesco em diversas tribos americanas. Engels,’ apoiando-se nas deseobertas de Morgan, elaboron a formula¢io materialista dialética sobre @ génese 11) Pareons, Talcott et ati, Family Socialization and interaction Pro- 208s, Nova lorque, 1965. 12} Para _um maior aprofundamento da questdo, ver “O conesito de faralia em Freud” in Poster, M, Teoria Critica da Faris, Rio de Janeiro, Zahar, 1978, 18) Engels, F., A orlgem de familia, de propeiedade privada @ do nstac, Rio de Janeiro, Vibra, 1964. OINDIVIDUOE AS INSTITUICOES, 101 as fungoes da familia monogamica. Para ele, foi na famtlia que te iniciou © processo de divisto social do trabalho que foi inicial- mente @ divisto do trabalho sexual. Essa divisfo foi o ponto de referéncie para uma complexificagio do processo de divisto do trabalho que culminou com a divisio entre trabalho manual e ‘trabalho intelectual ¢ (coneomitantemente) com a principal divisto, sobre a qual se funda 0 modo de produc capitalista: a oposigao entre os proprietirios das condigbes de produgdo ¢ os que possucm apenas uma forca de trabalho, explorada petos primeiros. © estégio de desenvolvimento das forcas produtivas e do processo de divisto social do trabalho determinam entao a estrutura familiar. Segundo Engels, a familia monogimica surgi e foi determinada pelo apare- cimento da propriedade privada. Da forma de familia grupal, na sociedade primitiva, a organizacSo familiar teria evoluido para a famili monogdmica, passando por diversos estigios intermedirios, cada um deies caracterizado sucessivamiente por um grau cada vez maior de restrigdes as possibilidades de intercurso sexual. A calmi- nincia desse processo se deu com o casamento monogimico, composto por im casal e com um cardter permanente de curacao. [Uma de suas principais finalidades seria a de garantir a transmissao da heranga a filhos legftimos do homem — responsivel pela acumulagio material —, © que s6 seria possivel com a gerantia de que @ mulher exerceria sua sexualidade no Ambito exclusivo do casamento, Dai a importincia da virgindade ¢ da fidelidade conjugal da mulher. Embora algumas das formulagdes de Engels estejam ultrapassadas, principalmente no que se refere a aglicagdo genérica da evolugdo esquemética dos modelos de familia em todas as sociedades, as ligagdes entre monogamia e propriedade orivada, ambas se reforcando reciprocamente, se apresentam cada vez mais shlidas. ‘A relativa autonomia da organizagdo familiar é determinada por uma complexa interagao de diversos fatores que se referem tanto as formas peculiares de'organizagto interna do grupo familiar, ‘quanto aos aspectos econémicos, sociais ¢ culturais que 0 circuns- crevom. & por isso que, embora a forma de familia predominante fem todos os segmentos sociais seja a da familia monogimica burguesa, existem padrécs internos que diferenciam as familias das diferentes classes, assim como padres que diferenciam formas familiares diferentes dentro de uma mesma classe social. Atual- mente a classe média urbana apresenta uma grande riqueza ‘na variagio de padres familiares, Ao mesmo tempo que abarca & 102 JOSE ROBERTO TOZONI REIS. familia caracterizada por um extremo conservadorismo e uma rigida hierarquia interna, abrange também formas mais liberais de vivéncia familiar que marcam tanto as rclagdes entre os seus ‘membros quanto um posicionamento mais critico diante da sexua- lidade. ‘Assim, vé-se que embora a familia tenha um nivel de auto- nomia em relago a economia, 0 que faz, em alguns casos, com que suas mudangas ado acompanhem imediatamente e no mesmo sentido as mudangas econdmicas, a estratégia familiar € sempre tragada fora dela, E portanto impossivel entender o grupo familiar sem consideri-lo dentro da complexa trama social ¢ historica que 0 envolve. A partir disso podemos fazer algumas consideragdes que nos ajudam a situar 0 presente estudo. A primeira delas € que farvfia no algo natural, biolégico, mas uma instituigao criada pelos homens em relacdo, que se constitui de formas diferentes em situagdes e tempos diferentes, para responder as necessidades sociais, Sendo uma instituigao social, possui também para os homens uma representagao que € socialmente elaborada e que orienta a conduta de seus membros. ‘A segunda consideragio é que a familia, quelquer que seja sua forma, constitui-se em torno de uma necessidade material: a repro- dugio. Isso nao significa que & necesstrio haver uma determinada forma de familia para que haja a reprodugdo, mas que esta é condigio para a existéncia da familia, ‘A