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HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL

> III
OTTO MARIA CARPEAUX

HISTÓRIA DA
LITERATURA
OCIDENTAL
Faculdade Estadual de Direito
de Maringá

rm > EDIÇÕES O CRUZEIRO


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DA EMPRESA GnÁncA O CRUZEIRO S. A.,
KM MAIO DE 1 9 6 1 , PABA AS EDIÇÕES O C R U Z E I R O ,
RUA DO LIVRAMENTO, 189/203, Rio DE JANEIRO.

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PARTE VI
FDND. U::v. B T . DE MARINGÁ

ILUSTRAÇÃO E REVOLUÇÃO
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BIBLIOTECA
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Universidade Estadual de Maringá


Sistema de Bibliotecas - BCE

Olretor
HERBERTO SALES

DIREITOS ADQUIRIDOS PELA SEÇÃO DE LIVROS DA


EMPRESA GRAPTCA O CRUZEIRO S. A., QUB SE
RESERVA A PROPRIEDADE LITERÁRIA DESTA EDIÇÃO.
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ORIGENS NEOBARROCAS

03detítulos de certas obras historiográficas tiveram a torte


definir, como fórmulas "clássicas", o caráter da
época tratada. O Outono da Idade Média, de Jan Huizinga,
definiu para sempre a feição crespuscular do "gótico flam-
boyant" do século XV. Caso oposto é o caráter primaveril
dos anos entre 1680 e 1715, que minaram ideologicamente
o reinado de Luís XIV, pondo termo ao Barroco e prepa-
rando a Ilustração, o racionalismo do século XVIII. Não
foi possível realizar essa grande revolução espiritual, sem
abalar tudo o que passava até então por santo e sacrossanto.
Havia uma grande crise nas consciências, uma crise de re-
novação e fertilização; continuaremos a chamá-la, segundo
o título do livro em que Paul Hazard a descreveu magis-
tralmente, de Crise da Consciência Europeia (*).
A França, marchando "à la tête de la civilisation" de
1680, transformou-se, quase de repente, em objeto de mu-
danças, operadas no estrangeiro, especialmente na Holanda
e na Inglaterra — fato que coincide com a mudança da
sortç nas guerras do grande rei contra as chamadas "po-
tências marítimas". Esta expressão, lugar-comum da lin-
guagem diplomática do século XVIII, indica bem a origem
do poderio holandês e inglês no comércio e imperia-
lismo coloniais. E essa expansão não deixou de alar-

1) P. Hazard: La crise de la conscience européennc. 3 vols. Paris,


4 1935.
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f t r 01 horizontes espirituais. O encontro com as civiliza- piritual, significa separação nítida entre acontecimentos
ções indiana e chinesa teve efeitos semelhantes à renovação astronômico-geográficos e acontecimentos históricos: por
da ciência historiográfica através das grandes coleções de isso, Bayle não acredita na significação histórica do apa-
documentos dos Maurinos e de Muratori: começou-se a recimento dos cometas. E a independência cartesiana entre
duvidar da infalibilidade dos historiadores antigos, menos corpo e espírito torna impossível a crença na magia, fei-
exatos, e do valor absoluto da civilização ocidental. A tiçaria e possessão demoníaca; extingue-se a crença em
estrutura dogmática do estilo de pensar, comum à Idade bruxas, e o teólogo holandês Balthasar Bekker explica
Média, à Renascença e ao Barroco, começou a desmoronar- como casos de tratamento psicoterapêutico as histórias
se. O efeito incidiu particularmente sobre os protestantes de exorcismo no Evangelho. Agora, é difícil admitir a
franceses, que, depois da revogação do edito de Nantes, intervenção direta de Deus nos negócios terrestres. O con-
em 1685, se refugiaram na Holanda; refugiados por motivo ceito da "lei" científica já excluiu os milagres físicos; e
de diferenças dogmáticas, encontravam-se agora numa at- Swammerdam e Boerhave descobrem leis de valor igual na
mosfera de relativa tolerância religiosa e de dogmatismo biologia ; Newton descobre até uma lei de validade cós-
muito adequado. É típico o caso de Jean Le Clerc, pensador mica: a da gravitação entre os corpos celestes. A ideia
que oscilava entre protestantismo combativo e criticismo de "lei da natureza" renova a segurança, abalada por aquele
teológico. Os próprios católicos contribuíram para a crise. relativismo geográfico-histórico. O homem se sente outra
Bossuet, para desmoralizar os adversários protestantes, de- vez em casa num universo bem policiado, contanto que o
monstrara-lhes as variações contínuas dos seus credos, o próprio "dono da casa" não intervenha de maneira arbi-
que equivalia a um convite para aplicar esse método crítico trária, destruindo as leis por êle mesmo ditadas; Deus é
à história eclesiástica inteira. Pouco depois, tem já Bossuet reduzido â condição de legislador sem direito de modificar
de combater o oratoriano Richard Simon que, defendendo a legislação vigente. É o deísmo. Existe deísmo astronó-
o papel da tradição na dogmática católica contra o bibli- mico, físico, biológico, histórico, e até um deísmo j u r í d i c o :
cismo rígido dos protestantes, revelou as modificações con- o Direito natural, que, outorgado ao homem quando da
tínuas no texto dos manuscritos e das versões da Bíblia, criação, já não permite apelar para o tribunal divino. Com
chegando a resultados críticos que muito inquietaram o Thomasius e Pufendorf, o Direito natural torna-se inde-
grande bispo. Abalou-se a confiança em todos os documen- pendente da sanção teológica; e o fim será uma moral
tos cuja garantia era a fé dos séculos. Por que acreditar laicista. As possibilidades do aperfeiçoamento humano são
nos milagres do cristianismo, se os milagres dos deuses consideradas ilimitadas, e na mofai social de Mandeville
e taumaturgos pagãos, narrados pelos historiadores mais aparecem os próprios vícios, admitidos dentro dos limites
sinceros da Antiguidade, não eram fidedignos? Os ataques de um equilíbrio são, como úteis à sociedade, promovendo-
de Bayle contra a credulidade dos antigos são uma série lhe o progresso pela competição dos egoísmos. Onde fica,
ininterrupta de ataques sutilmente disfarçados contra a pois, o pecado original? Durante todo o século X V I I I ,
credulidade dos cristãos. A arma mais poderosa contra a os últimos jansenistas lutam contra o otimismo pelagiano
fé nos milagres era o cartesianismo, ressuscitado em mo- da doutrina que. afirma que "o homem é bom". Lutam
mento oportuno. A autonomia do mundo físico, indepen- porém num posto perdido. De Shaftesbury a Rousseau
dente, segundo Descartes, das intervenções do mundo es- proclamar-se-á com entusiasmo cada vez maior o direito do
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homem à felicidade terrestre, e as aplicações técnicas das nário, agrupando-se em torno de Boileau, que respondeu
ciências já prometem o paraíso futuro. Reaparecem as com violência agressiva. Ao argumento razoável de que
utopias, desaparecem as leis e convenções absurdas de um os gregos e romanos não eram gente diferente de nós outros
mundo caduco, do mundo medieval-barroco, e acredita-se e de que a natureza humana é capaz de realizar as mesmas
na breve extinção dos últimos vestígios do irracionalismo coisas em todos os tempos, Boileau opôs insultos a respeito
aristocrático e eclesiástico e na racionalização perfeita da do "mau gosto" e da "ignorância" de Perrault, de modo
vida. É o princípio do mundo moderno. que este pôde replicar:
Ao lado dos "preconceitos políticos" e dos "precon-
ceitos religiosos" existem os literários. Agora, acredita-se "Nous dirons toujours des raisons,
muito em "raison"; e não há razão nenhuma para admitir l i s diront toujours des injures."
a infalibilidade literária dos antigos. Um dos primeiros
cépticos fora Alessandro Tassoni, que nos Pensiexi diversi, Evidentemente, o que enfureceu tanto Boileau foi o
já em 1612, ousou afirmar a superioridade de Ariosto e receio de que se abolissem, com o culto dos antigos, as
Tasso sobre Homero e Virgílio. Isso foi pouco antes de "regras" sacrossantas, e de que Be derrubasse o edifício
se estabelecer o domínio absoluto dos modelos antigos: no inteiro do classicismo, voltando a literatura à "barbárie".
classicismo francês, acompanhado do classicismo de Milton, Basta ver que na carta de reconciliação, dirigida em 1700
na Inglaterra, e seguido pelo classicismo da Arcádia, na a Perrault, admitiu a superioridade da literatura francesa
Itália. Com a "crise de la conscience européenne" desperta sobre a latina, contanto que o adversário atribuísse o mérito
novamente o orgulho literário dos "modernos"; rebenta dessa superioridade à imitação dos antigos, sobretudo dos
a famosa "Querelle des Anciens et des Modernes" ( 2 ). gregos. A discussão reacendeu-se a propósito de uma tra-
O culto unilateral dos antigos impediria o progresso, dução da Ilíada, publicada em 1699 pela famosa filóloga
do qual o século já dera provas magníficas. Em 27 de Madame Dacier, e atacada pelo poeta Houdart de La Motte:
janeiro de 1867, Charles Perrault leu na Academia Francesa depois de negar o valor da tradução, negou ele o valor do
um poema, "Le Siècle de Louis le Grand", no qual com- próprio Homero, poeta bárbaro que já não poderia agradar
parou a sua própria época à do imperador Augusto, afir- ao gosto dos tempos ilustrados. La Motte publicou até
mando a superioridade dos grandes escritores franceses outra tradução da Ilíada, abreviada e emendada segundo
sobre os antigos. Nos Parallèles des anciens et des moder- conceitos "modernos".
nes (1688, 1697), Perrault elogiou Racine, La Fontaine,
Entre as duas fases da "Querelle", situa-se um caso
Pascal e Boileau à custa de Sófocles, Esopo, Platão e Ho-
análogo, sugido na Inglaterra. O intermediário foi o último
rácio; e teve a audácia de falar em defeitos de Homero.
dos libertins, que viveu exilado entre os ingleses: Saint-
Os próprios elogiados não concordaram com o revolucio-
Évremond ( 3 ). Foi um espírito de oposição anti-barro-

3) Charles de Marguetel de Salnt-Denís, sieur de Saint-Évremond,


2) H. Rigault: Histoire de la Querelle des anciens et des modernes. 1616-1703.
Paria, 1856. Comédie des Académistes pour la réformaUon de la langue fran-
H. Oillot: La querelle des anciens et des modernes en Trance, de çaise (1643, publ. 1650); Réflexions sur les divers génies du peuple
la "Defense et Illustration de la Langue française" aux "Paral- romain dans les différents temps de la republique (1663); De la
lèles des anciens et des modernes". Paris, 1914. tragedie ancienne et moderne (1672); Sur les poèmes des anciens
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ca, conservando sempre a mentalidade da Fronde e dos será o próprio espírito da literatura inglesa na primeira
précieux e Hbertins, sem deixar, contudo, de ser um pre- metade do século, época de Pope. E na França? O poeta
cursor dos "modernos" em muitos sentidos: as suas re- representativo da "Querelle", Houdart de La Motte ( 5 ) é
flexões sobre história romana antecipam ideias de Mon- uma figura interessante. Não possuía o menor talento poé-
tesquieu. Na "Querelle", o seu ponto de vista foi o único tico: as suas fábulas são involuntariamente ridículas, as
razoável: os antigos são sempre admiráveis, mas nem sem- suas odes não passam de tratadinhos cartesianos metrifi-
pre nos servem como modelos. Saint-Évremond é um dos cados; mas do seu antitalento tirou Houdart a conclusão
primeiros representantes de uma estética relativista, que estranha de considerar inútil e absurda a própria poesia.
derrotará por fim o absolutismo dos classicistas, preparando E a época concordou com as suas teorias. Por que metri-
o catholic tast dos românticos. ficar o que se pode dizer melhor em prosa? Pela primeira
A solução de Saint-Évremond não encontrou os aplau- vez, a própria literatura está em questão; La Motte é um
sos unânimes dos gentlemen de Oxford e Cambridge. Em precursor de certos naturalismos dos séculos X I X e XX.
defensor dos antigos arvorou-se Sir William Temple ( 4 ), Aplicando a sua teoria ao drama, exigiu a abolição do verso,
o primeiro grande ensaísta inglês, epicureu fino e culto, das unidades, do monólogo; enfim, exigiu aquela técnica
dotado de senso prático da vida politica. No seu ensaio teatral que será a de Ibsen e Shaw. Mas nem no teatro
Upon Ancient and Modem Learning, citou com muita foi L a Motte capaz de realizar as suas teorias: saiu coisa
segurança as cartas de Phalaris, famosas mas de auten- diferente. A tragédia Inês de Castro deveu o seu grande
ticidade duvidosa; Richard Bentley, o maior dos filólogos sucesso tão-sòmente ao falso sentimentalismo que substi-
críticos, respondeu na Dissertation upon the Epistles of tuiu a poesia. Certas qualidades líricas se encontram, aliás,
Phalaris (1699), demonstrando a falsidade do documento conforme a afirmação de Lanson, nos Macchabées. O re-
"antigo", arrasando assim o adversário. A vitória do filó- sultado foi nova romantização da tragédia clássica: será
logo científico sobre o humanista letrado é altamente sig- a tragédia classicista de Voltaire.
nificativa; nisso já se antecipa algo do espírito do século O nome de Voltaire lembra imediatamente o traço ca-
XIX. Mas, na literatura do século X V I I I que então se racterístico da maior parte da literatura do século X V I I I :
iniciara, a vitória foi, no momento, de Temple. O espírito a combinação de ideologias progressistas e avançadas com
classicista e, no entanto, prático, desse amigo de Swift, formas literárias meio obsoletas, "reacionárias". Voltaire
luta com grande coragem pelas ideias de tolerância reli-
giosa e de "culto razoável da divindade"; e apesar do seu
(1685); Du merveilleux qui se trouve dans les poèmes des an- conservantismo político de nouveau-riche não deixa de se-
ciens (1688).
Edições de escritos escolhidos por Ch. Giraud, 3 vols., Paris, 1865,
e por R. Planhol, 3 vols., Paris, 1927.
W. Melville Daniels: Saint-Évremond en Angleterre. Paris, 1907.
A.-M. Schmidt: Saint-Êvremond ou L'humaniste impur. Paris, 5) Antolne Houdart de La Motte, 1672-1731.
1932. Odes (1707); Fables 1719 — Les Macchabées (1721); Inii dê
Castro (1723); Oedipe (1730) — Discours sur la poésie (1707) —
4) Sir William Temple, 1628-1699. Réflexions sur la critique (1715).
Miscellanea (1680, 1690, 1701); Upon Ancient and Modem Lear- Edição, de 1754 (11 vols.); Edição dos escritos críticos por O.
ning (1692); Letters (edlt. por Swift, 1701-1703). Julllen, Paris. 1859.
Edição por J. E. Spingarn, Oxford, 1909.
C. Marburg: Sir William Temple. Chicago, 1929. P. Dupont: Un poete philosophe au commencement du XV111n
siècle: Houdart de La Motte. Pari», 1808.

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mear os germes da resistência contra o absolutismo. Todos aristocrática de todas as artes. Existe contradição flagrante
os géneros literários — poesia, tragédia, romance, conto, entre a renovação intelectual e a reaçao artística.
diálogo, tratado, historiografia — lhe servem para divulgar Até há poucos decénios, a historiografia literária não
aquelas ideias. Mas na forma desses géneros, continua tomou muito a sério essa contradição. A fraqueza poética
"clássico", classicista até. Faz do Siècle de Louis le Grand do século X V I I I parecia consequência inevitável da vitória
objeto de um culto apaixonado, defendendo as "regras" cada vez mais acentuada das ideias racionalistas; o racio-
clássicas com o fanatismo d e u m Boileau e a seriedade de nalismo exclui a poesia. O mérito do século X V I I I teria
um Bossuet; só não gosta de Pascal, que é o menos clássico sido "filosófico", quer dizer, ideológico e político, mas
dos clássicos. Toda a literatura francesa do século X V I I I não "literário", no sentido das belles lettres. O racio-
é uma repetição mais ou menos intencional dos modelos nalismo da Ilustração, encontrando uma literatura aristo-
"clássicos" do século precedente; até mesmo a falta quase crático-tradicionalista, não podia fazer outra coisa senão
absoluta de poesia lírica não é consequência de uma vitória destruí-la lentamente, condenando-a à decadência. Esse
do "modernista" antipoético L a Motte, e sim o resultado processo de destruição e decomposição começou durante
extremo das ideias críticas de Boileau, em torno do qual os últimos anos do reinado de Luís X I V com certas velei-
também não existia poesia lírica. Do ponto de vista da dades oposicionistas, as advertências sérias de Vauban e
literatura universal, o problema torna-se mais grave ain- Fénelon, o mau-humor de La Bruyère, as confabulações
da que do ponto de vista da literatura francesa. E n t r e de "ateístas" no salão de Ninon de TEnclos. Depois da
1650 e 1680, o classicismo fora um fenómeno limitado m o r t e . d o rei, a França sentiu-se como libertada de uma
mais ou menos à França. A tentativa inglesa de conseguir pressão; a literatura libertina da "Régence" é uma espécie
uma síntese entre teatro inglês e teatro francês — o drama de caricatura alegre das formas herdadas. Deste modo, não
da Restauração — só dá resultado híbrido e efémero. Mas foi preciso abandonar o conformismo estético do século
no fim do século os poetas italianos voltam ao classicismo; clássico; os géneros tradicionais eram perfeitamente capa-
funda-se a Arcádia, que ajuda à conquista de toda a Europa zes de funcionar como veículos das novas ideias: eis a
pelo classicismo francês, j Na Inglaterra e na Alemanha, fase voltairiana. Depois, celebrar-se-á em metros clássicos
Espanha e Itália, Suécia e Rússia, escrevem-se, depois de e com alusões à Antiguidade a vitória política do racio-
1700 e 1750, odes pindáricas, sátiras horacianas, poemas nalismo: a Revolução.
didáticos, epopeias cómicas à maneira do Lutrin, tragédias Esse esquema dialético "Régence — Ilustração — Re-
racinianas, fábulas, cartas e reflexões moralistas. Os gé- volução" corresponde apenas à evolução da literatura fran-
neros aparentemente novos, como a poesia anacreôntica, cesa, e mesmo assim só superficialmente: deixa de lado
revelam ainda mais a feição alexandrina dessa pretensa o fato de que a Revolução é acompanhada por uma reno-
imitação da Antiguidade, o caráter decadente dessa lite- vação radical e profunda do classicismo — Goethe, Monti,
ratura, para a qual a "crise de la conscience européenne" Foscolo — da qual o representante na França é Chénier;
não parecia ter acontecido. A "Querelle des anciens et des o de que a Revolução é imediatamente seguida, senão já
modernes" fora uma ouverture sem ópera; mas para sair acompanhada, por outra literatura, anti-racionalista, a do
da imagem à realidade é de notar que óperas havia muitas romantismo; e põe ainda de lado o fato de que o romantismo
no século X V I I I , século que idolatrava esse género, a mais se preparou, durante a segunda metade do século X V I I I ,
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por meio de uma renovação da sensibilidade, principalmente e não de origem suíça, como em Rousseau. O "pré-
na Inglaterra e na Alemanha. Tampouco é possível negar romantismo" libertou a literatura francesa do isolamento
que essa nova sensibilidade exerceu poderosa influência em que esteve durante os últimos decénios do século X V I I ,
na própria França: basta citar o nome de Rousseau. Vai reintegrando-a na literatura europeia. A revolução da li-
apenas um passo daí a reconhecer que a Revolução deveu teratura universal seria incompreensível a não admitir-se
o seu élan vital não ao racionalismo da Ilustração, do a fase pré-romântica. O reconhecimento do "pré-roman-
qual herdou a ideologia, mas sim ao irracionalismo das tismo" foi uma das grandes conquistas da historiografia
novas correntes. Verificou-se a coerência dessas correntes literária moderna.
na Europa inteira: o sentimentalismo de Richardson e
Ao lado do velho esquema dialético "Régence-Ilustra-
Rousseau, o novo senso da natureza, a descoberta das mon-
ção-Revolução" aparece agora outro: "Pré-Romantismo —
tanhas e do encanto dos mundos exóticos, o entusiasmo
Romantismo — Realismo". A segunda metade do século
pela poesia popular, Ossian e as baladas inglesas, a des-
X V I I I já não pertence à decadência do passado, e sim à
coberta da poesia na Bíblia, o gosto pelo maravilhoso em
preparação do futuro. O progresso é evidente; contudo,
Milton e na literatura medieval — tudo isso constitui um
não resolve certos problemas. Entre o pré-romantismo e
estilo literário bem definido. Revela muitos traços carac-
o romantismo existe uma diferença fundamental: o pré-
terísticos do romantismo, precedendo-o, porém, cronologi-
romantismo é caracterizado pelo desenvolvimento de novas
camente; recebeu o nome de "pré-romantismo".
capacidades psíquicas, da sensibilidade para conquistar as-
O pré-romantismo — não o nome, mas o conceito — pectos até então ignorados do mundo exterior, da natureza
foi sempre familiar aos historiadores das literaturas inglesa e das relações sociais; o romantismo pretende conquistar
e alemã. Os grandes poetas e escritores da Inglaterra, na novos mundos interiores — o seu terreno de predileção é o
segunda metade do século X V I I I , são todos, ou quase to- sonho. O termo "pré-romantismo", talvez pouco feliz, apro-
dos, pré-românticos. Da Inglaterra partiram o romance xima demais os dois movimentos. A existência de uma
sentimental de Samuel Richardson, a comédia burguês-sen- fase classicista — de Goethe, Chénier, Monti, Foscolo —
timental, de Lillo, a nova poesia descritiva da natureza entre pré-romantismo e romantismo torna-se mais incom-
de James Thomson, a poesia melancólico-meditativa de preensível do que antes. Fora conveniente salientar a
Young, a poesia baladesca, o ossianismo, que conquistaram diferença essencial entre o racionalismo da Ilustração e a
a Europa inteira. Na Alemanha, a primeira fase da lite- nova sensibilidade do pré-romantismo; mas não é conve-
ratura "clássica" de Weimar é um movimento de "angústia niente separá-los inteiramente. Uma das maiores influên-
e tormenta", o "Sturm und Drang", ao qual Goethe e cias do pré-romantismo, o romance sentimental de Samuel
Schiller pertencem com as suas obras da mocidade. Até Richardson, pertence à primeira metade do século X V I I I ;
na Itália existe um pré-romantismo violento, em disfarce e os romances de Marivaux não são imitações do romance
classicista, em Alfieri. Contudo, a introdução do termo inglês, têm a prioridade cronológica, do mesmo modo que
"pré-romantismo" na literatura comparada deve-se aos com- o romance do abbé Prévost. Os dois franceses receberam,
paratistas franceses: a Texte, Baldensperger, Van Tie- porém, a influência dos periódicos morais de Addison e
ghem, Hazard, et pour cause: o pré-romantismo francês Steele, e as comédias deste último preparam já o drama
nasceu de influências estrangeiras, sobretudo inglesas, sentimental do pré-romantismo. Mas ambos, Addison e
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Steele, sofreram fortes influências do classicismo francês. tas. ( 5 " A ). Lessing é deísta e racionalista; mas, no fundo do
O início da influência inglesa na literatura alemã é, às seu pensamento, descobriu Dilthey a fé meio pietista, meio
vezes, datado da tradução das Seasons, de Thomson, pelo maçónica, em um terceiro cristianismo. Shaftesbury o filó-
poeta hamburguês Brockes; mas o tradutor era deísta, u m sofo do moral sense e do entusiasmo estético, é deísta. A
dos primeiros representantes da Ilustração alemã, e até filosofia da história de Viço, dificilmente compatível com
mesmo a sua poesia descritiva, anterior àquela tradução, a ortodoxia, tem como fundamento o anticartesianismo.
tem fontes barrocas. Quanto mais se estudam as origens do Bayle, o mestre do cepticismo irónico, não pode dissimular
pré-romantismo tanto mais parecem recuar no tempo. Os certas ideias maniquéias, produtos de degeneração do pre-
primeiros traços de estética anti-racionalista aparecem nos destinacionismo calvinista. Locke, sensualista e utilitarista,
italianos Muratori e Gravina, em 1706 e 1708. Antes de a é o tradutor dos Essais de morale do jansenista Nicole, o
poesia aprender a chorar, choraram as árias da ópera ita- que lembra as relações entre o jansenismo e a ascensão da
liana. O abbé Chaulieu, um dos libertins da Régence, burguesia. O próprio liberalismo político de Locke é her-
reivindica os direitos do instinto, na Ode contre 1'esprit, deiro da democracia mística das seitas calvinistas. A fé
em 1708. Hazard reconhece a sensibilidade de Rousseau utopística, meio religiosa, que Cari Becker assinala nos
na Lettre sur Jes voyages, que outro suíço, Muralt, escreveu "filósofos" deístas ou ateístas do século X V I I I , é conse-
em 1700. O pré-romantismo parece tão antigo quanto o quência deste fato de importância fundamental: o racio-
século X V I I I , de idade igual ao racionalismo da Ilustração. nalismo da Ilustração e o pré-romantismo têm as mesmas
E isso não é mero acaso. fontes.
O pré-romantismo tem certa feição religiosa: bastam À luz desse fato, todos os aspectos mudam. A tese da
os nomes de Cowper e Rousseau, Klopstock e Jean Paul divisão do século X V I I I em uma primeira metade racio-
para provar esta afirmação. Em geral, a atmosfera espi- nalista e uma segunda metade pré-romântica é insustentá-
ritual da Europa, por volta de 1780, está cheia de senti- vel. Os dois movimentos têm fontes comuns e a mesma
mentos de angústia, mistério e misticismo que a época de idade, podendo ser acompanhados fielmente, desde o co-
Voltaire não conhecia nem teria admitido. Contudo, é o meço da "crise" na França, por volta de 1680, e a revolução
século de Voltaire; religiosidade eclesiástica, ortodoxa, é de 1688, na Inglaterra, através do século inteiro, até a
impossível. O pré-romantismo buscava inspiração nos mo- Revolução Francesa e os começos do romantismo inglês.
vimentos místicos, no iluminismo, em uma espécie de ma- A historiografia literária tem que tirar as conclusões. O
çonaria misticamente interpretada em sociedades secretas. conceito "pré-romantismo" era de ordem estilística; serviu
Na Inglaterra, o metodismo de Wesley tornou-se grande para esclarecer a situação ideológica do século X V I I I ;
influência literária; na Alemanha, foi o pietismo de Spener agora, as ideologias se confundem aparentemente, e só nova
e os Herrnhuter de Zinzendorf; na França, o martinismo. distinção estilística será capaz de distingui-las. A disso-
É a tradição mística da "Terceira Igreja" que ressuscita; lução das formas classicistas é consequência da seculari-
é possível acompanhar, retrocedendo, a filiação desses mo- zação das ideias religiosas que constituíram a base do
vimentos até Fénelon Boehme e os batistas da Holanda e classicismo. Mas o racionalismo não é o único móvel da
da Inglaterra. Todos esses misticismos aparecem, no século
X V I I I , mais ou menos ligados a correntes racionalis-
5A) Fr. Heer: Europaeische Geistesgeschichte. Stuttgart, 1953.
.

11IIH OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1189

dissolução. O Barroco, escondido no seio do classicismo, porâneas do século X V I I I : o classicismo racionalista e


é o outro. No fim do século X V I I reaparece um Neobarroco o pré-romantismo.
— fenómeno estilístico que nunca foi devidamente estu- Uma das mais típicas expressões neobarrocas é a poesia
d a d o ; e esse fenómeno teve grandes consequências. Muito anacreôntica. Imitando assiduamente a poesia do pseudo-
daquilo que, no classicismo do século X V I I I , parece disso- Anacreonte, produto da decadência alexandrina da Grécia,
lução é na verdade uma espécie de "barroquização" ou o século X V I I I revela bem a sua maneira de compreender
"rebarroquização"; e esse Neobarroco é o precursor ime- a Antiguidade clássica; é classicismo decadente, ou pelo
diato do Pré-romantismo. O que resta fazer é a análise menos assim parece. É uma poesia fastidiosa, de falso
estilística de certas expressões típicas, aparentemente clas- idílio, de beijos nunca dados e vinhos nunca bebidos, can-
sicistas, do século X V I I I , para determinar nelas o conteúdo tados por burgueses tímidos, na atmosfera erudita de gabi-
neobarroco. netes de trabalho. As poucas exceções — entre os ana-
A análise compreenderá a arcádia italiana, espanhola creônticos há alguns poetas autênticos e pelo menos um
e portuguesa, a poesia anacreôntica na Alemanha e na grande poeta, Bellman — não são as famosas exceções que
França, o rococó sueco; depois, a ópera séria e a ópera confirmam a regra, mas sim os sintomas de um espírito
bufa, na Itália e por toda a Europa, até à Revolução; diferente que se esconde atrás das formas classicistas da
a tragédia, a comédia e a poesia satírica da Restauração Arcádia: eis o nome significativo, ternamente idílico, da
inglesa; as correntes "oposicionistas" na França — Féne- poesia anacreôntica na Itália, e depois na Espanha e em
lon, La Bruyère, Saint-Simon, Lesage e a literatura da Portugal.
Régence, até Marivaux; finalmente, os primórdios da Ilus- Na Itália, houve precursores, pertencentes à escola
tração, Locke, Bayle, os deístas ingleses, Giannone, Viço, classicista de Chiabrera; o mais notável entre eles foi
Montesquieu. A ordem da exposição obedecerá menos ao Filicaja. Durante o predomínio do naturalismo barroco,
critério cronológico do que a considerações de ordem esti- ainda existe a possibilidade de uma interpretação mais
lística e ideológica — mas tratar de Bellman e Bocage realista do prazer anacreôntico, na fórmula "vinho, mulher
antes de Pope e Voltaire já implica quebra violenta da e música": é o caso de Francesco Redi <fl). Era poeta ele-
cronologia. Com efeito, o fim desta exposição não é narrar gante apesar de sem muito brilho, mas grande cientista;
cronologicamente fatos literários; é antes um corte trans- talvez fosse o realismo da ciência biológica, junto com o
versal pela literatura do século X V I I I , de harmonia com apego à terra e à língua da Toscana, que lhe inspiraram
aqueles princípios estilísticos e ideológicos. Analisar-se-ão a pequena obra-prima Bacco in Toscana, elogio exaltado
aquelas correntes literárias nas quais os resíduos classi- do "Montepulciano, d'ogni vino il ré", com onomatopéias
cistas e as antecipações pré-românticas se conjugam, quer audaciosas da embriaguez e de um crescendo irresistível —
dizer, as correntes da literatura neobarroca, desde os seus
primórdios na Inglaterra da Restauração, e na França da
Régence. Sobre esta literatura neobarroca agem, descen- 6) Francesco Redi, 1626-1694.
Bacco in Toscana (1685); Opere (Venezla. 1712).
dendo de origens comuns, o racionalismo da Ilustração e Edição de uma seleção das poesias por P. Giacosa, Millano. 1927.
o misticismo sentimental; a sua separação final produz as G. Impert: II Bacco in Toscana di Francesco Redi e la poesia
dítirambica. Città di Castello, 1890.
duas literaturas igualmente importantes e quase contem- F. Micheli Pellegrini: Francesco Redi. Flrenze. 1911.
V. Viviani: Vita e opere di Francesco Redi. Flrenze, 1924.
1190 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1191

"Ariannuccia, leggiadribelluccia, Benedetto Menzini ( e ) : canta o vinho e o amor com a


Cantami un p o ' . . . graça de uma borboleta, e é, na realidade, um pobre padre,
Cantami un po*. . . lutando por uma cátedra de professor. A sua erudição é
Cantami un poço, e ricantami tu, inteiramente barroca, assim como a violência das suas sá-
Sulla v i o . . . tiras bem pessoais contra os numerosos adversários, sobre-
Sulla viola, la cuccurucú, tudo contra o hipócrita Curcalione —
La cuccurucú,
Sulla viola la c u c c u r u c ú . . . " " dentro è um Epicuro e fuor Zenone."

Redi, nesta obra, maneja magistralmente os efeitos que As comparações antigas não escondem o espírito de oposi-
serão os da ópera bufa: velocidade vertiginosa da fala, ção anticlerical do padre, e isso já lembra o século X V I I I :
música de acordes humorísticos; no mais, é apenas um Menzini é um "abbé", no sentido francês da época. Mas,
versificador hábil, digno de ser incluído entre os primeiros em geral, os poetas da primeira geração arcádica são homens
membros da Arcádia ( 7 ). Origem dessa famosa companhia de peruca barroca, por mais classicistas que pretendessem
foi o salão literário, em Roma, da rainha Cristina da Suécia, apresentar-se. O modelo de todos eles foi Alessandro Gui-
que tinha abdicado para se converter ao catolicismo. Isso di ( 1 0 ), antigo marinista, depois cantor de odes pindáricas,
se deu por volta de 1656. Depois da sua morte, os amigos pomposas como as decorações de Le Brun em Versalhes;
fundaram, em 5 de outubro de 1690, a "Arcádia, conversa- a ode La Fortuna foi ainda admirada por Leopardi. A
zione di belle lettere", invocando os nomes idílicos de Teó- Arcádia já parece decadente em Frugoni ( n ) , fertilíssimo
crito, Virgílio e Sannazaro, e instituindo-se um verdadeiro autor de poemas para todos os momentos alegres ou tristes
carnaval de costumes e nomes pastoris. Mas do idílio re- da vida dos outros. É um poeta de encomenda. É o tipo
nascentista restava pouca coisa. Sobrevive uma lembrança dos improvisadores italianos que, aproveitando-se da rique-
das conversas teológicas com a rainha, na poesia do conde za da sua língua em rimas melodiosas, se tornaram famo-
Lemène ( 8 ), homem grave, "capaz de versificar a Summa síssimos na Europa inteira. Um desses "internacionais",
de São Tomás inteira", mas que nos seus capricci, já faz
dançar os amoretti nus do rococó. O árcade típico é
9) Benedetto Menzini, 1646-1704.
Rime (1674); Poesie liriche (1680). .
G. B. Magrini: Studio su Benedetto Menzini. Napoli, 1835.
7) I. Oarinl: L'Arcádia dal 1690 ai 1890. Roma, 1891. R. A. Gallenga-Stuart: Benedetto Menzini. Bologna, 1899.
V. A. Arullani: Lirici e lirica nel Settecento. Torino, 1893. I. Rago: Benedetto Menzini e le sue satire. Napoli, 1901.
G. Toffanln: Ueredità dei Rinascimento in Arcádia. Bologna, 10) Alessandro Guidi, 1650-1712.
1923. Poesie liriche (1671); Rime (1704).
M. Fublni: "Arcádia e iHuminismo". (In: Questioni e correnti G. Gapsoni: Alessandro Guidi. Pavia, 1897.
di storia letteraria. Edit. por A. Momigliano. Milano, 1949.) T. L. Rlzzo: Alessandro Guidi. Lecce, 1928.
8) Francesco de Lemène, 1626-1704. 11) Cario Innocenzio Frugoni, 1692-1768.
Trattato di Dio (1684); Poesie diverse (1726). Opere (10 vols., 1779).
A. Oliva: Francesco de Lemène nella letteratura dei suo secolo. C. Calcaterra: Storia delia poesia frugoniana. Génova, 1930.
Milano. 1929. A. Equini: Cario Innocenzio Frugoni. 2 vols. Palermo, 1920/1921.
1192 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1193

Paolo Rolli ( 1 2 ), foi, porém, diferente: verdadeiro mestre se aventurou a continuar as Soledades, de Góngora, trans-
do verso harmónico, elegíaco algo sentimental, dominava formando a paisagem barroca em jardim anacreôntico. De-
todos os estilos: imitou Virgílio, traduziu Racine; tendo pois interveio a influência de Metastásio ( 1 B ), poderosa
vivido na Inglaterra, também traduziu Milton. No seu sobretudo nos poetas menores. Há alguma resistência,
sentimentalismo anuncia-se a poesia pré-romântica. Dizem exceções. Nicolás Fernández de Moratín ( 10 ) preferiu cer-
que as canzonette de Rolli foram cantadas, com acom- tamente às poesias anacreônticas as suas tragédias em estilo
panhamento no cravo, por todas as senhoras europeias, da de Racine, assim como nós outros preferimos a estas e
Espanha à Suécia. As cantoras profissionais, nas casas de àquelas a briosa Fiesta de toros en Madrid, uma das mais
ópera, cantaram, ao mesmo tempo, os versos do mais famoso vigorosas expressões poéticas da tauromaquia espanhola.
dos árcades, Metastásio ( 1 3 ), que era anacreôntico melodio- E Juan Pablo Forner ( 1 7 ), satírico violento a serviço dos
síssimo, artificial como Marino, sentimental como Tasso, ideais do classicismo, é mesmo autêntico poeta lírico;
erótico como Guarini; um compêndio da decadência da Diaz-Plaja redescobriu-lhe o belo soneto "Herido de tu
poesia italiana, mas com rasgos de verdadeira beleza lírica, amor, Silvia, qué e s p e r o ? . . . " . Metastasiano é justamente
sobretudo nas cantatas; sua Galatea é um interessante pen- o maior árcade e maior poeta espanhol do século X V I I I :
dant rococô da fábula de Góngora. Meléndez Valdês, que já revela o sentimentalismo pré-ro-
A poesia da Arcádia parece hoje infantil e afetada; mântico, de que no mestre italiano não há vestígio, e cuja
Croce condena-a sem apelação. Mas convém observar que forma já é tão clássica como convém a um contemporâneo
a Arcádia italiana estabeleceu um respeitável padrão de de Goethe.
honestidade intelectual e moral do poeta. Sua última fase Não da Espanha, mas diretamente da Itália chega a
será a poesia nobre de Parini e o teatro de Goldoni ( , 5 " A ). Arcádia a Portugal. Correia Garção ( I 8 ) parece metastasia-
A influência da poesia metastasiana determinou a evo- no, se julgado pela famosa Cantata de Dido ("Já no roxo
lução da Arcádia espanhola. Lá, o terreno estava preparado
pela tradição anacreôntica de Villegas ( 1 4 ), que foi, no sé-
culo X V I I I , o mais apreciado dos antigos poetas espanhóis. 15) V. Cian: Itália e Spagna nel secolo XVIII. Torino, 1896.
Villegas pertenceu à corrente classicista dentro do Barroco. 16) Nicolás Fernández de Moratín, 1737-1780.
Lucrécia (1763); Hormesinda (1770); Guzmán el Bueno (1777);
Mas a possibilidade duma Arcádia barroca é demonstrada — El Poeta (1784).
por José León y Mansilla que, na Soledad tercera (1718), Edição: Biblioteca de Autores Espanoles, vol. II.
Leandro Fernández de Moratín: Vida de don Nicolás Fernández
de Moratin. Prólogo da edição das Obras póstumas. London. 1825.
J. M. Cossío: Los toros en la poesia castellana. Madrid, 1931.
12) Paolo Rolli, 1687-1765.
Rime (1717); Poetici componimenti (1753). 17) Juan Pablo Forner, 1754-1797.
Edição (com Introdução biográíico-crítica) por C. Calcaterra, Ediçáo: Biblioteca de Autores Espanoles, vol. LXIII.
Torino, 1926. M. Menéndez y Pelayo: Historia de las ideas estéticas en Espana.
F. D. Ragnl: Le Odi Barbare di un settecentista. Udine, 1928. vol. m / I I .
T. Valesse: PaoZo Rolli in Inghilterra. Millano. 1938. M. Jiménes Salas: Vida y obra de Juan Pablo Forner. Madrid,
1944.
13) Cf. nota 42.
18) Pedro António Correia Garção, 1724-1772.
13A) G. Toffanín: L'Arcádia. Saggio storico. Bologna, 1946. Obras Poéticas X1778).
14) Cf. "A Poesia do Culteranismo e o Teatro da Contra-Reforma", Ediçáo por I.A. de Azevedo e Castro, Roma. 1888.
nota 35. Teóf. Braga: A Arcádia Lusitana. Porto, 1899.
1194 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1195

Oriente branqueando "), que ocorre na sua comédia de mento romântico. A poesia de Bocage talvez não seja,
costumes Assembleia ou Partida. É preciso, porém, obser- como se dizia, expressão sintomática da decadência de
var o tom elegíaco, pré-romântico, nas poesias religio- Portugal; ela é antes sintoma da transformação da Arcádia
sas desse classicista horaciano. Correia Garção perten- em poesia pré-romântica. Como resumo exótico dessa evo-
ceu à Arcádia Lusitana, fundada em 1756, em Lisboa. lução aparece, no Brasil, a poesia de Tomás António
Entre esta e a Nova Arcádia, mais "moderna", está Filinto Gonzaga ( 2 1 ). Atribui-se-lhe uma tradução do Pastor Fido,
Elísio ( lft ). Era este escritor um anacreôntico, horaciano, de Guarini; mas o seu erotismo não é artificial, é autêntico.
versificador vazio com veleidaddes de filosofia enciclope- As "liras", que o inconfidente de Minas Gerais dirigiu a
dista até tornar-se vítima da Inquisição, tradutor de La sua amada Marília, constituem um diário psicológico do
Fontaine e também de Wieland, e dos Martyrs, de Cha- seu amor, e o tom elegíaco também não deixa dúvidas sobre
teaubriand. No arcadismo cabe tudo. O que, em Filinto o caráter pré-romântico dessa poesia, talvez a mais popular
Elísio, é mistura caótica, não obstante o caráter calmo, em língua portuguesa, porque a "saudade" nacional e a
enquanto que, em Bocage ( 2 0 ), o mais hábil, não o mais pro- mentalidade pré-romântica ali se encontram. Já Bernardim
fundo dos versificadores portugueses, é a expressão de uma Ribeiro foi, nos começos do século XVI, algo como um
alma caótica. Inúmeros sonetos, magistralmente construídos pré-romântico avant la lettre.
com elementos da maior banalidade, e inúmeros epigramas, Coincidência semelhante dá-se na poesia popular, sem-
mais triviais do que mordazes; sentimentalismo erótico e pre elegíaca, dos povos orientais da Europa. A Bocage
obscenidade brutalíssima; o racionalismo audacioso da Pa- ou Gonzaga pode ser comparado o seu antípoda húngaro
vorosa Ilusão da Eternidade, e as angústias pavorosas dos Csokonai ( 2 2 ), todo rococó nas suas epopeias herói-cômicas,
últimos arrependimentos: tudo isso em conjunto revela, boémio indisciplinado como Bocage na vida, e verdadeiro
por trás do verbalista engenhoso, uma personalidade inte- romântico, mais romântico do que Gonzaga, nas suas Can-
ressante. Hernâni Cidade caracterizou bem o boémio in- ções a Lilla, a primeira produção moderna da poesia hún-
disciplinado de Lisboa como figura de transição entre gara. A poesia anacreôntica serviu até para despertar, poe-
catolicismo tradicional e racionalismo superficial, ideais ticamente, nações que ainda não possuíam literatura; o
sublimes e instintos selvagens, estilo arcádico e tempera-

21) Tomás António Gonzaga, 1744-1810.


19) Francisco Manuel do Nascimento (nome arcádico: Filinto Elísio), Marília de Dirceu (1792).
1734-1819. Edição crítica por A, Rodrigues Lapa. S. Paulo, 1942.
Tr. de Araripe Júnior: Dirceu. Rio de Janeiro, 1890.
Edições das obras completas, 11 vols., Paris, 1817/1819, e 22 vols., Teóf. Braga: Filinto Elísio e os Dissidentes da Arcádia. Porto,
Lisboa, 1836/1840. 1901.
Teóf. Braga: Filinto Elísio e os Dissidentes da Arcádia. Porto, J. Veríssimo: Prefácio da ediçáo de Marília de Dirceu, Rio de
1901. Janeiro, 1908.
20) Manuel Maria Barbosa du Bocage, 1765-1805. 22) Mihaly Vitéz Csokonai, 1773-1805.
Rimas (1791, 1799, 1804); Mágoas Amorosas de Elmano (1805).
Edição (com biografia por Teófilo Braga), 8 volumes, Porto, Batrachomyomachia (1791); Canções anacreônticas (1802); Do-
1875/1876. rothea (1804); Odes (1805).
Teófilo Braga: Bocage. Sua Vida e Época Literária. 2.* ed. Edição: 3 vols.,'Budapest, 1924.
Porto, 1902. J. Haraszti: Csokonai Vitéz. Budapest, 1880 (em húngaro).
Vlt. Nemésio: Vida de Bocage. A Poesia de Bocage. Lisboa, 1943. Z. Ferenczi: Csokonai Vitéz Mihaly. Budapest, 1907 (em húngaro).
11% OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1197

que, aliás, é função típica do movimento pré-romântico. creôntico, porém, é Hagedorn ( 2B ), do qual algumas poesias
Donalitius ( 2 3 ), o primeiro poeta da Lituânia, é uma figura alegres sobrevivem entre os estudantes. A poesia anacre-
complicada: os hexâmetros clássicos do seu idílio As ôntica alemã, depois de Guenther, não é caracteristicamente
Estações, aprendeu-os provavelmente com os pastores pro- alemã; é antes rococó francês, através da mentalidade de
testantes alemães da sua terra, que divulgaram depois a professores e pastores pacatos e dos estudantes menos pa-
sua poesia na Alemanha, porque gostavam do realismo po- catos da Universidade de Leipzig. Anacreôntico do tipo
pular e talvez das reminiscências dos geralmente admirados provinciano, terno e já muito sentimental, é Gleim ( a 7 ),
Seasons, do inglês Thomson. Donalitius, ao qual Lessing famosíssimo no seu tempo; sinal de novas tendências é o
dedicou um elogio, é uma influência sobre poesia ana- seu nacionalismo prussiano, celebrando as vitórias de Fre-
creôntica alemã. derico o Grande. Uma nova e forte influência estrangeira
sobre os anacreônticos alemães veio da Inglaterra: a poesia
Várias influências exerceu a poesia anacreôntica ale-
descritiva de Brockes e Ewald von Kleist, que seria impos-
mã ( 2 4 ), de valor reduzido, mas de considerável impor-
sível sem o modelo de Thomson. Mas a poesia anacreôntica
tância histórica. As suas origens são barrocas. Johann
alemã de inspiração francesa tem vida mais tenaz: os cír-
Christian Guenther (2B) escreveu, quando estudante, uma
culos estudantis de Leipzig continuaram cultivando a poe-
tragédia barroca à maneira de Gryphius; e com sentidas
sia rococó; e entre os poetas-estudantes de Leipzig, por
canções religiosas de arrependimento terminou a curta vida
volta de 1765, encontra-se o jovem Goethe.
de estudantes transviado, ébrio, devasso. As suas poesias
de "vinho e amor" são autênticas, às vezes brutais. É o Influências francesas encontram-se com influências
primeiro poeta alemão que, renunciando ao grande estilo alemãs na Suíça. É suíço o grande anacreôntico Salomon
barroco, volta à inspiração da poesia popular. A sua in- Gessner ( 2 8 ) ; "grande" é, aliás, palavra relativa, porque os
fluência póstuma sobre os pré-românticos e românticos foi Idyllen, em estilo doce e afetado, são hoje ilegíveis, de
considerável; Guenther continua lido até hoje, como modo que não compreendemos os elogios unânimes, dedica-
poeta de sentimento e expressão pessoais; os anacreônticos dos ao "Teócrito alemão". E não foram só elogios alemães.
só o apreciaram como anacreôntico. Verdadeiramente ana- Gessner teve sucesso em toda a Europa, foi traduzido para
todas as línguas, exerceu influência considerável, princi-

23) Kristian Donalitius, 1714-1780.


As Estações (1745).
Edição por J. Nesselmann, Koenigsberg, 1869. 26) Friedrich Hagedorn, 1708-1754.
A. Schleier: Christian Donalitius, lítauischer Dichter. Peters- Oden und Lieder (1742).
burg, 1865. H. Schuster: Hagedorn und seine Bédeutung fuer die deutsche
Literatur. Leipzig, 1882.
F. Tetzener: "Christian Donalitius". (In: Altpreussische Mona-
tsschrift, XXXIV, 1897.) 27) Johann Ludwig Gleim, 1719-1803.
24) F. Ausfeld: Die deutsche anakreontische Dichtung des 18. Versuch in scherzhajten Liedern (1745); Kriegslieder von einem
Jahrhunderts. Strasbourg, 1907. preussischen Grenadier (1768).
25) Johann Christian Guenther, 1695-1723. K. Becher: Gleim, der Grenadier, und seine Freunde. Berlim,
Gedichte (1724). 1919.
Edição por W. Kraemer, Leipzig, 1930/1937. 28) Salomon Gessner, 1730-1788.
A. Heyer e A. Hoffmann: Guenthers Leben. Leipzig, 1909. Daphnis (1754); Idyllen (1756, 1772); Der Tod Abeis (1758).
W. Kraemer: Das Leben des schlesischen Dichters Johann Edição (incompl.) por A. Frey, Stuttgart, 1884.
Christian Guenther. Godesberg, 1950. F. Bergmann: Salomon Gessner. Muenchen, 1913.
1198 OTTO M A R I A C A R P E A U X HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1199

palmente na França ( 2 8 " A ). A poesia anacreôntica francesa literatura "gustaviana", da época do rei Gustaf I I I (1771-
é sobretudo erótica; é contemporânea dos quadros de Bou- 1792) da Suécia. Os leitores de Goesta Berlings saga, de
cher e Fragonard. Típica é a figura de Bernis ( 2fi ), amigo Selma Lagerloef conhecem, um pouco, o ambiente requin-
de Madame de Pompadour, excelente causeur, autor de tado das classes altas da sociedade sueca, na segunda me-
poesiasinhas comparáveis às coisinhas de porcelana de tade do século X V I I I . J á se fazia sentir a influência de
Meissen e Sèvres, que bastaram para torná-lo célebre; Rousseau; "philosophes" franceses e inquietos filósofos
foi nomeado embaixador da França em Roma e cardeal alemães colaboraram para criar uma atmosfera meio revo-
da Igreja Romana. Títulos como Les baisers (1770), de lucionária, da qual a aristocracia mal tomou conhecimento,
Claude-Joseph Dorat, e L'art d'aimer (1775), de Joseph passando o tempo em festas suntuosas, sonhando com um
Gentil-Bernard, respiram a atmosfera de uma Arcádia ovi- Versalhes ou uma Veneza à beira do frio mar Báltico.
diana. Chénier escreverá ainda poesias assim. Influências A Suécia estava afrancesada. O famoso idílio A tis och
da poesia descritiva inglesa anunciam-se em Delille ( 3 0 ), Camilla, de Philip Creutz ( 8 2 ), é um poema francês em
poeta dos jardins da França, mas pensandor também de língua sueca: erótico, ligeiramente epicureu, do mais fino
problemas da Ordem no Universo. Essa feição filosófica alexandrinismo. Com o advento do rei Gustaf I I I , em 1771,
acentua-se em Fontanes ( 3 1 ). poeta oficial de Napoleão I, os sonhos revolucionários pareciam prestes a realizar-se:
lucreciano frio e versificador magistral, "o último dos o rei gostava das ideias da Enciclopédia. Começou então
clássicos"; no fim da vida, chegou a gostar das ruínas uma época fantástica, "danse sur un volcan", um sonho
góticas e foi amigo de Chateaubriand. Até mesmo em de artista (33>. O rei ofendeu terrivelmente a orgulhosa
França, a Arcádia leva ao pré-romantismo. aristocracia sueca, abolindo-lhe as liberdades da Constitui-
ção medieval ao estabelecer o absolutismo real. Empregou
O artificialismo aristocrático do Rococó francês, os
o seu novo poder para introduzir importantes reformas
presságios do pré-romantismo da poesia da natureza ingle-
no sentido da Ilustração racionalista; mas era esteta, seu
sa, e certo realismo germânico, reuniram-se para produzir
verdadeiro objetivo era transformar a sua corte e a cidade
a flor mais encantadora da poesia do século X V I I I : a
de Estocolmo em féerie fantástica. Em 1773 abriu-se a
ópera sueca com Thetis og Peleus, com texto de Wellander
e música do italiano U t t i n i ; começara o domínio de Me-
28 A) Broglie: Die frunzoesische Hirtendichtung des 18. Jahrhundert
in ihrem Verhaeltnis zu Oessner. Leipzig, 1903. tastásio. Mas o gosto literário do rei era rigorosamente
29) François-Joachim de Pierre de Bernis, 1715-1794. francês. E m 1786, fiíhdou a Academia Sueca. O seu ideal
Poésies diverses (1744); Les quatre saisons ou Les Géorgiques era um teatro clássico no género de Racine e Voltaire,
françaises (1763).
O. A. Salnte-Beuve: Causeries du Lundi. Vol. VIU. mas tratando assuntos nacionais, tirados da história sueca.
30) Abbé Jacques Delille, 1738-1813.
Les jardins ou Vart d'embellir les paysages (1782); VHomme des
champs (1802); Les trois règnes de la Nature (1809); La con-
versation (1812). 32) Philip Creutz. 1731-1785.
L. Audiat: Un poete oublié: Jacques Delille. Paris, 1902. Atis och Camilla (1761).
31) Louis de Fontanes, 1757-1821. O. Castrén: Philip Creutz. Stockholm, 1917.
Fragment d'un poème sur la Nature et VHomme (1777); Essal 33) A. H. Llndgren: Sveriges vittra storhetstid. 2 vols. Stockholm,
sur 1'astronomie (1788); Les tombeaux de Saint-Denis (1817). 1895/1896.
A. Wilson: Fontanes. Paris, 1928. O. Levertin: Fran Gustaf III* dagar. 2.» ©d. Stockholm, 1897.
I

1200 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1201

O p r ó p r i o rei e s c r e v e u as p r i m e i r a s p e ç a s ; e, c o m o o seu passou dias e noites nas tabernas de Estocolmo, nos "cafés",
talento de versificação não bastasse, serviu-se da colabo- q u e e r a m e n t ã o g r a n d e n o v i d a d e no N o r t e ; i m o r t a l i z o u
r a ç ã o d o s e u p r e d i l e t o p o e t a d e c o r t e , K e l l g r e n ( 3 *). E s t e m e s m o u m d e l e s , o " T h e r m o p o l i u m B o r e a l e " . L á , en-
virtuose do verso sueco lembra e m m a i s de u m sentido c o b e r t o p o r n u v e n s d e f u m o , e n t r e o t i n i r dos c o p o s ,
as f i g u r a s d e G u e n t h e r e B o c a g e , se o t a l e n t o e o g o s t o tendo nos joelhos sua gorda amante, a "ninfa" Ulla, e o
n ã o o a p r o x i m a s s e m a n t e s d e C h é n i e r . B o é m i o devasso e v i o l ã o n o b r a ç o , e s c r e v e u as s u a s " e p í s t o l a s " e c a n ç õ e s ,
a n a c r e ô n t i c o t e r n o , classicista s e n s u a l e e l e g í a c o d e s e s p e - compondo também a música, para serem cantadas pelos
rado, satírico mordaz, racionalista anticristão e idealista companheiros, membros da " O r d e m de B a c o " : o músico
quase r o m â n t i c o , n ã o c r i o u n a d a d e d e f i n i t i v o , m a s b e l o s m u n i c i p a l B e r g , o s a r g e n t o M o l b e r g e os o u t r o s q u e a p a -
v e r s o s em a b u n d â n c i a e u m a a t m o s f e r a a r t i f i c i a l d e a r t e recem como personagens permanentes naquelas poesias,
pura. A corte contaminou a cidade. A burguesia despertou sobretudo Ulla e Fredman, o pseudónimo do próprio poeta.
do sono do moralismo luterano e começou a imitar os A s poesias de Bellman chamam-se a n a c r e ô n t i c a s ; mas estão
aristocratas. A n n a Maria L e n n g r e n (35) acompanhou com f o r a das c o n v e n ç õ e s a r c á d i c a s ; são s i n c e r a s , d e l i c a d a m e n t e
p o e s i a s a l e g r e s , e l e g í a c a s e s a t í r i c a s essa v i d a b u r g u e s a , i r ó n i c a s ou b r u t a l m e n t e h u m o r í s t i c a s , às v e z e s f u r i o s a s ,
c r i a n d o u m n o v o r e a l i s m o p o é t i c o q u e se c o m u n i c o u aos desesperadas e mordazes, e a sua singularidade é acentuada
b o é m i o s m a i s ou m e n o s p l e b e u s , o s q u a i s , n ã o p e r t e n c e n d o p e l a m ú s i c a q u e o p o e t a l h e s j u n t o u : são m e l o d i a s p o p u l a -
à c o r t e n e m à b u r g u e s i a , l e v a v a m u m a v i d a l i v r e n o s cafés res com acompanhamento de uma curiosa orquestra rococó:
literários da cidade. E i s o ambiente de Bellman. f l a u t a , viola, c o r n e t a e t i m b a l e . C o m o t o d o s os g r a n d e s
B e l l m a n (36) é da estirpe d e V i l l o n e V e r l a i n e : u m poetas, Bellman criou u m m u n d o completo, transfiguração
d o s g r a n d e s p o e t a s p a r a t o d o s os t e m p o s . B o é m i o p l e b e u , d o seu m u n d o r e a l : a t a v e r n a f u l i g i n o s a , cheia d e b a r u l h o
e m ú s i c a p o p u l a r , v e n d o - s e das j a n e l a s o p a l á c i o real, n o
q u a l se c a n t a m as ó p e r a s i t a l i a n a s e as d a m a s d a n ç a m o
34) Johan Henrlk Kellgren, 1751-1795. m i n u e t o f r a n c ê s , e fora d a s salas b e m a q u e c i d a s o gelo
Tragédias, em colaboração com o rei Gustaf I I I : Drottnlng Kris- s o b r e o m a r B á l t i c o , e lá ao l o n g e , n o c r e p ú s c u l o n ó r d i c o ,
tina (1784); Gustaf Wasa (1786); Gustaf Adolf och Ebba Brahe
(1788). espera — n u m famoso poema meio mitológico d e Bellman
Sinnenas foerentng (1778); Mina loejen (1778); Nya skapelsen — a q u e l e q u e a c a b a r á c o m esse m u n d o d e n i n f a s e f a u n o s
(1789).
Edição: 3 vols., Stockholm, 1927. s u e c o s : C h a r o n , n o b a r c o da m o r t e . M e s m o q u e m i g n o r e
G. Ljunggren: Kellgren, Leopold och Thorild. Stockholm, 1873. a língua do poeta não pode deixar de sentir a melodia
O. Sylwan: Johan Henrik Kellgren. 2." ed. Stockholm, 1939.
destes versos imortais:
35) Anna Maria Lenngren, 1754-1817.
Skaldefoersoek (poemas, reunidos em 1819).
K. Warburg: Anna Maria Lenngren. 2.B ed. Stockholm, 1917.
A. Blanck: Anna Maria Lenngren, poet och pennskraft. Stock-
holm, 1922.
Edição critica da Bellman Selskab, 3 vols., Stockholm, 1921.
36) Cari Mikael Bellman, 1740-1795. O. Levertln: Diktare och droemmare, Stockholm, 1898.
Fredmans epistlar (1790); Fredmans sanger (1791); Fredmans N. Erdmann: Cari Mikael Bellman. Stockholm, 1899.
handskrtfter (1813). F. Niedner: Bellman, der schwedische Anakreon. Berlin, 1905.
Edição completa (com as composições musicais do poeta) por J. O. Sylwan: Bellman och Fredmans epistlar. Stockholm, 1943.
G. Carlén. 5 vols., Stockholm, 1856/1861. A. Blanck: Cari Mikael Bellman. Stockholm, 1948.
1202 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1203

" J a g ser Froejas tempel gunga: do grande físico, descobriram que se tinha, até então, es-
Eldar kring i luften ljunga. quecido um elemento essencial da tragédia antiga: o acom-
Full och vat panhamento musical. A favola mitológica, acompanhada
Staer jag i Charons bat." de música simples, em suposto estilo grego, parecia a so-
lução. Assim se representou, em 1594, a Daphne, texto de
A poesia de Bellman não é comparável a nenhuma Ottavio Rinuccini, música de Jacopo Peri, seguida, em
o u t r a ; é a poesia de um mundo encantado, e um golpe 1600, da Euridice, dos mesmos autores. Durante o século
estranho do timbale bastará para despertar-nos violenta- X V I I , o melodrama fêz poucos progressos literários, mas
mente. Devem ter sentido assim o tiro que, na noite de extraordinários progressos musicais, devidos ao génio dra-
15 de março de 1792, em meio ao ruído de um baile de mático do compositor Cláudio Monteverde. Também foram
máscaras, pôs fim à vida do rei Gustaf I I I , vítima de aris- importantes os progressos cénicos: a ópera adotou toda
tocratas descontentes. Quem não conhece a catástrofe da a maquinaria do teatro jesuítico, os bailados, os bosques
ópera Un bailo in maschera, de Verdi f A reminiscência animados e os fogos de artifício, lagos artificiais e má-
não é de todo casual. Com uma ópera começou o sonho quinas de vôo, infernos e céus abertos, coros de demónios
da Arcádia sueca; e uma ópera lhe guarda a última lem- e anjos. Cavalli, chamado a Paris, fêz a música para as
brança, embora desfigurada. A ópera é o centro em torno peças "à máquina", preparando o terreno da ópera francesa:
do qual gira a poesia do sonho da Arcádia: é a sua rea- música do florentino Lulli com textos de Quinault. Cesti,
lização máxima. compositor da corte imperial de Viena, colaborou com o
jesuíta Avancinus nos suntuosíssimos ludi caesarei. As
O maior poeta da Arcádia, Metastásio, é ao mesmo
palavras perderam a significação, nessas festas de sons e
tempo o maior libretista de ópera do século X V I I I . O
arquitetura. A rigorosa separação barroca entre o mundo
elemento heróico-fantástico na sua poesia rococó indica
irreal, no palco, e o mundo real dos espectadores, afastou
origens renascentistas; com efeito, a ópera, género barroco
a ópera barroca definitivamente do ideal da tragédia grega.
que chegou ao auge no século do rococó aristocrático, tem
Insignificância das palavras e irrealidade da cena po-
origens renascentistas, segundo pretensões de filólogos
diam levar a um teatro de bonecas. Algo nesse género é o
eruditos ( 8 7 ).
teatro de António José da Silva ( 3 8 ), chamado o Judeu, por-
Na "favola pastoral", os italianos acreditavam possuir
que a Inquisição de Lisboa mandou queimá-lo por motivo de
de novo a tragédia grega; compararam Tasso e Guarini
heresia judaizante. Foi brasileiro de nascimento, mas por-
a Sófocles e Eurípedes. Aos filólogos, porém, não escapou
tuguês pela vida e expressão literária. A sua obra destina-
a diferença: a falta de vida dramática no Aminta e no
Pastor Fido. Pensavam ter interpretado de maneira errada
a poética de Aristóteles. Nas conversas sobre o assunto,
38) António José da Silva, o Judeu. 1705-1739.
em Florença, em casa do filólogo Vincenzo Galilei, pai Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho
Pança (1733); Esopaiãa (1734); Anfitrião (1736); Guerras do
Alecrim e da Manjerona (1737).
Edição por João Ribeiro. 4 vols., Rio de Janeiro, 1910/1911.
87) P. Raffaelli: II melodramma in Itália, dalVanno 1600 fino ai nostri J. Lúcio de Azevedo: "O poeta António José da Silva e a Inqui-
giorni. Flrenze, 1881. sição". (In: Novas Epanáforas. Estudos de História e Literatura.
A. Solertl: Le origini dei melodramma. Torino, 1903. Lisboa, 1932.)
1204 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1205

va-se ao teatro popular do Bairro A l t o , s o b r e t u d o às festas cómicas d o s grandes compositores, porém, só têm a s i g n i -
de carnaval, e não passa, em geral, de farsas, representadas ficação de divertimentos para os grandes. I n d e p e n d ê n c i a
por bonecas. Contudo, o teatro d o J u d e u é um f e n ó m e n o literária, conservou-a apenas a "ópera bufa" popular do
literário bastante complicado: é uma combinação de co- napolitano Giambattista Lorenzi (*°), que foi justamente
média espanhola "de capa y espada" c o m árias à maneira por isso esquecida p e l o s l i t e r a t o s ; um s é c u l o depois, Set-
italiana, paródias quase "offenbachianas" do O l i m p o clás- tembrini redescobriu essa pequena e modesta maravilha do
s i c o e esboços de imitação da c o m é d i a de costumes de humorismo. A sátira contra o erudito pedante, no Socrate
Molière, com m u i t o espírito, que a l g u n s consideram fran- immaginario, é um e x e m p l o do conservantismo da arte
cês, e com rasgos de um lirismo encantador, que a l g u n s popular: revela, com evidência maior do q u e as grandes
consideram brasileiro, outros arcádico, e ainda outros orien- óperas sérias, o espírito barroco do teatro musicado.
tal, judeu. E embora já tenha havido e l o g i o s exagerados,
A feição barroca da grande ópera é um fato que ainda
o espírito teatral do J u d e u ainda não parece ter sido devi-
espera v e r i f i c a ç ã o ; as mais das vezes, a ópera foi inter-
d a m e n t e apreciado. E m todo o caso, A n t ó n i o J o s é da Silva
pretada como expressão típica do R o c o c ó aristocrático.
n ã o chegou a criar um teatro popular, português. Esse
Mas todo o teatro barroco tem como objetivo a ópera: o
f i m possível da farsa musicada foi a t i n g i d o em Espanha
j e s u í t i c o , em A v a n c i n u s , o espanhol, nas últimas peças de
por Ramón de la Cruz ( S 9 ) , autor de inúmeras peças e
Calderón, o i n g l ê s , em B e a u m o n t e F l e t c h e r e, depois, em
pecinhas da vida madrilena, que não têm só valor de do-
c u m e n t o s e já foram comparadas aos quadros de genre Davenant, o francês, em Quinault. A própria ópera, de
e tapeçarias de Goya. A relativa banalidade de Ramón o r i g e m renascentista, durante m u i t o t e m p o não c o n s e g u i u
de la Cruz, a falta de significação superior nas suas peças, superar a fase da "favola" m i t o l ó g i c a . O primeiro passo
não justifica tal comparação; bastaria dizer que o que n o para a "barroquização" dera-se no s é c u l o X V I I I : a adoção
século X V I I I foi realismo popular, parece-nos h o j e l e m - do aparelho c é n i c o do teatro jesuítico. A s e g u n d a fase,
brança de uma época de e s t e t i c i s m o requintado, do R o c o c ó embora já pertencendo ao s é c u l o X V I I I , está m u i t o con-
espanhol. O que é inferior em Ramón de la Cruz é o espí- forme ao espírito Barroco, com a substituição do assunto
rito m u s i c a l ; não é um Bellman. É o criador de um género m i t o l ó g i c o p e l o assunto histórico. Parece que Sílvio Stampi-
menor, do "sainete" madrileno, da opereta espanhola. glia (1664-1725) ofereceu aos m ú s i c o s primeiramente libre-
tos históricos como "Caio Graco" e "Spartaco". A reforma
A "ópera bufa" italiana escapou à banalidade pela
definitiva neste sentido e a adoção das regras francesas,
atmosfera m e i o irreal da commedia deli'arte. A s óperas
indispensáveis ao g o s t o da época, é obra de A p ó s t o l o Zeno

39) Ramón de la Cruz, 1731-1794.


Hospital de la moda (1762); Los aguadores de Puerta Cerrada •40) Giambattista Lorenzi, c. 1719-1805.
(1762); El barbero (1764); La Plaza Mayor -por Navidad (1765); Uidolo cinese (1767); La luna ábitata (1768); 11 Socrate immagi-
El Prado por la noche (1765); El teatro por dentro (1768); Las nario (1775), etc.
castaneras picadas (1787); etc, etc. L. Settembrmi: Scritti vari. Napoli, 1879.
Edição: Biblioteca de Autores Espanoles, vol. XXIII. M. Scherillo: Storia letteraria deli' opera buffa napoletana. Na-
E. Cotarelo: D. Ramón de la Cruz y sus obras. Madrid, 1899. poli, 1883.
A. Hamilton: A Study ot Spanish Manners, 1750-1800, from the B. Croce: / teatri di Napoli dal Rinascimento alia fine dei secolo
Plays o; Ramón de la Cruz. Urbana, 111., 1926. decimottavo. 2.» ed. Bari, 1916.
'

1206 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1207

(1668-1750) ( 4 1 ). O resultado foi a "ópera séria", a arte e, dentro dos limites estreitos do seu género, um dos
dominante e a mais internacional do século X V I I I . A grandes poetas da literatura universal. Facilidade de im-
história da música guarda precariamente a memória dos provisador e virtuosismo no verso harmonioso teriam
grandes compositores desse tempo; só nos últimos dois resultado, em Metastasio, um notável poeta lírico, se o seu
decénios revivificaram-se algumas das suas óperas e alguns sentimento fosse mais profundo, menos "teatral"; mas por
dos oratórios que substituíam as óperas por ocasião da isso mesmo preferiu o teatro, e a fraqueza da sua obra
Quaresma. E n t r e os mais notáveis no género podemos citar dramática reside principalmente na hipertrofia do lirismo.
Alessandro Scarlatti, em Nápoles, Galluppi, em Veneza, Poeta foi Metastasio, o último dos poetas barrocos, da
Haendel, na Inglaterra, Hasse, na Saxônia, Caldara, em Vie- estirpe dos eróticos como Tasso, Guarini, Marino. Renovou
na, Cimarosa, na Itália e em França, Jomelli, em Stuttgart, essa arte decadente, introduzindo-a no mecanismo da tra-
Paesièllo, na Rússia, mais outros como Traétta, Sarti, Majo, gédia à maneira francesa, e fê-lo com sucesso absoluto:
na Espanha, Prússia e Suécia. As representações luxuosas Voltaire tinha razão, comparando La clemenza di Tito às
nas capitais dos pequenos principados absolutistas do Ro- obras de Corneille; e o oratório Gioas re di Giuda não é
cocó, hoje cidadezinhas sem importância, lembram as ori- de todo indigno do modelo Racine, que o poeta italiano
gens barrocas da ópera séria: aquelas pequenas capitais tinha estudado muito ( 4 2 " A ). Metastasio criou um drama
sucederam, como centros teatrais, aos colégios provincia- aristocrático, cheio de ações e sentimentos nobres, mas não
nos dos jesuítas. A riqueza melódica dos compositores ita- sem frivolidade íntima; e o seu mecanismo teatral é monó-
lianos uniu-se a um obstinado conservantismo literário: tono mas eficientíssimo. Disso resultaram os aplausos
compuseram música sempre nova, mas sempre sobre os intermináveis dos contemporâneos. Metastasio é o último
mesmos textos, as mais das vezes, textos do "incomparabile" poeta italiano de que o seu povo sabe de cor, até hoje,
Metastasio. certos versos; e é ao mesmo tempo o último poeta italiano
Pietro Metastasio ( 4 2 ), ora elogiadíssimo, ora despre-
zadíssimo, é um dos poetas representativos do século X V I I I
Oratórios: S. Elena ai Calvário (1731); Morte d'Abele (1732);
Giuseppe riconosciuto (1733); Gioas re di Giuda (1735).
41) M. Fehr: Apostolo Zeno und seine Reform des Operntextes. Edição dos melodramas por F . Nlcollnl, 4 vols., Bari, 1920/1921.
Zurlch, 1912. Poesias escolhidas, edit. por E. Bettazzt, Torino, 1912.
42) Pietro Metastasio (pseudónimo de Pietro Trapassi), 1698-1782. A única edição das obras completas, em 12 vols., é a de Paris,
(Cf. nota 13.) 1780/1782.
Poesias: La liberta (1733); Palinodia (1746); La Partenza (1749); F. de Sanctis: "Saggio sul Metastasio". (In: La nuova Antologia,
etc. 1781.)
Melodramas: Didone abbandonata (música de A. Scarlatti, Gual- G. Carducci: Pietro Metastasio. 1882. (Opere, vol. XIX).
luppi, Sarti, e t c ; 1724); Ca tone in Uttca (música de Jommelli, P. Arcari: Uarte poética di Pietro Metastasio. Milano, 1902.
etc:; 1727); Ezio (música de Haendel, Jommelli, Gluck, etc; 1728); A. De Gubematis: Pietro Metastasio. Firenze, 1910.
Semiramide (música de Porpora, Jomelli, Sacchlnl, Cimarosa, e t c ; L. Russo: Píeíro Metastasio. Pisa, 1915.
1729); Adriano in Síria (música de Pergolese, Gallupi, e t c ; 1731); G. Natali: La víta e le opere de Pietro Metastasio. Livorno, 1923.
Issipile (música de Caldara. Pergolese. e t c ; 1732); Olimpíade M. Apollonio: Metastasio. Milano, 1930.
(música de Pergolese, Caldara, Jommelli, Galluppi, Cimarosa, Cl. Varese: Saggio sue Metastasio. Firenze, 1950.
etc; 1733); Demofoonte (música de Jommelli, Galluppi, e t c ; O. Calcaterra: Poesia e Canto. Studi sulla poesie melica italiana
1733); La clemenza di Tito (música de Leo, Sarti, Mozart; e sulla javola per la musica. Bologna. 1951.
1734); Achille in Sciro (música de Caldara, Sarti, Jommelli; 1736; 42A) A. Trigiani: II teatro raciniano e melodrammi di Metastasio.
Temistocle (1736); Attilio Regalo (1740). Torino, 1951.
1208 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1209

que conquistou glória internacional. Nos seus versos fáceis maneira muito mais perfeita do que o próprio Wagner.
aprendeu toda a gente culta do século X V I I I a língua ita- Só depois de Wagner sabemos apreciar um drama que se
liana, que hoje já não é considerada como parte indispen- confunde com a música. Attilio Regolo é uma tragédia
sável da cultura geral. Mas em vez de constituir isso notável. Metastásio é, na literatura italiana, o único criador
motivo de orgulho nacional, suscitou a ira e quase o ódio de um teatro original.
da Itália moderna: consideravam Metastásio como o poeta As apreciações tão diferentes sobre Metastásio são
da decadência, o poeta que transformou a grande Itália de consequências da combinação de elementos estilísticos
outrora em país de ópera e quase de opereta, de maestros, muito diferentes na sua obra. A crítica moderna aprecia
cantores e bailarinas. De Sanctis exprimiu com vivacidade o pré-romantismo em Metastásio, poeta elegíaco e às vezes
esse desgosto, opondo ao aristocrata frívolo Metastásio o trágico. Os contemporâneos elogiaram-lhe a apresentação
burguês sério Goldoni. "Sogni e favole io f i n g o . . . " , disse do erotismo arcádico em formas classicistas. De Sanctis,
Metastásio, e de Sanctis interpretou o verso como confis- embora enganando-se no julgamento estético, adivinhou,
são da decadência de uma sociedade ociosa, minada pela porém, a verdade histórica: Metastásio, criador de um
hipocrisia contra-reformatória. O severo Carducci, admi- mecanismo dramático quase de bonecos, "maitre de plaisir"
tindo a "natureza absurda" da "tragédia" metastasiana, de uma sociedade já anacrónica, poeta que confessa "fingir
salientou-lhe, porém, as belezas líricas, expressão perfeita sonhos e fábulas", é um poeta barroco; e barroca é a sua
de uma época realmente "arcádica". A popularidade de arte, a ópera.
Metastásio não é casual; ao lado dos grandes "olímpicos", A análise da Arcádia e do melodrama arcádico chega
Dante, Maquiavel, Leopardi, ele também representa uma a dois resultados: as relações da Arcádia com o pré-ro-
parcela do caráter nacional, e não a pior. Talvez os ita- mantismo em que sempre desemboca — o que constitui
lianos ainda tenham motivos para lembrar os seus versos: mais um argumento em favor da existência secreta do
pré-romantismo durante o século inteiro; e o caráter intima-
"Ne' giorni tuoi felici mente barroco dessa Arcádia que se dá ares de classicismo
Ricordati di m e ! " rigoroso. Este resultado surpreende, porque o grave Bar-
roco e o ligeiro Rococó sempre são considerados como
A apreciação moderna de Metastásio não acompanha os incompatíveis. Mas será realmente possível interpretar a
julgamentos de De Sanctis e Carducci. Não considera, ópera do século X V I I I como survival do Barroco do
como este último, a poesia metastasiana como renascença século precedente? A prova apresenta-se na ópera inglesa.
do erotismo idílico, nem, com o primeiro, o teatro metas- Henry Purcell ( 43 ) é, sem dúvida, um compositor barroco.
tasiano como simples mecanismo. Na poesia de Metastásio A grande inovação na sua obra-prima Dido and Aeneas
há qualidades líricas que não se encontram em outro poeta (1689) foi a eliminação completa do texto falado; só há
entre o tempo de Tasso e o de Leopardi: é um grande árias e recitativos, e essa eliminação do elemento "racional"
elegíaco. O vocabulário paupérrimo e monótono e a falta é muito significativa, assim como a preferência de Purcell
de colorido não constituem objeções, porque a poesia de
Metastásio é intencionalmente modesta, pretende apenas
servir ao drama e à música; e o mestre conseguiu isso de 43) Henry Purcell, 1659-1695.
D. Arundell: Henry Purcell. Oxford, 1928.
'

1210 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1211

pela adaptação e composição de peças shakespearianas: limita-se a poucas traduções e v e r s õ e s : entre elas, s ó Titus
Midsummer-Nighfs Dream e Tempest reviveram em Fairy and Berenice, de O t w a y , e Mithridates King of Pontus,
Queen e Enchanted Island, adotando-se todas as artes de de Lee, são dignas de notas. É fraca também a influência,
féerie da cena barroca. Purcell também transformou em embora sempre alegada, de M o l i è r e ; um crítico b e m in-
ópera a Bonduca, de B e a u m o n t e F l e t c h e r , que exerceram formado ( 4 6 ) só admite relações entre o Amphitryon, de
tanta influência sobre os dramaturgos da época da Restau-
M o l i è r e e a peça homónima, de D r y d e n , entre o Misan-
ração inglesa, particularmente sobre D r y d e n , para o qual
thrope e o Plain Dealer, de W y c h e r l e y ; e poucas outras.
P u r c e l l escreveu o s n ú m e r o s m u s i c a i s d e Tyrannic Love,
C o m isso, não se pretende absolutamente negar a influência
Amphitryon e King Arthur, e sobre Lee, que pediu a Pur-
cell a música da tragédia Theodosius. O drama da Restau- francesa; apenas permanecem as dúvidas a respeito da na-
ração i n g l e s a foi outrora interpretado como tentativa clas- tureza do a g e n t e influenciador. D r y d e n , n o s seus grandes
sicista, imitação de Corneille, e, quanto à comédia, imitação prefácios teóricos, não depende de Boileau, e s i m dos
de Molière. N a verdade, é uma tentativa de combinar o Discours, de C o r n e i l l e ; o seu i n t u i t o é um compromisso
classicismo com as reminiscências do teatro elisabetano- entre Corneille e Shakespeare. O verdadeiro culto do
jacobeu. O resultado foi uma espécie de N e o b a r r o c o ; e, c l a s s i c i s m o francês é, na Inglaterra, f e n ó m e n o posterior,
na comédia, uma espécie de Rococó. D e s t e modo, é preciso da época de A d d i s o n ( 4 7 ) . U m a das mais fortes influências
reinterpretar a literatura da Restauração inglesa, do m e s m o francesas na Inglaterra é e v i d e n t e m e n t e pré-classicista: a
m o d o que foi reinterpretada a Arcádia. do libertin e x i l a d o Saint-Évremond. A fonte dos dra-
Contra a classificação da literatura da Restauração m a t u r g o s da Restauração em busca de enredos não é o
i n g l e s a como barroca ou neobarroca é possível levantar teatro de Corneille e Racine, e s i m o romance heróico-
objeções sérias. É, em primeira linha, literatura dramática; galante ( 4 8 ) . Mas esse estilo heróico-galante tem precur-
e se o teatro jacobeu-carolíngio já foi caracterizado c o m o s o r e s n o teatro i n g l ê s : e, de fato, os dramaturgos "heróico-
barroco, não se espera então encontrar o m e s m o estilo no galantes" B e a u m o n t e F l e t c h e r exerceram forte i n f l u ê n c i a
teatro da Restauração: interpõe-se o período de 1642 a
sobre o drama da Restauração ( 4 f l ). O período de 1642 a
1660, durante o qual os teatros estiveram fechados p e l o
1660 não s i g n i f i c a interrupção completa. O primeiro dra-
g o v e r n o puritano. E d e p o i s começa a influência francesa,
maturgo que é autenticamente do e s t i l o da Restauração,
modificando tudo ( 4 4 ) . A essa teoria de uma cisão absoluta
entre o teatro jacobeu-carolíngio e o da Restauração —
em curso até há p o u c o na Inglaterra — não aderiram o s
críticos franceses mais s e n s í v e i s às "heresias" contra o 46) D. H. Miles: The Influence of Molière on Restoration Comedy.
New York, 1910.
classicismo ( 4 5 ) . A influência direta de Corneille e Racine
17) A. F. B. Clark: Boileau and the French Classical Critics in
.England. Paris, 1925.
48) Cf. "Pastorais, Epopeias e Pícaros", nota 50.
44) D. Canfield Fisher: Corneille and Racine in England. New 49) A . C . Sprague: Beaumont and Fletcher on the Restoration Stage.
York, 1904. Cambridge Mass., 1926.
45) C. Charlanne: Uinfluence française en Angleterre au XVHe J. H. Wilson: The Influence of Beaumont and Fletcher on Res-
siècle. Paris, 1906. toration Drama. Columbus, Oh., 1928.
1212 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1213

William Davenant ( 6 0 ), pertence cronològicametne à época grandes mestres do verso satírico, o criador do teatro mo-
carolíngia; é também autor de uma epopeia heróica, Gon- derno, da prosa "coloquial" e da crítica literária. Os crí-
dibert; as suas peças são quase óperas, que o colocam p e r t o ticos estrangeiros pouco se ocuparam com Dryden; se o
de Purcell; mas foram escritas e representadas d u r a n t e a fizessem, insistiriam provavelmente nas incoerências da sua
época de Cromwell, na qual se apresentou mais do que u m teoria dramatúrgica, no pouco valor atual do seu teatro, e
espetáculo teatral, embora em círculos fechados. As p r i - negar-lhe-iam, principalmente, o título de grande poeta,
meiras peças de Davenant, The Siege of Rhodes e The ou mesmo de poeta autêntico. De fato, a poesia lírica de
Cruelty of Spaniards in Peru, são verdadeiras óperas, e no Dryden tem poucos encantos. As famosas odes Song for
longo título da primeira indica-se claramente outra g r a n d e St. Cecília's Day e Alexandefs Feast são bombásticas,
inovação: "the art of prospective in scenes", o uso do barrocas no sentido pejorativo da palavra; antecipam os
palco em perspectiva com as suas máquinas barrocas. grandes coros de Haendel, mas sem o esplendor da música.
Davenant deu uma versão do Tempest, que serviu de base O poema elegíaco To the Memory of Mr. Oldham não su-
ao Enchanted Island, de Dryden e Purcell. Além disso, porta comparação com Lycidas. Dryden não é poeta lírico;
deixou poesias que o colocam entre os "metaphysical poets". mas existem outras espécies de poesia. Religio Laici e
Os aspectos multiformes de sua obra anunciam a figura The Hind and the Panther são grandes poemas didáticos;
proteica de Dryden. o leitor moderno estranhará a engenhosídade igual com que
John Dryden (B1) apresenta aspectos diferentes, visto
da Inglaterra ou visto de fora. Para os ingleses, é um dos-
loger (1671); Almanzor and Almahide (1672); Mariage à la Mode
(1673); Aureng-Zebe (1676); Ali for Love, or the World well
50) Sir William Davenant, 1606-1668. Lost (1678); Mr. Limberham (1680); The Spanish Friar (1681);
Poema épico Gondibert (1651). Amphitryon (1690); Don Sebastian, King of Portugal (1690);
Tragedy of Albovine (1629); The Siege of Rhodes Maãe a Repre- King Arthur (1691); Cleomenes (1692).
sentation by the Art of Prospective in Scenes, And the story sung Prosa: Of Dramatick Poesie (1668); The Grounds of Criticism in
in Recitative Musick (1656); The Cruelty of the Spaniards in Tragedy (1679); Examen Poeticum (Dedication) (1693); Preface
Peru (1658); The Tempest or the Enchanted Island (1670). to Fables Ancient and Modem (1700).
Edição por I. Maidment e W. H. Logan, 5 volumes, Edinburg P Edição das Obras completas por G. Saintsbury, 18 vols., Edinburg
1872/1874. 1882/1892.
A. Harbage: Sir William Davenant. Philadelphla, 1935. Edição das obras poéticas por W. D. Christie e C. H. Firtl,
A. H. Nethercot: Sir William Davenant. London, 1939. Oxford, 1911.
Edição das obras dramáticas por M. Summers, 6 vols., London,
51) John Dryden. 1631-1700. 1931/1932.
Poesia: Astraea Redux (1660); Annus Mirabilis (1667); Absalom Edição dos ensaios críticos por W. P. ker, 2." ed., 2 vols., Oxford
and Achitophel (1681/1682); The Medall (1682); Mac Flecknoe, 1926.
or a Satyr upon the True-Blew-Protestant Poet (1682); Religio G. Saintsbury: John Dryden. London, 1881.
Laíci (1682); To the Memory of Mr. Oldham (1684); Threnodia R. Garnett: The Age of Dryden. 2.a ed. London, 1907.
Augustalis (1685); To the Pious Memory of Mrs. Anne Killigrew A. W. Ward: "John Dryden". In: The Cambridge History of
(1686); The Hind and the Panther (1687); A Song for St. Ceci- English Literature. Vol. VTII. 2.» ed. Cambridge. 1920.)
lia's Day (1687); Alexandefs Feast (1697). M. Van Doren: The Poetry of John Dryden. 2.* ed. New York
Traduções: The Satires of Juvenal and Persius (1693); The Works 1931.
of Virgil (1697); Fables Ancient and Modem (1700). T. S. Eliot: John Dryden: The Poet, the Dramatist, the Critic.
Teatro: The Rival Ladies (1664); The Indian Queen (1665); The New York, 1932. •
Indian Emperour (1667); Secret Love or the Maiden Queen
(1668); The Wild Gallant (1669); Tyrannick Love (1670); The L. I. Bredvold: The Intelectual Milieu of John Dryden. Ann
Conquest of Granada by the Spaniards (1670); The Mock-Astro- Arbor. 1938.
K. Young: John Dryden. London, 1954.
1214 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1215

Dryden defende, no primeiro poema, a Igreja anglicana Don Sebastian tem até poder emotivo, e AU for Love,
contra o catolicismo, e no segundo — quando já estava versão "heróica" de Antbony and Cleópatra, é segundo a
convertido — o catolicismo contra a Igreja anglicana. A opinião unânime dos críticos, uma peça melhor construída
poesia de Dryden é polémica, retórica. Na sua famosa e mais eficiente do que a grande obra de Shakespeare. Abo-
tradução de Virgílio não conseguiu interpretar bem o li- lindo as convenções do teatro elisabetano-jacobeu, criou
rismo das Églogas; foi mais feliz na poesia didática da Dryden um teatro de complicações e desfechos lógicos,
Geórgica, e transformou a Aeneis em narração de grande diálogo espirituoso ou retórico, problemas geralmente hu-
eloquência. Ao tradutor de Juvenal cabe a primazia da manos, efeitos sentimentais e até melodramáticos: é, em
sátira inglesa. Absalom and Achitophel, satirizando o par- suma, o teatro moderno, inferior ao antigo em muitos
tido protestante dos whigs, envolvidos numa conspiração sentidos; mas é o nosso teatro. Dryden está mais perto
malograda, zomba dos vencidos, vestindo-os com nomes de Ibsen e Shaw do que Shakespeare e Webster; quando
bíblicos, caricaturando-os de maneira implacável; os retra- muito, tem algo de comum com Ben Johnson. Daí, ao lado
tos de Shaftesbury como Achitophel, de Buckingham como da inteligência, o pendor do grande satírico pela comédia,
Zimri tornaram-se inesquecíveis para os ingleses, quase na qual êle mesmo se julgou infeliz. Mas The Spanish
proverbiais. E o poema Mac Flecknoe, dirigido contra o Friar é superior ao modelo, a peça de John Fletcher, e
poetastro Shadwell, é a sátira literária mais amarga, mais Marriage à la mode e Amphitryon podem muito bem ser
eficiente que existe em qualquer língua. O estilo de Dry- comparadas às Précieuses ridicules e ao Amphitryon, de
den é erudito; mas qualquer leitor alcança o espírito que Molière. A obra-prima, Mr. Limberham, só não goza da
mata o adversário — com tanto vigor falam as imagens e fama merecida, porque é extremamente indecente. Mas
as rimas. Essa poesia, de domínio absoluto da língua e mesmo a esta peça tem T . S. Eliot estendido sua tentativa
do metro, é toda objetiva, anti-romântica, isto é, barroca, de reabilitação do teatro Dryden.
intelectual. Dryden é, acima de tudo, uma grande inteli-
Dryden tinha consciência das hesitações do seu estilo
gência.
dramático. Tornou-se por isso o maior crítico de teatro
A inteligência de Dryden não se podia conformar com da literatura inglesa. Se bem que as suas comparações
as inverossimilhanças grosseiras e a construção incoerente entre o teatro inglês e o teatro francês não chegassem a
do teatro elisabetano-jacobeu. Por isso, adotou o sistema resultados definitivos, os seus prefácios são muito supe-
francês; e para conseguir efeitos poéticos acessíveis à sua riores aos de Corneille. Dryden é u m grande crítico lite-
própria natureza poética, substituiu o verso branco do tea- rário, e o seu gosto é "catholic": adota o sistema francês
tro nacional pelo "heroic couplet", que oferece oportuni- — por mais "razoável" — reconhece, no entanto, a grandeza
dade para rimas engenhosas e eloquentes. Pensava em poética de Shakespeare, e as suas preferências classicistas
imitar Corneille, mas imitou antes Beaumont e Fletcher, não o impediram de redescobrir e celebrar o génio do
criando uma tragédia "heróica" de amor e "panache". Ne- esquecido Chaucer, o grande "pecado" do crítico Dryden
nhuma dessas peças é uma obra-prima. Mas a inteligência é o menosprezo de Donne e da "metaphysical poetry".
de Dryden brilhou na composição e na eficiência do diá- Censurou a poesia erótica de Donne porque este "perplexes
logo. AlmazoT and Almahide e Aureng-Zebe são as melho- the minds of thé fair sex with nice speculations on phi-
res tragédias barrocas (ou neobarrocas) do teatro inglês; losophy" — quer dizer, Dryden exige a simplificação da
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poesia barroca em favor do novo público que será menos Durante a vida de Dryden deu-se o acontecimento mais
culto e em grande parte composto de mulheres. Para este importante da história inglesa moderna: a revolução de
novo público traduziu Dryden as grandes obras da lite- 1688, que estabeleceu a monarquia parlamentar; significou
ratura antiga. Para este novo público escreveu ele sobre isso a eliminação definitiva dos ideais políticos do Conti-
os problemas difíceis da crítica literária, na mesma lin- nente nas Ilhas Britânicas, a afirmação da insularidade
guagem clara, vigorosa, "coloquial" sem deixar de ser lite- inglesa. Dryden é o último escritor inglês de formação
rária, dos seus poemas satíricos e didáticos. T. S. Eliot europeia, assim como o seu rei Jaime I I foi o último rei ca-
chama-lhe o criador da língua literária moderna. tólico e quase absoluto da Inglaterra. Veja-se mais uma vez,
Dryden é, porém, algo mais: é o criador da literatura a atitude do "bom europeu" (se bem que americano nato) T.
moderna, não somente pela linguagem poética, pelas novas S. Eliot, depois da Revolução Comunista. A obra de Dryden
convenções teatrais que estabeleceu, pela prosa, mas ainda é, na verdade, tão pouco "clássica" como a de Eliot — é mo-
pela atitude. É o primeiro inglês que foi conscientemente nárquica, anglo-católica, retórica, heróica e satírica; quer
e profissionalmente "homem de letras". Os escritores da dizer, barroca. E esse Barroco é tão artificial como as velei-
sua época, ainda sem grande público, estavam à mercê dos dades absolutistas do último rei da dinastia Stuart; é um
mecenas aristocráticos. Dryden conservou-se independente, neobarroco consciente do seu caráter reacionário contra o
tornou-se autoritário: da sua mesa em "Will's coffee- classicismo republicano da época de Cromwell e Milton.
house" dominava a literatura da época. As suas mudanças Luta em vão contra os gérmens do novo em seu próprio
políticas e a conversão ao catolicismo, muitas vezes cri- seio. Dryden é classicista mais no sentido de Addison e
ticada como "pouco sincera", não foram ditadas por um Pope, do século X V I I I , do que de Milton, contra o qual
adesionismo qualquer. A ambiguidade religiosa de Dryden reagiu. Na sua meditação constante, sincera mas não pro-
é mais uma expressão da via media anglicana; mas já funda, sobre problemas religiosos, não é capaz de dissi-
não é a ambiguidade de Donne e sim a hesitação de um mular o cepticismo a respeito do dogma; Religio Laici é
intelectual moderno em face de dogmas exigentes. E um título do qual gostarão deístas e racionalistas. No mo-
Dryden escolheu, na Inglaterra protestante, o dogma da ralismo de Dryden — até a indecência das suas comédias
minoria. As suas oscilações confirmam, desse modo, sua pretende denunciar o vício — já existe muito da menta-
independência, são passos para conseguir um ponto firme lidade burguesa. E o sentimentalismo dos seus efeitos
no ambiente do cepticismo geral da sua época. Por isso, melodramáticos anuncia a sensibilidade pré-romântica.
e não por motivos pessoais, o literato autoritário foi par- Dryden sintetiza o passado e o futuro da literatura inglesa;
tidário da autoridade política e eclesiástica, do Rei e da para os estrangeiros significa pouco, mas para os ingleses
Igreja. É o primeiro grande tory, conservador, da lite- é quase um Goethe.
ratura inglesa, e nisso também tipicamente inglês. Está
entre o republicano Milton e o tory Samuel Johnson, Está aí um grande nome, grande demais. Mas assim
politicamente e literariamente. A sua atitude parece com como se pode falar em "época de Goethe", deve falar-se
a atitude atual de T. S. Eliot, homem de letras, clas- em "época de Dryden". Os outros, são todos discípulos
sicista, monarquista e anglo-católico: Eliot aprecia muito e imitadores seus. Embora várias vezes — sobretudo na
Dryden, et pour cause. comédia — mais felizes do que o mestre. A literatura da
I2\n OTTO M A R I A CABPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1219