terceira consideragao é que, além da sua fungtio ligada & reproducto biolégica, a familia exerce também uma funcéo ideo- Ibgica, Isto significa que além da reproducao biolbgica ela promove também sua propria reproducao social: & na familia que os indi- viduos so educados para que venham a continuar biologica € socialmente a estrutura familiar. Ao realizar seu projeto de repro- duce social, a famitia participa do mesmo projeto global, referente 4 sociedade na qual esta inserida E por isso que ela também ensina 42 seus membros como se comportar fora das relagBes familiares em toda e qualquer situagio. A familia &, pois, a formadora do cidadio. Resumidamente podemos considerar que as duas importantes fungdes da familia sto: 1) econiémiea, no que se refere & reprodugio de mlo-de-obra; 2) ideolbgica, no que se sefere & roprodugtio da ideologia dominante. Alguns tipos de familia tém uma funcio econémica imediatamente vishel. E 0 caso das familias que se constituem como unidade de produgdo econdmica, os colonos da cultura do café, por exemplo, ou as familias proprietirias de terras OINDIVIDUOE AS INSTITUIGOES 10 em frentes agricolas, nas quais.o trabalho famitiar é a atividade mais vidvel.¢ Como a ideologia opera na familia? Ela comega por apre- sentar uma noglo ideologizada da prépria familia. Exsa nogto, yeiculada principalmente pelos pais, os principais agentes da edu- cago, ensina @ ver a familia como algo natural e universal e, por isso, imutével. Depois passa a apresentar da mesma forma o mutido extrafamiliar © todas as relagdes sociais. E claro que @ familia curmpre sua funcio ideologica em complementacao a outros agentes sociais. Sua importincia, 3s vezes relativizada no processo globat da transmisso da ideologia dominante, ndo pode ser negada. Al thusser, por exemplo, a0 descrever as instituigdes usades pelo Estado na manutengao da dominagio politica da burguesia, consi- dera a familia um importante aparelho ideolsgico, embora afirme ser a escola o aparetho ideol6gico mais utilizado.s Marcuse,t ao estudar as sociedades capitalistas mais avan- sadas, aponta uma descentralizagdo das fungdes da familia, o que ele qualifica como um aperfeigoamento dos mecanismos de domi- nagio, Se a familia burguesa dos periodos anteriores criava a submissio, criava também a revolta que se expressava no incon- formismo ¢ na luta contra o pai e a mac, alvos facilmente identi fichveis como agentes da dominacdo. Na civilizagio madora “a dominagdo torna-se cada vez mais impessoal, objetiva, universal também cada vez mais racional, eficaz ¢ produtiva’”.’ O que antes era Fungo quase exclusiva da familia é hoje disseminado por uma vvasta gama de agentes sociais, que vao desde a pré-escola até 05 meios de comunicagio de massa, que utilizam a persuasdo na imposigo de padres de comportamento, veiculados como normais, dificultando a ideatificagio do agente repressor. Apesar da verar cidade dos argumentos expostos, nio se pode dizer que a familia hoje seja dispensavel on que tenha sua importincia diminvida no (4) Ver Brando, Catlos Rodrigues, “Parentes © Parceiros (relagdes do parentesco entre camponeses de Golds)”, i Almeida, Maria S. Kafes de, Calc de Retahos ests sobre a amano Bratt, Sto Paul, reine, (5) Ver Althusser, Louis, Mdeologia # Aparelhos ldoolégicos do Estado, Portugal, Presence, Brasil, Martins Fontes, 1974. (6) Ver Marcuse, H., Eros e Civtzago: Uma interpratacho ftosstica do poneamente de Freud, Bio de Janciro, Zaha, 1972. 17] Marcuse, H., "A dialéties da cvikzao", in Marcuse, H., Bras @ Cwileagéo, Partel, cap. 4.91, Riode Janeiro, Zahat, 1972. 104 JOSE ROBERTO TOZONI REIS processo de imposigio da ideologia dominante. Apesar da ago tficiente da Escola e dos outros agentes citados por Marcuse, que fagem de forma mais racional e organizada, nao resta diivida de que ease eficiéncia sb € possivel porque apdia-se sobre as bases ideologicas estabelecidas pela familia, que inclusive preparou ‘anteriormente seus membros para reconhecer outras formas de autoridade. A atuagho familiar ¢ vivida intensamente pelos indi- viduos, agindo poderosamente no exercicio da subordinagto ideo- fégica, pois esta presente desde 0 infcio da vida e & marcada por fortes componentes emocionais que estruturam de forma profunda a personalidade de seus membros. Para entendermos mais profundamente como a familie ‘cumpre suas fungdes de agente da reprodugao ideologica ¢ neces- sirio voltarmos a atengio para o seu funcionamento interno. Nesta perspectiva, podemos observar o que mais a diferencia de outros grupos: ela é 0 locus da estraturacdo da vida psiquica. E a maneira peculiar com que @ familia organiza a vida emocional de seus membros que the permite transformar a ideologia dominante em ‘uma visto de mundo, em um codigo de condutas ¢ de valores que serio assumidos mais tarde pelos individuos. Para methor enten- dermos essa organizagio interna da familia, usaremos os conceitos desenvolvidos por Mark Poster.