Restauração é principalmente dramática ( o s ) : os dryde- defini-la como barroca — considerando-se que já foi defi-
nianos criam um teatro, talvez não de valor permanente, nida como barroca a tragédia jacobeu-carolíngia. A última
mas moderno. O caráter transicional da época contribui tragédia elisabetana carece de standards morais; a tragédia
para diferenciar nitidamente a tragédia, afirmação positiva da Restauração erige o standard do heroísmo teatral: os
do ideal heróico-barroco, e a comédia, reação moralista con- ideais aristocráticos de Beaumont e Fletcher, como lição
tra o trend hostil — antibarroco — da época. moral do teatro. Para explicar esse didatismo, o crítico
A tragédia da Restauração ( 68 ) é obra de "poetes americano Cleanth Brooks chamou a atenção para a in-
maudits"; a tentativa de síntese entre espírito teatral in- fluência do filósofo Hobbes, ao qual Dryden deve realmente
glês e forma francesa não era realizável; os seus repre- muito. Hobbes ( " ) foi inimigo da "metaphysical poetry";
sentantes acabaram na loucura ou na miséria. As opiniões censurou a poesia metafórica, exigindo uma poesia expo-
sobre os tragediógrafos da Restauração são ainda contra- sitiva, capaz de sugerir admiração pelas virtudes heróicas
ditórias. O século X V I I I , incapaz ou apenas parcialmente — como filósofo do absolutismo totalitário, não admite ou-
capaz de aceitar a tragédia de Shakespeare, admirava em tra poesia a não ser uma poesia "útil". Brooks ( 65 ) pretende
Otway e Lee os restos que conservam do teatro jacobeu; explicar, deste modo, o fim da tragédia elisabetana: com
os elogios exagerados daquela época ainda sobrevivem em a metáfora desaparece a "ambiguidade", para tornar possí-
certos manuais tradicionalistas. Desde que começou a ido- vel o fim didático da poesia; com a "ambiguidade" cai o
latria de Shakespeare e, depois, o culto dos seus contem- "double plot" — e fica a tragédia heróica sem elemento
porâneos, a crítica pronunciou os julgamentos mais duros cómico. Na verdade, trata-se antes da dissociação completa
sobre os "génios fracassados" da Restauração, que teriam da síntese elisabetana; e eis porque cai o "double plot".
sido, na verdade, talentos fracos, de ambição desmesurada. A eliminação do elemento cómico é uma tentativa de res-
Otway e Lee decepcionam, quando lidos; e as suas peças tabelecimento dos valores morais: uma "rebarroquização"
já não se representam. Mas são mestres notáveis do mero do teatro barroco, quer dizer, um neobarroco. O grave
efeito teatral. São de todo indignos de ser comparados a burguês Dryden não compreendeu o fantástico dessa ta-
Shakespeare, Jonson, Middleton e Webster; mas são su- refa: as suas tragédias são brilhantes exercícios de estilo
cessores dignos da tragédia fantástico-heróica de Beau- teatral. Os mestres da tragédia da Restauração — Otway
mont e Fletcher. e Lee — são "poetes maudits", génios fantásticos de estilo
A crítica de Dryden não é um guia muito seguro para heróico e vida trágica.
•determinar o caráter da tragédia da Restauração. Classicista, Thomas Otway ( 60 ) ainda vive dos interesses dos seus
pretendeu ela ser, mas não foi; por outro lado, não convém enredos: Don Carlos lembra Alfieri (Filippo) e Schiller

63) A. W. Ward: History of English Dramatic Literature to the 64) Cf. nota 101.
Death of Queen Anne. Vol. m , 2.» ed. London, 1899.
A. Nicoll: A History of Restoration Drama, 1600-1700. Cam- 55) Cl. Brooks: "A Note on the Death of Elizabethan Tragedy". (In:
bridge, 1923. Modem Poetry and the Tradition. Chapei Hill, 1939.)
A. Nicoll: A History of Early Eighteenth Century Drama, 1700- 66) Thomas Otway, 1652-1685.
1750. Cambridge, 1925. Don Carlos Prince of Spain (1676); The Orphan (1680); The
53) B. Dobrée: Restoration Tragedy. Oxford, 1929. Soldiers Fortune (1681); Venice Preserv'd (1682).
Edição por J. C. Ghosh, 2 vols., Oxford, 1932.
1220 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1221

(Don Carlos). Venice Pieserv'd lembra uma v e z mais Tornaram-se notórias as injúrias grosseiras de T h o m a s
Schiller (Fiesco) foi imensamente elogiada durante o sé- R y m e r contra S h a k e s p e a r e : em A Short View of Tragedy
culo X V I I I e a primeira metade do s é c u l o X I X , e seria (1693), chamou a Otelo "farsa sangrenta sem espírito".
realmente uma poderosa tragédia romântica — no s e n t i d o Mas R y m e r gostava de B e a u m o n t e F l e t c h e r ; e o q u e pre-
em que é romântico o teatro jacobeu — e um interessante t e n d e u exprimir, em l i n g u a g e m grosseira, foi apenas a
e s t u d o p s i c o l ó g i c o do conspirador fracassado Jaffier, s e incompatibilidade d o a n t i g o teatro c o m o g o s t o d o p ú b l i c o
não fosse a retórica vazia, a falsa poesia. D o e f e i t o n o moderno — c o n c e i t o j u s t i f i c a d o pelas inúmeras tentativas
palco, que f ê z estremecer o público do s é c u l o X V I I I , dá malogradas de "adaptar" Shakespeare. R e s p o s t a a R y m e r
alguma ideia a versão moderna, alemã, de Hofmannsthal. foi, em 1709, a primeira edição moderna de Shakespeare,
A obra mais original de Otway é a comédia The Soldiers por N i c h o l a s R o w e ( 5 8 ) , que já considerava Shakespeare
Fortune, na qual se reflete a sua própria vida de boémio, não como força viva do teatro, e sim como leitura literária.
ator, soldado e desgraçado. E O t w a y era ainda feliz em Para o teatro, era preciso "adaptar" as peças elisabetanas,
comparação com Nathaniel L e e ( B 7 ) , que acabou na embria- e R o w e adaptava com muita habilidade. U m a v e z até con-
g u e z e n o m a n i c ô m i o . L e e foi u m grande talento. Lembra s e g u i u quase uma obra-prima: The Fair Penitent é uma
até Marlowe, pela fúria infernal das p a i x õ e s que se desen- tragédia fina e comovente, melhor construída e elaborada
cadeiam no s e u teatro. The Rival Çueens é p e l o m e n o s do que o m o d e l o , o poderoso e a l g o rude Fatal Dowry, de
igual à obra mais famosa de O t w a y ; mas o público de hoje Massinger e F i e l d . E m outras obras, R o w e limitou-se a
mal suportaria a representação dessa obra, de eloquência diluir o estilo elisabetano: as tragédias históricas Jane
torrencial, porém, falsa e pouco sincera. L e e não é "o úl- Shore e Lady Jane Grey atenuam os assuntos sangrentos
t i m o elisabetano"; é antes o primeiro dos m u i t o s esquisitões a p o n t o de s e tornarem peças sentimentais. E m v e s t e s
entre o s poetas i n g l e s e s m o d e r n o s — entre eles há um reais do passado, a g e m b u r g u e s e s e burguesas chorosas d o
S h e l l e y e u m B e d d o e s — que pretenderam a t o d o c u s t o s é c u l o X V I I I . R o w e transforma a tragédia neobarroca e m
revivificar o teatro elisabetano, mas que só l h e imitaram drama burguês, que será género t í p i c o do pré-romantismo.
a violência dos contrastes p o é t i c o s e cénicos. A comédia de Restauração ( 6 9 ) também não saiu ex-
O ano de 1688 acabou com os ideais heróico-fantásticos. nihilo. Mas o s e u modelo não foi a comédia fantástica
O próprio D r y d e n quis, então, abandonar o teatro. Certos de B e a u m o n t e Fletcher, mas a comédia de c o s t u m e s de
d i s c í p u l o s seus começam a atacar o a n t i g o teatro inglês. Massinger, Shirley, e sobretudo de M i d d l e t o n , em que os
comediógrafos da Restauração encontraram o realismo frio
na apresentação de c o s t u m e s depravados; o que acrescen-
K. Luick: Thomas Otioay. Wien, 1902.
R. G. Ham: Otway and Lee. Newhaven, 1931.
A. M. Taylor: Next to Shakespeare. Otway's Venice and Orphan. 58) Nicholas Rowe, 1674-1718.
Durham, N. C, 1950. Tamerlane (1702); The Fair Penitent (1703); Tragedy of Jane
57) Nathaniel Lee, c. 1653-1692. Shore (1714); Tragedy of Lady Jane Gray (1715); The Works
The Rival Queens (1677); Theodosius (1680); Caesar Borgia of William Shakespeare (1709).
(1680); The Massacre of Paris (1690). Edição parcial (Tamerlane, Fair Penitent e Jane Shore) por
A única edição existente é a dos Dramatick Works, 3 vols., Lon- J. R. Sutherland, London, 1929.
don, 1734/1736. O. Jutze: Nicholas Rowe. Leipzig, 1910.
R. O. Ham: Otway and Lee. Newhaven, 1931. 59) B. Dobrée: Restoration Comedy. Oxford, 1924.
1222 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1223

taram foi o espírito jocoso de uma sociedade antipuritana grande comédia, o Tartuffe — o capitão Manly é um homem
e intencionalmente amoralista. Este amoralismo é, aliás, a como Wycherley gostaria de ver os outros: rude e honesto.
própria atmosfera da comédia; e a comédia da Restauração O comediógrafo já nem repara que a vida desse homem de
é sensivelmente superior à comédia elisabetana. bem também é irregularíssima. Na mesma tendência en-
O mais decente entre eles é George Etherege ( 0 0 ). quadram-se, com seriedade menor, as comédias lascivas de
Provém diretamente da comédia fina de Shirley, e revela Aphra Behn ( 8 2 ), que também pretendeu opor ao deboche
influências de Molière, mas apenas das farsas. Os seus aristocrático a "liberdade" franca — pelo mesmo motivo
personagens são mais realistas que os dos seus suces- simpatizava ela com os escravos pretos, no seu romance
sores, embora os enredos sejam complicados como os de Oroonoko. Tendências parecidas — desta vez, do ponto
"capa y espada". O diálogo vivacíssimo de The Man of de vista da moral burguesa — inspiraram as comédias obs-
Mode, não foi superado. Em comparação parece Wycher- cenas de Dryden; T. S. Eliot chegou a defender, com muita
ley ( 0 1 ), à primeira vista, um cínico ordinário. É divertidís- coerência, o ideal secreto de moralista em Mr. Limberham;
simo, tem instinto infalível pela comicidade das situações e os discípulos de Eliot estenderam a defesa à comédia da
sexuais, apresentando-as com vigor de naturalista. Na sua Restauração "em bloco" ( 6 3 ). Uma interpretação mais "his-
obra-prima, The Country Wife, coloca entre aristocratas toricista" daria resultado diferente: justamente em Mr.
ingleses, de costumes quase selvagens, o enredo arquivelho Limberham, costumes aristocráticos e comentário burguês
do Eunuchus, de Terêncio: um cavaleiro que alega ser estão em plena contradição.
eunuco para tranquilizar os maridos e seduzir-lhes as mu- O equilíbrio estabelece-se em Congreve ( 6 4 ). É o co-
lheres. E Wycherley realiza uma obra superior a todas as mediógrafo mais admirado da literatura inglesa: causeur
versões anteriores do tema. Wycherley é um grande criador espirituoso, técnico habilíssimo da cena, cínico sem exces-
de caracteres "humanos, humanos demais"; e não o seria siva obscenidade. Comparam-no a Wilde. Mas este não
se não fosse movido — por mais incrível que pareça — seria capaz de escrever The Way of the World, peça digna
por sérias tendências morais: representa o deboche gros- de Molière; os diálogos entre Mirabell e a encantadora
seiro para protestar contra a indecência requintada. Em Millamant, brigando sempre até tomar afinal "o caminho
The Plain Dealer — Hazlitt lembrou a propósito desta

62) Cf. "Pastorais, Epopeias, Picaros", nota 52.


60) Slr George Etherege, c. 1633-1691. 63) J. Symons: "Restoration Comedy". (In: Kenyon Review, VTI/2.
The Comical Revenge (1664); The Man o/ Mode (1676), etc. 1945.)
Edição incompleta por H. F. B. Brett-Smith, 2 vols., Oxford, 64) William Congreve, 1670-1729.
1927. The Old Bachelor (1693); The Double Dealer (1694); Love for
F. S. Mac Camle: Sir George Etherege. A Study in Restoration Love (1695); The Mourning Bride (1697); T%e Way of the World
Comedy. Cedar Rapids, 1931. (1700).
61) William Wycherley, 1640-1715.1 Edições por M. Summers, 4 vols., London, 1923, e por F. W. Ba-
Love in a Wood, or St. James Park (1671); The Qentleman Dan- teson, London, 1930.
cing-Master (1672); The Country Wije (1675); The Plain Dealer E. Oosse: William Congreve. London, 1888.
(1677). D. Protopopescu: William Congreve, sa vie, son oeuvre. Paris,
Edição por M. Summers, 4 voLs., London, 1924. 1924.
Ch. Perronat: Wycherley, sa vie, son oeuvre. Paris, 1921. D. C. Taylor: William Congreve. Oxford, 1931.
W. Connely: Brawny Wycherley. New York, 1930. I. C. Hodges: William Congreve, the Man. New York, 1944.
1224 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1225

do mundo", casando-se — lembram o Shakespeare de Much <6*), o notável arquiteto dos grandes castelos da época do
A do About Nothing. Mas é um diálogo de brilhantes con- duque de Marlborough — Sacheverell Sitwell considera-o
cetti antitéticos, à maneira barroca. O século XVIII como o maior arquiteto do Barroco inglês; para diverti-
admirava ainda mais a tragédia The Mourning Bride, que mento seu e dos seus amigos nobres, escreveu farsas obs-
o gosto moderno, acostumado à tragédia elisabetana, já não cenas, de uma habilidade cénica que lembra a "comédia de
capa y espada" espanhola. Em uma dessas farsas apareceu,
aprecia. Tomava-se demasiadamente a sério a afirmação
pela primeira vez, no palco inglês uma cama aberta. Sus-
do próprio Congreve de não ser poeta e sim apenas gentle-
citou a ira especial dos adversários, porque apresentava
man e diletante. Hodges, o último biógrafo de Congreve, com a mesma indecência o ambiente burguês zombando
revela que este era gentleman num sentido muito elevado do sentimentalismo hipócrita. Essa polemica e a influência
do termo, homem cultíssimo, artista consciente — mas de moralizadora da corte da rainha Ana refletem-se na obra
modo algum gentleman vitoriano. A "moralidade" da ex- de George Farquhar ( 6fl ): os seus enredos continuam a
pressão e das situações não lhe importava, talvez porque ser indecentes — tratando sempre de sedução bem conse-
não pretendeu fotografar costumes reais; o seu intuito era guida — mas a linguagem é moderada, e o amor dá-se ares
a criação de um mundo fantástico de criaturas sem respon- românticos. Farquhar é, aliás, entre todos esses comedió-
sabilidade — é o dramaturgo da Fancy. Congreve é — a grafos tão hábeis, o maior técnico da cena: The Beaux'
sua prosa clássica o confirma — um poeta sem emoção, Stratagem é, do ponto de vista puramente teatral, a comédia
máxima da literatura inglesa, cheia de verve e interesse,
poeta da inteligência pura. E assim também é The Mour-
e não sem certa poesia da paisagem dos "midlands", dos
ning Bride, peça fora de todas as normas do teatro inglês,
*'castles", "inns" e "highways" do Rococó inglês — roman-
e que Johnson considerava digna de Racine. Em Congreve,
tismo em "plein air". Mas o estilo da Restauração não
o neobarroco de Dryden, Otway e Wycherley apresenta-se suportava essa linguagem moderada. Sem o cinismo, per-
perfeitamente calmo, tendo recuperado a compostura aris- dia-se o moralismo secreto, transformando-se em moralismo
tocrática, tornou-se Rococó. aberto, sentimental. A comédia "honesta" de Steele já é

Mas esse Rococó era incompreensível ao espírito pu-


ritano da classe que vencera com os whigs rebeldes de 1688: €5) John Vanbrugh, 1664-1726.
a burguesia. Revoltando-se contra a comédia indecente, The Relapse (1697); The Provok'd Wife (1697); The Confederacy
(1705); The Provoked Husband (1718), etc.
pretendeu defender a moral pública; mas chegou a atacar Edição por B. Dobrée e G. Webb, 4 Vols., London, 1927.
a própria arte. "A Short View of the Immorality and Pro- M. Dametz: John Vanbrughs Leben und Werke. Wlen, 1898.
66) George Farquhar, 1677-1707.
fanenness of the English Stage" (1698), panfleto vigoroso The Constant Couple (1699); Sir Harry Wildair (1701); The In-
do pastor dissidente Jeremy Colher, denuncia com certa constant (1702); The Twin-Rivals (1702); The Recruitlng Officer
(1706); The Beaux1 Stratagem (1707).
razão o carnaval permanente de adultérios e deboches no Edição por C. Stonehlll, 2 vols., London, 1930.
palco inglês de então; mas falha completamente pela exi- D. Schmid: George Farquhar. Wien, 1904.
H. E. Perry: The Comic Spirit in the Restoration Drama.
gência de uma arte que promovesse a moral pública. O Nevhaven, 1925:
W. Connely: Young George Farquhar. The Restoration at Twl-
comediógrafo mais visado por Collier foi John Vanbrugh light. London, 1949.
1226 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1227

assim; é transição para o drama burguês e o romance psi- damas como se fala nas comédias de Wycherley e Van-
cológico. b r u g h ; adultério, rapto e estupro eram espetáculos comuns
Durante o século X I X , a comédia da Restauração e quase públicos. O maior devasso da corte e amigo íntimo
constituía a "região proibida" da literatura inglesa: na d o rei, o Earl of Rochester ( e 8 ), confirmou pela vida a
crítica de Hazlitt ainda se encontra um eco da grande autenticidade do panorama moral da comédia da Restau-
admiração que o século X V I I I dedicava a Wycherley, Con- ração; e também pela sua literatura. Rochester é o Dryden
greve e Farquhar; porém Macaulay já achou que "this de um mundo de bêbedos e prostitutas; mas a comparação
part of our literature is a disgrace to our language and não ofende o grande homem de letras. Rochester, apre-
our national character". E toda a época vitoriana, profun- sentado outrora como inventor ocasional de alguns versos
damente envergonhada, deu-lhe razão. felizes, desperdiçou um talento extraordinário — a crítica
A valorização atual da comédia da Restauração vem moderna chega a lamentar um génio que a literatura inglesa
dos anos de 1920; o libertinismo literário do após-guerra, teria perdido. Uma tragédia, Valentinian, revela em Ro-
entusiasmado pelo ambiente finamente pitoresco do Rococó chester o discípulo de Beaumont e Fletcher, o emulo de
inglês, descobriu na comédia da Restauração um mundo Otway. Sodom, OT the Quintessence of Debauchery é o
artístico de qualidades superiores — esta apreciação pode último produto da "Cavalier Poetry". O motivo psicológico
ser considerada definitiva — não se preocupando com a d o deboche de Rochester foi um cepticismo amargo, algo
"imoralidade" de um teatro ao qual os manuais e antologias misantrópico; a sua Satire against Mankind aproxima-se
destinados ao grande público só aludem em poucas e pru- mais de Swift do que de Dryden; e revela ao mesmo tempo
dentes palavras como se se tratasse de escândalo. Até um mestre do verso inglês. As poesias de Rochester não
mesmo um "moderno" como Archer ( 67 ) tradutor de Ibsen são meros "vers de société". O sentimento do devasso é
e amigo de Shaw, achara a comédia da Restauração "stupid, mais sincero na poesia do que na vida. Os versos iniciais
nauseous and abominable". A indignação foi tão grande, de Love and Life —
porque interpretaram essa comédia como espelho fiel da
sociedade de então: as obras de Wycherley e Vanbrugh "Ali my past life is mine no more;
seriam a imagem dos costumes ingleses entre 1660 e 1710 T h e flyng hours are gone,
( 6 7 A ), e o fato de que tais costumes teriam sido possíveis Like transitory dreams given o'er
na terra de Dickens e Tennyson escandalizava o mundo Whose images are kept in store
vitoriano. By memory alone."
Existem certos motivos para aceitar a equação entre
68) John Wilmot, Earl of Rochester, c. 1647-1680.
a comédia e a sociedade de 1660. Após o regime puritano, Sodom or the Quintessence of Debauchery (1684?; a edição ori-
a Restauração da monarquia aristocrática teve como con- ginal não existe; editado por L. S. A. M. Roemer, Paris, 1904);
Poems on Several Occasions, with Valentinian, a tragedy (1691).
sequência um alívio súbito, degenerando logo em deboche Edição por J. Hayward, London, 1926.
e cinismo. Na corte do rei Carlos I I , falava-se com as J. Prinz: John Wilmot, Earl of Rochester, his Life and Wrttings.
Leipzig, 1927.
V. de S. Pinto: Rochester. Portralt of a Restoration Poet. Lon-
don, 1935.
67) W. Archer: The Old Drama and the New. New York, 1929. Ch. Williams: Rochester. London, 1935.
67A) J. Palmer: The Comedy of Manners. London, 1913. J. H. Wilson: Court Wits of the Restoration. Princeton, 1948.
• •

1228 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1229

— exprimem um conceito barroco, com a profundidade literária. O grande valor do Diary está, em primeiro plano,
emotiva e na forma simples de um Cowper, de um pré- na sinceridade absoluta do diarista. Com um " . . . a n d to
romântico. Contudo, o génio poético de Rochester não tem bed" terminam todas as anotações; Pepys escreve, por as-
nada que ver com sua qualidade de testemunha em favor sim dizer, nu, sem se enfeitar, revelando-se da maneira
da veracidade da comédia da Restauração. Mas há outra mais completa. É um homem u misto", tal como a maioria
testemunha, mais genial e mais comprobatória: Pepys. imensa dos homens, cheio de qualidades e defeitos con-
Os diários de Samuel Pepys ( 69 ) constituem o docu- traditórios. Político e administrador eminente, gentleman
mento mais singular da literatura inglesa: não pertencem culto e quase erudito, já preferindo as ciências naturais
à literatura propriamente dita, porque Pepys não os desti- à filologia humanista, avarento e generoso, devasso e amá-
nava à publicação. Taquigrafou-os, criando inúmeras difi- vel, é Pepys um aristocrata inglês não-puritano — os wighs
culdades à decifração, de modo que até as melhores edições do século X V I I serão assim. É um tipo de liberal inglês,
não estão isentas de erros. Além disso, estão incompletas, também liberal com respeito à verdade. Talvez fosse Pepys
porque ninguém ainda se atreveu a transcrever o relata o único homem do mundo que se revelou tão francamente.
de certas aventuras eróticas do diarista. O próprio Pepys, Mostra assim 'Thumaine condition" que, segundo Mon-
em ocasiões assim, inseriu palavras estrangeiras entre as taigne, todo homem representa. O seu diário é, no dizer
inglesas, para enfeitar a verdade; mas nunca traiu esta de Stevenson, "a Bible of human being", um comentário
última. O Diary é a mais completa auto-revelação de qual- • permanente da maneira de ser homem. A outra grande
quer homem em qualquer época e literatura. Não fazendo qualidade do Diary reside no seu enorme tamanho: é com-
distinção alguma entre qualidades respeitáveis e pequenas pleto. O homem Pepys é centro do seu mundo. Reflete
vaidades, atitudes duvidosas e vicios sórdidos, assuntos d a os grandes acontecimentos da época — coroação do rei,
maior importância política e ocupações de mesquinhez ri- guerra com a Holanda, incêndio e peste em Londres; e
dícula, Pepys anotou tudo nos seus cadernos: sessões n o também a vida quotidiana, as intrigas políticas da corte
Conselho do rei e horas com Doll Lane na taverna, repre- e do parlamento, aventuras e adultérios, brigas de família,
sentações de Shakespeare e Dryden e observações sobre teatro, ópera, cafés, reuniões científicas, a Bolsa, os piratas,
café e chocolate, os trabalhos sérios no Almirantado e comerciantes, judeus, levantinos, o porto de Londres, as
com os cientistas da Royal Society, orgias desenfreadas livrarias e os bordéis. Está tudo ali. É o panorama mais
e aborrecimentos em casa com a mulher ciumenta, horas completo que existe de qualquer época, pintado sem pre-
dormidas na igreja durante o sermão, brigas com o alfaiate, tensões de composição literária — um Universo literário
administração da sua fortuna considerável, meditações re- como o de Dante ou Balzac.
ligiosas — tudo isso misturado, sem a menor preocupação
A qualidade comum entre Pepys e o seu mundo é a
paixão desenfreada pelos prazeres e divertimentos, sobre-
69) Samuel Pepys, 1633-1703. tudo os prazeres sexuais. Neste sentido, Pepys autentifica
Diary (1 de janeiro de 1660 a 31 de maio de 1669; primeira pu- a comédia da Restauração. Para êle, o mundo é um lugar
blicação por Lord Braybrooke em 1825). em que a gente se distrai, uma festa permanente, um espe-
Edição por H. B. Wheatley, 10 vols., London, 1893/1899.
G. Bradford: The Soul of Samuel Pepys. Boston, 1924. táculo divertido. À atitude de Pepys é essencialmente a
A. Bryant: Samuel Pepys. 4 vols. Cambridge, 1933/1938 (2.*
edição, 1947/1949). do artista "pour qui le monde visible existe"; assim, êle
1230 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1231

se tornou artista, inconsciente e, por isso mesmo, maior. menos ou mais abertamente, à sexualidade. Afasta-se cada
Mas aquele libertino não é o Pepys todo. Existe também vez mais do mundo real, criando mundos fantásticos do
o Pepys administrador, o cientista e burguês respeitável; amor livre. Lamb, o grande ensaísta inglês, foi o primeiro
e no seu mundo há negócios — política, comércio, trabalho que observou — em The Artificial Comedy of the Last
— dos quais a comédia da Restauração não toma conheci- Century (1822) — essa índole da comédia da Restauração:
mento. Os comediógrafos são artistas de uma outra espécie. segundo êle, seria um reino de sonhos e fadas, comple-
A atitude de Pepys é a do espectador impressionista; a tamente irreal, fora de todas as normas morais. A época
atitude daqueles é a de artistas conscientes que escolhem vitoriana não compreendeu essa definição estilística; estra-
no material dado um setor, um fragmento, tratando-o sem nhou a "defesa da imoralidade", da "mancha da literatura
responsabilidade perante o mundo real, sentindo-se res- inglesa". Não são hoje muitos os que assinariam as fortes
ponsáveis apenas perante o foro da arte. Em comparação expressões de Macaulay ou de Archer. E os últimos par-
com a compreensiva "comédie humaine" de Pepys, a co- tidários obstinados da correspondência perfeita entre cos-
média de Wycherley é de uma grosseria fantástica, a de tumes e comédia da Restauração não deixam de limitar a
Congreve de uma delicadeza não menos fantástica, a de tese por meio de considerações de natureza sociológica:
Vanbrugh e Farquhar mero teatro, fantástico e irrealista a comédia de Wycherley e Congreve, contemporânea da
como o teatro de Gozzi. A comparação com Pepys define literatura de Milton e Bunyan, não seria um panorama
o estilo da comédia da Restauração, estilo que só em Con- completo da sociedade inglesa da Restauração, mas apenas
greve se revela completamente: é Rococó. de um pequeno setor aristocrático, daquele que aplaudiu
e, em parte, escreveu aquelas comédias ( 7 0 ). Mas quanto
A propósito da Arcádia verificou-se o mesmo fenó-
a esses círculos, estudos recentes sobre as causas de adul-
meno estilístico. Não faz muito tempo que os historiadores
tério e divórcio perante os tribunais da época confirmaram
literários admitiram o termo "Barroco"; o termo "Rococó",
de novo o realismo brutal e sincero dos comediógrafos ( 7 1 ).
j á perfeitamente definido na história das artes plásticas,
Essa maneira de tratar a literatura de ficção para
ainda não se admite na historiografia literária. Quando
arranjar documentação sociológica é perigosa, tanto para
muito, foi usado para caracterizar a pequena poesia ana-
a sociologia como para a literatura; confunde arte e rea-
creôntica, alemã ou francesa, ou os poemas herói-cômicos
lidade. A lógica da composição cénica e do diálogo, na
da espécie do Rape of the Lock, de Pope. Arcádia e co-
comédia da Restauração, não é a da realidade; obedece
média da Restauração revelam a importância do Rococó
a certas convenções teatrais, não muito diferentes das do
na história literária. Talvez seja Marivaux o seu maior
vaudeville parisiense e da opereta vienense. Mas vaudeville
representante. O Rococó literário seria então uma fase
e opereta não refletem a realidade de Paris e Viena. O nível
intermediária entre dois classicismos, o de Racine e o de
Goethe. Mas a cronologia do classicismo inglês, de Pope
a Johnson, não está de acordo com isso. É preciso prosse-
guir na análise. Em todo o caso, Rococó e realismo são 70) J. W. Krutch: Comedy and Conscience after the Restoration.
conceitos que se excluem. O Rococó estiliza a realidade, New York, 1924.
K. M. Lynch: The Social Mode of Restoration Comedy. New
escolhendo os aspectos graciosos, empregando todo o espí- York, 1926.
rito engenhoso de inteligências requintadas para aludir, 71) G. S. Alleman: Matrimonial Laws and the Materials of Resto-
ration Comedy. Wallingíord Pe., 1942.
1232 OTTO M A R I A CARPEATJX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1233

literário muito mais alto da comédia inglesa é um argu- é obsceno. Para encontrar, na França, imoralidades se-
mento em favor da tese de Lamb. Defendeu-a recentemente melhantes, é preciso descer vários decénios, até à Régence,
o crítico americano Stoll ( 7 2 ), definindo a comédia da essa explosão de indecência na vida e na literatura, depois
Restauração como mera criação artística. Será preciso ve- da morte de Luís XIV, verdadeira "Restauração" francesa.
rificar a origem literária dessa criação. E aí se abre um Mas isso acontece meio século depois da Restauração in-
problema difícil da cronologia. glesa; e são os próprios ingleses que exportam para Paris
Em favor da tese de Lamb e Stoll pode-se alegar que as suas obscenidades. Há um verdadeiro intercâmbio entre
a comédia da Restauração sobreviveu aos costumes da Res- Dancourt e Vanbrugh. A comédia da Restauração não é
tauração. Continuou a florescer sob o governo da mora- uma criação francesa em solo inglês. E n t r e Restauração e
líssima rainha Ana; e algo do espírito da Restauração Régence existe a relação da analogia; e o estudo da litera-
ainda vive nas sátiras de Pope e Swift e nos romances tura da Régence promete esclarecimentos mais completos
de Fielding. Não existe literatura mais espirituosa, cínica quanto às origens do estilo da Restauração.
e intencionalmente amoral do que as cartas que Lady Mon- A "oposição", na França, começou nos últimos anos
tagu (7:1) escreveu de Viena, de Constantinopla e da Itália; do século X V I I , quando as desgraças políticas e militares
isso é "literatura da Restauração de 1660", escrita por se acumularam sobre Luís, o Grande, e a França "gloriosa
volta de 1730. Também os começos não estão certos. Middle- e exausta" já não estava gloriosa, mas tão-sòmente exausta.
ton, Beaumont e Fletcher, Massinger, Shirley escreveram O rei ouviu — ou deixou de ouvir — diversas advertências,
comédias que antecipam o estilo de Etherege e Wycherley. nenhuma tão insistente, porque nenhuma tão prudente como
A intensificação desse estilo depois de 1660 não se explica, a de Fénelon ( 7 4 ). O arcebispo de Cambrai é uma das
no entanto, por motivos literários; pelo menos não se personalidades mais fortes da história espiritual da França;
encontram motivos para isso dentro da literatura inglesa. tão forte que sobreviveu à sua obra, a de um precursor sem
Os críticos antigos mostraram-se satisfeitos com essa cir- discípulos diretos. Quase toda a sua literatura hoje ilegível
cunstância que lhes permitiu limpar a casta Inglaterra, já não é conhecida senão em trechos seletos das anto-
imputando-se a responsabilidade à influência dos "france- logias escolares. O estilo de Fénelon, fluido, elegante,
ses devassos". Mas não há nada disso. A influência, já cheio de imagens convencionais, untuoso, ondoyant, é a
verificada, do romance heróico-galante sobre a tragédia
da Restauração não pode ser qualificada de imoral. As
relações dos comediógrafos ingleses com Molière são fra- 74) Fran?ois de Salignac de la Mothe-Fénelon, 1651-1715. (Of. "Teatro
cas; e Molière é decente nas situações e no diálogo, nunca e Poesia do Barroco Protestante", nota 17.)
Traité de Véducation des filies (1687);" Lettre à Louis XIV (1693);
Les Maximes des Saints (1695); Télémaque (1699); Dialogues
des Morts (1700, 1712, 1718); Lettre à VAcadérnie française (1716).
etc. etc.
Edição de Salnt-Sulplce, 10 vols.. Paris, 1851/1852.
72) E. E. Stoll: "The Beau Monde at the Restoration". (In: From P. Janet: Fénelon. Paris, 1882.
Shakespeare to Joyce. New York, 1944). H. Bremond: Apologie pour Fénelon. Paris, 1910.
73) Mary Pierrepont, lady Montagu, 1689-1762. J. Lemaitre: Fénelon. Paris, 1910.
Letters (1763). A. Chérel: Fénelon au XVIIIe siècle en France. 2 vols. Paris.
Edição por W. M. Thomas, 2 vols., London, 1861. 1918.
Q. Paston: Lady Mary Montagu and Her Times. London, 1907. A. Chérel: Fénelon on La religion du pur amour. Paris, 1934.
I. Barry: Portrait of Lady Mary Montagu. London, 1928. E. Carcassonne: Fénelon. Paris, 1946.
1234 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1235

expressão perfeita da sua personalidade inquieta, que se França antiga, porém, adivinhou o perigo em Fénelon.
esconde atrás de maneiras polidas. A inteligência curiosa Bossuet combateu-o com uma acrimônta que os objetos
desse grande aristocrata escapa às definições. Êle mesmo da polémica nem sempre justificaram; e "monseigneur de
confessou: " J e ne puis expliquer mon fond". Começou Cambrai" nunca foi perdoado. Ao contrário, o amor que
a carreira eclesiástica como catequista de moças protes- os católicos liberais e o seminário de Saint-Sulpice con-
tantes, convertidas ao catolicismo, e guardou sempre, como servaram por êle, contribuiu para manter no ostracismo
educador e como homem, uma atitude meio feminina, en- sua memória. O abbé Bremond, modernista que não rompeu
tregando-se aos outros com amor exaltado, mas reservando com a Igreja e humanista que propagou o romantismo,
para si mesmo a parcela mais íntima, inacessível, da sua escreveu-lhe a apologia que vale como confissão. Na "Que-
alma. Por fora era o tipo do capelão de corte, amável, um relle des anciens et des modernes", Fénelon esteve ao lado
pouco complacente, elegante; mas atrás disso escondeu a dos clássicos; mas quis um classicismo "modernizado", sen-
ambição desmesurada do aristocrata orgulhoso. A carreira timental e colorido, meio romântico. Por amor dos pobres
eclesiástica devia servir-lhe para tornar-se bispo, arcebispo, e humilhados recomendou ao rei um governo mais suave,
talvez cardeal, talvez ministro como foram ministros Ri- menos belicoso, mais social; mas o seu filantropismo não
chelieu e Mazarin. O fim já parecia quase alcançado, quan- tocava no poder absoluto nem nos privilégios da aristo-
do foi nomeado educador do Dauphin, quer dizer, futuro cracia; é um filantropismo de grande senhor patriarcal —
ministro do futuro rei da França. Fénelon tinha o génio De Maistre podia aprová-lo. O seu misticismo é da mesma
pedagógico, comum a todos os grandes precursores. Atraiu espécie: uma religião dos eleitos do amor, de uma aristo-
os homens, irresistivelmente, e sobretudo as mulheres. O cracia da Corte de Deus. Fénelon pertenceu em todos os
próprio método pedagógico de Fénelon, poupando a na- sentidos à classe dirigente do século X V I I , mas — "je
tureza do aluno mas insinuando-se na sua alma, tem algo ne puis expliquer mon fond"; não podia porque no fundo
de feminino; pela primeira qualidade, antecipou a peda- da sua alma estava o sentimento, inexplicável por definição.
gogia de Rousseau; pela segunda, Fénelon foi educador Pelo sentimento, o aristocrata barroco pertenceu à oposição
nato de príncipes. Educar o herdeiro da coroa, para depois aristocrática contra "ce grand roi bourgeois" e à oposição
se tornar seu ministro e senhor, eis um plano bem barroco, sentimental, já pré-romântica, do século X V I I I . Fénelon
executado como por um daqueles "secretários" do "ma- antecipa o que será a oposição da Régence: neobarroco,
quiavelismo" lendário. Mas o plano fracassou. Fénelon caiu "liberal" como os futuros classicistas, sentimental como os
na desgraça. Foi nomeado arcebispo, sim, mas na província, futuros pré-românticos e, falando muito em amor, se bem
em Cambrai, e em vez de receber o barrete de cardeal, que nem sempre no amor místico.
foi condenado como herético. Fénelon tornou-se oposi-
A Régence é a vitória da "oposição" contra o regime
cionista, mas não "propter hoc": o seu plano barroco fra-
de Luís XIV. Mas o que foi o objetivo da rebelião? Re-
cassou, porque os seus fins não foram barrocos.
volta contra a administração burguesa e mercantilista do
O pensamento de Fénelon não pertence ao mundo da rei, ou contra a hipocrisia clerical e o absolutismo arbitrá-
Ilustração. O arcebispo não era racionalista nem liberal. rio? Na Régence confundem-se duas oposições diferentes:
Apenas, o seu pensamento prestava-se a interpretações me- uma, reacionária, que pretende voltar à política barroca, e
nos ortodoxas. Não é o pensador da França moderna. A outra, progressista, que pretende destruir o regime. De
1236 OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1237

ambos os lados há aristocratas e burgueses, por motivos erros involuntários e mentiras intencionais. Como político
diferentes. E n t r e os reacionários, o aristocrata Saint-Simon e como historiador, Saint-Simon seria completamente es-
ataca as novas classes ascendentes, e o burguês mal-hu- quecido, se não fosse um grande escritor, um verdadeiro
morado La Bruyère ataca os resíduos do espírito aristo- "imortal". Saint-Simon talvez seja em toda a história da
crático. Os "progressistas" são de u m lado os libertins literatura universal a maior testemunha do valor autónomo
do Rococó: Regnard, Dancourt, Gresset e tutti quanti da literatura.
pretendem divertir a aristocracia libertada da hipocrisia; Um lugar-comum convenu define Saint-Simon como
ou então burgueses-artistas que requintam a sensibilidade o Tácito de Luís XIV. Nenhuma definição poderia ser
livre, como Marivaux — artista do Rococó burguês — e mais inexata. Tácito, rangendo os dentes, condensa o seu
literatos profissionais que preparam o advento dos plebeus, estilo em julgamentos epigramáticos; Saint-Simon, após
como Lesage. A distinção entre "reacionários" e "progres- a s humilhações verdadeiras ou imaginárias de u m dia na
sistas" da Régence é relativamente fácil, menos na ideo- corte, derrama a sua ira em extensos panoramas caricatu-
logia do que no estilo: aqueles escrevem com gravidade rais. Tácito pretende definir e representar a atitude do
barroca, estes com ligeireza rococó. homem independente em face da tirania; Saint-Simon gos-
Saint-Simon ( 7 5 ), orgulhosíssimo da sua nobreza, odian- taria de humilhar todos os outros, estabelecer a tirania
do furiosamente os "inferiores", os bastardos do rei, a das árvores geneológicas. Existe entre Tácito e Saint-
pequena aristocracia, a burguesia, representa uma oposição Simon só uma verdadeira analogia: a dos pontos de vista
absurda. Não tem o direito de falar em nome da verdadeira políticos, do ''republicano histórico", na época dos impe-
nobreza medieval, nem da aristocracia culta, nem da guer- radores tirânicos, e do "frondeur", na época de Madame
reira nem da administrativa. É, no fundo, um hobereau Maintenon. É a comunidade do anacronismo. Além disso,
estúpido, sem ideias políticas definidas, sem tendência ra- é Tácito um advogado da inteligência superior e Saint-
zoável. Nem é capaz de servir para "savoir le mieux qu'il Simon um fidalgo inculto, Tácito um juiz e Saint-Simon
pourrait les affaires de son temps", como pretendeu, porque um espectador, se bem que apaixonado. É fácil dizer que
falsifica a imensa documentação das suas Mémoires, por a inatividade forçada do cortesão lhe impôs essa atitude de
espectador, de artista; mas nem todos os aristocratas ocio-
sos se tornam artistas. Não existe outro caso em que o
75) Louis de Rouvroy, duc de Saint-Simon, 1675-1755. génio fosse tão individual, tão resistente a todas as expli-
Mémoires (primeiras publicações 1788/1789 e 1791; primeira pu- cações pelo ambiente, a época e a raça. No resto, quase
blicação completa 1829/1830). não é possível dizer algo de novo sobre o estilo de Saint-
Edição por A. de Boislisle, J. de Boislisle e L. Levestre, 43 vols.,
Paris, 1879/1931. Simon depois da análise magistral de Taine e das obser-
H. Taine: "Saint-Simon, "Les Mémoires"". (In: Easais de critique vações de Auerbach: o estilo em que reside o seu valor
et d'histoire, 5* ed. Paris, 1887.)
O. Boissier: Saint-Simon. Paris, 1892. inteiro e que é como um fenómeno isolado, suspenso no
A. Le Breton: La comédie humaine de Saint-Simon. Paris, 1914. ar. A linguagem de Saint-Simon é arcaica, é a da primeira
R. Doumic: Saint-Simon. La France de Louis XIV. Paris, 1919.
P. Adam: La langue du duc de Saint-Simon. Paris, 1921. metade do século X V I I I ; e as Mémoires não foram publi-
E. Auerbach: Mimesis. Bem, 1946. cadas antes do fim do século X V I I I . Os dois fatos são
F. R. Bastide: Saint-Simon par lui-même. Paris, 1953.
Mme. Saint-René Taillandier: En compagnie de Saint-Simon. símbolos do anacronismo político e literário de Saint-Si-
2 vols. Paris, 1953.
1238 OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1239

mon. A sua composição é confusa como a dos prosadores e nisso é êle mesmo um imbecil; mas tem razão quanto aos
antes da reforma de Jean Louis de Balzac; a sua expressão resultados. Suas caricaturas vivem e viverão sempre, por-
é "rara" como a dos poetas antes da reforma de Malherbe. que a gente é sempre assim nas cortes, nas antecâmaras
Nesses defeitos reside a sua grandeza. Um substantivo e e nas assembleias. Contudo, Saint-Simon não é um cari-
um adjetivo juntos dão-lhe sempre uma imagem, quase caturista, porque o grande estilista não possui a capacidade
sempre uma metáfora inédita. Duas ou três proposições de estilizar; para isso lhe falta a calma. É um pintor, che-
não constituem para êle uma frase coordenada, um período, gando ao cume da sua arte quando se trata de descrever
mas uma torrente de palavras, cobrindo de injúrias e ver- as reuniões daquelas caricaturas: morre um príncipe, e
gonhas um adversário odiado. Saint-Simon é tão grande Saint-Simon observa o desespero mal dissimulado dos que
estilista, porque não aspira a ter estilo; nele poder-se-ia perderam os empregos e a alegria não dissimulada dos
aprender a escrever, se não fosse impossível aprender esse herdeiros, enquanto o cadáver é posto para fora como
degrau máximo da arte literária. um cão m o r t o ; reúnem-se os grandes para abolir o testa-
A singularidade de Saint-Simon dentro da literatura mento do grande rei, e Saint-Simon perde a cabeça de
intensamente social francesa reside no caráter a-social do alegria por ver humilhados os favoritos e cortesãos, mas
memorialista. Se pudesse, faria ir pelos ares toda essa não lhe escapa a imbecilidade dos vencedores. É um in-
gente que não vale nada. Saint-Simon não tinha nenhum ferno, e Saint-Simon o seu Dante. Tem uma visão concreta
direito moral de julgar assim os o u t r o s ; mas a ironia da onde os outros só viram abstrações clássicas. É homem e
história quis que êle tivesse razão: não valiam nada. Daí escritor barroco entre sombras literárias razoáveis. É o
a veracidade do seu relato, apesar das inexatidões e calú- maior poeta da sua época.
nias. Maquiavel acrescentaria: " . . . e a gente é sempre Desculpando-se das incorreçÕes da sua linguagem,
assim" — e com efeito, as Mémoires são um comentário Saint-Simon afirma: "Je ne fus jamais un sujet acadé-
permanente da baixeza humana. A psicologia de Saint- mique". Se o tivesse sido, não seria o grande poeta que
Simon é a de La Rochefoucauld: vaidade e interesse são foi. Os seus "sucessores", no único sentido em que Saint-
os únicos motores dos atos humanos. A expressão con- Simon podia ter sucessores, foram os que permaneceram
dition humaine, tão cara a Montaigne e Pascal, muda de em oposição irredutível à evolução do classicismo — para
sentido nas mãos de Saint-Simon: sem piedade, mostra virar expressão burguesa: foram os académicos — seriam
as suas vítimas por assim dizer nuas, despidas de tudo que dignos de figurar como personagens nas Mémoires de
não é essencial, de modo que só se vê a humaine condi- Saint-Simon. Jean-Baptiste Rousseau ( T8 ) é o mais aca-
tion: a extrema decadência moral e física. Caíram por démico de todos os poetas franceses, virtuose da retórica
terra as solenidades do estilo e indumentária oficiais: retumbante e vazia, figura ridícula de "profeta contra os
aparecem nus os miseráveis. O duque Fulano, um imbecil;
o conde Beltrano, um vendido; a duquesa, uma prostituta,
a condessa, uma burrinha, o ministro, um ladrão, o general,
76) Jean-Baptlste Rousseau, 1671-1741.
um fanfarrão covarde, o bispo, um hipócrita infame — Oeuvres poétiques (.Êpitres, Êpigrammes, Odes, Cantates, etc.)
Saint-Simon acha que são assim porque chegaram aos seus (1743).
lugares sem a porção suficiente de sangue-azul nas veias, Edição (com introduç&o) por A. de Latour. Paris, 1868.
C.-A. Sainte-Beuve: Portaits Uttéraires. Vol. I.
H. A. Grubbs: Jean-Baptiste Rousseau. Paris, 1941.
1240 Oiro MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1241

tempos" mas "in-douze". Mas quando Voltaire opinou que Do ponto de vista dos valores literários, não é possível
a sua Ode à la Postéríté não chegaria ao endereço, errou reunir Jean-Baptiste Rousseau e Le Franc de Pompignan
pelo menos em parte: pois Jean-Baptiste Rousseau foi o na mesma classe com Saint-Simon; pertencem, no entanto,
poeta francês mais lido no Século X V I I I e até à revolução à mesma categoria dos "estilistas": estilo como expressão
romântica; encarnou o espírito d e resistência do "ancien pessoal ou como norma académica. E m todo o caso colocam
regime", político e literário. Quem lhe escreveu o famoso a expressão acima da ideia, e isso é comum a todos os que
necrológio poético, Le Franc de Pompignan ( 7 7 ), não gozou se opõem a uma corrente literária. Mas os "reacionários"
da mesma sorte, senão graças a um epigrama de Voltaire. não se encontram apenas entre os defensores da ordem
E r a poeta bem superior a Rousseau, e as suas versões dos aristocrática. Reacionário burguês é La Bruyère ( 7 8 ), e
salmos — pois foi sinceramente religioso e mostrou cora- •este é estilista num terceiro sentido: nem muito pessoal,
gem pessoal, ao tomar atitude contra os "pilosophes" — nem impessoalmente académico, mas um artista extraordi-
mereceriam respeito. Em vez disso, a sua tradução pouco nário da palavra, da frase, do parágrafo. Neste terceiro
feliz de Jeremias ofereceu a Voltaire oportunidade para sentido é La Bruyère o maior dos prosadores de língua
fazer o epigrama mais famoso da literatura francesa: francesa; e o superlativo não é exagerado. O objetivo de
La Bruyère é "attirer l'attention" para o que tem que dizer;
e o "dizer" torna-se para êle assunto principal. La Bruyère
"Savez-vous pourquoi Jeremie •é o único escritor das literaturas modernas a assimilar
A tant pleuré pendam sa vie? perfeitamente os preceitos da retórica antiga: usa com a
C e s t qu'en prophète il prévoyait maior virtuosidade todas as artes e também os truques
Qu'un jour Le Franc le traduirait." dos oradores políticos e forenses de Atenas e de Roma,
a escolha eficiente de palavras concretas e pitorescas, o
La Harpe conta que Voltaire chegou, no entanto, a admirar requinte dos desfechos surpreendentes das frases, a com-
a Ode sur la mort de Jean-Baptiste Rousseau, de Le F r a n c ; posição engenhosa de "retratos", que eram a sua maior
apesar de certas qualidades da ode, isso só prova o gosto especialidade. É artista puro. O conteúdo, o pensamento
reacionário de Voltaire em matéria de poesia. Em 1765, contam menos. "Tout est dit, et l'on vient trop tard depuis
a ode pindárica já era um género — género barroco — sem plus de sept mille ans qu'il y a des hommes, et qui pen-
sentido. Insistindo nesse género, chegou a estragar-se o sent." Não é pensador, nem pretende ser. É um espectador
talento apreciável de Malfilâtre ( r 7 - A ) , que foi recen-
temente redescoberto como precursor de Chénier.
78) Jean de La Bruyère, 1645-1696.
Les Caracteres de Théophraste, traduits du grec, avec les Carac-
teres ou les Moeurs de ce siècle (1688) última edição, 1694).
77) Jean-Jacques Le Franc de Pompignan, 1709-1784. Edição por O. Servois, 2.â ed., 6 vols., Paris, 1923.
Poésies sacrées (1751). L.-A. Prévost-Paradol: Êtudes sur les moralistes français,
F. A. Duffo: Jean-Jacques Le Franc, mar quis de Pompignan, Paris, 1865.
poete et magistrat. Paris, 1915. M. Pellisson: La Bruyère. Paris, 1892.
M. Lange: La Bruyère, critique des condittons et des institutions
77 A) Jacques-Charles-Louis de Clinchamp de Malfilâtre, 1732-1767. sociales. Paris," 1909.
Êglogues; Narcisse dana 1'ile de Vénus; Le soleil fixe au milieu E. Magne: La Bruyère. Paris, 1914.
des planeies (1759). O. Michaut: La Bruyère et Théophrast. Paris, 1936.
I

1242 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1243

da sociedade aristocrática da qual depende, e o espetáculo « t qu'ils remuent avec una opiniâtreté invincible... ils mon-
torna-o mal-humorado até à indignação. É um {rondem, trent une face humaine; et en effet, ils sont des hommes."
como Saint-Simon, mas não tem sequer força para fazer São os camponeses. O estilo de La Bruyère é uma lição
oposição clandestina; o seu pessimismo é todo passivo, é permanente da arte de escrever. A sua virtuosidade não
o pessimismo de um estóico resignado. A sua psicologia tem limites; as suas veleidades oposicionistas, sim.
— que é a de La Rochefoucauld — admite exceções, de O grande estilista sabe escolher; e na sua galeria de
amor e bondade; admite até uma espécie de moral laicista, retratos satíricos falta o auto-retrato, o do burguês. Eis
conquanto que o indivíduo não s e torne livre-pensador. o maior, o mais "défendu" dos "grands sujets défendus."
Odiava os "espirits forts", aos quais dedicou uma parte E m 1880, La Bruyère seria "republicain du centre". A
polemica do seu livro, por sinal a mais fraca. Arte da sua condição social produz a oposição, o seu espírito bar-
retórica, pessimismo estóico e não sem religião, tudo isso roco não a deixa passar além do "mécontement" do mora-
é bem barroco, e La Bruyère é, com efeito, o mais barroco lista. "Je ne veux être, si je le puis, ni malheureux, ni
dos escritores franceses. A sua prosa situa-se entre Que- h e u r e u x ; je me jette et me refugie dans la médiocrité."
vedo e Thomas Browne, mas modificada pela moderação A última palavra tem aqui o sentido de "juste-milieu";
do burguês bem educado. Assim como o estilista La Bruyè- mas sem a arte exímia de La Bruyère, o resultado fatal
re sabe escolher as palavras, assim o satírico La Bruyère <la sua atitude seria a verdadeira mediocridade. Eis o des-
sabe escolher os assuntos. Lamenta que um "homme né tino de Destouches ( 7 9 ), que se serviu dos "caracteres"
chrétien et Français se trouve contraint dans la satire; les de La Bruyère como de máquinas animadas da psicologia
grands sujets lui sont d é f e n d u s . . . " Então, diminui "les cartesiana, colocando-os em enredos e intrigas de desen-
grands sujets" — é uma versão original do "desengano" volvimento lógico e desfecho satisfatório, acreditando ter
barroco. Na corte, vê 'Tor qui éclate sur les habits de feito comédias tão boas como as de Molière: L'Irrésolu,
Philémon", os ornamentos, o relógio do personagem, que Le Médisant, Le Gloneux, UAmbitieux. O século lhe deu
c uma obra-prima da joalheria, os diamantes nos dedos, razão; um lógico implacável da crítica teatral como Lessing
e conclui " . . . . il faut voi du moins des choses si précieu- chegou a preferi-lo a Molière. As comédias de Destouches
ses: envoyez-moi cet habit et ces bijoux de Philémon, j e são melhores do que a sua fama admite; o que lhes falta
vous quitte de la personne." E m outra companhia, menos é a força cómica, por falta de sentimento humano. A ten-
aristocrática, La Bruyère tem oportunidade de comparar tativa de introduzir este sentimento deu, em pleno Rococó,
a atitude de Giton, de saúde esplêndida, falando alto, as-
soando-se com estrondo, dormindo bem, informado dos
grandes negócios políticos, e a atitude de Phédon, magro,
sonhador de ar um tanto estúpido, sempre aderindo à opi- •79) Philippe Néricault Destouches, 1688-1754.
UIngrat (1712); Ulrrésolu (1713); Le Médisant (1715); Le phi-
nião dos outros, tímido, cheio de "chagrin contre le siècle", losophe marié (1727); Le Glorieux (1732); Le tambour nocturne
(1736) ; L'Ambitieux (1737).
— e conclui: "Giton est riche"; "Phédon est pauvre." Ediç&o Crapelet, 6 vols., Paris. 1822.
E. Lindemann: Destouches" Lében und Werke. Oreiíswald, 1896.
Enfim, observa "certains animaux farouches, des males et E. Deberre: Quid sit sentiendum de Philippi Destouches lega-
des femelles, répandus par la campagne, noirs, livides, et torii procuratoris necnon poetae moribus. Dijon. 1901.
J. Hankiss: Ph. N. Destouches, 1'homme et Voeuvre. Debrec-
tout brulés du soleil, attachés à la terre qu'ils fouillent zen, 1920.
1244 OTTO MARIA CABPEAUX HISTÓRIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1245

c sentimentalismo choroso de Nivelle de La Chaussée ( 8 0 ) ; e x e m p l o d e M o l i è r e : i m p o r t a - l h e s a a t u a l i d a d e dos a s s u n -


está a u m p a s s o d o d r a m a b u r g u ê s do p r é - r o m a n t i s m o , m a s t o s , a s á t i r a c o n t r a as d i f e r e n t e s classes sociais, s o b r e t u d o
pelo verso, que conserva como elemento indispensável da as n ã o - a r i s t o c r á t i c a s . É a s s i m a c o m é d i a d e D a n c o u r t ( 8 2 ) ,
" a l t a c o m é d i a " , i d e n t i f i c a - s e La C h a u s s é e a o b u r g u ê s " r e a - q u e a p r e s e n t a n o p a l c o as b u r g u e s a s q u e g o s t a r i a m d e
cionário". p a s s a r p o r g r a n d e s d a m a s , as d a m a s m e n o s g r a n d e s d o
A outra das duas "oposições" que compõem a literatura demi-monde, o s nouevaux-riches. Lembra A u g i e r ; mas,
da R é g e n c e , n ã o é f a t a l m e n t e " p r o g r e s s i s t a " ; t a m b é m p o d e distinguindo-se desse burguês, D a n c o u r t não está nunca
sê-lo a p e n a s p e l a s c o n s e q u ê n c i a s . P o r v o l t a d e 1710, a moralmente indignado. A indecência dos seus personagens
p a l a v r a libertin j á c o m e ç a a m u d a r d e a c e p ç ã o ; já n ã o p a r e c e - l h e n a t u r a l n u m m u n d o t ã o i n d e c e n t e . N ã o foi ca-
significa principalmente "livre-pensador", mas antes "de- s u a l m e n t e q u e D a n c o u r t foi i m i t a d o p o r V a n b r u g h e i m i -
v a s s o " . O s l i b e r t i n o s da R é g e n c e são m e n o s os s u c e s s o r e s t o u , p o r s u a vez, o u t r o s i n g l e s e s ; n e n h u m c o m e d i ó g r a f o
d o s causeurs a t r e v i d o s d o salão d e N i n o n d e 1'Enclos q u e francês se aproxima tanto da comédia d a Restauração in-
d o s bon-vivants aristocráticos do Templo. Os seus interes- glesa. M u i t o m a i s f r a n c ê s é R i v i è r e - D u f r e s n y ( 8 3 ) , h o m e m
ses l i t e r á r i o s l i m i t a m - s e a e p i g r a m a s e s p i r i t u o s o s , p e q u e n a s espirituoso, ao qual, afirma-se, Montesquieu deveu a ideia
poesias obscenas e comédias divertidas. O tipo caracte- d a s Lettres persanes. D u f r e s n y foi i n o v a d o r a u d a c i o s o ,
r í s t i c o d o s e p i g r a m i s t a s é P i r o n , a o q u a l i m p e d i r a m o in- inventor de complicações cénicas e diálogos alusivos que
g r e s s o na A c a d e m i a — preparam o género de Marivaux.

A s comédias de Dancourt e Rivière-Dufresny estão


"Ci-git P i r o n , qui ne fut rien, i n j u s t a m e n t e e s q u e c i d a s . Q u a n d o a F r a n ç a passar, u m dia,
Pas même académicien." p o r u m a m o d a R o c o c ó c o m o a i n g l e s a d e 1920, s e r ã o r e c o -
nhecidas como peças excelentes, comparáveis às melhores
O t i p o p a d r ã o d e s s e s " p o e t a s " é G r e s s e t ; m a s e n t r e eles de Wycherley, Vanbrugh e Farquhar. Mas não às de Con-
encontra-se também um Montesquieu, autor do Temple greve; porque o modelo de Molière e La Bruyère impôs
de Gnide (1725). C o m é d i a d i v e r t i d a é a c r i a ç ã o d e R e g - a q u e l a r e g u l a r i d a d e c a r t e s i a n a q u e e x c l u i a e l e g â n c i a fan-
n a r d ( 8 1 ) , em q u e é p o s s í v e l , n o e n t a n t o , e s t u d a r o q u e tástica do grande inglês. Os comediografos que trabalha-
separa a Régence da época a n t e r i o r : os tipos de R e g n a r d
são os d a " c o m m e d i a d e l l ' a r t e " , as s u a s c o m p l i c a ç õ e s có-
micas passam-se n u m m u n d o abstrato, permanente, irreal. 82) Florent Carton, dit Dancourt, 1661-1725.
Le chevalier à la mode (1687); La maison de campagne (1688);
O s c o m e d i o g r a f o s d a R é g e n c e s e g u e m m a i s d e p e r t o o- Les bourgeoises à la mode (1692); Les bourgeoises de qualité
(1700); Le galant jardinier (1704); Les agíoteurs (1710).
Edição em 8 vols., Paris, 1742.
Ch. Barthélemy: La bourgeoisie et le paysan sur le théâtre du
80) Pierre-Claude Nivelle de La Chaussée, 1692-1754. XVJIe siècle; la comèdie de Dancourt. Paris, 1883.
Le préjugé à la mode (1735); Mélanide (1741); Uécole des mères I. Lemaitre: La comédie aprés Molière et le théâtre de Dancourt.
1744); etc. 2.» ed. Paris, 1903.
Edição Sablier, 5 vols., Paris, 1762. 83) Charles Rivière-Dufresny, 1648-1724.
G. Lanson: Nivelle de la Chaussée et la comédie larmoyante. L'esprit de contradiction (1700); La joyeuse (1709); La coquette
2.» ed. Paris, 1903. de village (1715); La réconciliation normande (1719).
W. Domann: Dufresntfs Lustspiele. Leipzig, 1904.
81) Cf. "Oposições Barrocas", nota 38.
1246 OTTO M A B I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1247

ram para o divertimento do público aristocrático tampouco


reiro, alquimista, professor de matemática, padre — é um
souberam escapar à mania de retratar "caracteres". Pi-
dos documentos mais divertidos do século X V I I I : um
ron ( 8 4 ), o epi grama ti sta, colocou-se a serviço do movimento
indivíduo inteligente e esclarecido, mas incapaz de livrar-se
"moderno" contra a poesia, na Métromanie, que forneceu
das superstições sociais do seu ambiente; um pícaro que
à linguagem do século X V I I I uma porção de réplicas espi-
acaba como padre. Se fêz sermões, foram por certo tão
rituosas: "J'ai ri, me voilà desarme". Gresset ( M ) é o
barrocos como os do "famoso predicador fray Gerúndio"
último representante da comédia de caracteres; é autor
do qual Islã ( " ) zombou com mais liberdade de espírito,
de poemas cómicos, nos quais o ex-jesuíta zomba do clero.
já contaminado pelas ideias francesas. Islã fêz a tradução
Piron e Gresset cultivaram géneros mortos. O tempo exi-
magistral do Gil Blas para o espanhol, e então Be revelou
giu as complicações mais finas que Rivière-Dufresny ima-
a diferença profunda entre o romance picaresco espanhol
ginara; e encontrá-las-á em Marivaux. Mas a transição
e o primeiro romance realista da literatura francesa.
estilística de Molière e Destouches a Marivaux não foi
fácil; precisava-se antes de uma transformação do "Espirito Com respeito a Lesage ( 88 ) não acaba essa discussão
objetivo" da época quanto a temperamento e ideologia. Mo- inútil da "originalidade": se o Gil Blas é um plágio do
lière também estava na oposição; mas é, como todos os mo- Obregón, de Espinel, ou uma imitação, ou uma criação
ralistas do século X V I I , pessimista, ao passo que a oposição independente. Tanto é certo, porém, que Lesage tenha
do século X V I I I acredita no progresso. O ponto de par- tomado emprestados episódios do romance espanhol, como
tida da evolução estava nas comédias realistas e sociais igualmente certo é que o Gil Blas de Santillane seja uma
de Dancourt; junto delas situa-se o Tutearei, de Lesage, criação original, sem modelo na literatura espanhola. Os
que conseguiu transformar o pessimismo sombrio de Ale- autores dos romances picarescos espanhóis eram homens
mán em aceitação risonha de um mundo em que se pode de ação — fossem políticos aristocráticos como Quevedo,
viver e subir. A importância da modificação torna-se evi-
dente pela comparação do Gil Blas com os últimos roman-
87) José Francisco de Islã, 1703-1781.
ces picarescos espanhóis. A autobiografia de Torres y Historia dei famoso predicador fray Gerúndio de Campazas
Villarroel (8fl) — seminarista, curandeiro, bailarino, tou- (1758/1770); tradução do Gil Blas (1787).
Edições: Biblioteca de Autores Espafioles, vol. XV, e por V. E.
Lidforss, Leipzig, 1885.
P. Gandeau: Le Père Islã et son Fray Gerúndio. Paris. 1891.
84) Alexis Piron, 1689-1773. 88) Alain-René Lesage, 1668-1747.
La Métromanie (1738). Le diable bolteux (1707); Crispin, rival de son maitre (1707);
P. Chaponnlère: Piron, se vie et son oeuvre. Paris. 1910. Turcaret (1709); Gil Blas de Santillane (1715/1735); tradução do
85) Louls Gresset, 1709-1777. Guzman d'Alfarache (1732); etc.
Vert-Vert (1734); Le méchant (1747). Edição do Gil Blas por A. Dupouy. Paris, 1935.
Edição das obras completas por Renouard, 3 vols., Paris, 1811. Edição do Teatro, Gernier, Paris, 1911.
J. Wogue: Gresset, sa vie et ses oeuvres. Paris, 1894. A. Barberet: Lesage et le Théâtre de la Foire. Nancy, 1887.
86) Diego de Torres y Villarroel, 1693-1770. L. Claretle: Essai sur Lesage romancier. Paris, 1890.
Vida, ascendência, nacimiento, crianza y aventuras dei dr. don F . Brunetière: "Autour de Turcaret". (In: Les époques du théâtre
Diego de Torres y Villarroel (1743/1758) . français. Paris. 1892.)
Edição por F. de Onís (Clásicos Castellanos). E. Lintilhac: Lesage. Paris, 1893.
A. Garcia Boiza: Don Diego de Torres y Villarroel. Ensayo bio- J. Galli: Le réalisme pittoresgue chez Lesage et ses prédeces-
gráfico. Salamanca, 1911. seurs. Grenoblè, 1910.
S. B. Hallonquist: Diego de Torres y Villarroel. New York, 1949. I. Cassou: "Lesage". (In: Tableau de la Lxttérature Française,
de Corneúle à Chénier. Paris, 1939.)
1248 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1249

fossem aventureiros plebeus como Alemán — que conden- ciosa do classicismo. Nasceu assim um panorama encan-
saram as suas experiências. Lesage é comediógrafo e lite- tador do mundo rococó e um comentário permanente da
rato a serviço dos atôres e editores; é autor profissional. natureza e vida humanas, sem enfeite e sem acrimônia. É
Leituras extensas suprem as lacunas da sua experiência um dos livros mais agradáveis e mais inteligentes do mun-
própria que é a de um observador agudo do mundo de do. A "filosofia" de Lesage é serena, alegre mesmo; ele
Dancourt. As digressões moralizantes de Alemán causa- tem confiança na vida. A fonte imediata dessa sua "fé" é
ram-lhe desgosto. Enquanto Lesage teve intenções satíri-
a observação das modificações sociais no seu ambiente: os
cas, soube esconder tão bem o moralismo como os come-
banqueiros batem a aristocracia, os burgueses tornam-se
diógrafos da Restauração inglesa. A imoralidade geral
superiores aos fidalgos empobrecidos — será então possível
preocupava-o pouco; só o irritava o orgulho dos imbecis e
a ascensão também dos plebeus. Esse rococó de Lesage é
malandros poderosos. Quando conseguiu vencer na vida —
uma sociedade em movimento. J á não é preciso consolar-
e o teatro das suas vitórias foi o próprio teatro — recon-
se cristãmente da permanência das desgraças neste vale
ciliou-se logo com a realidade, compensando-a pelo riso.
de lágrimas. Traduzindo o Guzmán de Alfarache, Lesage
Turcaret é a comédia mais cómica do século X V I I I francês,
suprimiu as meditações estóico-pessimístas que o aborre-
antes de Beaumarchais — menos satirica do que a comédia
de Dancourt, porém mais realista. A classe dos banqueiros ceram; substituiu .o miilismo moral do pícaro pela fé na
e nouveaux-riches constitui para Lesage assunto inesgo- vida. Esse otimismo, bem antibarroco, é o único ponto de
tável; esses intermediários entre a velha organização so- contato entre Lesage e Marivaux; o único, mas de impor-
cial e a nova organização económica são sujeitos tão có- tância essencial, sintoma da transição do Barroco para o
micos quanto sérios, e tornaram-se ridículos entre gente Rococó. Marivaux não seria possível em atmosfera trágica.
melhor educada sendo burlados pelos plebeus fantasiados Marivaux ( 8B ) é o mestre da nuance. Todos os per-
de máscaras da commedia deli'arte. Da mania de essa sonagens das suas numerosas comédias têm os mesmos
gente se divertir vivem atôres e barbeiros, bailarinas,
alfaiates, músicos, garções e comediógrafos como Lesage.
Os personagens são os mesmos que no romance picaresco; 89) Pierre Carlet de Chamblaln de Marivaux, 1688-1763. (cf. "Clas-
contudo, Gil Blas de Santillane é menos naturalista do que sicismo da Ilustração", nota 5.)
Arlequin poli par 1'amaur (1720); Surprise de 1'amour (1722); La
realista. O dinheiro já não é uma miséria indispensável; ãouble inconstance (1723); Uile des esclaves (1725); La seconde
surprise de 1'amour (1728); La nouvélle colonie (1729); Le jeu de
é o meio da ascensão social. Lesage precede Balzac. 1'amour et du hasard (1730); Uécole des mères (1732); Les ser-
ments indiscrets (1732); Uheureux sttatagème (1733); La mère
Gil Blas de Santillane não é uma grande obra de arte. confidente (1735); Le legs (1736); Les fausses conjidences (1737);
Uépreuve (1740); Le préjugé vaincu (1746); —
É um excelente romance para leitura de divertimento, cheio Pharsamon (1712; publ. 1737);
de espírito e "bonhommie"; é um livro que será legível La vie de Marianne (1731/1741); Le paysan parvenu (1735/1736).
através dos séculos — distinção que obras muito maiores Iliade travestie (1716).
Edição: 12 vols., Paris, 1781; dai a reimpressão das peças dra-
não conseguiram. De maneira incomparável, Lesage sabe máticas, por E. Fournler, Paris, 1878. Edição das peças por M.
reunir fidelidade realista na apresentação dos costumes ale- Arland, 2 vols.. Paris, 1949.
Numerosas edições modernas de peças escolhidas e dos romances.
gres da Régence e certo elemento de permanência típica I. Fleury: Marivaux et le marivaudage. Paris, 1881.
na sua caracterização e no desenvolvimento, herança pre- F. Brunetière: "Marivaux". (In: Êtudes critiques sur Vhistoire de
la litterature française. Vol. n . Paris, 1881.)
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1251
1250 OTTO M A R I A CARPEAUX

e encontrou nele uma mistura de vaidade, egoísmo, ambi-


nomes: Arlequin, Lisette, Sylvie, Dorante, Araminte, An-
ções e sensualidade. Marivaux estudou os obstáculos que
gélique, Trivelin, Lucidor; e todas as comédias têm, mais
a convenção social erige entre o amor e o homem enamorado
ou menos, o mesmo enredo: por exemplo, dama e criada
— as "niches" em que a vaidade, a timidez, a desigualdade
trocam os vestidos para provar a fidelidade dos amantes
de condições sociais espreitam os amantes — e encontrou
respectivos, e amante e criado fazem o mesmo, e apesar
em toda a parte amores recalcados e dissimulados, prestes
das complicações, os pares se encontram. Também os tí-
a desenvolver-se na atmosfera mais propícia da comédia.
tulos são significativamente parecidos: o Jeu de 1'amour
"J'ai guetté dans le coeur humain toutes les niches diffé-
et du hasard repete-se sempre, com inúmeras Surprises de
rentes ou peut se cacher ramour." E o amor é capaz
1'amour, vitoriosas de todos os obstáculos ao amor, que o
de vencer os vícios, os ressentimentos, os preconceitos.
poeta inventa e a delicadeza dos personagens lhe inspira.
"Quand ramour parle, il est le maitre." Trata-se apenas de
No entanto, sempre é outra coisa. Marivaux não cansa,
fazê-lo falar. Nem sempre é isso fácil, sendo as moças
porque atrás dessas sutilezas artificiais, dos "marivauda-
tão tímidas e os moços ainda mais tímidos, as criadas tei-
ges", está a verdade psicológica: complicações e desfechos
mosas, e os arlequins sem jeito. Marivaux já deu a im-
servem para revelar os movimentos infinitesimais na alma.
pressão — inexata, aliás — de ser o poeta do amor nascente
Marivaux é o Leibniz do amor. Como Leibniz, descobriu
dos adolescentes. Na verdade, os "marivaudages" são obs-
sentimentos subconscientes, nuanças inesperadas com con-
táculos para toda a gente que não sabe amar bem, de ma-
sequências estranhas, e, como Leibniz, acreditava Mari-
neira fina, requintada. Os personagens do teatro francês
vaux na harmonia preestabelecida no melhor dos mundos:
antes de Marivaux sabiam perfeitamente amar, até demais;
o mundo do amor. Complicações sentimentais que poderiam
daí muitas tragédias. Aos amantes de Marivaux, é preciso
facilmente degenerar em casos trágicos, desenrolam-se da
ensinar-lhes o amor. A primeira peça séria de Marivaux
maneira mais elegante, e o fim é sempre o cume da feli-
chama-se Arlequin poli par 1'amour; e o título é um pro-
cidade burguesa: um bom casamento. Marivaux é estu-
grama. É também uma advertência para o crítico literário.
dioso assíduo da psicologia humana, como um dos grandes
Como Molière e Lesage, com os quais não tem o mínimo
"moralistes" do século X V I I , mas o resultado dos seus
parentesco dramatúrgico, Marivaux partiu da commedia
estudos não é negativo. La Rochefoucauld analisou o amor
delVarte italiana. Aqueles chegaram à comédia de carac-
teres e costumes, este à comédia psicológica. O mundo
exterior pouco lhe importa, e o estudioso de minúcias psi-
O. Larroumet: Marivaux, sa vie et ses oeuvres. Paris, 1882 (2.» cológicas não se preocupa com a elaboração de caracteres
edição 1894). completos. Para os seus fins, bastam os personagens típicos
F. Brunetière: "Marivaux". (In: ttudes critiques sur Vhistoire de
la littérature française. Vol. III. Paris, 1883.) da comédie italienne com os nomes sempre iguais, as in-
J. Lemaltre: Impressions de théãtre. Vol. II. Paris, 1889. trigas estandardizadas, a decoração fixa de um salão irreal,
J. Lemaltre: Impressions de théâtre. Vol. IV. Paris, 1891.
G. Deschamps: Marivaux. 2.» ed. Paris, 1907. de uma casa irreal. Deste modo, Marviaux aproxima-se
E. Meyer: Marivaux. Paris, 1930. mais da atmosfera fantástica da commedia delVarte, subs-
M. Turnell: "Marivaux". (In: Scrutiny, XV/1, 1947.) tituindo apenas o* ar veneziano à Tiepolo pelo ar francês
C. Roy: Lire Marivaux. Paris, 1947.
M. Arland: Marivaux. Paris, 1950. à Watteau. Daí o encanto poético do seu teatro que se
F. Deloffre: Marivaux et le marivaudage. Paris, 1953.
P. Gazagne: Marivaux par lui-même. Paris, 1955.
1252 OTTO M A R I A CAHPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1253

situa entre as comédias fantásticas de Shakespeare e as mundo tudo pode melhorar. Marivaux tem esperanças. O
comédias românticas de Musset. Marivaux é mais espiri- poeta do Rococó foi um pensador corajoso. Fournier des-
tuoso do que os epigramatistas espirituosíssimos da Régen- cobriu no Mercure galant, de 1750, o resumo de uma comé-
ce; o seu diálogo é irresistível. Mas o amor vence sempre dia inédita de Marivaux, La nouvelle colonie ou la ligue
o espírito. "Quand 1'amour parle, il est le maitre". E o des femmes, na qual o poeta trata, em 1729, da igualdade
resultado dessa união e n t r e sentimento e espírito é o pre- das condições sociais entre os sexos. Só nos últimos anos
ciosismo poético do Rococó, do qual Marivaux é o maior se chamou a atenção devida para outra comédia, L'ile des
poeta. "Arlequin poli par la poésie." esclaves, na qual o problema da igualdade social é apre-
Marivaux é hoje um dos autores mais representados sentado de maneira inquietante. Apesar disso, Marivaux
do teatro clássico francês. Essa revalorização moderna não pode ser considerado como revolucionário; quando
está, no fundo, de acordo com as censuras pouco amistosas muito, situa-se na transição entre o liberttnismo da Ré-
de Lesage, que não encontrou em Marivaux o seu próprio gence e as reivindicações da Enciclopédia. Não passou
realismo de observador. Apenas, aquilo que para Lesage mais adiante, porque a sua própria reivindicação, a do sen-
foi um defeito, nós consideramos como poesia. Mas é pos- timento, excluiu exteriorizações maiores. Mas até isso é
sível que estejamos enganados quase da mesma maneira mais revolucionário do que conformista. A tese "Quand
que o autor de Turcaret. Marivaux não se preocupa com 1'amour parle, il est le maitre" anuncia a superioridade do
a apresentação realista do ambiente social, porque só lhe sentimento sobre as convenções sociais e também sobre o
importa o realismo psicológico da revelação dos sentimen- esprit racional; e isso já é pré-romantismo. Também é
tos íntimos. E a vitória do sentimento sobre o espírito — pré-romântica a leve melancolia de Marivaux. Melancoli-
que nos parece poética e fantástica — talvez seja conse- camente, êle sabe que "dans ce monde, il faut être un peu
quência dramatúrgica de outro realismo, tão profundo como trop bon pour 1'être asser". Mas a gente não é tão boa
o psicológico. assim, infelizmente. É isso que vemos naqueles vivazes pa-
Marivaux foi sempre comparado com Racine: a técnica noramas da vida parisiense de 1920, nos dois romances de
dramatúrgica e a psicologia são parecidas. Diferente é "só" Marivaux — La vie de Marianne e Le paysan parvenu. Têm
o desfecho, o happy-end, em vez do fim trágico; mas o importância histórica; mas também estão no pequeno nú-
desfecho não é coisa que se acrescenta arbitrariamente. É mero dos romances perfeitamente legíveis do século X V I I I .
preciso definir e explicar a diferença entre Racine e Ma- J á se observou que não são tão morais como se apresentam:
rivaux. Quanto à definição, já foi fornecida por Brunetière: revelam a licenciosidade da Régejice; e a maneira como
"La comédie de Marivaux, c'est la tragedie de Racine, Marianne, calculando bem, evita o perigo da sedução, con-
transportée de 1'ordre de choses ou les événements se dé- seguindo a segurança do casamento, revela mais esprit do
nouent par la trahison et la mort, dans 1'ordre de choses que amour. Os romances de Marivaux são — como as suas
ou les complications se dénouent par le mariage." Marivaux comédias — mais psicológicos do que realistas. O realismo
é o "Racine bourgeois", e o caráter burguês da sua comédia reside na escolha do ambiente, que desta vez não é burguês,
revela-se pelo otimismo. Este é o seu ponto de contato e sim plebeu. De longe, anuncia-se o popularismo e pri-
com o antípoda Lesage. Marivaux escreve comédias, não mitivismo de Rousseau. Em Marivaux, o Rococó revela
porque no seu mundo tudo esteja bem, mas porque no seu certas possibilidades revolucionárias e várias possibilidades
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pré-românticas. O Rococó contém, no germe, o século Borromini. O próprio Rococó pode ser interpretado como
X V I I I inteiro com as suas consequências. Neobarroco ( 9 1 ). Também na literatura, o Rococó ana-
Em comparação com o classicismo L u í s XIV, o Rococó creôntico é resultado de uma reação neobarroca contra o
é revolucionário em todos os sentidos: nos costumes, nos classicismo rigoroso ( 92 ) e essa evolução é muito marcada
sentimentos, na expressão e na ideologia. É o estilo dos na literatura francesa ( 9 8 ).
modernes contra o dos anciens. Marivaux é o poeta que O precursor da literatura da Régence é Donneau de
saiu da "Querelle". Na época da segunda "Querelle", o Vise ( ° 4 ) ; o Mercure galant, que fundou em 1672, tornou-se
jovem Marivaux escreveu — isto é verdade — obras pouco a revista literária mais influente do século X V I I I . O seu
"modernas": uma Iliade travestie à maneira de Scarron, e colaborador de redação é Thomas Corneille, dramaturgo de
um romance Pharsamon, autêntico romance heróico-galante. tradições barrocas. O próprio Donneau de Vise é inimigo
O "moderno" parece muito "reacionário"; e é isso mesmo, do classicismo, defendendo a volta ao preciosismo do Hotel
revelando mais um motivo da fúria de Boileau contra os de Rambouillet. Em 1684, Amelot de la Houssaye publica
modernes: o estilo do Rococó é précieux, significa um uma tradução de Gracián, e o sucesso é tão grande que
retrocesso para o Hotel de Rambouillet. É, a seu modo, várias outras traduções aparecem. O "lirismo" à maneira
tão neobarroco como é barroca a gravidade retórica de L a da ópera, que Lanson observou nos Macchabées, de Houdart
Bruyère. A ideologia do Rococó é a do Antibarroco, tão de La Motte, é barroco. O género preferido do Rococó
século X V I I como o aristocratismo barroco de Saint-Simon. é a própria ópera, arte de grande representação, ilusionismo
Neste sentido, o Rococó é realmente uma "reação", embora suntuoso e expressão irracional em língua cantada, último
uma reação burguesa. resultado do teatro barroco. Barroca, mais do que classi-
Sendo "Rococó" um conceito da historiografia das ar- cista, é a retórica cristã de Jean-Baptiste Rousseau. Mais
tes plásticas que até há pouco não foi usado na historio- barroca do que classicista também é a tragédia Manlius
grafia literária, será preciso procurar o esclarecimento das Capitolinus, de Antoine de la Fosse ( e õ ), famosíssima du-
suas origens na história daquelas artes ( 9 0 ). O Rococó
parecia antigamente produto da decomposição do classicis-
m o ; em analogia, o Rococó literário seria produto da dis- 91) R. Sedlmaier: Qrundlagen der Rokokoornamentik in Frankreich.
solução da poética de Boileau pelo libertinismo da Régence. Wien, 1917.
O estudo das artes decorativas da época desmentiu essas H. Rose: Spaetbarock. Berlin, 1922.
teses ( e o ' A ) . Na Itália, Alemanha meridional e Áustria, o 92) E. Ermatinger: Barok und Rokoko. Leipzig, 1928.
H. Cysarz: "Llterarisches Rokoko." (In: Weltraetsel im Wort.
Barroco transf orma-se imediatamente em Rococó. Na Fran- Wlen, 1948.
ça interpoe-se entre classicismo e Rococó uma fase neo- 93) F. Schuerr: Barock, Klasstzismus und Rokoko in der franzoesis-
barroca, no fim do século X V I I , obra de discípulos de chen Literatur. Leipzig, 1928.
94> Jean Donneau de Vise, 1638-1710.
P. Mélèse: Donneau de Vise, fondateur du Mercure galant.
Paris, 1936.
90) F. Kimball: Le Style Louis XV. Origine et évolution du Rococó. 95) Antoine de la Fosse, 1653-1708.
Paris, 1949. Manlius Capitolinus (1698).
90 A) P. Jessen: Das Ornament des Rokoko und seine Vorstufen. A. Johnson: La Fosse, Otwap, Saint-Réal, origines et transfor-
Berlin, 1894. mations d'un thème tragique. Paris, 1901.
1256 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1257

rante o século inteiro, na qual ainda Talma brilhará perante pela missão de Hamilton (° 7 ), memorialista inglês em lín-
Napoleão I ; e o fato de essa tragédia revelar forte influên- gua francesa, o representante mais perfeito e mais gracioso
cia do Veaice Preserv'd, de Otway, não deixa de ser sig- do novo "libertinismo" rococó da Régence. Hamilton, assim
nificativo. Finalmente vem Crébillon ( 90 ) : a sua tragédia, como Pepys, parece confirmar a veracidade da comédia da
cheia de horrores sangrentos, foi sempre interpretada como Restauração; mas o problema da relação entre teatro e
a última degeneração da tragédia clássica. Crébillon teria realidade social já está em segundo plano. Stoll observa
ofendido, intencionalmente, as "bienséances", apresentando que aos doze teatros londrinos da época shakespeariana
no palco fortíssimos efeitos melodramáticos, para tonificar sucederam só duas casas de espetáculos, na época da Res-
o género já afrouxado; e teria conseguido apenas a volta tauração; a comédia de Wycherley e Farquhar reflete,
ao romantismo "melodramático" dos começos hispanizantes quando muito, somente os costumes da classe aristocrática.
do teatro francês. Mas Crébillon não tem nada com o Mas o crítico americano esqueceu-se de acrescentar que
naquelas duas casas não se representaram apenas comédias;
teatro espanhol, e um título como Atrée et Thyeste já
havia também a tragédia de Dryden, Otway e Lee, heróica
basta para verificar a origem da sua tragédia de horrores:
como a de Corneille e sangrenta como a de Crébillon; e
Crébillon voltou-se para Séneca, supremo modelo do teatro
os autores das tragédias e das comédias eram várias vezes
barroco. E essa tendência não acabou com êle. Na Sémi-
as mesmas pessoas. Repete-se na Inglaterra, duas gerações
ramis, de Voltaire, reaparece o espectro, personagem in-
antes da Régence, o caso de duas correntes simultâneas,
dispensável das tragédias senequianas; e as famosas refor-
do neobarroco grave de Saint-Simon e la Bruyère, do neo-
mas cénicas de Voltaire — expulsão dos espectadores do
barroco "libertino" de Dancourt e Marivaux. A tragédia
palco, maior fidelidade histórica dos costumes e decorações
de Dryden e Lee apresenta ao público o ideal aristocrático
— servem todas para aumentar a ilusão; são heranças do da época passada; é "restauração" dramatúrgica. A comédia
teatro barroco dos jesuítas, guardadas e revivifiçadas pelo de Dryden, Wycherley e Congreve pretende distinguir en-
antigo aluno do Collège Louis-le-Gran, onde Voltaire, tre o "libertinismo autêntico e legítimo" das almas aris-
quando colegial, assistiu às representações das peças do P. tocráticas, do Plain Dealer, de Mirabell e de Millamont,
Porée S. J. e o falso libertinismo dos hobereaux grosseiros ou damas
A literatura rococó da Régence é um neobarroco. É perversas, como Sir John Brute, Lord Foppington e Lady
uma analogia perfeita da literatura da Restauração inglesa, Fancyfull. Para a representação desse contraste, serve, aos
que também é neobarroca. A Inglaterra tinha recebido comediógrafos da Restauração, o paralelismo dos "double
Saint-Evrémond como embaixador das letras francesas, tra- plots" da convenção elisabetana; existe essa tendência mo-
zendo a mensagem dos libertins do século X V I I . Retribuiu ralizante até no meio das maiores obscenidades. Neste
sentido, T. S. Eliot considera Mr. Limberham uma comédia
"moralíssima". O aparente imoralismo da comédia da Res-
96) Prosper Jolyot de Crébillon, 1674-1762.
Jdoménée (1706); Atrée et Thyeste (1707); Rhadamiste et Zénobie
(1711); Xerxès (1714); Sèmiramis (1717). 97) Anthony Hamilton, 1646-1720.
Edição por A. Vitu, 2 vols. Paris, 1885. Mémoires de la vie du comte de Grammont (1713).
M. Dutrait: Étude sur la vie et le théâtre de Crébillon. Bor- W. Kissenberth: Anthony Hamilton, sein Leben und seine Werke.
deaux, 1895. Rostock, 1907.
1258 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1259

tauração não é imoralidade; esconde um sistema moral. O -Os mesmos conceitos serviram à "direita" e à "esquerda"
crítico americano Krutch ( 9 8 ), interpretando a comédia da — a papas, reis e revolucionários — e a troca contínua das
Restauração como panorama fiel dos costumes aristocrá- posições e atitudes é, às vezes, vertiginosa. É preciso re-
ticos da época, admite, no entanto, que a evolução da "su- velar os motivos daquilo que se chama racionalismo e Ilus-
per-estrutura" literária precedeu a evolução da estrutura tração, porque tais motivos, em parte, não são racionais nem
social: a dissolução moral dos personagens aristocráticos revolucionários.
no palco é menos resultado dramatúrgico da observação
A dissolução do conceito teocrático do poder monár-
da realidade do que das concepções filosóficas da época.
quico é um processo secular ( 1 0 °): tem, paradoxalmente,
O atomismo físico de Hobbes ( 90 ) agiu no mesmo sentido,
origens místicas, e passa, mais paradoxalmente ainda, atra-
ao passo que o seu didatismo estético é responsável pelo
vés da elaboração do conceito do direito divino da monar-
moralismo da comédia da Restauração. Mas Hobbes é ain-
quia. Quando o papado medieval se arrogou direitos de
da, ao mesmo tempo, o teórico do absolutismo monárquico:
soberania sobre os reis, estes não foram capazes de opor-lhe
o filósofo que foi derrotado pela Revolução de 1688. É
uma teoria leiga da soberania, porque eram reis feudais; o
o último pensador barroco, um dos fundadores da física
feudalismo, com a sua distribuição e subdistribuição inter-
moderna e da estética classicista. Para compreender esse
minável dos direitos de soberania entre vassalos e sub-
duplo papel, é preciso observar duas evoluções paralelas
vassalos não podia ter um conceito coerente de soberania.
do pensamento inglês no século X V I I : a construção de
Enfim, os franciscanos espiritualistas, de Occam a Marsi-
uma nova filosofia da vida e a destruição da antiga.
lius de Pádua, puseram à disposição dos imperadores uma
No começo da evolução está a grande figura de Bacon. teoria do Estado leigo, baseado em um pacto direto entre
É dele o programa de uma ciência autónoma e utilitária. Deus e povo, rei e povo, de modo que a intervenção do
O Philosophical College, fundado em 1645 e dispersado papado ficava excluída. A origem dessa teoria "moderna"
pela revolução puritana, reuniu-se novamente em 1660; em do século X I V é de alta significação. Os franciscanos he-
1662 recebeu autorização real como Royal Society. Foi o réticos que a elaboraram, eram partidários da "Ecclesia
berço das ciências empíricas e experimentais. É, porém, spiritualis", da "Terceira Igreja", prevista como fim da
difícil traçar uma linha reta entre Bacon e Locke; a nova evolução histórica, depois da época da Igreja visível. Ima-
ciência de Newton destruiu justamente o neobaconismo da ginaram a possibilidade de um melhoramento progressivo,
época da Restauração, introduzindo na física conceitos ma- na história da Igreja e do cristianismo. Essa ideia otimista
temáticos alheios ao empirismo. E Newton, discípulo dos do progresso histórico vai reaparecer no século X V I I I ,
platonistas de Cambridge, era admirador de Boehme. São, com feição muito diferente.
paradoxalmente, as ideias "reacionárias" que levam direta-
A nova teoria política chocou-se com as doutrinas
mente à revolução, primeiro à revolução política, depois à
aristotélico-tomistas ( 3 0 ° - A ) . O S gregos acreditavam que os
intelectual. Não há linhas retas na evolução das ideias.
homens, antes de terem Estados, viviam nas florestas como