* Para cle “a famtlia é 0 lugar onde se forma a estrutura psiquicae onde a experiéncia se caracteriza, em primeiro lugar, por padres emocionais. A fungi de socislizacho esté claramente implicita nesta definicio, mas a familia ndo esta sendo conceptualizada primordialmente como uma instituicao investida na fungio de socializagao, Ela é, em ver disso. 2 loca- lizagdo social onde a estrutura psiquica é proeminente de um modo decisivo”.* Ela possni também um outro cardter sumamente impor- tante: “Além de ser 0 locus da estrutura psiquica, a familia constitui ‘um espago social distinto na medida em que gera ¢ consubstancia hierarquias de idade € sexo. (...) A familia € 0 espago social onde geragtes se defrontam matua e diretamente, ¢ onde 0s dois sexos Gefinem suas diferencas e relagdes de poder. Idade ¢ sexo esto presentes, & claro, como indicadores sociais em todas as instituigdes. Entretanto, a familia contém-nos, geta-os ¢ os realiza em grau extraordinariamente profundo, Por outras palavras, o estudo da 48) Poster, Mark, Teoria Crtica da Ferntia, Rio de Janeiro, Zahar, 1979. (9) foe, ibidern, 0. 161. ‘OINDIVIDUO E AS INSTITUIGOES 108 familia fornece um excelente lugar para se a i dadeestrutraasdelcrminagtesdeWadeetean™ = A caracterizagBo da familia essenciaimente pelas vivanc cmocionais deemvevidas entre seus membros « pela herargula sexual etéria conduz a analise de seu funcionamento a ventrar-se no binémio autoridade/amor. As vias pelas quais afeto e poder se relacionam dentro da familia permitem-nos comparar os diferentes modelos de familia e entender a dindmica intema da familia moderna asiocada a suss funtion de rerodutrs iho, ‘ontinuaremos usando as idéias de Poster na compar . tpos de tama eno extodo das expesfcdades da laiio noderne, ou familia ouclear burguesa. Quando usames 0 modelo burgués familiar como sinénimo de familia atual, assim o fazenos por entender que este padrio de organizagio origindrio na burguesia espalhou-se pelas demais classes sociais que, paulatinamente, 0 adotaram. Isso ndo significa negar a existéncia de outras fermas de vida familiar nem impor uma padronizagio absoluta a zodas as lunidades families, mas apenas tomar 0 modelo familiar que predomina na sociedade om que vivemios ¢ que correspande aos valores da ideologia dominante. Aliés, a familia burguest, a0 se "eposntr ao peas come aia ge norma, mas também Ano ; . ca a ick pe nada mais faz do que eumprir sua Poster apresenta quatro modelos de familia: a familia aris wocritce e 4 tania, campones. don aéeulos XVI © XVID a familia proletéria c a familia burguesa (do século XIX). Demonstra ainda a determinagSo de suas estruturas emocionais pelas condigtes socials em que se inscrevem no contexto hist6rico, Os tipes fain Tiares propostos nio pretendem aprecentar como idBnticas todas as uunidades familiares da classe social a que se referem, mas apenas eaptar o que hi nelas de essencial para o estudo de suas estruturas emovionais, em determinados momentos de sua historia. De inicio, apresentaremos, de forma breve, ips caractres das familias aristorata, camponesa ¢ plete ira para osteriormente discutirmos as pecullaridades da familia burguesa que, segundo Poster, nasceu a0 seio da burguesia curopéia em meados do século XVIII. 110) idem, ibidem, pp. 161-162. 106 JOSf ROBERTO TOZONI REIS. A aristocracia tinha sua riqueza assentada nos favores do monarca e no controle da terra — que era patriménio a ser conservado e nio investido. Sua unidade de habitacdo era o cestelo, que abrigava, além da familia, parentes, dependentes, eriados € clientes. A linhagem era determinante das relagdes de parentesco © sua preservaciio revestia-se de capital importincia: por isso, 0 case- niento era antes de tudo um ato politico, do qual dependia a manotengfo das propriedades familiares. A habitaeao aristocrata no favorecia nenhuma forma de pri- vacidade, pois era caracterizada por uma baixa diferenciaco fun- ional de suas pecas, pela auséucia de corredores, © que provocava tum grande trdnsito por todos os cOmodos ¢ por um mobitiério dotade de multifuncionalidade. As