98) I. W. Krutch: Comedy and Conscience after the Restoration. 100) J. N. Figgis: The Divine Rlghts of Kings. 4.a ed. Cambridge,
New York, 1924. 1934.
99) Cf. nota 54. 100 A) E. K. Winter: Sozialmetaphysik der Scholastik. Wien, 1929.
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indivíduos isolados e selvagens, comparáveis aos ciclopes. físico às relações sociais, atomizou a sociedade em indi-
Os teólogos cristãos, porém, encontravam, na Bíblia, como víduos isolados e selvagens — os "ciclopes" são os próprios
origem da sociedade, a família de Adão, o que excluiu súditos pacificáveis apenas pela delegação contratual da
aquela "teoria ciclópica". Inventou-se, então, o conceito própria soberania ao Estado absoluto. A Igreja anglicana,
de dois Direitos naturais, antes e depois do pecado original, porém, não se podia conformar com essa filosofia da socie-
para reconciliar as duas teorias: a de um Estado "patriar- dade; lembrou-se de conceitos medievais. O último Stuart,
cal", baseado no amor entre os membros da mesma família, católico clandestino, baseava as suas pretensões no Pa~
e a de um Estado "ciclópico", baseado na força empregada triarcha (1680), de Robert Filmer, que procurava a origem
para garantir a observação do contrato de paz entre os do Estado na família de Adão, atribuindo ao rei os poderes
"ciclopes". O jesuíta espanhol Francisco Suárez, em De absolutos do pater famílias patriarcal. A argumentação era,
legibus, serviu-se dessa teoria contra os príncipes heré- no entanto perigosa: baseando o poder real em relações
ticos : quando um Estado pretendia basear a sua soberania naturais, o rei — "ciclope" é o rei católico — expôs-se ao
só na força, o papa estava autorizado a desligar os povos outro Direito natural, o da força: e à força ele sucumbiu
de compromissos que não se harmonizassem com o Direito em 1688. Hobbes, como teórico do absolutismo, estava
divino — o "ciclope" é o rei herético. Os defensores pro- vencido; mas vencera como filósofo de uma sociedade ato-
testantes da monarquia leiga já haviam previsto esse peri- nizada, e o sinal desta vitória é a adoção da sua teoria
g o ; apoderaram-se da teoria contratual do Estado, atri- estética — da poesia didático-classicista.
buindo ao pacto entre rei e povo o caráter irrevogável do Os vencedores concluíram novo pacto, entre o rei e o
pacto bíblico entre Deus e o povo de Israel, de modo que parlamento; a doutrina da monarquia parlamentar inglesa
a intervenção papal era excluída — o "ciclope" é o Anti- tinha as mesmas origens da teoria do Direito divino dos
cristo lá em Roma. Na França, Bodin argumentou assim reis ( 102 ) — apenas mudara a natureza das altas partes con-
em favor da monarquia absoluta, investida da soberania tratantes. Quando, no século X V I , os reis se arrogaram
por aquele pacto. O Direito divino dos reis, imaginado em o direito de mudar a religião dos seus súditos, os sectários,
defesa do Estado leigo contra a Igreja, torna-se instru- herdeiros da "Ecclesia spiritualis" e fundadores da "Ter-
mento do absolutismo monárquico. Os reis da casa de ceira Igreja", entrincheiraram-se atrás do pacto entre rei
Stuart pretenderam introduzir no Direito constitucional e súditos, revogável pela superioridade do Direito natural
inglês aquela doutrina francesa, para estabelecer o abso- de origem divina. "É preciso obedecer mais a Deus do
lutismo real. Hobbes (101)> instruído pelas experiências das que aos homens" — esse lema bíblico, que servira aos
guerras civis na Inglaterra, voltou-se inteiramente à teoria teóricos da Contra-Reforma católica, tornou-se doutrina
"ciclópica". Aplicando a sua teoria atomística do mundo democrática. Johannes Althusius, o autor da Política me-
thodice digesta (1603) é o primeiro grande teórico da
doutrina contratual democrática. Os seus argumentos
101) Thomas Hobbes, 1588-1679. servem à oposição puritana contra os Stuarts, aos indepen-
Elements of Law, Moral and Politick (1650); Leviathan, on the
Matter, Form and Power of a Commonwealth, Ecclesiastlcal and
Civil (1651); De Corpore (1655); De Homine (1658).
F. Toennles: Hobbes, der Mann und der Denker. Leipzig, 1912.
Cl. De Witt Thorpe: The Aesthetic Theory of Thomas Hobbes. 102) G. P. Gooch: English Democratic Ideas in the Seventeenth
Ann Arbor, 1940. Century. 2." ed. Cambridge, 1927.
1262 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1263

dentistas de Cromwell, a Milton e, finalmente, a Algernon o matemático Newton, leitor assíduo de Boehme, será mais
Sidney, cujas ideias prepararam a revolução de 1688. O influente do que todos os empiristas da Royal Society, e
ponto final dessa evolução encontra-se em Locke ( 1 0 8 ). O os vencedores definitivos de 1688 não serão os aristocratas
seu empirismo epistemológico decide a luta em favor da liberais e sim os dissenters burgueses, os descendentes dos
teoria contratual moderada, da distribuição justa dos po- sectários da "Terceira Igreja". Na França, o racionalismo
deres entre o rei e o parlamento, delegados da soberania introduziu-se como neocartesianismo, substituindo tempo-
nacional. É a famosa "harmonia dos poderes" da Consti- rariamente o baconismo pragmatista e iniciando nova era
tuição inglesa, que Montesquieu fará admirar na Europa de historiografia anti-histórica.
inteira; uma doutrina otimista no que diz respeito ao con-
A figura principal do neocartesianismo não é um car-
teúdo do direito natural e à natureza humana: os "ciclopes"
tesiano ortodoxo: é Pierre Bayle ( 104 )- Descartes foi para
são substituídos por englishmen pacificados, livres, e no
êle o mestre do "método claro"; mas os resultados não lhe
entanto obedecendo às ordens razoáveis do "constable".
agradaram. Havia neles metafísica demais e muita mate-
Locke é o fundador do liberalismo inglês, e ao mesmo
mática, enquanto Bayle desejava aplicar o método carte-
tempo um dos fundadores do otimismo europeu do século
siano à história. O resultado inevitável foi o cepticismo,
XVIII. O seu direito natural já não precisa de interven-
porque a filosofia cartesiana, rigorosamente racionalista,
ções divinas para garantir o progresso infinito.
nunca admitirá verdades históricas. Mas Bayle não se per-
Por mais modernas que pareçam essas doutrinas polí- deu no cepticismo devido apenas às suas origens calvinistas.
ticas, a forma da sua exposição foi, as mais das vezes, Da controvérsia teológica chegou à dialética, que dá tanto
muito barroca. Ao lado da história dos ciclopes e da família vigor picante aos seus ataques contra o cristianismo, dissi-
de Adão estudam-se a dissipação das nações pelo dilúvio, mulados em ataques contra a credibilidade da mitologia e
a origem hebraica de todas as línguas, a correspondência historiografia greco-romanas: a distinção entre a ordem
entre nações cristãs e personagens da mitologia pagã; cer- dos pensamentos e a ordem das coisas, que aprendeu, atra-
tas dessas correspondências aparecem nas grandes telas vés de Martel, em Mersenne e Hobbes, e que o levou à
político-mitológicas de Rubens. As formas barrocas dessa crítica histórica subversiva, e ao mesmo tempo à transfor-
"sociologia" são análogas às formas barrocas da literatura mação do seu predestinacionismo calvinista em maniqueís-
antibarroca e da sua continuação, da literatura neobarroca. mo universal. Mas essa conclusão, não a aceitou o século
A tragédia heróica da Restauração é pendant do atomismo XVIII, que foi otimista: a Ilustração contentou-se com
moral da comédia da época. A voga de Gracián prepara
o neopreciosismo de Donneau de Vise e Marivaux. Os
começos do racionalismo, que será o futuro vencedor, não
104) Pierre Bayle, 1647-1706.
são integralmente racionalistas, cartesianos. Na Inglaterra, Pensées sur la comete (1682); Commentaire philosophique sur le
Compelle intrare (1686); Dictionaire historique et critique (1697);
— Nouvelles de la Republique des Lettres (1684/1687).
A. Cazes: Pierre Bayle; sa vie, ses idées, son influence, son
103) John Locke, 1632-1704. oeuvre. Paris, 1905.
Tvx> Treatises of Government (1690); An Essay concerning J. Devolve: Essai sur Pierre Bayle. Paris, 1906,
Human Understanding (1600). C. Lacoste: Bayle critique et nouvelliste littéraire. Paris, 1929.
Oh. Bastide: John Locke, ses théories politiques et leur influenct P. André: Le jeunesse de Bayle, tribun de la tolérance. Genève.
en Angleterre. Paris, 1906. 1953.
1264 OTTO M A R I A C A R P E A U X HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1265

as dúvidas irresolúveis quanto ao dogma ortodoxo, divul- picos de uma organização europeia para a manutenção d a
gadas pela língua maledicente e pena espirituosa de F o n - paz perpétua, de um governo colegiado para a França, e
tenelle ( l 0 5 ) — um cartesiano, o mais importante mesmo, dos de mil outros. O abade é utopista; quer dizer, o seu espírito
neocartesianos. Estilista habilíssimo, criador da eloquência cartesiano trabalha com muito método, mas fora das limi-
académica e da literatura de divulgação científica — porém tações históricas da razão. Cartesianismo histórico e ana-
algo mais do que um "bel esprit" e "diseur de bonmots". cronismo são idênticos.
Pelo menos, as consequências foram maiores do que o h o - A doutrina mais anti-histórica da época é a do deísmo
mem. A desmoralização meio cartesiana, meio céptica das inglês: os dogmas e ritos das religiões históricas não
tradições e fables convenues da história é a contribuição passam de deformações, em parte fraudulentas, de uma
de Fontenelle à "Querelle des anciens et des modernes". revelação original e universal, comum à Humanidade in-
Fortaleceu a convicção d a superioridade intelectual dos teira, e cujas teses não contradisseram a Razão; o irrazoável
"nossos" tempos sobre os tempos idos; o céptico Fontenelle e o absurdo nas religiões positivas, eis o produto da evo-
é testemunha sorridente a favor do progresso; no fundo, lução histórica. É verdade que os polemistas do século
um progresso inofensivo. Assim como Bayle, interessado X V I I I , Voltaire em primeira linha, gostavam de empregar
só em controvérsias teológicas e filológicas, que ficara
essas conclusões para ridicularizar o cristianismo. Mas é
à margem da oposição política dos últimos tempos de L u í s
um erro de cronologia atribuir esse deísmo ao próprio
X I V , também Fontenelle, o inimigo dos padres-mestres,
século X V I I I . O seu precursor é Lord Herbert of Cher-
faz figura de conformista elegante nos salões da Régence.
bury ( 1 0 7 ), irmão do "metaphysical poet" George Herbert
Quando o progressismo sai do salão, para entrar nas dis-
e autor de poesias no mesmo estilo. As obras mais impor-
cussões políticas do "Club de 1'Entresol", revela outra vez
tantes dos "free-thinkers" ( 108 ) publicaram-se no começo
as suas origens cartesianas, ainda meio dogmáticas. O co-
do século X V I I I ; mas Toland, Collins, Tindal são homens
laborador mais assíduo dos trabalhos do clube é o abade
do século X V I I , tão assíduo em pesquisas históricas e de
de Saint-Pierre ( l o e ) , o famoso fabricante de projetos utó-

105) Bernard le Bouvier de Fontenelle. 1657-1757. 107) Edward Lord Herbert of Cherbury, 1583-1648.
Dialogues des morts (1683); Entretiens sur la pluralité des mon- De veritate (1642); De religione gentilium (publ. 1663); Auto~
des (1686); Histoire des oracles (1687); Eloges des académiciens biography (publ. 1764).
de VAcadémie royale des sciences morts depuis de Van 1699 Edição das poesias por G. C. Moore» London, 1923.
(1708/1719). A. Renusat: Herbert de Cherbury. Paris, 1874.
F. Brunetière: "La formation de 1'idée du progrès". (In: Êtudes 108) Matthew Tindal. 1657-1733.
critiques sur Vhistoire de la littérature française. Vol. V. Paris, Christianity as Old as the Creation (1730).
1893.)
John Toland, 1670-1722.
A. Laborde-Milaa: Fontenelle, Paris, 1905.
F . Grégoire: Fontenelle. Paris, 1947. Christianity not Mysterious (1696); Adeisidaemon (1709).
Anthony Collins, 1676-1729.
106) Charles-Irénée, abbé de Saint-Pierre. 1658-1743. A Discourse on Free-Thinking (1713).
Projet de paix perpétuelle (1713/1717); Discours sur la Polys- G. V. Lechler: Geschichte des englischen Deismus. Stuttgart,
ynodie (1718); etc. 1841.
I . Drouet: L'abbé de Saint-Pierre, 1'homme et Voeuvre. Paris, L. Stephen: A History of English Thought in the Eighteenth
1912. Century, 2 vols. London, 1876.
1266 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1267

perfeita incompreensão histórica. Ao século X V I I I per- Giannone ( 1 0 ) é de quatro anos mais novo, mas a sua for-
tence somente o último dos deístas, Bolingbroke ( 1 0 9 ) : o mação é do século X V I I . O furor da sua polémica anticle-
criador dos princípios do partido conservador inglês, que rical lembra Giordano B r u n o ; o seu idealismo utópico, as-
foi, na prática, como secretário de Estado e como chefe sim como a crítica religiosa do Triregno, exposição perfeita
da oposição contra Walpole, o último representante do do protestantismo em termos católicos, lembra Campanella.
"secretário" diabólico, do político maquiavelista à maneira O objetivo político da sua Storta Civile dei Regno di Napoli
do século X V I I . A serviço dessa atuação estavam os escri- é o de Sarpi e de todos os polemistas do Estado leigo do
século X V I I : a destruição do poder temporal do clero. A
t o s históricos e políticos que publicou. A sua influência
história do reino de Nápoles aparece, na obra de Giannone,
literária limita-se a Pope, que encontrou no deísmo de
perturbada através dos séculos pelas contínuas intervenções
Bolingbroke argumentos em favor do seu próprio otimismo
ilegítimas do papado. Mas o relato, por mais documentado
ilustrado, e a Voltaire, que aprendeu em Bolingbroke o
que seja, carece de toda a crítica desses documentos. Mu-
conceito pouco histórico e muito moralista da História, ratori ( m ) é o maior dentre os colecionadores de documen-
como manual de lições para a posteridade. Os escritos tos — à maneira barroca — e o mais perspicaz de todos na
propriamente deístas de Bolingbroke não foram publicados eliminação de fables convenues. Assim como Giannone, Mu-
durante a sua vida, menos por prudência que por ter o ratori defendeu o Estado leigo contra o Papado medieval;
deísmo saído dá moda. Quando Mallet os editou, em 1754, mas a Idade Média já lhe inspira simpatias estéticas. O seu
causaram a impressão de resíduos anacrónicos do século senso crítico chega a quebrar o rigor do dogma classicista;
anterior. como crítico literário, dá o primeiro esboço de doutrinas
pré-românticas. O seu gosto estético é neobarroco; e, pelo
O deísmo vitorioso do século, o de Shaftesbury e Pope,
senso histórico, êle é superior aos maiores entre os seus
j á é diferente: é a exaltação otimista da ordem do Universo
sucessores na historiografia: Voltaire e Gibbon.
que não precisa de intervenções milagrosas para ficar em
equilíbrio perfeito. A circunstância de ter o primitivo deís- A contribuição de Voltaire ( 112 ) à historiografia não
mo inglês acabado tão cedo, no começo do século X V I I I , reside no panorama do Siècle de Louis XIV, obra de admi-
é significativa. A Ilustração não pensou de maneira tão
a-histórica como seus adversários, os românticos conser-
110) Pietro Giannone, 1676-1748.
vadores de 1800, acreditavam. Para compreender a dife- Storia civile dei Regno di Napoli (1723); II Triregno (publ. 1895).
rença do pensamento histórico entre o século X V I I e o S. B. Dattino: II Triregno di Pietro.Giannone. Napoli, 1876.
R. Biamonte: La Storia Civile e il Triregno. Napoli, 1878.
século X V I I I , basta comparar Giannone a Muratori. Pietro F. Nicollni: Vita di Pietro Giannone. Napoli, 1905.
F. Nicollni: Gli scritti e la fortuna di Pietro Giannone. Bari,.
1913.
111) Lodovico António Muratori, 1672-1750.
109) Henry St. John, Viscount Bolingbroke, 1678-1751. Delia perfetta poesia italiana (1706); Riflessioni sopra il buon
Letters on the Study anã Use of Hlstory (1735); A Letter on gusto nelle scienze e nelle arti (1708); AnUquitates italicae me-
the Spirit of Patriotism (1736); The Idea of a Patriot King dii (1738/1742); Annali d'Itália (1744/1749); Rerum italicarum
(1749); Works (publ. por D. Mallet, 1754). scriptores (1723/1751).
C. Bertoni: Muratori. Roma, 1927.
W. Sichel: Bolingbroke and His Times. 2 vols. London, 1901/
1902. 112) Cf, "O Classicismo da Ilustração", nota 33.
1268 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1269

ráveis qualidades literárias, nem no relato quase novelístico imaginaram Gibbon como um romântico, chorando entre
da Histoire de Charles XII, e ainda menos nos seus ataques ruínas a grandeza do passado. Na verdade, aquela data tem
jornalísticos contra tradições do passado. O Essai sur les outro sentido: em 1763 concluíra-se o tratado de paz de
tnoeurs et Vesprit des nations já não é l i d o ; correm apenas Hubertusburg, em que a França cedeu à Inglaterra os di-
os ditos maliciosos e epigramáticos nele contidos, fazendo reitos sobre o Canadá e a Índia; fundou-se novo Império.
esquecer a erudição considerável da obra e o mérito de Gibbon pensava, como racionalista autêntico, menos no
t e r concebido um "anti-Bossuet", uma história universal passado do que no futuro; nos obstáculos formidáveis que
segundo conceitos puramente humanos; anti-Bossuet, aliás, a massa das tradições acumuladas opunha ao progresso, até
1*0 espírito estritamente pessimista do século X V I I : a his- o triunfo final da Razão. Gibbon sabia que muitas outras
tória revela-se, na definição de Voltaire, como "le tableau ruínas sobreviriam, nesse caminho, e uma angústia íntima
•des crimes et des malheurs", merecendo ironia em vez de lhe dizia que a casa aristocrática do gentleman inglês tam-
interpretação progressista. "Erudição e ironia" — já foi bém seria ameaçada. Contra essa angústia defendeu-se
proposta essa definição para a historiografia de Voltaire, Gibbon pela ironia, desmoralizando o passado consagrado.
•e a preponderância da ironia sobre a erudição provém do A ironia levou-o a uma atitude quase nietzschiana de
«spíríto lógico, cartesiano, do autor, da interpretação mais ""transvalorização de todos os valores"; lembrando-se das
racional do que orgânica dos acontecimentos. Mas a maior alegorias barrocas do "Triunfo da Religião na História",
das "pseudomorfoses" racionalistas do pensamento univer- afirmou: "I have described the triumph of barbarism and
sal do Barroco é a obra de Gibbon ( 1 1 8 ). "Erudição e iro- religion." Gibbon estava consciente de que essa atitude
nia" é a sua fórmula também, mas a ironia não é a do inverteria todas as fables convenues, e a ironia voltairiana
panfletário e sim a do gentleman culto do século X V I I I , não lhe parecia instrumento bastante forte; serviu-se da
que desdenha ligeiramente o passado bárbaro da humani- documentação imensa dos bolandistas e outros coleciona-
dade, sem se poder defender de uma leve admiração pelos dores barrocos para provar a tese blasfema de que os cris-
tempos idos. A ironia de Gibbon não serve ao ataque; serve tãos primitivos não eram mártires e sim revolucionários
â autodefesa. Após uma mocidade inquieta que quase o que o Estado devia perseguir e condenar. Contudo, o pró-
levou ao malogro, Gibbon, contemplando do alto do Capi- prio cardeal Newman considerava-o como o mais competen-
tólio as ruínas do Fórum Romanum, concebeu, no dia 15 te entre os historiadores ingleses da Igreja. O estilo solene,
de outubro de 1764, a ideia de contar a história da destrui- algo barroco, de Gibbon não deve iludir a crítica: a History
ção do Império. Essa anedota é por demais conhecida; of the Decline and Fali of the Rpman Empire não é um
grande panorama retórico da história universal, e sim uma
obra de erudição séria. Onde Gibbon errou, não o fêz por
113) Edward Gibbon, 1737-1794. leviandade ou por espírito sectário, mas porque a ciência
History oj the Decline and Fali o/ the Roman Empire (1776/ da sua época não lhe podia oferecer a documentação sufi-
(1778).
Edição por J. B. Bury, 7 vols., London, 1896/1900. ciente. E n t r e as obras existentes da historiografia é a sua
J. M. Robertson: Gibbon. London, 1925. a mais antiga das que ainda se podem consultar com pro-
E. Blunden: Edward Gibbon and His Age. Bristol, 1935.
D. M. Low: Edward Gibbon. London, 1937. veito; é grande literatura, mas não é apenas literatura. O
G. M. Young: Gibbon. 2.» ed. London, 1949. valor literário reside no poder admirável de composição e
G. Giarrizzo: Edward Gibbon e la cultura europea dei Sette-
cento. Napoli, 1955.
1270 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1271

construção, na coerência lógica dos inúmeros fatos rela- de Voltaire e Gibbon é consequência da falta de leis his-
tados: decadência dos romanos, ascensão do cristianismo, tóricas; o método cartesiano não admitira leis científicas
queda do Império pela aliança entre a Igreja e os bárbaros, fora do mundo físico-matemático; e a história perdeu o
a longa noite dos dark ages sobre a Europa ocidental, a sentido.
sobrevivência precária da civilização antiga em Bizâncio e
Foi isso o que os românticos censuraram acerbamente;
o fim definitivo do império pelos novos bárbaros, os turcos.
mas ao mesmo tempo criticaram o otimismo insensato do
A conclusão é a de Lucrezio, responsabilizando a religião
racionalismo que não teria reconhecido o caráter trágico
por todos os males: "Tantum religio potuit suadere ma-
da história. As duas censuras não se harmonizam bem; e
lorum." É uma conclusão rigorosamente lógica, lógica até
Voltaire e Gibbon não foram otimistas. Na verdade, coe-
demais. Gibbon não é responsável pela omissão dos fatôres
xistiam no século X V I I I duas atitudes perante a história:
económicos na história; a época inteira os ignorou. Mas é
o otimismo progressista e o pessimismo racionalista. O
responsável pela incompreensão racionalista da relativa ra-
primeiro levou, evidentemente, ao reconhecimento de pro-
zão de ser de todas as fases históricas. A History of the
Decline and Fali of the Roman Empire é, em forma épica, gressos contínuos no passado também, a uma certa revalo-
a maior das tragédias históricas do Barroco; ou, antes, do rização desse passado e, afinal, até ao medievalismo dos
Neobarroco, porque a eliminação do "mito religioso" do pré-românticos e românticos. Neste sentido reabilitou
Barroco pelo racionalismo castesiano já tornara incompre- Dilthey os méritos do século X V I I I pela descoberta do
ensível a catástrofe, privando-a da "catarse". O resultado mundo histórico ( 1 1 4 ). A outra atitude, a pessimista, con-
seria uma noção vaga do predomínio do Mal no mundo: tínua conceitos do Barroco. Na época da Ilustração,
último vestígio do maniqueísmo de Bayle. E esse pessi- "história" significa progresso no Reino do Bem. Para o
mismo historigráfíco está em contradição evidente com o Barroco, "história" significa uma série de convulsões e de-
progressismo e pragmatismo da burguesia. Bacon parece cisões trágicas no Reino do Mal. Por isso, o Barroco culti-
totalmente esquecido. vou a tragédia histórica; mas pretendeu, ao mesmo tempo,
fugir da história real, interpretando-a como mera ilusão,
A intenção da historiografia de Voltaire e Gibbon é
sonho inspirado pelo Demónio. Sentido tinha apenas a his-
destrutiva: pretende servir à eliminação das convenções
tória sacra, a bíblica com a sua continuação até o Juízo final,
filosóficas e sociais que o passado nos deixou, demons-
porque dirigida pela Providência. Negando-se esta última,
trando-lhes o anacronismo absurdo. A eliminação do fator
restou apenas o panorama "des crimes et des malheurs",
"Providência", sem substituí-lo por outro fator determi-
do qual está ausente a força reguladora da razão cartesiana.
nante, transformou a história em mera sucessão de fatos
Resulta o paradoxo — um dos muitos paradoxos na história
isolados, como átomos históricos. A própria ideia do pro-
das ideias — de que o cartesianismo historiográfico conti-
gresso, tão cara ao século da Ilustração, não aparece na-
queles panoramas da história universal. Por isso, a história nua a atitude pessimista do Barroco em face da história.
é, para Voltaire, "le tableau des crimes et des malheurs";
e a Gibbon afigura-se um milénio e meio da história como
períodos de "decline" permanente, o que não é perspectiva 114) W. Dilthey: Das' 18. Jahrhundert und die geachichtliche Welt.
rnuito confortadora para o futuro. O pessimismo histórico 1901.
(.Gesammelte Schriften, vol. III. BerUn, 1927).
1272 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1273

O outro paradoxo, correspondente, é a criação — ou •convicção dogmática. Sobretudo o dogma do pecado ori-
renovação — da ideia progressista da história por meio de ginal sofreu toda espécie de atenuações pelagianas, semi-
uma transformação platónica e mística do cartesianismo. pelagianas, arminianas, até se transformar em dogma da
Este estabelecera legislação matemática para os corpos, igualdade de todos os homens, nascidos bons no seio da
fossem eles animados ou não. O mundo das almas, rigoro- Igreja universal da Natureza. Os deístas colocaram essa
samente separado do mundo físico, ficou sem apoio, a não Igreja de Religião Natural nos começos da história, sofren-
ser na graça arbitrária de Deus. Transformar esse apoio d o ela desde então as deturpações das religiões positivas,
incerto em apoio constante foi a reivindicação filosófica pela "fraude dos sacerdotes". Os sectários e místicos, ao
de Malebranche (11B) : um platónico de inclinações místicas contrário, colocaram a Igreja universal no fim da história,
que restabelece a independência do mundo ideal dos espíri- como último resultado da evolução do cristianismo. Volta
tos, apoiando-a na intervenção divina, contínua, em todas as a ideia, já otimista e progressista, da Ecclesia spiritualis.
ocasiões de contato com o mundo físico. O "ocasionalismo" O s sectários não negaram o cristianismo; imaginaram ape-
<le Malebranche, verdadeiro cartesianismo espiritualista, nas a possibilidade de uma evolução progressista da religião
tem consequências surpreendentes. Nega ao "cogito, ergo cristã — e esse "apenas" revelou-se muito perigoso ao
sum", de Descartes, o caráter de certeza matemática, e cristianismo. Lessing, na Educação do género humano,
contribui com isso para a reabilitação de conceitos cientí- chegou à ideia de uma evolução religiosa da humanidade
ficos de caráter não matemático, como são os históricos. A para além do cristianismo; fala de uma época na qual a
história, por sua vez, transforma-se em sucessão de inter- humanidade já não precisará da Bíblia; e o otimismo ame-
venções divinas que já não têm, porém, a feição de milagres ricano do século X I X condensar-se-á na fé em "novas Bí-
providenciais; essa sucessão constitui, por assim dizer, a blias", fé de Emerson que era místico, aproximando-se do
lei histórica do ocasionalismo. Nem sequer é preciso acre- swedenborgianismo.
ditar realmente em Deus para aceitar essa salvação do
A ideia do progresso entrou na historiografia com
sentido divino na história. Daí há apenas um passo para
Johannes Coccejus (1669): os conceitos "oeconomia tem-
o otimismo da ideia do progresso automático.
porum" e "processio regni", que os místicos empregaram
A origem do progressismo encontra-se em correntes para interpretar a seu modo o Apocalipse, empregou-os
místicas; e isso não é paradoxal, porque a observação im- Coccejus para definir o processo histórico. Porém o mero
parcial da vida e do mundo não levaria à ideia do progresso, progressismo não basta para conferir sentido à história;
e sim ao tragicismo histórico do Barroco. Os primeiros seria apenas pessimismo histórico às avessas. E r a preciso
ataques contra esse pessimismo vieram da parte dos sectá- substituir os objetivos misteriosos da Providência divina
rios da "Terceira Igreja". A grande esperança de Grotius, por outros valores finais da história; sem isso, o progres-
Comenius e de todos eles foi a reunião das Igrejas sepa- sismo seria logo desmentido pelos fatos, voltando o pessi-
radas, e a esse irenismo sacrificaram mais do que uma mismo barroco. E se o pessimismo histórico do Barroco
fosse despido dos seus acentos religiosos, então voltaria
a ideia pagã dos ciclos históricos nos quais a humanidade
115) Nicolas Malebranche, 1638-1715.
De la récherche de la vérité (1674/1675). se movimenta, chegando aos cumes da civilização só para
V. Delbos: Êttide sur la philosophie de Malebranche. Paris, voltar, logo depois, às origens bárbaras da História e reco-
1925.
1274 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1275

meçar de novo. É a ideia d e Maquiavel e Políbio. Eis o a erudição bizarra do B a r r o c o ; e n o próprio começo da
problema de V i ç o . sua filosofia da história aparecem os famosos ciclopes,
A história literária póstuma de Giambattista V i ç o ( n 6 ) morando nas florestas como individualistas s e l v a g e n s . E s s e
é das mais curiosas. Durante a vida, o m o d e s t o padre E s t a d o p r i m i t i v o da humanidade acaba pela domesticação
napolitano foi desconhecido. A s suas ideias influíram d o s c i c l o p e s : p e l o temor dos deuses. Por m e i o de uma
poderosamente em Montesquieu, Herder, H e g e l e Michelet, emancipação s u c e s s i v a s e g u e - s e à era dos d e u s e s a dos
sem que os influenciados tivessem t i d o sempre ideia clara heróis, e e n f i m a dos homens, c o m a plenitude da civili-
do influente. Quando, enfim, B e n e d e t t o Croce o redesco- zação. Mas já se preparam invasões de n o v o s bárbaros que
briu, revelando-o como um d o s grandes g é n i o s da h u m a - destroem t u d o ; e o c i c l o histórico p o d e recomeçar de novo.
nidade, admitiu-se o génio precursor de V i ç o , explicando-se E i s o s f a m o s o s ricorsi de V i ç o : para os s é c u l o s X V I I I e
o l o n g o esquecimento de sua obra pela mistura esquisita X I X , progressistas, foi esta a mais anacrónica das suas
de ideias antiquadas e ideias avançadas, de m o d o q u e os i d e i a s ; não se acreditará na possibilidade de nova barbárie
s é c u l o s X V I I I e X I X não foram capazes de compreendê-lo. (a não ser n o sindicalismo revolucionário d e Georges S o -
Com efeito, a forma de V i ç o é barroca, não s o m e n t e a rel). Com e f e i t o , só em Nápoles, com a sua velha tradição
forma estilística, mas também a "forma do pensamento", filosófica e c o m a lembrança viva de inúmeras mudanças
o m o d o de pensar, enquanto os resultados não puderam e derrotas históricas — g r e g o s , romanos, bárbaros, bizan-
ser plenamente compreendidos antes de ter aparecido a tinos, árabes, normandos, franceses, espanhóis — foi pos-
dialética hegeliana. V i ç o não é um grande escritor em sível conceber, em pleno s é c u l o X V I I I , essa teoria cíclica
s e n t i d o l i t e r á r i o ; é obscuro e confuso, em parte porque a da história. T a l v e z o espetáculo da decadência italiana e
abundância de ideias não l h e permite encontrar expressão d o triste fim da grande civilização da Renascença também
adequada, em parte porque a imaginação autenticamente tenha influído na m e n t e de V i ç o , aproximando-o de Ma-
poética de V i ç o excede as possibilidades da prosa. À s quiavel que n ã o ignorava os c i c l o s históricos de Políbio.
v e z e s , ele é fantástico, e não somente n o estilo. E x i b e toda E m Maquiavel aprendeu V i ç o o m é t o d o de usar a história
romana como m o d e l o de todas as histórias, como e x e m p l o
de uma "storia ideale eterna". Mas em V i ç o , o termo 'idea-
l e " tem outro sentido. O f i l ó s o f o napolitano não procura
116) Giambattista Viço, 1668-1744. l i ç õ e s de política prática, e s i m a própria "ideia" da história.
De antiquíssima italorum sapientia (1710); De universi júris
uno -principio et fine uno (Diritto universale) (1720); Principii É um platónico, rebelado contra o racionalismo anti-histó-
di una Scienza Nuova intorno alia comune natura delle nazioni r i c o d e D e s c a r t e s . E m compensação, t e m a maior conside-
{Prima Scienza Nuova) (1725); Cinque libri de'prtncipii di una
Scienza Nuova (Seconda Scienza Nuova) (1730). ração por B a c o n — nesse neobaconismo reside parte da
Edição da Seconda Scienza Nuova por F. Nicollni, 3 vola., Bari, sua importância transcendental. O b e d e c e n d o aos c o n s e l h o s
1911/1916.
B. Croce: La filosofia di Giambattista Viço. Bari, 1911. do precursor i n g l ê s , V i ç o pretende limitar-se aos dados
M. Longo: Giambattista Viço. Torino, 1921. empíricos que a historiografia fornece, para chegar a l e i s
O. Gentíle: Studi vichiani. Firenze, 1927.
R. Peters: Der Aufbau der Weltgeschichte bei Giambattista d e evolução histórica. S e V i ç o fosse um espírito s e c o ,
Viço. Stuttgart, 1929. esse m é t o d o tê-lo-ia levado ao p o s i t i v i s m o . A sua imagi-
M. Fubini: StUe e umanità di Giambattista Viço. Bari, 1946.
E. Paci: Ingens sylva. Saggio su Giambattista Vici. Milano, nação poética não permitiu, porém, a abstração; demorou-se
1949.
1276 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1277

nas particularidades das épocas e das nações, reconheceu em favor da burguesia. O grande opositor é o racionalismo
as diferenças raciais e nacionais, a "sapienza volgare" dos cartesiano que não reconhece leis históricas, admitindo
povos. Descobriu os valores particulares da poesia popular, apenas leis naturais. P o r isso, quando Hobbes pretendeu
anónima e coletiva, chegou a duvidar da individualidade justificar o mesmo absolutismo, teve de recorrer à analogia
poética de Homero, antecipando a estética de Herder e do entre a sociedade, composta de indivíduos, e o Universo,
romantismo. Tudo o que é abstração pareceu-lhe raciona- composto de átomos. De Locke até Rousseau e Fichte
lização posterior, falsificação consciente ou inconsciente identificaram-se as reivindicações burguesas com as cláu-
dos conceitos primitivos. Deste modo evitou os anacro- sulas do Direito natural, de uma maneira que contradiz
nismos típicos do século X V I I I , tornando-se o precursor todas as experiências históricas. Só Viço, o anticartesiano,
do historismo dos românticos alemães e de Hegel. Sabendo teve a coragem de estabelecer leis históricas, independentes
tirar conclusões tão "modernas" da sua teoria cíclica, Viço das leis da Natureza; salvou o maquiavelismo para os fins
pretendeu no entanto ficar com a ortodoxia católica; à da burguesia. A filosofia da Natureza de Viço é pré-
história sacra dos judeus concedeu um lugar fora do ciclo cartesiana; é baconiana, e por consequência pragmatista
dos ricorsi — o que, no século X V I I I , já é ciência ana- — pragmatismo que serve igualmente à burguesia e à histo-
crónica. Em compensação, esse "defeito" do pensamento riografia. O século X V I I I não compreendeu, porém, o rea-
vichiano aproxima-o dos sectários que tomaram a história lismo filosófico de Viço; e Montesquieu voltou a basear as
sacra dos judeus como modelo da evolução futura do cris- leis da evolução histórica em fatôres naturais — clima e
tianismo. Essa aproximação permite situar Viço dentro raça. Contudo, ò fato de Montesquieu ter conhecido obras
das correntes de teoria política do seu tempo ( 1 1 7 ). de Viço já não se apresenta como mero acaso. Ambos,
o criador da estética e jurisprudência comparadas e o autor
Em Maquiavel, a teoria cíclica da história também está
das Lettres persanes, são relativistas; o relativismo histó-
de certo modo limitada, se bem que não por motivos d e
rico é a conclusão que tiram da "Querelle des anciens et
ortodoxia eclesiástica. O objetivo das lições políticas,
des modernes". A grande preocupação do padre italiano
tiradas do ciclo funesto da história romana, é o estabele-
e do aristocrata francês é o destino futuro da civilização,
cimento de um Estado forte, capaz de impedir a decadência
que significa para eles o resultado do trabalho dos séculos
e a rebarbarização; o Estado forte garantirá o progresso
e o grande tesouro da humanidade. Neste sentido, o sa-
político e económico, necessário para salvar a civilização
cerdote ortodoxo é tão moderne e otimista como o libertin
italiana. Maquiavel defende a burguesia das Repúblicas-
da Régence que se tornou pensador político: Montesquieu,
Cidades do "Quattrocento" contra o nascente Barroco es-
Na mocidade, Montesquieu ( 118 ) frequentava os cír-
panhol. Reconhecem-se no seu "passadismo" de humanista
culos dos libertins; cultivou, êle mesmo, a poesia alegre
os germes de uma futura filosofia burguesa da história:
o Estado como protetor e fiador do trabalho progressista
dos seus súditos. Richelieu, Napoleão I, Fichte, Hegel são
maquiavelistas nesse sentido, apologistas do absolutismo 118) Charles-Louis de Secondat, baron de Montesquieu. 1689-1755.
Lettres persanes (1721); Le Temple de Gnide (1725); Considé-
rations sur les causes de la grandeur des Romains et de leur
décadence (1734) ;* UEsprit des Lois (1748) .
117) H. Horkheimer: Diz Anfaenge der buergerlichen Geschichts- Edições por E. R. de Laboulaye, 7 vols., Paris, 1875/1879, e por
philosophie. Frankfurt, 1927. R. Cillois, 2 vols., Paris, 1949/1951.
1278 OTTO M A R I A CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1279

ou obscena, e conservou sempre o hábito de falar e escrever reza. Filho da Natureza é o homem: é ela que o ajuda
em tom zombeteiro, espirituoso, tanto em ocasiões conve- e eleva; e o homem prejudica-se a si mesmo, afastando-se
nientes como não convenientes. As Lettres persanes, cri- das bases saudáveis, das origens. O abstrato Direito natural
ticando a civilização da Régence do ponto de vista de um transforma-se, para Montesquieu, em concretas condições
asiático esclarecido, são a obra-prima do relativismo cép- naturais da existência humana. As particularidades geo-
tico, que foi o último resultado da "Querelle des anciens gráficas, o clima, as qualidades e os defeitos da raça, a
et des modernes". Talvez fosse esse cepticismo que o levou correspondência ou não das instituições jurídicas e mili-
a considerar a decadência e o fim das civilizações. Assim tares com aquelas condições — eis o que ocupa em Mon-
como outro Hbertin, Saint-Êvremond, conservou Montes- tesquieu o lugar da Providência de Bossuet; a religião tem
quieu o gosto pelos estudos históricos, especialmente pela apenas a mesma importância de várias outras repartições
história romana, considerada como fonte de lições de sabe- da administração pública. Montesquieu parece antecipar
doria política, nas tragédias de Corneille, nos ensaios de a Taine. Mas a perspectiva histórica é a oposta. Taine é
Saint-Évremond, e finalmente na historiografia do dile- um pessimista do fim do século X I X ; tira o resumo de
tante Montesquieu, grande senhor, que, como Montaigne, uma civilização burguesa que aborrece os seus instintos
vivia retirado na província. Montesquieu é uma espécie estéticos. Montesquieu é um otimista do século X V I I I ;
de síntese de Montaigne e Corneille, bonhomme como à civilização aristocrática, que satisfaz os seus instintos
aquele e dado aos grandes assuntos como este. Mas um de bonhomme culto e algo libertino, pretende indicar o
Montaigne-Corneille que passara pelo otimismo modernista caminho para a reconciliação com a Natureza. A harmo-
da "Querelle" e pelo alegre relativismo moral da Régence. nia montaigniana é o seu ideal, na vida particular e na vida
Nem a política romana nem o cristianismo constituem, para pública — uma harmonia razoável que será o ideal de todos
êle, valores absolutos; o próprio homem está encarregado os intelectuais franceses. Nesse sentido, esboçou Montes-
da tarefa de realizar os desígnios que se atribuíram ou- quieu, no Esprit des lois, o quadro ideal da Constituição
trora à Providência. Neste sentido é Montesquieu um inglesa, pretensa harmonia perfeita entre os três poderes:
anti-Bossuet. Gibbon também é um anti-Bossuet, e os dois executivo, legislativo e judiciário. Criou o ideal do libe-
historiadores têm um problema comum: preocupa-os a pos- ralismo moderno. No fim do século, o tory Burke, defen-
sibilidade da decadência da civilização aristocrática do seu derá os ideais de Montesquieu contra os revolucionários
tempo. Gibbon passara por angústias religiosas na moci- franceses. Os próprios ingleses chegaram, deste modo, a
dade: na sua solução do problema, a religião ocupará lugar interessar-se pelas ideias "inglesas" de Montesquieu, nas
preeminente, embora negativo. Montesquieu é da estirpe quais os americanos basearam a sua Constituição.
de Montaigne; dá menos atenção às influências nefastas
Montesquieu é, no entanto, menos inglês do que se
da "superstição" do que às influências benéficas da Natu-
pensava. Os seus erros a respeito da Constituição inglesa
não contam muito; se tivesse conhecido mais de perto a
mistura pouco "natural" de dispositivos razoáveis e resí-
A. Sorel: Montesquieu. Paris, 1887. duos medievais na vida pública inglesa do século X V I I I ,
I. Dedieu: Montesquieu. Paris, 1913.
V. Klemperer: Montesquieu, 2 vols., Lelpxig, 1814/1915. teria escrito outras Lettres persanes. O ideal de Montes-
I. Dedieu: Montesquieu. Paris, 1943. quieu, de uma harmonia entre Natureza e Razão, é um ideal
P. Barrière: Montesquieu. Paris, 1946.
1280 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1281

francês; e francês é o método de sua exposição desse ideal. Assim como o primeiro classicismo, o do "siècle d'or",
Sendo embora um grande diletante na literatura, Montes- assim o classicismo internacional do século X V I I I também
quieu é "homme de lettres" nato. Os estudos históricos é pseudomorfose estilística da nova classe dirigente, da
e jurídicos só lhe servem de pontos de apoio. O resultado burguesia, que tolera ou antes imita os costumes aristocrá-
é literatura. As Lettres persanes: uma sátira mordaz, mas ticos. A decomposição da ascese cristã pelo novo otimismo
sempre elegante. As Considérations: um romance histó- permite enfim o reconhecimento por assim dizer oficial dos
rico. O Esprit des lois: uma coleção de ensaios e aforis- conceitos económicos da burguesia. Em Mandeville, o
mos. Montesquieu é uma das encarnações mais brilhantes egoísmo económico já aparece como atitude legítima; em
do génio literário francês. Desde Montesquieu, os "hommes Adam Smith, todos os egoísmos em conjunto dão o resul-
de lettres" se arrogam o direito de opinar sobre as coisas da tado da harmonia preestabelecida da sociedade. "Whatever
história, do Direito, da vida pública. A literatura francesa is, is right", na vida social também. Dessa harmonia ficam,
conquistou, com Montesquieu, "les grands sujets", ainda porém, excluídos os poetas, porque a sua atividade não tem
proibidos na época de La Bruyère; tornou-se política. Mas sentido económico. Começa, então, a separação entre a
o ideal secreto dos literatos politizados será sempre o de poesia e o público; os literatos profissionais saem dos
Montesquieu: a vida particular independente do indivíduo salões, retirando-se para os cafés boémios. Ao otimismo
esclarecido, garantida pela harmonia entre a Razão e a Na- burguês, o poeta responde com a melancolia pessimista
tureza. do pré-romantismo, sonhando com belezas medievais, com
Em toda a parte, o século X V I I I encontrou garantias primitivismos populares, com o idílio exótico das ilhas no
de harmonia universal. As leis astronómicas de Newton Pacífico, com os costumes bárbaros mas poéticos dos esco-
garantiram a harmonia entre os movimentos dos corpos ceses de Ossian e do Norte escandinavo. Com isso, fecha-se
celestes. Em Leibniz, a harmonia aprasenta-se preestabe- um ciclo: a melancolia e o pessimismo do Barroco voltam.
lecida, ordem divina do Universo. Realiza-se o sonho A grande fonte, se bem que subterrânea, do sentimento
filosófico de Giordano Bruno. Do entusiasmo de Bruno pré-romântico é a mística, a dos iluministas franceses, a
reaparece uma parcela, aristocraticamente moderada, em dos pietistas alemães, a dos metodistas ingleses; e a origem
Shaftesbury. Até os estóicos, tão sombrios no Barroco, comum desses misticismos é a "Terceira Igreja". No pré-
tornam-se relativamente otimistas, confiantes na Natureza, romantismo, o neobarroco cumpre a sua última tarefa des-
como Vauvenargues. E os próprios maquiavelistas aceitam trutiva.
a ideia de um Universo filantrópico: entre os amigos de Por motivo da relação subterrânea entre o neobarroco
Shaftesbury encontra-se Bolingbroke, e de Bolingbroke do fim do século X V I I e o pré-romantismo da segunda
provém o otimismo de P o p e : metade do século X V I I I , não é possível determinar exata-
mente os começos do pré-romantismo. Revelando-se já em
"Whatever is, is right." Marivaux, Richardson e o abbé Prévost, o pré-romantismo
invade a mentalidade europeia desde os primeiros decénios
Esta é, na boca do poeta mais classicista do século, a pro- do século, tendo como porta de entrada o romance, porque
fissão de fé do classicismo liberal. É a base metafísica do só este género não tinha tradição antiga e não podia nem
futuro "laissez faire, laissez aller". devia obedecer a normas classicistas. Deste modo, o pré-
1282 OTTO M A R I A CARPEAUX

romantismo acompanha a Ilustração: esta é a expressão


da burguesia que se emancipa do feudalismo; aquele é a
expressão da Intelligentzia que se emancipa da sociedade.
Pela atitude da sua classe dirigente, o século X V I I I é
otimista e classicista. Pela atitude da sua classe intelectual,
o século X V I I I é melancólico e pré-romântico. O pré-
CAPÍTULO II
romantismo é o reverso da Ilustração; e o reverso do
pré-romantismo será a Revolução da burguesia. O pré-ro-
CLASSICISMO RACIONALISTA
mantismo não é — como a nomenclatura infeliz sugere
— a preparação do Romantismo, mas o companheiro anti-
tético da Ilustração classicista. A sintese dessa contradição
dialética é, no fim do século, o novo classicismo de Goethe, O S últimos anos do século X V I I e os primeiros do sé-
culo X V I I I assistiram a um acontecimento dos mais
Alfieri e Chénier: espécie de classicismo pré-romântico ou memoráveis na história da literatura universal: o primeiro
pré-romantismo classicista. Na perspectiva da literatura encontro entre literatura e jornalismo. Não se tratava,
universal, os classicistas Goethe e Alfieri já são românticos. porém, do jornalismo político: este nascera, no século
Chénier só será descoberto um quarto de século depois de X V I I , com as notícias de propaganda divulgadas pelos
sua morte, em pleno romantismo. governos e as informações de certas casas comerciais, pu-
blicadas para uso dos frequentadores das Bolsas. Ao lado
deste jornalismo existiam no século X V I I dois outros: o
popular e o erudito. O jornalismo popular dirigiu-se às
classes médias, mais ou menos cultas, mais ou menos iso-
ladas das fontes de informação, dando-lhes relatórios men-
sais ou anuais sobre guerras, batalhas, tratados de paz,
. concílios, nascimentos e mortes nas casas reais, peste e
fome, cometas, monstros e outras maravilhas da natureza,
com previsões astrológicas e conselhos para a vida domés-
tica. O tipo dessas publicações é o Theatrum Europaeum,
fundado por Hans Merian, em Francfurt sobre o Meno,
em 1618, e continuado até 1718 por seus herdeiros. Parece-
se um pouco com os almanaques que ainda hoje correm
entre as camadas menos cultas do povo; distingue-se deles
por seus ares de erudição enciclopédica e por uma angústia
íntima que vivifica o estilo seco de relatório que o carac-
teriza: no Theatrum Europaeum revela-se o pavor do
homem barroco face ao espetáculo caótico e trágico da
'

1284 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1285

história. É realmente um "theatrum", um teatro barroco. Addison ( 2 ) era um burguês de puritanismo atenuado, for-
Como um antídoto neobarroco aparecem, a partir de 1684, mação e gosto classicistas; um Marvell sem poesia. O seu
as Nouvelles de la Republique des Lettres, fundadas por relato de uma viagem para a Itália está cheio de reminis-
Pierre Bayle, periódico de combate à intolerância católica cências de leituras; cada lugar evoca-lhe alguns versos
contra os protestantes, à intolerância protestante contra os latinos, e não faltam as digressões de erudição arqueológica.
livres-pensadores, às crenças barrocas, consideradas como Tornou-se, no entanto, modelo dos inúmeros itinerários
superstições. É uma revista de crítica histórica e literária, de viajantes ingleses, e certas frases suas ainda aparecem
escrita por eruditos para eruditos. A meio caminho en- citadas em guias modernos. Não sentiu a poesia da Itália;
contra-se o Mercure Galant, que Donneau de Vise fundou a epístola poética Letter from Italy é amostra de uma ver-
em 1672 e dirigiu até 1724. É a revista dos novos précieux, sificação retórica, hábil e fria, iniciando no entanto a era
informando-os sobre "la cour et la ville" e particularmente da poesia intelectual na Inglaterra, tão diferente da poesia
sobre o movimento literário, sempre em tom do chevalier intelectualista dos "metaphysicals". A tragédia, segundo
elegante e espirituoso da Régence. Os aristocratas ingleses o conceito lógico da época, devia tornar-se a aspiração
contemporâneos, os lordes devassos e bêbedos da comédia máxima de u m talento como o dele: na verdade, Caro, a
de Wycherley e Vanbrugh, não careciam de uma publicação primeira tragédia inglesa em estilo rigorosamente francês,
como esta; mas. entre eles havia gentlemen educados em não é destituída de valor; mas, se tirarmos as alusões ha-
Oxford e Cambridge, que preferiam a companhia de pro- bilmente insertas à atualidade política daqueles dias, resta
fessores, vigários e até de burgueses cultos; a transforma- um drama burguês em roupas romanas. É o grande estóico
ção política de 1688, resultado da aliança entre o partido transformado em gentleman algo choroso. No entanto, até
aristocrático dos whigs e a burguesia não conformista, os mesmo esta obra marcará época. Um Addison diferente
antigos puritanos, alargou esses círculos, criando afinal revela-se na comédia The Drummer: comédia regularíssi-
um novo público com novas exigências de leitura. A esse ma, que mereceu ser traduzida por Destouches como Le
novo público se destinaram os "semanários morais" de tambour nocturne. Mas o humorismo de Addison, fino,
Addison e Steele, que iniciaram uma nova época da lite- irónico, cheio de simpatia humana, anuncia a presença de
ratura inglesa e mesmo da europeia (*)• um grande prosador, de um ensaísta que entende das ques-
tões, grandes e pequenas, da vida.
Nem Addison nem Steele são escritores realmente
grandes. O momento histórico serviu-lhes bem, conferindo
a quase tudo que escreveram importância descomunal; e 2) Joseph Addison, 1672-1719.
quando se encontraram, colaborando, saiu uma obra que Remarks upon Several Parts of Italy (1705); Coto (1713); The
Drummer (1715); The Spectator (com Steele — março de 1711
marcou época, e que é, ainda hoje, legível e admirável. até dezembro de 1712; junho até dezembro de 1714); The Guar-
dian (com Steele, 1713).
Edição das obras por G. Green, 6 vols., New York, 1856.
Edição do Spectator por G. A. Aitken, 8 vols.. 1868.
1) I. Ashton: Social Life in the Reign of Queen Anne. London, Th. B. Macaulay: "Life and Writings of Addison", 1843. (In:
1883. Criticai and Historical Essays.)
O. 8. Marr: The Periodical Essayists of the Eighteenth Cen- W. I . Courthope: Addison. London, 1884.
tury. London, 1923. H. V. Routh: "Addison and Steele". (In: The Cambridge His-
W. Granam: The Beginninga of English Literary Periodicals, tory of Literature. Vol. IX, 2.a ed. Cambridge, 1920.)
1665-1715. New York, 1930. P. Smlthers: The Life of Joseph Addison. Oxford, 1954.
1286 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1287

O ponto de partida de Steele foi a comédia. Mas já os problemas do dia e os permanentes, porta-vozes do autor.
não é a comédia obscena da Restauração. Os ataques puri- Assim, Isaac Bickerstaff, personagem principal do sema-
tanos de Jeremy Collier acertaram bem. Clibber ( 3 ), embora nário The Tatler, tornou-se proverbial. Com êle surgiu
exprimindo-se com bastante licenciosidade, ostenta fins vitorioso um novo género: a revista semanal com causeries
morais, e, como habilíssimo homem de teatro, conhece bem sobre os temas mais diversos, desde a política, até literatura
o seu novo público: sabe arrancar lágrimas. Steele ( 4 ) é e problemas da vida doméstica, com fins educativos e mo-
o mestre da comédia sentimental. No Funeral, de grande rais — um género bem inglês. Com a colaboração de Addi-
eficiência cómica, prevalece ainda a expressão da Restau- son, multiplicaram-se os personagens; nasceu uma espécie
ração; Steele não será jamais um puritano. The Tender de ensaio dialogado.
Husband supera as comédias de Cibber em sentimenta- The Spectator, a obra de colaboração de Addison e
lismo; mas somente na sua obra-prima dramática, The Steele, apresenta os membros de um clube que discutem
Conscious Lovers, aparece com clareza a força motriz da questões do seu interesse, e — são dois grandes jornalistas
comédia sentimental: o ideal do gentleman inglês, cordial que falam — do interesse geral da nação. Na criação desses
e firme, cristão sem hipocrisia, alegre sem excesso, senti- personagens revela-se o talento dramático de Steele: Sir
mental sem fraqueza. Steele esboçou esse ideal no tratado Roger de Coverley, hobereau que se mudou para a cidade
The Christian Hero, não sem influências de Gracián, e para levar uma vida mais confortável; W i l l Honeycomb,
tão longe do "miles christianus" de Erasmo como o Cato "elegant" já além dos melhores anos, esquisitão muito sim-
de Addison está longe do estóico romano. Steele criou o pático ; Sir Andrew Freeport, o comerciante de honestidade
ideal de uma nação. O drama burguês viverá a suas ex- exemplar; capitão Setry, o marujo rude com um coração
de ouro — esses tipos gravaram-se profundamente na me-
pensas; o romance psicológico, de Samuel Richardson até
mória da nação inglesa. Serão os tipos do romance realista
Jane Austen, imitar-lhe-á a atitude e os processos. O talen-
inglês, de Fielding até Dickens. O génio do ensaísta
to dramático de Steele revelou-se excepcionalmente vigo-
Addison reveia-se na diversidade agradável das conversas,
roso na sua obra jornalística, na capacidade de integrar
resumida magistralmente por Macaulay: "Segunda-feira,
as opiniões do jornalista em personagens vivos, discutindo
uma alegoria engenhosa à maneira de Luciano; têrça-f eira,
um apólogo oriental; quarta-feira, um retrato moral no
estilo de La B r u y è r e ; quinta-feira, uma cena comovente
3> Colley Cibber, 1671-1757. da vida quotidiana, como Goldsmith as descreverá; sexta-
Love'8 Last Shift (1696); The Careless Husband (1704).
F. D. Sénior: The Life and Times of Colley Cibber. London, feira, uma sátira horaciana contra* as loucuras da gente
1028. à la mode; sábado, uma meditação religiosa, tão fina como
4) Richard Steele, 1672-1729. as melhores páginas de Massillon." E há excelentes ensaios
Comédias: The Funeral (1701); The Tender Husband (1705);
The Conscious Lovers (1722); — The Christian Hero (1701); literários, com acentuada preferência por Milton. Addison
The Tatler (abril de 1709 até Janeiro de 1711). está reabilitando o grande poeta que a Restauração lançara
Sobre Spectator, Guardian e edições do Spectator, cl. nota 2.
Edição das comédias por O. A. Aitken, 2.» ed., London, 1903. no ostracismo; erige o puritano e classicista em clássico
Edição do Tatler por G. A. Aitken, 4 vols., London, 1898/1899. da família inglesa. As qualidades morais de Milton so-
G. A. Aitken: Richard Steele. 2 vols. London. 1889.
H. V. Routh: cf. nota 2. bressaem, na apreciação, às poéticas; os costumes são mais
w. Connely: Sir Richard Steele. London. 1934.
I

1288 OTTO MARIA CARPEAUX H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1289

importantes do que os versos. Addison e Steele cultivam sophe (1728) e Le Cabinet du philosophe (1734). Outro
o h á b i t o i n g l ê s d e fazer s e r m õ e s . S e r m õ e s n a l i n g u a ele- g r a n d e i n t e r m e d i á r i o e n t r e as l i t e r a t u r a s i n g l e s a e francesa,
g a n t e , fina, i r ó n i c a d o s é c u l o X V I I I , a p r e g o a n d o a " f i l o - o abbé P r é v o s t , p u b l i c o u d e 1733 até 1740 Le Pour et le
sofia" do "christian hero", divulgando-a entre um grande Contre; o t í t u l o d e s t a r e v i s t a l e m b r a v a g a m e n t e A b e l a r d o ,
p ú b l i c o . O p r ó p r i o Spectator explica o seu fim: " . . . . t o chamando a a t e n ç ã o p a r a a possibilidade de os "semanários
b r i n g p h i l o s o p h y o u t of c l o s e t s a n d l i b r a r i e s , s c h o o l s a n d m o r a i s " d i v u l g a r e m i d e i a s d i a l é t i c a s , talvez a t é r e v o l u c i o -
c o l l e g e s , t o d w e l l in c l u b s a n d a s s e m b l i e s , a t t e a - t a b l e s a n d nárias. O exemplo francês — não diretamente o inglês —
coffee-houses." O programa é altamente significativo: foi i m i t a d o n a H o l a n d a p e l o Hollandsche Spectator (1731/
s e n t e - s e l i g e i r a oposição c o n t r a o e r u d i t i s m o d o s g r e c i s t a s 1735) d e J u s t u s V a n E f f e n , d e d i c a d o à d i v u l g a ç ã o d o g o s t o
e latinistas, cultores de línguas inacessíveis aos burgueses; classicista. E s e m e l h a n t e foi o Svenska Argus, do sueco
s e n t e - s e a v o n t a d e d e p r e f e r i r o c l u b e , o café, a casa d e Dalin (6), poeta de g r a n d e talento, imitador das comédias
família a o salão a r i s t o c r á t i c o . D e s t e m o d o , o Spectator t l e M o l i è r e e a t é d a Henriade, de Voltaire, na epopeia
r e v e l a as p r e f e r ê n c i a s e o g o s t o d e S i r A n d r e w F r e e p o r t , Svenska Friheten. A í , a f o r m a i n g l e s a e n c o b r e i d e i a s fran-
p e r s o n a g e m q u e m a r c a é p o c a : p e l a p r i m e i r a vez, n a l i t e - cesas a v a n ç a d a s .
r a t u r a inglesa, u m burguês desempenha papel sério. Pois Os interesses literários prevaleceram nos "semanários
esse c o m e r c i a n t e r e p r e s e n t a o p ú b l i c o d o Spectator. Foram m o r a i s " a l e m ã e s ( 7 ) , e m b o r a o Vernuenftler (1713) e o
os F r e e p o r t s q u e g a r a n t i r a m o s u c e s s o i m e n s o d o s " s e m a - Patriot (1724/1726), a m b o s e d i t a d o s na c i d a d e m u i t o a n g l i -
nários m o r a i s " ; primeiro na Inglaterra, depois na E u r o p a c i z a d a d e H a m b u r g o , t i v e s s e m n o m e s algo s u s p e i t o s . Com
inteira. os Discourse der Mahlern ( Z u e r i c h , 1721/1723), o s c r í t i c o s
A s tentativas de Steele para continuar no género — o suíços Bodmer e Breitinger, interessados pela literatura
Guardian (1713) e o Englishman (1713/1714) — n ã o con- inglesa, p r e t e n d e r a m opor-se ao classicismo afrancesado
seguiram ê x i t o ; Addison e Steele p e r t e n c e r a m ao partido d o " p a p a " l i t e r á r i o G o t t s c h e d , em L e i p z i g , q u e r e s p o n d e u ,
d o s whigs, q u e foi d e r r o t a d o n e s s e s a n o s , e a i n t e r v e n ç ã o p o r s u a vez, com o s e m a n á r i o Die Vernuenftigen Tadle-
d a p o l í t i c a n o s " s e m a n á r i o s m o r a i s " n ã o se r e v e l o u v a n t a - xinnen (1725). O s p a r t i d á r i o s d e B o d m e r e n t r e os a l e m ã e s
j o s a . O m e s m o a c o n t e c e u c o m o Examiner (1710/1713), na Dinamarca publicaram em Copenhague o Nordischer
q u e d e f e n d e u os i n t e r e s s e s d o s torys e n o q u a l S w i f t cola- Aufseher (1758/1761), n o q u a l K l o p s t o c k c o l a b o r a v a e q u e
borava. E m compensação, apareceram na Inglaterra, até a já defende a poesia pré-romântica e o pietismo. Os próprios
m e t a d e d o s é c u l o , m a i s d e cem o u t r o s " e n s a i o s p e r i ó d i c o s " , dinamarqueses, aliás, não gostaram dessa tendência, que
testemunhando o sucesso do género. E n t r e os primeiros
imitadores continentais de Addison e Steele encontra-se
6) Oloí von Dalin, 1708-1763.
u m g r a n d e n o m e : M a r i v a u x ( 6 ) , q u e r e d i g i u , d e 1722 a t é Svenska Argus (1732/1734); Svenska Friheten (1742); — Den
1724, Le Spectateur français, s e g u i d o do Indigente Philo- Afundssjuke / 1738).
K. Warburg: Olof von Dalin. Stockholm, 1882.
M. Lamm: Olof von Dalin. Stockholm, 1908.
7) E. Hilberg: Die moralischen Wochenschriften des 18. Jahrhun-
5) Cf. "O Neobarroco, etc", nota 89. derts. Meissen, .1880.
E. Dmbach: Die dentschen moralischen Wochenschriften und der
Edição do Spectator )'rançais por P. Bonnefou, Paris, 1921. Spectator von Addison und Steele. Strasbourg, 1911.
E. Gossot: Marivaux moraliste. Paris, 1880.

1290 OTTO M A R I A CARPE AUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1291

l h e s parecia reacíonária. O Dansk Spectator ( 1 7 4 4 ) , de- mente, e com a r g u m e n t o s absurdos, Calderón e Quevedo,
Frederik Christian E i l s c h o w já havia s i d o racionalista, e j u l g a n d o "imorais" o s autos sacramentais; aparentemente
o Patríotiske Tilskuer (1761/1763), de J e n s Sneedorf, era com o fim d e defender o g o s t o classicista, mas, em reali-
francamente voltairiano. dade, com o o b j e t i v o d e ferir as tradições católicas. Clavijo
N e m sempre o periodismo moralista estava l i g a d o ao deve a notoriedade às suas brigas com Beaumarchais, que
classicismo dogmático dos afrancesados. Gasparo G o z z i ( 8 ) , Goethe, em Clavigo, dramatizará. I s s o deu-se nas vésperas
o editor da Gazzeta veneta e do Osservatore veneto, não <la R e v o l u ç ã o da burguesia.
gostava d o s ataques d o s classicistas à literatura italiana
A burguesia foi o n o v o público que assinou e leu os
antiga ; a sua Difesa di Dante, ridicularizando as c e n s u r a s
"semanários morais". D e feição burguesa é o ideal do
absurdas do jesuíta voltairiano Bettinelli ao poeta nacional,
gentleman Sir A n d r e w Freeport, que é, ao mesmo tempo,
é uma das sátiras mais mordazes da l í n g u a . O anticlassi-
rico comerciante e cristão i m p e c á v e l : duas qualidades que
c i s m o d e Gozzi não tinha, porém, nada d e pré-romântico;
n e m sempre foram consideradas compativeis. N o s países
Gozzi foi antes um clássico autêntico, i n d i g n a d o contra
c a t ó l i c o s do s é c u l o X V I I e ainda do s é c u l o X V I I I , o
os falsos. Os Sermoni de Gozzi, sátiras e m estilo horaciano,
comerciante enriquecido é s u s p e i t o de ter empregado prá-
revelam o equilíbrio de u m espírito ático, seja ao censurar
ticas i l í c i t a s ; um "comerciante cristão" como Mr. Freeport
o l u x o ruinoso d o s aristocratas venezianos, s e j a ao descrever
seria "res miranda populo". T a m b é m pensariam assim os
d e l i c i o s a m e n t e os costumes da V e n e z a d o R o c o c ó , seja ao
luteranos alemães. Mas decididamente já não se pensa
contar as desgraças pessoais da vida inquieta de Gozzi. O
d e s s e m o d o n o s países c a l v i n i s t a s : na Holanda, nos círculos
m e s m o humorismo amável e sereno d i s t i n g u e os "retratos"
puritanos ("dissenters") da Inglaterra, na Suíça francesa.
morais e o s ensaios d o jornalista veneziano, cenas encan-
A l i , o s u c e s s o do grande comerciante, d o banqueiro, do
tadoras no género d o s quadros de L o n g h i . Gozzi repre-
industrial é considerado como sinal do favor de D e u s :
senta, n u m e s t i l o verdadeiramente clássico, a honestidade
o s predestinados para a beatitude n o outro m u n d o já gozam
da burguesia italiana na época do c r e p ú s c u l o pitoresco da
nesta vida de s u c e s s o s merecidos.
corrompida aristocracia veneziana. N a Espanha, ainda bar-
roca, a mesma atitude t o m o u feição agressiva. J o s é Clavijo A conhecida teoria de Max W e b e r ( 9 ) sobre o espírito
y Fajardo, o editor de El Pensador (1762), atacou feroz- calvinista como força motriz e expressão da nova mentali-
d a d e capitalista n ã o tem ficado indiscutida. Também há
quem pense de maneira inversa: a mentalidade capitalista
ter-se-ia apoderado do instrumento de um espírito calvi-
8) Gasparo Gozzi. 1713-1786. (Cf. "O Pré-Romantlsmo", nota 124.) nista atenuado para obter sanção religiosa dos s e u s objeti-
Sermoni (1750/1755); Difesa di Dante (1758).
11 mondo morale (1760) La gazzetta veneta (1760/1761); Vosser- v o s económicos. Como quer que seja, foi aquela combinação
vatore veneto (1761/1762).
Edição dos Sermoni por A. Pompeati, Milano, 1914.
Edição do Osservatore por B. Spagni, Firenze, 1900; da Gazetta 9) M. Weber: "Die protestantische Ethik und der Gelst des Kapi-
por A. Zardo, Firenze. 1915. talismus". (Primeiro in: Archiv fuer Sozialwissenschaft und So-
A. Malmignati: Gasparo Gozzi e i suoi tempi. Padova, 1890. zialpolitik, 1904/1905; depois, in: Aufsaetze zur Raligionssoziologie,
R. Guastalla: La vita e le opere di Gasparo Gozzi. Livorno, vol. I, Tuebingen, 1920.)
1925. R. H. Tawney: Èeligion and the Rise of Capitalism. London, 1926.
G. de Beauville: Gasparo Gozzi, journaliste vénitien du XVIHe J. B. Kraus: Scholastik, Puritanismus und Kapitalísmus.
siècle. Paris, 1937. Muenchen, 1931.
1292 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1293

de calvinismo e capitalismo que formou o novo pública contra a "usura pública", isto é, contra u m empréstimo
burguês da literatura inglesa do século X V I I I . público da cidade de Verona, então o burguês abastado
Muito mais difícil foi a transformação da mentali- Maffei defendeu o "impiego dei danaro", e defendeu-o
dade económica nos países católicos. Groethuysen descre- com argumentos dos jesuítas. Pode parecer acaso —
veu ( 9 A ), com dialética quase dramática, a luta desesperada mas não é — que o mesmo Maffei tivesse escrito a
do catolicismo e particularmente do jansenismo sobrevi- tragédia Merope, na qual as complicações eróticas do
vente, contra a ascensão do espírito burguês na França teatro raciniano são substituídas pelo amor comovente
do século X V I I I : a dissolução dos conceitos cristãos de entre a mãe e um filho perseguido; Merope é, apesar dos
inferno, pecado e morte, a substituição das recompensas trajes gregos dos personagens, um drama burguês, senti-
celestes pelo sucesso económico, a eliminação das limitações mental, choroso, e que obteve sucesso tão grande na Itália e
ascéticas da ganância. Os jansenistas consideravam como na França que o próprio Voltaire resolveu apoderar-se da
responsáveis por essa evolução os jesuítas, que teriam co- peça reescrevendo-a: é sua Merope. Maffei, historiador
meçado com a atenuação dos preceitos cristãos; por isso, crítico, teórico de problemas monetários e dramaturgo sen-
aliaram-se ao galicanismo dos reis católicos, conseguindo timental, é cronologicamente o primeiro escritor completo
a expulsão dos jesuítas e, finalmente, a dissolução da da burguesia.
Companhia. E dessa forma, os reis absolutos e os jan- Um ano após a primeira representação da Merope,
senistas, em aliança paradoxal, ajudaram eficientemente o publicou-se na Inglaterra o panfleto mais eficiente contra
anticlericalismo dos encyclopédistes e a emancipação ideo- os preconceitos económicos da Europa feudal e cristã:
lógica da burguesia. The Fable of the Bees, de Mandeville ( n ) . Esse apólogo
Uma figura significativa dessa evolução é Scipione pretende demonstrar que os vícios podem ser tão úteis à
Maffei ( 1 0 ). Como historiador bem documentado da sua sociedade como as virtudes. Parece uma inversão diabólica
cidade de Verona, Maffei empregou os processos críticos dos valores, quase à maneira de Nietzsche. O fato de ser
da historiografia de Muratori, com o qual tinha em comum Mandeville inimigo da moral ascética não pode ocultar as
a aversão aos jesuítas; Maffei era jansenista; escreveu uma fontes irracionalistas do seu racionalismo. Mandeville é
história das doutrinas da Graça. Mas quando os domini- céptico como Bayle; e como Bayle, êle é maniqueu secreto,
canos, fiéis à proibição canónica dos juros, protestaram quer dizer, acredita que o mal no mundo não pode ser
eliminado. Mas em vez de cair no pessimismo de La Ro-
chefoucauld, Mandeville pretende "to make the best of
9 A) B. Groethuysen: Origines de VEsprit bourgeois en France. i t " ; pretende incorporar o mal ao sistema da vida, servir-se
Paris. 1927. dos egoísmos e dos vícios individuais para o objetivo da
10) Scipione Maffei, 1675-1755. felicidade geral. De maneira semelhante, Gracián acreditava
Merope (1713); Verona illustrata (1732); DaWimpiego dei danaro
(1744); Storia teológica delia dottrina delia grazia (1745); Museo na capacidade da pedagogia para transformar os defeitos
veronese (1749).
Edição dos dramas por A. Avena, Bari, 1928.
T. Copelli: II teatro di Scipione Maffei. Parma, 1907.
Studii maffejani, edlt. por vários autores, Torino, 1909.
O. Gasperoni: Scipione Maffei e Verona settecentesca. Verona, 11) Bernard Mandeviile, c. 1670-1733.
1955. The Fable of the Bees (1714).
G. Silvestri: Un europeo dei Settecento. Treviso. 1955. Edição por F. B. Kaye, 2 vols., Oxford, 1924 (com introdução).
1294 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1295

em qualidades; e Gracián é, segundo Azorín, o Nietzsche aborrecem-lhe as fronteiras internas; mais tarde, exigirá a
do século XVII — o mesmo Gracián, que desde mais ou abolição de todas as fronteiras económicas, o livre câmbio
menos 1680 se tornou ura dos autores mais lidos na E u r o p a internacional. Na época burguesa, já se derrubam muitas
inteira, substituindo o maquiavelismo dos príncipes pelo fronteiras religiosas, sociais e morais, formando-se um novo
maquiavelismo dos indivíduos particulares. Mandeville deu público de descendência indefinida, anónimo. Eis o público
nova expressão a esse maquiavelismo da burguesia. A sua dos "semanários morais". A mudança de público implica
época, porém, só viu o resultado, a harmonia das forças modificações importantes na situação social do homem de
particulares no universo da sociedade. É mais uma versão letras.
da harmonia preestabelecida de Leibniz, antecipando o Ainda no século X V I I , o homem de letras é um aris-
liberalismo económico de Adam Smith. O jogo livre de tocrata diletante, ou então "secretário" ou "protege" de um
todos os egoísmos dá, como resultado, uma harmonia per- aristocrata assim ou do próprio rei; só o literato eclesiás-
feita, comparável à harmonia newtoniana do Universo. tico não depende de uma pessoa física, mas de um poder
Entre a revolução inglesa de 1688 e a revolução fran- coletivo, da "opinião pública" da Igreja. No século X V I I I ,
cesa de 1789 decidiu-se a vitória da burguesia, já preesta- torna-se comum o caso de o homem de letras depender
belecida na ideologia de Newton e Leibniz e confirmada de uma opinião coletiva. Por enquanto, ainda é uma opinião
na ideologia de Adam Smith. As consequências literárias aristocrática, a dos "gens de qualité", reunidos nos famo-
da modificação da estrutura social só aparecem tarde no sos salões em que se fêz a literatura francesa do século
no estilo das belles-lettres; mas cedo se fazem sentir na X V I I I ( 13 ) — ou antes se fizeram e desfizeram as reputa-
situação dos literatos dentro da sociedade. O sucesso dos ções. O neopreciosismo da Régence tinha como centro,
"semanários morais" revela a existência de um novo públi- entre 1710 e 1773, o salão da marquesa de Lambert, fre-
co. Até então, não havia opinião pública, ou antes, havia quentado por Houdart de La Motte e outros modernes,
várias opiniões públicas separadas: a da corte, a da aris- membros do "club de 1'Entresol" como o abbé de Saint-
tocracia independente, a da Igreja; e às diferenças entre Pierre e o marquês d'Argenson, Montesquieu nos seus tem-
as religiões e seitas acrescentaram-se as diferenças linguís- pos de Paris, e Marivaux. Os mesmos homens de letras
ticas entre as nações. As fronteiras religiosas foram as frequentavam depois o salão de madame de Tencin, outro
primeiras que caíram, pelo irenismo e depois pela crescente centro dos bel-esprits mais ou menos inquietos. O salão
indiferença dogmática. Agora, anglicanos, presbiterianos de madame Geoffrin, por volta de 1750 e até 1777, já tinha
e batistas ingleses podiam formar um público homogéneo. feição diferente: recebeu estrangeiros de espírito subver-
Na França católica, já não existia o preconceito invencível, sivo como Galiani, eruditos como Caylus e os primeiros
"bossuetano", contra as produções espirituais dos países encyclopédistes, Helvetius e D'Alembert. A opinião cor-
protestantes, assim como também o protestante inglês dei- rente, segundo a qual a história dos salões é a própria
xará de desconfiar das literaturas dos países católicos. O
intercâmbio literário entre a França e a Inglaterra inten-
sifica-se de maneira inesperada; em toda a Europa começa 13) A. Feulllet de Conches: Les salons de conversatton au XVIIIe
siècle. Paris, 1883.
uma atividade febril dos tradutores e adaptadores. A C. Fischer: Les salons. Paris, 1929.
burguesia precisa de regiões amplas para explorá-las; R. Picard: Les salons littéraires et la société française. New
York, 1943.
1296 OTTO MARIA CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1297

história da literatura francesa do século X V I I I , apóia-se café "Procope", reuniram-se Fréret, Piron, Diderot, Rous-
principalmente nos anais do salão da madame Du Deffand, seau, enquanto outros se encontraram no café "Gradot"
em que se reuniram, entre 1730 e 1780, Marmontel, La ou no café d a viúva Laurent. A influência dos cafés na
Harpe, Sedaine, Turgot, Condorcet, Horace Walpole, terre- literatura é t ã o grande ou maior que a dos salões. A res-
no comum da aliança entre o gosto classicista mais ortodoxo peito de Lesage, dizia Joubert que os seus romances pare-
e as ideologias já avançadas de reforma social e política; ciam escritos no café, de noite, após uma representação
e estas últimas tendências se acentuaram quando, em 1764, no teatro. A literatura se "plebeíza", e isto não acontece
a companheira de madame Du Deffand, mademoiselle de somente na França. Os salões aristocráticos de Milão e
Lespinasse, abriu um salão de "concorrência", em que Turim são superados pelo famosíssimo café "Florian", em
D'Alembert era a figura principal, ao lado de Marmontel, Veneza, lugar das discussões de Goldoni, Gasparo e Cario
Turgot, Condorcet e Condillac. Contudo, não convém exa- Gozzi, Parini, Casanova, enquanto Guardi andava de mesa
gerar a importância daqueles centros de "causerie". Depois em mesa, vendendo os seus quadros. Os salões brilhantes
de Marivaux, as maiores figuras da literatura francesa do de Estocolmo não podiam competir — pelo menos na opi-
século X V I I I não pertenceram ao mundo dos salões, nem nião da posteridade — com o "Thermopolium Boreale",
Voltaire, nem Diderot, nem Rousseau, nem Beaumarchais, onde pontificava Bellman. Mas a pátria do café literário
nem Chénier. Os salões, reprises do Hotel de Rambouillet, fica lá onde nasceram os "semanários morais": na Ingla-
retomaram no século X V I I I o papel das précieuses no terra. O Tatler já prometeu aos seus leitores notícias de
século X V I I : tornar sociável a literatura francesa. Por "White's Chocolate-House", "St. James Coffee-house", do
isso, as maiores figuras — os individualistas — ficaram "Graecian" e de "WiH's Coffe-house", este último consa-
fora, e a importância dos salões é menos literária do que grado pela memória de Dryden. Addison, Steele, Swift,
sociológica. Primeiro, emanciparam os escritores, até então Gay são os primeiros "literatos de café". O Café literário
sujeitos à ditadura do gosto da corte. A coexistência dos corresponde a um novo público: em substituição ao público
salões da marquesa de Lambert e de madame de Tencin, dos salões — amigos pessoais do escritor — o público
depois a dos salões de madame Du Deffand e de Mademoi- anónimo que toma assinaturas dos periódicos. O café lite-
selle de Lespinasse, criou um pluralismo de centros, que rário é sintoma de uma nova situação social do escritor:
contribuiu para tornar mais independentes os escritores. em vez do "protege", surge o profissional das letras. É
Em vez de sutilizar a politesse, os salões adotaram um tom a mudança social mais importante que a literatura sofreu
de conversa cada vez mais livre. O salão da marquesa de em toda a sua história, entre Homero e a primeira guerra
Lambert assemelhava-se a uma "corte d'amor" provençal; mundial.
no salão de Mademoiselle de Lespinasse, já se zombava
das bienséances. Enfim, os homens de letras tomaram o Até ao século X V I I I , os poetas viveram em simbiose
caminho da auto-emancipação; fugindo da tutela feminina, com a aristocracia "f ainéante", como "cleros", "troubadours",
retiraram-se dos salões para os cafés, e com isso inicia-se "secretários"; eram, de qualquer maneira, propagandistas,
uma nova época da literatura francesa ( 1 4 ). No famoso com função determinada dentro de uma "leisure class".
Essa situação foi destruída no século X V I I I . Lesage ataca
os banqueiros de Êaris e Fielding zombará dos banqueiros
14) F. Fosca: Histoire des cafés de Paris. Paris, 1935. de Londres. A condição de harmonia preestabelecida na
1298 OTTO MARIA CARPEATJX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1299

sociedade burguesa é a utilidade económica de todas a s "Hail, sacred peace! hail, long-expected days,
funções parciais no Universo social. Os revolucionários d o That Thames's glory to the stars shall r a i s e ! . . . "
século X V I I I censuram amargamente a "ociosidade" da
aristocracia; mas dessa "ociosidade", quer dizer, da falta A corte inglesa já não tinha força para determinar o gosto
de funções económicas, são tarribém culpados os poetas. literário. Mas intervieram os castelos aristocráticos, e o
Para eles, não há lugar na nova sociedade. As cortes j á gosto que impunham era o da França vencida. Dryden e
perderam a função de Mecenas; o "salão literário", lugar Temple foram os precursores. O seu contemporâneo John
de aliança entre a aristocracia e a literatura, sucumbiu à Tillotson (1630-1694), arcebispo de Canterbury, rompeu
radicalização política dos espíritos. O s homens de letras com a sublimidade barroca de Donne e Jeremy Taylor,
encontraram novo lar no "café literário" e nova função n o introduzindo no sermão anglicano a clareza lógica e clássica
jornalismo. Nasceu a Bohême. Em Paris, é o ambiente de Bourdaloue. O talento extaordinário dos ingleses para
pré-revolucionário do Palais Royal, com os seus jornalistas, assimilar valores estrangeiros, anglicizando-os, afirma-se
poetas vagabundos, atôres, desocupados, prostitutas. E m na analogia entre a comédia de Molière e a de Congreve.
O Cato, de Addison, por mais fraco que seja, teve bastante
Londres, é Grub Street, a rua dos jornais, das casas edi-
força para encerrar definitivamente o ciclo do teatro na-
toras, dos diaristas literários, tradutores famintos, dos
cional inglês. Enfim, os preceitos de Boileau a respeito da
ghost-writers redigindo obras que um diletante abastado
poesia encontraram a sua realização mais completa fora da
compra e assina com seu nome; enfim, dos primeiros repór-
França: em Alexander Pope. Nesta Inglaterra, o exilado
teres ( , 5 ) . Neste ambiente, não há lugar para crenças dog-
Voltaire podia sentir-se como em casa. Contudo, a Ingla-
máticas; tudo depende do gosto do público anónimo que
terra tornou-se-lhe a grande revelação da sua vida, porque
lê jornais e compra livros. As modas literárias começam
as formas classicistas esconderam outro conteúdo: o da
a mudar com rapidez inédita. A estética dogmática do
crítica do espírito burguês contra os resíduos barrocos. Os
classicismo tem que fazer concessões, as antigas "escolas ingleses adotaram as formas francesas porque a tradição
de poetas" desaparecem, substituídas pelas facções e par- literária nacional fora interrompida pelo puritanismo. Ven-
tidos literários. No ambiente da Grub Street escreveu cedoras em 1688, as classes médias atenuaram os seus ideais
Samuel Johnson, em 1755, a famosa carta a lord Chester- calvinistas; começa um processo de secularização, de trans-
field, denunciando a inutilidade do mecenismo aristocrá- formação da ascese e predicação religiosas em espírito
tico. É a Declaração de Independência da literatura. mercantil e jornalismo, processo bem sucedido que levou
A literatura inglesa do século X V I I I é feita por es- a burguesia inglesa a uma prosperidade económica sem
critores burgueses para um público burguês. Sugere, no precedentes. A Escócia, ninho do calvinismo ortodoxíssimo
entanto, a impressão de uma literatura aristocrática. A e, antes, um dos países mais pobres e mais atrasados da
paz de Utrecht inicia um "século de oro", de "paz augus- Europa, transformou-se entre 1720 e 1750 em região mais
téia", que Pope cantou: próspera e mais progressista das ilhas britânicas; ao mesmo
tempo encheu-se a cidade de Edimburgo de edifícios pú-
blicos e particulares rigorosamente classicistas — cidade
15) A. Beljame: Le public et les homnes de lettret en Angteterre, de colunas dóricas, de grecistas e latinistas ao lado d e
1660-1775. 2.» ed. Paris, 1897.
A. S. Colllns: Authorship in the Days of Johnson. London, 1927.
»