condigdes sanitérias eram pre- cérias, © que explica em parte 0 alto nivel de mortalidade infantil que acompanhava o alto nivel de natalidade. ‘As relagdes entre os membros da casa eram rigidamente hierarquizadas e estabelecidas pela tradi¢do. O trabalho masculino restringia-se 4 guerra, © as fumgDes da mulher eram relativas & onganizagio da vida social no castelo. O lazer era cultivado € 0 ‘trabalho desvalorizado. A criado dos filhos nao era atribuigdo das mies. Os bebés eram amamentados por amas-de-leite e entregues 205 cuidados de criados. © treinamento de hébitos higitnicos era minimo, Como conseqlincia desses métodos de educagio aristo- critica, a identificagdo das criangas ndo privilegiava as figuras arentais, como seus objetos, mas valorizava a linha da familia, Elas estadeleciam seu primeiro vinculo com a ama-de-leite, eram em eral educadas por vérios habitantes do castelo e muitas vezes Podiam ser enviadas a outras casas nobres para complementar sua educacio. O seu aprendizado era dirigido para a obediéncia hierarquia social e nesse sentido 0 castigo fisico era o instrumento comuinente utilizado. Os aristocratas desenvolviam entdo um agudo senso das normas sociais externas, mas ndo um severo superego. O sentimento ligado as transgressies era a vergonha e nao a culpa. A. sexualidade aristocrata obedecia a padrées préprios. Seu exercicio era reconhecido tanto para os adultos de ambos os sexos, quanto para as erfangas. Os eristocratas praticavam muito o sexo entre sie também com a criadagem. As necessidades sexuais das mutheres eram reconhecidas. Hi registros de casos de mulheres aristocratas que se tornaram famosas por sua intensa vida erotica, ‘sem que isso provacasse a perda de seus direitos, ou da aceitagao social. As concubinas eram publicamente reconhecidas e 0 sexo nae OINDIVIDUO E AS INSTITUIGOES: 107 era considerado assunto privado ou secreto. As brincadeiras sexuais das criangas eram aceitas ¢ até estimuladas, em razo do que estas ‘do experimentavam um antagonismo entre o corpo ¢ 0 mundo social, O corpo nto era vivide como objeto de ambivaléncia sexual. Portanto, a familia aristocrata ndo atribufa valor algum 4 priva- cidade, domesticidade. cuidados maternos ou relagdes intimas entre aise filhos, Embora diferindo da organizacdo da {amflia da aristocracia, a familia camponesa apresentava mais tragos em comum com esta do que com a familia burguesa.!! ‘Assim como a familia aristocrata, a camponesa se carac- terizava por um alto padrao de natalidade, associado a uma também acentuada mortalidade infantil. Apesar de a pequena familia nuclear set a unidade mais comum, este ndo era 0 grupo social mais significativo para os seus membros, Era a aldeia que todos estavam integrados por sblidos lagos de dependéncia. A aldeia regulava a vida cotidiana através dos costumes ¢ da tradicao: 06 casamentos, assim como os enterros, davam origem a rituais que envoiviam a aldeia toda, ou pelos menos grande parte dela; também 0 namoro era regido por um conjunto de procedimentos coletivos, peles quais se providenciava a formagto de pares considerados adequados. A familia nfo era o espago privado ou privilegiado € 05 laos emocionais se estendiam para fora dele. As crigncas aprendiam a depender principalmente da comunidade e nao dos pais: desde pequenes participavam de toda rotina da vida da aldeia Ja na infancia aprendiam a obedecer as normas sociais, inclusive, com bastante freqléncia, as custas de punigdes fisicas, Por isso, & semelhanca das criancas atistocratas, sua estrutura psiquica era orientada para a vergonba ¢ nio para a culpa. “A aprovarto das externa, baseada em sangdes pilblicas por toda a comu- A mae camponesa competia a criagéo dos filhos, de forma integrada as relagdes comunitirias. Bla era ajudada por parentes, por mogas mais novas ¢ também por muiheres mais velhas que ensinayam e fiscalizavam as praticas relativas a0 tratamento dos (11) Em fungle da grande diversidade de condictes de vida dos camponeses europbus nos séculos XVI © XVil, Poster limita-se, para estoboleear © modelo do feria camponesa, aos que viviam em aioe. (12) Poster, M., 0p. cit, p. 208. 108 108 ROBERTO TOZON! REIS. bebiés, Mas as criangas no ocupavam o centro da vida conjugal. ‘Anecessidade da presenga da mulher no trabalho do campo fazia ‘com que os filhos nio fivessem a mesma atengdo que thes seria dirigida na fam‘lia burguesa. O enfaixamento dos bebés era comum, pois liberava a mae para o trabalho. A amamentacdo era realizada sem envolvimento emocional. Havia pouea preocupayao com 0s habitos higinicos e com as atividades sexuais das criangas. Elas se familiarizavam desde cedo com 0s atos sexuais, pois dormiam varias pessoas em um mesmo quarto, sendo que as vezes os filhos dormiam na mesma cama com os pai Em funglio dessa dependéncia da aldeia e dos vinculos que assim surgiam, 05 pais das criangas camponesas no eram os iinicos abjetos de identificagdo. Estes eram dispersos por toda a aldeia. ‘Assim como entre a acistocracia, era comum a crianga camponesa passar por um petiodo de aprendizagem em casa de outra familia. Enfim, apesar de viver em pequenas unidades nucleares, a familia camponesa, tendo toda sua vida yoltada para fora de si, também desconhecia e nao valorizava a domesticidade ¢ a priva- cidade. ‘A familia proletaria é vista por Poster em trés fases que vio da sua constituigo até a adogio do modelo familiar burgués. Sue constituigao deu-se no periods inicial da industrializaglo (inicio do século X1X) sob condigées de extrema peniiria social ¢ econdmica. Em geval, todos os membros da familia trabalhavam, em jornadas ‘que variavam de 14 a 17 horas. As criangas iam para a fabrica a partir de aproximadamente dez anos dc idade. As condigdes sanitirias em que viviam os trabalhadores eram terriveis, favor recendo o alto indice de mortalidade infantil. Nesse contexto, uma forma de resistir & opressio imposta pelo capitalismo foi a manu- tengo dos antigos lagos comunitérios. O proletariado conscrvou ‘vrios dos costumes camponeses, pois foi dentre estes que se deu 0 recrutamento da maioria dos novos trabalhiadores urbanos. Nessa fase, a vida da familia proletiria {oi caracterizada por formas comunitarias de dependéncia ¢ apoio miituc. Os filhos eram eriados de maneira informal, sem que fossem objeto de especial atengdo e fisealizago por parte dos pais, que no tinham tempo para se dedicar aos filhos. O treinamento dos habitos higiénicos ndo ‘causava preocupacio, assim como néo havia repressdo & mastur- ‘vaso infantil, Nessa época, as criangas proletirias conviviam mma ampla rede de relacionamento com adultos, pois na maioria des OINDIVIDUO EAS INSTITULGOES 108 vezes cram criadas por parentes, vizinhos, vez eram rads por u mesmo soltar pelas (© segundo estigio da familia proletiria corresponde & se- gunda metade do século XIX, que coincide com © sparecimento de setores mais qualificados da classe operiria e com a agio de alguns filantropos burgueses preocupados com a melhoria das condies de vida de seus empregados.® Essa fase, na qual verficou-se uma melhoria das condigbes de vida operiria, € marcada por uma aproximacio dos padries burgueses de diferenciaso de paptis sexuais: a mulher passou a ficar mais tempo em casa com os filhos ‘Os homens estabeleceram a fabrica eo bar como pélos de graritagio de sua vida social, enquanto as mulheres passaram a deseavolver uma rede social feminina que integrava mies, filhss e outras parentas. © teroeiro estagio ocorreu ja no séeulo XX, com a mudanga da familia operdria para os subtirbios; a partir dai romperam-se os sineulos com a comunidade, A mulher, afasteda das redes femi- ninas tipieas da fase anterior, ficou isolada no lar e o homem passou a valorizar a domesticidade ¢ a privacidade. Ao mesmo tempo. 2 educagdo € 0 futuro dos filhos passaram a ser prioridede da fomilia. Essas transiormagdes foram acompanhadas de um reforgo dda autoridade paterna e de umn ineremento do conservadorisizo por parte de toda a familia proletéria. Um século depois de seu hascimento a famflia proletéria quase nao se distinguia mais da familia burguesa, em termos de padrBes emovionais que earac- terizavam as suas relagDes internas. Isso signifiea que houre um aburguesamento ideolbgico da classe opetiria tio que cone:rne A vida familiar. ‘A familia burguesa, nascida na Europa em meades do século XVIIL, rompeu com os modelos familiares vigentes ¢ criow novos padrées de relagies familiares, Esses novos padrdes, que corres- pondiam as necessidades da nova classe dominante, jé estavam nitidamente estabelecidas no inicio do séeulo XIX. Eles se carac- terizavam antes de tudo pelo fechamento da familia em si mesma. Esse isolamento marcou uma clara separagao entre a residéncia e 0 local de trabalho, ou seja, entre a vida piblica e a privada. Para o bourgués, 0 trabalho era o esparo no qual as relagdes deveriam ser (13) A principal roferdncia ussda por Poster € 8 Inglaterra. 