1300 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1301

f í s i c o s , industriais e comerciantes. O classicismo é, para picarescos e m o r a i s , a s o c i e d a d e contemporânea. O ideal de


empregar a terminologia de Veblen, expressão da "cons- "nature" não encontrou realização mais eficiente do que o
p i c u o u s consumption" da burguesia enriquecida, i m i t a n d o romance em q u e uni h o m e m perdido da natureza selvagem
o g o s t o e estilo de viver da aristocracia afrancesada. de uma ilha deserta e forçado a recriar, como autodidata, a
A literatura "augustéia" representa, como t o d o classi- civilização, l a n ç a os f u n d a m e n t o s de uma nova comunidade
c i s m o , um equilíbrio precário. É c l a s s i c i s t a e burguesa ao humana: o Robinson Crusoe. T o d a s as tendências de D e f o e
m e s m o tempo, mantendo a sua razão d e ser pela crítica eram determinadas pela sua origem s o c i a l : pertencia à
incessante aos resíduos barrocos. A revolução de 1688, obra classe média puritana. O s u c e s s o escasso das suas empresas
da aliança entre os aristocratas whigs e os dissenters, fora de c o m e r c i a n t e de meias e fabricante de t i j o l o s explica-se
i n c o m p l e t a : os fundamentos do E s t a d o , sociedade e I g r e j a pela pouca habilidade comercial de um escritor n a t o ; e,
continuavam meio feudais. U m a literatura de controvérsia tal como tantas outras e x i s t ê n c i a s fracassadas depois, D e f o e
continua a revolução. É uma literatura crítica e— m u i t o dedicou-se, finalmente, à profissão dos não profissionais,
ao gosto dos comerciantes puritanos — essencialmente d i - ao jornalismo. Encontrara a sua vocação.
dática. A s qualidades mais apreciadas são wit e judgement
D e f o e é u m d o s maiores jornalistas de t o d o s os tempos.
— wit já não significa sutilidade metafórica e s i m habili-
Com isso alude-se m e n o s à sua atividade de jornalista po-
dade prática — e o ideal é nature, quer dizer, a vitória da
lítico a s e r v i ç o dos whigs — escreveu a l g u n s panfletos
"verdade" social, burguesa, sobre as "falsas" c o n v e n ç õ e s da
esplêndidos — do que aos seus trabalhos de repórter: o
sociedade aristocrática.
Journal of the Plague Year, sobre a grande p e s t e em L o n -
D a n i e l D e f o e ( 1 6 ) é u m dos maiores wits do jornalismo d r e s ; o guia A Tour through the Whole Island of Great
i n g l ê s . Representa a sua é p o c a ; e julga, n o s seus romances Britain; e sobretudo a estupenda reportagem ocultista A
True Relation of the Apparition of one Mrs. Veal, na
16) Daniel Defoe. 1859-1731. qual a aparição de um espectro é descrita de maneira tão
An Essay upon Projects (1697); The Shortest Way tuith Dissen- c o n v i n c e n t e que o leitor acaba acreditando. N e s t a s obras
ters (1702); A True Relation of the Apparition of one Mrs. Veal jornalísticas, D e f o e criou o s e u m é t o d o narrativo: narração
(1706); Life and Strange Surprizing Adventures of Robinson
Crusoe (1719/1720); Memoirs of a Cavalier (1720); Life, Adven- lenta, c o m u n i c a n d o fatos e s ó fatos, passo por passo, s e m
tures anã Piracies of the Famous Captain Singleton (1720);
Journal of the Plague Year (1722); Fortunes and Misfortunes of arte de construção do conjunto mas com coerência lógica
the Famous Moll Flanders (1722); The History and Remarkable d o s pormenores. M é t o d o de um realista que quer fazer
Life of the truly Honouráble Colonel Jacque (1722); A Tour
through the Whole Island of Great Britain (1721/1726); Roxana acreditar, mas que também, êle mesmo, acredita. S e g u n d o
(1724); The Compleat English Tradesman (1725/1727); Augusta toda a probabilidade, D e f o e acreditava até em espectros,
Triumphans (1728); Memoirs of an English Officer, by Captain
George Carleton (1728). assim como a classe média inglesa revelou sempre simpatias
Edição dos romances por G. A. Aitken, 16 vols., London, 1895/
1911.
Edição dos romances e outros escritos seletos pela Shakespeare P. Dottin: Daniel Defoe et ses romans. 3 vols. Paris, 1924.
Head Press, 14 vols., Oxford. 1927/1928. A. W. Secord: Studies in the Narrattve Method of Defoe.
W. P. Trent: Defoe and How to Know Him. Indianopolis, 1916. Chicago, 1924.
W. P. Trent: "Defoe". (In: The Cambridge History of English R. Q. Stamm:.Der anfgeklaerte Puritanismus Daniel Defoe's.
Literature. Vol. IX. 2.a ed. Cambridge. 1920.) Zuerich. 1936.
H. Werich: Defoe's Robinson. Oeschichte eines Weltbuches. J. R. Sutherland: Defoe. London, 1937.
Zuerich, 1924. Fr. Watson: Daniel Defoe. London, 1952.
1302 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1303

pelo espiritismo — e por que não acreditar se existem fatos, é tratadista moralista; e também é tratadista economista.
confirmados por testemunhas fidedignas? Defoe é uma O Essay upon Projects ainda lembra os "arbitristas" dos
encarnação do empirismo inglês. "Matter-of-fact" é o seu quais Cervantes zombou no Colóquio de los perros, inven-
ideal literário, e o seu desejo foi que as invenções da sua tores de projetos engenhosos e meio absurdos. O Compleat
imaginação, publicadas para ganhar dinheiro, fossem con- English Tradesman é título que dispensa explicação: é
sideradas como reportagem de fatos verdadeiros. Defoe um manual de contabilidade, correspondência comercial,
conseguiu tão bem realizar o seu intuito que nem sempre arte de comprar barato e vender caro. A intenção íntima
é fácil distinguir entre as suas invenções de romancista e é a do género "como tornar-se milionário". O Robinson
os materiais autênticos dos quais se serviu. Os Memoirs Crusoe também é um "livro de conseguir sucesso", isto
oi Captain Carleton pertencem a esta categoria de narrações é, de como estabelecer uma sucursal numa ilha deserta.
meio históricas. Mas as Adventures of Captain Singleton, O "deserto" não é apenas geográfico, mas também histórico:
Moll Flanders e Roxana já são romances realistas, narrados Defoe faz o experimento de abstrair das dificuldades e
com tanta capacidade de produzir a ilusão da verossimi- obstáculos q u e a sociedade meio feudal ainda opunha às
lhança, que os destinos dos heróis e heroínas nos ficam na intenções comerciais da sua classe; faz tabula rasa de todas
memória — a nós, leitores modernos — como destinos vistos as convenções, colocando Robinson na própria nature. E
e vividos. Isso é tanto mais digno de nota, lembrando-se a história do mundo começa de novo. Robinson Crusoe é
que os romances se passam em ambientes hoje inteiramente o mais picaresco dos romances "picarescos" de Defoe. Os
desaparecidos, no mundo pitoresco dos aventureiros e pros- heróis dos seus outros romances são pícaros que têm de
titutas do começo do século X V I I I . O caminho de vida construir as suas vidas; Robinson é o pícaro que tem de
de Moll Flanders, heroína da obra-prima de Defoe, começa construir uma sociedade. A obra pode ser interpretada
na prisão de Newgate, passa pelo acampamento de ciganos, como manual do escoteiro na solidão selvagem — por isso
casas de prostituição, vários casamentos, crimes, deporta- tornou-se leitura infantil — mas também como história da
ções, para terminar com uma conversão contrita. O esquema, sociedade burguesa que é uma sociedade de indivíduos
em Moll Flanders e em outros romances de Defoe, é o do isolados, lutando cada um por sua ventura. Defoe revela
romance picaresco espanhol, que lhe serviu de modelo. fortes sentimentos religiosos: o fim da vida, de uma vida
Tampouco falta o fatalismo estóico, modificado, porém, no de comerciante em uma sucursal nas colónias, é a glori-
sentido da predestinação calvinista: a pecadora Moll Flan- ficação de Deus; Robinson ensina ao selvagem Friday
ders é vítima das desgraças que a Providência lhe enviou religião, ao lado de conhecimentos que são úteis ao próprio
para guiá-la à conversão final. Essa modificação revela Robinson. Mas a pedagogia de Robinson é antes raciona-
que o romance picaresco forneceu a Defoe apenas um es- lista. É uma espécie de autodidática, muito conforme à
quema literário; o objetivo é diferente. Defoe não pretende nature, situando-se no meio-caminho entre Comenius e
dar um exemplum vitae humanae, mas uma advertência Rousseau. O Andrenio, de Gracián, no Criticon, aprende
prática de como se deve agir ou não, na vida, para con- assim, e para fins semelhantes: Gracián ensina o maquia-
seguir sucesso sem infringir as leis da religião e da moral. velismo individualista do homem neobarroco; Defoe ensina
Em forma picaresca, dá-nos tratadinhos puritanos, mas já o maquiavelismo meio comercial, meio religioso da bur-
daquele puritanismo que sabe fazer bons negócios. Defoe guesia inglesa. Bastiat, o teórico do liberalismo económico,
1304 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1305

era leitor assíduo do Robinson Crusoe; e a educação de •do pré-romantismo. A época de Defoe, cheia de controvér-
Friday antecipa certos aspectos do imperialismo colonial. sias, não é a da "paz augustéia", de longa época de paz
Defoe é o autor da única utopia que já se realizou. No depois do Tratado de Utrecht, que se exprime em formas
projeto fantástico de uma cidade modelar, em Augusta de classicismo mais equilibrado ( n ) . A revolução incom-
Triumphans, Defoe confessa-se mesmo utopista. Foi a parte pleta de 1688 deixou os espíritos perplexos e as frentes
de poeta no grande jornalista; e Defoe era poeta. As suas perturbadas: um deísta e íree-thinker como Bolingbroke é
intenções moralizantes modificaram-lhe o realismo fiel de o chefe do partido conservador, e os wbigs aliam-se aos
repórter, e o seu espírito poético transformou essas mo- devotos dissenters da burguesia de Londres. O espírito
dificações em visões algo grandiosas. Daquelas intenções prático dos ingleses, inclinando-se sempre para os compro-
moralizantes nasceu o aspecto histórico-sociológico de Ro- missos da "via media", procurou e achou soluções de
binson Crusoe, como bíblia da burguesia. Aquele realismo, equilíbrio, dos quais a Analogy oi Religion, do bispo
capaz de imortalizar, em Moll Flanders, a Londres pitoresca Butler ( l s ) , foi a mais definitiva: em estilo de clareza
de 1700, criou os pormenores tão verossímeis de Robinson clássica, algo seco, com acessos de sublimidade poética,
Crusoe, encanto permanente do maior livro infantil da lite- quase pré-romântica, quando se trata da maravilhosa har-
ratura universal. E aquele espírito poético revelou-se na monia do Universo, o bispo refuta os deístas e restabelece
angústia quase religiosa, inglêsamente reservada, do homem a fé no Deus dos cristãos; o seu método de demonstração,
perdido nos desertos infinitos do Oceano, existência sem porém, é realista e empirista, adotando os processos lógicos
horizontes definidos — não um exemplum vitae humanae, dos adversários, de modo que o Deus de Butler não se
mas uma visão da condição humana. distingue muito, afinal, do Deus dos deístas sinceros; não é,
Na história da literatura inglesa, Defoe é como um decerto, o Deus de Tindal e Toland, mas o de Locke e
Robinson Crusoe. Será difícil apontar-lhe precursores; e Newton. Poucos livros exerceram influência tão profunda
não tem, no sentido estrito, sucessores. O jornalismo inglês sobre o espírito inglês como a Analogy of Religion, ma-
não seguiu os caminhos de Defoe, e sim os de Addison e nual de um cristianismo razoável. Desde então, a sátira,
Steele, e a evolução da técnica novelística preferiu outro a crítica, já não eram as armas dos "libertadores", e sim
género; o romance sentimental. A situação histórica de as dos reacionários em retirada, que defenderam o huma-
Defoe é de ordem ideológica: êle contribuiu para secula- nismo ortodoxo das Universidade, o pessimismo barroco e
rizar o espírito puritano dos dissenters, transformando-o o amoralismo herdado da Restauração. Resume-se nisso o
em espírito burguês. Neste sentido, Defoe é companheiro
de Steele, que criou, do espírito trágico do teatro barroco
da Restauração, o drama sentimental, fonte imediata do
romance sentimental de Samuel Richardson. Este, porém, já 17) O. Elton: The Augustan Ages. Edlnburg, 1899.
não pertence à geração de Defoe, nem cronológica nem G. Saintsbury: The Peace of the Augustan Ages. London, 1916.
18) Joseph Butler, 1692-1752.
literariamente; da sua obra está ausente o espírito de con- The Analogy of Religion, Natural and Revealed, to the Consti-
trovérsia, de polémica política e religiosa, característica tution and Course of Nature (1736). etc.
Edição das obras completas por J. H. Bernard, 2 vols., London,
de Addison, Steele, Defoe, Swift, Pope. Richardson, com- 1900.
panheiro de geração de Pope, situa-se entre os precursores E. C. Mossner: Bishop Butler and the Age of Reason. New
York, 1936.
1306 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1307

programa dos três grandes satíricos: Arbuthnot, Swift, Igreja da qual era sacerdote — é um dos maiores satíricos
Gay. da literatura universal, talvez o maior de todos. Gullivefs
Arbuthnot ( 1 8 ), médico da rainha Ana, partidário apai- Traveis é o livro mais cruel que existe. A s atividades
xonado dos tories, escritor diletante, imortalizou-se por essa febris e inúteis dos anões de Lilliput ridicularizam a vida
coisa raríssima: a criação de um tipo que vive para sempre, parlamentar na Inglaterra do século XVIII e em todos os
como Don Juan, Don Quixote e Fausto: num dos seus países e épocas de política constitucional e profissional.
panfletos políticos aparece a figura de John Buli, encar- Esboçando esse panorama político, Swift lembrou-se dos
nação do bom-senso inglês. Arbuthnot antecipa algo de seus tempos de panfletário a serviço do partido conserva-
Chesterton, e assim como nele, o "bom-senso" de Arbuthnot dor, dos tories; é uma sátira mordaz contra os whigs. Mas
é instinto reacionário. O mesmo bom-senso inspirou-lhe a logo depois, Swift descreve o regime patriarcal no reino
sátira Memoirs of Martin Scribíerus, mais famosa do que dos gigantes de Brobdingnag; e este não é nada melhor.
lida. Scribíerus é outro tipo imortal: o escritor ou jorna- Ao contrário, o tamanho dos gigantes torna grotescamente
lista plebeu, de conhecimentos mais multiformes do que enormes todos os pormenores, isto é, as infâmias das "clas-
profundos, de inquietação íntima e ação demagógica. Em ses conservadoras". Tampouco são melhores os intelectuais
suma, Scribíerus é um tipo antipático de intelectual, tal
como Maurras o esboçaria. Contra o progressismo super- Universal Use of Irlsh Manufactures (1720); The Drapiefs Let-
ficial desse novo tipo de escritor, Arbuthnot defende o ters (1724); Traveis Into Several Remote Nations of the World,
by Lemuel Gulliver (1726); A Short View of the State of Ireland
espírito de elite dos humanistas do velho estilo, e com (1727); Modest Proposal for Preventing the Children of Poor
tanto espírito que traços do seu génio de diletante se en- People in Ireland from Being a Burden to their Parenta or Coun-
try, and for Making Them Beneficiai to the Public (1729); Ca-
contram em toda parte, nos escritos dos seus amigos denus and Vanessa (1730); On the Dead of Dr. Swift (1731); A
Complete Collection of Genteel and Ingenious Conversation, Ac-
Swift, Gay e Pope, e, uma geração mais tarde, em Johnson. corãing to the Most Polite Mode and Method (1738).
O traço comum em Swift, Gay, Pope, é a mordacidade Edição das obras em prosa por T. Scott, 12 vols., London, 1897/
1908.
satírica, um espírito veementemente agressivo. Pope es- L. Stephen: Swift. London, 1882.
maga, como Arbuthnot, os literatos e intelectuais; Gay S. Smith: Dean Swift. London, 1910.
ataca os fundamentos morais da sociedade; em Swift, enfim, W. A. Eddy: Gulliver's Traveis, a Criticai Study. Princeton,
1923.
a sátira dirige-se contra a própria humanidade, negando-lhe O. Van Doren: Swift. London. 1930.
W. D. Taylor: Jonathan Swift. London, 1933.
todos os valores, desejando o fim deste mundo miserável. M. M. Rossi e J. M. Hone: Swift. or The Egoist. London, 1934.
Jonathan Swift ( 2 0 ), — clérigo humanista, fiel-infiel à M. A. Korn: Die Weltanschanung Jonathan Swifts. Jena, 1935.
R. Quintana: The Mind and Art of Jonathan Swift. New York,
1936.
A. E. Case: Four Essays on Gulliver's Traveis. Princeton, 1945.
19) John Arbuthnot, 1667-1735. M. Johnson: The Sin of Wit. Jonathan Swift as a Bet. Syracuse,
Memoirs o/ Martin Scribíerus (publ. 1741); The History of John 1950.
Buli (1712). J. M. Bullítt: Jonathan Swift and Anatomy of Satire. Cam-
Edição (com biografia) por G. A. Aitken, Oxford, 1892. bridge, Bass., 1953.
20) Jonathan Swift, 1667-1745. W. B. Ewald: The Masks of Jonathan Swift. Oxford, 1953.
The Battle of the Books (1704); The Tale of o Túb (1704); An J. M. Murry: Jonathan Swift. A Criticai Biography. London,
Argument to Prove that the Abolishing of Christianity in England 1954.
May, As Things Now Stand, Be Attended with Some Inconve- K. Williams: Jonathan Swift and the Age of Compromise. Lon-
niences (1708); Journal to Stella (1710/1713); A Proposal for the don, 1959.
1308 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1309

que, no país de Laputa, vegetam como imbecis completos. " . . . u b i saeva indignatio ulterius cor lacerare nequit." Basta
Na última parte, o elogio dos Houyhnhms, isto é, dos cava- isso. Swift vive na história da literatura inglesa como
los, mais nobres e mais inteligentes que os homens, é a con- encarnação do ressentimento, como o mais cínico dos mi-
denação absoluta do género humano in totum. Enfim, o epi- santropos.
sódio dos Struldbrugs, que devem ao progresso científico A crítica moderna prefere salientar a nobreza moral
a imortalidade da vida, não escapando, porém, às doenças, em Swift: a sua indignação feroz contra a injustiça e
fraquezas e senilidade da extrema velhice, e que não con- a opressão. A campanha contra o regime funesto dos in-
seguem morrer, já condena a própria vida. As inúmeras gleses na Irlanda constitui a glória da sua vida fracassada.
digressões espirituosas e mordazes — a descrição dos hor- Não existe panfleto político mais eficiente do que as Dra-
rores da guerra como se fossem as coisas mais naturais pier's Letters, exceto o panfleto do mesmo Swift sobre
do mundo, o escárnio dos dogmas e ritos cristãos, incrível Irísh Manufactures, no qual propõe queimar todas as mer-
na boca de um alto dignitário da Igreja — revelam em cadorias de importação inglesa menos o carvão; e o Moclest
Swift o representante mais radical do racionalismo da Ilus- ProposaJ, propondo o estabelecimento de um matadouro
tração; nem sequer Voltaire ousou tanto. Os ingleses ja- de crianças irlandesas para aliviar a situação económica dos
mais gostaram de um radicalismo assim. Para desinfetar pais e abastecer de carne delicada os ingleses. O estilo
o livro venenoso, alegaram que a sátira, referindo-se a fatos dessas sátiras é eficientíssimo, pelo tom seco e equilibrado
e pessoas do século X V I I I , já perdera a atualidade. E, de das afirmações mais extravagantes, pela dissimulação cuida-
fato, várias alusões são hoje tão pouco compreensíveis quan- dosa da emoção veemente, pela expressão sonora e bem
to as do único satírico comparável, as de Dante. Sendo fraseada de ideias morais — sejam antecipações do socia-
assim, dizia-se, seria preferível tirar do livro toda a sátira, lismo, sejam lugares-comuns clássicos. É a prosa mais
deixando subsistir apenas a narração de uma viagem fan- clássica da língua inglesa. Swift fora aluno do Trinity
tástica, à maneira de Cyrano de Bergerac; e Gulliver's College e secretário de William Temple; na Battle of the
Traveis transformou-se em leitura infantil, divulgadíssima. Books defendera os anciens contra os modernes. Era hu-
Desinfetado o livro, restava explicar o profundo pessimis- manista. Aqueles lugares-comuns morais, porém, não são
mo do autor, e para isso serviu a biografia: o casamento "antigos". Grande sátira não é possível sem rigorosos cri-
clandestino e infeliz com Esther Johnson, à qual foi dedi- térios morais; o satírico é satírico porque os seus critérios
cado o Journal to Stella; as graves decepções do antigo morais são mais rigorosos do que os do seu ambiente. O cri-
secretário de William Temple na carreira política, de modo tério de Swift é o do cristianismo primitivo, quando ainda
que o tory Swift perdeu, durante o meio século de governo incompatível com as instituições profanas, quando os cris-
dos whigs, todas as esperanças, nunca conseguindo o bispa- tãos se recusaram a adorar a imagem do imperador e a pres-
do ardentemente ambicionado, terminando a vida no exílio tar o serviço militar. Swift só é comparável a Tertuliano; e
de Dublin como decano, em ostracismo político e literário; a crítica moderna já não duvida do seu cristianismo. The
depois, as relações infelizes com Esther Vanhomrigh, a Tale of a Tub é uma sátira incrível contra a história ecle-
"Vanessa" dos seus poemas, que morreu alquebrada pela siástica: Swift zomba de Peter que escondeu dos irmãos
atitude impiedosa do amante; enfim, a doença mental, a o testamento do pai e baseava a fé no uso de vestidos rica-
morte em desespero, e o epitáfio, escolhido por ele mesmo: mente ornamentados; de Martin que tirou apenas alguns
1310 OTTO M A R I A CARPEATJX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1311

ornamentos e acreditava tudo resolvido; e de J a c k que, entre assunto e estilo, sugerir o horror. O pessimismo
tirando todos os ornamentos, rasgou o próprio terno e ves- cristão de Swift é o do homem barroco. Mas o instrumento
tiu-se de farrapos — Swift zomba do catolicismo, do lu-
de agressão é o racionalismo; o resultado é a dissimulação,
teranismo e do puritanismo. A Igreja Anglicana, a da via
a "pseudomorfose" do estilo clássico, das frases sonoras e
media, é poupada. Isso não quer dizer que Swift s e tivesse
bera construídas. A ambiguidade é a dos poetas "metafí-
identificado com a Igreja oficial, da qual era dignitário
e pretendeu ser bispo; no panfleto contra os deístas, sobre sicos", embora à s avessas: o riso veemente e como reflexivo
Abolishing of Cbristianity, defende a religião de maneira de Swift é a imposição de uma inteligência lucidíssima a
muito estranha, salientando-lhe a capacidade de fornecer uma grande alma, nobre e ferida.
pretextos e subterfúgios para consagrar as atividades mais A o lado de Swift, seu amigo John Gay ( 21 ) parece
profanas e até infames. Como religião autêntica, Swift poeta menor e satirista manso da sociedade do Rococó
só admite o cristianismo hostil ao mundo, o pessimismo inglês e das suas modas; na verdade, é êle que tira, com
cristão. Essa atitude é bem a de um satírico — todos os a inocência de uma criança amoral, as últimas conclusões
grandes satíricos são pessimistas — mas não a de um revo- do pensamento swiftiano. A sua poesia é realmente "me-
lucionário; revolução e pessimismo são incompatíveis. Aí nor" : são "vers de société" meio anacreônticos — mas esse
está a contradição em Swift: entre o rigorismo cristão poeta da sociedade saberá ferir mortalmente. Gay é dos
do seu critério moral positivo, e o racionalismo subversivo
primeiros boémios da literatura inglesa; o seu ambiente é
da sua crítica negativa. As contradições de Swift podem
Londres, a primeira grande cidade europeia, cheia de um
ser explicadas, em primeira análise, pela sua psicologia mór-
proletariado de ladrões, mendigos e prostitutas, o lixo da-
bida, de homem impotente, fracassando nos amores, cheio
quela sociedade aristocrática do Rococó, os destroços mi-
de raiva contra a "sujeira fisiológica" que a natureza lhe
negara e que é a fonte da continuidade da espécie. Desse seráveis do êxodo dos campos, dos quais os lordes e os
modo, Swift pretendeu purificar a humanidade, desejando, burgueses enriquecidos se apoderaram. Trivia é o primeiro
ao mesmo tempo, o fim radical do género humano. Para a poema da grande cidade na literatura europeia. Gay já sabe
sátira, Swift usou, por assim dizer, os instrumentos científi- fazer debunking: desmascarar as fachadas brilhantes, re-
cos recém-descobertos do seu tempo: o telescópio e o mi-
croscópio, nos quais as criaturas observadas parecem anãos
ou gigantes. Mas a mentalidade de Swift é menos "moder- 21) John Gay, 1685-1732.
Rural Sports (1713); The Shepherd'8 Week (1714); Trivia, or the
na". Suas poesias revelam-lhe a incapacidade de modelar Art of Walking the Streets (1716); Fables (1727, 1738); —
a frase poética como P o p e ; e os seus períodos não se pare- The Beggars Opera (1728); Polly (1729) .
XJiúc& edição das obras completas (com introdução, por Sam.
cem com os períodos ciceronianos de Johnson. Pela con- Johnson), 6 vols., London, 1795.
dição social de "secretário" e clérigo, Swift é "arcaico", Edição de obras escolhidas por G. C. Faber, London, 1926.
pertencendo à época anterior a Addison e Steele, até an- Edição da Beggar's Opera por F. W. Bateson, London. 1934.
L. Melville: Life and Letters of John Gay. London, 1921.
terior a Dryden. A famosa clareza da sua prosa, nos pan- W. E. Schultz: Gay"s Beggar"s Opera. Newhaven, 1923.
fletos, não tem nada com a clarté dos clássicos franceses; W. H. Irving: John Gay'$ London. London, 1929.
não serve para esclarecer o assunto, mas para, pelo contraste W. Empson: Somi Versions of Pastoral. London, 1935.
W. H. Irving: John Gay Favorit of the Wits. Durham, 1940.
S. M. Armens: John Gay, Social Critic. New York, 1955.
1312 OTTO M A R I A CABPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1313

velar os fundamentos podres. As suas poesias pastoris, "pseudomorfose" que criou o classicismo francês. A prosa
"Rural Sports" e "Shepherd's Week", paródias humorís- classicista de Swift é expressão semelhante, mas de pro-
ticas da falsidade bucólica, denunciam diretamente a misé- funda s e r i e d a d e ; Swift não é jamais esteticista. Quando,
ria da crise agrária. Enfim, aconselhado por Swift, Gay porém, a consciência moral cede o lugar à consciência me-
escreveu um "Newgate pastoral", a égloga dos criminosos ramente artística, nasce uma literatura de "ficção", não
profissionais de Londres; mas desta vez, o ataque é indireto, no sentido do género "ficção", mas no sentido de apresentar,
et pour cause. The Beggar's Opera dá-se ares de paródia intencionalmente, apenas jogos da imaginação. O fenómeno
da grande ópera italiana, que Haendel tinha importado
é algo comparável ao da literatura hedonista da Contra-
para a Inglaterra; apresenta os ladrões e prostitutas dos
Reforma italiana. Os "vers de société" de Gay pertencem
bas-fonds de Londres como se fossem aristocratas heróicos
a esse género de poesia, antecipado pelos oportunistas
e grandes damas, cheios de nobres sentimentos de honra.
Waller e Cowley; e não foi por mero acaso que Cowley
O amofalismo da peça é o mesmo da comédia da Restau-
ração: o vício triunfa. A vítima da sátira é a nova bur- foi considerado, durante o século X V I I I , como um dos
guesia que, assim como aqueles ladrões no palco, macaqueia maiores poetas de língua inglesa. Prior ( 23 ) seria o repre-
os costumes da aristocracia. Desse modo, o sentido da sentante principal, ao lado de Gay, da Arcádia inglesa.
sátira é reacionário e revolucionário ao mesmo tempo: os Assim como Gay, Prior fêz tentativas de poesia popular;
ladrões modernos, pretende Gay dizer, parecem-se mais com Henry and Emma é uma versão famosa, mas mal sucedida,
os aristocratas de outrora do que os "nobres" de hoje. Como da balada popular The Nut-brown Maid — em todo o caso,
sempre, nos começos de transições sociais, o plebeu alia-se antecipação longínqua do popularismo pré-romântico. Em
à classe vencida contra os vencedores. Passada a crise so- poemas didáticos como Alma, or the Progress oí the Mind,
cial, a Beggafs Opera deixou apenas a impressão de u m Prior aproxima-se do pessimismo de Swift. Mas não chega
quadro Rococó encantador, valorizado pelo humorismo dos ao amoralismo plebeu de Gay. O máximo da sua expressão
pormenores policiais. As versões modernas que, no século é ligeira sensualidade, herança do libertinismo da Restau-
XX, renovaram o sucesso da velha peça, revelaram-lhe o ração. Prior é um La Fontaine menor, e quase goza, na
sentido mais geral e permanente: a inversão de todos os Inglaterra, da popularidade permanente do poeta francês
conceitos morais acompanha sempre as grandes crises so-
na França; essa popularidade sobreviveu às mudanças do
ciais. A sátira amoralista da Beggafs Opera é a última
gosto literário, e não vale discutir o poeta menor. A dis-
conclusão da sátira moralista de Swift.
cussão começa quando se trata, dentro do mesmo estilo,
Existência e obra de Swift desmentem a identificação de um poeta maior; e Pope corresponde a essa definição.
habitual do racionalismo com o espírito burguês ou até
revolucionário; o racionalismo presta os mesmos serviços
ao pessimismo barroco de Swift e ao otimismo plebeu de
23) Matthew Prior. 1664-1721.
Gay. A síntese seria um otimismo aristocrático, que toma Poems on Several Occasions (1709-1718).
a sério a fachada da nova sociedade inglesa, que se dá Edição por A. R. Waller, 2 vols., Cambridge, 1905/1907.
ares de aristocratismo, embora sendo fundamentalmente F. Bickley: Life of Matthew Prior. London, 1914.
L. G. W. Legg: Matthew Prior, a Study of his Public Career and
burguês. Essa mentalidade é, até nos pormenores, a da Corresponãence. London, 1921.
1314 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1315

Por isso, Alexander Pope ( 24 ) gozou durante o século Elegy to the Memory of an Unfortunate Lady. A epopeia
X V I I I de uma fama imensa e internacional; depois, nega- herói-cômica The Rape of the Lock — "Puffs, powders,
ram-lhe a própria qualidade de poeta. P o p e teria sido ape- patches, Bibles, b i l l e t - d o u x . . . " — quadro encantador da
nas artista frio; Wordsworth e Keats odiavam-no, e todos vida ociosa d o s aristocratas ingleses do Rococó, parecia
os victorianos lhe desprezaram a poesia satírica, carecendo de "uma insignificância perfeita" a Hazlitt, ao passo que
da famosa "high seriousness" de Matthew Arnold. Mas De Quincey salientou, com razão, o parentesco desse mundo
por volta de 1920, houve um "Pope Revival": Edith Sitwell feérico com o reino das fadas de Shakespeare. Hoje, parece-
celebrou a qualidade incomparável do seu verso. A crítica nos outra vez, "monumento de uma época, construído de
já não achou paradoxais os elogios que Byron dedicara "vers de société". O elogio de Byron compreende-se me-
a Pope, "o mais impecável dos poetas ingleses", e à sua lhor, prestando-se atenção aos últimos versos da famosa
poesia, "o único templo grego em língua inglesa". A moda norma de estilo poético de P o p e :
de 1920 passou. Fala-se hoje de Pope com entusiasmo me-
nor. Mas admite-se que foi artista extraordinário; só artista,
"True ease in writing comes from art, not chance,.
mas revelando, às vezes, emoções poéticas. Ao Windsor
As those move easiest who have learn'd to dance."
Eorest não se pode negar o sentimento fresco da natureza
inglesa. Pope é capaz de melancolia comovida, como na
Nietzsche, o grande admirador da Dança, teria gostado
dessa definição da poesia, talvez comparando Pope a Mo-
zart, ou mesmo a Racine. Pois, assim como o francês, Pope
24) Alexander Pope, 1688-1744. sabe transformar em ligeireza divina tudo o que é pesado,
Essay on Criticism (1711); The Rape of the Lock (1712); Windsor
Forest (1713); The Iliad (1715/1720); Elegy to the Memory of an até a regularidade do seu metro, o "heroic couplet", versos
Vnfortunate Lady (1717); Odyssey 1725/1726); Dunciad (1728/ aforísticos de trivialidade evidente, rimados sem "enjam-
.1742); Moral Essays (1731/1735); Essay on Man (1732/1734); Imi-
tations of Horace (1733/1793). bement", de concisão epigramática e construção perfeita.
Edição por W. Elwin e W. J. Courthope, 10 vols., London, 1871/ Os limites dessa arte revelam-se na tradução de Homero,
1889.
L. Stephen: Alexander Pope. London, 1880. digna de Dryden como obra de uma grande inteligência
J. Dennis: The Age of Pope. London, 1894. artística, mas feita pelo espírito mais anti-homérico de to-
Ed. Sitwell: Alexander Pope. London, 1930.
E. Andra: Uinfluence française dans Voeuvre de Pope. Paris, dos os tempos. Pope não é clássico, é apenas classicista,.
1931. o mais impecável dos classicistas. Pelo rigor da doutrina
R. K. Root: The Poetical Career of Alexander Pope. Princeton. e pela arte de rimar, no Essay on Criticism supera o pró-
1938.
G. Tillotson: On the Poetry of Pope. Oxford, 1938. prio Boileau. Pela trivialidade conformista do pensamento,
W. Sypher: "Arabesque in Verse". (In: Kenyon Review, VTI/3, o Essay on Man bate os classicistas franceses mais fasti-
1945.)
B. Dobrée: Alexander Pope. London, 1951. diosos. Este Essay on Man forneceu, porém, à língua in-
G. Wilson Knight: Laureate of Peace. On the Genius of Ale- glesa um tesouro maior de citações e locuções proverbiais
xander Pope. London, 1954.
R. W. Rogers: The Major Satires of Alexander Pope. Urbana. do que qualquer outro livro, excetuados a Bíblia e Hudibras
1955. — que é a expressão perfeita do common sense; e o século
A. L. Williams: Pope's Dunciad. A Study of his Meaning. Lon-
don, 1955. X V I I I descobriu no Essay on Man até profundidades filo-
R. P. Parkin: The Poetic Workmanship of Alexander Pope. sóficas.
London, 1956.
1316 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1317

"Ali are but parts of one stupendous w h o l e . . . nha, uma horda de Martins Scriblerus, e contra eles lançou
Ali Nature is but Art, unknown to thee; as suas brilhantes sátiras literárias. A Dunciad não tem a
Ali Chance, Direction, which thou canst not s e e ; força moral das sátiras de Dryden, mas é mais venenosa.
Ali Discord, Harmony not understood; Esse classicista ortodoxíssimo era uma revoltado insatis-
Ali partial Evil, universal G o o d . . . " feito, uma natureza subversiva. De Quincey já advinhou
nele os instintos de anarquista. Justamente na Dunciad,
— a harmonia preestabelecida de Leibniz, versificada; uma Pope eleva-se, uma vez só, à grandeza de uma visão poética:
teodicéia do otimismo racionalista, culto do Universo tão
belo e perfeito que já não precisa de intervenções divinas. "Lo! thy dread Empire, Chãos! is restor'd;
Pope, católico por nascimento, aproximou-se bastante do Light dies before thy uncreating word:
deísmo do seu amigo Bolingbroke; e, como este, foi rea- Thy hand, great Anarch! lets the curtain fali;
cionário político. O sentido imediato do famoso verso: And Universal Darkness buries Ali."

"One truth is clear, Whatever Is, Is Right" Passagens como estas são raríssimas em Pope. Prevalece,
em geral, o tom do ceptcismo mundano, limitando-se à
é filosófico, mas Pope tira uma conclusão dura: expressão inequívoca de verdades geralmente aceitas. A
poesia "filosófica" de Pope parece trivial quando inter-
"Order is heaven's first l a w . . . pretada como metrificação de um sistema metafísico; é,
Some are, and must be, greater than the rest, porém, o cume de um classicismo autêntico quando inter-
More rich, more w i s e . . . " pretada como equilíbrio precário de um mundo poético,
continuamente ameaçado pela realidade caótica. O próprio
A doutrina serviu tão bem à Constituição aristocrática Pope foi uma alma caótica, mantida em equilíbrio pela
("more wise") da Inglaterra, como às aspirações da nova clareza racional de uma grande inteligência, inteligência
burguesia inglesa ("more rich"). O "templo grego" da poe- de aleijado que chega a dançar nos versos. Pope foi mais
sia de Pope é uma antecipação da arquitetura política de feliz do que Swift; não na vida, mas na poesia.
Maurras. Como este, Pope é surdo. É um grande arquiteto, O acorde "classicismo — pessimismo — racionalismo",
sem senso pela música das esferas. A sua poesia — a expres- que se encontra assim apenas na literatura inglesa e, mesmo
são mais perfeita do Rococó — é uma série de "variazioni nela, só na primeira metade do século XVIII, produzido
senza tema"; daí a indispensabilidade do metro rigoroso, pela desarmonia entre a evolução progressista da sociedade
lei secreta de uma "arte de arabescos" em torno de uma inglesa e a situação incerta do escritor inglês, já sem patrão
sociedade de escravocratas. A sua alma poética tem a cla- aristocrático e ainda sem público certo. Samuel Johnson ( 2 5 ),
reza diáfana de vidro; por dentro, há — no próprio poeta
— os instintos de dominação. Pope, aleijado, doente, bri-
25) Samuel Johnson, 1709-1784.
galhão, vaidoso, estava cheio de ressentimentos. A fantasia London. A Põem (1738); The Vanity of Human Wishes (1749);
do Rape of the Lock é o seu sonho de beleza; na realidade Irene (1749); The Rambler (1750/1752); The Idler (1758/1760);
The History of Rasselas (1759); A Dictionary of the English Lan-
só acreditava encontrar concorrentes imbecis e sem vergo- guage (1755); Lives of the English Poeta (1779/1781). (A vida de
1318 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1319

o último (dir-se-ia póstumo) representante daquele classicis- nário, na crítica e na s u a própria literatura de imaginação.
mo reacionário, estava consciente da situação. Na biografia As sátiras — London, A Põem, The Vanity of Human
de um amigo malogrado, o poeta Richard Savage, exprimiu Wishes — imitações de Juvenal, exprimem o mesmo pessi-
toda a amargura das suas próprias experiências dolorosas mismo cristão de Swift mas sem a veemência dele, o mesmo
de escritor mercenário, sofrendo fome, fazendo traduções protesto social de Gay mas sem coragem revolucionária.
miseravelmente pagas e trabalhos de ghost writer para os The History of Rasselas é um romance satírico, de mora-
editores da Grub Street; enchendo-se, como correspondente lismo trivial. The Rambler e The Idler são "semanários
parlamentar do Gentleman's Magazine, de indignação contra morais", quarenta anos depois de o género sair da moda.
o falso liberalismo dos políticos; pontificando como boémio Irene, uma tentativa infeliz de tragédia clássica. Enfim,
sujo entre os amigos de condição igual, em Turk Head's The Lives of the English Poets, obra-prima do classicismo
Cofee-house. E este Johnson, scholar de erudição anti- míope, elogio desmesurado de Cowley e Pope, censuras
quada, moralista sonoro e trivial, estilista pomposo, chegou absurdas contra Donne e Milton e biografias respeitosas
a impor a sua vontade ditatorial à literatura inglesa. Pri- de uma turma de poetas esquecidos, tudo isso numa prosa
meiro, dominou pela grosseria da conversa os amigos do artificialíssima, ciceroniana, complicada e sublime — um
seu clube — os Goldsmith, Garrick, Burke, Reynolds. De- pesadelo dos colegiais ingleses aos quais se costuma dar
pois, pelo grande Dictionary of the English Language, a obra como presente de Natal. Johnson, apesar de tudo,
chegou a tornar-se ditador da língua inglesa. Finalmente, chegou a ser um grande escritor — assistimos atualmente
impôs à posteridade a sua glória literária. Johnson é reacio- a uma verdadeira revalorização de Johnson. A sua sátira
não tem a grandeza de um Dryden nem a graça de um
Pope, mas algo da fúria de Swift — é hoje o próprio J.
S. Eliot que lhe acha dignas de Juvenal as sátiras, pela
Richard Savage é de 1744.)
Edição das obras completas, 16 vols., New York, 1903. precisão do verso, pela justeza do sentimento disciplinado.
Edição das sátiras por T. S. Eliot, London, 1930. Nas poesias religiosas — Johnson foi homem de profunda
Edição das poesias por D. Nichol Stnith e E. L. Mac Adam,
London, 1941. religiosidade — treme uma angústia secreta, tanto mais
Edição das Lives of the Poets por G. B. HM, 3 vols., Oxford, comovente nesse boémio vaidoso e desesperado; a elegia
1905.
L. Stephen: Samuel Johnson. London, 1878. em homenagem ao Dr. Levet e o "poema horaciano" são
T. Secombe: The Age of Johnson. London, 1899. considerados, pelo crítico americano Gregory, como obras
W. Raleigh: Síx Essays on Johnson. London, 1910.
I. Bailey: Dr. Johnson and His Circle. London, 1913. permanentes. Talvez Johnson tivesse sido grande poeta
P. H. Houston: Dr. Johnson, a Study in Eighteenth Century entre os "metaphysical poets" que o seu classicismo dou-
Humanism. Cambridge, Mass., 1923.
H. Kingsmill: Samuel Johnson. London, 1933. trinário desprezou. Johnson teve a coragem de estar contra
W. K. Wimsatt: The Prose Style of Samuel Johnson. New o seu tempo, no estilo e na política, êle, o tory, conservador,
Haven, 1941.
Ch. G. Osgood: "Johnson". (In: Poetry as a Means of Grace. partidário do rei e da Igreja. As vezes, "contra o tempo"
Princeton. 1941.) significa "mais avançado do que o tempo". Apesar de fazer
H. Gregory: "Dr. Johnson's Poetry". (In: The Shield of Achil- restrições, contribuiu poderosamente para a reabilitação de
les. New York, 1944.)
J. W. Krutch: Samuel Johnson. New York, 1944. Shakespeare. Johnson é crítico puramente intelectual, cheio
J. H. Hagstrum: Samuel Johnson's Literary Criticism. Minnea- de preconceitos extraliterários, mas às vezes de penetração
polis, 1952.
W. J. Bate: The Achievement of Samuel Johnson. Oxford, 1955.
1320 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1321

surpreendente. Subjugou os criticados, fossem eles mortos todos os tempos. Estudos recentes e a descoberta da massa
e vivos. Soube impor-se. imensa de papéis inéditos de Boswell, diários de viagens,
Hoje, impõe-se de novo. O século X I X , intimamente diários íntimos, e t c , revelaram um Boswell diferente, um
romântico, desprezou-o, porque Johnson, homem da cidade, homem de g r a n d e talento literário, talvez superior ao bio-
da Grub Street, foi um anacronismo já na época da melan- grafado. Em todo o caso, o Johnson da biografia é superior
colia paisagística do pré-romantismo. J . S. Eliot e os seus ao Johnson d a realidade. É, com os seus hábitos de mestre-
discípulos ingleses e americanos classicistas, porque estão escola e boémio, pobre jornalista e ditador literário, opo-
contra o tempo, apreciam-no de novo como uma espécie sicionista obstinado e angustiado religioso, gigante sujo,
de "republicano histórico". Na poesia de Johnson há um meio imbecil, meio penetrante, uma figura humana com-
equilíbrio seguro entre o grande gesto "romano" e a me- pleta; uma grande criação. Magistral é também a descrição
lancolia religiosa — equilíbrio mais seguro do que na sátira do ambiente, o clube dos Goldsmith, Garrick, Burke, Rey-
barroca de Swift e nos arabescos rococó de Pope. Johnson nolds, em t o r n o de Johnson, e o leitor admira-se apenas
parecia reacionário, porque foi o único que continuou com de que o crítico haja dominado toda essa gente superior,
autoridade a obra de Dryden — atitude de homem de letras mais avançada em todos os sentidos. Em comparação com
autêntico. eles, Johnson é um reacionário, inimigo de Milton e admi-
O maior monumento da autoridade indestrutível de rador hesitante de Shakespeare em época de pleno pré-
Johnson não é uma obra do próprio Johnson, mas a bio- romantismo. Na verdade, Johnson impôs-se pela sua per-
grafia dele, que o discípulo James Boswell ( 26 ) escreveu. sonalidade moral. É reacionário no sentido de que a sua
Esse panorama literário, teatral e político, da Londres de existência boémia se parece mais com a de Dryden do que
1760, com Johnson no centro, tem algo de um pequeno com a de Wordsworth ou Byron. Com Johnson, o escritor
Universo, comparável ao Diary de Pepys, também pelas profissional conquistou a independência a que Dryden
minúcias ridículas que o discípulo fidelíssimo notou com aspirava. A carta, em que Johnson rejeita a proteção de
respeito comovente. Entre os historiadores da literatura Lord Chesterfield para o Dictionary — carta cheia de in-
inglesa existe o hábito de zombar de Boswell, da sua leal- dignação e de orgulho justificado — é a "declaração de
dade quase imbecil a respeito do mestre que divinizou. independência" da literatura. Johnson significa o fim de
O instinto da nação inglesa, porém, reconheceu na Life of uma época e o começo de uma nova era.
Samuel Johnson a maior biografia da língua e talvez de O elemento reacionário em Johnson é a forma, o clas-
sicismo doutrinário, realizado nos poetas da época, todos
parecidos pela monotonia do estilo. Nenhum deles tem a
26) James Boswell, 1740-1795. perfeição de Pope, nem sequer a graça de Prior e Gay.
Journal of a Tour to the Hebrides with Samuel Johnson (1789);
The Life of Samuel Johnson (1791). Foram famosíssimos na época, em parte graças à crítica
Edição por A. Glover e A. Dobson, 3 vols., London, 1901. benevolente de Johnson; e seus nomes perpetuam-se ainda
The Private Papers from Malahide Castle, edit. por G. Scott e
F. A. Pottle, 18 vols., Oxford, 1928/1934. na memória da nação, pelas apreciações de Hazlitt, pelas
C. B. Tinker e F. A. Pottle: A New Portrait of James Boswell. citações como epígrafes de capítulos nos romances de W a l -
Cambridge, Mass., 1927.
C E . Vulliamy: James Boswell. London, 1932. ter Scott, por algumas amostras conhecidíssimas nas anto-
D. B. Wyndham Lewis: The Hooded Hawk or The Case of Mr. logias. E m geral, constituem o setor mais esquecido da
Boswell. London, 1946.
1322 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1323

história da poesia inglesa; e provavelmente nunca voltarão muito, mas j á c o n h e c e a melancolia das ruínas góticas. É
a ser lidos. Mas exprimem uma parcela da alma inglesa, o canto de c i s n e da v e l h a Inglaterra patriarcal. Contudo,
e a leitura paciente revela grande diversidade de menta- a poesia de u m S h e n s t o n e e a de u m Jago n ã o se continua
lidades e atitudes atrás da monotonia do couplet rimado. na poesia pré-romântica, da qual esses companheiros de
Matthew Green ( 2 7 ), o cantor do spleen, é um sectário que geração de J o h n s o n j á são contemporâneos; continuar-se-á
se tornou livre-pensador, epicureu à maneira do "Pensero- — e isso é destino digno da poesia "prosaica" do classicismo
so" de Milton, melancólico e divertido — um "metaphysi- — na prosa clássica dos conservadores Burke e Walter
cal" atrasado. Akenside ( 2 8 ), rico em versos espirituosos Scott, e na poesia satírica do "Anti-Jacobino" Canning.
e citáveis, é retórico demais para o nosso gosto; recente- Quer dizer, ao racionalismo da Ilustração corresponde
uma poesia de estilo reacionário, e neste sentido Johnson
mente apreciam-se de novo os seus acessos de entusiasmo
não é um anacronismo: entendeu bem a significação revo-
shaftesburiano. Shenstone ( , e ) , outrora famoso pelas pom-
lucionária do pré-romantismo e pretendeu opor-se-lhe. É
posas odes pindáricas, foi um apreciável poeta elegíaco e
antes um precursor do conservantismo inglês de 1800; a
teria sido, em outra época, um grande idilista. The School-
Inglaterra, protegida pela sua situação insular, só então
mistress antecipa Goldsmith, e os versos comoventes Writ- sentiu o perigo. No Continente, havia anteriormente e
ten at an Inn at Henley, que constam de todas as antologias, haverá depois alguns classicístas reacionários assim, iso-
têm algo de Wordsworth. Shenstone, amante da poesia lados como em linhas no mar da excitação revolucionária.
popular, é um pré-romântico. E o mesmo se pode dizer O francês Gilbèrt ( 31 ) foi uma dessas exceções; pobre boé-
de Richard Jago ( 3 0 ), pobre vigário em Warwickshire: os mio, cristão devoto em meio dos philosophes da Encyclo-
seus versos classicístas respiram a atmosfera da paisagem pédie, satirista epigramático, um malogrado Pope francês.
inglesa. Jago cansa pelas descrições minuciosas e moraliza Portugal, país política e literariamente atrasado, perma-
necerá uma ilha assim durante muito tempo; viverá até
depois da Revolução de Julho o padre José Agostinho de
Macedo ( 3 2 ), lembrando Johnson pela obstinação em fazer
27) Matthew Green, 1696-1737.
The Grotto (1733); The Spleen (1737). poesia classicista — os seus poemas didáticos são melhores
Edição por R. K. Wood, London, 1925. do que a sua fama — e pelo desrespeito à poesia nacional
28) Mark Akenside, 1721-1770.
The Pleasures of Jmagination (1740).
Edições por G. Gilfillan, Edinburg, 1857, e por A. Dyce, London,
1894. 31) Nicolas-Joseph-Laurent Gllbert, 1751-1780.
Oh. T. Houpt: Mark Akenside, a Biographical and Criticai Study. Ode sur le jugement dernier (1773); Le XVIIImg Siècle (1775);
Philadelphia. 1945. Ode tmitée de plusieurs psaumes (1780).
Edição de poesias escolhidas por P. Perret, Paris, 1882.
29) William Shenstone, 1714-1763. A. Laffay: Le poete Gilbert, elude biographique et littéraire..
Poems upon Various Occasions (1737); The Schoolmistress (1742); Paris, 1898.
Pastoral Ballad (1755); Works (1764).
Edição por G. Gilfillan, Edinburg, 1854. 32) José Agostinho de Macedo, 1761-1831.
A. R. Humphreys: William Shenstone. London, 1937. O Oriente (1814); Newton (1815); Os burros (1827), etc., etc.
Cast. Branco Chaves: "José Agostinho de Macedo". (In: Estudos
30) Richard Jago, 1715-1781. Críticos. Coimbra, 1932.)
Edge-Hill or the Rural Prospect Delineated and Moralized (1767). Cari. Olavo: A Vida Turbulenta do Padre José Agostinho de Ma-
C. H. Poole: Warwickshire Poeta. London, 1914. cedo. Lisboa, 1939.
1324 OTTO MARIA CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1325

a n t i g a ; e ainda p e l a s a t i t u d e s d e b o é m i o m e i o v a g a b u n d o comédia, para a qual o g r a n d e zombador não revelou talento


e de violento panfletista reacionário. O fato mais curioso — faltava-lhe o amor cervantino para criar personagens
é q u e esses católicos a n t i v o l t a i r i a n o s a d m i t e m , e m m a t é r i a cómicos. No r e s t o , conseguiu iluminar todos os assuntos,
l i t e r á r i a , u m só d e u s e m o d e l o : V o l t a i r e . E m V o l t a i r e , a até os mais rebeldes, pela sua inteligência extraordinária.
forma reacionária é menos significativa porém mais carac- A própria epopeia, a Henriade, perfeitamente ilegível hoje
t e r í s t i c a d o que o c o n t e ú d o s u b v e r s i v o . A s á t i r a s u b v e r s i v a em virtude da mistura incoerente de símbolos cristãos e
d e S w i f t e o classicismo d o u t r i n á r i o d e J o h n s o n , u n i d o s intenções deístas, é melhor do que a fama que deixou;
p e l a p o e s i a d e P o p e — eis V o l t a i r e . O " d e s a c o r d o equi- surpreende a força de certas passagens, sobretudo das "pa-
l i b r a d o p e l a i n t e l i g ê n c i a " d á a s í n t e s e d o c l a s s i c i s m o da trióticas", sublimidade falsa e monótona. Voltaire não era
Ilustração. poeta autêntico, nem sequer poeta satírico: a epopeia he-
róico-burlesca Pucelle d'Orléans tem mais espírito do que
Voltaire (s3) cultivou todos os géneros, e todos com
graça e nada d a força dos satiristas ingleses. Mas êle do-
sucesso, menos a grande epopeia, cujo t e m p o passara, e a
mina magistralmente os géneros menores da poesia — o
epigrama, os "vers de société", o poema didático. Em tudo
o que disse há certo lirismo leve, um perfume como do tem-
33) Françols-Marie Arouet, dit Voltaire, 1694-1778. (Cf. "O Neo-
barroco", nota 112.) po entre W a t t e a u e Mozart, crepúsculo suave da época aris-
Epopeia: Henriade (1723/1728); epopeia herói-cómica: La Pucelle tocrática. Até no pessimismo arrasador dos romances satí-
d'Orléans (1755/1771).
Poesia: Epxtre à Uranie (1722); A Afile. Lecouvreur (1729); A ricos, em Zadig, Micromegas, e sobretudo em Candide,
Mme. du Chàtelet (1733); Epitre sur la philosophie de Newton existe algo da ironia poética dos ingleses, se bem que atrás
(1736); Le Mondain (1736); Discours en vers sur VHomme (1737);
Au roi de Prusse (1740); Poème de Fontenay (1745); La loi natu-
rélle (1756); Poème sur le desastre de Lisbonne (1756>; A Mlle.
Clairon (1765); A Horace (1772); numerosas odes, epístolas, epi-
gramas, etc. de Boulainvilliers (1767), etc, etc. Correspondence (mais de
Tragédias: Oedipe (1718); Marianne (1724); Brutus (1730); Zaire 10 000 cartas).
(1732); Adelaide du Guesclin (1734); La mort de César (1735); Edições das obras completas por P . C. de Beaumarchais (edição
Alzire (1736); Le janatisme ou Mahomet (1741); Mérope (1743); de Kehl), 70 vols., 1784/1787, e por L. Moland, 52 vols., Paris,
Sémiramis (1748); Oreste (1749); Rome sauvée (1752); UOrphelin 1877/1883.
Correspondência: primeira edição completa por T h . Besterman
de la Chine (1755); Tancrède (1760); Octave et le jeune Pompée (60 vols. previstos), 1953 seg.
(1767); Les Guèbres (1769); Les lois de Minos (1733); Irene G. Desnoireterres: Voltaire et la société au XVIHe siècle. 8 vols.
(1778). Paris, 1867/1876.
Comédias: Uenfant prodigue (1736); La prude (1740); Nanine J. Morley: Voltaire. London, 1874.
ou Le préjugé vaincu (1749); UÊcossaise (1760). E. Deschanel: Le théâtre de Voltaire. Paris, 1886.
Romances e contos: Zadig (1747); Memnon (1750); Micromegas E. Champion: Voltaire, études critiques. Paris, 1892.
(1752); Candide ou 1'Optimisme (1759); Ulngénu (1767); Uhomme E. Faguet: Voltaire. Paris, 1895.
aux quarante écus (1768); La princesse de Babylone (1768). L. Crouslé: La vie et les oeuvres de Voltaire. Paris, 1899.
Obras historiográficas: Histoire de Charles XII (1731); Le siècle G. Lanson: Voltaire. Paris, 1906.
de Louis XIV (1751); Essai sur les moeurs et 1'esprit des nations G. Brandes: Voltaire, 2 vols. Kjoebenhavn, 1916/1917.
(1756); Histoire de la Russie sous Pierre le Grand (1763). J. M. Robertson: Voltaire. London, 1922.
Panfletos, crítica e t c : Essai sur la poésie épique (1728); Le tem- A. Bellessort: Essai sur Voltaire. Paris, 1926.
ple du goút (1733); Remarques sur les Pensées de M. Pascal N. L. Torrey: Voltaire and the Enlightenment. New York, 1931.
(1734); Lettres philosophiques ou lettres sur les Anglais (1734); E. Faguet: Histoire de la poésie française de la Renaissance au
Êléments de la philosophie de Newton (1738); Extrait des senti- Romantisme. Vol. ^ H . Paris, 1934.
ments de Jean Meslier (1762); Traitè sur la Tolérance (1763); R. Naves: Le goút de Voltaire. Paris, 1938.
Dictionnaire philosophique portátil (1764); Le dlner du comte J. O. Wade: Studies on Voltaire. Princeton, 1947.
1326 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1327

de um estilo muito diferente, estilo lúcido, que é a essência * Assim como Pope, Voltaire mal pode ser apreciado
da sua literatura, sobrevivendo aos géneros que êle cultivou como poeta depois de termos passado pelo subjetivismo
e à sua ideologia de burguês abastado e céptico. Voltaire romântico e p e l o fart pour 1'art simbolista. A sua poesia
pode contradizer-se mil vezes; a unidade da sua obra imensa é mero instrumento de u m homem de ação. A sua obra de
e multiforme é garantida pela permanência do estilo, per- maior importância histórica — as Lettres philosophiques
sonalíssimo sem profundidade, claro e irónico e seco. É a ou Lettres sur les Anglais, que abriram o horizonte fechado
arte da inteligência pura, sem emoção íntima, algo opor- do classicismo francês, introduzindo na França as contro-
tunista e daí sem coerência ideológica nas atitudes literá- vérsias religiosas e sociais dos ingleses — é uma obra de
rias. Nada mais inexato do que a definição de Voltaire, ação social; 30 anos mais tarde, o Dictionnaire phiíosophi-
proposta por F a g u e t : " . . . . un chãos d'idées claires". Vol- que continua da mesma maneira; e os inúmeros panfletos
taire parece-se com Pope e todo o classicismo inglês, pela da velhice constituem a ação eficiente de um jornalista
arte de construir simetrias perfeitas de materiais incoeren- sem par. Séculos futuros compararão provavelmente Freud
tes, de ideias vagas que não se deu o trabalho de analisar a Voltaire, o lutador pela tolerância sexual ao lutador pela
a fundo. A obra de Voltaire é, por assim dizer, um Cosmos tolerância religiosa; assim como muitas coisas que antes
de ideias obscuras. Daí a razão pela qual quase todas as de Freud só era possível cochichar se dizem agora franca-
suas obras sucumbiram ao tempo, tornando-se ilegíveis; mente, assim Voltaire abriu também a boca à humanidade.
mas a obra, como conjunto, permanece, constituindo o maior • Sobretudo os romances e contos satíricos constituem ver-
monumento literário do século X V I I I . dadeiros breviários, menos do livre-pensamento do que do
pensamento livre. Voltaire pode ter errado inúmeras vezes,
"Whatever Is, Is Right." Voltaire vive pela sua enorme pode ter tratado da maneira mais superficial ou frívola os
importância histórica, já passada, e que é preciso explicar assuntos mais sérios — a humanidade deve-lhe a liber-
estilística e sociologicamente. Os géneros que Voltaire dade de poder tratar esses assuntos como cada um entende,
cultivou morreram; a ideologia que professou está aban- conforme a sua capacidade de raciocinar. Outros criaram
donada; as ideias pelas quais se bateu, a tolerância religiosa, a liberdade de procurar a verdade; Voltaire criou a liber-
o bom-senso filosófico, o pacifismo, tornaram-se lugares- dade de errar, talvez a mais preciosa de todas. O seu sorriso
comuns. O que permanece é a versão eficiente que deu a malicioso matou onde o dogmatismo matara. Justamente
certas opiniões, suas ou alheias. Voltaire é em toda a lite- os muitos lugares-comuns bem estilizados de Voltaire nos
ratura francesa a mina mais rica de epigramas, aforismas, lembram a frase de Renan sobre aquele estúpido livre-pen-
chistes, ditos — é o maior daqueles diseurs de bon-mots sador, personagem de Flaubert: " C e s t M. Homais qui a
que Pascal condenara. Escrevendo, não é capaz de supri- raison. Sans M. Homais nous serions tous brulés vifs."
mir um bon-mot que lhe ocorra, seja injusto, embora; o
estilo do qual é dono, acaba dominando-o. Voltaire é um M. Homais era voltairiano. Mas Voltaire não é um M.
estilista. Adotou as convenções do classicismo razoável, Homais. E n t r e o personagem de Flaubert e o autor de
porque lhe permitiram estilizar a Razão, tornar eficiente Candide há precisamente a diferença que existe entre a
a expressão das ideias. Voltaire é um escritor intencional. imbecilidade a inteligência. Depois, a diferença entre os
A sua obra inteira serve às suas tendências. É o maior estilos de viver de dois séculos: entre o estilo cinzento
"instrumentalista" da literatura universal. da época burguesa e os délices pitorescos do Rococó. Por

l
1328 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1329

isso, um é farmacêutico e o outro um grande artista. Vol- considera mais útil saber inglês do que grego; desconfia
taire, burguês de Paris em todos os seus hábitos de pensar, do reacionarismo dos scholais universitários. Até nisso,
é aristocrata pelos instintos artísticos. Representa uma Voltaire não é um Homais, um supersticioso das ciências
burguesia quase nobre, admitida nos salões porque é capaz positivas; o seu anti-humanismo também tem raízes barro-
de participar da "conspicuous consumption" do século e cas. É discípulo dos jesuítas, pelos quais guardou sempre
sabe fazê-lo com espírito e com graça. Voltaire não é um certa ternura, defendendo-os contra o rigorismo dos jan-
nouveau-riche moderno nem um bourgeois-gentilhomme senistas; contra Pascal, o anti jesuíta por excelência, Vol-
barroco; é grande-burguês de uma estirpe muito especial, taire sentiu a mais viva aversão, ao passo que a atitude
de uma época anterior àquela em que "grande-burguês" de uma Mariana lhe inspirou simpatia. Existe uma filiação
significa grande industrial ou grande capitalista. Parece-se entre o autor do Ingeriu e Baltasar Gracián. Com jesuítas
um pouco, pelos negócios financeiros e pelas preferências aprendeu Voltaire a apreciação puramente estilística dos
literárias, aos Pirckheimer e Amerbach da Renascença ale- antigos e o uso "instrumentalista" da literatura para fins
mã, comerciantes cultíssimos, e a sua corte literária em tendenciosos, sobretudo no teatro.
Ferney lembra, muito de longe, a corte dos Medíeis; apenas Aos contemporâneos de Voltaire e a êle mesmo, o seu
com a diferença de que Voltaire não revela simpatias pelo teatro parecia um cume da a r t e ; hoje, as tragédias de Vol-
humanismo nem compreensão da Antiguidade. Voltaire ••, taire já não se representam, já não se lêem; mas um esque-
é o Colbert da literatura. É, sociologicamente, um grande- cimento tão completo não deixa de ser algo injusto. Merope
burguês de estilo barroco; imita, com felicidade, o modo e La Rome sauvée são peças bem construídas; nem a Zaire
de andar da aristocracia. Por isso, o grande liberal cultiva nem a Alzire é possível negar a poesia dos efeitos cénicos;
um liberalismo da elite, desconfia das expressões plebeias e Brandes chamou a atenção para UOrphelin de la Chine,
na literatura e na política. Mas é independente. Fazendo expressão suprema das simpatias do século X V I I I pela
negócios de banqueiro e especulador, Voltaire resolveu, China, país "razoável", sem superstições e cheio de gene-
para si pessoalmente, o problema que Dryden, Pope e rosidade filantrópica. Em geral, porém, o teatro de Voltaire
Johnson não resolveram por completo. A essa situação merece a sua fama. Aborrece-nos o uso da mitologia grega
privilegiada — trata-se de privilégios aristocráticos de um e do metro de Racine para afirmar que
burguês — deve Voltaire a independência do seu pensa-
mento e a liberdade de expressão. Pensar e falar assim
"Nos prêtres ne sont pas ce qu'un vain peuplt
e não derrubar, no entanto, a situação social que conseguira,
pense;
só era possível dentro dessa sociedade meio aristocrática,
Notre crédulité fait tout le"ur science."
meio burguesa, dentro da pseudomorfose do classicismo
francês, prolongada durante todo o século X V I I I ; e esse
O dramaturgo Voltaire é um jornalista tendencioso, ser-
estilo é a única tradição que Voltaire nunca atacou nem
vindo-se de uma extrema habilidade para acumular efeitos
traiu.
cénicos a fim de transformar o palco em tribuna e púlpito
Do espírito da Antiguidade está esse classicismo mais do liberalismo; teatro jesuítico às avessas. A lógica e a
longe do que qualquer outro estilo. Com efeito, Voltaire psicologia dramatúrgicas não o preocupam; o efeito é tudo.
não é humanista; participa da mentalidade burguesa que Daí as complicações "românticas" e melodramáticas, pelas
1330 OTTO M A R I A CARPEAUX
H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1331

quais pretendeu "melhorar" a tragédia raciniana, fazendo,


lingbroke: p r e t e n d e tirar d a história lições para se livrar
na verdade, libretos de ópera sem música, sem verdadeira
do peso das tradições históricas. No fundo, esse conceito
poesia. Ao efeito também servem as famosas "inovações"
moralizante e pragmatista da historiografia serve aos in-
de Voltaire que acreditava ter aprendido no teatro inglês:
tuitos pessoais de Voltaire: negando a tradição, pretende
os assuntos exóticos, os trajes e decorações historicamente
fazer esquecer a sua origem burguesa. Só assim pode co-
exatos e mais alguns artifícios da mise-en-scène. N a ver-
meçar um novo mundo.
dade, a diversidade dos enredos e aqueles efeitos têm outra
Na apreciação desse futuro, Voltaire justifica aquela
fonte: o teatro jesuítico, que Voltaire conheceu nos seus
frase: " un chãos (Tidéees claires." Tem razão em todos
tempos de colégio. Com os jesuítas também aprendeu o
os detalhes, e não tem razão no conjunto. O pessimismo"
uso do teatro para fins moralizantes, se bem que a sua
de Voltaire, herança do Barroco, viu na história apenas
"moral" fosse diferente: já antecipa a thèse do drama
"le tableau des crimes et des malheurs"; o otimismo de
burguês. O duplo anacronismo do teatro voltairiano reside
Leibniz e Pope ensinou-lhe que "le présent accouche de
na deformação racionalista dos assuntos históricos, e, por
1'avenir". Pretendeu "écraser rinfâme", mas esse porta-
outro lado, na antecipação do teatro burguês do século
voz maior do anticlericalismo francês não acreditava na
X I X — Augier e Dumas Filho traduzirão a linguagem
possibilidade d e extirpar o mal; e a última conclusão do
dramatúrgica de Voltaire para a prosa do juste-milieu.
seu pessimismo é a expressão perfeita de um outro ideal
Voltaire, antecipando-se anacreônticamente ao seu tempo e
francês, mais modesto: " . . . . mais il faut cultiver son jar-
ao seu próprio estilo, terminou a obra de Dryden: destruiu,
din". O "presente accouche" nos versos
agindo por dentro, a tragédia clássica, criando as conven-
ções do teatro moderno; mas o anacronismo classicista da
sua forma assegurou-lhe o fim ambicionado, o sucesso con- "Si 1'homme est créé libre, il doit se gouverner;
temporâneo, embora não fosse sucesso permanente. Si 1'homme a des tyrans, il les doit détrôner."

"Anacronismo" é a palavra-chave da obra de Voltaire.


não é mais do que versificação trivial dos exercícios de
Mas esta palavra nem sempre significa uma censura. Gran-
retórica in tyrannos, no colégio dos jesuítas. No mesmo
de literatura é sempre anacrónica. O anacronismo pode
colégio aprendeu Voltaire que "certes erreurs sont réser-
servir até à literatura historiográfica, porque não é possível
vées aux philosophes, d'autres au peuple"; e o profeta das
compreender épocas remotas sem certas deformações da
"semences d'une révolution qui arrivera immanquablement"
"verdade" dos documentos. Voltaire, como historiógrafo,
("Les jeunes gens son bien hereux;.ils verront de belles
documentou-se bem. Preconceitos veementes impediram-
choses", diz Voltaire numa carta de 1764) tinha bastante
lhe a compreensão da Idade Média; mas sem preconceitos
"espírito de elite" para escrever dois anos depois: "II est
ter-se-ia perdido no relativismo, teria sido incapaz de acei-
à propôs que le peuple soit guidé et non pas qu'il soit
tar a época de Luís XIV, teria sido incapaz da construção
instruit." Os padres Tournemine e Porée teriam reconhe-
imponente do Essai sur les moeurs et Vesprit des nations,
cido, nesta frase, o aluno. Voltaire é prudente, um "grande-
o primeiro esboço de uma verdadeira história universal
burguês" prudente. ( Muito do que parece superficialidade
da civilização. O anacronismo da historiografia de Voltaire
é reserva intencional — mais um aspecto do seu instru-
não é casual. Na aparência obedece aos conselhos de Bo-
mentalismo pelo qual êle é o antípoda de Pascal. Voltaire,
H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1333
1332 OTTO M A R I A CARPEAUX

discípulo indireto do maquiavelismo pragmatista de Gra- tori. embora antimarinista, aparecem veleidades heréticas,
cián, é discípulo direto do empirismo de Locke. Os "es- que se acentuam na estética de Gravina ( 8 4 ) : este con-
paces infinis" da ciência não o assustam, mas parecem-lhe terrâneo de Campanella e contemporâneo de Viço antecipa
símbolos do progresso infinito. Influenciou-o sobretudo o certos conceitos pré-românticos; mas Gravina também é,
pragmatismo dos ingleses — a filosofia burguesa. Até os afinal, o legislador d a Arcádia, e quem lhe realizou os
efeitos cénicos do seu teatro exprimem a vontade de agir ideais literários foi Metastásio. A Itália de Maffei, Gol-
com prudência e eficiência. Nenhum outro escritor do doni e Parini não deixará de ser classicista, se bem que
século X V I I I foi tão capaz de transfigurar em expressões com espírito burguês muito marcado. O legislador poético
artísticas o espírito prático, antiartístico, da classe em as- da Espanha burbônica, Ignacio de Luzán ( a o ), tampouco
censão ; mas Voltaire pertenceu só pela metade a essa classe. renegou de t o d o as tradições nacionais; está mais do lado
A burguesia francesa não tem as mesmas origens espiri- de Muratori q u e do de Boileau, e o seu liberalismo estético
tuais da anglo-saxônica; era meio jesuítica, meio janse- criou um ambiente favorável à crítica de Feijóo e à rápida
nista, em todo o caso meio barroca. Em virtude das origens evolução de sentimentos pré-românticos na Arcádia espa-
barrocas da sua situação de "grande-burguês", Voltaire foi nhola. Ao lado da tragédia classicista de Montiano, Nico-
capaz de adaptar aos novos fins o estilo do passado, de- lás Fernández de Moratín e Garcia de la Huerta, aparece
teriorando-o, mas agradando a todos. Não estava bem a comédia burguesa de Leandro Fernández de Moratín, e
consciente dessa situação; mas no reino das construções o sucessor espanhol de Metastásio já se chama Meléndez
conscientes, se bem que artificiais, a sua inteligência triun- Valdês.
fou. Construiu, de "idées peu claires", um "cosmos", a As nações germânicas e eslavas aceitaram com maior
expressão completa da sua época. Para nós, hoje, a sua facilidade o classicismo voltairiano; faltavam-lhes ou es-
obra em conjunto já não existe. Morreu para sempre o tavam interrompidas as tradições nacionais; e em alguns
antipascaliano Voltaire; mas vive para sempre Candide, o casos parecia a imitação francesa o caminho indicado para
pessimista mais inteligente de todos os tempos. E por que revivificar literaturas sonolentas ou criar literaturas novas.
vive Candide? Porque as maldades e imbecilidades que lhe O afrancesamento mais rápido deu-se na Holanda, onde
encheram o mundo, ainda não desapareceram de todo. Cer- o "humanismo barroco" de um Hooft e um Vondel prepa-
tas reivindicações, muito razoáveis, de Voltaire são hoje_ rara os caminhos do classicismo; a estagnação política,
tão atuais como em 1759. Não adianta negar a atualidade
de Voltaire, porque o seu Universo literário seria minús-
culo, um palácio de paredes de vidro, habitado por esta- 34) Gian Vincenzo Gravina, 1664-1718. tOf. "O Pré-romantismo",
nota 133.)
tuetas de porcelana ao gosto do Rococó — o palacete de Delia ragion poética (1708).
Ferney estava iluminado por uma luz intensa, de lugares- Edição por G. Natali. Lanciano, 1920.
F. Moffa: Gian Vincenzo Gravina. Napoll, 1907.
comuns imortais, que ainda não se apagou. G. Natali: Gian Vincenzo Gravina, letterato. Mllano, 1920.
35) Ignacio de Luzán, 1702-1754.
Com Voltaire, não com Racine ou Boileau, venceu o La Poética o regias de la poesia en general y de sus principales
classicismo na Europa inteira. Houve resistência, no início, espécies (1737).
M. Menéndez y Pelayo: Historia de las ideas estéticas en Espana.
quase só na Itália, onde não foi fácil reconciliar a herança Vol. m / t . I. Madrid, 1891.
humanista com as regras francesas. Na estética de Mura- J. Lano: La poética de Luzán. Toronto, 1928.
1334 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1335

acompanhada de prosperidade económica permanente, é o landa foi a vitória do classicismo na Polónia, país muito
fundamento da chamada "pruikentijd", "época das peru- afrancesado, o n d e Stanislaw Konarski, tradutor de Corneil-
cas", na qual as forças populares da nação se afrouxaram le, precedeu o bispo voltairiano Krasicki e tragediógrafo
e os burgueses vestiram as perucas da corte de Versailles. Felinski; a Zofiowka, de Stanislaw Trembecki, (1723-1812)
Andries Pels, poeta horaciano que morreu em 1681, já tivera é, aliás, um dos melhores poemas descritivos naquele estilo.
oportunidade de traduzir a Art poétique de Boileau, recém- Na Rússia, enfim, o classicismo voltairiano significa o co-
publicada. O século X V I I I holandês foi representado por meço da literatura nacional. Vassili Kirillovitch Tredia-
classicistas como Feitama e os irmãos Van Haren. Ainda kovski (1703-1761), tradutor de Boileau e Fénelon e autor
no começo do século XIX, Bilderdijk, por ser classicista de uma Telemaqueide horrível, é o criador do verso russo; a
ortodoxo, será festejado como "o maior poeta holandês", prioridade cronológica cabe a ele, e não a Lomonossov (ut>),
opinião esquisita que ainda se encontra em manuais escritos que é, no entanto, o primeiro génio da literatura russa:
por estrangeiros. A Holanda será um dos últimos países plebeu, teve carreira vertiginosa, poeta, historiador, filó-
europeus a abrir as portas ao romantismo. Em nenhum logo, cientista cujos conhecimentos enciclopédicos cons-
país germânico, exceptuada a Inglaterra, a civilização es- tituíam uma Academia inteira, Lomonossov realizou o mila-
tava tão fortemente latinizada. Na Escandinávia, o classi- gre de vivificar a ode no estilo de Boileau, tornando-a vaso
cismo entrou sem encontrar resistência, quando o marinis- de emoções profundas, de autêntica dignidade nacional,
mo, depois de ter abolido a tradição nacional, se esgotara. de sentimento da natureza e angústia religiosa. Puchkin,
Em 1721, o sueco Samuel Triewald fêz a primeira tradução que tinha penetrante senso crítico, reconheceu em Lomo-
de Boileau; e Dalin ( s e ) juntou às formas classicistas a nossov o seu predecessor imediato, e a crítica moderna
propaganda do voltairianismo. A intervenção do rei Gus- considera-o como uma das maiores expressões poéticas da
taf I I I , criando no alto Norte uma Arcádia voltairiana, alma russa. Em compensação, Puchkin desprezou o então
transformou o classicismo sueco quase em arte nacional; famoso Derchavin ( 3 8 " A ), cuja ode Deus figurava em todas
o próprio rei colaborou com Kellgren em tragédias clas- as antologias escolares da época tzarista; contudo, os sim-
sicistas. ( 87 ) Na Dinamarca, o atraso político impediu evo-
lução semelhante, não obstante o classicismo molièriano
de Holberg, que era menos voltairiano do que partidário
38) Michail Vassilievitch Lomonossov, 1711-1755.
de Bayle; a aliança entre classicismo e radicalismo político, Meditação Noturna sobre a Majestade de Deus, a propósito da
à maneira de Gustaf I I I , encarnou-se na Dinamarca na Aurora Boreal (1743); Ode sobre a Coroação da Imperatriz Isabel
(1747), etc.
pessoa do ministro Struensee, alemão de nascimento, e o Edição por M. I. Suchomlinov, 5 vols., Pétersburg, 1891/1902.
resultado foi uma reação nacional e tradicionalista. Brun, M. S. Menchutkin: Michail Vassilievitch Lomonossov. 4.* ed.
Pétersburg, 1912.
tragediógrafo voltairiano, aliás natural da Noruega, foi A. Martel: Michel Lomonossov et la langue Uttéraire russe.
esmagado pela sátira de Wessel, e o pietismo vencedor Paris, 1933.
aliou-se ao pré-romantismo. Tão duradoura como na Ho- 38A) Gabriel Romanovitch Derchavin, 1743-1816.
Odes (1776); Deus (1784); A Cachoeira (1791); etc.
Ediçáo da Academia Russa, 7 vote., Pétersburg, 1867/1888.
J. K. Grot: Derchavin. 2 vote. Pétersburg. 1888.
J. Tynyanov: "Â Ode Russa do Século XVIíi". (In: Arcaicos
36) Cf. nota 6. e Inovadores. Leningrad, 1929. Em russo.)
37) Cf. "O Neobarroco como base, etc", nota 34. V. F. Khodassevitch: Dershavin. Paris, 1931. Em russo.
1336 OTTO M A R I A CABPEAUX
H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1337

bolistas russos de 1900 preferiram a sua m ú s i c a verbal à francesa; t a m p o u c o lhe reconheceram os grandes méritos
retórica lomonossoviana. Derchavin converteu-se, aliás, pela purificação da l í n g u a e u m conceito m a i s d i g n o da
mais tarde, ao ossianismo. E m toda a parte, o classicismo literatura. Mas c o m o pioneiro, c o m o reformador literário,
foi derrubado pelo pré-romantismo i n g l ê s o u então p e l o Gottsched s i t u a - s e ao lado de O p t i z e até de L u t e r o . A t é
romantismo dos alemães. hoje se e s c r e v e em alemão como êle escreveu. Mas isso
N a Alemanha, a influência francesa c h e g o u a criar um s e refere apenas às formas gramaticais. O classicismo fran-
caso nacional: depois de um m o m e n t o de vitória absoluta, c ê s era r e a l m e n t e incompatível c o m o espírito alemão; a
s o f r e u o classicismo o s ataques mais duros, e dessa guerra ditadura de G o t t s c h e d f o i absoluta, mas efémera. Os con-
dos espíritos resultou a literatura alemã moderna ( 8 Ô ). O tra-ataques d o s suíços a n g l ó f i l o s Bodmer e Breitinger
Barroco não conseguira criar uma literatura nacional, culta não demoraram; e já p o u c o d e p o i s a crítica implacável de
e popular ao mesmo tempo. Por volta de 1680, justamente L e s s i n g se a p r o v e i t o u da incapacidade criadora de Gotts-
na época em que B a c h e H a e n d e l criarão a maior música ched e da e s t r e i t e z a d a sua estética para entregá-lo a
alemã, a literatura da nação entra numa fase de s i l ê n c i o escárnio e d e s p r e z o imerecidos. Gottsched exercera, n o
m i s t e r i o s o ( 3 9 " A ); durante vários decénios só há poetastros entanto, i n f l u ê n c i a profunda. E x p e r i m e n t o u a desgraça de
lamentáveis. A o s melhores espíritos da época afigurava-se haverem m o r r i d o antes do t e m p o os seus m e l h o r e s discí-
o classicismo francês como o ideal de uma autêntica cultura pulos, os t r a g e d i ó g r a f o s Cronegk e Brawe, e J o h a n n E l i a s
nacional, merecendo a imitação mais assídua. A o m e s m o Schlegel ( 4 1 ) , e x c e l e n t e comediógrafo e um d o s primeiros
tempo, o novo conteúdo desse estilo, o racionalismo, s i g n i - descobridores d e Shakespeare n o Continente. Partidários
ficava para os patriotas na Alemanha atrasadíssima uma d e Gottsched t a m b é m foram Gottlieb W i l h e l m Rabener,
grande esperança. Gottsched ( 4 0 ) , patriota sincero, pre- autor de sátiras espirituosas (Sammlung satirischer Sch-
tendeu estabelecer uma ditadura literária, à maneira de riften, 1751/1755), e sobretudo o famosíssimo fabulista
B o i l e a u , para exterminar o s resíduos barrocos e introduzir, Gellert. O classicismo triunfara n o s géneros menores. O
em formas francesas, o racionalismo da Ilustração. Este maior "classicista ilustrado" alemão, W i e l a n d , é um poeta
aspecto filosófico e social da atividade de Gottsched não menor.
foi devidamente apreciado p e l o s historiadores do s é c u l o
X I X , nacionalistas que detestavam qualquer influência O classicismo da Ilustração fracassou em toda a parte
n o s géneros já irremediavelmente c o n d e n a d o s ; a epopeia
e a tragédia heróica. E m compensação t r i u n f o u em dois
géneros menores, i g u a l m e n t e o b s o l e t o s : a fábula e a epo-
39) F . J. Schnelder: Die deutsche Dichtung vom Ausgang des Barock p e i a herói-cômica, que se prestaram melhor a v e í c u l o s do
bis zum Beginn des Klassizismus, 1700-1785. Stuttgart, 1924.
L. Reynaud: Histoire génerale de Vinjluence française en Alle-
magne. Paris, 1924.
39A) R. Benz: Deutsches Barock, Stuttgart, 1949.
40) Johann Chrlstoph Gottsched, 1700-1766. 41) Johann Elias 8chlegel, 1719-1749.
Versuch einer critischen Dichtkunst vor die Deutschen (1730); Tragédias: Hermann (1743); Canut (1747) .
Der sterbende Cato (1731); Grundlegung einer deutschen Sprach- Comédias: Die stumme Schoenheit (1747); Der Triumph der
kunst (1748); Noetiger Vorrat zur Geschichte der deutschen dra- guten Frauen (1748).
matischen Dichtkunst (1757/1765). R. Benz: Deutsches Barock. Stuttgart, 1949.
E. Reichel: Gottsched. 2 vols. Berlin, 1908/1912. E. M. Wilkinson: Johann Elias Schlegel. A German Pioneer in
Aesthetics. Oxford, 1945.
H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1339
1338 OTTO M A R I A CARPEAUX

pensamento racionalista. Pelo mesmo motivo, conseguiu-se A tragédia classicista tem outro ponto de partida: o
a transformação da comédia molièriana em género novo, Cato (1713), d e Addison, e a Merope (1713), de Maffei
a comédia burguesa de tendências críticas e até revolucio- — a coincidência cronológica não é mero acaso — são
nárias. Em geral, o panorama dessa literatura não é muito menos heróicos do que sentimentais; é o caminho do abur-
simpático. As mediocridades prevalecem. Mas até a enu- guesamento. Trata-se d e uma simplificação e humaniza-
meração seca dos fatos serve para demonstrar a unifor- ção, deliberadas, do teatro clássico-barroco. Tanto Cato
midade internacional do estilo, o último estilo europeu como Merope — peças pré-voltairianas — opõem-se à ópera
antes da desagregação nacionalista da Europa pela Revo- aristocrática. N a Inglaterra e na França, o resultado final
lução e pela contra-revolução romântica. dessas tentativas será o drama burguês de Lillo e de Di-
Quanto à epopeia, o sedutor foi Voltaire. Exceção é derot. Na Espanha, essa tendência encontrou-se com os re-
o Abraham de aartsvader (1726), do holandês Arnold síduos, ainda vivos, do teatro nacional, o que abriu possibili-
Hoogvliet, quase a única epopeia religiosa entre Milton dades a uma síntese entre a tradição e o gosto literário.
e Klopstock; mas não conta. Não compreendemos, hoje Surgiram primeiro os afrancesados "ortodoxos". A Vir-
em dia, o sucesso enorme da Henriade; mas o século X V I I I gínia (1750) e o Ataulio (1753), de Atigustín Montiano
acreditava ter encontrado na obra de Voltaire, a forma y Luyanda, q u e o próprio Lessing admirava, são fracas
adequada de uma epopeia nacional, "patriótica", "cristã" imitações do modelo voltairiano. Nicolás Fernández de
e "razoável" ao mesmo tempo. Não houve nação que não Moratín ( 4 2 ), autor de uma Lucrécia (1763) e Hormesinda
desejasse possuir apoteose assim. A Enriqueida (1741), do (1770), lutou em vão contra os embaraços da forma rígida;
português Francisco Xavier de Menezes, conde de Ericeira; nem o assunto nacional de Guzmán el Bueno (1777) o aju-
De Gevallen van Friso (1741), do holandês Willem van dou. A síntese foi tentada pelo dramaturgo fecundo Vi-
Haren, e os De Geuzen (1776), de seu irmão Onno Zwier cente Garcia de la Huerta ( 4 3 ), voltairiano ortodoxo e
van Haren; A guerra de Chotim (1780), do bispo polonês admirador de Calderón; a sua Raquel, tragédia imponente,
Ignat Krasicki — sempre é a mesma coisa: a monotonia reúne, com efeito, qualidades do teatro nacional espanhol
do estilo e da construção esquemática destrói as intenções com um rigor quase grego da forma, e não sem revelar
de tonificar o sentimento patriótico. Do modelo aproxima- certo sentimentalismo pré-romântico; a Raquel está digna-
se mais Svenska Friheten (1742), do sueco Olof von Dalin mente situada entre duas versões mais famosas do mesmo
— na aristocracia sueca estavam vivas certas tradições assunto, Las paces de los reyes, y Judia de Toledo, de
constitucionais — enquanto que Hermann oder Das befreyte Lope de Vega, e Die Juedin von Toledo, de Grillparzer.
Deutschland (1751), do gottschediano alemão Christian É, na Europa inteira, a melhor obra do estilo.
Otto von Schoenaich já atravessava a fronteira do humo-
rismo involuntário. Até o grande Lomonossov esboçou uma
Petreida; e a Rossiada (1779), de Michail Cheraskov, en-
42) Of. "O Neobarroco como Base, etc.", nota 16.