110 JOSE ROBERTO TOZONE REIS regidas pela frieza ¢ pelo calculisme, qualidades imprescindiveis para se vencer no mundo dos negocios, Sendo o mundo dos negocios ‘o império da razo, o lar passou a ser o espago exclusive: da vida ‘emocional, no qual a muther passaria sua vida em reclusto. Outras separagtes se fizeram; a mais notavel foi a rigorosa divisto de ‘papéis ‘sexi © marido passou a ser o provedor material da casa € a autoridade dominante, considerada racional e capaz de resolver quaisquer situagdes. Antes de tudo, deveria ser um homem livre autdnomo, conforme o ideal burgués. . A mulher burguesa ficou responsivel pela vida doméstica, pela organizagio da casa ¢ educado dos filhos. Considerada menos capaz ¢ mais emotiva que o homem, tornou-se totalmente depen- dente do marido. Além de depender dele materialmente, sua iden- tidade pessoal seria determinada pela posigao que ele ocupasse no mundo extrafamiliar. Isolando-se da comunidade, perdeu seu apoio, uma vez que as redes femininas deixaram de operar, © ficou totalmente & merc de marido. Deveria pois agora obedecer e servir a0 marido para que este obtivesse as melhores condigdes possivels para lutar no mundo dos negocios. O sucesso do marido seria o seu também. . . ‘A educagio dos filhos se constituiu no principal objetivo do casamento burgués e passou a absorver todo o tempo da mae. CO filho deveria ser educado para aquilo que a burguesia estabelecera como ideal: vir a ser um homem auténomo, autodisciplinado, com capacidade para progredir nos negicios ¢ dotado de perfeigao moral. Se por um lado a mulher era agora valorizada por sex responsavel pelo futuro dos filhos, por outro lado essa Tesponsa- ‘bilidade nio deixava de The trazer grandes tensdes, pois ela seria culpada por qualquer desvio na educaréo ou mesmo qualquer doenga que 0 prejudicasse. Ela deveria ser uma mie perfeita para que os filhos também o fossem. . A familia burguesa também definiu novos padrdes de higiene, que contribuiram para uma progressiva redugao da taxa de mortali- dade infantil, a qual foi acompanhada por um correspondente decréscimo na taxa de natalidade. Grande importancia foi atribuida f0 asseio da casa ¢ de seus moradorcs, O aleitamento materno passou a ser valorizado e cercado de medidas bigiénicas, além do grande envolvimento emocional da mie. Foi abolida a pratica do enfaixamento dos bebés, que passaram a receber atenc&o constante por parte de suas mes. Os hébites alimentares toram rigorosa- ‘mente regularizados, assim como as priticas meticulosas de lim. ‘OINDIMIDUGE AS INSTITUICOES am peza. O corpo das criangas burguesas primava pelo asseio. Nesse contexto se destacou também o horror aos dejetos humanos, que caracterizou o aprendizado da fase anal. A ertanga burguesa aprendeu a identificar no seu corpo algo que doveria ser objeto de constante fiscalizago ¢ ago de limpeza para que nao fosse apenas um “reeipiente e produtor de imundicies".* © contrcle dos esfinctores passou a ser um dos objetivos principais dessa ‘ase de edueagio burguesa, as vezes desenvolvido precocemente e envol- vendo o uso de insélitos procedimentos como, por exempio, ‘ode amarrar a etianga ao urinol. E claro que a familia nuclear burguesa definiu também novos padrdes para a sexualidade, Foi nto seu seio que a diferenciagao dos papéis sexuais foi levada as dltimas conseqléncias. Colocou-se em ritica, com todo o rigor, a interdi¢do a soxualidade feminina fore do casamento © a restrigo 40 desfrute do prazer sexual. No casamento a atividade sexual feminina deveria restringir-se & uecessidade de procriagdo. As mulheres burgnesas passaram a set consideradas seres angelicais, acima das nevessidades animais do sexo, Dessa forma o casamento burgués passou a caracterizar-se por uma dissociago entre sexualidade ¢ afetividade. A familia era o reeamto do afeto mas niio do prazer sexual. Este passou a ser bbuscado fora do lar pelos homens, ern geral através da conquista de mulheres das classes inferiores. A repressio a sexualidade infantil ganhou um lugar de destaque na familia burguesa. A masturbagdio horrorizava os pais ¢ provocava vigildncia constante. A repressio & masturbacdo contava com 0 apoio da opiniao médica do século XIX, que a apontava como causadora das mais diversas doengas, desde acnes ¢ tumores até a Joucura. S80 dessa época 0s relatos de Freud sobre as ameacas de castracae feitas pelos pais, que na maioria das vezes nao tinham cardter metaférico, Também se encontravam facilmente a venda dispositivos que feria 0 pénis ou faziam soar o alarme quando 0 menino tinha uma eregao. As meninas também n&o escapavem da #¢do médica no combate a qualquer