1
controu ainda leitores entre os personagens de Turgueniev. 43) Vicente Garcia de la Huerta, 1734-1787.
A intenção da epopeia classicista é evidentemente o culto Raquel (1778).
do Estado absolutista, do "absolutismo ilustrado", protetor Edição por E. Fernández Marquês.
do progresso burguês. Cí. E. Cotarelo: Iriarte y su época, Madrid, 1897, e o prólogo
1340 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA. LITERATURA OCIDENTAL 1341

O intuito de celebrar patriòticamente tradições nacio- cos e, imitando imediatamente Corneille e Racine, preparar
nais, vistas anacrônicamente através do absolutismo ilus- um autêntico t e a t r o b u r g u ê s ( 4 4 ), do qual a Merope, de
trado, aparece nos Herrmann (1743) e Canut (1747), de Maffei, fora o primeiro esboço. Martello ( 45 ) tornou-se
Johann Elias Schlegel, sendo a segunda tragédia inspirada notório pela introdução infeliz do verso alexandrino no
em tradições dinamarquesas, porque o alemão Schlegel era teatro italiano; foi imitador obstinado de Corneille, exceção
súdito do rei da Dinamarca; o século X V I I I ainda ignora rara no século X V I I I , raciniano. Interveio o sentimenta-
as bases étnicas, meta-políticas, da nacionalidade. O pa- lismo de Maffei, que influenciou, por sua vez, Voltaire.
triotismo de outros dramaturgos alemães da época veste-se Este sentimentalismo voltou para a Itália, aparecendo como
à antiga: o Codrus (1758), de Johann Friedrich von Cro- racinianismo em António Conti ( 4 6 ), tradutor da Athalie,
* le gk, gottschediano ao qual Lessing não recusou certa de acentos pré-românticos. Conti parece frio porque lhe
admiração; e o Brutus (1758), de J o h a n n Wilhelm von falta o subjetivismo do individualista Alfieri, em cuja obra
Brawe, que já adota o verso branco de Shakespeare. Do- a tragédia clássica, suprema expressão da pseudomorfose
mesmo modo, o Fabricius (1720), do holandês Sijbrand burguesa, saudará a Revolução da burguesia.
Feitama, e o Agon (1769), do seu patrício Onno Zwier
Na fábula, do século X V I I I , que já não é a poética
van Haren. Depois, o francês Pierre-Laurent Buyrette d e
de La Fontaine e sim uma lição moral versificada, nota-se
Belloy criou os modelos da "tragédia nacional": Le siège
tendência semelhante de evolução. No alemão Gellert ( 4 7 ),
de Calais (1765) e Gaston et Bayard (1771). Neste modelo
é moralizante, amavelmente espirituosa, bastante sentimen-
inspiram-se as tentativas do rei Gustaf I I I e do seu poeta
tal, já burguesa, destinada ao público dos "semanários
Kellgren de criar um teatro nacional sueco em alexandrinos,
morais"; introduzindo a língua coloquial na poesia alemã;
(Drottning Kristina, Gustaf Adolf, Gustaf Wasa och Ebba
Gellert tornou-se o autor mais lido da nação no século
Brahe); e o classicismo frio de Karl Gustaf Leopold, autor
X V I I I . Nas fábulas do espanhol Iriarte ( 48 ) aparece a
de Odin (1790) e de uma Virgínia (1803), sobreviverá mes-
mo à experiência política do rei. Na Dinamarca, a Zarine
(1772), do norueguês Johan Nordal Brun, teve sucesso 44) Ch. Dejob: La tragedie française en Italie et la tragedie ita-
efémero; sucumbiu logo à famosa paródia de Wessel. E lienne en France au XVIlie et XIXe siècles. Paris, 1886.
só os especialistas da literatura comparada conhecem de 45) Píer Jacopo Martello, 1665-1727.
Teatro (Alceste, Perselide, I Taimingi, etc; 1715).
nome a Barbara Radziwil (1811), do polonês Alois Felinski. M. Carmi: Píer Jacopo Martello. Firenze, 1906.
É um cemitério literário, não tão vasto, mas tão me- 46) António Conti, 1677-1749.
Quattro tragedie (Giulio Cesare, Giunio Bruto, Marco Bruto,
lancólico como o da epopeia heróica do Barroco, se bem Druso; 1751).
que por motivos contrários. A epopeia do século X V I I A. Zardo: Un trágico paãovano dei secolo scorso. Padova, 1884.
falhara como expressão do falso heroísmo de evasão de uma 47) Christlan Fuerchtegott Gellert, 1715-1789. (Cf. o "Pré-roman-
tismo", nota 85.)
aristocracia humilhada; a tragédia clássica falhou como Fabeln und Ezaehlungen (1746/1748); Das Leben der schwedis-
expressão de veleidades aristocráticas de uma burguesia chen Graefin von G. (1747/1748).
Edição por F. Behrend, 2 vols.. Berlin, 1910.
vencedora. Só na Itália existia uma burguesia não de G. Michael: Christian Fuerchtegott Gellert. Leipzig, 1917.
itouveaux-riches, mas de tradições respeitáveis; ali era até 48) Tomas de Iriarte, 1750-1791.
possível eliminar da tragédia voltairiana os resíduos barro- Fábulas literárias (1782).
E. Cotarelo: Iriarte y su época. Madrid, 1897.
1342 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1343

sátira, pouco mordaz, dirigida contra o mundo dos literatos mais esquisito que pareça, o mesmo da epopeia e tragédia
boémios, cuja existência é um sintoma da ascensão bur- heróicas: celebrar o E s t a d o "nacional" do absolutismo
guesa. Krylov ( 4 9 ), o "La Fontaine russo", que forneceu ilustrado, atacando-lhe satiricamente os inimigos "inter-
à língua mais citações correntes do que qualquer outro nacionalistas", os monges e a Igreja romana. O português
autor, não é nada lafontainiano; é um russo à antiga, gros- Dinis da Cruz e Silva ( B0 ) apoiou com o Hyssope a cam-
seiro, inculto, bem humorado, maledicente, empregando panha antieclesiástica d e Pombal. Na ocasião parecida da
expressões que esmagam. Não é nada revolucionário; o guerra do imperador austriaco José II contra os monges,
seu patriotismo russo revolta-se contra a europeização do Aloys Blumauer imitou as burlescas paródias francesas da
Império meio asiático, e neste sentido é precursor dos Aeneis (Abenteuer des frornmen Helden Aeneas, 1784). Até
eslavófilos. Mas o seu instinto poético é menos reacionário um bispo polonês, Ignat Kraisicki, se lembrou da Batra-
que o seu credo; os versos que diz o pássaro em uma das ehomyomachia homérica para zombar dos monges (Mona-
suas fábulas — chomachia, 1781). Tudo isso parece hoje mais inofensivo
do que foi naqueles dias. Discutível é, porém, a inocência
"Um grande segredo vou a vocês confiar: do Rape oí the Lock, de P o p e : o poema pode ser interpre-
Nas garras de um gato não é cómodo cantar.'* tado como glorificação cómica da vida ociosa e frívola do
"beau monde" inglês, mas também como sátira contra a futi-
— tornaram-se o lema da literatura russa do século X I X . lidade aristocrática do Rococó. Os imitadores preferiram a
Na epopeia herói-cômica do Barroco já havia os germes primeira interpretação; e talvez tenha nascido assim outro
da sátira religiosa e social: o antipuritanismo de Butler, quadro pitoresco e encantador da época das porcelanas,
o anticlericalismo de Forteguerri, a tendência antiaristo- como J3er Renommist (1744), do alemão J u s t u s Friedrich
crática de Tassoni. O século X V I I I começou atenuando. Wilhelm Zachariae, cenas humorísticas da vida dos estu-
E m lugar do antipuritanismo de Butler, a obscenidade dantes de Leipzig.
monótona da Pucelle d'Orléans, de Voltaire. Em vez do A transformação da epopeia herói-cômica em arma lite-
anticlericalismo furioso de Forteguerri, toma-se como mo- rária da luta de classes tem, no entanto, como ponto de
delo a ironia moderada do Lutrin, de Boileau; Gresset partida a variedade graciosa do género, e não o anticle-
o imitou em Vert-Vert. Mas já não se trata da indignação ricalismo de monges foragidos e magistrados galicanos.
de intelectuais contra padres intolerantes. O intuito da Para dar sentido social ao género do Rape of the Lock,
epopeia herói-cômica do século X V I I I é diferente; é, por foi preciso uma consciência social, inexistente no indivi-
dualista rancoroso Pope, mas viva na velha burguesia ita-
49) Ivan Andreievitch Krylov, 1768-1844. liana. Clima propício encontrou-se, na segunda metade do
Fábulas (1809/1811).
Edição crítica por V. V. Kallas, 4 vols.. Petersburg, 1904/1905.
J. Fleury: Krylov et ses fables. Paris 1869. 50) António Dinis da Cruz e Silva. 1731-1799.
W. R. Ralston: The Great Fabulist Krylov anã His Fables. 2.* O Hyssope (publ. 1802).
ed. London, 1871. Edição por J. Ramos Coelho, Lisboa, 1879.
J. I. Alchenwald: "Krylov". (In: Silhuetas Literárias Russas. K. Reinhardstoettner: "Der Hyssope des António Denlz In seinem
Vol. I. Berlln, 1923. Em nisso.) Verhaeltnls zu Boileau's Lutrin". (In: Aufsaetze und Abhandlun-
L. Archangelski: "A obra de Krylov". (In: Literaturi i marksism, f/en, vornehmlich zur Literaturgeschichte. Berlin, 1887.)
IV/V, 1930. Em russo.) T. Braga: A Arcádia Lusitana. Porto, 1899.
1344 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1345

século, na Lombardia, sob o regime suave e ilustrado dos fera de uma velha e fina civilização agonizante na qual
últimos Habsburgos. Vice-reis austríacos como o conde respira a alma nobre d e um grande poeta. Parini se carac-
Firmian promoveram reformas culturais e económicas de terizou a si mesmo, n a ode A la Musa:
toda a espécie, renovaram as Universidades, protegeram
os literatos, permitiram a importação do subversivo pensa- "Colui cui diede il ciei plácido senso
mento francês que tomou, entre os italianos, a feição do E p u r i affetti e semplice costume...
humanitarismo filantrópico. Quando Voltaire, por ocasião E cerca il vero; e il bello ama innocente;
do caso dos protestantes perseguidos, se bateu pela huma- E pasa 1'està sua tranquilla, il core
nização do direito penal, encontrou argumentos nos escritos Sano e la mente."
do seu admirador italiano Cesare Beccaria, no famoso livro
Dei delitti e delle pene (1764), em que se exigiu a abolição Era assim o velho padre, devoto sem superstição, erudito
da tortura e da pena capital. Beccaria pertenceu ao círculo sem arrogância, filantropo sem fraqueza; o último e o mais
de / / Caffè, revista de fins morais e científicos, principal nobre representante de uma Arcádia ideal. Mas já não
órgão da Ilustração na Itália. O seu editor Pietro Verri ( 5 1 ) brinca. É homem sério. J á pode também dizer, com cólera
foi o fundador da economia política moderna na Itália, digna de D a n t e :
partidário da nova psicologia inglesa, o primeiro historia-
dor crítico da cidade de Milão. Eis o ambiente de Parini.
"Me n o n nato a percotere
Mas não foi o ambiente racionalista que criou o poeta
Le dure illustri p o r t e ;
Parini ( 6 2 ) ; em torno da sua obra há outra aura, a atmos-
Nudo accorrà, ma libero,
II regno delia morte.
51) Pietro Verri, 1728-1797. No, ricchezza nè onore
II Caffè (1764/1766); Meditazione sulVeconomia politica (1771); Con frode o con viltà
Discorso sulVindole dei piacere e dei dolore (1773); Storia di
Milano (1783). II secol venditore
Edição do Caffè por L. Collino, Torlno, 1930. Mercar non mi vedrá."
A. Ottolini: Pietro Verri e i suoi tempi. Palermo, 1921.
N. Valeri: Pteíro Verri. Milano, 1937.
52) Giuseppe Parini, 1729-1799. E n t r e esses dois pólos está a poesia de Parini. Primeiro,
11 Oiorno (II Mattino, 1763; 11 Mezzogiorno, 1765; 11 Vespro, La é poeta lírico, não dos maiores, mas dos mais verdadeiros
Notte, 1801/1804); Odi (1780; 1801/1804).
Edição por G. Mazzonl, Firenze, 1925. do século. É classicista atenuado -à maneira do Rococó,
F. De Sanctis: "Giuseppe Parini". (In: Saggi critici, vol. m.) cheio de lugares-comuns: um horaciano como tantos ou-
G. Carducci: "Studi su Giuseppe Parini". (In: Opere, vols. XHI
XIV.) tros, prosaico e didático em odes como La salubrità de
F. Bellorlni: La vita e le opere di Giuseppe Parini. Llvorno, 1926. Varia, VEducazione, II Bisogno. De Horácio não tem
E. Bertana: Studi pariniani. Aquila, 1927.
P. Arcari: Parini. Milano, 1929. apenas o espírito e os metros, mas também a fina cultura,
D. Petrini: La poesia e 1'arte di Giuseppe Parini. Bari, 1930. o equilíbrio de um poeta de uma civilização elevada e
A. Momigliano: "Parini discusso". (In: Studi di Poesia, Bari,
1938). antiga; Parini é mais literato, mais artista, do que poeta.
M. Cilento: VArcádia in Parini. Messina, 1938. De Horácio tem também o ligeiro epicureísmo, atenuado
G. Natali: Giuseppe Parini, uomo e poeta. Bologna, 1952.
L. Caretti: Parini e la critica. Torino, 1953. pela consciência de sacerdote católico, embora meio rácio-
1346 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1347

nalista. Daí resulta uma profundidade do sentimento que o seu coração. Em Parini existe algo de um crepúsculo
o romano ignorava: em odes como "A Silvia", "II pericolo", melancólico m a s sem tristeza, algo da música meio sensual,
"La caduta" há uma sensualidade terna, acabando em me- meio celeste d e Mozart. E não se pode dizer coisa maior
lancolia comovida. Foi sempre o pobre padre, o preceptor sobre um poeta do Rococó nas vésperas da Revolução.
em casas aristocráticas, admirando de longe e sem esperança Dentro da literatura italiana, a poesia de Parini signi-
as senhoras da nobreza de Milão; relegado a segundo plano fica, pelo estilo autenticamente clássico e pela ideologia,
sem amargura, porque a grande força moral na sua alma unia renascença completa: uma nova dignidade viril após
o apoiava. Num mundo de efeminados, era o único homem; dois séculos de degradação moral. Alfieri, Foscolo, Monti
no ambiente de uma aristocracia degenerada, esse plebeu admiravam-no; Manzoni lhe deve algo do seu liberalismo
era o único verdadeiro aristocrata. católico; e Leopardi aprendeu em Parini o uso dos metros
À aristocracia decadente da Lombardia e da Europa clássicos. Dentro do panorama da literatura universal,
dedicou Parini o seu poema. II Giorno é a descrição épica Parini constitui o fim da evolução que começara com P o p e ;
de um dia, de um dia futilíssimo na vida de um "giovin ao mesmo tempo, II Giorno corresponde à carta que John-
signore", do "lever" até a noite no teatro. Muitos amores, son dirigiu a Lord Chesterfield. Foi, enfim, um homem
nenhum trabalho, tudo divertimento e tudo tédio, descrito independente, um verdadeiro intelectual, tão independente
com aquela ironia contínua, mantida, que é uma das coisas que nem podia conformar-se com a Revolução que profe-
mais difíceis em arte. O elemento burlesco do género tizara. Devia pensar assim, por ser italiano. Na verdade, a
desaparececeu de todo, em P a r i n i ; e a frivolidade elegante Revolução que desiludiu tantos entusiasmados da primeira
de Pope é substituída pelo sorriso, ora benevolente, ora hora, destruiu a vida aos numerosíssimos poetas, músicos,
quase cruel. Às vezes, as invenções graciosas de Parini coreógrafos, bailarinos, pintores, cantores italianos que vi-
chegam a ser símbolos assombrosos, como a descrição da veram em Madrid e Petersburgo, Londres, Viena e Esto-
madrugada que significa ao "giovin signore", o bocejo do colmo, parasitas da aristocracia; nos tumultos de rua de
tresnoitado, e ao homem do povo o despertar para o tra- Paris perderam a própria razão de ser da sua existência;
balho. As vezes, disfarça-se de ideia fantástica uma ameaça os plebeus da "Terreur" cantavam a Marselhesa em vez
tremenda: de árias e recitativos, e com a vitória da burguesia mudou
o gosto literário e musical. O porta-voz dessa desilusão é
o abade Giambattista Casti ( B S ): um padre desmoralizado
"Forse vero non è; ma un giorno è fama e intrigante, autor de óperas bufas chistosas e de Novelle
Che fur gli uomini eguali, e ignoti nomi galanti, obsceníssimas; sob todos os aspectos é o contrário
F u r Plebe e N o b i l t a d e . . . " de Parini. Mas Casti tinha o bom-senso italiano. Embora
cheio de indignação e desprezo pelos grandes senhores
Mas isso é raro em Parini. Não dissimula certa ternura
pelo seu herói futilíssimo. É muito feliz a expressão com
que De Sanctis definiu o Giorno: "A Geórgica da ocio-
53) Giambattista Casti, 1721-1803.
sidade." Parini não odiava a aristocracia; desdenhava-a Poema tártaro (1778); Novelle galanti (1793); OH animali par-
porque ela decaiu, levando consigo para o abismo a civi- lanti (1802); etc.
Edição dos Animali parlanti por T. Ruspantini, Roma, 1893.
lização aristocrática, à qual Parini estava ligado com todo C. Piermattei: Giambattista Casti. Torino, 1902.
1348 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1349

que o pagavam, desconfiava das reformas anticlericais do marquês, e, d e precocidade enorme, era, aos 10 anos de
imperador J o s é I I , advertindo-o a respeito, no Poema tár- idade, s u b o f i c i a l do e x é r c i t o e com 15 anos aluno da
taro, sátira d e mordacidade inédita. Passada a grande tem- Universidade e m Copenhague. F u g i u de casa, estudou em
pestade revolucionária, descreveu-a na epopeia burlesca L e y d e n e O x f o r d , foi preceptor em Leipzig, percorreu a
Gli animali parlanti, na qual o s b i c h o s de La F o n t a i n e França e a I t á l i a c o m o estudante-vagabundo, voltou para
representam as principais figuras da p o l í t i c a europeia. a Dinamarca, tornando-se b u r g u ê s abastado, professor e
E s s a alegoria é a última das epopeias herói-cômicas, e em reitor da U n i v e r s i d a d e ; foi nobilitado e, s e p u l t a d o na Ca-
certo sentido a maior de t o d a s : um v a s t o panorama da tedral d e S o r o e , ao l a d o dos arcebispos medievais, como
Europa pós-revolucionária, resumo das experiências de uma um santo da nação. É uma vida picaresca, mais do século
época passada; um epílogo de melancolia amarga, fim de X V I I do que d o X V I I I . E m certo sentido, H o l b e r g per-
u m v e l h o pecador, muito v e l h o e desesperado. maneceu s e m p r e h o m e m barroco, se bem que em trajes
A epopeia herói-cômica, na sua forma original, morreu rococó. A s u a crítica histórica — criou a historiografia
ainda no s é c u l o X V I I em que se criara o g é n e r o ; o s é c u l o dinamarquesa — e a sua audaciosa crítica religiosa, não
X V I I I adaptou-o para f i n s diferentes, e essa adaptação são v o l t a i r i a n a s ; baseiam-se antes no estudo do Dictionnai-
não foi, e m geral, bem s u c e d i d a : mera graça em Pope, re historique et critique, de B a y l e , seu livro de predileção,
burlesca em Voltaire, ao passo que as obras de Parini e em que aprendeu a esconder, atrás de m e d i t a ç õ e s morali-
Casti, e x p r e s s õ e s de burguês-humanista e de intelectual- zantes, alusões obscenas. A sua poesia didática — Moralske
plebeu, se afastam m u i t o do esquema. II Gioino e Gli Tanker e Epistler — t e m m u i t o de A d d i s o n , m e n o s o ideal
animali parlanti são obras sui generis. E s s e género barroco de gentleman cristão. N o latim de Erasmo, H o l b e r g es-
não se prestava b e m à expressão i d e o l ó g i c a da burguesia creveu um romance fantástico, Nicolan Klimii iter sub-
em a s c e n s ã o ; mas podia prestar-se a exprimir reivindica- terraneum, ao g o s t o barroco, situando-se entre Campanella,
ç õ e s populares, d e camadas baixas contra as n o v a s classes
d i r i g e n t e s . E s s a s reivindicações já apareceram, como sátira,
n o teatro: a Beggar's Opera, de Gay, é uma obra assim, e kandestoeber; Jeppe paa Bierget; Barselstuen; Den Stundesloese;
Erasmus Montanus; Jean de France; Pernilles korte Froeykens-
a s e u lado está só mais uma comédia do s é c u l o : Jeppe paa tand; Henrik og Pemille; Gert Westphaler; Don Ranudo de Coli-
Bierget, de H o l b e r g , que também escreve a única epopeia brados; Jacob von Tyboe; Diederich Menschenskraek; De Vsyn-
lige; Hexeri eller blind Allarm; Julestuen; Vlysses von Ithacia;
burlesca de i d e o l o g i a m e i o barroca, m e i o revolucionária: Det lykkelige Skibbrud.
o Peder Paars. Edições por J. Martensen, 12 vols., KJoebenhavn, 1807/1908, e por
C. 3 . Petersen, 20 vols., Kjoebenhavn, 1913/1938.
H o l b e r g ( 5 4 ) é uma das figuras mais interessantes d o R. Prutz: Ludvig Holberg, sein Leben und seine Schriften.
Btuttgart. 1857.
s é c u l o X V I I I . N a s c e u na N o r u e g a , então território dina- O. Skavlan: Holberg som Komediefor/atter. Oslo, 1872
J. Paludan: Om Holbergs Niels Klim. KJoebenhavn, 1878.
G. Brandes: Ludwig Holberg, et Festskrift. 2* ed. Kjoebenhavn,
1898.
54) Ludvig Holberg, 1684-1754. O. I. Campbell: The Comedies of Holberg. Cambridge, Mass.,
Peder Paars (1720); Satirer og Skjemtedigter (1722); Dantnarks 1914.
Historie (1732); Nicolai Klimii iter subterraneum (1741); J. Bing: Ludvig ^Holberg. KJoebenhavn, 1917.
Moraliske Tanker (1744); Epistler (1748/1754); etc. H. Brix: Ludivig Holberg. Kjoebenhavn, 1920.
Comédias, publicadas nas coleções Hans Mákkelsens Komedier H. Brix: Ludvig Holbergs, komedier. Kjoebenhavn, 1942.
(1723/1725) e Den danske Skueplads (1731/1754): Den politiske F. Boeoek: Holberg's visdom. Stockolm, 1942.
1350 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1351

Cyrano de Bergerac e Swift; a sátira "geográfica" de uma çado e encantador de miniaturas teatrais — só dois dos
viagem alegórica, zombando das diferentes nações euro- personagens típicos, o conservador mal-humorado Jeroni-
peias e de suas instituições, lembra recursos de Voltaire; mus e o raisonneur racionalista Leonard, lembram a Ilus-
mas baseia-se, no fundo, no ressentimento do "estudante- tração e as tendências radicais do autor.
errante" contra todas as ordens estabelecidas. O autor do Holberg ê tendencioso; um "instrumentalista". Do
Klim não está em casa em parte alguma, nem mesmo na palco, considerado como púlpito pretende ensinar, morali-
Dinamarca. As viagens da mocidade abriram-lhe os olhos zar, divulgar as ideias novas. Ainda assim, não dissimula
para ver a mesquinhez da vida pátria, o afrancesamento as origens barrocas da sua ideologia: Den politiske Kan-
ridículo dos costumes, o despotismo dos burocratas e ofi- destoeber, a famosa comédia de um picheleiro, apaixonado
ciais alemães, a hipocrisia luterana dos burgueses-comer- pela política, ao qual metem na cabeça que foi nomeado
ciantes, a situação lamentável do camponês-servo. E esta prefeito — é um assunto bem barroco, lembrando a separa-
última observação entra como novidade num poema de ção rigorosa das classes; também é barroco o desfecho, a
Holberg, moldado nas regras de Boileau, ridicularizando desilusão do pequeno-burguês que tem de voltar às suas
burlescamente a epopeia virgiliana: eis Peder Paars, a antigas ocupações; Holberg não é, no entanto, anacrónico.
história de um comerciante dinamarquês que naufragou O seu acentuado anti-humanismo é surpreendentemente
numa viagem costeira e encontrou na ilha de Anholt o moderno. O personagem mais ridículo em Erasmus Mon-
panorama "en miniature" da sociedade dinamarquesa. É tanus não é o sacristão supersticioso, que pretende negar
uma das sátiras mais maliciosas do século. as descobertas científicas, inclusive a cosmologia de Copér-
nico, mas o seu adversário, o jovem estudioso Rasmus,
Se os cidadãos de Anholt fossem transformados em
cheio de orgulho progressista e terrivelmente humilhado
bonecos e colocados num palco, eis o pessoal das comédias,
pelo bom-senso dos camponeses ignorantes; não é acaso
com as quais Holberg criou o teatro dinamarquês — palco
que o "herói" derrotado da comédia tem o nome do maior
pequeno, mas um teatro grande e de repercussão europeia.
dos humoristas. Ulysses vort Ithacien é uma sátira igual-
A primeira vista, Holberg parece imitar Molière; e a in-
mente mordaz contra o uso da mitologia na literatura e
fluência do grande francês é inegável na técnica teatral,
contra o estilo gongórico da tragédia barroca; e quando,
na sátira contra aristocratas orgulhosos (Don Ranudo de
nesta comédia, se fala dos habitantes da lua, Holberg não
Colibrados) e costumes ridículos (Barselstuen), em tipos
esboça uma utopia fantástica — prefere enumerar todas
como o Stundesloese, digno de figurar entre os Fâcheux.
as injustiças sociais, com o refrão monótono: "Tout comine
Mas o teatro holberguiano é, antes, informado pelo imo-
chez nous." Como estão as coisas "entre nós", Holberg o
ralismo da comédia inglesa da Restauração; os assuntos
dirá na maior das suas comédias, na dramatização do mundo
são os antigos enredos de Plauto; os personagens típicos,
de Peder Paars: em Jeppe paa bierget. Mais uma vez,
vlotando sempre com os mesmos nomes, são os da commedia
parece uma comédia barroca, a do camponês bêbedo, ao
deWarte. Holberg é comediógrafo da mais autêntica estirpe
qual o senhor da aldeia faz crer que é êle o barão, para
europeia. Conseguiu transformar em comédia "internacio-
despertá-lo cruelmente no dia seguinte. É o enredo do
nal" toda a vida da pequena Copenhague do Rococó, os
Rusticus imperans, do jesuíta Masen, e do prólogo da
eruditos, pastores, oficiais, dandys afrancesados, criados,
Taming of the Sbrew, de Shakespeare. Mas Jeppe, na
comerciantes, funcionários e charlatães, um mundo engra-
1352 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1353

comédia de Holberg, difere n u m ponto essencial dos s e u s n o r u e g u ê s , q u e d e i x o u a sua pátria, então rudíssima, para
predecessores imbecis: ele tem razão. Porque o barão, o respirar os a r e s c i v i l i z a d o s da capital dinamarquesa. A l i
vigário, o prefeito, são m i s t i f i c a d o r e s ; o "idealismo" aris- fundou, em 1772, a " N o r s k e Selskab" com o fim de pro-
tocrático, religioso, patriótico de todos e l e s é uma mentira, mover as a t i v i d a d e s literárias entre os m u i t o s estudantes
e o materialismo violento d o s desejos de s o n h o d o bêbedo noruegueses d a U n i v e r s i d a d e de Copenhague. A "Norske
justifica-se pela miséria da sua vida de servo. "A g e n t e Selskab" foi, p o r a s s i m dizer, u m café de boémios, parecido
diz que Jeppe bebe; mas não diz por q u e bebe." E esta com o " T h e r m o p o l i u m Boreale"; e W e s s e l tem a l g o em
frase lapidar anuncia uma Revolução. comum com B e l l m a n : não o g é n i o lírico, m a s o espírito
H o l b e r g não era poeta. Mas criou a prosa dinamarquesa, zombador. B e l l m a n , o poeta, p ô d e conformar-se com o
renovando-a no espírito da l í n g u a coloquial, dos provérbios classicismo fantástico da corte de Gustaf I I I ; W e s s e l , ia-
do p o v o . N ã o pretendeu outra coisa senão moralizar. M a s génu da N o r u e g a , aborreceu-se c o m o falso classicismo da
a força moral da sua acusação ainda não acabou. H o l b e r g tragédia Zarine, do s e u patrício B r u n : destruiu-a pela
é o único autor que teve a honra de ficar citado nominal- paródia v e e m e n t e Kjaerlighed uden Stroemper. A comédia
m e n t e nas peças de Ibsen. E será citado, mais de uma vez, ,parece-se um p o u c o c o m a Beggar's Opera: enredo e mo-
no futuro. t i v o s m e s q u i n h o s , apresentados em grande e s t i l o retórico,
árias sonoras com t e x t o s trivialíssimos. N ã o há sátira
N a s comédias de Holberg, l o g o traduzidas para todas
social. W e s s e l destrói apenas uma falsa celebridade lite-
as línguas e de repercussão profunda na Europa inteira,
rária. Mas a paródia sobreviveu — e sobrevive no teatro
havia várias possibilidades de sátira teatral contra as con-
dinamarquês até hoje — à tragédia esquecida, porque ataca,
v e n ç õ e s falsas, já obsoletas, da época aristocrática: a sátira
a l é m da arte falsa, o s e n t i m e n t o falso que também é imortal.
literária; a sátira de c o s t u m e s l o c a i s ; a sátira social. N ã o
P o r isso, Kjaerlighed uden Stroemper é uma comédia
é possível separá-las n i t i d a m e n t e ; confundem-se. A comédia
imortal. Mereceria o e l o g i o de ser "la más asombrosa sátira
de costumes de Goldoni, em país de civilização tão antiga
literária en alguna lengua", que M e n é n d e z y P e l a y o tri-
c o m o a Itália, é sátira social ao m e s m o t e m p o ; a sátira
b u t o u a La comedia nueva o El café, de Leandro Fernández
social de Griboiedov, em país tão atrasado como a Rússia,
d e Moratín ( B 6 ) : esta e x c e l e n t e comédia, cheia de perso-
é, em primeira linha, comédia de costumes o b s o l e t o s ; a
n a g e n s engraçados e situações cómicas, quadro encantador
comédia de c o s t u m e s de Beaumarchais, na França pré-
i evolucionária, já não é mera sátira s o c i a l : é m e s m o sinal
de revolução.
D a melhor comédia literária do século, a Europa não •56) Leandro Fernández de Moratín, 1760-1828.
JEÍ viejo y la nina (1790); La comedia nueva o El Café (1792); El
t o m o u n o t a ; o autor, W e s s e l ( 6 5 ) , foi como H o l b e r g um si de las ninas (1801); La mojigata (1804); La escuela de los
maridos (1812); — La derrota de los pedantes (1789).
Edição das poesias: Biblioteca de Autores espaftoles, vol. II.
Edição das comédias por J. Ruiz Morcuende (Olãsicos Castella-
55) Johan Herman Wessel, 1742-1785. nos, vol. LVII).
Kjaerlighed uden Stroemper (1771); Samlede Skrifter (1787). A. Alcalá Galiano: Juicio critico sobre el poeta cómico Leandro
Ediçfto por I. Levln, 2* ed., Kjoebenhavn, 1918. Fernández de Maratin. Madrid, 1856.
A. H. Winsnes: Det norske Selskab. Oslo, 1924. J. Ruiz Morcuende: prólogo da edição citada.
S. Thomsen: Kun en Digter. En Bog om Johan Herman Wessel. J. Sarrailh: "Notes sur le Café de Moratín". (In: Bulletin His-
Kjoebenhavn, 1942. panique, XXXVI, 1934.)
1354 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1355

da Madri do Rococó, não se dirige contra falsidades imor- O advogado v e n e z i a n o tinha, como a sua época inteira, a
tais e sim apenas contra uns poetastros insignificantes.. m a n i a do t e a t r o ; o p a l c o parecia sucessor do púlpito, quase
N a verdade, Moratín não soube bem o q u e pretendeu fazer. o fundamento i n d i s p e n s á v e l de uma civilização nacional.
P r o f e s s o u o liberalismo político, bajulando ao mesmo t e m - Goldoni, grande patriota, c o m e ç o u com tragédias que da-
po a corte absolutista. Lutou pela estética moralizante d o riam hoje m a i s para rir do que as suas farsas. Atribuiu
classicismo e conseguiu em meio das suas o d e s frias a l g u n s o i n s u c e s s o à commedia delVarte e às arlequinadas que
acertos de profundo sentimento r e l i g i o s o . Foi o primeiro dominaram o teatro v e n e z i a n o , e pretendeu substituí-las
historiador do teatro nacional espanhol e pretendeu des- pela comédia séria, d e caracteres, à maneira de Molière.
truir a tradição de L o p e e Calderón, f a z e n d o versões, ótimas O grande s u c e s s o d e s s a sua tentativa foi devido, porém,
aliás, d e Molière. Combateu os resíduos da literatura bar- aos e l e m e n t o s não m o l i è r i a n o s que introduziu e que tinham
roca, p e l a s á t i r a La derrota de los pedantes, que é o ú l t i m o o e f e i t o de d e s c o b e r t a s : assuntos ingleses (Pamela), farsas
modelo de grande prosa barroca em língua espanhola. N o à maneira de R e g n a r d (II giocatore), enredos espanhóis
f u n d o , o próprio Moratín era um literato pedante, zom- {II bugiardo); e, em parte, à adaptação perfeita de t o d o s
bando de si m e s m o na comédia melancólica El si de las e s s e s e l e m e n t o s a l h e i o s ao ambiente veneziano. Goldoni
ninas, a última comédia terenciana da literatura e u r o p e i a ; tinha o senso b e m i t a l i a n o da realidade, i n c l u s i v e das coisas
e esta ironia crepuscular, a propósito da qual já se lembrou h u m i l d e s . Suas c o m é d i a s são construídas à maneira fran-
o n o m e de Mozart, justifica enfim o poeta. cesa, não há quase decoração cénica, e c o n t u d o a atmosfera
é i n c o n f u n d í v e l , a das pequenas praças arborizadas entre
Sátira literária é o p o n t o de partida da atividade d o
o s palácios m u d o s da aristocracia decadente e as bodegas
maior comediógrafo do século X V I I I : Cario Goldoni ( 5 7 ) .
p o p u l a r e s ; e s e n t e - s e no ar o cheiro salgado das lagunas.
/ / Campiello é uma comédia assim. O Ventaglio é um
57) Cario Goldoni, 1707-1793. quadro d o s m a i s encantadores do R o c o c ó veneziano, m e i o
La donna ãi garbo (1747); La putta onorata (1748); La vedova tradicional, m e i o afrancesado; e na Bottega dei caffè mo-
scaltra (1748); II vero amico (1750); Le donne puntigliose (1750);
La famiglia dei antiquário (1750); La finta ammalata (1750); vem-se personagens como os dos quadros de L o n g h i . N ã o
Pamela nubile (1750); II bugiardo (1750); La bottega dei caffè é conveniente, porém, tecer e l o g i o s assim para incitar a
(1750); II teatro cómico (1750); II giocatore (1760); La serva
amorosa (1752); La moglie saggia (1752); La figlia ubbidiente ler G o l d o n i : o e f e i t o da leitura seria contraproducente.
(1752); La locandiera (1753); II cavaliere di spiríto <1755); II
avaro (1758); II Campiello (1756); Pettegolezzi delle donne (1757);
La sposa sagace (1758); Lo spirito di contraddizione (1758); Le
gelosie di Lindoro (1759); / rusteghi (1760); Pamela maritata G. Ortolani: Delia vita e delVarte di Cario Goldoni. Venezia,
(1760); Le baruffe chiozzote (1760); La casa nova (1761); Sior 1907.
Todero Brontolon (1761); GVinnamorati (1761); Le smanie per A. De Gubernatis: Cario Goldoni. Firenze, 1911.
la villeggiatura (1761); Una delle ultime sere dei carnavale A. Momlgliano: "La comicità e 1'ilarità di Goldoni". (In: Giornale
(1761); II ventaglio (1762); II poeta fanático (1770); Le bourru Storico delia letterature italiana, LXI. 1953.)
bienfaisant (1771); etc. e t c ; Mémoires pour servir à Vhlstoire de H. C. Chatfield-Taylor: Goldoni, a Biography. New York, 1913.
sa vie et à celle de son théâtre (1787). J. Spencer Kennard: Goldoni and the Venice o/ His Time. New
Edição do Município de Venezia, por E. Maddalena C. Musatti e York, 1920.
G. Ortolani, 25 vols., Venezia, 1907/1937. M. Apollonio: Vopera di Cario Goldoni. Milano. 1932.
Edição das Mémoires, por G. Mazzoni, Firenze, 1907. E. Rho: La missione teatrale di Cario Goldoni. Bari, 1935.
P. Molmenti: Cario Goldoni. Venezia, 1880. E. Gimmelli: La poesia di Goldoni. Pisa, 1941.
V. Brocchi; Cario Goldoni e Venezia nel secolo XVIII. Bologna^ G. B. de Sanctis: Corto Goldoni. Padova, 1948.
1907. M. Dazzi: Cario Goldoni e la sua poética sociale. Torino, 1957.
«V

n.l Orro MARIA CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA ' i AI. 1355

da Madri do Rococó, não se dirige contra falsidades imor- O advogado v e n e z i a n o tinha, como a sua época inteira, a
tais • sim apenas contra u n s poetastros i n s i g n i f i c a n t e s . mania d o t e a t r o ; o p a l c o parecia sucessor do púlpito, quase
Na verdade, Moratín não soube b e m o que pretendeu fazer. o f u n d a m e n t o indispensável de uma civilização nacional.
P r o f e s s o u o liberalismo p o l í t i c o , bajulando ao m e s m o tem- Goldoni, g r a n d e patriota, c o m e ç o u com t r a g e d i a i que da-
po a corte absolutista. L u t o u pela estética moralizante d o riam h o j e m a i s para rir do que as suas farsas. Atribuiu
classicismo e conseguiu em m e i o das suas odes frias a l g u n s o i n s u c e s s o à commedia deWarte e às arlequinadaa que
acertos de profundo s e n t i m e n t o religioso. Foi o primeiro dominaram o teatro veneziano, e pretendeu substituí-la»
historiador do teatro nacional espanhol e pretendeu d e s - pela c o m é d i a séria, de caracteres, à maneira de Molière.
truir a tradição de L o p e e Calderón, fazendo versões, ótimas O grande s u c e s s o d e s s a sua tentativa foi d e v i d o , porém,
aliás, de Molière. Combateu os resíduos da literatura bar- aos e l e m e n t o s não molièrianos que introduziu e que tinham
roca, pela sátira La derrota de los pedantes, q u e é o ú l t i m o o e f e i t o de d e s c o b e r t a s : assuntos ingleses (Pamela), fartas
m o d e l o de grande prosa barroca em l í n g u a espanhola. N o à maneira d e Regnard (11 giocatore), enredos espanhóis
f u n d o , o próprio M o r a t í n era u m literato pedante, z o m - (II bugiardo); e, em parte, à adaptação p e r f e i t a de todos
bando de si mesmo na comédia melancólica El si de las esses e l e m e n t o s alheios ao ambiente v e n e z i a n o . Goldoni
ninas, a última comédia terenciana da literatura e u r o p e i a ; t i n h a o s e n s o b e m italiano da realidade, i n c l u s i v e das coisas
e esta ironia crepuscular, a propósito da qual já se lembrou humildes. S u a s comédias são construídas à maneira fran-
o n o m e de Mozart, j u s t i f i c a e n f i m o poeta. cesa, não há quase decoração cénica, e c o n t u d o a atmosfera
é i n c o n f u n d í v e l , a das pequenas praças arborizadas entre
Sátira literária é o p o n t o de partida da atividade d o
o s palácios m u d o s da aristocracia decadente e as b o d e g a s
maior comediógrafo do s é c u l o X V I I I : Cario Goldoni ( 5 7 ) .
p o p u l a r e s ; e sente-se no ar o cheiro salgado das lagunas.
/ / Campiello é uma comédia assim. O Ventaglio é um
57) Cario Goldoni, 1707-1793. quadro d o s mais encantadores d o Rococó veneziano, m e i o
La donna di garbo (1747); La putta onorata (1748); La vedova tradicional, m e i o afrancesado; e na Bottega dei cafiè m o -
scaltra (1748); II vero amico (1750); Le donne puntigliose (1750);
La famiglia dei antiquário (1750); La Jinta ammalata (1750); vem-se p e r s o n a g e n s como os d o s quadros d e L o n g h i . N ã o
Pamela nubile (1750); II bugiarão (1750); La bottega dei caffè é conveniente, porém, tecer e l o g i o s assim para incitar a
(1750); II teatro cómico (1750); II giocatore (1750); La serva
amorosa (1752); La moglie saggia (1752); La jiglia ubbidiente ler G o l d o n i : o e f e i t o da leitura seria contraproducente.
(1752); La locandiera (1753); II cavaliere di spirito (1755); II
avaro (1758); II Campiello (1756); Pettegolezzi delle donne (1757);
La sposa sagace (1758); Lo spirito di contraddizione (1758); Le
gelosie di Lindoro (1759); I rusteghi (1760); Pamela maritata G. Ortolani: Delia vita e deWarte di Cario Goldoni. Venezia,
(1760); Le baruffe chiozzote (1760); La casa nova (1761); Slor 1907.
Toãero Brontolon (1761); OVinnamorati (1761); Le smanie per A. De Gubernatis: Cario Goldoni. Firenze, 1911.
la villeggiatura (1761); Una delle ultime sere dei carnavale A. Momigliano: "La comicità e rilarità di Goldoni". (In: Giornale
(1761); II ventaglio (1762); II poeta fanático (1770); Le bourru Storico delia letterature italiana, LXI, 1953.)
bienfaisant (1771); etc. etc; Mémoires pour servir à 1'histoire de H. C. Chatfield-Taylor: Goldoni, a Bioaraphy. New York, 1913.
sa vie et à celle de son théâtre (1787). J. Spencer Kennard: Goldoni and the Venice of His Time. New
Edição do Município de Venezia. por E. Maddalena C. Musatti e York, 1920.
G. Ortolani, 25 vols., Venezia, 1907/1937. M. Apollonio: Uopera di Cario Goldoni. Milano, 1932.
Edição das Mémoires, por G. Mazzoni, Firenze, 1907. E. Rho: La missione teatrale di Cario Goldoni. Bari, 1935.
P. Molmenti: Cario Goldoni. Venezia, 1880. E. Gimmelli: "La poesia di Goldoni. Pisa, 1941.
V. Brocchi; Cario Goldoni e Venezia nel secolo XVIII. Bolognar G. B. de Sanctis: Cario Goldoni. Padova, 1948.
1907. M. Dazzl: Cario Goldoni e la sua poética sociale. Torino, 1957.
1356 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1357

É preciso ver essas comédias representadas no palco por tuomo, de roupas elegantes à maneira do Rococó, e o seu
atôres italianos. A construção dramática é de simplicidade ódio profundo contra a aristocracia orgulhosa não excluiu
desconcertante, os enredos e desfechos quase infantis, os a comunidade do estilo de viver; e justamente nisso reside
caracteres são tipos sem vida individual, em cada página o encanto de "coisa antiquada" das suas comédias, como
importunam o leitor discursos de moralismo trivialíssimo. objetos de arte na loja do antiquário. Além disso, Goldoni
Goldoni é o campeão das virtudes burguesas contra os víz é sentimental. P r e t e n d e u abolir a farsa popular e a tra-
cios da aristocracia, sobretudo, como na Bottega dei caffè, gédia aristocrática, porque "as alegrias e tristezas no palco
contra o vício nacional de Veneza, o jogo, que arruina as só comovem quando s ã o de gente igual a nós outros". E i s
famílias. Também combate os dissipadores veraneios n a s a dupla raiz do seu sentimentalismo de burguês e do seu
estações de águas (Les manie per le villeggiatura), com uma realismo de observador quase sociológico. Mas o modelo
evidente simpatia pelos arruinados que lembra O jardim de Molière e o seu próprio génio teatral abriram-lhe as
das cerezas, de Tchekov. Com o seu século, Goldoni é fronteiras do regionalismo. Don Marzio, o aristocrata de-
utilitarista; a intriga amorosa, indispensável na comédia caído e maledicente, na Bottega dei caiiè, é uma das maio-
depois de Marivaux, leva sempre a vantajosos contratos de res criações do teatro cómico. "I miei caratteri sono umani,
núpcias. Em geral, essas comédias são ilegíveis; mas con- verisimili, forse veri, ma io li traggo dalla turba universal
vém observar que Goldoni era um génio teatral, e que as degli uomini, e vuole il caso che alcuno in essi si riscontri."
suas peças não se destinam à leitura. É preciso vê-las É ó processo de abstração do classicismo, o segredo da sua
representadas por boa companhia italiana; então, são irre- permanência. O preço que Goldoni pagou por essa uni-
sistíveis. Então se revela também outro motivo do grande versalidade foi a falta de poesia. Poeta, Goldoni só é
sucesso contemporâneo: Goldoni não tinha realmente abo- quando renuncia aos grandes fins da sua arte, escrevendo
lido, pelo menos totalmente, a commedia deWarte. A n t e s aquelas saborosas farsas em dialeto popular veneziano como
renovou-a, atualizando-a e localizando-a em Veneza. Da Le baruffe chiozzote, que o próprio Goethe admirava. O
commedia deWarte tem o diálogo vivíssimo, rápido e espi- teatro de Goldoni é mais alegre que cómico; mas no ar,
rituoso, que constitui a própria ação. Da mesma fonte entre os bastidores, há a melancolia das coisas que se foram
provêm os seus caracteres-tipos que são as velhas máscaras para sempre — o ar de Veneza.
disfarçadas de venezianos "modernos", e essa mistura de
Goldoni foi, afinal, um vencido. O público que aplau-
realismo fiel e teatralidade fantástica deu como resultado
dira as suas comédias, voltou arrependido à commedia
figuras que se gravam na memória: os quatro Rusteghi,
deWarte. A guerra literária em torno do.género chegou
o velho Sior Todero Brontolon, e sobretudo a graciosa
ao delírio de impor ao dramaturgo o ostracismo e o exílio.
Mirandolina, a heroína da Locandiera, o papel mais querido
"Mi scordarme de sto pase?", pergunta um personagem da
das atrizes italianas.
Una delle ultime sere di carnavale, "de la mia adoratissima
Goldoni não é tão simples ou simplista como parece. pátria? dei mii patroni? dei mii cari amici? No xe questa
O seu génio é multiforme como a própria vida. É, sobre- la prima volta che vago; e sempre, dove son stà, ho porta
tudo, o amigo do povo veneziano; assim o representa hoje el nome de Venezia scolpio nel cuor." No exílio de Paris,
o seu monumento, em tamanho natural, no meio de um erigiu à sua Veneza o monumento das Mémoires; e lá mor-
mercado da cidade. Mas não é um plebeu: é um galan- reu, velho, faminto, durante os dias mais tempestuosos
1358 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1359

da Revolução, que este burguês manso não quisera e que Gozzi derrotou Goldoni; mas a história literária italiana
significará o fim da sua República; o fim da velha Veneza não lhe perdoou a vitória; despreza-o até hoje. H á um
à qual Wordsworth dedicou o famoso soneto: "— the século e meio, só o apreciam os estrangeiros. Cario Gozzi
Shade oí that which once was great is passed away." Mas foi um humanista erudito à antiga — assim afirma a crítica
aí estão as peças de Goldoni, última lembrança de "una italiana; não compreendia o espírito da comédia popular;
delle ultime sere di carnavale", dizendo-nos como aquele escreveu fiabe, porque êle, o aristocrata orgulhoso, con-
personagem da comédia: "Conserveme el vostro amor, cari siderava o público como multidão de crianças sem inteli-
amici, el cielo ve benedissa, ve lo digo de cor." gência. Essas "fábulas" dramatizadas não têm nada do
realismo grosseiro da commedia deWarte; o teatro de Gozzi
O mais poderoso dos inimigos que expulsaram Goldoni
é sem psicologia, a sua imaginação sem responsabilidade,
da sua "adoratissima pátria" foi a encarnação do espírito
sua técnica é puramente espetacular como a do melodrama
d a grande aristocracia decadente: Cario Gozzi ( 6 8 ), o irmão
de Metastásio. Gozzi seria um dos últimos produtos da
do grande e amável jornalista Gasparo. Mas Cario era
decadência nacional, um inimigo literário da fututra Itália
diferente: indivíduo orgulhosíssimo, conde empobrecido,
moderna; e desterraram-no para o limbo da história lite-
literato fracassado e invejoso, gramático pedante. Em
rária.
suma, o contrário de um poeta, e que realizou, paradoxal-
mente, a obra mais poética de quantas tem produzido o Os estrangeiros não pensaram assim ( 6 0 ). Os român-
século X V I I I . O sucesso das comédias goldonianas enfu- ticos — sobretudo os irmãos Schlegel, E. T. A. Hoffmann
receu o patriota estreito contra "essa maneira francesa" e e Musset — admiravam-no a ponto de chamar-lhe "Shakes-
o público que a aceitara, e na cólera jurou que o mesmo peare italiano". A mistura estranha de enredos fabulosos
público aplaudiria os contos de fadas mais infantis, quando lazzi alegres das máscaras, imaginação fantástica e ambiente
dramatizados. Do Cunto de li cunti, de Basile, extraiu os veneziano, exerceu durante decénios atração irresistível.
enredos das suas fiabe, nas quais voltaram as máscaras da Grillparzer pretendeu traduzir a mais dramática das íiabe,
commcdia deli'arte: Pantalone e Tartaglia, Truffaldino e II Corvo, e Musset a mais poética, La donna serpente. A
Brighella. Realmente, o público aplaudiu delirantemente. combinação realmente extraordinária do jogo fantástico das
máscaras venezianas com uma tremenda tragédia chinesa,
Turandot seduziu um Schiller à tradução e, ainda em
58) Cario Gozzi, 1720-1806.
V amare delle tre melarance (1761); II Corvo (1761); Re Cervo nossos dias, Puccini à composição. Na novela fabulosa
(1762); Turandot (1762); La Donna Serpente (1762); Zobeide Prinzessin Brambilla, o grande E. T. A. Hoffmann con-
(1763) VAugellin belverde (1764); — Marfisa bizarra (1772);
— Memorie inutili (1797). densou a atmosfera das fiabe, erigindo a Gozzi um dos
Edição das Fiabe por E. Masi, 2 vols., Bologna, 1885. mais belos monumentos, admirado por Baudelaire. Depois
Edição da Marfisa bizzarra por C. Ortlz, Bari, 1911.
Edição das Memorie inutili por O. Prezzolini, 2 vols., Bari, 1910. do romantismo, os melhores conhecedores da Veneza do
0 . B. Magrini: Cario Gozzi e le fiabe. Cremona, 1876. século X V I I I , Jules e Edmond de Goncourt, John Adding-
1. A. Symonds: The Memoirs of Cario Gozzi. London, 1890 ton Symonds, Philippe Monnier, confessaram-se encantados
(tradução com estudo).
E. Masl: Studi sul teatro italiano nel secolo XVII1. Firenze, por Gozzi. Os simbolistas russos dedicaram-lhe verdadeiro
1891.
Ph. Monnier: Venise au XVIHe siècle. Paris, 1907.
A. Guerrieri: Le fiabe di Cario Gozzi. Venezia, 1924.
T. Mantovanl: Cario Gozzi. Roma, 1926. 59) H. Hoffmann-Russack: Gozzi in Germany. New York, 1930.
1360 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1361

culto, e Prokofief fêz a m ú s i c a para o Amore delle tre bastante e o s problemas sociais de Holberg e Goldoni con-
melarance. tinuaram a inquietar o s espíritos. Um Goldoni menor da
Gozzi era um reacionário obstinado. E m seu redor, Polónia seria o chamado "Molière polonês", o conde Fre-
v i u cair em ruínas o m u n d o aristocrático, e „vingou-se, dro ( f l 0 ), aristocrata e s p i r i t u o s o e comediógrafo diletante,
ridicularizando as ciências naturais, a economia política, do qual os b u r g u s e e s d o país dos latifundiários gostavam
a nova filologia, o s enciclopedistas, a t e í s t a s e burgueses. ainda n o s é c u l o X X ; consideram-no, com razão, "clássico".
Contra o utilitarismo dos "filósofos m i l a n e s e s " e a p o e s i a U m " c l á s s i c o " mais bárbaro é o Fidalgo d o russo F o n -
antiaristocrática de Parini escreveu o curioso poema he- visin ( 6 1 ) , s á t i r a holberguiana contra a m o d a europeizante
róico-fantástico "La Marfisa bizzarra", para celebrar o dos aristocratas-intelectuais da época da tzarina Catarina;
heroísmo inútil e as "superstições" dos bons t e m p o s idos. um grande problema r u s s o do s é c u l o X I X anuncia-se nessa
Pretendeu, pela última vez, reproduzir o m u n d o do A r i o s - comédia que reflete o choque entre os c o s t u m e s bárbaros
t o ; mas em vez disso saiu u m poema burlesco, ao g o s t o da R ú s s i a a n t i g a e uma civilização importada. A peça de
do Barroco. E i s aí as raízes da sua arte. Cario Gozzi não Fonvisin não e n v e l h e c e u até h o j e ; ainda continua s e n d o
t e m nada e m c o m u m c o m Shakespeare, mas m u i t o com representada na Rússia. Mas supera-a em valor e atua-
o teatro espanhol. Calderón figura entre os seus m o d e l o s , lidade p e r m a n e n t e a grande comédia de Griboiedov ( c 2 ) ,
o último Calderón das peças fantásticas. A t é a sua teoria
da arte como expressão da imaginação fantástica é a de
Guarini, é barroca. D o p o n t o de vista italiano, Gozzi é 60) Alexander Fredro, 1793-1876.
realmente um fenómeno da decadência nacional, s u r g i d o Pan Geldhab (1821); Damas e Hussardos (1825); A Vingança
(1834), etc. etc.
exatamente n o m o m e n t o que precede o renascimento da Edição em 13 vols., Warszawa, 1880.
nacionalidade. D o ponto de vista do s é c u l o X V I I I europeu, 8t. Tarnowski: As Comédias de Fredro. Krakow, 1896 (em po-
lonês) .
Gozzi é u m retardatário e s q u i s i t o : a m i s t u r a d e imaginação J. Chrzanowski: As Comédias de Fredro. Krakow, 1917 (em
fantástica e realismo popular, próprios do e s t i l o barroco, polonês).
W. Folkierski: Fredro e a França. Warszawa, 1925 (em polonês).
tornou-se no s é c u l o da Ilustração arbitrariedade subjetiva
61) Dionys Ivanovltch Fonvisin, 1744-1792.
de um sonhador reacionário — mas isso seria uma das O Fidalgo (1782)— Edição das obras por P. Vedenski, Petersburg,
definições p o s s í v e i s do romantismo. V i s t o da Alemanha, 1893.
J. Patouillet: Le théâtre de moeurs russes des origines à Oa-
França, Inglaterra do c o m e ç o do s é c u l o X I X , Gozzi é um trowski. Paris, 1912.
pré-romântico; por isso, encantou os estrangeiros. H o j e , A. Veselovski: Fonvisin. Petersburg, 1914 (em russo).
D. J. Blagoj: Fonvisins Moscou, 1945 (em russo).
já é cada vez m e n o s l i d o ; mas o s e u valor não depende
Alexander Sergeievítch Griboiedov, 1795-1829.
da admiração efémera que uma c o n t i n g ê n c i a histórica l h e Inteligência prejudica à gente (c. 1816/1824, representada 1831.
conquistou. A sua arte é produto de uma "heure exquise", publ. 1833).
Edições das obras completas por J. Sliapkin, 2* ed., 3 vols.
o último s o n h o de um m u n d o agonizante, mas b e l o ; e a s s i m Petersburg, 1911/1914; e Por N. Piksanov, Moscou, 1929.
permanecerá. N. Vesselovski: Biografia de Griboiedov. Petersburg, 1877 (em
russo).
Or. Míller: A Vida e Correspondência de Griboiedov. Peters-
A comédia do t i p o H o l b e r g - G o l d o n i d i f i c i l m e n t e podia burg, 1879 (em russo).
sobreviver à R e v o l u ç ã o ; a não ser n o s países atrasados da O. Kramaseva: Griboiedov, sa vie, ses oeuvres. Paris, 1907.
J. Patouillet: Le théâtre de moeurs russes des origines à Os-
Europa oriental, n o s quais a R e v o l u ç ã o não repercutiu trovski. Paris, 1912.
1362 OTTO M A R I A CABPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1363

Inteligência Prejudica à Gente. E i s mais uma prova da O s m o t i v o s literários e sociais desse género combinam-
repercussão imensa do género "comédia burguesa", ao qual se em S h e r i d a n ( 0 3 ) : a sua primeira peça, The Duenna,
pertence, se bem q u e fora da c r o n o l o g i a : m a s a R ú s s i a é uma ópera c ó m i c a que revela as ligações com o melodrama
de 1825 ainda se encontrava na situação social d o s é c u l o italiano; The Rivais é caricatura alegre do sentimentalismo
X V I I I . Inteligência Prejudica à Gente — outra tradução burguês; The Critic, p a r e c e n d o - s e um pouco c o m El Café
reza: A Desgraça de Ter Razão — representa o R o c o c ó de Moratín, é m a i s uma sátira mordaz contra o sentimen-
racionalista russo. F o n v i s i n pretendera defender-se do eu- talismo e a shakespeariomania da literatura pré-romântica,
confirmando a atitude i d e o l ó g i c a do autor, que deu na
r o p e í s m o ; Griboiedov já pretende criar, em s o l o russo, um
School for Scandal a obra-prima do género. S e g u n d o a
teatro comparável aos teatros europeus d o s é c u l o X V I I I ,
opinião geral, Sheridan é o herdeiro da comédia da R e s -
e conseguiu esse objetivo c o m o m e s m o s u c e s s o de todas
tauração; realmente, u m a das suas peças, A Trip to Scar-
as grandes comédias d o t i p o : a obra entrou na consciência
borough, é v e r s ã o do Relapse, de Vanbrugh. Sheridan teria
c o m u m da inteligência russa, fornecendo à l í n g u a coloquial
apenas e l i m i n a d o o cinismo sexual, devendo a essa emenda
o maior tesouro de provérbios e l o c u ç õ e s proverbiais depois
hábil o s u c e s s o permanente da sua obra que sobreviveu à
das fábulas d e Krylov. A s s i m como H o l b e r g e Goldoni,
época da hipocrisia v i t o r i a n a A crítica i n g l e s a moderna,
Griboiedov pretendeu imitar M o l i è r e ; e c h e g o u a criar
novamente entusiasmada pela comédia da Restauração,
u m t i p o permanente. T c h a t s k i , o herói da peça, é um A l -
compraz-se em desvalorizar Sheridan que, de fato, não é
c e s t e r u s s o ; voltando da Europa, acha t u d o na Rússia anti-
comparável a W y c h e r l e y ou Congreve. Parece-se com e l e s
quado, convencional e falso. Choca-se v i o l e n t a m e n t e com menos p e l o s valores da sua obra do que p e l o e s t i l o da s u a
a sociedade. É o primeiro representante d o reformismo vida: grande orador parlamentar e dandy endividado,
ocidentalista à maneira de B i e l i n s k i e T u r g u e n i e v . Gri- "leão de salão" espirituosíssimo e bebedor terrível. No-
b o i e d o v é m e s m o o precursor da "literatura de acusação palco, porém, Sheridan é m a i s manso. J á foi c h a m a d o
social" à maneira de G o g o l e T o l s t o i . M a s o c o m e d i ó g r a f o figura de transição entre Beaumarchais e W i l d e ; mas n ã o
é superior ao seu p e r s o n a g e m e ao s e u enredo. Condena, tem o espírito revolucionário do primeiro n e m o imora-
igualmente, os conservadores petrificados e os inovadores l i s m o c o n s c i e n t e do outro. A confrontação do hipócrita
insolentes. D e Griboiedov descendem, igualmente, o s "vai- J o s e p h Surface e do sincero Charles Surface, na School for
d e n p l i k s " e os "eslavófilos" russos do s é c u l o X I X . Com Scandal, revela fins morais parecidos com os de W y c h e r -
ele, o g é n e r o "comédia burguesa" d e m o n s t r o u e v i d e n t e - l e y ; apenas, o moralismo já não parece subversivo p o r q u e
m e n t e as suas possibilidades imensas, "à c o n d i t i o n d'en
sortir"; mas o próprio género já estava morto.

63) Ríchard Brinsley Sheridan, 1751-1816.


The Duenna (1775); The Rivais (1775); The School for Scandal
(1777); A Trip to Scarborough (1777); The Critic (1779).
N. Plksanov: O Ambiente Social de "Inteligência prejudica à Edição por R. C. Rhodes. 3 vols., Oxford, 1928.
Gente". Berlin, 1928 (em russo). Marg. Oliphant: Sheridan. London, 1883.
W. Sichel: Sheridan. 2 vols. London, 1909.
M. O. Gerschenson: A Moscou de Griboiedov. 3.» ed. Moscou, R. C. Rhodes: Harlequin Sheridan. Oxford, 1933.
1928 (em russo). L. Gibbs: Richard Brinsley Sheridan, his Life and his Theatre.
N. K. Plksanov: História das Origens da Criação de "Inteli- New York, 1948.
gência prejudica à Gente". Moscou, 1929 (em russo).
1364 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1365

a ascensão da burguesia havia transformado os escritores tirem os c o m e ç o s de uma comédia social e m Dancourt e
da vanguarda em porta-vozes de uma classe poderosa. S h e - L e s a g e . Será preciso procurar as razões na estrutura anti-
ridan faz o processo satírico da alta s o c i e d a d e inglesa, as- barroca da c o m é d i a d e Molière e nas consequências esti-
s i m como Shaw fará o da middle class, e com eficiência lísticas do c l a s s i c i s m o , limitando a capacidade da evolução
semelhante. O seu diálogo, m e n o s fino d o que o de Con- do género. E m toda a parte, os autores da comédia burguesa
greve, é o mais rápido, o mais v i v o que já se ouviu no palco acreditavam imitar M o l i è r e , enquanto criaram o n o v o g é -
i n g l ê s ; e como criador de caracteres cómicos, o autor d o s nero; só no f i m do s é c u l o aparece na França também a
escandalosos Sir B e n j a m i n Backbite e L a d y Sneerwell, da comédia burguesa, c o m Beaumarchais; mas o seu teatro sig-
extravagante Lydia L a n g u i s h e da desgraçada Mrs. Ma- nifica o abandono d e f i n i t i v o d o modelo de Molière. T a n t o
laprop, do escritor Sir F r e t f u l Plagiary e do crítico Puff, tempo se precisava — seria e s t e o motivo s o c i o l ó g i c o da
só c e d e a B e n Johnson. Mas em Sheridan desaparece de- demora — para que a burguesia francesa rompesse a pseu-
finitivamente a tradição nacional do teatro i n g l ê s , s e n d o domorfose aristocrática, imbuindo-se da consciência de
substituída pela forma d o teatro europeu internacional da classe que a l e v o u a fazer a Revolução.
filiação Molière — H o l b e r g — Goldoni. T o d o s os come-
diógrafos i n g l e s e s do s é c u l o X I X , até o advento das tra- A s comédias de Beaumarchais ( 8 4 ) c o n s t i t u e m na his-
d u ç õ e s de Ibsen, imitarão Sheridan, figura da transição tória d o teatro francês no s é c u l o X V I I I uma novidade
entre W y c h e r l e y e W i l d e . absoluta: pela primeira vez depois das farsas de Molière,
a g e n t e pôde rir, e rir às gargalhadas, enquanto a comédia
Mas nenhum deles será um grande comediógrafo. A de D e s t o u c h e s e Marivaux permitira apenas o sorriso.
Inglaterra burguesa do século X I X não terá um teatro Beaumarchais faz critica social mais forte do que o autor
de valor literário. E m compensação, terá um grande ro- d o Georges Dandin e d o Bourgeois-gentilhome, e em sen-
mance. E o romance i n g l ê s inspirou-se m u i t o em e x p e r i ê n - t i d o oposto. D e Molière, parece conhecer apenas aquelas
cias dramatúrgicas. Samuel Richardson foi beber inspi- farsas alegres que a crítica severa do classicismo condenara.
ração na comédia sentimental de Cibber e S t e e l e ; F i e l d i n g Quer dizer, Beaumarchais não s e filia na tradição da co-
c o m e ç o u com farsas satíricas; o verdadeiro sucessor d e média séria que se i n i c i o u c o m Molière, mas à tradição
Sheridan é Jane A u s t e n , à qual os m e l h o r e s críticos elogia- da farsa m a l d i z e n t e que com Molière acabara. Daí o s ele-
ram a força de caracterizar dramaticamente os personagens.
A t é D i c k e n s , apaixonado do teatro, será da mesma tradição
q u e demonstra, mais uma vez, o alcance do género "comédia
64) Pierre Caron de Beaumarchais. 1732-1799.
burguesa".
Eugénie (1767); Mémoires (1775); Le Barbier de SeviUe (1778);
E n t r e as literaturas que cultivaram esse género, falta Le Mariage de Figaro (1784); La mère coupable (1782).
Edição do teatro por E. Fournier, Paris, 1876.
a francesa. N e m a esquematização de M o l i è r e por D e s t o u - G. A. Sainte-Beuve: Causéries du Lundi. Vol. V.
ches, n e m a farsa de Regnard, nem a comédia p s i c o l ó g i c a L. de Loméruo: Beaumarchais et son temps. 4.* ed. 2 vols.
Paris. 1880.
de Marivaux podiam produzir u m H o l b e r g ou Goldoni. E. Lintilhac: Beaumarchais et ses oeuvres. Paris, 1884.
V o l t a i r e , que dominava t o d o s o s géneros e parecia c o m e - A. Hallays: Beaumarchais. Paris, 1897.
diógrafo nato, não produziu nenhuma comédia apreciável. A. Bettelheim: Beaumarchais. 2.* ed. Leipzig, 1911.
F . Gaiffe: Le Mariage de Figaro de Beaumarchais. Paris, 1928.
O fato causa estranheza tanto maior quanto é certo e x i s - L. Latzarus: Beaumarchais. London, 1930.
1366 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1367

mentos pré-molièrianos e estrangeiros, italianos e espa- falara o porta-voz da burguesia inteira, da época, do con-
nhóis, do seu teatro: a gaillardise gauloise, a vivacidade tinente, um grande satírico, um mestre do riso que mata.
rapidíssima do diálogo como nos recitativos da ópera bufa Mas não matou sem lágrimas. "Je me presse de rire
italiana, a caracterização dos personagens que se parecem de tout, de p e u r d'être obligé d'en pleurer." Às vezes,
muito com as máscaras da commedia deli'arte; até o ambien- Beaumarchais chorou mesmo, nas apóstrofes super-eloquen-
te espanhol, em que se passam as duas comédias máximas,
tes dos Mémoires, em comédias sentimentais como Eugénie
parece reminiscência das origens longínquas da comédia
e La mère coupable, e nos últimos atos do Mariage de
francesa. Todos esses elementos juntos renovam a farsa
Figaro. E esse sentimentalismo é o sintoma mais seguro do
tradicional, a farsa da burguesia medieval francesa, confe-
caráter burguês do seu teatro. Do ponto de vista psico-
rindo-lhe nova significação: serve, agora, às reivindicações
lógico, o sentimentalismo é o reverso da sensualidade, e
sociais mais ousadas. "Métier d'auteur, métier d'oseur",
esta, nas comédias de Beaumarchais, já é expressão do
dizia Beaumarchais, escrevendo famoso monólogo de Fí-
mais crasso materialismo: "Boire sans soif et faire 1'amour
garo, em que compara as vantagens do nascimento no seio
en tout t e m p s ; il n'y a que ça qui nous distingue des autres
da nobreza com as dificuldades de carreira da roture;
mas o grito de revolução "finit par des chansons". Farsa betes." Mas ainda há em Beaumarchais um reflexo de
musical como expressão das reivindicações da burguesia, poesia do Rococó francês: a sensualidade ligeiramente
cujo porta-voz, no caso, é um "ouseur", ou antes um perversa da figura de Chérubin pertence ao mundo de Bou-
"brasseur d'affaires". A literatura de Beaumarchais é um cher e Fragonard. Beaumarchais, apesar de toda a agres-
incidente na sua vida aventurosa de proletário parisiense, sividade e maledicência, não dissimula simpatias pelo seu
relojoeiro, mestre de música das princesas reais, agente conde Almaviva. Beaumarchais pretende destruir uma
secreto, fornecedor de armas, editor das obras completas ordem social fora da qual a sua arte não será possível.
de Voltaire, e novamente "brasseur d'affaires" na Repú- Daí resulta certa poesia melancólica nas entrelinhas, poesia
blica. Um técnico brilhante, embora autodidata, dos gran- que encontrará a sua expressão plena só na música de
des negócios — fato ao qual corresponde a sua brilhante Mozart. O que "finit par des chansons" foi a pseudomor-
técnica dramatúrgica que consegue efeitos excitantes com fose aristocrático-classicista da burguesia "à la Voltaire",
elementos de inverossimilhança evidente. Não pensava em do qual Beaumarchais foi, não por acaso, o editor das obras
reivindicar os direitos mais elementares dos proletários completas, algo como um testamenteiro.
parisienses, ocupado como estava em tornar-se burguês e A Revolução veio; e não demorou em revelar o seu
milionário. E só gritou quando a magistratura e a admi-
caráter estritamente burguês, depois capitalista. Ao povo
nistração do ancien regime lhe dificultaram esse caminho.
ficou apenas o jus murmurandi. A comédia de Beaumar-
Então escreveu um grande monólogo de súdito indignado,
chais sofreu, nos seus sucessores, transformações análogas,
os muito eloquentes Mémoires contra o juiz Goezman; e
dissociação dos seus elementos contitutivos: perdeu a at-
continuou-o com o monólogo subversivo de Fígaro. Beau-
mosfera poética, substituindo-se a agressividade pelo mora-
marchais falou em seu próprio nome; daí a violência das
lismo, conservando-se apenas a nova técnica de construção
acusações e o esprit mordaz que burla e destrói a censura;
dramatúrgica que será a técnica do burguês pacífico Augier
e quando tudo terminara em chansons, reparou-se que
e do moralista grave Dumas Filho. E o espírito alegre e
^1

1368 OTTO M A R I A CABPEAUX

maldizente de Beaumarchais retirou-se para onde viera,


para os subúrbios populares de Paris, sobrevivendo no
vaudeville, em que se diz tudo, franca e alegremente, e em
que "tout finit par des chansons".

CAPÍTULO III

O PRÉ-ROMANTISMO

O S historiadores das literaturas inglesa e alemã tiveram


sempre consciência da preparação vagarosa do futuro
lomantismo, d u r a n t e o século X V I I I : Thomson e Young,
Gray e Cowper são os precursores de Wordsworth e Co-
leridge, e o sentimentalismo de Samuel Richardson, ainda
na primeira metade do século, liga-se ao Werther, de
Goethe. Este, por sua vez, pertence ao movimento alemão
do "Sturm und Drang", que antecipou muitos elementos
do romantismo, do qual, no fundo, só o episódio classicista
de Weimar o separa. O caso francês é diferente: o começo
oficial do romantismo seria a publicação das Méditations
poétiques et religieuses, de Lamartine, em 1820, seguida,
no teatro, 1830, pela decisiva "bataille d'Hermani". Os
precursores franceses, Chateaubriand e madame de Stael, já
são contemporâneos do pleno romantismo anglo-alemão.
O que existe de "romântico" na literatura francesa do sé- n
culo X V I I I não chega a constituir um movimento coerente.
Resta o caso de Rousseau. Mas as consequências do pensa-
mento rousseauiano, românticas na Alemanha e na Ingla-
terra, foram revolucionárias na França; e os anti-românti-
cos franceses gostam de considerar o suíço Rousseau como
estrangeiro, atribuindo-se os sentimentalismos "pré-român-
ticos" do Rococó francês também a influências estrangeiras,
principalmente inglesas. Na França não haveria, pois, uma.
elaboração lenta do romantismo, e sim uma invasão revo-
1370 OTTO M A B I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1371

lucionária de "pré-romantismos" de origem estrangeira. na França, o pré-romantismo rousseauiano já na sua pleni-


Este conceito, por mais inexato que seja, revelou-se porém tude, não o criaram, foram, antes, motivadas por êle. Con-
muito útil para fins de esquematização, de modo que foi trário — mas levando a conclusões semelhantes — é o caso
aceito pelos historiadores das literaturas inglesa e alemã. de Milton, que durante o século XVIII exerceu em toda
Em vez de falar em "romantismo avant la lettre" do século a Europa influências de cunho pré-romântico, menos na
X V I I I , adotaram o termo "pré-romantismo", interpretado França; as traduções do Paradise Lost, por Dupré de Saint-
como suma dos movimentos românticos na Europa do sé- Maur (1729) e Louis Racine (1755), chegaram cedo demais
culo X V I I I , inclusive na França de Rousseau. e não encontraram repercussão. Os franceses sentiram
O Pré-Romantismo ( J ) é um fenómeno muito bem de- Milton como "poeta cristão", e as intenções e personali-
finido: uma nova sensibilidade poética, sendo mais íntimo dades dos tradutores — que eram classicistas "reacionários"
da natureza, inclinações religiosas e místicas, sentimenta- — confirmaram o preconceito racionalista; só Chatcau-
lismo, revolta contra as convenções estéticas do classicismo, briand será, até certo ponto, "miltoniano" em sentido pré-
gosto pela poesia popular e primitiva — em suma, uma romântico. As verdadeiras influências inglesas, incontes-
mentalidade que oscila entre tristeza melancólica e pro- táveis já durante a primeira metade do século, são de outra
testo revolucionário. Mas além da definição estilística, o" natureza. O Spectator, de Addison e Steele foi traduzido
problema histórico do pré-romantismo apresenta-se difícil: já em 1714. Grande foi a glória francesa de P o p e : Robeton
a transformação dele em romantismo, assim como o conhe- traduziu o Essay on Ciisticism em 1717; madame Caylus
cemos, mal teria sido possível sem as influências rous-
verteu, em 1728, o Rape oi the Lock, e Le Franc de Pom-
seauianas, provenientes da França. Na França, porém, o
pignan publicou em 1740 a versão de uma poesia religiosa
sentimentalismo inglês transformou-se em emoção revo-
de Pope, La Prière universelle. Pope foi recebido na Fran-
lucionária. O problema histórico do pré-romantismo reside,
ça como classicista, poeta Rococó e "reacionário" religioso;
pois, nas relações literárias anglo-francesas; eis o motivo
nada de pré-romântico. Uma nova perspectiva abriu-se, em
por que o estudo do Pré-romantismo começou justamente
1734 com as Lettres philosophiques, de Voltaire: revelaram
na França, embora considerada "país sem pré-romantismo
aos franceses uma Inglaterra tolerante, deísta, racionalista,
bem definido". O estudo daquelas relações anglo-france-
o oposto quase do pré-romantismo, com suas inclinações
sas ( 2 ) dá, porém, resultados inesperados. As traduções de
Thomson por madame Bontemps (1760), de Young (1769) místicas e sentimentais. Mas Voltaire não tem a prioridade.
e de Ossian (1777) por Letourneur, (após as primeiras J á em 1731, os franceses haviam conhecido a Inglaterra
tentativas de T u r g o t e Suard, em 1760 e 1761) encontraram, pelo volume V das Mémoires et aventures d'un homme de
qualité, do abbé Prévost ( 8 ), cuja Manon Lescaut, de 1731,
precede de 9 anos a Pamela, de Richardson. A mesma rela-
1) M. Lamm: Upplysningstidens Romantik. 2 vols. Btockholm, ção se dá, aliás, entre Pamela e a Vie de Marianne, de
1918/1920.
P. Van TJeghem: Le préromantisme. 3 vols. Paris, 1948. Marivaux, de modo que já se pensava em influência, muito
2) J. Texte: Jean-Jacques Rousseau et les origines du cosmopoli-
tisme littéraire. Êtude sur les relations littéraires de Io France
et de VAngleterre au XVIlie siécle. Paris, 1895.
D. Mornet: Le romantisme en France au XVII le siècle. Paris. 3) Edição crítica do vol. V das Mémoires et aventures d'un homme
1912. de qualité do abbé Prévost por M. E. J. Robertson, Paris, 1927.
Sff' 1
1372 OTTO M A R I A CABPEAUX
H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1373

improvável aliás, do francês sobre o pré-romântico in- exemplo importantíssimo — é Shaftesbury ( 7 ). A oposição
glês ( 4 ). Mas é certo que o sentimentalismo pré-romântico do nobre lorde contra as convenções morais e religiosas
tem relações, se bem que subterrâneas com a sensualidade da sua terra e a s suas relações íntimas com os deístas não
dos libertinos da Régence, e não só da Régence. Sabemos-' são provas de racionalismo autêntico. O deísta acredita
hoje (fl) que as ideias de Prévost acerca da Inglaterra numa perfeição e harmonia tão grande do Universo que
já estavam preconcebidas antes das suas primeiras via- intervenções divinas — milagres e revelações — se tornaram
gens àquele país. A Inglaterra que ele apresentou aos supérfluas. Shaftesbury aceitou esse otimismo cósmico,
franceses, é fruto de leituras em Wycherley, Vanbrugh, mas por motivos diferentes, irracionalistas. A influência
Farquhar, Otway e nos romances picarescos de Defoe. dos platonistas de Cambridge levou-o a uma interpretação
É a Inglaterra da tragédia e comédia da Restauração, entusiástica da "Harmonia Universal", à maneira de Gior-
país de sedutores aristocráticos, prostitutas e ladrões, de dano Bruno, n o qual o inglês aprendeu a crença na per-
uma moralidade muito duvidosa, comum à Restauração fetibilidade do mundo e do homem, garantida pela comu-
e à Régence. E Cleveland, o herói do romance de aven-"7 nhão entre as criaturas e o Universo, assim como entre
turas de Prévost, é um homem "sombre, capricieux, neu- os objetos e as ideias platónicas. O velho problema do
rasthénique, exalte, torture par les scrupules, le spleen et platonismo, a relação entre as ideias e os objetos e criaturas
le vent d'Est": enfim, um pré-romântico. particulares, resolveu-o Shaftesbury à maneira da filosofia
estóica: os germes do bom e do belo estão espalhados por
A análise das relações literárias anglo-francesas con- toda a parte, comunicando vida superior às realidades
firma a tese sobre o Neobarroco licencioso da Restauração materiais. Daí a fé antiempirista de Shaftesbury em ideias
e Régence como ponto de partida comum da Ilustração inatas, que domina a sua estética e a sua ética. As ideias
e do pré-romantismo ( 8 ). A relação íntima entre sensua- estéticas inatas explicam as atividades do "génio" nos ar-
lidade e sentimentalismo é fato conhecidíssimo da psicolo- tistas; e as ideias éticas inatas permitem estabelecer uma
gia. Resta explicar a transição do otimismo racionalista ética do sentimento sem sanções divinas.
da "Harmonia do Universo" em pessimismo e melancolia,
Shaftesbury é o grande filósofo do pré-romantismo.
e os motivos psicológicos e sociais da atitude revolucio-
nária. A estética do entusiasmo genial rompeu as cadeias das
regras classicistas; agirá assim ainda em Schiller, grande
A resposta será: o otimismo da "Harmonia do Uni- admirador de Shaftesbury. O "moral sense" como princípio
verso" não tem só raízes racionais. O exemplo — um de uma ética laicista foi adotado pelos sensualistas ingleses,

4) A questão das relações entre Marivaux e Rlchardson é estudada 7) Anthony Ashley Cooper, Earl of Shaftesbury, 1671-1713.
em: H. S. Hughes: "Translations of the "Vie de Marianne" and Characteristics of Men, Manners, Opinions, Times (1711).
theír Relation to Contemporary English Fiction". (In: Modem Edição por J. M. Robertson, 2 vols., London, 1900.
Philology, XV, 1917.) B. Rand: The Life, Letters and Philosophical Regimen of Shaf-
tesbury. London, 1900.
5) O-E. Engel: Labbé Prévost en Angleterre. Paris, 1939. J. M. Robertson: Shaftesbury. London, 1907.
6) Of. os últimos parágrafos do capítulo "O Neo-barroco como Base E. Tiffany: Shaftesbury as Stoic. New York, 1923.
da Ilustração e do Pré-romantísmo". R. L. Brett: The Third Earl of Shaftesbury. A Study in Eigh-
teenth-Century Theory. London, 1950.
1374 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1375

e reaparece em Adam Smith, que deu à "Harmonia do literário e s i m apenas o "público" anónimo, amorfo, cada
Universo" a interpretação económica no sentido da bur- leitor separado e independente do outro, assim como todo
guesia. E a sensibilidade como princípio filosófico geral autor está separado e independente do outro. "Imitação" já
encontrou um partidário poderosíssimo em outro grande não existe, nem no sentido humanista, nem no sentido dou-
admirador de Shaftesbury: Rousseau. trinário, nem no sentido social. Será preciso substituir a
No otimismo entusiástico de Shaftesbury encontram-se "imitação" por outro princípio estético, tarefa da qual se
os germes espirituais da ética e revolução burguesas e incumbe uma nova disciplina filosófica: a estética ( 8 ).
da estética pré-romântica. Não tardará, porém, o conflito A palavra aparece pela primeira vez em 1735 num
entre as suas consequências contraditórias. Na nova so- tratado de Alexander Amadeus Baumgarten, o mesmo que
ciedade utilitarista que então se esboça, não há lugar para publicou depois, em 1750, a primeira grande Aesthetica.
o artista que, tendo perdido os protetores aristocráticos, O nome da nova disciplina foi escolhido para definir-lhe
se retira para a boémia dos cafés literários. A literatura as fontes: é scientia cognitionis sensitivae, ao passo que
está livre das cadeias da estética classicista; mas serve-se as outras ciências se ocupam da cognitio rationalis. Essa
da nova liberdade para dar ao otimismo e racionalismo dos teoria irraçionalista da arte, derivando imediatamente da
burgueses revolucionários uma resposta melancólica e pes- psicologia de Leibniz, não é de todo nova. A teoria do
simista. Ao industrial e ao comerciante, livres das limita- pré-romantismo encontrou seus primeiros defensores, muito
ções da legislação feudal e mercantilista, corresponde agora cedo, na Itália ( 8 " A ). São os teóricos italianos do começo
o escritor, livre das limitações do dogma classicista. Mas do século, em Delia perfetta poesia italiana (1706), de Mu-
enquanto os burgueses constituem nova sociedade, ao lado ratori, e em Delia ragion poética (1708), de Gravina, que
e ao mesmo tempo em lugar da velha, os artistas ficam admitem e reconhecem o papel criador da imaginação livre
excluídos: em vez de depender da corte ou do salão aristo- ao lado do papel regulador da doutrina literária; já estão
crático, dependem agora de um poder anónimo, do público. perto da teoria do entusiasmo criador e do "sense of beau-
Duas qualidades caracterizam o novo público: é anó- ty", de Shaftesbury, que por essa época residia na Itália.
nimo, e não dispõe, em geral, de formação humanista, clás- A arte, pois, não é produto das reflexões da razão, e sim
sica. É então que a língua latina perde defintivamente a produto dos movimentos inconscientes da imaginação, da
função de língua internacional; o mesmo se dá na literatura inspiração. Resta saber como foi possível que quase toda
científica. As letras greco-latinas, até então propriedade a literatura, desde a Renascença até ao classicismo, tivesse
comum de todas as pessoas cultas, tornam-se monopólio renunciado a essa liberdade de inspiração, submetendo-se
dos eruditos, já não podem fornecer o critério dogmático aos modelos greco-romanos e às bienséances da sociedade.
de toda a atividade literária. Na "Querelle des anciens et Esse problema histórico foi resolvido por Viço: a poesia
des modernes" vencem afinal os "modernes": cai o prin-
cípio da imitação dos antigos, mas cai também o princípio
da "imitação da natureza". Já não existem "regras" obri- 8) M. Menéndez y Pelayo: Historia de las ideas estéticas en EspaUa.
Vol. m . Madrid, 1891.
gatórias; a atividade poética é regulada pelas capacidades B. Croce: Estética come scienza dellespressione e linguistica
individuais, e a sociedade já não impõe as limitações das generale (p. II).* 6." ed. Bari, 1928.
bienséances: porque já não existe "sociedade" em sentido 8 A) I. G. Robertson: Studies in the Génesis of Romantic Theory
in tlie Eighteenth Century. Cambridge, 1923.
*m

1376 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A D A LITERATURA OCIDENTAL 1377

dos povos primitivos, na mocidade das nações, obedece ape- A história do conceito "génio" (°) pode ser acompa-
nas à inspiração, enquanto que, com o progresso da civili- nhada através das traduções do Cortegiano, de Castiglione,
zação, começam a prevalecer a reflexão e os elementos nas diversas línguas europeias. "Genius", o espírito tutelar
racionais. dos antigos, é secularizado, transformado em espírito au-
A estética vichiana incluiu o germe de uma revisão tónomo do indivíduo, enciclopèdicamente formado e feito
e revolução de todos os critérios estéticos; o século da capaz de vencer era todas as tarefas de um cortegiano.
Ilustração não estava preparado para aceitá-la, e Viço caiu, Todos os ingegni são considerados iguais, assim como todos
então, em olvido completo. E m vez da sua estética, surgiram os cortegiani são iguais. Na própria Renascença, as limi-
tentativas diferentes de salvar o princípio da "imitação", tações das bienséances aristocráticas excluem a interpre-
dando-lhe novo fundamento psicológico ou limitando-lhe tação individualista do conceito. Só um pensador meio
a aplicação: Les beaux-arts réduits à un seul príncipe religioso como Cardano salienta o papel da inspiração na
(1746), do abbé Batteux; A Philosophical Enquiry into formação dos "génios"; e um pensador prebarroco como
the Origins oi our Ideas oi the Sublime and the Beautiful Juan Huarte acentua o papel da imaginação livre. Depois,
(1765), de Burke; Lakoo oder Ueber die Grenzen der Ma- o desejo de brilhar nas reuniões académicas, no Hotel de
lerei un Poesie (1766), de Lessing. Tratava-se de evitar Rambouillet, nos salões, acrescentou à "formação" do génio
a anarquia literária. O pensamento vichiano venceu, po- uma outra qualidade para êle sobreviver no struggle for
rém, por intermédio do maior crítico literário do pré-ro- life dos espíritos: a originalidade. Marinismo, gongoris-
mantismo, Herder: em vez de basear a atividade poética mo, conceptisrrio apreciam a metáfora nova, a "ideia" nova.
no génio individual, irresponsável e caprichoso, baseava-a Agudeza y arte de ingenio, de Gracián, é u m manual de
no génio nacional, nas estruturas mentais características originalidade. Mas sempre se trata de uma qualidade da
das diversas nações. Herder deu a explicação teórica do inteligência, do esprit; maneiras, costumes, sentimentos
gosto da segunda metade do século X V I I I pelas poesias submetem-se à ditadura da sociedade. Só quando o poeta 1
"nacionais": a escandinva, a escocesa; pela poesia popular, se retirou do salão, tornando-se boémio, às vezes malcriado
na qual o génio nacional se exprime com a maior pureza; e sórdido, como um Johnson, às vezes libertino, como um
e do gosto pela poesia medieval, isto é, de antes da imi- Diderot, e quase sempre cheio de spleens e caprichos, como
tação racional dos antigos. Os génios individuais foram, um Rousseau, foi que se descobriu o valor da originalidade
desta vez, considerados como expressões máximas do génio do sentimento como fonte da originalidade na poesia. En- J
das suas respectivas nações e épocas; fortaleceu-se o culto tão publicou Edward Young, que foi a própria encarnação
de Shakespeare, génio da nação inglesa e da época da do spleen inglês, as Conjectures on Original Composition
Renascença. Esta já não foi vista através dos óculos das (1759). O poeta definiu-se, então, por dois versos de Sha-
regras do classicismo francês, não porque tais regras fos- kespeare —
sem falsas, mas porque eram de outra época e de outra
nação. Cada época, cada nação tem as suas próprias "re-
gras". Agora, o conceito "génio" já não incluiu a ideia do 9) H. Wolf: Versuch einer Geachlchte dea Geniebegriffs. Leipxig,
individualismo anárquico; tornara-se capaz de substituir o
conceito "imitação". E. Zilsel: Die Eiitstehung des Geniebegriffs. Tuebingen, 1926.
P. Grappins: La théorie du Génie dana le préclassicisme allemand.
Paris. 1952.
1378 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1379

" T h e lunatic, the lover, and the poet, Smith e H e n r y Brougham, órgão principal do liberalismo
Are of imagination ali compact" britânico, que em plena guerra contra a França não se
tornou inteiramente hostil à Revolução francesa — este
— comparando a inspiração aos estados semiconscientes^ órgão, dos avançados em matéria política, será uma forta-
da alma. A infância é considerada como a idade poética leza da reação literária, do culto de Pope em pleno roman-
por excelência, e os produtos literários da infância da tismo. Os grandes campeões da liberdade política são quase
humanidade — a Bíblia, Homero, a poesia popular e me- todos reacionários em matéria literária. Talvez o mais
dieval — são cada vez mais idolatrados, ao passo que o poderoso porta-voz d o liberalismo em todo século X V I I I
ideal da perfeição artística cai por terra. fosse o autor anónimo das "Letters of Junius", hoje iden-
É uma revolução dos valores literários. Causa estra- tificado, pela maioria dos pesquisadores, como Sir Philip
nheza, porém, o fato de a revolução estética não coincidir Francis ( l l ) . Alto funcionário da administração colonial
totalmente com a revolução política e social que se prepara da índia, Philip Francis, imbuindo-se lá-bas da dignidade
ao mesmo tempo. Quase acontece o contrário. Decerto, real de todo cidadão inglês, revoltou-se depois, na pátria,
existem exceções como Diderot; e a maior de todas é Rou- contra as tentativas insípidas do rei Jorge I I I para limitar
seau. Mas são exceções. E m geral, não são os pré-român- essa dignidade e as prerrogativas do Parlamento. Mani-
ticos que apresentam as reivindicações políticas e sociais; festo da oposição liberal foram as suas cartas, publicadas
deixam esse papel dos classicistas. Do classicismo ortodoxo J sob o pseudónimo de Junius, no Public Advertiser, reivin-
de Voltaire, subversivo em todos os outros sentidos, já não dicando a liberdade da imprensa contra os reis que não
é necessário falar. Classicista ortodoxíssimo é La Har- querem ouvir a verdade — a carta XXXV, endereçada ao
pe ( 1 0 ), autor de tragédias voltairianas; como crítico do próprio rei, é uma das peças mais extraordinárias de prosa
Mercure de F rance, desde 1764, exerceu uma ditadura lite- inglesa; uma prosa muito latinizada, de grandes períodos
rária ferrenha, e ainda no fim do século o seu Cours de ciceronianos, de elevação clássica.
Iittérature ancienne et moderne é bíblia e código do clas-
O poeta daqueles dia agitados, que precederam a revo-
sicismo; mas esse La Harpe professa ideias políticas avan-
lução americana, foi Charles Churchill ( I 2 ) , o colaborador
çadas e revolucionárias. Em muitos dos grandes órgãos
da renovação literária — as Novelle letterarie (desde 1758),
de Giovanni Lami, em Florença, as Bríefe, die neueste
Literatur betreffend (desde 1759), de Lessing e Men- 11) Sir Philip Francis, 1740-1818.
"Letters of Junius" (publ. no Public Advertiser, Janeiro de 1769
delssohn, o Teutscher Merkur (desde 1773), de Wieland até janeiro de 1772).
Edição por C. W. Everett. London, 1927 (com introdução, contes-
— reina neutralidade política. Em compensação, The Edin- tando a autoria de Francis).
A tese da autoria de Francis, afirmada desde 1813 por John Tay-
burgh Review (desde 1802), de Francis Jeffrey, Sydney lor, conta com o apoio de Th. B. Macaulay no ensaio sobre
Warren Hastlngs, 1841.
12) Charles Churchill, 1731-1764.
10) Jean-François de la Harpe. 1739-1803. Rosciad (1764); Prophecy of Famine (1763); Eplstle to William
Warwick (1763); Philoctète (1783); Coriolan (1784); Virginie Hogarth (1763); Gotham (1764).
(1786); etc. Edição por D. Laver, 2 vols., London, 1933.
Lycée ou Cours de Iittérature ancienne et moderne (1799/1805). F. Putschi: Charles Churchill, sein Leben und seine Werke.
C-A. Sainte-Beuve: Causeries du Lundi. Vol. V. Wien, 1909.
1380 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A D A LITERATURA OCIDENTAL 1381

do jornalista e agitador radical John Wilkes, no North como no epigramático, corresponde ao ideal demosteniano.
Briton. Churchill é considerado por alguns como promessa O tribuno é u m clássico. As analogias não acabam aí. Uma
de um génio que morreu cedo demais; e é verdade que geração mais tarde, e m pleno romantismo, é Courier ( 15 )
os seus versos duramente modelados revelam um espírito o maior panfletista da oposição liberal. Oficial do exército
de poeta satírico, digno de Dryden, se bem que com menor napoleónico, retirado para os campos e levando a vida de
força moral e com mais amargura. O q u e lhe falta, porém,
um vinhateiro, não s e podia conformar com o patriarca-
é originalidade. Gotham tem elementos pré-românticos;
lismo reacionário da Restauração burbônica: lançou contra
mas a sua obra principal, o poema satírico Rosciad, não se
ela os seus panfletos mais espirituosos do que violentos
afasta do estilo de Pope. O radical é classicista rotineiro.
Os radicais franceses oferecem o mesmo espetáculo. e de grande eficiência jornalística. O individualismo indo-
Chamfort ( 1 3 ), o revolucionário quase anarquista e autor mável de Courier é simpático. Mas a releitura dos panfletos
dos aforismos mais mordazes em língua francesa, escreveu é uma decepção. Courier revela o mau humor de um bur-
uma tragédia voltairiana Mustapha et Zéangir, e também guês que tem de pagar imposto; acabou assassinado, mas
os elogios académicos de Molière e L a Fontaine. Mira- não por agentes do governo e sim por camponeses que
beau ( ' ' ) , a grande voz da razão revolucionária, talvez maltratara. A ironia permanente do seu estilo acaba can-
seja o maior orador político do século; dos oradores liberais sando o leitor; é o artifício do grecista erudito que consi-
dos parlamentos do século X I X êle se distingue pela grande derava como obra principal da sua vida a tradução do
verve, que não é, porém, consequência de improvisação. idílio Dafne e Cloe, de Longos. O panfletista liberal é o
Os discursos de Mirabeau foram elaborados com grande
último representante do classicismo ilustrado; em plena
cuidado literário e depois pronunciados com o temperamen-
luta constitucional não esqueceu a Arcádia anacreôntica.
to de um grande ator. Entre todos os oradores modernos
foi Mirabeau o que mais se aproximou dos processos de Isso acontecerá quase u m século depois do apareci-
trabalho da eloquência antiga; e o seu estilo, no sublime mento do pré-romantismo, movimento que não conhece
fronteiras nacionais e tampouco fronteiras cronológicas.
As origens neobarrocas do pré-romantismo e a sua inde-
13) Sébastien-Roch-Nlcolas Chamfort, 1741-1794.
Mustapha et Zéangir (1776); Pensées, maximes et anecáotes pendência do movimento político manifestam-se num curio-
(1803).
Edição das Maximes et Pensées por A. Van Bever, Paris, 1923, e
dos Caracteres et anecáotes por A. Van Bever, Paris, 1924.
M. Pellisson: Chamfort, étude sur sa vie, son caractere et ses 15) Paul-Louls Courier, 1772-1825.
écrits. Paris, 1895. "Pétition aux deux Chambres" (1816); "A Mesaieurs les Juges du
J. Teppe: Chamfort, sa vie, son oeuvre, sa vensée. Paris, 1950.
14) Gabriel-Honoré de Riquetti, comte de Mirabeau, 1749-1791. tribunal de Tours" (1818); "Simple discours de Paul-Louls Cou-
Discursos: "Sur le veto (1 de setembro de 1789); "Sur la contri- rier, vigneron de la Chavonnière" (1821); "Pamphlet des pam-
bution du Quart (28 de setembro de 1789); "Sur le drapeau phlets (1824); etc. — tradução de Daphnis et Chloé, de Longos
tricolore (21 de outubro de 1790); "Sur la constitution civile du (1810).
clergé (novembro de 1790, janeiro de 1791); "Sur rémigration" Edição por R. Oaschet, 2 vola., Paris, 1925.
(fevereiro de 1791), etc. R. Gaschet: La jeunesse de Paul-Louis Courier. Paris, 1911.
Edição dos discursos por L. Lumet, Paris, 1912.
E. Rousse: Mirabeau. Paris, 1891. R. Gaschet: Paul-Louis Courier et la Restauration. Paris, 1913.
01. Ferval: La jeunesse de Mirabeau. Paris, 1936. P. Arbelet: Trois solitaires. Paris, 1934.
1382 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA. LITERATURA OCIDENTAL 1383

sissimo monge espanhol, o beneditino Feijóo ( lfl ), filho escreveu, em 1733, os tratados "Razón dei gusto" e "El
do século X V I I , dono de uma cultura enciclopédica — no sé qué", publicados no volume VI do Teatro crítico
partindo da teologia e chegando através das letras, até a universal, que se situam entre Gravina e Viço e os teóricos
biologia e a medicina — como só os eruditos barrocos sa- ingleses e alemães do pré-romantismo. Como Gravina e
biam reunir. Ortodoxia católica não se discute com um Shaftesbury, salienta Feijóo a importância do "entusiasmo"
monge espanhol, seja êle embora do século X V I I I , que foi na produção poética, pronunciando-se contra o estilo solene
o século em que o Papa Benedito XIV aceitou a dedicatória e elevado, assim como o fará Wordsworth. A data de 1733
de Le Fanatisme ou Mahomet le Prophète, de Voltaire. na folha de rosto daqueles tratados confirma uma vez mais
"Em necessariis unitas, em dubiis libertas", é um velho a independência do pensamento pré-romântico a respeito
lema católico; e ao P. Feijóo muitas coisas parecem duvi- dos outros movimentos do século. O fator cronológico
dosas. É um grande lutador contra as superstições popu- é tão secundário como o político.
lares e um grande divulgador de conhecimentos científicos Feijóo é menos crítico literário do que crítico da
e úteis; Bacon é o seu modelo de pensar. Evidentemente civilização, no sentido em que hoje se dá esse nome a
não pretende purificar ou reformar a Igreja Romana. O pensadores como Burckhardt e Spengler. O século X V I I I '
que lhe importa é a reforma da sua pátria decadente; é criou essa disciplina do espírito. A força dominante, o
um reformador por patriotismo; e visando a esse fim di- "Zeitgeist", do século X V I I I é o racionalismo; contra êle
vulga as ideias da Ilustração francesa. E sobretudo pela dirige-se a crítica, reivindicando os direitos do sentimento.
tolerância, e a sua discussão com um judeu de Bayonne O reivindicador é, no entanto, a inteligência, que é anti-sen-
é um modelo de dignidade sacerdotal e simpatia filantró- timental por definição. A consequência é uma contradição.,
pica. Mas justamente por tolerância rejeita o racionalismo dialética, pela qual o otimismo sentimental de Shaftesbury
intolerante. Revela o maior respeito pelas grandes tradi- se decompõe, cedendo a uma mentalidade melancólica e,
ções nacionais e eclesiásticas da Espanha, pelo ascetismo por fim, pessimista.
e pela mística, e o seu culto pela literatura francesa não
O ponto de partida dessa evolução é o próprio pensa-
exclui a admiração por Lope de Vega e Calderón, que os
mento de Shaftesbury: é otimista porque acredita na per-
seus contemporâneos afrancesados desprezavam. Nesse
fectibilidade do homem e do mundo, o que implica em
sentido, o padre não merece o apelido de "Voltaire espa-
negação do pecado original; como todos os pensadores de
nol" que os seus inimigos lhe deram. A sua tolerância é
estilo burguês, Shaftesbury é antipascaliano. Mas a perfec-
estética também; não admite o dogma de Boileau. E assim
tibilidade não se identifica com o progresso dos raciona-
listas; não se realiza por meio de descobertas científicas
e libertações antitradicionalistas, mas por meio de entu-
16) P. Benito Jerónimo Feijóo, 1676-1764.
Teatro critico universal (1726/1739); Cartas eruditas y curiosas siasmos estéticos e generosidades morais que põem o ho-
(1742/1760). mem em contato imediato com a alma do Universo. O
Edição de textos seletos por A. Millares Cario (Clásicos Caste- entusiasta Shaftesbury é o oposto do maniqueu céptico
lianos) e na Biblioteca de Autores Espafioles, vol. LIV.
E. Pardo Bazán: Examen crítico de las obras dei P. Feijóo. Bayle; não cairá no pessimismo de Voltaire, pessimismo
Madrid, 1877. que é a tentação permanente dos racionalistas. É um estóico,
M. Morayta: El P. Feijóo y sus obras. Valência, 1913.
G. Delpy: UEspagne et Vesprit européen. UOeuvre de Feijóo. sim, mas não da estirpe dos estóicos pessimistas do Barroco.
Paris, 1936.
1384 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1385

Se Shaftesbury fosse homem de ação, professaria o estoicis- cristã, ou pelo menos antijansenista. O pecado original
mo viril, de resistência, de Lucano; quando muito, seria não é de importância capital, pois "il y a des semences
melancólico. de bonté et de justice dans le coeur de 1'homme." Não
O homem da ação e espírito melancólico foi Vauve- há nada de mais oposto ao pessimismo de La Rochefoucauld.
nargues ( 1 7 ). Aristocrata empobrecido, chegando a oficial Vauvenargues tinha fé na bondade da natureza humana;
da guarda real à custa de grandes sacrifícios financeiros por isso, Voltaire o saudou como a um aliado contra Pascal.
e da saúde, dedicando-se a estudos literários na solidão Mas a fé de Vauvenargues não se baseava nas forças da
das guarnições provincianas, foi enfim reformado, termi- razão cartesiana. Como Shaftesbury, confiava-se ao moral
nando em meio das maiores privações uma obra fragmen- sense, aos instintos que a Natureza nos deu e que corres-
tária que o próprio Voltaire reconheceu como genial; e pondem aos "germes divinos" da doutrina estóica. "La
morreu com trinta anos: Vauvenargues é o representante raison nous trompe plus souvent que la nature". Quer
ideal de um estoicismo viril, de resistência profunda. Como dizer, a Natureza não é razoável. A famosa frase de Vau-
estóico sempre foi considerado, e o seu gosto de diletante venargues, sempre citada — "Les grandes pensées viennent
literário pela poesia de Lucano confirma a opinião geral. du coeur" — não é um lugar-comum de moralista; é um
Mas Vauvenargues era aristocrata e oficial, um cavaleiro protesto vigoroso contra o racionalismo do século e uma
de velha estirpe; só a fraqueza da saúde lhe destruiu os volta ao esprit de finesse de Pascal, em oposição ao esprit
sonhos de ação gloriosa. Não admite o ideal estóico da géométrique. Vauvenargues, enfermo como Pascal e leitor
"ataraxia" imperturbável. Confessa-se "domine par les pas- infatigável das Pensées, é um irmão espiritual do pensador
sions les plus aimables"; perguntaria, com Young, se de Port-Royal, não pela fé mas pelo cepticismo. Certo
apenas a razão foi batizada, não o sendo as paixões. "Si cepticismo, resíduo anti-racionalista do cristianismo aban-
vous avez quelque passion qui élève vos sentiments, qui donado, impediu o deísta Vauvenargues de tirar as últimas
vous rende plus généreux, plus compatissant, plus humain, conclusões do seu culto da energia, que o teriam aproxi-
qu'elle vous soit chère!" Eis o entusiasmo de Shaftesbury mado de Nietzsche — que foi outro grande admirador de
em um homem nato para a ação. Já se chamou a Vauve- Vauvenargues. Tendo em vista esse cepticismo poder-se-ia
nargues "professeur d'énergie"; Stendhal, que o adorava, situar Vauvenargues entre o pessimismo de Pascal e o
reconheceu nele sua preferência pelas grandes almas apai- otimismo de Rousseau; ou então entre o otimismo do
xonadas, mesmo que fossem menos virtuosas que as dos cristão Pascal e o pessimismo do sentimental Rousseau.
burgueses tímidos. A psicologia de Vauvenargues é anti- Precisamente entre otimismo e pessimismo se encontra a
disposição mental que dá às páginas de Vauvenargues o
encanto de simpatia humana ligeiramente triste: a melan-
colia. A contradição entre razão e sentimento levou o abbé
17) Luc de Chapiers, marquls de Vauvenargues, 1715-1747.
Jntroductión à la connaíssance de 1'esprit humain, suivie de Re- Galiani ( 1 8 ), italiano afrancesado nos salões parisienses,
flexiona et Maximes (1746).
Edição por P. Varillon, 3 vols., Paris, 1929.
C.-A. Salnte-Beuve: Causeries du Lundi. Vols. IH, XIV.
M. Wallas: Vauvenargues. Cambridge, 1928.
G. Lanson: Le mar quis de Vauvenargues. Paris, 1930. 18) Ferdinando Galiani, 1728-1787.
F. Vial: Une philosophie et une morale du sentiment. Luc de Delia moneta (1750); Dialogues sur le commerce des òlés (1770);
Clapiers, marquis de Vauvenargues. Paris, 1938. etc.
1386 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1387

um passo mais adiante: a uma revisão racional dos valores de uma civilização finíssima, condenada à morte. Em Ga-
sentimentais. O padre napolitano, causeur espirituosíssimo, liani há algo de Mozart, da alegria abundante de Don
centro admirado do salão de madame Geoffrin, deixou aos Giovanni e dos acordes metálicos do "convidado de pedra".
franceses principalmente lembrança do seu ingegno além O conflito entre sentimento e razão chega à plena
da sua correspondência, monumento alegre da época bri- autoconsciência em Lichtenberg ( l t t ). Como no caso de
lhante de Paris, nas vésperas da Revolução. Os escritos Vauvenargues e Galiani, o legado literário do professor
que êle mesmo publicou tratam, em estilo vivo mas de de física de Goettingen consiste apenas em aforismos; o
maneira muito séria, do valor da moeda e do comércio de cepticismo, imposto pela irresolubilidade do conflito, im-
trigo. Nessas questões, cuja discussão se impunha a todos, pediu realizações maiores. Como os dois outros, Lichten-
angustiados pela crise económica da França, o padre napo- berg é precursor: a sua inteligência lucidíssima recalcou
litano foi diletante; mas o conhecimento do relativismo os instintos violentos e perversos de um aleijado e des-
histórico do seu grande patrício Viço e o realismo político mascarou, ao mesmo tempo, o recalque, reconhecendo a
da sua inteligência — "je suis machiaveliste né" — deram- significação dos desejos vagos e dos sonhos, antecipando
lhe a superioridade sobre as generosidades abstraías dos a psicanálise. "Quando Lichtenberg faz um bon-mot, des-
racionalistas. Galiani chegou ao esboço de uma nova eco- cobriu-se um problema", dizia Goethe, e os problemas que
nomia política, baseada numa teoria dos valores; anteci- esse enfant terrible do racionalismo levantou foram os da
pação espantosa da teoria do marginalismo, que só um conduta humana, problemas irresolúveis pela razão. Lich-
século mais tarde, na época dos Jevons e Boehm-Bawerk, tenberg é o último racionalista e o primeiro romântico.
se tornará ciência reconhecida. Essa teoria dos valores — E n t r e Vauvenargues, Galiani e Lichtenberg existe a
o valor dos objetos depende das necessidades subjetivas comunidade dos problemas. Seria até possível construir
— aplicou-a Galiani à política e à psicologia. Acabou com entre eles uma linha de evolução que continuaria até
o valor absoluto das instituições políticas: profetizando Nietzsche, até a falência da civilização racionalista signi-
a Revolução e a transformação da Revolução em nova ordem ficaria interpretar de maneira anacrónica os problemas do
burguesa. Acabou com o valor absoluto da moral cristã, século X V I I I , pretendendo-se resolvê-los segundo o ponto
antecipando o pragmatismo de Nietzsche. Galiani foi o de vista do fim do século XIX. A época da Ilustração
maior anti-racionalista do século; só deixou subsistir os chegou a outras conclusões: à substituição da razão indi-
instintos subjetivos. Mas o seu "sentimentalismo" subver- vidual pelo sentimento coletivo. O cepticismo de Vauve-
sivo serviu-se dos instrumentos da inteligência racional. nargues, Galiani e Lichtenberg encontra o porto de novos
Matou os adversários pelo esprit, pelo riso, atrás do qual
se revela, em raros momentos, a melancolia crepuscular
19) Georg Christoph Lichtenberg, 1742-1799.
Aphorismen (1800).
Edição por A. Leitzmann, 5 vols., Berlin, 1902/1908.
Edição da Correspondência por L. Perey e G. Maugras, 2 vols., W. Bouillier: Georg Christoph Lichtenberg. Paris, 1914.
Paris, 1881; edição de textos escolhidos por F. Flora, Bari, 1927. E. Bertram: Georg Christoph Lichtenberg. Bonn, 1919.
F . Nicolini: II pensiero deli' abate Galiani. Bari, 1909. W. Grenzmann: Georg Christoph Lichtenberg. Salzburg, 1938.
W. Biermann: Der abbé Galiani ais Politiker, Nationaloekonom O. Deneke: Lichtenbergs Leben. Muenchen, 1943.
und Philosoph. Berlin. 1912. P. Rippmann: Werk und Fragment. Georg Christoph Lichtenberg
M. Palmarocchi: Ferdinando Galiani e il suo secolo. Roma, 1930. ais Schriftsteller. Bem, 1954.
^

1388 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1389

valores absolutos no sentimentalismo democrático de Rous- política e a revolução literária não coincidem. A atitude
seau ( 2 0 ). As mais das vezes, é ele considerado como um pré-romântica j á vem, como revela o caso de Muratori e
dos maiores otimistas de todos os tempos: êle, que acre- Gravina, do Neobarroco, e acompanha sempre o raciona-
ditava tão fortemente na bondade da natureza humana que lismo da Ilustração, desde os começos do século. O pré-
construiu em sua própria base novos sistemas da educação, romantismo torna-se poderoso, preponderante, já muito
da sociedade e do Estado. Outros, porém, salientam o
antes da revolução política, entre 1740 e 1760; coincide com
pajsimismo paradoxal do misantropo Rousseau, perseguin-
uma revolução social que, por sua vez, não coincide com
do e perseguido, acabando como paranóico. Na verdade,
a revolução política, nem cronologicamente nem nos seus
Rousseau foi otimista e pessimista simultaneamente. Não_j
admitiu, nisso, contradição, porque não reconheceu a razão motivos e fins. Os literatos pré-românticos não exprimem
lógica como juiz supremo. Nem havia contradição, porque nem antecipam a mentalidade da burguesia que venceu em
otimismo e pessimismo não são sistemas filosóficos e sim 1794, derrubando Robespierre e os jacobinos e estabele-
états d'âme, expressões de temperamentos e temperaturas cendo o Diretório, o primeiro governo puramente burguês
variáveis da alma e do ambiente. Vauvenargues, Galiani, na Europa. Aqueles boémios são antes os porta-vozes das
Lichtenberg representam, dentro da mesma situação, tem- vítimas da grande crise social que precedeu a Revolução
peramentos diferentes e já conhecidos — o gentilhomme e culminou na explosão de 1789: revolta do povo em sentido
estóico, o cortcgiano neobarroco e antibarroco, o moralista mais nítido. A relação entre pré-romantismo e crise social
céptico — e a temperatura do ambiente ao qual o seu é o reverso sociológico da relação literária entre o senti-
pensamento tem que adaptar-se é o racionalismo otimista.
mentalismo de Richardson e o plebeísmo de Rousseau.
Rousseau é um tipo inteiramente novo: é o primeiro plebeu^
com plena consciência da sua classe; o "entusiasmo" do E n t r e 1740 e 1760 foi que o pré-romantismo se tornou
seu mestre Shaftesbury serve-lhe para apoiar o otimismo poderoso; mas é possível determinar com precisão maior
das suas esperanças sociais e políticas. Mas o ambiente o momento histórico em que o pré-romantismo se revelou
que o rodeia, tem outro clima: é a melancolia dos literatos como a primeira potência literária da Europa. Em 1755,
boémios, retirados da sociedade aristocrática e, no futuro, Samuel Johnson escreveu a famosa carta a Lord Chester-
excluídos da sociedade burguesa. A contradição íntima field, na qual rejeitou a proteção do aristocrata. Ê a De-
em Rousseau explica o paradoxo dos pré-românticos rea- claração de Independência da literatura. Depois, os eman-
cionários ou neutros e dos panfletários radicais, raciona- cipados organizam-se; e para isso também é possível fixar
listas, otimistas e por isso fiéis do classicismo. Ao mesmo uma data aproximada.
tempo desaparece o problema cronológico do pré-roman-
Por volta de 1750, o salão mais importante de Paris é
tismo. Assim como Rousseau precede a Revolução, assim
o de madame Du Deffand; em 1764, a sua companheira,
também o pré-romantismo precede Rousseau. A revolução
mademoiselle de Lespinasse, a abandona, fundando outro
salão, que será o mais importante dos anos de 1770. Os
amigos são em grande parte os mesmos — Marmontel, T u r -
20) Of. nota 172 e: got, Condorcet — e a importância da secessão parece limi-
J. Chaxpentier: Jean-Jacques Rousseau ou le démocrate par tar-se a uma questão de ciúmes entre duas sabichonas. Mas
dépit. Paris, 1931.
1390 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1391

não é assim. Madame Du Deffand ( 21 ) é como que a bem a diferença ao compor-se as gravuras de livros cien-
encarnação do esprit claro e seco do racionalismo. O s e u tíficos e técnicos dos séculos X V I I I e XIX. Até mais
fim de vida, prolongado durante decénios dolorosos de ou menos 1760 ou 1780, os intrumentos físicos e químicos
cegueira, é um deserto de ennui de uma alma culta e vazia; e até as máquinas estão enfeitados de ornamentos; as ilus-
dá testemunho disso a sua correspondência com a única trações das obras biológicas de Malpighi e Swammerdam
pessoa que amou, o inglês Horace Walpole, vazio como são autênticas obras d e arte. Depois, os laboratórios cien-
ela, e que, por diletantismo e para divertimento, criou u m tíficos transformam-se em sóbrias salas de trabalho, as
género romântico, o "romance de horrores". No salão de máquinas exibem só rodas e alavancas, as usinas perdem
madame Du Deffand dominava a figura de La Harpe, o aspecto de pitorescas casas de campo, apresentando-se
pontífice do classicismo ortodoxo. Mademoiselle de Les- como barracões fumosos. A ciência, até então expressão '
pinasse ( 22 ) era de todo diferente: parece uma reincarnação, da curiosidade pura d o espírito, torna-se criada da técnica
mais emancipada, da "religieuse portugaise" Mariana Alco- industrial. É a vitória do utilitarismo. Utilidade e beleza
forado. As suas cartas de amor ao marquês de Mora e ao separam-se. A beleza, expulsa do reino das atividades úteis,
conde de Guibert revelam as paixões violentas que a con- liga-se às coisas inúteis, à natureza não cultivada, às mon-
sumiam. Nela, a literatura sentimental do pré-romantismo tanhas e prados desertos, até às coisas inúteis por defini-
torna-se realidade dolorosa. E a figura dominante do seu ção : às ruínas. A natureza e as ruínas, eis o que inspira
salão não é um Walpole, filho de um primeiro-ministro aos homens da segunda metade do século X V I I I uma gran-
de sua Majestade Britânica, mas D'Alembert, enjeitado de ternura e uma melancolia comovida, como de protesto
encontrado à porta de uma igreja e criado pela mulher de contra a vitalidade arrogante das coisas úteis. A modi-
um vidreiro parisiense. D'Alembert é, aliás, por muito ficação do gosto literário corersponde à diferença entre
tempo, o último cientista metido em coisas da literatura. o esprit claro, seco e ocioso de madame Du Deffand e a
Os matemáticos, físicos, biólogos dos séculos precedentes paixão sentimental, instintiva e revoltada de mademoiselle
estavam em relações com a filosofia e a cultura geral das de Lespinasse. Ao ano de 1764, em que as duas damas se
suas épocas; alguns, como Galileu e Buffon, eram até separaram, atribui Monglond ( 23 ) a importância de uma
grandes escritores. Os Cuvier e Darwin, Gauss e Faraday data histórica: significaria a vitória do pré-romantismo,
e Kelvin não têm relações com literatura e arte. Observa-se na França. Na história literária inglesa não há data corres-
pondente. Mas 1760 seria, segundo Arnold Toynbee, o
começo aproximado do grande movimento que transformou
21) Marie de Vichy, marquise Du Deffand, 1697-1780. a Inglaterra agrícola em país industrializado: da chamada
Correspondance (1809). "revolução industrial".
Edição por M. De Lescure, 2 vols., Paris, 1865.
O.-A. Sainte-Beuve: Causeries du Lundi. Vols. I. XIV.
Cl. Ferval: Madame Du De/fand. L'esprit et Vamour au XVIII» "Revolução industrial" é uma expressão imprópria,
siècle. Paris, 1933. porque não se trata de modificações súbitas, revolucioná-
22) Julie de Lespinasse, 1732-1778. rias, e sim de uma evolução vagarosa. Indústria e indus-
Lettres (1809).
Ediçáo por A. Asse, Paris. 1876. trialização na Inglaterra são fenómenos muito anteriores
C.-A. Sainte-Beuve: Causeries du Lundi. Vol. n .
A. Beauiiier: La vie amoureuse de Julie de Lespinasse. Paris,
1925. 23) A. Monglond: Le préromantisme /rançais. Vol. I. Paris, 1930.
1392 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1393

à segunda metade do século X V I I I , e não só na Inglaterra; panheiro" literário de W a t t é Cowper: o autor de The
foi possível descobrir os primeiros vestígios da "revolução Task (1785) introduz n a poesia sentimental o elemento da
industrial" na Inglaterra do século X V I I e no continente, angústia religiosa que predominará no próprio romantismo.
na França, muito cedo no século X V I I I ( 2 8 _ A ). Só a indús- Assim, o pré-romantismo é elemento integral de toda a
tria pesada inglesa é um fenómeno dos primeiros decénios literatura inglesa do século X V I I I ( 23 - B ).
do século XIX. Quer dizer, Toynbee teve mais razão do
que até há pouco se pensava. Por volta de 1760, a indústria O caráter melancólico da nova poesia não surpreende;
inglesa já está utilizando as máquinas; inicia-se a aliança os poetas não podiam participar do otimismo da prosperida-
entre o capitalismo e a técnica. de burguesa. O que surpreende é a preferência pela paisa-
gem, pelos aspectos rurais da Inglaterra em plena industria-
As datas encontram-se em qualquer história das inven-
lização ; parece manobra evasionista; mas o contrário, porém,
ções técnicas. J á em 1733, Kay inventara o flying shuttle,
é certo. Durante a primeira metade do século X V I I I ,
a lançadeira volante, que multiplicou a velocidade do tra-
balho na indústria têxtil. E m 1764, no ano da separação Londres foi o centro comercial da Inglaterra; a literatura
entre madame Du Deffand e mademoiselle de Lespinasse, classicista é principalmente urbana. A industrialização
Hargreaves inventou a Spinning-Jenny, que já não permite desloca os centros de atividade económica para os mi-
o trabalho dos tecelões em casa, exigindo a construção de dlands; começa a era da prosperidade de Warwickshire,
usinas; inicia-se o ciclo da grande indústria têxtil. A pri- Shropshire, Lancashire e sobretudo da Escócia. A nova
mitiva máquina a vapor, que Newcomen inventara em 1715, indústria também é "rural". Um dos motivos principais
servia apenas para serviços de mineração; a de James W a t t da deslocação é a miséria das populações rurais; isso per-
é de 1769; e o novo modelo de 1782 tornou-se capaz de abas- mite pagar salários mais baixos do que na cidade. Porque
tecer de força qualquer empresa industrial. A revolução a revolução industrial é acompanhada de uma revolução
poética acompanha a industrial com pontualidade mate- agrária. A indústria têxtil precisa de lã; é preciso trans-
mática. As Seasons, de Thomson precedem precedem ape- formar muitos terrenos cultivados em campos de pastagem.
nas de três anos o invento de Kay; os Night Thoughts Agora, acabam com os últimos restos da pequena proprie-
(1754), de Young, e a Elegy Wrote in a Country Church dade, criando latifúndios imensos, entre os quais fumegam
Yard (1751), de Gray, anunciam a invenção de Hargreaves as usinas. No começo dessa revolução agrária, houve um
que coincide precisamente com a edição dos poemas ossiâ- grande êxodo dos campos; a população do interior foi
nicos (1762/1765), por Macpherson, e a publicação dos para a cidade, constituindo uma massa subproletária de
Reliques oi Ancient English Poetry (1765), de P e r c y ; o mendigos, ladrões e prostitutas, os personagens da Beggar's
Deserted Village (1769), de Goldsmith, situa-se entre a Opera, de Gay. Depois, consegue-se a fixação do prole-
Spinning Jenny e a Mule Jenny; e do mesmo ano de 1769 tariado rural nos novos centros industriais, e a paisagem
é a Waterframe, o tear hidráulico de Arkwright. O "com- inglesa mudou de aspecto; Wordsworth lamentará que

as A) J. TJ. Nef: War and Human Progress. An Essay on the Rlse 23 B) H. A. Beers: A History o/ English Romanticlsm in the Eigh-
o/ Industrial Civilization. London, 1950. teenth Century. London, 1899.
1394 OTTO M A H I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1395

" . . . the smoke of u n r e m i t t i n g fires pleta na poesia i n g l e s a e universal; contudo, está m u i t o


H a n g s permanent, and p l e n t i f u l as wreaths ligado à s tradições do c l a s s i c i s m o . O seu p o n t o de partida
Of vapor glittering in the m o r n i n g sun." é a p o e s i a de P o p e : c o m o este, Thomson não é musical;
prefere o g é n e r o d e s c r i t i v o , porque êle é uma natureza
Mas justamente através da fumaça reconhecem os poetas didática. A sua i d e o l o g i a é o racionalismo, atenuado pelo
a beleza modesta da paisagem inglesa, as colinas e o s prados s e n t i m e n t a l i s m o de u m moralista — mistura tipicamente
verdes, as pequenas florestas nas quais brincaram outrora inglesa. Por isso, êle t o r n o u - s e poeta nacional, lido e querido
as fadas do Midsummer-Night's Dream; descobre-se a ma- como p o u c o s outros. C o n t r i b u i u para esta popularidade o
jestade das catedrais medievais nas cidadezinhas sonolentas, seu patriotismo. O s e n t i m e n t o nacional não foi alheio a
e pela primeira vez os poetas do país protestantes reparam P o p e : Windsor Forest celebra "Liberty" como "Britannia's
nas ruínas d o s conventos, abandonados d e s d e a Reforma. Goddes", profetiza "future navies", "rich industry" e o
A nova poesia será poesia rural, a princípio m u i t o pare- tempo em que a Inglaterra será
cida c o m a poesia pastoril da A r c á d i a ; só lentamente se
libertará do estilo de P o p e ; a diferença reside no predo- "The W o r l d ' s great oracle in times t o come."
m í n i o da melancolia, e também em um n o v o senso da natu-
reza, que é considerada como um U n i v e r s o vivo, cheio de São os valores da paz, valores cosmopolitas, dos quais a
criaturas alegres ou demoníacas. N o fundo, é um s e n s o monarquia i n g l e s a é campeã. T r ê s decénios mais tarde, o
da natureza muito a n t i g o , o d o s p o v o s germânicos que patriotismo i n g l ê s é guerreiro, agressivo, embora sempre em
costumavam personificar as forças elementares, senso da n o m e daqueles m e s m o s ideais de 1688. Na Masque of Al-
natureza que constituíra, desde Chaucer, através de Spenser fred, peça em e s t i l o classicista-restauração, insere T h o m s o n
e Shakespeare até Milton, uma grande tradição da poesia a famosa canção
inglesa. D e s s e modo, T h o m s o n , admirador d e Spenser, é
um "reacionário" que revolucionou a poesia inglesa, des-
"Rule, B r i t a n n i a ! Britannia rules the w a v e s ;
pertando na Europa inteira o entusiasmo pela poesia ingle-
B r i t o n s never shall be slaves!"
sa e, em geral, pela poesia da natureza ( 2 4 ) .

James T h o m s o n ( 2 5 ) merece, como p o u c o s outros, o na qual as reivindicações da Liberdade e do imperialismo


título de poeta de transição. Operou uma revolução com- marítimo se confundem. T h o m s o n representa bem o senso
i n g l ê s das realidades. A capacidade de transfigurar poeti-
camente a realidade revela-se n o poema alegórico The Cas-
24) M. Reynolds: The Treatment of Nature in English Poetry bet- tle of Indolence, spenseriano na alegoria e no metro.
ween Pope and Wordsworth. 2.* ed. Chicago, 1909.
J. Arthos: Tfie Language of Nature Description in XVIII th
Century Poetry. Ann Arbor, 1949.
26) James Thomson, 1700-1748. E. Cory: "Seasons, Thomson and Romanticism". (In: Publica-
The Seasons (1726/1730); The Masque of Alfred (1740); The tions of the Modem Languages Association. 1911.)
Castle of Indolence (1748). A. H. Thompson: ."Thomson". (In: The Cambridge History of
Edição por J. L. Robertson, Oxford. 1908. English Literature. Vol. X. 2.B ed. Cambridge, 1921.)
w. Bayne: James Thomson. Edinburg, 1898. A. D. Mc Killop: The Background of Thomson's Seasons.
O. O. Macaulay: Thomson. London, 1908. Minneapolis, 1942.
1396 OTTO MABIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1397

Thomson afirma-se como poeta autêntico pela harmonia inspiração romântica n a tradução das Seasons (lida pelos
perfeita entre a intenção e o metro que escolhe: era muito contemporâneos em manuscrito, depois publicada em 1844)
moço quando começou o famoso poema descritivo The pela poetisa Leonor de Almeida Portugal Lorena e Len-
Seasons, e contudo já teve a coragem de abandonar o heroic castre, marquesa de Alorna. Uma literatura nova, a norue-
couplet de Pope e voltar ao verso branco de Milton, o guesa, inagura-se com o thomsoniano Tullin ( afl ), teólogo
metro nacional da poesia inglesa. Embora seja o poema erudito e patriota prático, descobridor das belezas de maio
composto de numerosas passagens bonitas e mais numerosos no alto Norte. O seu Maidag impressionou alemães e
versos brilhantes, o conjunto é hoje pouco legível; a época suecos. Gustaf Gyllenborg encheu o seu Winter (1760)
da poesia descritiva já passou; o lugar de Thomson no de uma mistura de radicalismo racionalista e pessimismo
coração dos ingleses e nas estantes das suas bibliotecas desesperado, da qual os suecos alegres do Rococó não gos-
fica hoje ocupado por Wordsworth. Sente-se muito, nas tavam. Mas justamente na Suécia a influência de Thomson
Seasons, o modelo da poesia pastoril de Virgílio; mas foi profunda e decisiva ( 2 7 ). Um poeta tão rococó como
para os contemporâneos, classicamente formados, foi este Creutz ( 28 ) imitou o Summer, e Oxenstjema ( " ) tornou-se
mais um motivo de encanto — e os camponeses e caçadores mesmo o maior poeta descritivo da Escandinávia; descre-
de Thomson parecem-se bastante com as figuras de porce- vendo os aspectos cambiantes do dia, do amanhecer até à
lana do Rococó. Mas a paisagem de Thomson é a paisagem noite, combinou de maneira admirável a elegância aristo-
concreta inglesa. O "Spring" do poeta inglês não conhece crática e a melancolia já rousseauiana, exercendo influên-
as flores convencionais da poesia pastoril mediterrânea; cia considerável sobre o romantismo sueco. Por outro lado,
mas há os primeiros ventos quentes, e o camponês impa- houve contra-influências atenuantes. O Rotterstroom, do
ciente prepara o arado. No "Summer" sentimos o calor holandês Dirck Smits (1700-1752), é prejudicada pela elo-
abafante antes do temporal, e as chuvas terminam o idílio quência barroca, herança de Van der Góes. Na Itália ainda
robusto dos ceifeiros. "Autumn" oferece ocasião para a recalcitrante contra influências germânicas, o poeta ana-
caça às raposas, bem inglesa, e no "Winter" olha um sol creôntico Giovanni Meli ( 30 ) preferiu escrever os seus
vermelho pelas nuvens cinzentas sobre o campo de neve,
onde entre árvores sem folhas jaz o mendigo, morto de
frio; e só o cão fiel lhe lambe a mão gelada. Nos melhores 26) Christtan Braunman Tullin, 1728-1765.
En Maidag (1758).
momentos de Thomson sente-se uma ternura já romântica, Reedição por K. L. Rahbek, Kjoebenhavn, 1790.
e às vêzeB — raras vezes — uma angústia quase religiosa. Henr. Jaeger: "En Krlstlania-poet fra íorrlge aarhundrede".
(In: Literaturhlstoriske Pennetegninger. Kjobenhavn, 1878.)
Saindo do salão do Rococó, o poeta dera um passo para Fr. Buli: Fra Holberg til Nordal Brun. Oslo, 1916.
fins incertos; descobrindo a countryside, tornou-se refor- 27) W. Q. Johnson: ThoTnson's Influence on Swedish Literature in
mador da literatura inglesa e europeia. the Eighteenth Century. Urbana Hl., 1836.
28) Cf. "O Neobarroco como Base", etc", nota 32.
Thomson, além de conquistar admiração internacional, 29) Johan Gabriel Oxenstjema, 1750-1808.
tem tido mais outro privilégio dos poetas de primeira or- Dagens stunder (1785).
M. Lamm: Johan Gabriel Oxenstjema. Stockholm, 1911.
dem: despertar literaturas que dormiam ou, então, inaugu- 30) Giovanni Meli, 1740-1815.
rar-lhes nova época. A poesia portuguesa, adormecida entre Bucólica {Primavera, Está, Autumnu, Invernu; 1787).
Edição por E. Alíano, 2 vote., Palermo, 1914/1915.
os convencionalismos da Arcádia, encontrou a primeira G. A. Cesáreo: La vita e Varte de Giovanni Meli, Palermo, 1924.
1398 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1399

poemas thomsonianos no dialeto da sua ilha, a Sicília. A até assombroso. Os contemporâneos não foram capazes de
influência de Thomson foi grande na França ( 8 1 ), desde compreender a poesia d e Brockes superada logo depois por
a primeira tradução das Seasons (1760), por Mme. Bon- outros estilos, mais "modernos"; até hoje figura êle nos
temps. Mas Les Saisons (1769), de Jean-François de Saint- manuais de história literária como velho burguês meio
Lambert, e Les móis (1779), de Jean-Antoine Roucher, ridículo. Na verdade, foi um precursor audacioso, com um
distinguem-se pouco dos idilios anacreônticos; e é difícil coração de grande poeta lírico. A vitória de Thomson na
acompanhar a influência thomsoniana através de Delille, Alemanha deu-se através da poesia anacreôntica. Ewald
Chénier e Fontanes até aos românticos. von Kleist ( a 4 ) deve sua modesta glória menos ao poema
Na Alemanha encontrou Thomson um terreno já pre- thomsoniano Der Fruehling, anacreôntico e já não lido
parado ( 3 2 ). A tradução alemã das Seasons é de Broc- hoje, do que à morte heróica de oficial do exército prussia-
kes ( 8 3 ), em 1745; mas não se pode dizer que as imitou, no de Frederico o Grande, no campo de batalha, e aos elo-
menos talvez nas últimas partes do seu poema descritivo gios exagerados do seu amigo Lessing. Mas Kleist é real-
"Irdisches Vergnuegen in Gott" iniciado 5 anos antes de mente mais romântico que Thomson; nas suas odes já
Thomson principiar as Seasons. Brockes traduzira, na bramam as tempestades frias e descem as névoas nórdicas.
mocidade, Marino, e o seu estilo poético ressente-se do Depois da descoberta da paisagem, descobriram-se a
Barroco; por outro lado, foi tradutor de Pope, deísta, e aldeia e os seus habitantes. O mais famoso poeta de idílios
até mesmo deísta radical, inimigo resoluto do cristianismo. do século X V I I I , o suíço Gessner ( s s ) , ainda é meio ana-
O seu poema torna-se fastidioso pelas digressões intermi- creôntico e muito Rococó. No entanto, é seu sucesso inter-
náveis sobre "as obras de Deus na Natureza", isto é para nacional que inicia a era do "idílio" pré-romântico, já algo
provar que essa Natureza tão maravilhosa já não precisa menos evasivo, menos enfeitado ( 3 a ) ; ali, as menores dife-
de intervenções divinas. Às vezes revela Brockes, no en- renças estilísticas têm profundos motivos ideológicos ( 8 T ) :
tanto, o írisson da religiosidade barroca e a grande elo- reconhece-se a verdadeira situação do camponês. O "New-
quência musical da ópera italiana, então em voga na sua gate Pastoral", de Gay, já parodiara o falso bucolismo, não
cidade de Hamburgo; além disso, a paisagem modesta do apenas por motivos estilísticos, mas com acentos de sátira
estuário do Elba é descrita com realismo inconvencional, social. Só dois decénios mais tarde, na Elegy Wrote in
a Country Chuich Yard, de Gray, o lugar-comum da igual-

31) M. M. Cameron: Uinfluence des Saisons de Thomson sur la 34) Ewald von Kleist, 1715-1759.
poésie descriptive en France. Paris, 1927. Der Fruehling (1749); Ode an die preussische Armee (1757);
32) K. Gjerset: Der Einfluss von James Thomsons Jahreszeiten auf Cissides und Paches (1759).
die deutsche Literatur des 18. Jahrhunderts. Heidelberg, 1898. Edição por A. Sauer, 2 vols., Berlin, 1881/1882.
33) Barthold Heinrlch Brockes, 1680-1747. A. Chuquet: Êtudes áe littérature allemande. Vol. n. Paris, 1902.
Irdisches Vergnuegen in Gott (1721/1748); — Edição de poesias H. Guggenbuehl: Ewald von Kleist. Zuerich, 1948.
escolhidas por R. Delius, Braunschweig, 1917. 35) Cf. "O Neobarroco como Base, etc", nota 28.
Traduções: Strage degli Innocenti de Marino (1715); Essay on 36) P. Van Tieghem: "Les idylles de Gessner et le rêve pastoral".
Man de Pope (1740); Seasons de Thomson (1745). In: Le Préromantisme. Êtudes d'histoire Httéraire europénne.
A. Brandi: Barthold Heinrich Brockes. Jnnsbruck, 1878. Vol. II. Paris, 1948.)
G. Zanton: Barthold Heinrich Brockes. Firenze, 1927.
K. Lohmeyer: Brockes in seinen Gedichten. Hambura, 1934. 37) W. Empson: English Pastoral Poetry. New York. 1935.
1400 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1401

dade do rico e do pobre no cemitério, se abre, de repente, supera o patriotismo d e Pope e Thomson pela melancolia
em perspectiva revolucionária — do pensamento na vida sacrificada. Outra vez, Collins
parece inspirado ao p o n t o de vivificar metros já obsoletos:
"Fui! many a flower is born to blush unseen a ode pindárica The Passions, an Ode to Music faz esquecer
And waste its sweetness on the desert a i r . . . " —; as tentativas de Cowley e Dryden. O desejo de

na interpretação de Empson ( 37_A ) evidencia-se o subten- "Revive the j u s t designs of Greece,


dido do contexto: "por que só igualdade na morte? P o r q u e Return in ali t h y simple state!"
não há a igualdade na vida." No século X V I I I , a poesia
pastoril muda de sentido: de expressão evasionista trans- antecipa a interpretação romântica da poesia grega como
forma-se em expressão revolucionária, atenuada pela me- primitivismo genial; mas é exprimido, de maneira nada
lancolia pré-romântica. simples, pelas alegorias spenserianas — neste classicismo
Nem a língua poética de Pope nem a de Thomson era romântico anunciam-se os "just designs of Greece" de
capaz de exprimir essa nova atitude. William Collins ( 38 ) Keats. O poema inacabado Ode on the Popular Supersti-
não criou a nova língua poética; nem é possível qualificar tions of the Highlands of Scotland é clássico, erudito de
Collins de precursor, porque as poucas poesias que o pobre mais para valer como antecipação do ossianismo; mas já
demente escreveu nos seus momentos lúcidos, são de equi- o supera pela melodia individual do senso melancólico das
líbrio clássico, perfeitas como poucas outras em língua coisas que se foram. Melodia verbal é o apanágio de Col-
inglesa. Em Collins não há ambiguidades "interessantes" lins. Na mais famosa das suas poesias, Ode to Evening,
à maneira da "metaphysical poetry"; mas sim ambiguidades é menos importante o senso hiperestético das mudanças
entre forma classicista e assunto pré-romântico, entre lín- atmosféricas — da distinção entre o lingering light do
gua alta e sentimento primitivo. Às vezes parece que Col- verão e o troublous air do inverno; Thomson também teria
lins dá nova profundidade a atitudes já encontradas: o sido capaz disso — do que a fusão musical desses semitons.
patriotismo da Ode, Written in the Year 1746 — Collins é o primeiro e único poeta classicista que sabe fazer
música verbal. Os poetas pré-românticos valeram-se da
"How sleep the Brave, who sink to rest sua melodia sem a sua forma clássica. Dentro dos limites
By ali their Country's wishes b l e s t ! . . . " — estreitos da sua arte foi Collins um génio; infelizmente,
um poeta raro.

"37 A) W. Empson: Some Versions of Pastoral. London. 1936. Thomas Gray ( 89 ) realizou o que Collins prometera;
38) William Collins, 1721-1759. além de aludir à amizade entre os dois poetas, significa
Odes on Several Descriptive anã Allegorical Súbjects (1746).
Edições por M. Thomas, 3.» ed., London, 1894, e por E. Blunden,
London, 1929.
H. W. Garrod: Collins. Oxford, 1928. 39) Thomas Gray, 1716-1771.
A. 8. P. Woodhouse: "Collins and the Creative imaglnation." (In: Six Poems (1753); Pindaric Odes (1757); Poems (1768).
Studies in English. Toronto, 1931.) Edição das obras completas (incl. ensaios e cartas) por E. Gosse,
E. O. Ainsworth: Poor Collins. His Life, His Art and His In- 4 vols., London, 1884.
fluence. Ithaca N. Y., 1937. Edições das poesias por A. F. Bell, Oxford, 1915, e por A. L.
F. Rota: William Collins. Padova, 1953. Poole, Oxford, 1948.
1402 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1403

isso que Gray empregou a língua poética de Collins para professores de Cambridge e Oxford que, durante séculos,
resolver os problemas que a época apresentou à poesia. E compõem versos nas horas de ócio; é o maior scholar poet.
isso, por sua vez, significa que Gray não era um poeta Erudição literária e finíssimo gosto artístico elevaram-no,
original. A aparente inspiração espontânea dos seus versos no dizer da última frase do "Progress of Poesy",
é, na verdade, produto de elaboração cuidadosa, e aparente
riqueza de pensamentos — Gray forneceu à língua inglesa "Beyond the limits of a vulgar fate."
numerosas e frequentes citações — revela-se como abun-
dância de lugares-comuns bem estilizados. Mas Gray era Com efeito, Gray, poeta antológico por excelência, nunca
um artista tão superior que as suas soluções daqueles pro- é vulgar, e isso lhe valeu os ataques mordazes de Words-
blemas logo se tornaram definitivas; depois de Gray só worth, defendendo os direitos da poesia em língua colo-
pode haver plagiários ou revolucionários; e deste modo quial contra a poesia erudita. Só uma vez, Gray atravessou
alcançou o supremo fim da arte, se bem que não da poesia. a fronteira da arte elaborada, e isso justamente quando
O humorismo pensativo, bem inglês, de Gray revela-se pôs essa arte a serviço do "vulgo". "An Elegy W r o t e in
melhor nas suas deliciosas cartas que em poesias como a Country Church Yard" talvez seja o poema mais famoso
"Ode on the Spring" e "Ode on the Death of a Favorite da língua inglesa. Basta citar —
Cat"; a época da "poésie de société" à maneira de Prior,
já havia passado. O moralismo da época exprime-se através " F a r from the madding crowd's ignoble s t r i f e . . . " —
de sensações collinsianas da natureza, em "Hymn to Adver-
sity" e "Ode on a Distant Prospect of Eton College",
e todo inglês sabe continuar de cor, até os semicultos.
aquela a mais elaborada, esta a mais clássica das suas poe-
A Elegia de Gray reúne de maneira incomparável o senso
sias. Romantismo aparece, em formas clássicas, na ode pin-
da natureza —
dárica "The Progress of Poesy", reabilitação poética da
memória de Shakespeare e Milton, documento poético de
"Now fades the glimmering landscape on the sight,
importância histórica e de excelência insuperável de me-
And ali the air a solemn stillness h o l d s . . . " —
lodia verbal. As preocupações pré-românticas pela poesia
nórdica e pela Idade Média encontraram, em Gray, ex-
à melancolia romântica do cemitério de aldeia, em que as
pressão — de maneira algo paradoxal — em mais outras
inscrições comoventes dos túmulos constituem
odes pindáricas: " T h e Bard", " T h e Fatal Sisters", " T h e
Descent of Odin". Em suma, Gray é o ideal dos inúmeros
"the short and simple annals of the p o o r . . . " ,

e à religiosidade livre e digna do " E p i t a p h " :


E. Gosse: Gray. London, 1882.
D. C. Tovey: "Gray". (In: The Cambridge History of English
Literature. Vol. X. 2.» ed. Cambridge, 1921.) "Here rests his head upon the lap of Earth
A. L. Reed: The Background of Gray's Elegy. A Study in the
Taste of Melancholy Poetry, 1700-1750. New York, 1924. A youth, to Fortune and to Fame unknown;
R. Bartln: Essai sur Thomas Gray. Paris, 1934. Fair Science frown'd not on his humble birth
R. W. Ketton-Cremer: Thomas Gray, a Biography. London,
1935. (2.* ed. Cambridge, 1955.) And Melancholy mark'd him for her o w n . . .
*-.

1 UM OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1405

No farther seek his merits to disclose, a forma clássica. Êle é um dos maiores pintores e um dos
Or draw his frailties from their dread abode, piores músicos entre o s poetas ingleses; por isso, esse
(There they alike in trembling hope repose), poeta do povo nunca s e pôde tornar popular. A sua arte
The bosom of his Father and his God." provém de terras longínquas, da poesia realista dos gregos;
o seu pensamento t e n d e para o pessimismo fatalista de
A "Elegy" seria o idílio mais nobre que existe em qualquer Hardy. Não é possível citá-lo: a arquitetura formal dos
língua, se fosse um idílio. Na verdade, o key-word do seus poemas é rigorosa demais para permitir o desmem-
poema, forgetfulness, encerra o protesto indignado contra bramento de versos e frases. Crabbe é o poeta da miséria
o esquecimento do poor, ao qual o mundo negou Fortune da qual Gray fora o artista. O ciclo do idílio pré-romântico
e Fame. É o protesto do plebeu Gray que deveu tudo aos estava fechado.
seus próprios esforços, que rejeitou proteção aristocrática Em toda a parte, o idílio pré-romântico percorre o
e até a dignidade do poet laureate. Gray é o poeta clássico mesmo caminho, da melancolia através do realismo para o
da revolução agrária; mas gravou-se na memória da nação, protesto. Na poesia alemã, Hoelty ( 42 ) representa o lado
porque never spoke out o que sentiu. Era um inglês típico. melancólico da poesia anacreôntica. As suas variações do
O momento idílico da poesia de Gray aparece em toda carpediem são bastante artificiais; quando adota o tom da
a pureza, não da forma mas do sentimento, no Deserted poesia popular, aproxima-se, porém, às vezes, da inspiração
Village (1770), de Goldsmith ( 4 0 ), descrição comovida e de Goethe. Moerike o admirava, e Brahms pôs-lhe em mú-
sentimental da paisagem da revolução agrária, e por isso sica uma ode. Hoelty morreu cedo, é uma figura como-
muito popular. A própria revolução — ou antes as conse- v e n t e ; com mais arte, em língua mais madura, teria sido
quências dela — aparece, e em versos clássicos, na poesia o Gray alemão. O aspecto realista do idílio pré-romântico
de Crabbe ( 4 1 ), que é por isso um dos poetas menos popu- aparece, como fase transitória, na obra de Friedrich Mueller
lares da Inglaterra; mas dos mais fortes. O seu objetivo que, sendo pintor, era chamado Maler Mueller (Aa): na
foi poesia descritiva com intenção moralística: mostrar a mocidade era violento, escrevendo tragédias no estilo do
aldeia, "as T r u t h will paint it, and as Bards will not." movimento pré-romântico "Sturm und D r a n g " ; passou a
É o protesto do "radical", do pensador humanitário, contra velhice em Roma, convertido ao catolicismo, oráculo dos
o falso idílio enfeitado. Wordsworth estava na mesma românticos cristãos. Os seus "idílios" são realistas como
oposição; mas Crabbe é igualmente anti-romântico, por
aversão contra a consolação religiosa que pretende ador-
mecer o pobre, e porque o seu realismo implacável exige 42) Ludwig Christlan Hoelty, 1748-1776.
Gedichte (1782/1783).
Edição por W. Michael, 2 vols., Weimar, 1914/1918.
H. Ruete: Hoelty, sein Leben und Dichten. Ouben, 1883.
40) Cf. nota 107. E. Albert: Das Naturgefuehl Hoelty's. Boon, 1910.
41) George Crabbe, 1754-1832. 43) Friedrich Mueller, dito Maler Mueller, 1749-1825.
The Village (1783); The Parish Register (1807); The Borough Idílios: Die Schaafschur (1775); Das Nusskernen (1775); etc.
(1810); Tales of the Hall (1819). Tragédias: Fausts Leben dramatisiert (1778); Niobe (1778); Golo
Edição por A. J. Carlyle e R. R. Carlyle, 2.a ed., Oxford, 1914. und Genoveva (1781).
R. Huchon: Un poete realiste anglais, George Crabbe. Paris, 1906. Edição dos idílios por O. Heuer, 3 vols., Leipzig, 1914.
J. H. Evans: The Poems of George Crabbe. London, 1933. B. Seuffert: Maler Mueller. Berlin, 1877.
L. Haddakin: The Poetry of Crabbe. London, 1955. w. Oeser: Maler Mueller. Berlin, 1925.
1406 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1407

quadros de Brouwer ou Teniers, desmentidos vigorosos à expediente de Ley Agraria, conjunto de propostas em favor
ternura de Gessner, mas sem intenção social. O sentido de melhoramentos r u r a i s e progressos sociais nos campos.
social do género manifesta-se nos idílios de Voss ( 4 4 ), o Pelo amor à vida rural, Jovellanos parece aproximar-se de
famoso tradutor alemão de Homero — mas observa-se uma Rousseau, embora sejam antes convicções de economista
distinção notável. Quando escreveu em língua literária, fisiocrático e senhor de terras filantrópico. Enquadra-se
adotou as formas classicistas dos ingleses, acreditando no movimento filantrópico da segunda metade do século
aproximar-se do realismo clássico de Homero; os dois idí- X V I I I ; tem mesmo u m coração terno, e escreveu o primeiro
lios narrativos Der siebzigste Geburtstag e Luise, ideali- drama sentimental da literatura espanhola, El delincuente
zações da vida dos pastores luteranos da aldeia, têm o honrado. Apenas é notável que se trate, nessa peça bur-
mérito de ter sugerido a Goethe a ideia e forma de Hermann guesa, de um conflito de honra: é o tema de Calderón.
und Dorothea. Mas quando Voss empregava o dialeto rude O liberal Jovellanos é de velha estirpe. Compreende a
da sua terra, de Mecklemburgo, o plattdeutsch, então era Espanha antiga; talvez fosse o primeiro que, junto com o
diferente. O Winterawend (A Noite de Inverno) descreve historiador das artes plásticas Ceán Bermúdez, chamou a
com toda a franqueza a situação miserável dos camponeses atenção para as catedrais góticas da Espanha. É este o
sob a servidão feudal, e nos Geldhappers (Os prestamistas) lado pré-romântico de Jovellanos, revelando-se também na
transforma-se a advertência em protesto, em ameaça de melancolia das suas poesias ocasionais. Em geral, porém,
revolução — quinze anos antes da Revolução, que nunca Jovellanos é um diletante do bucolismo arcadiano; torna-se
chegou, aliás, àquelas regiões nórdicas. poeta autêntico quando a tristeza do mar, dos campos e
da miséria humana o abate. A natureza parece-lhe
O protesto revolucionário, tão frequente no fim da evo-
lução pré-romântica, assustou muita gente. Burke, W o r d s -
worth, Coleridge tornar-se-ão reacionários; mas estes eram " . . . . r e c i n t o umbrío y silencioso,
ex-liberais ou ex-radicais, convertidos. Os conservadores Mansión la más conforme para un t r i s t e " ;
legítimos tomaram outra atitude. Um espanhol de velha
estirpe, Jovellanos ( 4 5 ), aparece como representante de e na epístola "Fábio a Anfriso" levanta a voz, depois de
muitos correligionários seus em toda a parte da Europa, um século de silêncio classicista, o antigo estoicismo es-
que pretendiam salvar o ancien regime por meio de refor- panhol.
mas mais ou menos fundamentais e orgânicas. Jovellanos A melancolia pré-romântica exprime-se não raramente
vive na história espanhola como autor do Informe en el de maneira mórbida, com acentos .de religiosidade pato-
lógica; e isso não apenas na poesia de místicos mais ou
menos perturbados como Smart e Cowper, mas também em
44) Cf. nota 123. poetas de religiosidade vaga e independente como Blair
45) Gaspar Melchior de Jovellanos, 1744-1811. e Young. Não basta, para explicá-lo, recorrer ao spleen
Poesias (na edição das Obras. vol. I, Barcelona, 1839); El delin-
cuente honrado (1773); El informe en el expediente de Ley Agra- inglês e lembrar a preocupação de um Thomas Browne
ria (1795). com fantasias fúnebres. A Europa inteira imitou Young,
Edição: Biblioteca de Autores Espafioles, vols. XLVI, L.
O. Gonzalez Blanco: Jovellanos, su vida y su obra. Madrid, 1911. e até poetas independentes dessa "Graveyard School" re-
Azorln: "Un poeta". (In: Clásicos y Modernos. Madrid, 1913.) velaram tendências parecidas. Assim Albrecht von Hal-
Fr., Ayala: Jovellanos, su vida y su obra. Buenos Aires, 1945.
140» OITO MARIA CABPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1409

ler ( 4 0 ), grande cientista e patrício orgulhoso de Berna, dominante, e as angústias religiosas são muito acentuadas.
cuja constituição aristocrática defendeu, contra as corren- Mas Blair deve o sucesso — 15 edições em meio século,
tes democráticas» nos romances políticos Alfred e Usong. a última delas com a s gravuras de Blake — ao sucesso
Haller parece, no entanto, um rousseauiano antes de Rous- muito maior do seu rival Edward Young ( 4 8 ), um dos
seau; o seu poema "Die Alpeh" ("Os Alpes"), de 1734, é poetas de influência m a i s profunda na literatura universal,
a primeira poesia europeia sobre os Alpes, e o grande estilo embora as qualidades poéticas não o justifiquem de todo.
de Haller antecipa, de maneira mais robusta, mais suíça, Young é um poeta fastidioso. Aos leitores modernos abor-
a linguagem poética de Klopstock, Schiller e Hoelderlin. rece a poesia didática de lugares-comuns cristãos, os
O pietismo intolerante da sua velhice interpreta-se como sermões metrificados sobre a vaidade da vida e a imor-
reação contra a democracia. Mas Haller foi sempre pie- talidade da alma, a monotonia do estilo sublime. Os con-
tista; o seu cristianismo místico harmonizava bem com temporâneos consideravam esse estilo como miltoniano,
pesquisas fisiológicas. O "grande estilo" de Haller é me- porque viram Milton através dos óculos do classicismo de
nos pré-classicista do que pósbarroco, e o seu sentimento P o p e ; e Young era classicista. As suas tragédias são mol-
da natureza é pré-romântico em função de uma religiosi- dadas em Dryden e Corneille; as suas sátiras são imitadas
dade angustiada que lembra Gryphius; os temas fúnebres de Pope. Mas a eloquência bombástica da tragédia Revenge
voltam sempre, como uma obsessão. lembra Otway e L e e ; e entre as sátiras, aquela contra o
O tema fúnebre de Gray exerceu profunda influência, "not fabulous Centaur", a Volúpia, revela os complexos de
na Inglaterra ( 46 - A ) e no mundo inteiro, pois a Elegia foi violenta sensualidade recalcada em um clérigo de fé duvi-
traduzida para todas as línguas. Mas coube sucesso muito dosa. Com todas as suas frases-feitas sobre Deus e imor-
maior à combinação do tema elegíaco e fúnebre com as talidade, é Young um deísta ou até panteísta que finge ser
angústias da noite: é o assunto poético da "Graveyard cristão. Realmente cristão, em Young, é só o pessimismo
School". A prioridade parece caber ao escocês Robert do desiludido. Disso resulta o prazer em evocar imagens
Blair ( 4 T ) : o título do seu poema, The Grave, dá o acorde de noite, morte, túmulo, cemitério, putrefação — assunto
dos Night Thoughts — e disso também são provenientes
as súbitas explosões de anarquismo moral:
46) Albrecht von Haller, 1708-1777.
Versuch schweizerischer Gedichte (1732); a 2.» ed., de 1934, con-
tém, entre outros poemas novos, Die Alpen; li. 8 ed., 1777); Usong
(1771); Alfred (1773).
Edição por H. Maync, Leipzig, 1923. 48) Edward Young, 1683-1765.
A. Frey: Haller und seine Bedeutung juer die deutsche Literatur. Busiris (1719); The Revenge (1721); The Brothers (1728); Love
Leipzig, 1879. of Fame, or the Universal Passion (1728); The Complaint, or
St. d'Irsay: Albrecht von Haller. Eine Studie zur Geistesgeschichte Night Thoughts on Life, Death and Immortality (1742/1745);
der Aufklaerung. Leipzig, 1930. Conjectures on Original Composition (1759).
Ad. Haller: Albrecht von Haller $ Leben. Bem, 1954. Edição das obras completas por J. Doran, 2 vols., London, 1854.
46 A) J. W. Draper: The Funeral Elegy and the Rise of English Edição dos Night Thoughts por G. Gilfillan, Edinburg, 1853.
W. Thomas: Le poete Edward Young. Paris, 1901.
Romanticism. New York, 1929. H. C. Shelley: The Life and Letters of Edward Young. London,
47) Robert Blair, 1690-1746. 1914.
The Grave (1743). H. Mutschmann's Englische Kultur in sprachwissenschaftlicher
Edição por G. Gilfillan, Edinburg, 1854. Deutung. Leipzig, 1936.
C. Mueller: Robert Blair's Grave und die Grabes- und Nacht- K. Laux: Dos pseudoklassizistische und das romantische in Ed-
dichtung. Jena, 1909. ward Young's Night Thoughts. Muenchen, 1938.
1410 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1411

"Are passions then the Pagans of the soul, É muito marcada a s u a influência na Alemanha ( 5 1 ), nas
Reason alone baptized?" obras de filosofia moral de Gellert, nas odes religiosas de
Klopstok, nos romances sentimentais de Miller, e até no
Eis o protesto romântico de Young, e a fonte das suas Werther, de Goethe. E isto não é tudo: as ideias de Young
angústias. Pretendeu justificar aquele anarquismo ínti- sobre originalidade literária e sobre Homero e Shakespeare
exerceram na Alemanha influência tão profunda que se
mo por uma nova teoria poética (Conjectures on Original
pode dizer que sem Young, a literatura alemã do pré-ro-
Composition), condenando a imitação erudita dos antigos
mantismo e de W e i m a r não teria sido o que foi. Em certo
e celebrando o pretenso génio instintivo de Homero e
sentido, um elemento característico da mentalidade alemã,
Shakespeare; teoria revolucionária que agradou muito aos
a busca de originalidade "titânica", encontrou em Young o
pré-românticos. Na realização, Young não foi além de primeiro apoio teórico.
exclamações enfáticas e, às vezes, de versos famosos pela
Estilo e pensamento de Young sofreram a maior trans-
expressão epigramática da melancolia fúnebre ("Death
formação na Itália ( 5 2 ) . As Notti clementine (1775), de
loves a shining mark, a signal blow"). Os contemporâneos
Aurélio de Giorgi Bertola, ainda são mera imitação. Em
foram mais capazes do que nós outros, hoje, de sentir a
Young, e também em Gray, inspira-se o Carme sui Sepolcri,
angústia pessoal por trás da retórica; Young exprimiu do grande poeta Ugo Foscolo ( ° 3 ) :
em forma clássica e em símbolos cristãos a melancolia an-
gustiada, pré-revolucionária, da época. Daí o sucesso imen- "AH* ornbra de' cipressi e dentro 1'urne
so, do qual participaram os graveyards menores como Blair Confortate di p i a n t o . . . " ;
e Hervey ( 4 0 ) ; este, poeta bombástico sem significação
literária, é digno de nota pela sua religiosidade metodista. o pré-romantismo estético do poeta manifesta-se no pro-
testo contra as leis utilitaristas do governo napoleónico na
Em Oxford, foi um dos primeiros discípulos de John
Itália, que restringiram o luxo dos funerais e túmulos. Mas
Wesley, revelando-se assim a relação íntima entre a gra-
daí, Foscolo chega a outra conclusão:
veyard school e as corerntes místicas da segunda metade
do século. "A egregie cose il forte animo accendono
Ao sucesso na Inglaterra corersponde, pelos mesmos L' urne de' f o r t i . . . "
motivos, o muito maior sucesso internacional de Young ( 5 0 ). Com a ideia bem italiana da "glória", Foscolo volta às
alusões mitológicas e históricas, indicando à poesia italiana
os caminhos de um novo classicismo patriótico. Em 1805,
49) James Hervey, 1714-1758. Ippolito Pindamonte, a quem os Sepolcri foram dedicados,
"Meditations among the Tombs (in: Meditations and Contem-
plations, vol. I. 1746); "Contemplations on the Night (In: Medi-
tations and Contemplations, vol. II, 1747).
L. Tyerman: The Life and Times oj Wesley. Vol. I. London, 51) J. Barnstorff: Youngs Nachtgedanken und ihr Einfluss auf die
1870. deutsche Literatur. Bamberg, 1895.
J. L. Kind: Edward Young in Germany. New York, 1906.
60) P. Van Tleghem: "La poésie de la nuit et des tombeaux en Europe
au XVTHe slècle". (In: Le Préromantisme. Êtudes d'histoire 52) G. Muoni: Poesia notturna preromantica. Milano. 1908.
litttéraire europeenne. Vol. II. Paris, 1948.) 53) Cf. "O Último Classicismo Europeu", nota 77.
1412 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1413

respondeu com um poema já r o m â n t i c o (53"A). Na E s p a n h a t o r n o u - s e poefs poetry: L a m a r t i n e lembrar-se-á d o i n g l ê s


p a s s a r a m d e c é n i o s e n t r e a t r a d u ç ã o , e m 1789, d o s Night ao d a r ao seu p r i m e i r o v o l u m e d e versos o t í t u l o Médita-
Thoughts, p o r J u a n d e E s c a i q u i z , e as r e m i n i s c ê n c i a s tions poétiques et religieuses, e Musset já estava usando
y o u n g i a n a s n a poesia r o m â n t i c a d e E s p r o n c e d a . N o i n t e r - u m l u g a r - c o m u m p o é t i c o , d a n d o à s suas m e d i t a ç õ e s t í t u l o
v a l o a p a r e c e r a m as f a m o s a s Noches lúgubres, que consti- d e Nuits. N o s o u t r o s p a í s e s e u r o p e u s n o t a m - s e Het Graf
t u e m problema bibliográfico. F o r a m publicadas entre as (1791), d o h o l a n d ê s P e i t h ( r,fl ), e a t r a d u ç ã o p a r c i a l d e
o b r a s d e J o s é Cadalso ( 8 4 ) ; m a s é d i f í c i l a t r i b u i r a r e t ó r i c a Y o u n g p e l o n o r u e g u ê s T u l l i n ( 6 7 ) . A s o b r e v i v ê n c i a da
v i o l e n t a da o b r a a esse p o e t a a n a c r e ó n t i c o , m u i t o a f r a n c e - graveyard school verif i c a - s e , d e m a n e i r a s u r p r e e n d e n t e , n a
sado, patriota e partidário da I l u s t r a ç ã o francesa. N a s América. P h i l i p F r e n e a u (58) tornou-se conhecido, d u r a n t e
Cartas marruecas, imitadas das Lettres persanes, de M o n - o século X I X , como o poeta patriótico e satírico, apaixo-
t e s q u i e u , z o m b a r a êle, d e m a n e i r a m u i t o e f i c i e n t e , d o obso- n a d a m e n t e antiinglês, d a g u e r r a de Independência ameri-
l e t o t r a d i c i o n a l i s m o e s p a n h o l : m o r r e u c o m o oficial v a l e n t e cana. A s u a " v i s ã o " T h e H o u s e of N i g h t (1779), é m a i s
na luta pela fortaleza de Gibraltar. O motivo pelo qual do que uma c u r i o s i d a d e bibliográfica: é a p r i m e i r a poesia
l h e foi a t r i b u í d a a q u e l a o b r a é u m e p i s ó d i o b i o g r á f i c o : a u t ê n t i c a , n a s c i d a n o s E s t a d o s U n i d o s . R e c e n t e m e n t e cha-
Cadalso, apaixonado pela atriz Maria Ignacia Ibanez, mou-se a atenção para certas poesias patrióticas de Freneau,
d e s e s p e r o u - s e d e tal m o d o d e p o i s da m o r t e r e p e n t i n a d a celebrando o índio, e j á se disse que teria sido o primeiro
a m a d a , q u e e n l o u q u e c e u e fêz u m a t e n t a t i v a d e e x u m a r poeta americanista, conceito que o seu estilo classicista
o c a d á v e r , p a r a ficar c o m êle. T a l v e z as Noches lúgubres, n ã o j u s t i f i c a . O s c r í t i c o s m o d e r n o s não r e v e l a r a m a m e s m a
descrição impressionante da tentativa, fossem escritas por indulgência para com B r y a n t ( 5 e ) , talvez porque já havia
um anónimo, impressionado pelo episódio; talvez o próprio
Cadalso tenha m u d a d o de estilo com o a s s u n t o : em todo
c a s o e s s e s Night Thoughts realmente "realizados" não dei- 56) Cf. nota 88.
x a m de ser u m fascinante, embora repulsivo sintoma da 57) Cf. nota 26.
mentalidade da época pré-romântica. 58) Philip Freneau, 1752-1832.
Poems (1786); Poems Written Between the Years 1768 e 1794
(1796).
Young deixou memória superficial, mas prolongada na Edição por L. F. Pattee, 3 vols., Prlnceton, 1902/1907; edição crí-
F r a n ç a ( 5 5 ) . A t r a d u ç ã o d e P i e r r e L e T o u r n e u r (1769) tica por H. H. Clark, New York. 1929.
P. E. More: "Freneau". (In: Shelburne Essays, vol. V. New
York, 1908.)
F . L. Pattee: "The Modernness of Freneau". (In: Side Lights
53 A) Cf. "O Último Classicismo Europeu", nota 76. on American Literature. New York, 1922.)
H. H. Clark: Introdução da edição citada.
54) José Cadalso y Vázquez. 1741-1782. L. Leary: That Rascai Freneau. A Study in Literary Failure.
Cartas marruecas (1793); Noches lúgubres. (In: Obras, edição New Brunswick, 1941.
de 1803, vol. m ) .
Edição: Biblioteca de Autores EspaUoles, vol. LXI. 5») William Cullen Bryant, 1794-1878.
J. Tamayo Rubio: "Cartas marruecas", Estúdio crítico. Granada, Thanatopsis (1817); Poems (1821); The Fountain and Other
1927. Poems (1842); etc.
O. Diaz Plaja: Introducción ai estúdio dei romanticismo espanol. Edição por H. C. Sturges e R. H. Stoddard, New York, 1903.
Madrid. 1936. P. Godwin: A Biography of William Cullen Bryant. 2 vols. New
York, 1883.
65) F. Baldensperger: "Young et ses Nults en France". (In: Êtudes J. Bigelow: William Cullen Bryant. Boston, 1890.
d'histoire littéraire. Paris, 1907.) W. A. Bradley: William Cullen Bryant. New York, 1905.
1414 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1415

sido festejado demais, ao passo que Freneau é uma redes- ropa. É sintoma, um entre vários, de um renascimento
coberta dos últimos tempos. O poema Thanatopsis é, sem religioso durante o século X V I I I , tão racionalista na
dúvida, uma obra nobre; visão, digna de um grande poeta, aparência. É sintoma disso a discussão sobre o milagre e
essa visão da humanidade como caravana em marcha para sobre os milagres na poesia. O Barroco contra-reformatório
o fim de cada um e de todos na cova — não quis admitir os milagres dos deuses pagãos, recomen-
dando aos poetas os milagres operados pelos santos cristãos.
" T h e innumerable caravan, which moves Mas a distinção era perigosa. Charles Blount, na tradução
To that mysterious realm, where each shall take dos Two First Books of Philostratus, concerning the Life
His chamber in the silent halls of death." of Apollonius Tyaneus (1680), pretendeu demonstrar que
os milagres atribuídos a esse taumaturgo grego estão tão
Com esses versos — e com o fim, moralizante e trivial bem autenticados por testemunhos como os do Novo Testa-
do poema — Bryant arrancou aos ianques do começo do mento; e propôs a alternativa: acreditar em todos os mi-
século XIX, hostis a qualquer atividade literária, o reco- lagres ou em nenhuma milagre. Bayle, no Dictionnaire
nhecimento da poesia como força viva na vida humana. historique et critique, zombou dos milagres pagãos, para
Depois, Bryant levou mais 60 anos de atividade poética, desacreditar indiretamente os milagres cristãos. Desde os
quase sempre medíocre; descobrindo, é certo, a paisagem estudos de Conyers Middleton, os numerosos milagres, re-
americana, mas contando com pedantismo as folhas das latados por Heródoto e Lívio, desapareceram das historiai
flores desconhecidas na Europa, à maneira da poesia didá- modernas de Grécia e Roma. A poesia classicista já nãc
tica do século X V I I I . Bryant era um homem do século admitira o milagre desde Boileau e Pope. Nesse mesmo
X V I I I , como grande jornalista liberal e inimigo da demo- momento, os teóricos do pré-romantismo começaram a rei-
cracia turbulenta das ruas americanas. Não é um começo: vindicá-lo na poesia. O suíço Johann Jakob Bodmer es-
é um fim. O meio esquecido Freneau não tinha a perfeição creveu, contra o classicista Gottsched, Von dem Wunder-
formal de Bryant, mas uma imaginação muito mais quente. baren in der Poesie (1740), referindo-se a Milton, para
The House of Night não deve ter, aliás, escapado à atenção demonstrar a eficiência poética dos milagres cristãos; e
de Poe, que em várias poesias renovou as angústias fúne- o bispo inglês Richard Hurd lembrou nas Letters on
bres de Young e tratou, no conto "Berenice", um caso de Chivalry and Romance (1762) a credibilidade poética dos
necrofilia, parecido com o de Cadalso. Através de Fre- milagres que ocorrem na literatura medieval e em Shakes-
neau e Poe, a graveyard poetry voltou à Europa, impres- peare. Pela primeira vez surgiu a id'éia de que um milagre
sionando Baudelaire e os simbolistas; também no pré-ra- que não admitiríamos na vida real, pode ser perfeitamente
faelita Dante Gabriel Rossentti, que chegou a repetir a aceitável numa obra de ficção. Era o tempo em que o pró-
terrível façanha de Cadalso, se encontram vestígios dela. prio Voltaire ousou apresentar, em Sémiramis, um espectro
no palco. No século do racionalismo e da Ilustração, essa
A relação entre a melancolia pré-romântica e uma teimosia em reivindicar o milagre poético não era atitude
religiosidade vagamente mística, relação que se manifesta "reacionária"; pelo contrário, era de não conformistas. Mas
an graveyard school, é da maior importância para a história o século X V I I I também é o de Haller, cientista e pietista
da literatura universal e para a história espiritual da Eu-
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1416 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1417

ao mesmo tempo; é o século de Swedenborg ( 6 0 ), minera- •dição imensa, a Unpartheyische Kirchen-und Ketzerhisto-
logista, geólogo, engenheiro e visionário fantástico, que rie (História imparcial da Igreja e dos heréticos): todas
conversou diariamente, com anjos e demónios. A religio- a s Igrejas estabelecidas, diz Arnold, estavam sempre erra-
sidade de Swedenborg teve, sem dúvida, fundo patológico; das; quem estava sempre com a razão eram os heréticos.
mas a dos graveyards também era mórbida. Essa religio- Com essa obra criou Arnold, quase sem sabê-lo, a moderna
sidade mística do século X V I I I tinha passado e continuou historiografia crítica d a Igreja. Sem sabê-lo, porque esse
a passar pelas desilusões frias do racionalismo; não podia precursor do racionalismo tológico visava a fins diferentes:
aderir às Igrejas constituídas, todas então mais ou menos pretendeu desmoralizar os dogmas que separam a cristan-
contaminadas pelo racionalismo e o deísmo. A religio- dade, para unir todos os homens numa Igreja espiritual
sidade mística refugiu-se nas seitas; e o sectarismo do do futuro. Reconhece-se aqui a herança dos franciscanos
século X V I I I é um fenómeno de grande importância, ins- heréticos da Ecclesia espiritualis do século X I I I , dos joa-
pirando, muito além do setor literário, todos os movimentos •quimitas; é a ideia d a "Terceira Igreja", dos anabatistas
espirituais da época, embora sempre clandestinamente, in- e outros sectários revolucionários do século XVI. É de
clusive os políticos ( 8 0 - A ). notar que o centro do pietismo subversivo se encontrava
na Renânia, na mesma região dos anabatistas, entre as
Importância e possibilidades do misticismo revelam-se
vítimas da revolução agrária do século X V I e entre as
em uma personalidade como Gottfried Arnold ( e i ) . Es-
da revolução agrária e industrial do século X V I I I . Mais
tudioso da história da Igreja, convertido por Spener ao
um século, e os mesmos proletários renanos hesitarão entre
pietismo, Arnold partiu de um quietismo do amor divino
o conventículo pietista e o comício em que fala o seu
à maneira de Fénelon, para chegar a especulações fantás-
patrício Friedrich Engels. O misticismo do século X V I I I
ticas, à maneira de Swedenborg, sobre as relações entre a
é um aliado subterrâneo do racionalismo; e talvez fosse
religião e a sexualidade — Arnold é um representante típico
mesmo precursor da Revolução, se não entendermos Re-
do misticismo herético. Mas a sua heresia foi mais longe.
volução burguesa. A variante burguesa do mesmo misticis-
Não encontrando nos credos oficiais o amor cristão como
mo é o sentimentalismo.
o entendia, começou a convencer-se que o cristianismo in-
teiro estava errado. Para demonstrá-lo, escreveu, com eru- As relações entre misticismo e sentimentalismo de um
lado e a literatura pré-romântica do outro, são inegáveis,
mas nem sempre manifestas: romance e comédia senti-
60) Emanuel Swedenborg, 1688-1772. mentais, graveyard poetry, reivindicação do milagre na
Arcana Coelestia (1749); De Coelo et de Inferno (1758); De nova
Hierosolyma (1758); etc. poesia têm raízes no misticismo. Mas os movimentos mís-
M. Lamm: Swedenborg. 2* ed. Stockholm, 1925. ticos que contribuíram para a mudança do gosto literário
E. Benz: "Immanuel Swedenborg ais geistlger Wegberelter des
deutschen Ideallsmus und der deutschen Romantik". (In: Deuts- são mais ou menos subterrâneos, ocultados pelo raciona-
che Vierteljahrsschrift fuer Literaturwissenschaft, 1941.) lismo predominante do século; parecem-se com os rios
60 A) Fr. Heer: Europaeische Geistesgeschichte. Stuttgart, 1953. intermitentes que desaparecem da superfície da terra para
61) Gottfried Arnold, 1666-1714. reaparecer em outro lugar onde ninguém os esperava. Assim
Die erste Liebe, das ist die wahre Abbildung der ersten Christen
nach ihrem lebendigen Glauben und heiligen Leben (1696); a grande corrente da mística europeia desapareceu depois
Unpartheyische Kirchen-und Ketzerhistorie (1699). da Reforma; reaparece no século X V I I I , mantendo-se à
E. Seeberg: Gottfried Arnold. Berlln, 1923.
1418 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1419

margem da Ilustração, mas ligada a ela por mais de um f a c e d a qual os r i t o s e p r e c e i t o s d a Igreja se t o r n a m s e c u n -


fio secreto, alimentando a contra-corrente pré-romântica d á r i o s ; a f r o u x a - s e a m o r a l , em favor d o s e n t i m e n t o , e, u m
e conferindo-lhe, de repente, força explosiva. As duas p a s s o m a i s a d i a n t e — d e í s m o v a g o em lugar d o c r i s t i a n i s m o
fontes principais do movimento são a mística hispano- d o g m á t i c o — t e r e m o s r e l i g i ã o d o coração, d o a m o r a p a i -
francesa e a mística holandesa da "Terceira Igreja" com x o n a d o , d a Nouvelle Héloise. C o m efeito, à q u e l e c í r c u l o
as suas ramificações anglo-saxônicas; e é possível notar d o s q u i e t i s t a s v a u d e n s e s p e r t e n c e u madame d e W a r e n s , a
distinção entre misticismo de tendência quietista e misti- amiga de Rousseau (tt4).
cismo de tendência entusiasta. N o r a m o r e n a n o d o q u i e t i s m o salienta-se P i e r r e P o i -
Na Espanha subsistiram subterraneamente, no século- r e t ( 6 5 ) , d o q u a l os h i s t o r i a d o r e s d a l i t e r a t u r a n ã o t o m a r a m
X V I I , resíduos da mística herética dos "iluminados", não c o n h e c i m e n t o e q u e é , n o e n t a n t o , uma d a s f i g u r a s m a i s
como movimento coerente mas em indivíduos isolados, i m p o r t a n t e s d a h i s t ó r i a l i t e r á r i a d o século X V I I I . F i l ó -
capazes, no entanto, de alterar as doutrinas místicas de s o f o a n t i c a r t e s i a n o , e s t u d o u a d o u t r i n a d e S a n J u a n d e la
Santa Teresa e de impressionar com isso outros indivíduos, C r u z e d e S a n t a T e r e s a , e d i t o u os t r a t a d o s d e m a d a m e
outros movimentos e, finalmente, a Europa inteira. De G u y o n , e f u n d o u , em 1688, u m eremitage d e q u i e t i s t a s em
fato, Santa Teresa foi, involuntariamente, precursora de R h y n s b u r g : o p r i m e i r o c e n t r o do quietismo místico na
Molinos ( 0 2 ), fundador do quietismo, doutrina da passi- região renana, fundação de consequências transcendentais.
vidade da alma humana em face do amor de Deus, espécie O c o n c e i t o c e n t r a l d a d o u t r i n a d e P o i r e t e r a a alma her-
de misticismo niilista. Na ortodoxíssima Espanha não ha- mosa, e n c o n t r a d a em S a n t a T e r e s a ; o i t i n e r á r i o m í s t i c o
via lugar para desvios assim. Na França, porém, o quietismo levaria a u m a transformação da alma humana em vaso de
substituiu a mística ortodoxa berulliana, esmagada pelo sentimentos belos e divinos. "Schoene Seele" é a expres-
catolicismo "razoável" dos classicistas e pelo antimisticismo são s i n ó n i m a , e m l í n g u a a l e m ã , e essa e x p r e s s ã o t e r e s i a n a
dos jansenistas cartesianos. Apóstolo do quietismo, na encontra-se com frequência surpreendente nos místicos d o
França, tornou-se madame Guyon (° 3 ), cujo talento ex- século X V I I I e na literatura sentimental, pré-romântica,
traordinário de persuasão seduziu até um Fénelon. Na do mesmo século, em Gellert e W i e l a n d , Klopstock e Miller,
querela do quietismo, a ortodoxia, representada por Bos- n a s r e g i õ e s a l t a s e b a i x a s d a l i t e r a t u r a a l e m ã . P o i r e t é,
suet, foi vitoriosa. Fénelon submeteu-se. Os quietistas mais s e m e x a g e r o , o pai d o s e n t i m e n t a l i s m o p r é - r o m â n t i c o a l e -
obstinados refugiaram-se em países protestantes, na Suíça, m ã o ( ° 6 ) . P o r i n t e r m é d i o d o filósofo h o l a n d ê s F r a n s
a Renânia. Na Suíça, os pietistas do Vaud conservaram
a tradição de uma religiosidade mística do coração, em 64) E. Seillière: Madame Guyon et Fénelon, précurseurs de Jean-
Jacques Rousseau. Paris, 1918.
65) Pierre Poiret, 1646-1719.
62) Miguel de Molinos. 1627-1696. Fundamenta atheisml eversa (1685); etc.
Guia espiritual (1675). M. Wieser: Peter Poiret, der Vater der romantischen Mystik in
P . Dudon: Le quiétiste espagnol Molinos. Paris, 1921. Deutschland. Berlin, 1932.
63) Jeanne-Marie Bouviers de la Mothe Guyon, 1648-1717. 66) M. Waldberg: Zur Entwickungsgeschichte der schoenen Seele bel
Le moyen court et três facile de faire Voraison (1685). ãen spanischen Mystikern. Berlin, 1910.
A. Guerrier: Madame Guyon, sa vie ses doclrines et son influ- M. Wieser: Der sèntimentále Mensch, gesehen aus der Welt hol-
ence. Orleans, 1881. laendischer und deutscher Mystik im 18. Jahrhundert. Berlin,
M. Masson: Fénelon et Mme. Guyon. Paris, 1907. 1924.
1420 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA. LITERATURA OCIDENTAL 1421

Hemsterhuis, aliás adepto do "entusiasmo" moral e esté- dos sentimentais; e aquela expressão, corrente até hoje em
tico de Shaftesbury, o conceito entrou na estética, influen- língua alemã, caracteriza bem o misticismo de tendência
ciando as doutrinas literárias de Goethe e Schiller. Mas quietista.
Goethe, na mocidade, já pertencera a um grupo de quie- A revivificação da "Terceira Igreja" operou-se na In-
tistas renanos, onde conheceu Susanne von Klettenberg, glaterra, entre os restos do sectarismo revolucionário —
autora de uma espécie de memórias espirituais; dono do aí aparece o misticismo de tendência entusiasta — e através
manuscrito, Goethe incluiu-o no romance Wilhelm Meisters de influências estrangeiras, de Jacob Boehme e de Come-
Lehrjahre, como "Bekenntnisse einer schoenen Seele", nius. Este último renovara a ideia da união das Igrejas
"confissões de uma alma hermosa", que impressionaram separadas, fortalecida pelos projetos paralelos de Leibniz
os primeiros românticos. Naquele tempo, a tradição de e particularmente cara aos Quakers, representantes de uma
Poiret já estava dissociada em dois ramos: um católico, religiosidade tipicamente entusiasta. Os Quakers trouxe-
outro protestante. No ramo católico dominava, na Vestfália, ram essa ideia da fraternidade universal para a América,
a princesa de Gallitzin, centro de um grupo de românticos onde a cidade fundada por William Penn recebeu o nome
convertidos ao catolicismo, destacando-se entre eles Stol- significativo de Philadelphia. A Ilustração secularizará
berg e Brentano. Do ramo protestante saiu Juliane von essas ideias, transformando-as em programa de tolerância
Kruedener, que levou para a Rússia as profecias fantásticas religiosa e filantropia humanitária: o programa da Ilus-
do místico alemão Heinrich Jung-Stilling, perturbando a tração anglo-saxônica ( 6 8 ). O ramo alemão desse movimento
cabeça do tzar Alexandre I com sonhos de reunião das religioso, fortalecido por influências diretas de Comenius,
Igrejas separadas; reminiscências de tudo isso encontram- é o Pietismo ( 6 9 ). O fundador do pietismo alemão, Spe-
se nos Três diálogos, de Soloviev, e em Dostoievski. ner ( 7 0 ), assemelha-se aos puritanos ingleses, menos no
A influência de Poiret não se limitou aos círculos espírito de resistência política. Não pretendeu destruir
intelectuais; na Renânia, com as suas grandes tradições a Igreja luterana, mas apenas conquistá-la internamente,
de misticismo popular, alcançou também as camadas baixas. pela atividade pacífica de conventículos de leigos; pacífica,
Aí surge a figura de Gerhard Tersteegen ( e 7 ), operário, mas eficiente: e esses conventículos foram os berços do
depois pregador e autor de poderosos hinos em língua so- sentimentalismo pré-romântico. E n t r e os discípulos de
lene, barroca: a única grande poesia que o calvinismo ale- Spener estavam August Hermann Francke, o grande edu-
mão produziu. Tersteegen está na região e na tradição da cador que preparou os caminhos à pedagogia de Rousseau,
mística holandesa, da "Terceira Igreja". É um "Stiller im e aquele Gottfried Arnold, místico fantástico que exerceu
Lande", um dos "quietos no país", que foram os precursores

68) Br. Bauer: Der Einjluss des englischen Quakertums auf die
67) Gerhard Tersteegen, 1697-1769. deutsche Kultur. Berlin, 1878.
Ge:'sí2ic/ies Blumengaertlein ínniger Seelen (1727); etc.
Edição por T. Klein, Muenchen, 1925. 69) A. Ritschl: Geschichte des Pietismus. 3 vols. Bonn. 1880/1886.
J. Zwetz: Die dichterísche Persoenlíchkeit Tersteegens. Jena, W. Mahrholz: Der deutsche Pietismus. Berlin, 1921.
1915. 70) Philipp Jakob Spener, 1635-1705.
F . Forsthoff: "Tersteegens Mystik". (In: Monatshefte juer rhei- Pia desideria (1675).
nische Kirchengeschichte, XTI/XIV, 1918/1920.) P. Gruenberg: Philipp Jakob Spener. 3 vola. Goettingen, 1903/
O. Wolter: Terateegen's geistliche Lyrik. Marburg, 1929. 1906.
1422 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1423

a maior influência sobre os racionalistas mais teimosos. Mas o metodismo não é, embora pareça, a forma religiosa
Lessing pareceu sempre, e na realidade é, a maior figura do "entusiasmo" de Shaftesbury, que é uma fé de intelec-
da Ilustração alemã; mas as ideias de Lessing sobre a tuais, enquanto que aquele é um movimento de religiosidade
história, como série de revelações divinas e a educação da pequeno-burguesa e popular. Essa origem — em parte
humanidade para além do cristianismo, para uma "Terceira origem puritana — j á se revela nos precursores poéticos
Igreja" maçónica, têm origens místicas ( 7 1 ). O ramo mais como Isaac W a t t s ( 7 S ), que corresponde mais ou menos a
"entusiasta" do pietismo alemão é a seita do Herrnhuter Tersteegen, mas é mais tipicamente inglês do que este é
ou "Irmãos da Morávia", inspirada indiretamente por Co- alemão; um hino de W a t t s —
menius. O fundador, Graf Zinzendorf ( 7 2 ), é um modelo
de religiosidade perversa, contaminada por complexos re- "Our God, o u r help in ages past,
calcados; os hinos de Zinzendorf chegam a incluir metá- Our hope for years to come,
foras obscenas ou nauseabundas. Mas isso não impediu a Our shelter from the stormy blast,
eficiência da propaganda da seita: missão em todos os And our eternal h o m e . . . "
continentes e fortíssima influência espiritual na Europa.
O conceito central dos Herrnhuter, a religiosidade indivi- — gravou-se na memória do povo inglês pela simplicidade
dual, combinou-se com as perspectivas históricas de Lessing popular, tão diferente do tremor barroco de Tersteegen:
em um discípulo do seminário herrnhuteriano em Niesky,
na Silésia, que se tornou o filósofo do classicismo alemão e "Gott ist gegenwaertig! Lasset uns anbeten
o Padre da Igreja da "Kultur" alemã: Schleiermacher. E und in Ehfurcht vor ihn treten.
Schleiermacher também foi um dos grandes patriotas ale- Gott ist in der Mitten! Alies in uns schweige
mães na luta contra Napoleão, em 1813. O pietismo acabou, und sich innigst vor ihm beuge."
paradoxalmente, como patriotismo ( 7 2 _ A ).