manifestago da sexualidade, que inclufa até cirargias, Assim, vamos encontrar um novo quadro de vida familiar estabelecido pela burguesia. Ele comega a ‘omar forma com a reclusio da vida familiar, que cria as condigbes para a {otal dependéncia dos filhos em relagio aos pais Por decorréncia 414) Poster, M,, op. en. 12 JOSE ROBERTO TOZONIREIS, dessa nova realidade ha uma enorme diminuigo das possiveis fontes de identificagdo para a crianga, Enguanto a crianga aristocrata, fa camponesa ou mesmo a operéria se defrontavam com uma ample gama de possibilidades de idetifieasio, a crianga burguesa tinha apenas as figuras pasentais, ou acabava tendo na realidade apenas lum objeto de identificagao — 0 progenitor do mesmo sexo — em virtude da rigorosa divisko de papéis sexuais que presidia sua vida familiar. £ importante lembrar que a ctianga burguesa do século XIX quase nao tinha contato com outras pessoas antes de entrar na ‘escola, Passava, portanto, grande parte da sua infdncia apenas se contatando com os membros da prépria famtlia. ‘Com o isolamento da familia nuclear ¢ a conseqiiente inten- sificagio das relagdes afetivas entre seus componentes, a erianga ficou na total dependéncia de seus pais para a satisfagdo de suas necessidades de afeigto. Ela aprendia a importancia da vida emo cionale ficava & mercé dos pais pata receher sua cota de afeto. Bra Fungo dos pais, principalmente da mfe, suprir essa necessidade dos filhos. Mas esse afeto nao era dado incondicionalmente. Ele passou ‘ser associado as condutas que os pais esperavam do filho. E que ‘condutas eram essas? A primeira exigéncia que se fazia da crianca ‘era a de que ela aprendesse a ter o controle sobre seu proprio corpo. Essa era a aprendizagem basica que caracterizava 0 estagio anal das ccriangas burguesas do século pasado. Ela deveria aprender a renunciar ao prazer corporal em troca do afeto dos pais, O controle dos esfincteres, que era negligenciado em outras classes sociais, passou a ser de muita importéncia para a fam‘lia burguesa. Dal a tensio a que estavam submetidos 0s filhos, principalmente os que info se mostravatn eficientes nessa tarefa; eles eram ameagados de perder o que era essencial: a afeicio dos pais. Estava formada pois a cadeia que une amor ¢ autoridade: para ter © amor dos pais, 0 que era de importincia vital pafa a crianca burguesa, seria necessa que ela também os amasse; amé-los seria corresponder as expec~ tativas com as quais os pais a cobriam. Portanto, amar € sub- meter-te ¢ nlio amar seria uma alternativa insuportavel. O poder parental é travestido de amor para submeter os filhos. Essa submisstio do corpo em troca do amor dos pais conti- nuava a mesma no estégio genital e tornava mais agudas as vivéncias conflitivas, pois nesse estigio a masturbacio era severamente reprimida. Mudava 0 foco corporal mas continuava vigindo com todo vigor © prinefpio da educagho burguesa: 0 controle sobre 0 corpo (ou submissio aos pais) em troca da afeicAo parental. E nesse OINDIVIDUG E AS INSTITUICOES ua estigio que se descavolve um ister ch ae esforge sstemético para protelar @ A situagde confitva vivida pela crianga culminaye com 0 aparecimento em cena da ambivaléncia e do sentimento de culpa. ‘A negagio dos prazeres corporais provoca a cSlera dirgida Aquele aque impede a sua fruigdo, ou seja, a mile, mas esta & a0 mesma tempo oseu principal objeto de amor. Torna-se portanto impossivel transformar em agio o sentimento de dio contra a mae, como também éthe insuportavel a simples idéia de odiar a pessca que a ama e a quem tanio ama. Esta situagdo produz portanto ambi valénciae sentimento de culpa e fomece as bases para a fornagao do superego, como foi deserito por Freud, pela internalza;a0 das normas defnidas pelos pais no relacionamento com 0s filhos © que se baseiam numa detetminada combinagio dos fatores amor © autoridade, “O segredo da estrutura da familia burguesa foi que sem intengdo consciente de parte dos pas, ogou com os sentimentos intensos de amor eédio que a crianga experimentava por seu corpo e por seus pais, de tal modo que as regras parenteis forar inte nalizadas ¢ cimentadas no inconsciente, com base em annbos os sentimentos, ames e édio, cada um trabahando para susienter © reforgar 0 outro, © amor (como ideal de eg0) © 0 ddio (como superego) atuaram ambos para promover atitudes de respitabii- dade burguesa. Assim, a familia gerou o burguts ‘aut@nome’, um cidadio moderno que no nevessitava de sanges ou apoios erternos, mas estava automotivado para enfrentar 0 mundo