O irmão inglês do pietismo alemão é o Metodismo, cujo Tersteegen é mais calvinista, W a t t s é mais teresiano. Ad-
papel poderoso na formação do pré-romantismo não pode mirador de Santa Teresa (e admirador secreto de Boehme)
ser exagerado. Na sua formação cooperaram vários fatô- foi ainda William Law ( T 4 ) ; o seu Serious Call é o livro
res e influências: Herrnhuter e pietismo, lembranças de de devoção mais lido em língua inglesa, mas não se pode
Boehme e Comenius, resíduos do platonismo de Cambridge.
73) Isaac Watts, 1674-1748.
Horae lyricae (1706); Hymns (1707); Psalms of David (1719).
Edição de poesias escolhidas por W. M. Stone, New York, 1918.
71) W. Dllthey: "Gotthold Ephraim Lessing". (In: Dos Erlébnis und E. P. Hood: Isaac Watts, His Life and Writings. London. 1875.
die Dichtung, 7.' ed. Leipzig, 1920.) V. de S. Pinto: "Isaac Watts and His Poetry". (In: Wessex,
72) Nikolaus Ludwig Graf von Zinzendorf, 1700-1760. 3, 1935.)
B. Becker: Zinzendorf im Verhaeltnis zur Philosophie und Kir- 74) William Law, 1686-1761.
chentum seiner Zeit. Leipzig, 1886. A Serious Call to a Devout and Holy Life. Adapted to the State
O. Pflster: Die Froemmigkeit des Grafen Ludwig von Zinzendorf. and Conâition of.All Orders of Christians (1728).
Wien, 1910. Edição por C. Bigg, London, 1899.
72 A) K. Plnson: Pietism as a Factor in the Rise of German TJatio- S. Hobhouse: William Law and Eightsenth Century Quakerism.
nallam. New York, 1934. London, 1927.
1424 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1425

desconhecer, em sua e em qualquer mística, um elemento informados pelo dogma de Calvino, o Metodismo devia
de religiosidade de "elite", dos círculos eleitos. Disso d á afigurar-se cripto-católico. Daí os conflitos permanentes
testemunho o destino dos Quakers. Mas a situação religiosa de Wesley com os calvinistas, que já representavam a gran-
na Inglaterra não permitiu aquela limitação; em meio de de burguesia, enquanto que os sermões de Wesley se diri-
transições sociais transformou-se o quietismo de Law em giam aos oficiais mecânicos, camponeses comerciantes: à
metodismo wesleyano. Os dissenters, os descendentes dos pequena-burguesia. M a s não surgiu de novo o sectarismo
puritanos, estiveram no início, abertos a influências místi- místico dos séculos X V I e X V I I nem as tendências de
cas; Bunyan fora batista, e W a t t s pertenceu aos congre- revolução social. O robusto realismo inglês de Wesley, do
gacionalistas. Mas depois de 1688, os dissenters constituem qual o estilo do seu Journal dá testemunho, não suportava
o núcleo da nova burguesia. O seu representante mais lido, as sombras da mística, e a amplitude social da sua influên-
o presbiteriano Richard Baxter, encerra nos seus livros cia não permitiu a limitação a conventículos de eleitos.
edificantes lições morais que, segundo Max Weber, cons- Quando o obrigaram a separar-se da Igreja oficial, orga-
tituem o germe da mentalidade capitalista. O grande jorna- nizou logo outra Igreja, a metodista, tornando-se fundador
lista dos dissenters no século X V I I I , é o congregacionalista de uma das grande potências espirituais do mundo anglo-
Defoe. Com rapidez inesperada, o pensamento puritano saxônico. O elemento místico que existia no metodismo
seculariza-se, transformando-se em liberalismo político e refugiou-se na poesia.
económico. O misticismo refugia-se na Igreja anglicana;
A poesia oficial do metodismo, tal como está repre-
ali, é Law o seu representante principal. Mas também lá
sentada por Charles Wesley, irmão do fundador, não difere
se não aguenta. A Igreja anglicana é uma instituição esta-
da hinografia de um Isaac W a t t s ; não tem pretensões lite-
tal, dirigida pelos políticos aristocráticos, mais ou menos
rárias. Só os "intelectuais" de dentro do movimento se
cépticos; a Igreja estava-se tornando um pendant aristo-
permitiram expressões diferentes, nas quais as raízes mís-
crático do não conformismo burguês.
ticas do metodismo reaparecem. Assim é a poesia do meto-
Contra essa tendência revoltou-se J o h n Wesley ( 7 B ), dista Hervey, estabelecendo a ligação entre o movimento
o fundador do metodismo, o Spener inglês; e com a repa- religioso e a Graveyard School. Desde então, pela primeira
ração da burguesia desaparecem logo os elementos quie- vez depois de Milton, se pode falar de poesia teológica na
tistas. Assim como os pietistas alemães, não pretendeu Inglaterra: Cowper é o seu maior representante, o mais
ele sair da Igreja, mas revivificar-lhe a vida religiosa por literário; o pietismo entusiástico revela-se mais nitidamente
um novo "método" de conduta religiosa, método de ilu- em Smart. Mas são, ambos, aleijados, em sentido físico
minação repentina, tipicamente entusiasta. Aos dissenters, e em sentido social: vozes no deserto de um ambiente
antipoético.
O nome de Christopher Smart ( 7 e ) não figura em
75) John Wesley, 1703-1791.
Journal (1791); etc, etc. manuais mais antigos da história literária inglesa, e com
Edição do Journal por N. Curnock, 8 vola., London, 1909/1916.
L. Tyerraan: The Life and Times of John Wesley. 3 vols. London,
1870/1871.
B. Dobrée: John Wesley. Oxford, 1933. 76) Christopher Smart, 1722-1771.
O. Kamin: John Wesley und die englische Romantik. Leipzig, A Song to David (1763); Poems (sem as poesias escritas no ma-
1939. nicômio; 1791).
1426 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1427

certa razão: as sátiras e poesias em estilo classicista que — e depois glosá-los e m inúmeras estrofes, das quais cada
dele se conheceram, não têm importância, e o fim do poeta uma começa com um dos adjetivos, lembra OB poetas mís-
no manicômio tornou-o suspeito para Johnson e todos os ticos espanhóis. Mas S m a r t distingue-se mesmo dos outros
que juravam nas palavras do grande crítico. Smart é um místicos pelo modo d e rezar: sempre fala como membro
"caso". Era descendente de gente pobre, o que o predis- de um coro. A sua poesia é altamente litúrgica. Às vezes
punha para o misticismo. Protetores aristocráticos ajuda- lembra Péguy, mas é mais artificial, o que causa tranheza
ram-no nos estudos, e Smart, em ambiente alheio, perdeu num poeta encerrado no manicômio. O fenómeno Smart
o equilíbrio: caiu em deboche, à maneira da Restauração seria já suficiente para justificar as teorias pré-românticas
— e escreveu em estilo classicista. O metodismo conver- sobre o génio instintivo.
teu-o, produzindo nele a mania religiosa; e no manicômio E m Cowper ( 7 7 ), a mesma combinação de emoções
escreveu A Song to David, que os editores das suas poesias, religiosas e sensações patológicas constitui a matéria de
assustados, não recolheram, e que é uma das grandes obras inspiração de um poeta classicista, da escola de Pope; mas
da poesia inglesa do século X V I I I . Está ao lado das poe- o homem é diferente. Um pobre-diabo, sujeito a acessos de
sias de San Ivan de la Cruz, como expressão assombrosa melancolia mórbida com tentativas de suicídio, perturbado
do êxtase místico — pelos sermões e advertências terrificantes dos pregadores
metodistas, levando uma vida que êle mesmo definiu no
" T h e world, the clustering spheres H e made, verso:
The glorious light, the soothing shade,
Dale, champaign, grove, and hill; "I was a stricken deer that left the herd."
T h e multitudinous abyss,
Duas almas habitavam o corpo do inválido. Uma que cantou
W h e r e secrecy remains in bliss
Deus em hinos simples, que são a expressão poética má-
And Widsdom hides her skill."
xima do metodismo; outra, que compôs sátiras e poesias
humorísticas, à maneira de Pope, e com o mesmo talento
Smart já foi comparado a Blake. Mas não é comparável
de construir versos epigramáticos —
3 nenhum outro poeta. A maneira de enumerar em três
versos os atributos de David —
"God made the country, and man made the town."
"Great, valiant, pious, good, and clean.
Sublime, contemplative, serene, 77) William Cowper, 1731-1800.
Olney Hymms (1779); Poems (1782); The Task and Other Poems
Strong, constant, pleasant, w i s e ! . . . " (1785); The Castaway (1799); Tradução de Homero (1791).
Edição por H. S. Milford, 3.a ed„ London, 1926.
H. Child: "Cowper". (In: The Cambridge History of English Li-
terature. Vol. XI. 2.» ed. Cambridge, 1022.)
Edição do Song to David (com introdução importante) por R. A. H. J. Fausset: William Cowper. London, 1928.
Streatfleld, London, 1901; Edição das poesias completas por N. D. Cecil: The Stricken Deer, or The Life of Cowper. London,
Callan, 2 vols., London, 1949. 1929.
K. A. Mac Kenzie: Christopher Smart, sa vie et ses oeuvres. N. Nicholson: William Coiv.per. London, 1951.
Paris, 1925. M. J. Quinlan: William Cowper, a Criticai Life. Minneapolis,
L. Binyon: The Case of Christopher Smart. Oxford, 1934. 1954.
M2« OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1429

Este verso encontra-se na obra mais ambiciosa de Cowper, Blake ( 7 8 ), poeta lírico de inspiração simples e mu-
The Task, poema descritivo à maneira classicista, cântico sical, é, ao mesmo tempo, o porta-voz de todos os anjos
da modesta paisagem inglesa que a revolução industrial e demónios do Universo; a sua obra é das mais vastas e
destruiu; às vezes rebentando em versos de eloquência mais difíceis jamais criadas por um poeta inglês. Até o
magnífica. Mas Cowper era um infeliz, doente, precisando advento do simbolismo, Blake só era conhecido como autor
de ajuda como uma criança. Os seus versos mais como- de pequenas poesias cantáveis e como gravador de ilus-
ventes são de agradecimento a Mary Unwin, sua compa- trações fantásticas para edições de Dante, Chaucer, Young
nheira e enfermeira: e Gray; as notícias biográficas — as suas ideias revolu-
cionárias que o levaram a ser perseguido pela justiça por
". . . T h e r e is a Book alta traição; as irregularidades sexuais da sua vida parti-
By seraphs writ with beams of heavenly light, cular ; enfim, a loucura — não contribuíram para esclarecer
On which the eyes of God not rarely look, os críticos burgueses da era victoriana. Os pré-rafaelitas
A chronicle of actions just and bright — guardaram conhecimento mais íntimo de Blake como se
There ali thy deeds, my faithul Mary, shine." fosse segredo de uma seita. Só os simbolistas abriram a
porta do tesouro; e então se manifestou, enfim, um dos
Ela havia preparado ao stricken deer o lar, o home do qual
Cowper foi o cantor mais inspirado e mais querido entre
todos os poetas de língua inglesa. Mas por fim, perdeu
essa segurança também. Acreditava-se condenado pela ira 78) William Blake. 1757-1827.
Poetical Sketches (1783); Songs of Innocence (1789); The Book
de Deus, e comparou, no poema The Castaway, a sua alma of Thel (1789); Tiriel (1789); The Marriage of Heaven and Hcll
a um marinheiro perdido no temporal em alto-mar: (1790); The French Revolution (1791); Visions of the Daughters
of Albion (1793); America (1793); Songs of Experlence (1794);
Europa (1794); The Book of Urizen (1794); The Book of Los
"No voice divine the storm allay'd, (1795); The Four Zoas (1797); Auguries of Ima 1803);
Milton (1818); The Everlasting Gospel (1818); Jerusalém (1820);
No light propicious shone; The Ohost of Abel (1822).
When, snatch'd from ali effectual aid, Edição das obras completas por G. Keynes, 3 vols., London, 1925.
Edição das poesias por J. Sampson, Oxford. 1918.
W e perish'd, each alone: Edição dos livros proféticos por D. J. Sloss e J. P . R. Wallis,
But I beneath a rougher sea, 2 vols., Oxford, 1926.
A. Symons: William Blake. London, 1907.
And whelm'd in deeper gulfs than he." P. Berger: William Blake, Mysticisme et Poésie. Paris, 1907.
S. F. Damon: William Blake, His Philosophy and Symboltsm.
Boston, 1924.
"Each alone" é uma expressão significativa. A mania vi- M. Plowman: An Introduction to the Study of Blake. London,
sionária de Smart e o isolamento mórbido de Cowper ini- 1927.
M. Wilson: The Life of William Blake. 2.» ed. London, 1928.
biu-lhes o sentimento coletivo. A poesia do entusiasmo A. Clutton-Brock: William Blake. London, 1933.
místico não encontra eco no metodismo organizado. A J. M. Murry: William Blake. London, 1933.
M. Schorer: William Blake. The Politica of Vision. New York,
poesia mística do fim do século X V I I I é francamente 1946.
herética, e nela os sentimentos coletivos manifestam-se com W. P. Wittcutt: Blake, Psychological Study. London, 1947.
S. O. Davies: Thè Theology of William Blake. Oxford, 1948.
fortíssimos acentos revolucionários: a combinação, que é R. Blackstone: English Blake. Cambridge, 1949.
característica de Blake. M. Margoliouthe: William Blake. Oxford, 1951.
1430 OTTO M A R I A GAHPEAUX H I S T Ó R I A DA. LITERATURA OCIDENTAL 1431

poetas mais celestes e mais demoníacos de todos os tempos. festejando a santidade do ato sexual. Se Blake foi um
"Manifestou-se" é maneira de dizer; porque conhecer a louco, então f o i o louco mais lúcido de todos os tempos.
vida de Blake, poeta, místico, revolucionário e louco, e Porque mais cedo do q u e os outros reconheceu os motivos
estudar as múltiplas influências de Boehme e Swedenborg, sociais da Revolução e adivinhou-lhe a degeneração em
dos gnósticos e de Rousseau na sua obra, ainda não basta vitória da burguesia. Songs of Experience apresenta um
para encontrar caminho certo na floresta desse Universo quadro tremendo, "dantesco", da miséria humana; poesias
poético. É um Universo particular, e por ser criação de como "Holy Thursday", "London", "The Chimney Swee-
um doido, não deixa de ser completo. Penetrando nele, o per" constituem a expressão máxima das consequências da
leitor sente a verdade dos versos de Blake: revolução industrial.
Daí em diante, Blake recebeu revelações celestes e
" . . . Around me night and day infernais à maneira d e Swedenborg, manifestando-se-lhe
Like a wild beast guards my way." a relação secreta entre as tempestades históricas e as revo-
luções do Universo; ou então, poder-se-ia dizer, segundo
A primeira coleção de Blake, os Poetical Sketches, apre- um ponto de vista diferente, que Blake enlouqueceu, co-
senta-nos um poeta classicista, logo redimido pelas leituras meçando a compor cosmogonias e mitos fantásticos, nos
de Shakespeare e Ossian; nos Songs of Jnnocence alcançou quais seres sôbre-humanos e infra-humanos, munidos de
a plena liberdade de expressão, abandonando os artifícios nomes esquisitos, resolvem os destinos do m u n d o ; litera-
que Cowper não soube eliminar, antecipando o estilo colo- tura à maneira dos livros que costumam publicar os para-
quial de Wordsworth. Songs oi Jnnocence é o livro mais nóicos. The Book of Urizen, The Book of Los, The Four
"puro" de Blake, "puro" no sentido do simbolismo neo- Zoas iniciam uma série de "livros proféticos", culminando
em Milton, The Everlasting Gospel e Jerusalém. Vasta
romântico; a obra de
literatura religiosa ou pseudo-religiosa, constituindo uma
espécie de anti-Bíblia na qual as noções divinas e demo-
"The blue regions of the air
níacas trocaram as posições. Milton, emendado de seus
Where the melodious winds have birth."
"erros cristãos", aparece como profeta de Lúcifer, anun-
ciando a abolição dos punições eternas e o perdão de todos
Logo no ano seguinte, começa a elaboração de uma grande
os pecados. A carne e os seus prazeres são santificados,
profecia em prosa, ou antes, um enorme discurso de elo-
e a "Nova Jerusalém" da humanidade redimida não é senão
quência irresistível: The Marriage of Heaven and He//.
uma "Nova Albion", uma Inglaterra purificada dos crimes
Revolucionário, que passara pela escola de Swedenborg,
desumanos da revolução industrial e transfigurada em pai-
ataca com a maior violência os dualismos da religião cristã
sagem verde da Liberdade. T u d o isso em estilo por vezes
e da tirania política, as distinções entre o Bem e o Mal,
eloquente, por vezes epigramáticos, interrompido por poe-
alma e corpo, autoridade e povo, pregando a identidade
sias fascinantes, de hermetismo "metafísico", voltando-se
de Deus e Homem. The French Revolution celebra a liber-
logo para os personagens tremendos de uma mitologia
tação política como se fosse um acontecimento transcen-
particular e para ura simbolismo dificílimo que as pesquisas
dental nos céus; e The Visions of the Daughters of Albion
mais pacientes não conseguiram esclarecer totalmente. A
exige o complemento da revolução pela libertação moral,
1482 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1433

história das religiões e da Igreja oferece analogias: as "The Senses roll themselves in fear,
mitologias fantásticas dos gnósticos que, nos século I I e And the f lat E a r t h becomes a Bali;
I I I da nossa era, pretenderam reunir o cristianismo e o T h e Stars, S u n , Moon, ali shrink a w a y . . . "
paganismo greco-oriental, muitas vezes com o propósito
de inverter os conceitos morais, declarando que "iair is — como a dos gnósticos; evasão de um génio perturbado
foul, and foul is fair." Blake conheceu as doutrinas gnós- para o caos. A palavra "evasão", no entanto, não serve
ticas através de vastas leituras ocultistas, e a ideia da inver- para definir Blake, porque os seus símbolos gnósticos re-
são moral surgiu-lhe em face dos horrores da revolução presentam realidades sociais. A visão de liberdade politica,
industrial, na qual os algozes das crianças, nas usinas, pro- social e sexual, em Blake, está bem caracterizada como
fessavam hipocritamente a moral cristã. Por outro lado, utopia:
aquelas mitologias fantásticas não se limitam a séculos
longínquos: os paranóicos, nos manicômios modernos, con-
" . . . above Time's troubled fountains,
tinuam a fabricar religiões particulares dessa espécie.
On the great Atlantic Mountains,
Blake está situado entre profeta e louco; a verdade das
In my Golden House on h i g h . . . " ;
suas visões reside na sinceridade do amor humano que é
a base das suas conclusões revolucionárias, e a expressão
dessa verdade divina é uma poesia de pureza celestial. mas é uma utopia mais radical do que a ideologia dos revo-
lucionários mais radicais do fim do século X V I I I . E as
A poesia de Blake possui um diploma de autenticidade visões infernais de Blake ("Dark satanic m i l l s . . . " ) só
mística. Os grandes místicos de todos os tempos, ortodoxos transfiguram a sua visão naturalista das ruas de Londres
e heréticos, concordariam com o "caminho" que Blake pro- nos primeiros tempos da revolução industrial, dos mendi-
põe: gos, prostitutas e das crianças de sete anos, exaustas por um
dia de trabalho de doze horas.
"To see a world in a grain of sand
And a heaven in a wild flower, "I wander through each chartered street
Hold infinity in the palm of your hand, Near where the chartered Thames does flow
And eternity in an hour." And mark in every face I meet
Marks of weakness, marks of woe.
A eliminação de tempo e espaço é o método comum das In every cry of every Man
ascensões para o céu dos místicos e das descidas para o In every Infant's cry of fear
abismo do subconsciente, do qual brota a inspiração de In every voice, in every ban
Blake. Será difícil explicá-la sem recorrer à psicanálise, T h e mind-forged manacles I hear.
que conhece bem as fantasias sexuais, as personificações How the chimney sweeper's cry
monstruosas, a torrente de imagens simbólicas. A literatura Every blackening Church appals
de Blake perde assim o aspecto de singularidade absoluta. And the hapless Soldier's sigh
É poesia cósmica e caótica — Runs in blood down Palace walls."
[43 I OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1435

Blake é Dostoievsky em verso: proclama a responsabili- deficiente e leituras desordenadas, com acessos de grafo-
dade de todos por todos. Como Dostoievski, é anarquista mania. Apenas, era u m génio.
espiritualista, mas o seu fim é mais real, é a realização do Blake ficou isolado porque é — anacreônticamente — a
socialismo revolucionário: voz de tradições milenárias, místicas, em favor do prole-
tariado. A burguesia, f eudalizando-se pela compra de lati-
"I will not cease from Mental Fight, fúndios e ligando-se à aristocracia, constituindo assim a
Nor shall my Sword sleep in my hand gentry, participava da direção da Igreja anglicana, aristo-
Till we nave built Jerusalém crática e meio céptica. A burguesia comercial — os dissen-
ters puritanos — estava a caminho do liberalismo político
In England's green and pleasant land."
e filosófico. O campo de ação social do metodismo ( 70 )
é a burguesia média e pequena, na qual é possível distinguir
As muitas maiúsculas são um sintoma, a música verbal
três camadas de leitores: a classe dos artífices comerciali-
é o u t r o : Blake é um simbolista avant la lettre, mas sem o zados, urbanos, à qual Wesley destinava a sua obra de
evasionismo social dos simbolistas. As comparações não evangelização; a classe dos pequenos intelectuais — prin-
servem, tampouco bastam as interpretações psicológicas e cipalmente vigários — nas cidadezinhas e aldeias; e a classe
sociológicas para explicar a existência daquela poesia, das dos leitores propriamente incultos, dos recentemente alfa-
mais puras. Blake tem algo da imaginação cósmica e da betizados. Constituem apenas parcelas do "povo" em geral;
inteligência descontrolada de Victor Hugo, algo da embria- a expressão francesa "populisme" não serve bem para defi-
guez intelectual de Hoelderlin, algo do espírito profético nir-lhes o gosto e as preferências literárias. Será mais
de Dante. Com eles, está acima dos tempos, uma voz de conveniente falar em "plebeísmo", sem significação pejo-
mundos eternos: rativa: todos aqueles são plebeus, por certa vulgaridade
antiaristocrática do estilo e dos sentimentos e por certa
"Hear the voice of the Bard, deficiência de cultura; na hostilidade contra a formação
W h o present, past, and future s e e s . . . " clássica das classes tradicionais revela-se, também, o uti-
litarismo geral da época. Verifica-se aversão contra as
A palavra "Bard" chama-nos rudemente para a expressões da linguagem culta e da inteligência racional,
preferindo-se as expressões do sentimento "simples". A
realidade literária; é reminiscência do gosto pré-romântico
simplicidade é um slogan da época, refletindo as condições
pelos assuntos nórdicos e célticos. A diferença entre Blake
sociais do novo público e alimentando-se da "simplicidade"
e os seus contemporâneos reside em parte no seu estilo,
religiosa dos conventículos pietistas e metodistas, dos
que é o dos dramaturgos elisabetanos e da metaphysical
"quietos no país". O denominador comum dessa literatura
poetry; e em parte, na maneira caótica, — fora e longe de
é o sentimentalismo.
todas as atenuações pelo racionalismo da época — da qual
ele assimilou os elementos pré-românticos: Young e Ossian,
Bíblia e Homero, "Shakespeare Revival", Milton e as né- TO) w. j . Warner: The Wesleyan Movement in the Industrial Re-
voas escandinavas. O artista gráfico Blake está "fora da volution. London) 1930.
M. Lee: The Historical Background of Early Methodíst Enthu-
literatura; parece-se com certos artesãos, de formação siasm. New York, 1931.
1436 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A D A LITERATURA OCIDENTAL 1437

A porta de entrada é o romance. É o mais novo dos a França, é o autor d e um romance de primeira ordem, de
géneros, sem herança de tradições classicistas, capaz de uma daquelas obras q u e se gravaram indelevelmente na
tratar qualquer assunto novo; depois vem o teatro, em que memória da humanidade. Basta pronunciar o título Manon
os pré-românticos já encontram o género da comédia bur- Lescaut, e todos nós vemos, como se tivéssemos assistido
guesa apenas aguarda a sentimentalização. Aquelas três a tudo isso, o encontro de Manon e Des Grieux, no ponto
camadas preferem expressões diferentes: a classe média da diligência em Amiens, a visita de Manon ao seminarista
urbana, o romance sentimental e o drama sentimental; a Des Grieux em St. Sulpice, a cena na casa do jogo, a prisão
classe média rural, o idílio sentimental; as classes baixas de mulheres, a deportação para a América francesa. O
de leitores, o romance "romântico" ou — como se dizia leitor que se lembra do Don Quijote e da Princesse de Clè-
então — "gótico", vulgarização e plebeização do misti- ves, fica logo sabendo que Manon Lescaut é o primeiro
romance realmente moderno, o primeiro em cujas cenas
cismo, desta vez no sentido pejorativo das palavras. Todos
e personagens leitores modernos se podem reconhecer; o
esses géneros novos terão — com a ascensão da burguesia
que não acontece com Gil Blas nem com Moll Flandeis,
no século XIX — um grande futuro: são os pontos de
embora esta última seja algo parecida. Manon Lescaut
partida do romance psicológico, da "pièce à thèse", d a
é uma obra permanente; e isso é tanto mais digno de nota
conto rústico, e do romance policial.
quanto é certo que não faz falta à obra o encanto pitoresco:
O romance sentimental, tanto o do abbé Prévost como é um quadro perfeito do mundo Rococó, entre Watteau
o de Richardson, tem suas bases no libertinismo da Res- e Marivaux, com reminiscências religiosas do grand siècle
tauração e da Régence — libertinismo franco em Prévost, e antecipações libertinas da época pré-revolucionária. Deste
libertinismo recalcado no puritano Richardson, que no en- modo, Manon Lescaut parece perfeitamente situada: a obra
tanto se sentiu bem no ambiente de aristocratas devassos significa a transição do classicismo, da Princesse de CJèves,
e mulheres mais ou menos duvidosas na íashionable esta- ao revolucionarismo, da Nouvelle Heloise, através da
ção de águas de Bath. A força que contribui para formar influência do sentimentalismo inglês, do qual Prévost,
a nova expressão das paixões — "Are passions then the tradutor de todos os romances de Richardson, foi repre-
Pagans of the soul?" — é o misticismo. Richardson é puri- sentante na França. De fato, os outros romances de Pré-
tano e o abbé Prévost é um padre défroque. vost, hoje quase esquecidos, passam-se na Inglaterra; e
O abbé Prévost ( 8 0 ), escritor de segunda categoria, na sua revista Le Pour et le Contre o abbé fêz muito para
benemérito do intercâmbio literário entre a Inglaterra e

Edição do vol. V das Mémoires et aventures por M. E. J. Ro-


80) Abbé Antoine-François Prévost d'Exiles, 1697-1763. bertson, Paris, 1927.
Mémoires et aventures d'un homme de qualité (vol. I-IV, 1728; C.-A. Sainte-Beuve: Causeries du Lundi. Vol. IX.
vol. V-VTI, 1731; no vol. VII: Histoire du chevalier des Grleux F. Brunetière: "Prévost". (In: Êtudes critiques sur Vhlstoire de
et de Manon Lescaut); Le philosophe anglais ou Histoire de la littérature française. Vol. m . Paris, 1883.)
Monsleur Cleveland (1732); Le Doyen de Kíllerine (1735/1740); H. Harrisse: Uabbé Prévost. Paris, 1896.
semanário Le Pour et le Contre (1733/1740); tradução dos ro- V. Schroeder: Uabbé Prévost, sa vie, ses romans. Paris, 1899.
mances de Richardson: Pamela (1742); Clarissa Harlowe (1751); P. Hazard e outros: Êtudes critiques sur Manon Lescaut. Chicago,
Grandisson (1755). 1929.
Edição das obras completas, 55 vols., Paris, 1810/1816. C.-B. Engel: L'abbé Prévost en Angleterre. Paris, 1939.
Inúmeras edições de Manon Lescaut. H. Rodier: Uabbé Prévost. Paris, 1955.
U38 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1439

divulgar as letras inglesas n a França. Acontece, porém, é eterno. E i s porque Manon Lescaut permanece entre todos
que não somente Manon Lescaut, mas também Monsieur os romances sentimentais, perfeitamente legível: é que do
Cleveland e Le Doyen de Killerine foram publicados antes naufrágio de uma literatura inumerável, salvaram-se dois
do primeiro romance de Richardson. H á mais: a Inglaterra personagens, entrando n o panteão dos poucos tipos imortais
romanesca de Prévost não é a Inglaterra real, que êle co- da espécie humana.
nheceu relativamente tarde, mas é, antes, fruto de leituras
O mesmo não se afirmava, até há pouco, a respeito
dos dramaturgos e romancistas da Restauração inglesa, uma
dos romances de Samuel Richardson (Si); ninguém negou
Inglaterra romântica de ladrões e esquisitões, malandros
a grande importância histórica do precursor de Rousseau
e prostitutas. É a Inglaterra de Dryden e Otway, Vanbrugh
e do Werther; mas o público recusou-se a ler esses monu-
e Defoe, vista pelos olhos de um padre défroqué, teste-
mentos de tamanho enorme. Além deste motivo alegava-se
munha da libertinagem da Régence ( 8 1 ). Daí resultam certa
o u t r o : o moralismo quase escandaloso de Pamela, Clarissa
saudade nos seus quadros de vida fácil e o sentimentalismo
e Grandison, romances de sedução, nos quais a virtude
que acompanha as imagens de sensualidade recalcada; a
vence de maneira a mais fabulosa. Richardson, puritano e
situação de homem excluídos daquelas alegrias sensuais
filho de puritanos, começou a escrever com mais de 50
aproxima-o da situação dos pequenos-burgueses que obser-
anos de idade, após ter feito a sua vida de proprietário
vam de longe, com um sentimento misto de indignação
abastado de oficina tipográfica; seu pai era carpinteiro; e
moral e inveja ardente, o modo de viver dos aristocratas.
esse foi bem o ambiente social sobre o qual Wesley exerceu
Por isso, Prévost substitui o desfecho moralizante, satis-
tanta influência. Os romances de Richardson seriam ver-
fatório, da Princesse de Cleves, pelo desfecho trágico de
sões dialogadas da literatura edificante do puritanismo, das
uma paixão vivida até as últimas consequências, pois Ma-
"apostilas" que constituíam a única leitura permitida nas
non Lescaut é a primeira obra da literatura em que a paixão
tardes de domingo. A mistura de sentimentalismo e mo-
puramente sexual, embora enfeitada dos ornamentos do
ralismo explica o sucesso fabuloso, quase inacreditável, dos
Rococó, encontra expressão totalmente franca. É uma data
romances de Richardson, traduzidos e imitados em todas
na história da literatura francesa. É uma obra moderna. O
sentimentalismo é o fundo psicológico de Manon Lescaut,
mas a intenção da obra não é sentimental. O que parece
sentimental ao leitor moderno é o estilo ornado que e antes 82) Samuel Richardson, 1689-1761.
neobarroco e que fora já anacrónico, quando o romance Pamela or Virtue Rewarded (1740); Clarissa or the History of
a Young Lady 1747/1748); Sir Charles Grandison (1753/1754) .
saiu, em 1731; e anacrónico em dois sentidos, porque tam- Edição por w. Lyon Phelps, 18 vols., New York, 1901/1903, e por
E. M. Mac Kenna, 20 vols., London, 1902.
bém antecipava o estilo pré-romântico. Visto assim, o ro- A. Dobson: Samuel Richardson. London, 1902.
mance não é absolutamente Rococó; o ambiente de 1720 L. Schuecking: "Die Grundlagen des Richardson'schen Romana".
é mais adivinhado por nós que descrito pelo autor. O abbé (In: Germanisch-Romanische Monatsschrift, XII. 1920.)
L. Cazamian: "Richardson". (In: The Cambridge History of
Prévost não escreveu o romance de um ambiente pitoresco, English Literature. Vol. X. 2." ed. Cambridge, 1921.)
mas as aventuras de duas almas desvairadas; e esse assunto E. Damielowsky: Richardson's ersier Roman. Berlin, 1917.
B. w. Downs: Richardson. London, 1928.
J. W. Ea-utch: Fiye Masters. New York, 1930.
P. Dottin: Samuel Richardson. Paris. 1931.
A. D. Mac Killop: Samuel Richardson, Prínter and Novelist.
81) Cf. nota 6. Chapei Hlll N. C , 1936.
1440 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1441

as línguas, recebidos com cachoeiras de lágrimas; um ho- Richardson fêz o possível para tornar convincentes os seus
mem como Klopstock escreveu que o fim de Clarissa lhe romances; como jogos gratuitos da imaginação, o puritano
custou cinco lenços molhados. não os teria escrito. O esforço para alcançar verossimi-
Richardson não recuperará nunca mais essa popula- lhança manifesta-se sobretudo no processo novelístico que
ridade; sobretudo o tamanho desses romances interminá- empregou, e que é mais uma inovação decisiva: o método
veis é obstáculo definitivo mas a crítica moderna interpreta epistolográfico. Não analisa diretamente os personagens;
esse defeito como consequência inevitável das análises psi- eles mesmos revelam, trocando cartas, os seus sentimentos;
cológicas exatíssimas, e daí extensas, de um precursor de e este método, típico do romance sentimental do século
Proust. O antigo favorito do grande público é hoje alta- X V I I I , é um processo eminentemente dramático. Em vez
mente apreciado pelos high-brows, pela elite mais exclusiva de colocar-se acima dos personagens, de antemão ciente
do mundo literário anglo-saxônico. Análises psicanalíticas dos seus destinos e comentando-lhes os atos, o romancista
descobriram a libido mal recalcada em Pamela e Clarissa, deixa falar as suas criaturas. É o método do dramaturgo
santas do puritanismo, e no virtuoso Sir Charles Grandison, e tem fontes dramatúrgicas. A arte de Richardson não
colocado entre as mulheres sedutoras Harriet Byron e Cle- provém dos tratados edificantes, mas do teatro da Restau-
mentina delia Poretta. Richardson é um conhecedor incom- ração: daí os villains terríveis, as heroínas eloqttentes, o
parável da alma feminina; e já não se desconhece a simpatia moralismo meio libertino. Sua fonte imediata é a comédia
secreta que nutre pelo seu famosíssimo sedutor Lovelace. sentimental dos últimos tempos da Restauração: em Pa-
De onde vêm ao tipógrafo puritano esses requintes psico- mela ocorrem discussões sobre The Tender Husband, de
lógicos? Steele, e sobre The Distressed Mother, versão sentimental
Richardson, quando começou a escrever, era um homem de Andromaque, por Ambrose Philips; no posfácio de Cla-
abastado. A companhia de aristocratas, na famosa estação rissa, Richardson defende o fim trágico da heroína, que
de águas de Bath, foi o seu maior prazer; tratou os aristo- não corresponde aos preceitos de justiça dramática, refe-
cratas, na vida e na literatura, com a gentileza submissa rindo-se às teorias dramatúrgicas da época; Charles Gran-
de um vendedor diante do freguês. Não era tão puritano dison, assemelhando-se no assunto a The Conscious Lovers,
como parece; tolerava até a companhia do clero da Igreja de Steele, é, em parte, romance dialogado em vez de epis-
oficial e achou admissíveis certos pequenos divertimentos tolográfico. O método dramático de Richardson está, his-
inofensivos. Pretendeu fazer as pazes com a literatura das toricamente entre a maneira de narrar em primeira pessoa,
classes altas. Moralizou o romance heróico-galante, substi- dos romances picarescos e de Defoe, e a oniscência do
tuiu os ladrões e prostitutas de um Defoe por mártires romancista objetivo. Mas não é um método de mera impor-
da virgindade e heróis da virtude; deixou adivinhar o tância histórica. Sem Richardson não haveria, ou não
possível perdão do sedutor Lovelace no outro mundo; e existiriam assim, os complicados métodos narrativos de
notou com satisfação os resultados práticos da resistência Henry James e Conrad. Richardson, porém, pagou caro a
ao vício: Pamela obterá um casamento dos mais vantajosos. exatidão das suas análises psicológicas; pagou com proli-
A virtude vence e faz bem à gente. Nisso, Richardson é xidade imensa; Clarissa parece ser o mais longo dos ro-
o menos realista dos romancistas ingleses. A vitória per- mances em língua inglesa, e o esforço de ler essas obras
manente das forças do Bem é um expediente infantil. Mas por inteiro será sempre raro e heróico. Mas compensa.
1442 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA r»A LITERATURA OCIDENTAL 1443

Um crítico observou que a lentidão meticulosa de Richard- O romance sentimental, entrando no período pré-revo-
son simboliza o ritmo da própria vida. Richardson foi um lucionário, não m u d o u de técnica, mas de desígnio. La^
homem banal e um grande artista. Nouvelle Héloise (1760) ( 8e ) não apresenta aqui a vingança
O romance sentimental é mais uma grande-potência da virtude ofendida, mas o protesto do coração injuriado;
internacional do mundo pré-romântico ( 8 3 ). Na própria em consequência, o personagem principal já não é a mulher,
Inglaterra, o seu sucesso foi maior do que a vontade de mas o homem, embora um herói fraco, um intelectual que
imitar o modelo. Contudo, Sarah Fielding ( 8 3 A ), a irmã não resiste à paixão. O romance de Rousseau conquistou
do grande romancista humorístico e inimigo cordial de o mundo pelo sentimentalismo forçado, violento, que podia
Richardson, apresentou uma variante notável do romance passar por revolucionário. Werther (1714) ( 8T ) confessa aJ
sentimental: The A aventures of David Simple in Quest natureza pessoal, individual, dos seus males; o intelectual
of a Friend, que acrescenta elementos de realismo social, pequeno-burguês pré-romântico preferiu amaldiçoar o Uni-
de sorte que lembra ligeiramente Dickens. Na França an-
verso e meditar o suicídio, em vez de fazer revolução. Foi
tecipou-se às traduções de Prévost o romance Les époux
mais fácil sentir a poesia intensa de Werther do que repetir
malheureux, ou Histoire de M. et Mme. de la Bédoyère
as frases eloquentes e agressivas de Saint-Preux. Havia
(1745), de François-Thomas de Baculard d'Arnaud. Sucesso
uma "moda de W e r t h e r " internacional, antecipação do
grande e internacional alcançaram alguns romances de ma-
Weltschmerz romântico, que é, por sua vez, o epilogo da
dame Riccoboni ( 8 4 ), mais curtos e mais sóbrios do que os
Revolução. Nenhum dos romances wertherianos se aproxi-
de Richardson, e que ainda hoje seriam legíveis. A pos-
ma, nem de longe, do valor do modelo, e a maior parte erra
teridade foi também injusta para com a Schwedische Grae-
85 pela formidável abundância de lágrimas; mas o wertheris-
fin, do fabulista Gellert ( ), romance bastante melhor do
que sua fama. Em compensação, La filosofia italiana, mo em geral possui o mérito de vários outros movimentos
avventure delia marchesa N. N. (1753), do abate Pietro pré-românticos, isto é, ter despertado literaturas velhas,
Chiari, inimigo de Goldoni, distingue-se pela insipidez sonolentas, e outras, novas. Os próprios alemães já não
extraordinária. careciam disso, desde que possuíram no Werther o primeiro
grande romance moderno da sua literatura; o Siegwart
(1776), de Johann Martini Miller, deveu o seu sucesso no-
83) Er. Schmidt: Richardson, Rousseau und Goethe. 2.» ed. Leipzig.
1902. tável apenas à moda. Mas os romances wertherianos de
G. F. Singer: The Epistolary Novel. Philadelphia, 1933. Feith ( 8 8 ), graveyard poet, dramaturgo sentimental e poeta
P. Van Tieghem: "Le roman sentimental en Europe de Richard-
son à Rousseau". (In: Revué de Littérature Comparée 1940.) lírico apreciável, operaram uma renascença da literatura
.83 A) Sarah Fielding, 1710-1768. holandesa; sua Júlia foi até traduzida para várias línguas. A
Adventures of David Simple in Quest of a Friend (1744).
G. Pfuegge: Sarah Fielding ais Romanschriftstellerin. Leipzig,
1908. 86) Cf. nota 172.
A. Dobson: Henry Fielding. 2.° ed. London, 1925.
87) Cf. "O Último Classicismo Europeu", notas 42 e 43.
«4) Jeanne-Marie Riccoboni, 1714-1792.
Letíres de Milady Juliette Catesby à Milady Henriette Campley 88) Rhijnvis Feith, 1753-1824. (Cf. nota 66.)
(1769); Histoire de Miss Jenny (1764). Júlia (1783); Ferdinand en Constantia (1786); — Johanna Gray
E. Grosby: Une romancière oubliée, Mme. JRíccoboni. Paris, 1924. (1791); Het Graf (1791); Oden en Gedichten (1796/1814).
H. G. ten Bruggencate: Rhijnvis Feith. Een bijdrage tot de
Of. "Classicismo da Ilustração", nota 47. kennis van zijn werken en persoonlijkheid. Haarlem, 1911.
Faculdade Eriadual de Direito
de Maringá

1444 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1445

literatura novelística húngara começa com A Herança de Enfim, o personagem do sedutor Lovelace encontrou a úl-
Fanni (1794), de Jozsef Kármán, romance, aliás, mais ri- tima encarnação no Eugênio Onegin, de Puchkin, que é por
chardsoniano que wertheriano; e na literatura russa desem- sua vez o primeiro dos "homens inúteis" da literatura de
penha o mesmo papel A Pobre Lisa (1792), do historiador Turgueniev, Gontcharov e Tolstoi.
romântico Karamisin ( 8 9 ). No século X I X , essa função do O drama sentimental ( 92 ) é expressão da mesma classe
romance sentimental ainda não acabara: a Maria, do poeta urbana e tem as mesmas origens na comédia sentimental de
colombiano Jorge Isaacs ( 0 0 ), famosa pela simplicidade co- Steele, cujo ideal de gentleman burguês foi oposto ao falso
movente do idílio sentimental e pelas descrições da natureza gentleman aristocrático. Pretende refutar o motivo secular
tropical, é o primeiro romance autêntico das literaturas do Rusticus imperans e Jeppe paa bierget, o motivo da
hispano-americanas. Não esqueceremos, nessa altura, o fa- inferioridade fatal das classes não-aristocráticas.
moso romance sentimental brasileiro a Inocência, de Tau-
Exprime ainda a comiseração da pequena burguesia
nay (°°- A ); mas neste também são perceptíveis os pontos pela sua própria situação social; mas já instituiu um novo
contato com Paul et Virginie, isto é, com o idílio pré- código de valores: honestidade chorosa vale mais que no-
romântico. breza alegre.
No romance sentimental havia várias possibilidades de A fonte da energia dramática do novo género é, mais
evolução. Uma, que aparece ocasionalmente no Werther, uma vez, o misticismo; mas não pode ser o misticismo
a ambição pessoal frustrada como motivo secundário do quietista, e sim o misticismo entusiasta que permite e fa-
desespero, transíormou-se em ambição patriótica nas Ulti- vorece a exteriorização teatral dos sentimentos ( 9 8 ). O
me lettere di Jacopo Ortis, de Foscolo (e1)» o único roman- quietista, confiando na ascensão lenta, não se preocupava
ce digno de ser lembrado junto com o modelo. O mesmo muito com os desígnios da Providência divina; podia che-
motivo da ambição pessoal, já isolado do conjunto, sobre- gar a reconciliar-se com o providencialismo naturalista dos
viveu às guerras napoleónicas, reaparecendo em Le Rouge deístas. O romance sentimental — provindo diretamente
et Le Noir. Do wertherismo provém, por sua vez, o Adol- do quietismo — reflete isso mesmo no método epistolográ-
phe, de Benjamin Constant. E assim Richardson pode ser fico: o romance que dsempenha, com respeito aos perso-
considerado como precursor do romance de análise do bur- nagens que criou, o papel de Deus, não é oniscientc, nem
guês derrotado, do romance psicológico do século X I X . sequer preciente. O místico entusiasta, ao contrário, pre-
cisa em todo momento da Providência que lhe guia os
passos; em compensação, sabe possuir a Graça, sente a
89) Cf. "Romantismos de Evasão", nota 57 sua própria bondade, está certo da sua superioridade de
80) Jorge Isaacs, 1837-1895.
Maria (1867).
A. Aría Robalino: Jorge Isaacs y su Maria. Quito, 1937.
M. Carvajal: Vida y pasión de Jorge Isaacs. Santiago de Chile, 92) A. Eloesser: Das buergerliche Drama im 18. und 19. Jahrhundert.
1937. Berlln, 1898.
90 A) Alfredo d'Escragnolle, Visconde de Taunay, 1843-1899. E. Bernbaum: The Drama of Senaibllity. Boston, 1915.
Inocência (1872).
Ph. Serpa: Visconde de Taunay. Rio de Janeiro, 1952. F. O. Noite: Early Class Drama. Lancaster Pe., 1935.
93) I. L. DaviB: "Mystical versus Enthusiastic Senslbility". (In: Jour-
91) Cf. "O Oltimo Classicismo Europeu", nota 77 nal of the History of Ideas, TV,'3, 1943.)
1446 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1447

u m man of feeling, se b e m q u e s u j e i t o às d e s g r a ç a s d a p e ç a s d o a r t e s ã o S e d a i n e (°°), m a i s r e v o l u c i o n á r i o nas p e -


v i d a doméstica e da s u a c o n d i ç ã o s o c i a l ( 0 4 ) . ç a s d o p o l í g r a f o M e r c i e r ( 0 7 ) ; a t é B e a u m a r c h a i s , e m Eu-
génie e La mère coupable, cultivou o drama burguês (98).
A p r i m e i r a " t r a g é d i a d o m é s t i c a " d o s é c u l o X V I I I foi
O p o n t o d e v i s t a m o r a l é a n t e s t r a d i c i o n a l i s t a no Delin-
The London Merchant or the History of George Barnwell,
cuente honrado, d e J o v e l l a n o s ( ° ° ) , e n q u a n t o Kabale und
d e George L i l l o ( 6 5 ) . P o r s e r u m d o s p i o r e s d r a m a s da
Liebe, do jovem Schiller (10°), opondo violentamente à
literatura universal, não deixa de merecer a observação de
d e g e n e r a ç ã o m o r a l da c o r t e a h o n r a d e z e d e s g r a ç a da casa
t e r m a r c a d o é p o c a : p e l a p r i m e i r a vez, u m b u r g u ê s a p a r e c e u
burguesa, é a tragédia mais revolucionária do século X V I I I .
n o p a l c o c o m o h e r ó i t r á g i c o ; t r á g i c o é, aliás, m o d o d e
O género de D i d e r o t , voltando à Inglaterra, encontrou o
d i z e r ; a peça que emocionou p r o f u n d a m e n t e o século s e u r e p r e s e n t a n t e p r i n c i p a l em C u m b e r l a n d ( 101 )> a cujo
X V I I I , p r o d u z i u na o c a s i ã o d e r e p r e s e n t a ç õ e s m o d e r n a s , Jew se e s t e n d e o r a i o d e ação d o s e n t i m e n t a l i s m o , i n c l u i n d o
g a r g a l h a d a s i n t e r m i n á v e i s . The Gamester (1753) d e E d w a r d o mais novo membro da nova burguesia, o judeu. Enfim,
M o o r e é a l g o m e l h o r , e t e m , p o r s u a vez, o m é r i t o d e t e r i m i t a d o r d e C u m b e r l a n d foi o a l e m ã o K o t z e b u e ( 1 0 2 ) , d r a -
i n s p i r a d o a Miss Sara Sampson, d e L e s s i n g . V á r i a s comé- m a t u r g o h a b i l í s s i m o e s u p e r f i c i a l í s s i m o , d e f e r t i l i d a d e es-
d i a s d e G o l d o n i , c o m o II v e r o amico, p a r e c e m - s e c o m o n o v o p a n h o l a ; e n t r e as s u a s c e n t e n a s d e c o m é d i a s e n c o n t r a - s e ,
g é n e r o , ao qual d e c e r t o p e r t e n c e m v á r i a s o u t r a s p e ç a s d o aliás, uma e x c e l e n t e farsa, Die deutschen Kleinstaedter
dramaturgo v e n e z i a n o : Pameía nubile, II padre di iamiglia, i m i t a d a d e Clasina, d e P l a u t o , e m o d e l o d e i n ú m e r o s vau-
e, e s c r i t o e m francês, Le bourru bienfaisant. M a s os d o i s devilles f r a n c e s e s . K o t z e b u e escreveu a p e ç a m a i s r e p r e -
ú l t i m o s já são i m i t a ç õ e s d a s o b r a s d o r e n o v a d o r d o g é n e r o : s e n t a t i v a e m a i s r e p r e s e n t a d a do g é n e r o " d r a m a b u r g u ê s " :
D i d e r o t ( f l B A ) . Le fils naturel e Le père de famille reúnem
o moralismo sentimental e o protesto contra convenções
s o c i a i s obsoletas, d e u m a m a n e i r a q u e p ô d e s e r e n t e n d i d a 96) Michel Sedaine, 1719-1797.
como afirmação das virtudes tradicionais em sujeitos hu- Le philosophe sans le savoir (1765); La gageure imprévue (1768).
L. Guenther: Uoeuvre dramatique de Sedaine. Paris, 1908.
m i l d e s , e t a m b é m c o m o a p e l o aos s e n t i m e n t a i s r e v o l u c i o - 97) Sébastien Mercier, 1740-1814.
nários, não sem certa dose de sensualidade mal dissimulada. Le juge (1774); La brouette du vinaigrier (1775).
L. Béolard: Sébastien Mercier, sa vie, son oeuvre, son temps.
D i d e r o t n ã o foi g r a n d e d r a m a t u r g o ; m a s , n e s s e g é n e r o Paris. 1903.
assim como em todos, um grande precursor. E assim o 98) Cí. "O Classicismo da Ilustração", nota 64.
novo género conquistou a E u r o p a : mais sentimental nas 99) Cí. nota 45.
100) Cf. "O último Classicismo Europeu", nota 41.
101) Richard Cumberland, 1732-1811.
The West Indian (1771); The Jew (1794); etc.
94) O. H. Peake: Domestic Tragedy in Relation to Theology in the S. T. Williams: Richard Cumberland. Hi$ Life and Dramatic
First Half of the Eighteenth Century. (Tese, Ann Arbor, 1941; Works. Newhaven, 1917.
citada por I. L. Davls. Cf. nota 93.)
102) August Friedrich Ferdinand von Kotzebue, 1761-1819.
95) George Lillo, 1693-1739. Menschenhass und Reue (1789); Die deutschen Kleinstaedter
The London Merchant or the History of George Barnwell (1731). (1803); etc, etc.
Edição por B. Dobrée, London, 1949. Ch. Rabany: Kotzebue, sa vie et son temps. Paris, 1893.
L. Hofíman: Qeorge Lillo. London, 1888. L F. Thompson: Kotzebue. A Survey of His Progress in France
05 A) Oí. nota 158. and England. Paris, 1928.
11111 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1446

Menschenhass und Reue. Foi muito mais famosa do que levou para as cidadezinhas e aldeias; em primeira linha, o
todas as peças de Goethe e Schiller, e sob o título The pastor protestante.
Stranger, dominou durante decénios os teatros ingleses e O racionalismo d o século X V I I I minou o dogma menos
norte-americanos; registraram-se representações em Madri do que se pensa; fora da alta sociedade e dos círculos dos
e Moscou, Nápoles e Amsterdã. Nenhuma qualidade lite- intelectuais avançados, a fé permaneceu firme, antes encon-
rária justifica essa glória; mas a técnica dramatúrgica é trando novo apoio n o s reivindicados direitos do coração
nova e eficiente. É a técnica que Scribe, Augier, Dumas contra a "Razão fria". O que mudou foi a situação do
Filho e Ibsen adotarão. sacerdote em relação aos leigos: não pelo racionalismo,
mas pelo utilitarismo. A sociedade quis ver os frutos pal-
Romance sentimental e drama sentimental são, como
páveis da catequese cristã, melhoramentos morais e agrá-
todos os sentimentalismos, expressões de um profundo
rios. Aconteceu, então, que pastores se aproveitaram do
egoísmo: a pequena-burguesia urbana luta pela igualdade
evangelho de Natal para fazer um sermão sobre as vanta-
dos direitos sociais, pretende arrancá-la pelas lágrimas, mas
gens da estabulação, enquanto outros trabalharam mesmo
ignora de propósito as consequências da revolução agrária
no campo para dar o exemplo de vida honrada. Mesmo
e industrial. É preciso abrir exceção, até certo ponto, para
assim não conseguiram encher todas as horas de ócio que
Marmontel ( 1 0 3 ), literato meio sentimental e meio revo-
a administração eclesiástica protestante deixa ao vigário
lucionário, meio racionalista e meio rousseauiano. Em cha-
durante os dias úteis. Leu-se e estudou-se muito nas casas
mados romances históricos lutou pela tolerância religiosa
do cura. O vigário protestante do século X V I I I é, antes
e contra a escravidão, e nos Contes moraux, uma das obras
de tudo, um intelectual de descendência pequeno-burguesa;
mais divulgadas do século X V I I I , apresenta os usuais
nos campos, êle é o único intelectual em todo o distrito.
tableaux de famille, para reivindicar os direitos do coração
Muitos escritores ingleses, alemães e escandinavos do sé-
contra as falsas convenções sociais, sobretudo quando se
culo, são vigários rurais; decerto, a grande maioria é com-
trata do coração enamorado; ousa defender a mãe ilegítima
posta de filhos deles. J á se disse que a literatura alemã
e as uniões de nobres com as filhas inocentes dos campo-
moderna nasceu na casa do cura protestante; e o mesmo
neses. Considera os lavradores superiores aos habitantes
acontece com respeito ao pré-romantismo inglês. Enquanto
degenerados da cidade; recomenda, como Rousseau, a vida
essa gente continuou nos campos, elaborou um novo género
"natural", apresentando cenas de convívio amistoso entre
de literatura, pré-romântico, sentimental, religioso e uti-
gente da alta sociedade e campônios simples. Eis um pro-
litário, idílico e, às vezes, revolucionário ao mesmo tem-
grama, embora puramente teórico, sem conhecimento de
po ( 1 0 4 ). O mais venerável desses modestos homens de
causa. Esse conhecimento só era acessível a uma outra
D e u s é o famoso White of Selborne ( 1 0 B ): passou a vida
camada pequeno-burguesa, que viveu em contato com a
população rural: a daqueles intelectuais que a profissão
104) H. Schoeffler: Protestantismus und Llteratur. Neue Weae zur
englischen Literatur des 18. Jahrhunderts. Leipzig, 1922.
105) Gilbert White (White of Selborne), 1720-1793.
103) Jean-Françols Marmontel, 1723-1799. (Cf. nota 162.) Natural Historji and Antiquities of Selborne (1789).
Contes moraux (1761); Bélisaire (1766); Les Incas (1777). R. Holt-Whlte: Life and Letters of George White of Selborne.
S. Lenel: Un homme de lettres au XVIIle siècle: Marmontel. London, 1901.
Paris, 1902. W. S. Scott: White of Selborne. London, 1960.
M50 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA D A LITERATURA OCIDENTAL 1451

como vigário de Selborne, comunidade rural à qual deve Oliver Goldsmith ( 10T ) é um poeta menor que o destino
o apelido e que lhe deve a imortalidade: tão fielmente adverso lançou a todas as desgraças, para colocá-lo, enfim,
no templo algo classicista da glória. A sua obra mais como-
descreveu, em prosa simples e evocativa, o ciclo das ativi-
vente é a sua própria vida. Filho de um pobre vigário
dades do homem rural, seus trabalhos, tristezas e alegrias;
protestante irlandês, conseguiu estudar no Trinity College,
e demonstrou, ao mesmo tempo, uma curiosidade pela flora
em Dublin, sofrendo todas as humilhações, fracassando
e fauna que lembra o Dr. Thomas Browne. Mas é um como estudante de teologia e de medicina, viajou a pé por
homem simples como Isaac W a l t o n ; e seu livro tornou-se, toda a Europa, buscando uma profissão e ganhando a vida
como o Compleat Angler, companheiro inseparável do in- como músico, e acabou na mais miserável das profissões
glês médio, ao lado da Bíblia. de então, como escritor profissional. Foi membro do clubt
O contato com a população rural e o cristianismo levado de Samuel Johnson, a o lado de Burke, Garrick e Reynolds,
alvo das mofas dos outros por sua inabilidade inata para
a sério produziram intensa compaixão pelos camponeses; o
falar e agir; e vingou-se, dias antes de morrer, com a sátira
mesmo cristianismo e a situação dos vigários como inte-
"Retaliation" certamente a mais suave da literatura inglesa.
lectuais e pequenos-burgueses, dependentes dos terra-te- Goldsmith foi escritor de talentos muito variados. The
nientes, inibem as conclusões revolucionárias. O resultado Traveller é um poema moral e descritivo, em estilo clas-
é o idílio; não o idílio côr-de-rosa da poesia anacreôntica, sicista, com acessos de melancolia pré-romântica. Golds-
mas um idílio triste, sentimental, pré-romântico. O estilo mith é mais poeta na sua prosa, quer no humorismo inti-
é o da "apostila", do livro edificante, leitura das tardes mista dos Essays quer na sátira muito "ilustrada" do
de domingo, da qual Richard Baxter havia dado os maiores Citizen of the World, em que um chinês, imitando as
modelos e que é um dos géneros literários mais cultivados Lettres persanes, de Montesquieu, remete a um amigo, na
do século X V I I I ( 1 0 5 - A ). pátria, as suas impressões da Inglaterra. O grande humo-
rista que em Goldsmith se perdeu, revela-se na comédia
A grande massa dessa bibliografia não tem valor literá- She Stoops to Conquer, uma das farsas mais brilhantes do
rio. Mas a razão não é a falta de sinceridade do idílio, antes teatro inglês, mais digna de figurar na sucessão de Far-
pelo contrário. Publicações documentárias ( 10 °) dão teste-
munho eloquente disso. Aquela literatura peca pela inge- 101) Oliver Goldsmith, 1728-1774. (Cf. nota 40.)
The Citizen of the World (1760/1761); The Traveller (1764);
nuidade do realismo, pela representação da vida real sem Essays (1765); The Viçar of Wakefield (1766); The Good-
esforço estilístico. O valor literário nasceu em Goldsmith, Natur'd Man (1768); The Deserted Village (1769); She Stoops
to Conquer (1771).
quando a realidade foi vista pelos olhos úmidos da saudade. Edição por J. W. M. Gibbs, 5 vols., London. 1884/1886.
Edição das poesias e peças dramáticas por A. Dobson, 2 vols.,
London, 1889.
Edição critica do Viçar of Wakefield por C. E. Doble, Oxford, 1909.
J. Forster: Oliver Goldsmith. 2 vols. London, 1864. (Muitas
105 A) J. M. Creed e J. S. Boys: Religious Thought in the Eighteenth edições.)
Century Ilustrated from Writers of the Period. Cambridge, A. Dobson: Oliver Goldsmith. London, 1888.
1934. A. Mendt: Goldsmith ais Dramatiker. Leipzig, 1911.
St. Gwynn: Oliver Goldsmith. London. 1935.
106) J. Woodíorde: The Diary of a Country Parson. (Publicado por W. Freeman: Oliver Goldsmith. London, 1952.
J. Beresíord, 5 vols. London, 1926/1931.) R. M. Wardle: Oliver Goldsmith. Kansas City, 1957.
1452 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1453

quhar do que a School for Scandal. Mas a corrente literária hexâmetros homéricos: Luise e Der siebzigste Geburtstag,
e o destino pessoal tornaram-no sentimentalista. O poema que continuam a ser legíveis e atraentes. Ali, Goethe en-
The Deserted Village é um clássico da língua inglesa; só controu a inspiração p a r a Herrmann und Dorothea.
uma vez, só aí, se reuniram de maneira perfeita o estilo Antes de tudo, Goldsmith ensinou a romantizar e poe-
equilibrado de Pope, o talento descritivo de Thomson, a tizar paisagens modestas que pareceram prosaicas. Neste
melancolia de Young, e uma calorosa simpatia social para sentido, o seu maior discípulo é Washington Irving ( 1 0 9 ),
com a gente simples e pobre, simpatia que é o apanágio nova-iorquino finamente educado, um aristocrata anglici-
de Goldsmith. Encontrou a expressão definitiva dessa zado entre os nouveaux-riches americanos. Como escritor,
simpatia lembrando-se com saudades da infância em casa era clássico no sentido de Pope, estilista apurado, espiri-
do pai, o pobre vigário rural. Então nasceu, transfigurada, tuoso; homem do século X V I I I . Na "velha" Inglaterra
a realidade, o idílio autêntico. The Viçar of Wakeiield estava em casa; o Sketch-Book das suas impressões de
não é uma obra-prima da literatura. É uma novela bastante viagem na Inglaterra, românticas, shakespearianas, humo-
incoerente, muito sentimental, cheia de reminiscências de rísticas, sentimentais, é a sua obra-prima, obra goldsmithia-
Richardson — e, no entanto, uma obra pessoal e até vi- na — Irving escreveu uma biografia de Goldsmith — e
gorosa. Goldsmith é, em sentimento e humorismo, um dos obra pré-dickensiana, exercendo forte influência sobre o
maiores poetas do home inglês, que, visto através da nos- autor do Pickwick Club. Irving é autor americano pela
talgia do traveller inquieto, se transfigurou para êle em Knickerbocker's History of New York, paródia da obra
paraíso. O vigário Primrose é um herói da ingenuidade pomposa de um patrioteiro, história humorística dos go-
que sofre; nas suas exortações comoventes e ligeiramente vernadores holandeses da antiga colónia de Nova Amsterdã,
ridículas esconde-se a sabedoria resignada de uma vida com alusões satíricas à Nova Iorque americana de 1800.
cheia de desilusões mas sem desespero. É difícil admirar Como complemento dessa obra "historiográfica" escreveu
muito Goldsmith; mas também é difícil não amá-lo. Irving alguns contos americanos, que incluiu no Sketch-
Book: são, como " T h e Legend of Sleepy Hollow" e "Rip
Goldsmith foi, porém, muitíssimo admirado; basta di-
Van Winkle", pequenas obras-primas, nas quais realiza o
zer que o Viçar of Wakefield foi, durante 60 anos, livro da
milagre de transfigurar poeticamente a paisagem prosaica
predileção de Goethe. Embora não sendo muito original,
em redor de Nova Iorque. E isso Irving tinha aprendido
é Goldsmith um escritor tão pessoal que não pôde ser imi-
em Goldsmith. Um pouco mais de realismo burguês, e sur-
tado; a sua influência espalhou-se um pouco por toda a
parte, encontrando-se em Wordsworth, Scott e Dickens, em
Herder e Goethe, em Diderot e Manzoni. Na Alemanha
impressionou, em círculos parecidos, a glorificação da casa 109) Washington Irving, 1783-1859.
A History of New York, by Diedrich Knickerbocker (1809); The
do vigário rural, com a vida idílica e a boa biblioteca, os Sketch-Book (1819/1820); Bracebridge Hall (1822); The Li/e of
filhos estudantes e as filhas noivas, a veneração dos cam- Oliver Goldsmith (1849); etc. etc.
Edição completa pelo próprio autor, 40 vols. New York, 1848/
poneses pelo benfeitor modesto. Parecia um quadro ho- 1861.
mérico. Voss ( 10B ) imitou-o em idílios, metrificados em Edição crítica da Knickerbocker1s History, por St. Williams e Th.
Mac Dowell, New York, 1927.
C. D. Warner: Washington Irving. New York, 1881.
G. S. Hellman: Washington Irving, Esquire. New York, 1925.
108) Cí. nota 123. St. T. Williams: The Life of Washington Irving. New York, 1935.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1455
ira OTTO M A R I A CARPEAUX

no Wilhelm Meister, de Goethe, aparece uma sociedade


g l r l o Auerbach, Georges Sand, Turgueniev e o conto rús-
secreta, dirigindo os destinos da gente. Um teólogo racio-
tico do século X I X ; e Dickens.
nalista como Bahrdt considera a atuação de Jesus como a
A terceira forma de literatura "plebeia" é plebeia
de mensageiro de uma maçonaria judaica. A "religião na-
mesmo, no sentido pejorativo da palavra: escrita por dile-
tural" dos deístas serve-se de rituais bem esquisitos. As
tantes desdenhosos ou por grafomaniacos meio loucos, ou
sociedades secretas pretendem autenticar-se, dar-se pres-
então profissionais espertos e ávidos de dinheiro; litera-
tígio a si mesmas, alegando origem em épocas longínquas
tura destinada às grandes massas de leitores semicultos e
e sabedorias esquecidas. A "sabedoria dos sacerdotes egíp-
incultos. Assim nasceu o género ao qual os ingleses cha-
cios" ganha grande consideração. Outros referem-se aos
mam gothic romance, os franceses roman noir e os alemães
templários e semelhantes ordens misteriosas da Idade Mé-
Schauerroman ( 1 1 0 ). Trata-se de uma reação contra o ra-
dia. O medievalismo desses ocultistas não tem nada de
cionalismo, de uma busca do milagre, mas não do mila-
comum com o medievalismo dos literatos pré-românticos,
gre literário, autenticado pela poesia como em Shakes-
impressionados pelas catedrais, ruínas e epopeias. Ê um
peare e Milton, e sim do milagre atualizado, imediato,
"medievalismo" espetacular e pitoresco, mero expediente
para excitar os nervos. Essa busca encontra-se com um
para impressionar leitores ingénuos. A origem raciona-
movimento poderoso da segunda metade do século X V I I I :
lista dessa imagem deturpada da Idade Média aparece cla-
as sociedades secretas. É a época da decadência da maço-
" ramente no papel sinistro que os monges desempenham; a
naria, transformada em conventículos de charlatães e de
Inquisição, com os seus terrores horripilantes, é apre-
iludidos, que pretendiam (ou fingiam pretender) reformar
sentada como instituição tipicamente medieval. Castelos
a Humanidade. Para esse fim, serviam-se igualmente de
mal-assombrados, com quartos misteriosamente fechados e
slogans humanitários e de espetáculos terrificantes nas
adegas horríveis, quadros de antepassados que começam a
lojas maçónicas, impresisonando os ingénuos e assustando
falar, armaduras que se mexem — todo esse "romantismo de
os tímidos. É a época de Cagliostro; a Zauberfloete, de
objetos" (os alemães usam a expressão Requisitenromantik)
Mozart, apresenta tal mistura de milagres infantis e altos
que enche até hoje os produtos do romantismo baixo da
ideais humanitários. Em parte, os empresários de aparições
literatura popular, tem origem naquele racionalismo às
de espectros acreditavam no seu negócio, assim como mais
avessas do fim do século X V I I I ; servia, então, como hoje,
tarde os espíritas; e deste modo criou-se nas sociedades
à necessidade de evasão, pela leitura, de massas incultas.
secretas uma mentalidade "romântica" ou, antes, pré-român-
É a origem do thriller.
tica ( i n ) . A seriedade é inegável no martinismo de De
Maistre e no rosenkreuzerismo dos românticos alemães; até Quem frequentou, porém, aquelas sociedades secretas
e conventículos maçónicos, foi principalmente a alta aris-
tocracia. E acontece que o autor do primeiro e mais famoso
110) E. Bírkhead: The Tale of Terror. London, 1921. "romance de terror", Horace Walpole, também é um grande
A. M. Killen: Le roman terrifiant et le roman noir. Paris, 1923. aristocrata. É evidente que o "ocultismo" do século X V I I I
J. BrauchU: Der englische Schauerroman um 1800. Zuerich, 1928. e o gothic romance também podem ser interpretados como
H. Garte: Kunstform Schauerroman. Berlin, 1935.
H. P. Lovecraft: Supernatural Horror in Literature. A Study in movimento esteticista ou pseudo-esteticista, reação de can-
English Gothic and Romantic Fictíon. New York, 1945. saço contra o racionalismo e o utilitarismo que dominavam
111) A Viatte: Les sources occultes du romantisme. Paris, 1928.
1456 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1457

a sociedade; pois a alta burguesia já participava, de certo nhece o motivo do incesto dos avôs, com consequências
modo, do poder. Resta explicar por que o público pequeno- misteriosas e funestas na família inteira.
burguês aceitou avidamente o novo género ( 1 1 2 ). Esse Entre os "góticos" apareceu só mais um caso assim,
público também reage, à sua maneira, contra os princípios de diletantismo criador: William Beckford ( 1 1 4 ), milio-
morais, racionalistas e utilitaristas, que são os da grande nário cheio de spleen, descobridor dos encantos pitorescos
burguesia. Prefere os valores estéticos e "estéticos" da aris- de Portugal e Espanha — chegou a influenciar Byron, no
tocracia que continua a admirar. Prefere, às casas comer- primeiro canto de Child HaroId's Pilgrimage. Arruinou-se,
ciais, os castelos. Mas esses leitores são protestantes, im- construindo um palácio enorme em falso estilo "gótico",
buídos de religiosidade quietista: o passado medieval e os com 35 alas para os prazeres dos cinco sentidos, o que não
países católicos inspiram-lhes horror. Estão indecisos entre deixará de impressionar o Des Esseintes de Huysmans. Os
os valores estéticos da aristocracia e o código moral bur- sonhos orientais a que nenhum arquiteto soube satisfazer,
guês. O resultado dessa ambiguidade é u m "mito falso", um Beckford depositou-os na History of the Caliph Vathek,
romantismo de superfície, sem profundidade humana, até legando ao romantismo as suas ideias fantásticas sobre o
mesmo um mito desumano: uma acumulação de horrores Oriente árabe.
absurdos.
O romance "gótico", porém, preferiu os castelos ita-
O romance "gótico" é criação de Horace Walpole ( u 3 ) ,
lianos e espanhóis — atração irresistível dos "mistérios do
o amigo de Madame Du Deffand, grande aristocrata e dile-
catolicismo" para ingénuos leitores protestantes do século
tante nas letras, considerado como o maior epistológrafo
racionalista. Ann Radcliffe ( m ) , não recuando perante as
da língua inglesa. No Castle of Otranto pretendeu imitar
inverossimilhanças mais absurdas, estava como em casa em
Shakespeare, que ao racionalista parecia poeta "medieval"
castelos misteriosos e conventos habitados por monges dia-
— será difícil dizer se se trata de incompreensão profunda
bólicos. Além disso, teve a ideia esplêndida de introduzir
da literatura nacional por parte do classicista desdenhoso,
as aparições sobrenaturais, chegando a assustar a Europa
que escreve para se divertir, ou então se pretendeu escrever
inteira. A dama tinha algum talento literário, que Sir
uma paródia que se tornou meio séria. Em todo caso, W a l -
pole criou um novo género, inventando tudo o que os seus Walter Scott analisou com lucidez. Contudo, não voltare-
sucessores apresentam depois em mil variações; até já co- mos a lê-la. É importante, todavia, saber que Mrs. Radcliffe
foi o autor mais lido e mais divulgado do século X V I I I .
Os contemporâneos compararam-na a Shakespeare; hoje
112) W. Sypher: "Social Ambiguity In a Gothic Novel". (In: Partisan
Revieto, XII/1, 1945.)
113) Horace Walpole. 1717-1797. 114) William Beckford, 1760-1844.
Letters (1732/1797); The Castle of Otranto (1765). History of the Caliph Vathek (1787).
Edições das cartas por P. Toynbee, 19 vols., London, 1903/1925, e Edição por R. Garnett, 2.» ed., London, 1900.
por W. S. Lewis. 12 vols., Newhaven, 1937/1944. J. W. Oliver: The Life of William Beckford. Oxford, 1932.
A. Dobson: Horace Walpole. London, 1910. G. Chapman: Beckford. London, 1937.
P. Yvon: Horace Walpole. Paris, 1924.
K. H. Mehrotra: Horace Walpole anã the English Novel. Oxford, 115) Ann Ward Radcliffe, 1764-1823.
1934. The Mysteries of Udolpho (1794); The Italian (1797); etc, etc.
R. D. Ketton-Oremer: Horace Walpole. A Biography. London, A. A. S. Wieten: Mrs. Radcliffe. Her Relation towards Roman-
1940. ticism. Amsterdam, 1926.
145B OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1459

falariam em Dostoievski. O Monk, de Gregory Lewis ( u a ) , tico, purificados pelo conhecimento melhor da Idade Média,
tornou-se tão famoso que o seu autor andou pela vida com reaparecem em Walter Scott e todos os seus imitadores, de
o apelido de "Monk Lewis"; a história horrorosa do monge Hugo a Alexis, excetuando-se em Manzoni. O elemento
espanhol, apaixonado pela própria irmã e caindo vítima fantástico transfigurou-se artisticamente em E. T. A. Hoff-
do Demónio, deixou vestígios em Byron, Tieck, Hoffmann mann. A deformação fantástica da realidade social tor-
e Poe. O único escritor notável entre os "góticos" é Ma- nou-se o processo novelístico de Sue, de Hugo, nos Misé-
turin ( m ) : em Melmoth the Wanderer emprega todos os re- rables, e de Dostoievski. Mas isso não é tudo. Um dos
cursos do romance de terror para salientar u m personagem "góticos" mais curiosos é o americano Charles Brockden
interessante, mistura de Fausto, J u d e u Errante e Holandês- Brown ( 1 1 8 ), talento inculto e vigoroso, como revelam as
Fantasma. Essa obra, que impressionou Hugo, Balzac e cenas de febre amarela em Ormond. A sua obra principal,
Baudelaire, criou um tipo da literatura romântica; contudo, Wieland, ainda hoje pode impressionar; só é decepcionante
está hoje esquecida; mas uma imortalidade inexplicável o fim, em que Brown, racionalista impenitente, pretende
coube ao seu semelhante Frankenstein (1818), de Mary dar uma explicação pseudocientífica dos acontecimentos
Shelley, esposa do grande poeta. pseudo-sobrenaturais que envolvem, no romance, o grande
crime. Mas justamente esse desfecho é de importância
Um dos romances góticos mais bem escritos é Der
histórica. Brown exerceu grande influência sobre P o e ; e
Geisterseher (O Mágico) (1789), de Schiller; observa-se
a continuação lógica daquele desfecho é o conto "cientí-
como o género encantou todo mundo. Os alemães preferi-
fico", isto é, a narração de um acontecimento misterioso,
ram, porém, uma variante: o romance do ladrão generoso.
desemaranhado depois por meio de silogismos engenhosos;
Rinaldo Rinaldini, der Raueberhauptmann (1798), de Au-
e isso é a definição do romance policial, último descendente
gust Vulpius, alimentou a imaginação de milhões de leito-
do romance "gótico".
res, foi traduzido para todas as línguas e inspirou várias
óperas; Vulpius, aliás, era cunhado de Goethe. Romance sentimental, drama burguês, idílio rústico e
O romance "gótico" correspondia a uma necessidade romance "gótico" eram absolutamente incompatíveis com
espiritual das massas, e não só das massas. A sua reper- a estética classicista; neste sentido, eram géneros revolu-
cussão literária excede de maneira assombrosa os limites cionários. Mas não desempenharam função revolucionária.
do género. Os elementos pseudo-históricos do romance gó- A classe que os criou — a dos intelectuais a serviço do
novo público — não era capaz de fazer a Revolução nem
o pretendeu; e esse fato sociológico revela-se nas qualidades
116) Matthew Gregory Lewis, 1775-1818. estilísticas: pretendeu-se fazer alta literatura para uso do
The Monk (1796).
Edição por E. A. Baker, London, 1907.
O. Bartone: Fra il voto e 1'amore. Note critiche sul Mónaco 118) Charles Brockden Brown, 1771-1810.
di Lewis. Napoli, 1908. Wieland, or the Trans/ormation (1798); Ormond (1799); Arthur
117) Charles Robert Maturin. 1780-1824. Mervyn (1799/1800).
Melmoth the Wanderer (1820). Edição por J. Mac Kay, 5 vols., Philadelphia, 1887.
Edição Bentley, London. 1892. Edição de Wieland em American Authors Series, New York, 1927.
N. Idman: Charles Robert Maturin. Oxford, 1923. D. Lee Clark: A Criticai Biography of Charles Brockden Brown.
W. Scholten: Charles Robert Maturin, the Terror-Novelist. Philadelphia, 1923.
Amstcrdam, 1933. H. R. Waríel: Charles Brockden Brown. Gainesville, Fia., 1950.
I-HiO OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1461

novo público, e esse experimento acabou em subliteratura, a sua herança cristã, as mais das vezes através dos misti-
em plebeização. A literatura dos intelectuais "para o povo" cismos subterrâneos.
não teve consequências revolucionárias. Estas surgiram Plebeísmo e populismo são, ambos, literaturas de eva-
quando os intelectuais começaram a fazer literatura "pelo são. Romance e drama sentimentais, idílio rústico, romance
povo", quer dizer, apoderando-se das formas literárias ge- "gótico" permitem ao novo público a evasão para fora da
nuinamente populares. São, de novo, os intelectuais à monotonia cinzenta da vida pequeno-burguesa. Ossianismo,
procura de expressões novas; daí a semelhança aparente escandinavismo, poesia popular permitem às classes cultas
entre o sentimentalismo burguês e a melancolia pré-român- a evasão para fora do estilo aristocrático de viver. No
tica. Mas o sentimentalismo é próprio do novo público, terreno da teoria estética, o evasionismo produz a revolta
e a melancolia é própria dos literatos, colocados à margem contra o classicismo. A "Querelle des anciens et des mo-
da evolução social. Quando estes procuram a confirmação dernes" volta, apresentando novos aspectos; desta vez, a
da sua mentalidade em criações da poesia popular, conse- revolta é tão radical que não se contenta com rejeitar os
guem evitar a plebeização; nasce então um "populismo" modelos antigos. Ousa-se negar a própria qualidade clássica
literário, do qual, no século X V I I I , o ossianismo é a expres- dos próprios clássicos antigos. Houdart de la Motte negara
são mais forte entre muitas outras. É preciso notar que a o valor de Homero; Robert Wood exaltará Homero, não
distinção entre "plebeísmo" e "populismo" não implica como clássico mas sim como génio da poesia popular e
apreciações estéticas: na literatura populista do século primitiva.
X V I I I não se encontra um Richardson nem um Goldsmith; O século X V I I I ampliou imensamente a matéria de
Burns foi um fenómeno único. Depois, é preciso observar todas as ciências. O conhecimento ou novo conhecimento
que a distinção não exclui a união das duas tendências na dos mundos árabe, indiano, chinês; a revelação da pré-
mesma pessoa: o jovem Goethe, criador do mais poderoso história dos povos germânicos e célticos; a exploração
dos romances sentimentais, é, ao mesmo tempo, na sua científica da América ibérica pelas expedições de cientis-
poesia lírica, o maior representante da literatura populista. t a s ; a descoberta do Pacífico e das suas ilhas pelas viagens
Esta compatibilidade já leva à terceira observação neces- de Cook; a ampliação do Universo pelos astrónomos —
-sária: o populismo também não é revolucionário. Os va- tudo isso ampliou os limites do saber humano no tempo
lores estéticos mudam; os critérios morais, não. Os casos e no espaço. E para assimiliar esses novos mundos, não
•de revolta no romance sentimental — W^ertlier, Ortis — se precisava de cultura aristocrática nem do conhecimento
acabam em desfecho trágico; os casos sentimentais con- das línguas antigas. O pré-romantismo é o primeiro grande
tiuam ligados às convenções morais do público — e os movimento literário na história europeia que não se inspira
populistas só procuram demonstrar a superioridade da mes- na Antiguidade greco-romana. É uma Renascença anti-
ma moral nas expressões populares. "O povo é tão bom renascentista.
como vós", dizem os sentimentais; "O povo é melhor do
que vós", dizem os populistas. E ambos não pensam em Um dos primeiros aspectos dessa revolução literária
duvidar dos conceitos "bom" e "melhor", tradicionais. Para é o exotismo. O século X V I I I amanheceu humilhando-se
a revolução, falta-lhes — do ponto de vista do moralismo humoristicamente perante a sabedoria superior dos orien-
tradicional — certo libertinismo. E nisso todos eles revelam tais, livres do peso das nossas tradições. Assim a Europa
submete-se à crítica razoável do persa de Montesquieu e
1462 O T T O MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1463

dos chineses de Voltaire. O que os racionalistas apreciaram por muitas das quais são, aliás, responsáveis os colabora-
nos orientais foi a sabedoria da velhice, de civilizaçÕe* dores como Louis Daubenton e o abbé Bexon. Tampouco
maduras. O pré-romantismo prefere o u t r o aspecto do lon- satisfazem as suas "opiniões livres", deísmo atenuado de
gínquo: a mocidade, a ingenuidade, os instintos não dege- um grande aristocrata. Definiu-se Buffon como o "Bossuet
nerados, a virgindade intacta da Natureza. Adoram a du Jardin des Plantes", e a definição aponta bem os defeitos
pureza das taitianas, descobertas por Cook, que podem e as virtudes. Buffon não foi um grande cientista; o mundo
andar nuas sem ofensa ao pudor. O exotismo de Bernardin não lhe deve nenhuma descoberta importante. Mas foi,
de Saint-Pierre interpreta-se pelos seus Êtudes de la Na~ como Bossuet, um grande homem de letras, um dos últimos
ture. O que importa não é a distância geográfica, mas o entre os naturalistas antes do advento do utilitarismo cien-
conceito da Natureza; e esse conceito mudara radicalmente. tífico. Fala grandiosamente, como no púlpito, e não dissi-
Até meados do século XVIII apreciava-se sobretudo a Na- mula certa emoção perante o Universo. Mas já é anacrónico.
tureza domesticada, os jardins da França, as planícies bem Outro sentimento da Natureza se anuncia e a sua primeira
cultivadas da Holanda. As montanhas inspiravam o terror. expressão encontra-se em Rousseau. As suas descrições
Ainda em Haller, Die Alpen servem para sugerir medi- nos parecem hoje bastante retóricas, estragadas pelas re-
tações religiosas; mas neste poeta suíço a Natureza livre flexões sobre a saúde moral dos camponeses. A definição
já é símbolo de superioridade moral; um espírito pré- da Natureza como état d'âme tornou-se, através do roman-
rousseauiano lamenta a corrução das cidades. O moralismo tismo, um lugar-comum da literatura universal — mas resta
que interpreta os fenómenos cósmicos como sinais do poder mais outra coisa inteiramente nova. Rousseau admira as
de Deus, sobrevive aos argumentos teológicos. Um deísta montanhas: "Jamais pays de plaine, quelque beau qu'il
como Brockers emprega as mesmas metáforas que os apo- fut, ne parut tel à mes yeux. II me faut des torrents, des
logistas da Igreja anglicana, e a apreciação do Universo rochers, des sapins, des bois noirs, des montagnes, des
como máquina bem construída, majestosa no conjunto e chemins raboteux à monter et à descendre, des précipices
harmoniosa nas partes, ainda inspira um homem de orto- à mes c ô t é s . . . " Quem diz isso é suíço como Haller; res-
doxia tão duvidosa como Buffon ( u 8 ) . Mal se lêem hoje sente-se ainda do moralismo, mas já prefere a natureza
os trechos seletos de Buffon que enfeitam as antologias; selvagem dos Alpes à paisagem cultivada das planícies. O
leitores modernos gostarão pouco do antropomorfismo da primitivismo intencional está a caminho, e quem irá desen-
sua caracterização dos animais — falou-se em "último do» volvê-lo nasceu pelo menos na Alsácia, perto da Suíça:
Physiologi" — nem do estilo pomposo das suas descrições, Ramond de Carbonnière ( 1 2 0 ), geólogo erudito, descobridor
científico dos Pireneus e grande amador dos Alpes; suas
descrições impressionaram, sobretudo, os românticos ale-

119) Georges-Louis Leclerc, comte de Buffon, 1707-1788.


Histotre naturelle ("Théorie de la Terre", 1749; "Les Quadrú-
pedes", 1753/1767; "Les Oiseaux", 1770/1783; "Les Minéraux,
1783/1788; "Supplément", lncl. '%es époques de la Nature", 120) Louis Ramond de Carbonnières, 1755-1827.
1774/1779). Observations faltes dana les Alpes (apêndice à tradução da obra
Edição por M. de Lanessan, 12 vols, Paris, 1883. de W. Coxe sobre a Suiça, 1782); Observations faites dans les
C.-A. Salnte-Beuve: Causeries du Lundi. Vols. IV, X, XIV. Pyrénées (1789).
L. Dimler: Buffon. Paris, 1919. J. Reboul: Vn grand précurseur du romantisme: Ramond de
L. Roule: Buffon et la description de la nature. Paris, 1924. Carbonnières. Paris, 1910.
1464 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1465

mães e ingleses. É evidente a renovação total da sensi- -o paraíso terrestre da Itália, nem as cabanas da í n d i a ; fugir
bilidade pela natureza ( m ) . cada vez para mais longe, até à ilha perdida no Oceano.
Mas não é este o único ou o verdadeiro sentido da obra O exotismo de Bernardin de Saint-Pierre não é geográfico;
de Bernardin de Saint-Pierre ( 1 2 2 ). O famoso idílio Paul enquadra-se na procura do que in principio erat, do virginal
et Virginie está entre os Études de la nature, que renovaram e intacto.
a arte descritiva pela expressão sensual e concreta, e, por Tantas viagens como no espaço o século realizou no
outro lado, a Chaumière indienne, idílio de tendência rous- tempo, percorrendo a Idade Média, os tempos bárbaros, o
seauiana. Bernardin seria um grande artista da antropo- antigo Oriente, até chegar aos começos da humanidade e
morfização da Natureza; Paul et Virginie seria uma égloga descobrir uma nova fonte de poesia na Bíblia.
moderna, obra de evasão para a natureza exótica. Essa in- Em 1753 publicou Robert Lowth, ainda em língua la-
terpretação não é bem justa. Porque Paul et Virginie, tina, o livro De sacra poesi Hebraeorum praelectiones; pela
considerado como égloga, seria uma obra falsa, desfigu- primeira vez se fala, a propósito da Bíblia, em poesia. As
rando a ingenuidade dos filhos da Natureza por sutilezas reticências teológicas já desapareceram de todo no famoso
sensuais, à maneira do Rococó — neste sentido, já foi bem ensaio rapsódico de Herder (Vom Geist der hebraeischcn
definida como Manon Lescaut em versão de Rousseau. O Poesie, 1782/1783), exclamando: "O Cântico, a mais velha
caráter de Bernardin não se harmoniza com essas defi- e a mais bela coleção de poesias de amor! Ruth, o maravi-
nições. E r a um neurastênico melancólico, chegando quase lhoso idílio! As histórias dos patriarcas, que amanhecer
à misantropia, parecendo-se um pouco com Swift. Paul et poético da humanidade!" E assim, Herder estuda os hinos
Virginie é uma elegia, "satírica", no sentido antigo da pa- religiosos do Psaltério, as elegias dos profetas, a sabedoria
lavra, contra a deturpação dos instintos puros pela civi- popular dos Provérbios, as visões cósmicas do livro de
lização; o motivo profundo da obra é a emoção íntima sobre Job. Hoje, não é fácil apreciar bastante a coragem e o
os restos de impureza que Bernardin não conseguiu elimi- alcance da descoberta da poesia na Bíblia. Durante tantos
nar na sua própria alma. É obra de evasão, mas não da séculos, o livro santo só fora fonte de conclusões dogmá-
sociedade e sim de si mesmo. Daí não lhe bastarem as praias ticas e ensinamentos morais, ou, quando muito, de notícias
desertas da costa francesa, nem as montanhas suíças, nem históricas. Foi preciso uma coragem moral extraordinária
para descobrir a poesia hebraica, através de cuja descoberta
a poesia, por sua vez, alcançou dignidade divina. Herder
121) D. Mornet: Le sentiment de la nature en France, de Jean- não deixou de analisar os meios de expressão da poesia
Jacques Rousseau à Bernardin de Saint-Pierre. Paris. 1907. bíblica — o paralelismo dos membros do verso, o ritmo
122) Jacques-Henri Bernardin de Saint-Pierre, 1737-1814. viril da prosa — celebrando-a como "a mais velha, a mais
Êtudes de la nature (1784); Paul et Virginie (1787); La chau- simples e a mais íntima poesia da terra". Um resíduo do
mière indienne (1790).
Edição das obras completas por A. Martin, 12 vols., Paris, 1818/ Rococó, unido ao entusiasmo pré-romântico pela vida rural,
1820. é a preferência dada à poesia idílica. Ao mesmo tempo,
Edição de Paul et Virginie por M. Souriau, Paris, 1930.
A. Barlne: Bernardin de Saint-Pierre. Paris, 1891. revaloriza-se o idílio de Teócrito, já não interpretado à
F. Maury: Êtude sur la vie et les oeuvres de Bernardin de maneira elegante dos pastores do Rococó, e sim como repre-
Saint-Pierre. Paris, 1892.
L. Roule: Bernardin de Saint-Pierre et Vtiarmonie de la nature. sentação realista da vida dos camponeses sicilianos e, por-
Paris, 1930.
1466 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1467

tanto, superior às églogas artificiais de V i r g í l i o . E a m e s m a m u i t o difícil às nações de línguas neolatinas; pois o mero
inversão dos valores estende-se ao mais v e l h o documento> entusiasmo por H o m e r o não era bastante, em literaturas
da poesia grega, a Homero. imbuídas de espírito latino, para conseguir a transformação.
E n t r e 1715 e 1726, P o p e traduzira as duas epopeias A tradução francesa da Ilíada (1766) e da Odisseia (1777),
h o m é r i c a s ; a tradução é p o u c o fiel, t a l v e z não digna do por Guillaume D u b o i s de Rochefort, não se afasta dos mol-
original, mas d i g n a da tarefa; c o m toda a razão, foi muito des virgilianos. J á não se pode dizer o m e s m o sobre a
admirada. N o fim do século, porém, já não satisfez aos Ilíada (1810), de Monti, obra admirável da arte de traduzir,
admiradores de Homero, s e n d o substituída, em 1791, pela certamente uma obra classicista, mas com sombras de me-
tradução de Cowper, mais fiel, m e n o s "clássica" e m u i t o lancolia pré-romântica; e na Odisseia (1822), do seu amigo
mais inglesa. A diferença das traduções reside em inter- I p p o l i t o P i n d e m o n t e , já prevalece o espírito do idílio. É
pretações d i f e r e n t e s : o H o m e r o de P o p e é um grande poe- pré-romântica a inspiração da tradução de Cowper, que é
ta-artista; o H o m e r o de Cowper é u m g é n i o da poesia índice de uma importante transformação do espírito da
popular. E m outras palavras, o H o m e r o de P o p e é v i s t o l í n g u a i n g l e s a : na combinação de elementos latinos e ger-
p e l o s olhos de V i r g í l i o — ocorrem-nos palavras de V o l - m â n i c o s , que c o n s t i t u e m a língua, os elementos latinos,
taire: "Se V i r g í l i o é uma obra de H o m e r o , então é a sua preponderantes em Milton, P o p e e S w i f t e ainda em Gray,
obra-prima". Com efeito, durante t o d o s os s é c u l o s de cul- cedem à preponderâncias dos elementos germânicos em
tura latina do Ocidente, V i r g í l i o foi considerado o maior Cowper e W o r d s w o r t . A Alemanha, finalmente, não teve
dos poetas antigos, e H o m e r o apenas uma espécie de pri- tradição latina, n e m tradição virgiliana. Daí a frescura e
meira edição, ainda imperfeita; devido às d i f i c u l d a d e s l i n - o r i g i n a l i d a d e da tradução de H o m e r o por VOBS ( l 3 a ) , o
guísticas, H o m e r o foi m e n o s c o n h e c i d o ; o c u l t o dedicado f i l ó l o g o pré-romântico, poeta do idílio sentimental da Luise
ao seu nome foi, muitas vezes, mera hipocrisia que só u m « do idílio "social-revolucionário" d o s Geldhappers. Como
Houdart de L a M o t t e ousou denunciar. N o s é c u l o X V I I I , obra de arte, o seu H o m e r o é inferior a Monti e até a Pope,
os valores se invertem. A prioridade cronológica de H o - e antes comparável a C o w p e r ; mas sua tradução é m e n o s
mero começa a significar prioridade p o é t i c a : quanto mais pré-romântica, é mais "clássica", porque V o s s era realmente
perto das o r i g e n s da humanidade, tanto mais original, em- u m grecista. Seria precipitado dizer que a tradução de V o s s
bora m e n o s artística, é a poesia, e o c o n c e i t o da originali- é "grega" o u "mais grega" do que as outras; é um poema
dade coloca-se do centro da teoria literária. N o que d i z alemão do fim do século X V I I I , mas parece mais grego
respeito a Homero, já as Conjectures on Original Compo- porque é m e n o s latino. V o s s criou, abandonando o hexâ-
sition, de Y o u n g , pretenderam explicar o g é n i o do v e l h o
poeta pela sua originalidade, pois não teve modelos. E s s a
teoria foi d e s e n v o l v i d a por Robert W o o d em An Essay
123) Johann Heinrich Voss, 1751-1826. (Of. nota 44.)
on the Original Genius and Writings of Homer (1769). A í Gedichte (1786; nesta coleçâo os Idílios "Wlnterawend", 1775,
H o m e r o é caracterizado como g é n i o da poesia sem arte, "De Geldhappers, 1775; "Der siebzlgste Geburtstag", 1781);
"Odyssee" (1781; 2.» ed. 1793); Ilias (1793).
da poesia popular, oposta ao talento artístico de V i r g í l i o . Edição da Luise por K. Blndel, Ootha, 1888; Edição da primeira
O problema do século era a "desvirgilização" de Homero, versão da Odisseia, por M. Bernays, Stuttgart. 1881.
W. Herbst: Johann Heinrich Voss. 2 vols. Leipzig, 1872/1876.
e não causa estranheza que essa tarefa se tenha tornado A. Schroeder: Oeschichte der deutschen Homer-Uebersetzung.
Jena, 1882.
1168 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1469

metro miltoniano de Klopstock, o novo hexâmetro de- poesia inglesa ( 1 2 5 ). A adoção do verso branco miltoniano
Herrmann und Dorothea; a reforma métrica é sintoma do por Thomson é sintoma importante. Lycidas e a melan-
grecismo pré-romântico da nova literatura alemã, nascida' colia pré-romântica do Penseroso contribuíram para criar
sob o sinal da equação entre "poesia homérica" e "poesia o novo sentimento da natureza e o estilo sublime, e no
original". Na segunda edição da Odisseia, Voss já teve entanto íntimo, de William Collins e Gray; e a influência
que tornar mais rigoroso, mais "clássico", o metro. Mesmo miltoniana continuou assim até Wordsworth se revoltar
assim, o Homero de Voss é o Homero mais homérico que contra a "poesia solene". Para Collins e Gray, Milton é o
existe em qualquer língua moderna. poefs poet, o artista incomparável; mas em geral, o Milton
do século X V I I I inglês é o "clássico da família", o grande
A descoberta de Homero levou à das epopeias medie-
poeta cristão da nova burguesia. No Continente, onde não
vais, até então desprezadas ou esquecidas. Quando o jesuíta
existia tradição puritana, Milton apareceu com a força de
voltairiano Saverio Bettinelli, aliás um crítico muito inte-
um revolucionário poético, derrubando o racionalismo clas-
ligente, ousou atacar, em nome dos princípios classicistas,
sicista, abrindo a visão a um mundo de revoluções cósmi-
a poesia de Dante (Lettere virgiliane, 1756), propondo fazer
cas ( 1 2 e ). O jansenista Louis Racine, filho do grande
uma antologia dos trechos e versos "suportáveis", respon-
dramaturgo, traduziu, em 1755, o Paradise Lost, para opor-
deu Gasparo Gozzi ( m ) com a Difesa di Dante (1758),
se igualmente ao classicismo racionalista da Henriade e ao
sátira tremenda contra o racionalista e o início da "dante-
classicismo ortodoxamente católico de Le Franc de Pom-
latria" moderna. Quase ao mesmo tempo, em 1757, Bodmer
pignan. Quando Alfonso Varano pretendeu dar à Itália
traduziu a segunda parte do Nibelungenlied, e, em 1759,
uma nova poesia dantesca, saíram as Visioni, publicadas só
junto com Breitinger, uma antologia de lieds dos Minne-
em 1789, na forma de Dante e dentro do espírito de Milton.
saengers medievais. Em 1779, Tomás António Sánchez
O poema, que foi muito admirado, influenciou a poesia nar-
publicou o Poema dei Cid. Mas a poesia alemã medieval
rativa de Monti. Na Alemanha, a descoberta de Milton equi-
permaneceu, até o romantismo, como simples curiosidade
valeu a uma revelação religiosa. Bodmer, que em 1732
histórica, e nem a poesia italiana nem a espanhola estavam
traduzira o poema, defendeu-o em 1740 contra o classicista
em condições de seguir os exemplos de Dante e do cantor
Gottsched, na Kritische Abhandlung von d em Wunderbaren
do Cid. É significativo, também, que ninguém na França
ín der Poesie und dessen Verbindung mit dem W ahrschein-
se lembrasse de Ronsard, e que a Chanson de Roland con-
Jichen. In einer Verteidigung des Gedichtes Jobann Mil-
tinuasse a dormir entre os manuscritos não classificados
tons von dem Verlorenen Paradiese (Do Milagre na Poe-
da biblioteca de Oxford. E m toda a parte, o classicismo
sia.... em Defesa de Milton); foi preciso, como reza o
tinha interrompido as tradições nacionais.
título, defender, contra o racionalista, os milagres que
Uma tradição poética ininterrupta existia só na Ingla- ocorrem na epopeia inglesa. Em 1750/1752 deu Bodmer a
terra. Ali, não se pode falar bem em "descobertas". A conhecer a sua própria imitação, o Noah. Mas este já era,
glória de Milton sofrera apenas eclipse efémero durante a
Restauração; Addison já inaugura a época miltoniana da.
125) R. D. Havens: The Influence o) Milton on English Poetry.
Cambridge Mass, 1922.
124) Cf. "Classicismo da Ilustração", nota 8. 126) J. O. Robertson: Milton's Fame on the Continent. London, 1909.
1470 OTTO MARIA GARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1471
também, imitação dos primeiros cantos (1748) do Messias,
de Klopstock, epopeia miltoniana que inaugura a nova lite- então decidido, aplaudindo o "Shakespeare Revival", no
ratura alemã. palco. Esse revival não consistia numa descoberta de Sha-
Spenser não estava tão nítido na memória inglesa, e kespeare pelos atôres e diretores do teatro; foi, antes, uma
as consequências do reaparecimento do poefs poet foram substituição das "versões" correntes por outras adaptações,
limitadas. E m The Castle of Indolence, de Thomson, res- mais fiéis. O drama elisabetano, assim como as edições
surgiu a sua maneira alegórica e na Pastoral Ballad, de exatas o apresentam, dificilmente pode ser representado
Shenstone ( m ) , a sua maneira idílica; n a Ode on the Poe- no teatro moderno com as suas convenções inteiramente
tical Character, de William Collins, aparece Spensér feste- diferentes das elisabetanas; a shakespeariolatria moderna,
jado ao lado de Milton. O teórico desse revival foi Thomas agarrando-se à letra e estrutura cénica de Shakespeare,
Warton, publicando as Observations on the Fairy Queen prejudicou-lhe o efeito no palco. O teatro dos séculos
(1754); e o maior dos spenserianos do século X V I I I é o X V I I e X V I I I não conhecia escrúpulos filológicos assim;
poeta escocês Mickle ( 1 2 8 ), autor do Sir Martyn, "a põem representou adaptações das peças shakespearianas, às vezes
in the manner of Spenser", antecipação de Tennyson. bastante hábeis, e a diferença dás épocas antes e depois
Mickle também traduziu Camões; e o seu poema Cumnor do revival consiste apenas nisto: antes, as modificações
Hall forneceu o assunto de Kenilworth a Walter Scott, diziam respeito ao gosto classicista e às necessidades do
que por sua vez tomará, de preferência, versos de Spenser palco moderno; depois, só a estas últimas ( l 2 0 ) . O respon-
como epigrafes de capítulos dos seus romances. sável por essa mudança de atitude e pelo "Shakespeare
Revival" é o grande ator Garrick ( 1 3 0 ), amigo de Johnson,
O "esquecimento total" de Shakespeare na Inglaterra Goldsmith e Reynolds; êle mesmo excelente comediógrafo
não passa de uma lenda, inventada pelos estudiosos alemães no estilo da Restauração e conhecedor profundo da mise-
que pretendiam monopolizar o grande poeta. Shakespeare en-scène. É significativo o ter êle começado com a adap-
nunca esteve esquecido nem sequer desprezado. A crítica tação de Romeo and Juliet, a tragédia mais "latina" de
hostil de Thomas Rymer é mero episódio entre Dryden Shakespeare, e só 24 anos depois ousar a representação
e P o p e ; e este último, o classicista, deu, após a primeira de Hamlet. Mas a grande série de representações do revival
reedição de Shakespeare por Nicholas Rowe (1709), a sua de 1769 já foi uma consagração nacional. Desde então,
própria edição (1723/1725), ainda "emendando" e "corri-
gindo" os versos de "mau gosto", mas homenageando mesmo
assim o génio. Tampouco Samuel Johnson se absteve de
restrições, na sua edição de 1765. Mas o público já tinha 129) G. C. D. Odell: Shakespeare from Betterton to Irving. 2 vols.
New York, 1920.
130) David Garrick. 1717-1779.
Comédias: The Clandestine Marriage (com George Calman,
127) Cf. "Classicismo da Ilustração", nota 29. 1766) The Irish Widow (1772) ; Bon Ton (1775); i
128) William Julius Mickle. 1734-1788. Adaptações de per.as shakespearianas: Romeo and Juliet (1748);
Sir Martyn. A põem in the Manner of Spenser (1787); Cumnor Catherine and Peiruchio (1756); King Lear (1756); The Tempest
Hall (1777); — tradução de Os Lusíadas (1776). (1756); Florizel and Perdita (1756); Antony and Cleópatra
Edição em A. Chalmers: The Works of the English Poets, from (1759); Cymbeline (1761); A Midsummer-NighVs Dream (1763);
Chaueer to Cowper. Vol. XVH. London, 1810. Hamlet (1772).
M. E. Taylor: William Julius Mickle. A Criticai Study. Was- P. Fitzgerald: The Life of David Garrick. 2.» ed., 2 volumes,
hington, 1937. London, 1899.
E. P, Stein: David Garrick Dramatist. New York, 1938.
1472 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1473

os ingleses ficaram convencidos que o grande ídolo da nacional, foi a do italiano Baretti ( 1 3 1 ), o polemista terrí-
poesia pré-romântica era o maior dramaturgo de todos os vel da Frusta letteraria. Esse grande defensor de Shakes-
tempos; só faltava convencer disso os europeus do Con- peare foi, fundamentalmente, assim como Lessing, homem
tinente, tarefa da qual se encarregaram os alemães, com do século X V I I I . Odiava a falsidade do classicismo e da
a ajuda eficiente dos franceses e, depois, de todas as outras Arcádia, reabilitou o "estilo incorreto" de Cellini, mas não
nações (i 8 °-A). quis saber de Dante nem de Goldoni. A sua visão semi-
A primazia coube mesmo a um francês: Voltaire. classicista de Shakespeare contribuiu para o sucesso das
Conheceu Shakespeare durante seu exílio inglês. Deu aos adaptações de Jean-François Ducis (Hamlet 1769, Romeo
franceses a conhecer provas. Manifestou por êle admiração, et Juliette, 1772, Roi Lear, 1783, Macbeth, 1784), e criou o
embora restrita. Depois, vieram alemães residentes em Lon- culto moderno de Shakespeare na Itália, já preparado pelo
dres e viajantes como Lichtenberg, que assistiu às repre- Giulio Cesare anglicizante de Conti. Das tentativas de
sentações de Garrick, foram os primeiros a chamar a aten- compromisso entre o culto de Shakespeare e o classicismo
ção para "o milagre do palco inglês". O diplomata prus- são característicos: o Hamleto (1768) e o Otello (1777) de
siano Kaspar von Borck publicou, em 1741, uma tradução Alessandro Verri, irmão do racionalista Pietro Verri, as
de Julius Caesar, excitando logo a oposição de Gottsched, reminiscências shakespearianas em Monti, e ainda o Saul,
cujo discípulo Johann Elias Schlegel, encarregado da re- de Alfieri. Caso paralelo é o Hamlet espanhol (1798), de
futação, chegou, no entanto, a conclusões favoráveis ao Leandro Fernández de Moratín. Os alemães já tinham
poeta inglês. E Wieland deu aos alemães, entre 1762 e ultrapassado, depois de Lessing, essa fase: agora, seu Sha-
1766, a primeira tradução, de notável valor, de 17 peças kespeare era um Shakespeare inteiramente novo, o deus
do inglês. Lessing, nas Literaturbriefe (1759), e na Ham- poético de uma literatura sem antecedentes clássicos: o do
burgische Dramaturgie (1767), afirmou a superioridade de Sturm und Drang, forma alemã do pré-romantismo.
Shakespeare sobre Corneille e Racine, a inutilidade das Embora os pré-românticos se opusessem com veemência
"regras" para o génio e a possibilidade de a dramaturgia à definição classicista de Shakespeare como "génio sel-
moderna se aproveitar, embora com cautela, das lições in- vagem", no foro íntimo estavam de acordo; apenas a pala-
glesas. Apesar das restrições de Lessing, aristotélico im- vra "selvagem" não tinha, para eles, sentido pejorativo:
penitente, aquelas suas afirmações constituíram um desafio significava "sem modelos", "original". Com efeito, sem a
a Voltaire. Este pretendeu ter descoberto Shakespeare, o teoria da "originalidade", da inspiração imediata do poeta,
"génio irregular", e até acreditava tê-lo imitado na Aforr não era possível libertar-se do jugo dos modelos antigos.
de César. Agora, o êxito de Pierre Le Tourneur, traduzindo
entre 1776 e 1782 todas as peças de Shakespeare, o irritava, 131) Giuseppe Baretti, 1719-1789.
levando-o a proferir injúrias contra o dramaturgo inglês, La Frusta letteraria (1762-1765); An Account of the Manners
em defesa da arte de Racine. Os alemães já não prestaram and Customs of Jtaly (1768); Discours sur Shakespeare et sur
M. de Voltaire (1777).
atenção. A grande voz de resposta, de repercussão inter- Edição de escritos literários por L. Piccloni. Torino, 1907.
L. Morandi: Baretti contro Voltaire. Clttà dl Oastello, 1884.
A. Serena: La frusta letteraria di Gíuseppe Baretti. Milano,
1897.
C. J. M. Lubbers v. d. Brugge: Some Aspects of Eighteenth Cen-
130 A) P. Van Tieghem: Le Préromantisme. Vol. TH. La Découverte- tury Literary Life in England and Italy. Groningen, 1951.
de Shakespeare sur le continent. Paris, 1948.
1474 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1175