competitivo, tomar decistes independentes e bater-se pela aquisigao do capital”, Assim, a familia burguesa, definindo-se pel> isola mento, privilegiando a privacidade, a domestcidade e supervalo- rizando suas relagdes emocionais intemas, ao formar 0 idadao autodiseiplinado estava servindo para “promover os interases da nova classe dominante e registrar de vin modo sem paraelo os conflites de idade e sexo” Poster apresenta-nos a familia burgucsa como criada por uma ova clase que eio se estabeecer conto dominant rand Freze Costa” descreve a transformagdo da estrutura familiar de. classe dominante brasicira do século XIX. Mantendo-se como classe (15) fem, ibidern, p. 199. (16) (em, nidern, p. 195. 7) Costa, Jurandie Fr 0, Graal, 199, Ardem madion » norma fomifar, Ric de us JOSE ROBERTO TOZONI REIS dominante, os senhores coloniais brasileiros passaram a adotar 0 modelo de familia nuclear burguesa em substituigdo & familia colonial extensa, servindo formagio de um Estado nacional. Essa transigdo foi desencadeada pelo movimento higienista que, respal- dado na autoridade médica, produziu uma nova familia com padres internos que muito se assemelhavam & familia burguesa européia: uma rigida hierarquia de idade e do sexo e uma peculiar combinagao entre amor e autoridade, que ensinavain aos filhos a rendincia ao prazer corporal em troca da afeigao parental que tem por resultado a ambivaléncia eo sentimento de culpa. ‘Até aqui vimos a familia, por um Jado como instituigo que ‘tem por importante fungio a reproducao da ideologia e por outro, consideramos a dinimica interna da familia burguesa. Como se articulam esses dois universos? Para responder a esta interrogagio & necessario recorrer A nogae de papel social. Niio hi consenso na literatura socioldgica quanto & definicio de papel, 0 uso do termo papel social & tomade por zeferéncia a J. L. Moreno, que divide os papéis em trés categorias: 0s psicos- somaticos, os socials eos psicodramaticos."* T, Salera denomina apenas papel © que é aqui designado como papel social ¢ expe sua definicio de forma precisa: “O conceito de papel engtoba dois aspectos analitica ¢ empiricamente distintos. Refere-se, de um lado. 3s expectativas de desempenho que recaem sobre um ator pelo fato de ocupar uma determinada posigdo social. Essas expectativas, que cristalizam tipifieagdes de padrdes interacionais, so veiculadas por ouiros atores que, em vierude da relagdo particular que mantém com o ator em questio, se configuram em “outros significativos” para ele. £ exatamente essa qualidade que converte suas emissbes em demandas legitimas e significativas para 0 ocupante daquela posigdo. Por outro lado, © conceito de papel se refere também ao desempento eletivo levado a cabo por um ator no exetcicia de sua fungio. A idgia de (18) Os paptis psionssomidticos correspondem as tungies biolégicas do cespécin na satisfagio das necessidades vitas, como comer, defecar, urinar; 08 Socials correspondem aos padres de conduta culturaimente produzidos & Toproduzides e os palcodramaticos compreencem os paptis das catagories, ‘ontoriores sampre que revitallzados através do uso da imaginacSo crisdore. Ver Moreno, J. L._"Toors y practica de los roles”, in: Morano, J. ., Psicodrame, ‘Seo V, Buenos Aires, Ed, Hormé, 1972, pp.213-241. (19) Salem, Tania. O vetho @ 0 nove — um estudlo de pepéis e confitos familiares, Petrépoits, Vazes, 1980. © INDIVIDUO £ AS INSTITUIGOES ns comportamento, conforme ¢ aqui entendida, engloba nBo apenas & pratica expressiva do ator, isto é, os dados observiveis de seu comportamento, como também as suas representagdes, ou soja, & ‘maneira particular como retrata ¢ explica suas priticas seguado sua prépria légica’.® Alguns aspectos merecem ser destacados: os apéis tém serapre um carter intetacional, isto é, seu desempenho exige um contrapapel que © complemente 20 mesmo tempo que significam também cristalizagdes de padrées de conduts. Alem disso, os papéis sociais sao engendrados pelas relagbes sociais © inseridos numa rede de significagoes. Por isso, nfo podem ser separados da ideologia dominante. Pode-se dizer que os papéis sociais, ao presereverem formas rigidas de conduta como as nicas alternativas possiveis para um sujeito numa dada situagio, sto a prépria ideologia corporificada. ‘Seo papel social ¢ a ideologia mantém uma certa identidade, & na familia, local privilegiado de teprodugio ideolégica, que se como o mundo de ho- nhe de mens com objetividade bresiliense

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