O livro fundamental da doutrina, de fortíssima influência coleçao de poesias, os Songs of Selma — atribuindo todas
na Alemanha, foram as Conjectures on Original Compo- essas obras a um poeta Ossian, figura lendária como Ho-
sition (1759), de Young. Mas a doutrina é de origem ita- mero. A originalidade das poesias era evidente: descreviam
liana ( , 3 - ) . Muratori e Gravina ( 133 ) já tinham salientado uma natureza selvagem e sombria, desconhecida da poesia
a importância do entusiasmo, da emoção pessoal, na poesia; clássica, uma paisagem de mares bravios e montanhas ne-
a ideia foi desenvolvida por Pietro Calepio, no Paragone gras, encobertas de névoas devido às quais só raramente,
delia poesia trágica d'Itália con quella di Francia (1732); quando a tempestade havia dissipado as nuvens, olhava a lua
e Calepio estava em correspondência com Bodmer, que, por triste. E a melancolia dessa paisagem estava bem exprimida,
sua vez, recebeu de Shaftesbury a doutrina do entusiasmo em prosa rítmica de cadências musicais: "Star of descen-
poético, que reaparecerá em Young. Os fundamentos his- ding night! fair is thy light in the west! thou liftest thy
tóricos da nova estética foram lançados por Viço, distin- unshorn head from t h y cloud; thy steps are stately on thy
guindo as fases diferentes da inspiração poética e atribuin- h i l l . . . T h e stormy winds are laid. T h e murmur of the
do a poesia homérica à fase primitiva do povo grego. A torrent comes from afar. Roaring waves climb the distant
aplicação da teoria vichiana à poesia popular de todas as r o c k . . . " Nenhuma outra paisagem podia agradar mais
nações será obra de Herder; mas já anteriormente se des- ao poeta e leitor pré-românticos que se reconheceram na
cobrira, no Norte da Europa, uma poesia popular, abso- melancolia solitária de Ossian: "It is n i g h t ; I am alone,
forlorn on the hill of storms. T h e wind is heard in the
lutamente original, considerada digna de ombrear com a
moutains. T h e torrent pours down the rock. No hut re-
homérica: a céltica.
ceives me from the rain; forlorn on the hill of winds!
Em 1760, o estudioso escocês James Macpherson ( 134 )
Rise, moon, from behind the clouds! Stars of the night,
publicou a tradução de algumas poesias "gaélicas", da lín-
arise!" Ossian é monótono; mas teve então o encanto de
gua autóctone da Alta Escócia, e o sucesso encorajou-o
inteira novidade. Hoje, só a frequência de nomes como
a traduzir mais dois poemas épicos, Fingal e Temora, tra-
Oscar e Selma nos lembra o sucesso enorme de Ossian
tando das guerras heróicas dos antigos celtas, e mais uma
naquele tempo, sucesso superior ao de outro poeta "natural"
em nossos tempos, W h i t m a n ; e até a forma, a prosa rítmica,
132) J. G. Robertson: Studies in the Génesis of the Romantic Theory é elemento comum do celta pré-histórico e do americano
in the Eighteenth Century. Cambridge, 1923. moderno. Por mais original que Whitman pareça, livre
133) Cf. "O Classicismo da Ilustração", nota 34.
134) James Macpherson, 1736-1796. de todas as influências da poesia "culta", "velha", não é
Fragments of Ancient Poetry, Collected in the Highlands of possível desconhecer os vestígios de Shakespeare, Hugo
Scotland, and Translated from the Gaelic or Er se Language
(1760); Fingal, an Ancient Epic Põem (1762); Temora, an Epic e até de George Sand nas Leaves of Grass. Ossian também
Põem (1763); The Works of Ossian (1765). não está livre de reminiscências literárias; reminiscências
Edição por W. Sharp, Edinburg, 1896.
T. B. Saunders: The Life and Letters of James Macpherson. que só um homem de letras do século X V I I I era capaz de
London, 1894. guardar e reunir: de Homero, de Virgílio, de Young e
M. Scherillo: Ossian. Milano, 1895.
J. S. Smart: James Macpherson. London, 1905. de outros poetas da Graveyard School; e os estudiosos não
H. Hecht: "Macphersons Ossian-Dichtung". (In. Germanisch- deixaram de perceber certa confusão entre as lendas célti-
Romanische Monatsschrift, X, 1922.)
D. 8. Thomson: The Gaelic Sources of Macpherson's Ossian. cas, certas aproximações das divindades nórdicas aos deuses
Aberdeen, 1952.
1 1T(. OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1477

da mitologia grega. Dúvidas surgiram, e enquanto os poetas crítico mais penetrante, traduzido logo para o francês e
e leitores da Europa inteira se entusiasmavam por Ossian, alemão: A Crítica] Dissertation on the Poems of Ossian
fortaleceu-se a opinião que depois se tornou geralmente (1763), de H u g h Blair. A admiração ilimitada de Gray
aceita: Macpherson era um falsificador. Talvez devêsse- também impressionou muito. Mas só em Blake e mais tarde
mos atenuar a palavra áspera. É verdade que a prosa rítmica em Coleridge (Ninathoma, 1793) se revelam influências
que empregou foi um produto de artes estilísticas requin- ocasionais; os ingleses sempre desconfiaram dos seus pa-
tadas do século X V I I I , não se encontrando nunca em poe- trícios celtas. O papel de divulgação coube aos france-
sias primitivas; e é verdade que pertencem igualmente ao ses ( 13C ). J á em 1760, T u r g o t traduziu duas poesias de
"tradutor" ou "editor" a melancolia "nobre" e a composição Ossian, e no ano seguinte acompanhou Suard outra tenta-
épica, confusa e insignificante. Mas Macpherson não in- tiva de tradução com um elogio entusiasmado. Diderot
ventou de t o d o : utilizou realmente poesias populares au- exultava. A tradução das obras completas de Ossian por
tênticas, adaptando-as ao gosto pré-romântico da época, Pi erre Le Tourneur — o tradutor de Shakespeare — em
conseguindo assim o sucesso imediato e enorme. Aos con- 1777, alcançou divulgação na Europa inteira. A impressão
temporâneos restava a alternativa entre duas opiniões opos- foi fortíssima na Alemanha ( m ) . O velho Haller reco-
t a s : opinião de Gray — se as obras de Ossian são antigas, nheceu em Ossian o seu "irmão no espírito"; Klopstock
são de um génio da Antiguidade céltica, e se são de Mac- escreveu, logo, em 1766, uma ode Selma und Sei mar; o
pherson, este é um génio do século X V I I I ; e a opinião jesuíta austríaco Michael Denis publicou a primeira tra-
do jesuíta espanhol Andrés — se as obras de Ossian são dução completa de Ossian (1768/1769), tradução metrificada
autênticas, são geniais, mas se são de origem moderna, não e que por isso não satisfez inteiramente à reivindicação
interessam. A opinião de Gray prende-se ao gosto da época; de uma poesia "primitiva". Exigiu-se a prosa poética. Em
a opinião de Andrés está ligada à doutrina da originalidade. 1774, Goethe incluiu no Werther trechos de Ossian em
A posteridade, esquecendo a alternativa, esqueceu Ossian tradução livre, numa prosa de beleza extraordinária; Lenz
totalmente. Os historiadores da literatura costumam afir- e Buerger fizeram outras tentativas semelhantes; Herder,
mar que não é o valor de Ossian que importa — valor o maior crítico que Ossian encontrou na Alemanha, deu
inexistente — mas só a influência imensa que exerceu. O mais algumas provas nas Stimmen der Voelkcr (1779). Mas
crítico moderno deveria dizer que o esquecimento completo a tradução completa em prosa (1806), por Friedrich Stol-
de Macpherson é uma injustiça; que Ossian não foi um berg, já chegou tarde demais. Na literatura alemã, Ossian
génio, mas que Macpherson foi um poeta notável. O seu desempenhara um papel de pioneiro.
dia pode voltar. Da França e da Alemanha irradiou uma "febre de
O sucesso de Ossian na Europa foi um dos maiores que Ossian" por toda a Europa. Até na Espanha se registraram
jamais couberam a uma obra poética; seu êxito e influência traduções parciais feitas por José Alonso Ortíz (1788) e
enchem um capítulo importante da história literária da Marchena (1804). O holandês Feith, seguindo o exemplo
Europa, constituem o capítulo central da história do pré- do Werther, inseriu trechos ossiânicos no romance Ferdi-
romantismo ( 1 3 C ). Da própria Inglaterra saiu o estudo
136) P. Van Tieghem: Ossian en France. 2 vols. Paris, 1917.
137) R. Tombo: Ossian in Qermany. New York, 1901.
135) P. Van Tieghem: Le Préromantisme. Vol. I. 2* ed. Paris, 1948.
1478 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1479

nand en Constantia, e o classicista B i l d e r d i j k n ã o r e s i s t i u nicas — sem chamar a atenção. U m a obra de divulgação,


à tentação de uma tradução algo atrasada (1795/1805). N o - a Introduction à VHistoire de Danemark, ou Von traite de
t a m - s e m a i s , para c o m p l e t a r o q u a d r o , a s t r a d u ç õ e s d e la religion, des moeurs et des usages des anciens Danois
Blicher, na Dinamarca, e de Kellgren, na Suécia, a influên- (1755), d e P a u l H e n r i M a l l e t , p u b l i c a d a n o m o m e n t o p r o -
cia s o b r e os p o e t a s suecos L i d n e r e F r a n z é n , o e n t u s i a s m o pício, p r o v o c o u a q u e l a o n d a p r é - r o m â n t i c a . D u a s odes d e
do r o m â n t i c o r u s s o K a r a m s i n , o p o e m a O Bardo (1812), d e Gray ( 1 4 ° ) , The Fatal Sisters e The Descent of Odin, são
C h u k o v s k i , e a t r a d u ç ã o c o m p l e t a (1815), p e l o h ú n g a r o s i n t o m á t i c a s . N a A l e m a n h a fêz-se u m a c o n f u s ã o , a l g o in-
Kazinczy. Ossian também é benemérito d a obra pré-român- tencional, entre escandinavos, celtas e germanos, para cons-
t i c a d e d e s p e r t a r as p e q u e n a s l i t e r a t u r a s e u r o p e i a s . t r u i r a lenda duma poesia germânica arquivelha, atribuída
O e l e m e n t o clássico e c l a s s i c i s t a n a o b r a d e M a c p h e r - aos l e n d á r i o s " b a r d o s " , i n i c i a n d o - s e a s s i m u m d o s c a p í t u l o s
s o n s ó foi s e n t i d o n o p a í s d a m a i s f o r t e t r a d i ç ã o c l á s s i c a , menos agradáveis da história literária ( 1 4 , ) : depois do
a I t á l i a . P o r isso, c h e g o u - s e lá a u m c o m p r o m i s s o . C e s a - Gedicht eines Skalden (1766), d o m e i o semi d i n a m a r q u ê s
rotti (138) não é apenas o melhor t r a d u t o r que Ossian en- H e i n r i c h W i l h e l m von Gerstenberg, dedicou Klopstock (142)
controu no estrangeiro; criou u m a u t ê n t i c o clássico da g r a n d e p a r t e d a s s u a s a t i v i d a d e s p o é t i c a s ao n o v o g é n e r o
l í n g u a , u m "clássico do p r é - r o m a n t i s m o " , d e i n f l u ê n c i a s p o é t i c o . N a e d i ç ã o d e 1771 d a s s u a s Odes s u b s t i t u i u , n a s
s e n s í v e i s n o Aristodemo e em o u t r a s o b r a s d e M o n t i , n o p o e s i a s a n t e r i o r e s , a s a l u s õ e s f r e q u e n t e s aos d e u s e s g r e g o s
romance e na poesia de Foscolo, e até e m L e o p a r d i . E s s a « pelos nomes abstrusos da mitologia nórdica; e compôs três
forma italiana do ossianismo, u m estoicismo triste em vez Bardiete ou d r a m a s b á r d i c o s s o b r e a v i d a d e A r m í n i o , h e r ó i
da melancolia vaga do original, sobreviveu ao fim do século n a c i o n a l d o s a l e m ã e s . B a s t a d i z e r q u e as " o d e s b á r d i c a s "
X V I I I : revela-se — a t r a v é s d o ê x i t o i n t e r n a c i o n a l d e C e - d e K a r l F r i e d r i c h K r e t s c h m a n n (Gesang Rhingulfs des
sarotti — em Chateaubriand e Senancour, em B y r o n e Barden, 1768) e D e n i s (Lieder Sineds des Barden, 1772)
Lamartine, e acabou somente com o romantismo revolucio- f o r a m j u l g a d a s e n t r e as m e l h o r e s p o e s i a s a l e m ã s , q u a n d o
n á r i o d o s f r a n c e s e s e a r e v o l u ç ã o b u r g u e s a d e 1830. j á e x i s t i a m o s lieds d e G o e t h e . M a s o p a p e l l i b e r t a d o r d a
poesia bárdica em reação contra a anacreôntica não pode
M o v i m e n t o a l i a d o e c o m p e t i d o r d o o s s i a n i s m o foi
ser d e s p r e z a d a .
o e s c a n d i n a v i s m o ( 13 ")> m a i s u m a v a r i a n t e da m o d a p r é -
romântica de "originalidade genial" e "melancolia nór- D a f a l s i d a d e i n g é n u a a t é à falsificação é u m p a s s o .
d i c a " . O s m a t e r i a i s do e s c a n d i n a v i s m o e s t a v a m p r o n t o s D e c e r t o h á g r a n d e d i f e r e n ç a e n t r e as v e r s õ e s l i v r e s d e
h a v i a u m s é c u l o — a e d i ç ã o d a Edda, p o r P e d e r J o h a n P e r c y , a s " t r a d u ç õ e s " d e M a c p h e r s o n e a s falsificações
R e e s e n ( 1 6 6 5 ) ; a Atlantis (1675/1698), d e Olof R u d b e c k , i n t e n c i o n a i s d e C h a t t e r t o n ; m a s os p r o c e s s o s d i f e r e n t e s
enciclopédia fantástica da mitologia e arqueologia germâ- são i n f o r m a d o s p e l o m e s m o e s p í r i t o . " F a l s i f i c a ç õ e s " e fal-
s i f i c a ç õ e s r e p e t e m - s e em t o d a a h i s t ó r i a d o r o m a n t i s m o ,
138) Melchiorre Cesarotti, 1730-1808.
Poesie di Ossian (1763; 2." ed., 1772).
Edição por G. Balsamo-Crívelli, Torino, 1924.
G. Marzot: II gran Cesarotti. Firenze, 1949. 140) Cf. nota 39.
139) P. Van Tieghem: "La découverte de la mythologle et de l'an- 141) E. Ehrmann: Dtç barãische Lyrik im IS. Jahrhundert. Halle,
clenne poésie scandinaves". (In: Le Préromantisme. Vol. I. 2.* 1892.
ed. Paris, 1948.) 142) Cí. "O Ultimo Classicismo", nota 20.
L480 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1481

sinais da procura de árvores genealógicas, justificações eróticos de intensidade rara, o maior sonetista da língua,
arqueológicas da própria atividade poética. Contudo, a foi um homem quebrado pela vida irregular e devassa. A
coleção de baladas do bispo Percy ( 14:| ) tem o valor de poesia lírica de Buerger,- criticada por Schiller com dura
uma verdadeira descoberta, superior a toda a poesia ossiâ- injustiça moralizante, está hoje meio esquecida. Mas vivem
nica e bárdica. As Reliques of Ancient English Poetry e viverão as suas baladas: o originalíssimo Der wilde Jae-
compõem-se principalmente de baladas, inglesas e escocesas, ger e sobretudo Lenore, uma das obras permanentes da lite-
entre as quais as conhecidíssimas "Chevy Chase", "Robin ratura universal. O assunto — o soldado que morreu na
Hood", "Edward, o Edward, Sweet WillianVs Ghost", "Auld guerra e volta do túmulo para levar a querida para o reino
Robin Gray", que são dos poemas mais famosos em língua frio da morte — encontrou-o Buerger em Percy (Sweet
inglesa. É verdade que Percy modernizou, um pouco, ao William's Ghost) e numa balada popular alemã; poderia
gosto da época; mas daquelas baladas, muitas não são au- também encontrá-lo em poesia populares escandinavas e
têntica poesia popular, já são obras ou versões dos séculos eslavas, porque se trata, evidentemente, de uma reminis-
X V I e X V I I , e Percy tinha pleno direito de modificar as cência de crenças mitológicas indo-germânicas. Com jeito
modificações. Além disso, não foi seu propósito fornecer extraordinário, Buerger modernizou o assunto, colocando-o
uma contribuição para o folclore científico, por meio de na atualidade contemporânea da Guerra de Sete Anos; sabia
transcrições diplomáticas; pretendeu renovar a poesia in- fazer ressoar atravismos arquivelhos de angústias supersti-
glesa, abrindo-lhe as fontes nacionais de inspiração, e con- ciosas, que dormem em todos nós, e contou a história sinis-
seguiu esse fim da maneira mais completa. As baladas de tra da corrida para o cemitério com uma verve espantosa,
Percy entraram no tesouro literário da Europa inteira e inesquecível. Lenore, publicada em 1773 e logo cantada pelo
— autenticação maior — reentraram na memória da nação povo alemão inteiro, foi traduzida para todas as línguas,
inglesa. Tiveram a força de inspirar obras-primas em lín- por Walter Scott na Inglaterra, por Berchet na Itália, por
guas estrangeiras: a rica poesia baladesca dos alemães, Mickiewicz na Polónia, e voltou, enfim, a ser poesia po-
de Goethe até Uhland, descende de Percy, e entre as ba- pular anónima.
ladas alemãs encontra-se a maior obra-prima do género, a
Lenore, de Buerger ( 1 4 4 ) : este poeta genial de versos Destino adverso negou essa sorte, ambicionada pelos
pré-românticos, a Chatterton ( 1 4 5 ), o menino-prodígio de
Bristol; movido pela ambição e pela pobreza, falsificou,
143) Thomas Percy, 1729-1811. entre os 12 e 18 anos de idade, poesias de um pretenso
Reliques o/ Ancient English Poetry (1765).
Edição por M. M. A. Schroer, 2 vols., Berlln, 1893. monge do século XV, e conseguiu enganar os maiores en-
A. C. C. Gaussen: Percy, Prelate and Poet. London, 1908. tendidos; quando descobriram a fraude, o poeta se suicidou.
H. Marwell: Thomas Percy. Studien zur Entstehungsgeschichte
seiner Werke. Goettingen, 1934.
144) Gottfried August Buerger, 1747-1794.
Geáichte (1778, 1789). 145) Thomas Chatterton, 1752-1770.
Edição por W. von Wurzbach, 4 vols, Leipzig, 1902/1904. Poems, supposed to have been wrítten at Bristol by Thomas
W. von Wurzbach: Buergers Leben und Werke. Leipzig, 1900. Rawley and others, in the Fifteenth Century (1770).
Er. Schmidt: "Buergers Lenore". (In: Charakteristiken. 2.* eú\. Edição por S. Lee, 2.» ed., 2 vols., London, 1908/1909.
vol. I. Berlin, 1902.) H. Richter: Thomas Chatterton. Wien, 1900.
L. Filippi: La poesia ái Buerger. Firenze, 1920. E. P. Elllnger: Thomas Chatterton, the Marvellous Boy. Phila-
H. Schoeííler: Buergers Lenore. Muenchen, 1947. delphia, 1930.
J. C. NeviU: Thomas Chatterton. London, 1948.
L482 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1483

A imitação da língua inglesa medieval fora tão hábil que segundo a sua teoria, com toda a razão, Herder incluiu
até mesmo decénios depois, alguns estudiosos obstinados entre as poesias anónimas trechos de Ossian, songs de Sha-
acreditaram na autenticidade parcial das poesias do "monge kespeare e algumas composições de poetas ingleses con-
Rowley"; e já isso, da parte de um menino, é extraordinário. temporâneos, incluindo até Shenstone. A época já tinha
Tampouco se pode negar o valor intrínseco da poesia de produzido, realmente, poetas de génio popular. O maior
Chatterton: pelo menos as baladas "The Battle of Hastings", entre eles era patrício de Herder, Matthias Claudius ( 1 4 7 ).
a "Balade of Charitie" e a peça Aella, dão testemunhos de Este era de fato um homem do povo, simples, ingénuo,
um talento admirável. Nos elogios de Wordsworth, Cole- devoto e conservador, mas com forte senso de independên-
ridge, Shelley, Keats, interveio, sem dúvida, a compaixão cia pessoal. Sob o pseudónimo "Asmus" publicou durante
pelo génio malogrado, a feição "romântica" do caso, que anos uma revista popular, Der Wandsbecker Bote (O Men-
sugeriu até uma tragédia de V i g n y ; alguns críticos moder- sageiro de Wandsbeck), enchendo-a de contos, histórias
nos, atribuindo a um automatismo psíquico aquela facili- edificantes ou didáticas, "lições de coisas" e inúmeras poe-
dade de encarnar-se em épocas passadas, pretenderam apro- sias ao gosto dos seus leitores, muitas delas insípidas, outras
ximar Chatterton do surrealismo. muito boas, e algumas de uma inspiração tão extraordinária
como nem sequer se encontra na obra lírica de Goethe. O
Chatterton, justamente por imitar, é um caso assom-
começo do "Abendlied" é um panorama da natureza noturna
broso daquela originalidade que o pré-romantismo tanto
— florestas, campos, névoas, magicamente iluminados pela
ambicionava; foi, sem ter aprendido nada, e justamente
lua — e todo dissolvido em sugestiva música verbal:
porque não aprendeu nada, um génio. Assim, estava na
mesma condição que o povo: este também produz, espon-
taneamente, poesia genial. Neste momento da evolução do "Der Mond ist aufgegangen,
pré-romantismo, a teoria de Viço ressurge em Herder ( M 0 ) , Die lichten Sternlein prangen
sobretudo nos ensaios "Ueber den Ursprung der Sprache" Am Himmel hell und klar;
(Da Origem da Língua) (1772) e "Ossian und die Lieder al- Der Wald steht schwarz und schweiget
ter Volker" (Ossian e as Canções Antigas) (1773) : os povos, Und aus den Wiesen steiget
nas fases primtivas da sua história, estão mais perto do gé- Der weisse Nebel wunderbar."
nio poético do Universo do que nas épocas de civilização
madura e já artificial, e essa "inocência divina" sobrevive São versos, cuja riqueza em assonâncias e variações rítmicas
até hoje nas camadas incultas que continuam a produzir ma- seria capaz de sugerir um tratado completo da arte poética;
ravilhas de poesia espontânea, as canções populares. Her- outra canção, "Der Tod und das Maedchen" ("A Morte
der expôs as suas ideias na introdução das Stimmen der
Voelker in Liedern (Vozes das Nações em Canções) (1778/
1779), antologia de traduções alemãs, realmente notáveis
147) Matthias Claudius. 1740-1815.
de poesias inglesas, escandinavas e eslavas; calmamente, e Der Wandsbecker Bote (1771/1775); Asmus omnia sua secum
portans (1790/1812).
Edição das poesias por G. Behrmann, Leipzig, 1907.
W. Stammler: Matthias Claudius. Halle, 1915.
M. Roedl: Matthias Claudius. Sein Weg und seine Welt. Berlin,
146) Cí. "O Último Classicismo Europeu", nota 29. 1934.
HHt OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1485

e a Donzela"), famosa pela música de Schubert, encabeça "Of a' t h e airts the wind can blaw"
uma série de poesias fúnebres de força dantesca de expres- "Go fetch to me a pint o' wine"
são. Esses versos inesquecíveis situam-se, no entanto, den- "John Anderson, my jo, J o h n "
tro da obra vasta e, às vezes, medíocre d e Claudius como "Ye flowery banks o' bonnie Doon"
achados casuais; ninguém chamaria génio a Claudius, por "Ae fond kiss, and then we sever"
mais geniais que sejam algumas das suas poesias. O apelido "O saw ye bonnie Lesley"
"génio", no pleno sentido pré-romântico d a palavra, ajusta- "O my Luve's like a red, red rose" —
se, em todo pré-romantismo, apenas ao caso de Burns.
Roberts Burns ( 148 ) é um génio autêntico, e sem falsa e a canção mais conhecida de todas:
"profundidade". Se a sua obra é inspirada, essa inspiração
não vem do alto. Foi um simples proletário rural, camponês "Ye banks and braes and streams around
pobre ao qual a repentina glória poética de nada lhe adian- T h e castle o' Montgomery,
tou, antes serviu para o perder; nunca conseguiu situação Green be your woods, and fair your flowers,
na vida, e, enfim, perdendo o equilíbrio, morreu bêbedo. your waters never drumlie."
Burns é considerado poeta espontâneo: os seus temas são
os da poesia anacreôntica — amor, vinho, liberdade, pobreza Esses espécimes constituem a base da interpretação
do poeta livre; a sua forma é a canção popular, o Hed; a usual de Burns como "grande poeta folclórico"; mas seria
língua é o dialeto da Escócia. É o maior cantor popular, uma imagem falsa, ao gosto da sociedade hipócrita que êle
talvez, de todos os tempos, cheio de música e vida. Basta odiava tanto. Burns é poeta da liberdade, mas não da liber-
citar uma série dos seus versos iniciais para evocar logo dade inofensiva do boémio ao ar livre, e sim da revolução. J á
um mundo de poesia, mundo estreito mas completo: se observou que Burns, quando sai do dialeto escocês, cai
logo no neoclassicismo; mas é preciso desenvolver essa
observação. As suas sátiras em dialeto também estão na
tradição de Dryden e Swift, não linguisticamente, mas pela
148) Robert Burns, 1759-1796.
Poems, Chiefly in the Scottish Dialect (1786, 1787, 1793); The mordacidade implacável; e a sátira "classicista" The Cot-
Jolly Beggars (pupl. 1802). ter's Saturday Night não é mais nem menos agressiva do
Edição tias poesias por C. S. Dougall, London, 1927; Edição das que as dialetais. Estas dirigem-se, em parte, contra a
obras completas por W. S. Douglas, 6 vols., Edinburg, 1877/1879.
L. M. Watt: Burns. Glasgow, 1913. ortodoxia hipócrita dos calvinistas. escoceses (The Ordi-
W. P. Ker: "The Politlcs of Burns". (In: Two Essays. Glasgow, nation, The Holy Fair, Holy Willie's Prayer) e chegam até
1918.) a uma peça de satanismo explícito (Address to the Deil).
A. Dakers: Robert Burns. Hís Life and Genius. London, 1923.
O. Heller: "Robert Burns. A Revaluation". (In: Washington Outras são veementes sátiras sociais do proletário (Address
Universíty Studies, II, 1923/1924.) of Beelzebub, To a Louse, The Twa Dogs), sem as quais
J. Crichton-Browne: Burns from a New Point of View. Edinburg,
1924. não é possível entender bem o seu entusiasmo pela Revo-
H. Hecht: Robert Burns. The Man and His Work. Edinburg. lução Francesa (A Man's a Man for A' That). To a Field-
1936.
D. Daiches: Robert Burns. London, 1952. Mouse, com versos igualmente aplicáveis à angústia do
M. Llndsay: Robert Burns. London, 1954. animal perseguido e do homem perseguido (mice and men)>
Ohr. Keith: The Russet Coat. A Criticai Study of Burns Poetry
and its Background. London, 1956.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1487
U«6 OTTO MARIA CARPEAUX
aos seus primeiros críticos; estava bem formado no estilo
é incisivo como uma parábola de Kafka. E há, mais, as poe-
classicista, do qual saiu revolucionariamente. Mas para os
sias violentamente obscenas, como " T h e Patriarch, The
contemporâneos, o seu caso constituiu a suprema afirmação
Court of Equity, T h e Fornicator", suprimidas nas edições
da doutrina: é possível ser génio sem ter aprendido nada,
correntes, e das quais Hans Hecht deu as primeiras notícias
assim como o povo é genial; o poeta interpreta a voz do
exatas ( 1 4 8 ) ; não são meros subprodutos da sua vida de-
vassa, mas expressões intencionais de u m amoralismo ra- povo, a "volonté générale" — expressão do revolucionário
dical. E as duas tendências — a revolucionária e a amo- Rousseau. O "génio" torna possível a ascensão democrática
ralista — encontram-se de maneira espantosa na "cantata do plebeu, sob a condição de êle se desligar de todas as
aristofânica" "The Jolly Beggars": convenções sociais — e, pode-se acrescentar, de todas as
convenções morais; daí a aliança entre o espírito revolu-
"A fig for those by law protected! cionário e o libertinismo, que destrói as últimas bienséances
Liberty's a glorious feast! do classicismo. Daí também a ressurreição do libertinismo
Courts for cowards were erected, da Régence no fim revolucionário do século; é um dos
Churches built to please the priest. dois elementos que dão força emotiva ao racionalismo ra-
W h a t is title? what is treasure? dical da Enciclopédia — o outro elemento é o primitivismo
W h a t is reputation's care? místico que explode em Rousseau.
If we lead a life of pleasure,
O termo "libertinismo", como é empregado aqui, sig-
'Tis no matter how or w h e r e ! "
nifica uma corrente do século XVIII, que tem algo do
libertinismo livre-pensador do século XVII e algo do liber-
Burns situa-se entre o libertinismo de Fielding e Diderot
tinismo amoralista da Restauração e Régence, mas não se
e o imoralismo de Nietzsche e Gide, entre a revolta poética
identifica com eles. A primeira qualidade nova é a atitude
do mendigo Villon e a poesia revolucionária de Maiakovski.
mais franca, revolucionária até; depois, a "plebeização"
Representa, enfim, a verdadeira "literatura popular" que
romance sentimental e idilio rústico não conseguiram pro- progressiva, acompanhada do primitivismo e populismo
duzir; ao mesmo tempo, é também o representante da pré-românticos, a transição é realizada, as mais das vezes,
"poesia primitiva" que o pré-romantismo popularista não pela influência do sentimentalismo. Alguns representantes
conseguiu alcançar, porque fugiu para os documentos do desse "libertinismo" são, em parte, libertinos do velho estilo
passado. e, por isso, anti-sentimentais, como Fielding; alguns outros
Burns realizou a doutrina da originalidade, transfor- não se fecham de todo ao sentimentalismo, como Smollett
mada pelos pré-românticos em verdadeira "religião do Gé- e Crébillon fils; alguns reúnem em si as duas correntes:
nio". Na verdade, Burns não era tão inculto como pareceu Sterne, de maneira mais aristocrática; Diderot, de maneira
mais plebeia. Nenhum deles, porém, é inteiramente definido
pelo "libertinismo"; e os maiores entre eles são espíritos
149) H. Hecht: "Die Merry Muses of Caledónia und Burns' Court of
Equity". (In: Archiv fuer das Studium der neueren Sprachen de independência absoluta, casos singulares da literatura
•und Literaturen, CXXIX — CXXX, 1912.) universal na fase pré-revolucionária.
J. L. Ferguson: "The Suppressed Poems of Burns". (In: Modern
Philologv, XXX, 1932/1933.)
1488 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1489

Henry Fielding ( 1B0 ) é dentre todos eles, o que mais The History of the Adventures of Joseph Andrews,
perto está da Restauração; é um aristocrata alegre que se o primeiro romance de Fielding, é uma paródia terrível
mistura com o povo para protestar contra a moralização da Pamela, de Richardson: assim como a virtude de Pamela
da vida inglesa pelo puritanismo burguês. Daí as suas afi- resiste vitoriosamente às artes de sedução de Mr. B., assim
nidades com o Samuel Butler do Hudibras; muito mais com a virtude de Joseph Andrews resiste aos encantos sedutores
Butler que com Cervantes. A sua obra constitui uma epo- de Lady Booby. A mera troca do sexo dos heróis bastava
peia herói-cômica da vida inglesa do século X V I I I . A para ridicularizar irremediavelmente o moralismo puritano.
comparação frequente com Cervantes tem, no entanto, sen- Mas Fielding já é mais do que simples parodista: o perso-
tido profundo: Fielding possui uma qualidade cervantina, nagem do vigário Abraham Adams, criado para zombar
ausente em todos os seus modelos imediatos, que é o humor. dos puritanos ortodoxos, transformou-se em figura humo-
O humorismo de Fielding não é idêntico ao espírito satí- rística e comovente de um bonhomme distraído e cómico,
rico, quase pelo contrário. Muitas vezes, Fielding satirizou um Charlie Chaplin de batina. A fonte desse humorismo
intencionalmente: em Joseph Andrews, o sentimentalismo encontra-se em parte no temperamento bonacheirão de Fiel-
de Richardson; em Jonathan Wild, a corrução política do ding, em parte nas suas experiências. Fielding descendia
primeiro-ministro Robert Walpole. Mas acabou prestando da mais alta aristocracia inglesa, era até parente longínquo
homenagem aos adversários: reconhecendo em Jonathan da casa de Habsburgo; Gibbon profetizou, porém, que os
Wild, a grandeza da inteligência política, e dando a Amélia seus romances sobreviveriam à casa imperial da Áustria,
um desfecho sentimental. Fielding tinha, em face da vida, e a profecia se cumpriu. Filho pródigo, Fielding tornou-se
um grandioso senso de justiça, uma imparcialidade soberana literato, vivendo da fabricação de farsas alegres, já então
que o tornou incapaz de esboçar meras caricaturas, mas ca- perseguindo com piadas o primeiro-ministro Walpole. Foi
paz de criar vastos panoramas da existência humana, de nomeado, no entanto, juiz criminal do distrito central de
criar o romance inglês moderno. Londres, entrando no conhecimento íntimo dos círculos
da Beggar's Opera; e aproveitou-se dessas experiências no
Life of Jonathan Wild the Great: tal como Walpole foi
150) Henry Fielding, 1707-1754. chamado "grande homem" pelos seus partidários suborna-
The History of the Adventures of Joseph Andrews (1742); The dos, também Jonathan W i l d é o "grande homem" dos pró-
Life of Jonathan Wild the Great (1743); The History of Tom
Jones, a Foundling (1749); Amélia (1751). prios criminosos; e à sua infâmia não faz falta, realmente,
Edição dos romances por G. Saintsbury, 2.* ed., 12 vols., London, certa grandeza. O que é espantoso, nesse romance, ultra-
1026.
passando os limites de uma sátira política, é a abundância
W. L. Cross: The History of Henry Fielding. 3 vols. Newhaven.
1918. de realidade social, a presença de todas as classes e de todos
A. Digeon: Les romans de Fielding. Paris, 1923. os tipos da Inglaterra do século X V I I I , dos inns que hos-
A. Dobson: Henry Fielding. 2. a ed. London, 1925.
F. T. Blanchard: Fielding, the Novelist. Newhaven, 1926. pedaram as companhias mais heterogéneas, até os inns of
O. Saintsbury: "Fielding". (In: Prefaces and Essays. London, Court, nos quais essa gente foi julgada, dos bastidores dos
1933.)
F. O. Bissell: Fielding's Theory of the Novel. Ithaca, 1933, teatros populares até aos castelos dos lordes, nos campos,
B. Jenkins: Henry Fielding. London, 1947. Fielding conserva-se imparcial, observando e ridicularizando
W. Iser: Die Weltanschauung Henry Fieldings. Tuebingen, 1952.
F, Homes Dudden: Henry Fielding, his Life, Works and Times. igualmente a city e a countryside. O seu próximo romance
Oxford, 1962.
1490 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1491

será uma epopeia; e como a Inglaterra da "paz augustéia" teremos ainda um inglês extraordinário e típico, o inglês
não apresenta assuntos para escrever-se uma Ilíada, será de outra definição de Fielding, a definição dada por Leslie
uma Odisseia. O tipo do romance-odisséia estava elaborado, Stephen: " T h e big, full-blooded, vigorous mass of roast-
desde o Lazarillo de Tormes, no género picaresco. The beef who will stand no nonsense, and whose contempt for
History of Tom Jones, the Foundling é romance picaresco, the fanciful and arbitrary tends towards the coarse and
o maior de todos. A vivacidade extrema da narração, a materialistic."
comicidade das situações, o realismo penetrante na inter-
pretação dos destinos humanos, a agudeza da caracterização, A imensa vitalidade de Fielding exclui toda a espécie
tudo isso quase que não deixa perceber o domínio espantoso de protesto contra a vida; daí a complacência para com os
da língua coloquial — na época do classicismo de P o p e — malandros, à maneira dos últimos romances picarescos, de
e a construção magistral do enredo; Coleridge achou a Lesage. Por isso, Fielding é incapaz de conservar-se na
composição de Tom Jones só comparável ao Alchemist, de atitude satírica; é menos amargo do que Hogarth e Johnson,
Ben Jonson, e ao Édipo sofocliano. Fielding apresenta-se e por isso foi aceito unanimemente pela nação, que o con-
como um squiie robusto, um aristocrata que conheceu muita sagrou como o seu maior romancista e a Tom Jones como o
gente de todas as condições e conta aos amigos, ao pé da la- maior romance da literatura inglesa. A atitude positiva de
reira, no clube, o que viu. A maneira franca de narrar é a dos Fielding em face da vida e dos homens tem raízes nas
gentlemen ingleses do século X V I I I , contando anedotas
bases mais profundas do caráter nacional inglês: Fielding
escabrosas depois do jantar, depois de as damas se retirarem.
é um "liberal", não no sentido de um partido político, mas
O panorama da Inglaterra f ieldinguiana seria dos mais es-
naquele outro sentido em que todo inglês é um liberal nato.
candalosos — país de ladrões, prostitutas e hipócritas —
Fielding tem o devido respeito pela personalidade e indi-
se não fosse o humorismo complacente com os vícios
alheios e com os próprios; um quadro à maneira de Hogarth, vidualidade dos outros, inclusive as fraquezas e até os
atenuado pelas cores do Rococó. A arte de movimentar os vícios; só se vinga pelo riso, mas no desfecho fica imparcial,
personagens do quadro revela o dramaturgo experimentado; colocando-se acima de todas as complicações, distribuindo
e se as farsas de Fielding não aspiram ao valor poético das com a mão justa do juiz experimentado as penas e as
comédias elisabetanas, os seus romances possuem algo da recompensas. Dessa imparcialidade ou liberalismo de Fiel-
força do teatro nacional inglês, devido ao poder de carac- ding resultou importantíssima modificação da técnica no-
terização: o leviano e amável Tom Jones, sua querida velística. O romance picaresco era narrado na primeira
Sophia, o robusto Squire Western, o hipócrita Blifil, o pessoa; Defoe ainda compõe assim. Mas Fielding, o im-
mestre-escola doido Partridge, a sedutora Lady Bellaston, parcial, não podia adotar esse processo subjetivo, e ainda
são figuras inesquecíveis, pertencendo - ao panteão daquelas menos o processo epistolográfico de Richardson, segundo
criações literárias que ficam mais vivas do que as pessoas o qual o papel do narrador é distribuído entre os persona-
de carne e osso. As capacidades de Hogarth e Shakespeare, gens. Fielding confiou o papel de narrador a uma pessoa
reunidas em uma pessoa — assim foi Fielding definido fora e acima dos acontecimentos, que sabe tudo a respeito
por Hazlitt; e, se abstraímos dessa definição o exagero
dos personagens, dirigindo-lhes com oniscência divina os
inaceitável do segundo nome, preferindo o de Ben Jonson,
destinos e, quando muito, comentando-os com a superiori-
A

1492 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1493

dade do humorista. Essa pessoa é o próprio romancista. Em comparação com Fielding, Tobias Smollett ( 1B1 ),
Atribuindo-lhe onisciência, Fielding criou o romance obje- sempre mencionado junto com êle, parece um retrógrado.
tivo, o romance moderno. A sua brutalidade e o gosto pela forma picaresca perten-
Resta analisar a natureza daqueles comentários com cem antes ao século X V I I , e o seu realismo é deformador,
que o romancista gosta de interromper a narração. Leslie caricaturante. Sem muita intenção satírica, parece mais
Stephen explicou-os bem: Fielding revela inclinação para satírico do que Fielding, porque é um plebeu, um inglês
o materialismo. Em parte, isso também é inglês, conse- brutal da classe média inferior, um individualista mal-
quência do empirismo nacional; em parte, é herança do humorado e rebarbativo, animando-se porém com muita co-
libertinismo da Restauração, que foi ao mesmo tempo a mida e vinho do Porto, contando, então, as anedotas e
época dos comediógrafos licenciosos e do materialista histórias mais engraçadas — Smollett é assim, e sabe contar
Hobbes, do antipuritano Butler e do liberal Locke. Mas histórias como poucos, e não meras histórias, mas verda-
o libertinismo de Fielding é atenuado por um liberalismo, deiros romances. Dá a impressão de escrever tão relaxa-
uma imparcialidade tão grande que o romancista chegou, damente como falam os seus marujos e malandros, mas é
enfim, a reconciliar-se com o seu inimigo visceral Richard- um romancista nato; o próprio Fielding não escreveu um
son. Já em Tom Jones, um crítico perspicaz observou romance tão bem narrado como Ferdinand Count Fathon.
sintomas ligeiros de sentimentalismo. Amélia, o último Onde Defoe arrancou compaixão pelos seus heróis crimi-
romance de Fielding, seria apenas mais uma paródia exu- nosos e Fielding a admiração, conseguiu Smollett a simpa-
berante da hipocrisia nacional, com a figura do devasso tia; justamente o criminoso Ferdinand é o mais simpático
Booth no centro, se não fosse Amélia, a mulher do libertino dos seus personagens, talvez porque Smollett simpatizasse
dissoluto, que lhe salvou a vida e a existência pelas suas só com personagens assim.
virtudes sublimes; e no fim, o captain Booth é até converti- O que parece antiquado em Smollett é a forma picaresca
do pela nobreza moral de Amélia, quase como um malandro dos seus romances; Roderick Rondom é um puro romance
arrependido de Dickens. Esse romance revela que os crité- de aventuras, com ação na Espanha e na América como
rios morais de Fielding já não são os do libertinismo da
Restauração; seria impossível dizer que são os do próprio
Richardson, mas são os da época: influiu o sentimenta- 151) Tobias Smollett, 1721-1771.
The Adventures of Roderick Random (1748); The Adventures
lismo. O próprio humorismo de Fielding é — segundo a o/ Peregrine Pickle (1751); The Adventures of Ferdinand Count
definição "riso entre lágrimas" — um sentimentalismo às Fathom (1753); The Expedition of Humphrey Clinker (1771).
Edição por G. Salntsbury, 12 vols.. London, 1885/1902.
avessas. Fielding está exatamente entre Defoe e Dickens; D. Hannay: Smollett. London, 1887.
tem as qualidades dos dois, sem os seus defeitos, é o mais O. Smeaton: Tobias Smollett. Edinburg, 1897.
H. Chlld: "Smollett". (In: The Cambridge History of English
equilibrado de todos, quase um deus do romance realista; Literature. Vol. X. 2.» ed. Cambridge, 1921.)
H. S. Buck: A Study in Smollett. Newhaven, 1925.
enfim, ainda é, pouco antes da época burguesa, um grande O. Salntsbury: "Smollett". (In: Prejaces and Essays. London,
aristocrata, se bem que um aristocrata democrático — e 1933.)
L. M. Knapp: Tobias Smollett, Doctor of Men and Matters.
assim conseguiu sobreviver aos próprios Hasbsburgos. Princeton, 1948.
L. Brander: Tobias Smollett. London, 1951.
1401 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1495

os de Defoe, mas o narrador não é um cavaleiro errante nos romances, das suas próprias possibilidades íntimas,
em serviço no estrangeiro, e sim um marujo inglês, um projetando-as para fora. Daí resulta, no mais sério dos seus
tipo nacional que entra com Smollett na literatura inglesa; romances, a simpatia pelo criminoso, eno mais problemático
o próprio romancista tinha servido como médico de navio, deles a auto-ironia. E porque era um inglês, homem da
e as grosserias da sua linguagem são as conhecidas dos ilha, o seu evasionismo tomou a forma das viagens aven-
carabins. O segundo romance, Peregrine Pickle, também turosas, a picaresca.
é romance picaresco, passando-se, porém, só na Inglaterra
A mistura esquisita de libertinismo e sentimentalismo
e apresentando um antipático quadro de costumes, rea-
recalcado, em Fielding e Smollett, constitui o tipo nacional
lista no sentido algo caricatural de certos mestres da pintu-
ra holandesa. Peregrine Pickle é considerado como o melhor do inglês mordaz com o coração de ouro — o personagem
romance de Smollett pelos críticos que não admitem pro- de Friscobaldo, na Honest Whore de Dekker, foi o primeiro
blemas neste autor. Mas o seu último romance, The Expe- representante, e muitos outros seguirão, até Dickens. Mas
dition oí Humphrey Clinker, é uma obra problemática, não também representa um fato da história literária do século
quanto ao valor — é um dos mais exímios romances da X V I I I : a transição do libertinismo aristocrático, satírico,
literatura inglesa — mas quanto à significação da obra. O para o libertinismo sentimental, "populista", que se tornará
assunto é a viagem de um tipo smoilettiano, do irascível revolucionário. É possível acompanhar a transição em
Matthew Bramble, acompanhado de sua família, para a um dos autores menos conhecidos da época, em Crébillon
estação de águas de Bath e para a Escócia; um romance fils ( , B 2 ) ; pouco conhecido, porque só se conhecem muito
de viagem — tipo arcaico, picaresco, do género — apre- os seus romances obscenos como Le Sopha, leitura clan-
sentado pela técnica mais requintada, a forma epistolográ- destina dos colegiais. Crébillon fils é bom narrador, e sabe
fica de Richardson. Assim como Fielding, Smollett zombou que a acumulação de cenas licenciosas acabaria fatigando
do grande sentimentalão; sempre quando um dos persona- os leitores; para variar, brinca com sentimentalismos; e ve-
gens nota os aspectos sentimentais de um acontecimento, rifica-se que êle nem sempre brincou. O autor de Le Sopha
a carta paralela de outro personagem desmente, com vigor também é autor das Lettres de la Marquise de M* au
humorístico, essas impressões sentimentais, revelando "o Comte de R*, o melhor romance richardsoniano em lín-
outro lado". No fundo, isso já é a técnica de Henry James gua francesa. A demonstração da veracidade, por assim
e Conrad, método de auto-ironia sutil e sintoma de estados dizer, de Crébillon fils é fornecida por outro livro grande
de alma complicados do autor. Com efeito, Smollett é um e desconhecido da literatura universal, as Mémoires, de
caso psicológico, se bem que um caso que só se revela na
obra e não na biografia; era um inglês cheio de recalques.
Smollett é até anglicíssimo, expressão suprema da situação
insular da sua terra: observou e descreveu todos os hor- 152) Claude-Prosper Jolyot de Crébillon fils, 1707-1777.
Les égarement du coeur et de Vesprit <1736); Lettres de la
rores e infâmias do mundo, com uma espécie de arte espon- Marquise de M... au Comte de R... (1744); Le Sopha (1745);
tânea e primitiva, de modo que não se lhes percebe a gra- etc.
Edição por P. Lèvre, 5 vols.. Paris, 1929.
vidade. E isso foi, para êle, uma evasão: Smollett fugiu, Cf. a Introdução de O. Uzanne ao vol. V de: Petits Conteurs du
XVIIIe siècle. Paris, 1880.
1496 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1497

Casanova ( 1 5 3 ). Toda a gente conhece o capítulo, tão bem A mais fina sublimação desse sentimentalismo sensual
escrito, da fuga aventurosa da prisão de Veneza; e muita encontra-se em Laurence Sterne ( 1B4 ). Por volta de 1770,
gente leu as edições abreviadas das Mémoires, feitas para os leitores velhos gostavam das suas anedotas escabrosas
o comércio de livros pornográficos; o nome de Casanova e alusões cínicas, e os leitores moços rebentaram em lágri-
tornou-se proverbial como o de Don Juan. Essa impressão ma, lembrando-se da filantropia do seu Corporal Trim e
não é, porém, exata. Era um homem culto, de grande inte- da pobreza do monge, na Sentimental Journey. Hoje, Ster-
ligência, colocado no meio da sociedade aristocrática à qual ne é lido principalmente por originais como os que êle
não pertenceu — era plebeu. Mas as circunstâncias leva- mesmo descreveu e que não se cansam de acompanhar as
ram-no a viver como viu viver os outros. Foi uma vida suas intermináveis digressões erudito-humorísticas; para
de aventureiro; as Mémoires não se desagregam, no en- outros, Sterne é um caso psicológico ou psicanalítico, caso
tanto, em mil anedotas e fragmentos, porque a personali- de libido recalcada de um vigário, devasso na imaginação,
dade do narrador era bastante forte para conferir-lhes a rindo como um fauno quando consegue exprimir os seus
unidade de uma vida completa e, apesar de tudo, coerente; desejos, e chorando como uma criança quando se choca com
coerência de composição novelística, até o fim do aventu- a realidade. Será difícil formar opinião certa, porque Ster-
reiro pseudo-aristocrático, que nunca compreendeu a des- ne é ambíguo na matéria e na forma. Não é romancista, e
truição revolucionária do seu mundo; acabou na solidão não compreendemos como os seus contemporâneos puderam
de um castelo na Boémia, entre gente que não lhe entendia dar o nome de romance a esse conglomerado de conversas,
a língua — é um fim lógico, fatal, quase se poderia dizer digressões e anedotas, sem ação novelística, que é o Tris-
trágico. Com razão, Edmund Wilson caracterizou as Mé- tram Shandy; talvez por estarem acostumados a receber,
moires como grande romance, talvez um dos maiores do da Inglaterra, romances. E pelo mesmo motivo — a moda
século. Certamente não existe descrição mais atraente da do romance — Sterne teria escolhido a forma novelística
vida aristocrática ítalo-francesa do Rococó agonizante, en-
tre Goldoni e Fragonard e Diderot e Rousseau; mas o
importante é o desfecho dessas inúmeras aventuras eróticas 154) Laurence Sterne, 1713-1768.
no mesmo sentimentalismo arrependido dos que nunca vive- The Life and Opinions of Tristram Shandy (1759/1767); Sermons
o/ Mr. Yorick (1760/1767); A Sentimental Journey Through
ram, porque só acreditavam "viver". Casanova é também um France and Italy (1768).
sentimental. Edições: por G. Saíntsbury, 6 vols., London, 1894, e Oxford
Edítion, 7 vols., Oxford, 1926/1927. Edição crítica de Tristram
Shandy por I. A. York, London, 1940.
H. D. Trail: Sterne. London, 1889.
C. E. Vaughan: "Sterne". (In: The Cambridge History of En-
153) Jacopo Casanova, 1725-1798. glish Literature. Vol. X. 2.» ed. Cambridge, 1921.)
Mémoires (1822/1828). A. de Froe: Laurence Sterne and His Novéis, Studied in the
Light of Modem Psychology. Groningen, 1925.
Edição por R. Vèze, 12 vols., Paris, 1924/1935.
E. Maynlal: Casanova et son temps. Paris, 1911. W. L. Cross: The Life and Times of Laurence Sterne. 3.* ed.
A. Dubois La Chartre: La vie de Casanova. Paris, 1934. Newhaven, 1929.
E. Wilson: "Uncomfortable Casanova". (In: The Wound and the R. Maack: Laurence Sterne in Lichte seiner Zeit. Hamburg, 1936.
Bow. 6.» ed. Cambridge Mass., 1941.) P. Quennell: Four Portraita. Studies of the Eighteenth Century.
A. Zottoli: Giacomo Casanova. Bari, 1945. London, 1945.
P. Nettl: Casanova und seine Zeit. Esslingen, 1948. D. W. Jefferson: Laurence Sterne. London, 1954.
F. Marceau: Casanova ou Vanti-Don Juan. Paris, 1948. J. Traugott: Tristram Shandy's World. Sterne"s Philosophical
Rhetoric. Berkeley, 1955.
1498 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1499

para divulgar as suas pequenas histórias e crónicas. Sterne Deus que dos homens. Sterne foi um vigário assim, pela
foi comparado a Montaigne, com o qual revela afinidades filantropia algo chorosa, pelo sentimentalismo, pela curio-
psicológicas, mas não analogias literárias. Ensaio é outra sidade erudita, e, apesar de tudo, pela consciência moral
coisa, afinal. Sterne é um grande e delicioso causeur, um do deísta, que o distinguiu e lhe salvou a dignidade. Sterne
contemporâneo do abbé Galiani e de Diderot. Como com- precisava disso para não se tornar um clown, quando lhe
panheiro de aristocratas cultos, membro de salões literários, veio o êxito literário e êle mesmo começou a pagar a um
cultivou muito as artes de estilo; na arte de falar por vigário, a fim de viver em Londres, nos salões literários,
alusões e no ritmo musical, mozartiano, da sua prosa, pou- brilhando como causeur espirituoso. Sterne talvez tenha
cos ingleses se comparam a Sterne. A composição não lhe sido o maior conversador literário de todos os tempos; os
importava. Escolheu qualquer forma: como "Mr. Yorick", leitores modernos não gostam bastante desse género aris-
a do sermão; no Tristram Shandy, a do romance fieldin- tocrático; e a leitura de Tristam Shandy, romance frag-
guiano; na Sentimental Journey (pequena obra que é a mais mentário que em vários volumes chega só até ao nasci-
coerente das suas produções), a do romance picaresco — mento do herói, é fatigante. Mas a leitura em pequenas
mais uma prova, ao lado de Smollett e Casanova, de que doses ainda dá a impressão de cultura requintada, crepus-
o velho género plebeu correspondia bem às necessidades cular; um dos últimos admiradores sinceros de Sterne foi
de expressão da mentalidade sentimental-libertina. Apenas, Nietzsche. A profissão clerical de Sterne parece uma brin-
a Sentimental Journey não tem nada de espírito picaresco; cadeira, como a de Galiani e de tantos abbés do século, mas
é uma novela na qual se chora muito, e as lágrimas só se não é inteiramente assim. Os Sermons of Mr. Yorick foram
enxugam quando o encontro amoroso é marcado, e então há uma das obras mais queridas desse século corruto e mora-
sempre um paravent, pintado de amoretti ao gosto do Ro- lizante, porque o estilo dos sermões é o mesmo estilo —
cocó, para guardar as aparências — e o fim é uma obser- humorístico, sentimental e espirituoso — dos romances,
vação maliciosa, digna de Voltaire. Sterne é sentimental, ao passo que a intenção é nitidamente moral. Sterne é
mas é o oposto de um puritano. Com efeito, era vigário, moralista, se bem que não moralista cristão; antes se parece
sacerdote da Igreja anglicana, e essa sua condição é de com os moralistes franceses do século precedente. Sem o
importância literária. A igreja oficial da Inglaterra estava pessimismo de La Rochefoucauld, professa a mesma des-
quase secularizada, servindo de fonte de renda aos filhos confiança contra as chamadas virtudes, analisando com
mais jovens da aristocracia; os prelados não brilhavam pela grande perspicácia os verdadeiros motivos dos atos huma-
ortodoxia nem pelos costumes, e as paróquias eram admi- nos; e, sem os artifícios retóricos, de La Bruyère, sabe
nistradas por pobres vigários, a quem o cura — beneficiado no entanto integrar as suas análises, criando personagens,
nobre, vivendo na cidade ou no castelo — pagava como caracteres. Tristram Shandy não é, certamente, um roman-
substitutos. Esses vigários — o pai de Goldsmith foi um c e ; é antes uma conversa continuada, como a dos perso-
deles — eram, não raramente, homens dignos e cultos, ami- nagens do Spectator. Os caracteres, porém, são muito mais
gos da população rural, estudiosos ou escritores diletantes elaborados — o modelo Fielding é evidente — e o curioso
como W h i t e of Selborne, criadores do género pré-romântico Uncle Toby, o enamorado Corporal Trim, o pobre e alegre
do "idílio sentimental"; não eram muito ortodoxos, mas vigário Yorick, a viúva Wadman, o médico Dr. Slop são
antes contaminados deísmo, e por isso menos amigos de personagens dignos de um grande romancista. Apenas
L500 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1501

Sterne não conseguiu dominar a desordem moral e intelec- se lamenta o destino de madame de Touvel, seduzida pelo
tual na sua própria alma ao ponto de construir um enredo, lovelace Valmont com a ajuda da nefasta marquesa de
um romance de verdade. O plano estava traçado; mas a Merteuil; também provém daí a técnica epistolográfica,
emoção desfigurou-lhe todos os projetos, e a ironia perma- influenciada não apenas por Richardson e Crébillon fils,
nente do autor contra os seus personagens e contra si mas já pelo Werther. Daí, enfim, provém a apreciação
mesmo fez o resto para destruir a realidade novelística. frequente do romance como manual da corrução moral,
O resultado foi uma obra de grande lucidez racional, con- sob a aparência de quadro de costumes aristocráticos: "Les
temporânea de Voltaire, mas perfeitamente irreal, fantás- délicats se primitivisent, puis ils s'encanaillent." Mas seria
tica — ou, para empregar enfim o termo, uma obra român- confusão entre forma e estilo, entre amoralismo e imo-
tica. Os contemporâneos riam ou choravam por causa de ralismo. Somente a forma das Liaisons dangereuses é a
Sterne; uma geração mais tarde, será o modelo de Jean epistolográfica de Richardson; o estilo é rigorosamente
Paul, Stendhal lhe apreciará a psicologia, e Nerval o estilo. realista; e o que parece hipocrisia é o esforço bem sucedido
do aristocrata Laclos para não cair nas baixezas do natu-
Sterne é bem o contemporâneo de Galiani e D i d e r o t ;
ralismo plebeu. O mesmo realismo informa do sentido
como eles, é um moralista de conclusões e resultados amo-
moral do romance; não é antimoral, no sentido de simples
rais. Pelo estilo, que é o da sua companhia aristocrática,
negação das convenções morais em vigor, mas imoral, no
aproxima-se mais de Galiani; pelo sentimento, que é o da
sentido de negar o caráter moral a essas convenções.
sua alma plebeia, algo rabelaisiana, está mais perto de Dide-
"L'amour que l'on nous vante comme la cause de nos plai-
rot. Para obter um Sterne francês, seria preciso juntar
sir, n'en est au plus que le pretexte". Essa frase, digna
Diderot e Galiani, e a resultante, com um pouco mais de
de la Rochefoucauld, podia bem chamar a atenção de Nietzs-
inteligência maquiavelística, seria Laclos.
che. Mas as Liaisons dangereuses passaram durante cem
Choderlos de Laclos ( 166 ) continua e termina a evo- anos por leitura pornográfica. Os historiadores da litera-
lução que começara em Crébillon fils: o sentimentalismo. tura teimaram em ignorar a obra. Quem a reabilitou, para
Decompondo as bases morais da conduta, toma ao liberti- a admiração geral, foi André Gide.
nismo o caráter antimoralista, transformando-o em imora-
lismo. Disso resultam certos resíduos de sentimentalismo Laclos, aristocrata, depois jacobino, depois general de
nas Liaisons dangereuses, o tom às vezes choroso com que Napoleão, não foi escritor profissional. Seu romance resu-
me, como uma única manifestação literária, as experiências
morais de sua vida e de sua época. Laclos é sincero. Não
165) Pierre Ambroise François Choderlos de Laclos, 1741-1803. mente. São os seus personagens que mentem; e nem sequer
Les liaisons dangereuses (1782). deliberadamente. Têm, em vez da consciência moral, uma
Edição por M. Aliem, Paris, 1923.
A. Augustin-Thierry: Les Liaisons dangereuses de Laclos. Paris, "falsa consciência" (no sentido marxista desse termo). Por
1930. isso, Malraux falou, a propósito das Liaisons dangereuses,
E. Dard: Le general Choderlos de Laclos, auteur ães "Liaisons
dangereuses". Paris, 1936. em "romance ideológico" e manual do maquiavelismo par-
A. Malraux: "Laclos". (In: Tableau de la Littérature Française, ticular da futura burguesia. Há exagero nessa apreciação,
de Corneille à Cnénier. Paris, 1939.) influenciada talvez pelo conhecimento da biografia de La-
M. Turnell: The Novel in France. London, 1960.
L. Solaroli: Laclos. Roma, 1952. clos: pelo seu jacobinismo. Mas o romance é anterior à
R. Vailland: Laclos par lui-même. Paris, 1964.
L502 OTTO MARIA CARPEAUX
HISTÓRIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1503

R e v o l u ç ã o . R e p r e s e n t a , em f o r m a d e p e r f e i ç ã o m o z a r t i a n a ,
vidas. Esse "belo anjo caído", antecipando o terrorismo
u m a t r a n s i ç ã o n a h i s t ó r i a d a s o p i n i õ e s m o r a i s da h u m a -
totalitário, revela possibilidades desconhecidas da indigna-
n i d a d e . E essa d e s c o b e r t a p s i c o l ó g i c a s i t u a - o e n t r e Manon
ção, m o r a l e m o r a l i s t a a o m e s m o t e m p o , d o p r é - r o m a n t i s m o .
Lescaut e a Cartucha de Parma.
O ambiente do qual u m S a i n t - J u s t surgiu, está descrito,
A frase "les d é l i c a t s se p r i m i t i v i s e n t , p u i s ils s'enca- c o m o em d o c u m e n t o s s o c i o l ó g i c o s , n o s r o m a n c e s d e R e s t i f
n a i l l e n t " n ã o se a p l i c a a L a c l o s , n e m s e q u e r ao a m b i e n t e d e la B r e t o n n e ( 1 5 7 ) . M a s s e r ã o r e a l m e n t e d o c u m e n t o s ? A
que lhe tornou possível a franqueza; descreve apenas a crítica literária criou certos clichés para definir o autor
m e n t a l i d a d e d a q u e l e l i b e r t i n i s m o q u e p r e t e n d e u ir ao en- d o Paysan perverti: " R o u s s e a u d e la c r a p u l e " , " P é t r o n e
c o n t r o do povo n o q u a l só v i u a canaille — a t i t u d e m a i s d u p r o l é t a r i a t " , e essas d e f i n i ç õ e s f a z e m c r e r q u e os inú-
literária do que existencial, e que corresponde, n o terreno m e r o s romances de Restif apresentariam o panorama de
m o r a l , ao p r i m i t i v i s m o p r é - r o m â n t i c o . F a n t a s i a s n e s s e es- perversão moral pré-revolucionária. Justamente o número
t i l o são os r o m a n c e s do f a m o s o ou n o t ó r i o m a r q u ê s d e das suas produções é u m contra-argumento. Q u e m escre-
S a d e ( 1 5 f l ), q u e p a r e c e m m e n o s d o c u m e n t o s d a m a i s b a i x a v e u os 42 v o l u m e s d o s Contemporains, os 23 v o l u m e s das
corrução aristocrática do que produtos patológicos da mes- Françaises e m a i s 147 v o l u m e s d o s Parisiennes, Palais-
m a m e n t a l i d a d e q u e c r i o u em o u t r o s c o n t e m p o r â n e o s a Royal, Nuits de Paris, e t c , e t c , n ã o foi u m r e a l i s t a ; foi u m
" r e l i g i ã o d o g é n i o " . N ã o se i g n o r a q u e a c r í t i c a m o d e r n a g r a f o m a n í a c o , u m paysan perverti p e l a l i t e r a t u r a , e x t e r i o r i -
pretende descobrir no marquês de Sade inéditas profun- z a n d o o p e s a d e l o d e u m a i m a g i n a ç ã o égarée. A p e s a r d e t u d o
d e z a s de p e n s a m e n t o e x i s t e n c i a l i s t a e a n g ú s t i a s q u e a p r o - isso foi R e s t i f u m e s c r i t o r d e g r a n d e t a l e n t o ; q u a n d o a l c a n -
x i m a r i a m do a l t a r ou, p e l o m e n o s , d a t e o l o g i a o p a d r o e i r o çou, c o m o e m Monsieur Nicolas ou em La vie de mon père, a
do sadismo. É possível encontrar algo daquilo, muito pouco, realidade das suas próprias experiências, logo abandonou o
pseudonaturalismo, revelando o sentimentalismo que cons-
a l i á s , nas i n t e n ç õ e s d o a u t o r q u e foi a t e u p o r d e s e s p e r o ;
titui a base de toda a literatura pré-revolucionária. Restif
m a s nas s u a s o b r a s , n ã o . O s r o m a n c e s são m e n o s t e r r í v e i s
d e la B r e t o n n e n ã o é o g é n i o d o p r o l e t a r i a d o u r b a n o , e n t ã o
do que terrivelmente insípidos e monótonos; o vício é
u m a classe i n t e i r a m e n t e n o v a ; p e r t e n c e ao p r o l e t a r i a d o r u -
mesmo monótono. Uma expressão muito mais autêntica do
r a l j o g a d o p a r a as r u a s d a c i d a d e ; é p r o d u t o d a r e v o l u ç ã o
s a d i s m o , n o t e r r e n o p o l í t i c o foi S a i n t - J u s t ( 1 6 0 - A ) , o g r a n d e
orador jacobino e amigo de Robespierre, em cuja companhia
acabou na guilhotina, à qual tinha sacrificado milhares de 157) Nicolas-Edme Restif de la Bretonne. 1734-1806.
Le paysan perverti (1776); La paysn <rlle (1776); La vie
de mon père (1778); Les nuits de Paris (1783); Monsieur Nicolas
ou Le coeur humain devoilé (1797); etc, etc.
Edição por H. Bacheltn. 9 vols., Paris, 1931/1938.
156) Donatien François, marquês de Sade, 1740-1814. F. Funck-Brentano: Restif de la Bretonne. Paris, 1928.
Justine (1791); Alina et Valcourt (1795); Juliette (1798), etc. A. Tabarant: Le vraí visage de Restif de la Bretonne. Paris,
Edição de textos escolhidos por M. Nadeau, Paris, 1947. 1936.
O. Flake: Le marquis de Sade. Paris, 1933. F. Fleuret: "Restif de la Bretonne". (In: Tableau de la Littè-
M. Heine: Le marquis de Sade. Paris, 1950. rature Française, de Corneille à Chénier. Paris, 1939.)
C. Gorer: The Life and ideas of the Marquis de Sade. 2.* ed. C. R. Dawes: Restif de la Bretonne. London, 1946.
London, 1953. A. Bégué: Êtat présent des études sur Restif de la Bretonne.
166 A) Louis Antoine Léon de Saint-Just, 1767-1794. Paris, 1948.
A. Ollivier: Saint-Just et la force des choses. Paris, 1955. M. Chadourne: Restif de la Bretonne ou Le siècle prophétique.
Paris, 1959.
H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A O C I D E N T A L 1505
1504 OTTO M A R I A CARPEAUX

materialismo; tratados estéticos, defendendo as doutrinas


industrial, e nesse sentido êle é tão pré-romântico q u a n t o
do pré-romantismo; 8 v o l u m e s de crítica de pintura; ro-
o aristocrata Laclos. O q u e faltava ao jornalista autodidata
mances e c o n t o s l i c e n c i o s o s ; dois dramas burgueses, c h e i o s
d o Palais Royal não era a cultura, m a s a i n t e l i g ê n c i a . Era
de sentimentalismo c h o r o s o ; e e n f i m — last not least — a
u m escritor instintivo, e por isso capaz d e dizer coisas que
direçao da Enciclopédia, instrumento intelectual c o m o
os teóricos pré-românticos da "literatura instintiva" d i s s i -
qual se prepara i n t e l e c t u a l m e n t e a Revolução. O panorama
mularam. Mas por este caminho só era possível c h e g a r até
dá a impressão de um h o m e m d e ação, dirigindo pela ati-
à decomposição da literatura, e não à revolução. E n t r e a s
vidade literária o s d e s t i n o s d o século. Grande parte da
condições da revolução estava a aliança entre o l i b e r t i n i s m o
sua obra foi, porém, publicada só depois da sua morte ou
pré-romântico d o s s e n t i m e n t o s e o radicalismo c o n s c i e n t e
depois da R e v o l u ç ã o ou m e s m o na segunda metade do s é c u l o
da inteligência.
X I X . Diderot, h o m e m genial que se esgotou em fragmentos
Essa aliança anuncia-se — em parte realiza-se — em e s u g e s t õ e s , é m e n o s uma força motriz da história inte-
D i d e r o t ( 1 B 8 ). A sua obra é tão imensa como i n c o e r e n t e : lectual do que um sintoma da situação à qual essa história
tratados filosóficos, d e f e n d e n d o o sensualismo, d e p o i s o chegara. A época c o n h e c e u - o mais como personalidade s u -
gestiva, impressionante, a s s i m como êle nos aparece h o j e
no d o c u m e n t o mais precioso da sua vida, nas cartas a
158) Denis Diderot, 1713-1784. (Cf. nota 95.) S o p h i e V o l l a n d ; s e g u n d o e s t e e outros documentos pessoais
Les pensées philosophiques (1746); Promenaãe du sceptique construiu S a i n t e - B e u v e o retrato de Diderot, pequena m a s
(1747); Les bijonx indiscrets (1747); Lettre sur les aveugles à perfeita obra de arte: Diderot, produto da petite société
Yusage de ceux qui voient (1749); Lettre sur les sourds-muets
a Vusage de ceux qui entendent et qui parlent (1751); Le fils provinciana, t i p o do pequeno-burguês francês com t o d a s
naturel (1757); Le père de famille (1758); La religíeuse (1760; as suas qualidades e d e f e i t o s , trabalhador, generoso, sen-
publ. 1796); Le neveu de Rameau (1762; publ. 1805); Le rêve de
D'Alembert (1769; publ. 1830); Oeuvres morales (1770); Jacques timental, devasso, moralizante, plebeu, otimista, entusiasta,
le fataliste (1773; publ. 1796); Paradoxe sur le comédien (1773; e x c e l e n t e causeur espirituoso. E assim teria sido a sua obra
publ. 1796); Le neveu de Rameau (1762); publ 1805); Le rêve de
Salon de 1763 (publ. 1857); Salon de 1765 (publ. 1795); Salon de improvisador genial, fragmentando-se em mil tentativas
de 4767 (publ. 1798); Salon de 1771 (publ. 1857); Salon de e projetos, espalhando por toda a parte ideias e g e r m e s ,
1775 (publ. 1857); Salon de 1781 (publ. 1857).
Edição por J. Assézat e M. Tourneux, 20 vols., Paris, 1875/1879. e nunca realizando uma obra coerente. E s c r e v e n d o i s s o ,
Edição das cartas a Sophie Volland por A. Babelon, 2.» ed., S a i n t e - B e u v e pensava um p o u c o em si m e s m o : cie também
2 vols., Paris, 1938.
C.-A. Sainte-Beuve: Portraits littéraires. Vol. I. f i l h o da petite société provinciana, êle também e s g o t a n d o - s e
O.-A. Sainte-Beuve: Causeries du Lundi. Vol. III. numa obra fragmentária de ensaios brilhantes. E m parte,
J. Reinach: Diderot. Paris, 1894.
A. Colllgnon: Diderot, sa vie, ses oeuvres, sa correspondente. o pequeno-burguês S a i n t e - B e u v e , saint-simonista e n t ã o ,
Paris, 1895. a s s i m como D i d e r o t fora enciclopedista, pretendeu de-
J. K. Luppol: Diderot. (Trad. do russo.) Paris, 1936.
H. Gillot: Denis Diderot, Vhomme, ses idées philosophiques, nunciar, como culpada, a "grande sociedade" parisiense que
esthétiques et littéraires. Paris, 1937. condenava o escritor à condição de jornalista b o é m i o ; Le
J. Thomas: Vhumanisme de Diderot. 2.* ed. Paris, 1938.
J. Luc: Diderot, Vartiste et le philosophe. Paris, 1938. neveu de Rameau é o quadro, pintado c o m espírito, h u m o -
O. E. Fellows e N. L. Torrey edit.: Diderot Studies. Syracuse. rismo e melancolia, dessa condição. E m parte, S a i n t e - B e u v e
1949.
D. Mornet: Diderot, Vhomme et Voeuvre. Paris, 1950. d e n u n c i o u e m D i d e r o t os d e f e i t o s que s e n t i u em si m e s m o
H. Lefebvre: Diderot. Paris, 1960.
O. May: Quatre visages de Diderot. Paris, 1951.
1506 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1507

— sobretudo o gosto bem sterniano de alusões sensuais e É um pré-romântico; e é um individualista bem francês.
obscenas, irrepreensíveis nos romances (que são antes con- Não pode dissimular a sua formação humanista, do colégio
tos ao gosto do Rococó) e impróprias na crítica d e arte. O dos jesuítas de Langres. É, em suma, um intelectual pe-
libertinismo de Diderot não deixa de ser, no entanto, signi- queno-burguês.
ficativo; é o complemento do seu sentimentalismo, às vezes É preciso corrigir o retrato estático de Sainte-Beuve
tão choroso. A mesma mistura se encontra no pintor de por uma análise dialética. A condição social de Diderot
que Diderot mais gostava, em Greuze, pintando uma jovem — pequeno-burguês que se torna intelectual — é mais deci-
camponesa pobre, em lágrimas, mas não sem desnudar-lhe siva que as suas qualidades de francês provinciano. É
os seios. O sentimentalismo de Diderot, situando-se entre o pequeno-burguês a serviço da grande burguesia — é
Richardson e Sterne, é um protesto contra as convenções a condição do "sobrinho de Rameau". A única obra com-
morais em vigor, dirigindo-se sobretudo contra os resíduos pleta e coerente de Diderot é o seu teatro, Le fils naturel
do rigorismo jansenista. Diderot é o mais inglês entre os e Le père de famille — o drama burguês; e justamente
escritores franceses, quer dizer, o representante mais au- esta parte da sua obra foi de valor apenas efémero, con-
têntico do pré-romantismo na França. Disso resulta também
seguiu o maior sucesso e está hoje irremediavelmente
a sua nova sensibilidade artística, o senso das nuanças,
esquecida. Diderot pertence à classe que fará a Revolu-"1
das cores, luzes e sombras, tudo o que o predestinava
ção e a perderá. Pequeno-burguês típico, embora genial,
a ser o primeiro grande crítico de arte francês; com
coube-lhe o destino de elaborar a teoria, sem continuá-la na
Diderot começa a tradição francesa das relações íntimas
ação. O instrumento intelectual da Revolução que Diderot
entre a literatura e as artes plásticas, continuando-se nas
criou, a Enciclopédia, tem hoje interesse apenas histórico;
relações entre Caylus e David, Baudelaire e Delacroix, Zola
mas representa o papel histórico de Diderot.
e Manet, Apollinaire e Picasso. Pré-romântico é o entu-
A Enciclopédia ( 15 °) não marcou época na evolução
siasmo de Diderot, herança de Shaftesbury, do qual tra-
duziu um Essai sur le mente et la vertu. Mas isso foi em das ciências puras nem das aplicadas. Mas é característico
1745, no começo da sua carreira literária, e Diderot evoluiu o grande espaço concedido à descrição dos métiers — hoje
rapidamente: do deísmo de Shaftesbury chegou, através
do sensualismo à maneira de Condillac, ao materialismo a 159) VEncyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts
Holbach. A seriedade do seu materialismo não pode ser et des métiers (17 vols. de texto e 11 vols. de gravuras, 1760/1772;
suplemento de 5 vols., 1777).
posta em dúvida; deduzindo daquela filosofia uma ética, Discours préliminaire (1750) de D'Alembert.
social e utilitarista, Diderot enquadra-se até entre os pre- Colaboradores principais: Diderot (filosofia, estética), D'Alem-
ber (física, matemática), Rousseau (música). Condillac (filo-
cursores do socialismo; e assim o querem entender, hoje, sofia), Helvétius (filosofia), Morellet (teologia), Yvon (teologia),
certos críticos marxistas: franceses e russos. Mas Diderot Holbach (química), Daubenton (história natural), Marmontel
(crítica literária), Dumarsais (gramática), Quesnay (economia
não foi realmente socialista, nem o seu materialismo é cien- política), Turgot (economia política), e t c , etc.
tífico, nem o seu utilitarismo é técnico-econômico. A moral Edição critica do Discours préliminaire por L. Ducros. Paris,
1895.
de Diderot é vagamente humanitária, o seu materialismo J. Morley: Diderot and the Encyclopaedists. London, 1878.
oferece aspectos de um vitalismo panteísta, e a sua política L. Ducros: Les encyclopédistes. Paris, 1900.
J. Le Gras: Diderot et VEncyclopédie. Paris, 1928.
é a de um rebelde apaixonado, sem programa definido. D. H. Gordon e N. L. Torrey: The Censoring of Diderot's Ency-
clopédie. New York, 1947.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1509
t$08 OTTO MARIA CARPEAUX
trangeiro, Grimm ( i e e ) é um escritor aristocrático, um cau-
diríamos, da indústria. O intuito da obra foi o fomento sem do Rococó; a sua correspondência, com a qual infor-
técnico-econômico, como contribuição para quebrar o poder mou príncipes e outros grandes senhores estrangeiros sobre
do absolutismo político e eclesiástico. M a s os "encyclopé- os acontecimentos literários e "filosóficos" em Paris, cons-
distes" eram literatos "pré-românticos", pré-burgueses. 0 titui mais uma enciclopédia da época pré-revolucionária.
próprio D' Alembert ( 1 6 0 ), autor do famoso Discours pré- A consequência imediata da Enciclopédia já não era°
Hminaire, era mais estilista do que cientista. O elemento o anticlericalismo e sim a economia burguesa, nem o forta-
pré-romântico é representado, em fases diferentes, pelo lecimento do anticlerismo, mas o apoio às ideias funda-
sensualismo filosófico de Condillac ( lfl1 )» P e * a crítica lite- mentais da economia burguesa. Eis a conclusão que tirou
rária de Marmontel ( 162 ) e pela economia fisiocrática de Helvétius ( 1 C 7 ). Raynal afirmara que a missão cristã, a
Quesnay ( 1 4 3 ), na qual se refletem as revoluções agrária e propaganda da fé, não passava de um pretexto hipócrita
industrial. Até o materialismo de Holbach ( 184 ) é um sis- para escravizar os índios e indianos, apoderar-se dos seus
tema racionalista, de origens no atomismo do século X V I I bens e explorar comercialmente as colónias conquistadas;
e de relações apenas indiretas com os materialismos meca- tirando-se as conclusões usuais contra a religião e o clero.
nicista e histórico do século XIX. Ao ambiente da Enci- Daí para o materialismo histórico era apenas um passo, que,
clopédia pertence a propaganda anticlerical do abbé Ray- no entanto, não foi dado. Helvétius tirou a conclusão con-
nal ( i e 6 ) , baseada na leyenda negra de Las Casas: uma trária: os egoísmos e até os vícios são capazes de contribuir
para o progresso técnico e económico da humanidade. Nesse
grande "máquina" voltairiana, de erudição antiquada. E o
"imoralismo" — utilitário demais para se encontrar com o
célebre divulgador das discussões dos philosophes no es-
imoralismo aristocrático de Laclos — reconhece-se logo
a doutrina de MandeviUe, e algo das teorias de Adam
Smith; com efeito, Helvétius, autenticado na sua qualidade
160) Jean Le Rond D'Alembert, 1717-1783. de "classicista da Ilustração" como autor de um poema
Tratté de dynamique (1743); Discours préliminaire (1750); Sur didático Le Bonheur, é um burguês. Diderot, o intelectual
la déstruction des Jésuites en France (1765).
I. Bertrand: D'Alembert. Paris, 1889. profissional, indignou-se contra a obra póstuma dele, De
161) Etienne Bonnot de Condillac, 1715-1780. Vhomme, na qual Helvétius afirmara a igualdade intelectual
Traíté des sensations (1754). de todos os homens; mas o defensor do egoísmo pretendera
R. Lenoir: Condillac. Paris, 1911.
162) Cf. nota 103.
163) François Quesnay, 1694-1774.
Physiocratie ou Constitution naturelle du gouvernement le pbia
avantageux au genre humain (1768). 166) Fréderic Melchior Grimm, 1723-1807.
Y. Guyot: Quesnay et la Physiocratie. Paris, 1896. Correspondence littéraire (1754/1773; primeira publicação em
1812).
164) Paul-Henri Thiry, baron dHolbach, 1732-1789. Edição por M. Tourneux, 16 vols., Paris, 1877/1882.
Le Christianisme dévoilé (1756); Système de la Nature (1770); A. Cazes: Grimm et les encyclopédistes. Paris, 1934.
La Morale universelle (1776). J. R. Smiley: DideroVs Relations with Grimm. Urbana 111., 1950.
M. P. Cushing: T?ie Baron d'Holbach. New York, 1914.
167) Claude-Adrien Helvétius, 1715-1771.
165) Ouillaume-Thomas-Françols abbé Raynal, 1713-1796. De Vesprít (175&; De Vhomme. de ses facultes intellectueUes
Histoire philosophique des établissements et du commerce des et de son éâucation (1772); Le Bonheur (1772).
Européens dans les deux Indes (1770; edição definitiva, 1780). A. Keim: Helvétius, sa vie et son oeuvre. Paris, 1907.
A. Feugère: Un précurseur: Vabbé Raynal. Angoulême, 1922.
1510 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1511

apenas reivindicar a igualdade das oportunidades, condição lucionário no m u n d o anglo-saxônico. Os escritores ingleses
da concorrência pessoal dentro da economia liberal. F r a n - e americanos de que se trata já estão sob a influência de
klin tê-lo-ia compreendido melhor. Rousseau; mas a cronologia não importa, porque a revo-
Helvétius será seguido, embora não citado, onde a bur- lução americana é fenómeno paralelo ao rousseauianismo,
guesia vencer. Só em países que ainda se encontravam em enquanto que o jacobinismo inglês não teve consequências.
fase pré-burguesa, as ideias econômico-psicológicas da Os germes da democracia igualitária, existentes na
Enciclopédia eram inadmissíveis. A imperatriz Catarina, constituição das comunidades calvinistas da Nova Ingla-
da Rússia, de formação intelectual francesa, simpatizava terra, só começaram a desenvolver-se no século X V I I I ,
com Voltaire e Diderot; correspondia-se com Grimm. Mas quando chegavam as ideias de Locke, Shaftesbury e dos
condenou à morte seu súdito Radichtchev ( 167 " A ). Influen- deístas; E t h a n Allen e Samuel Johnson, presidente do
ciado pelas ideias de Raynal, o escritor russo escolheu a King's College, em New York, são pensadores cujo mérito
forma da sentimental journey, de Sterne, para descrever pela preparação espiritual da revolução ainda não foi devi-
com naturalismo inédito e indignação contagiosa, na Viagem damente apreciado. Talvez com certa razão: sem mais
de Petersburgo a Moscou, os sofrimentos dos servos, mal- outras influências, o seu pensamento só teria produzido,
tratados pelos latifundiários. Mal escapou à morte. Seu assim como na Inglaterra, um intelectualismo aristocrático,
livro só pôde ser publicado, na Rússia, depois da revolução do qual Jefferson virá a ser o representante americano.
de 1905. Em 1790 ainda era inadmissível denunciar na Aquelas outras influências vieram da França ( , f l S ), e a sua
Rússia o que já se podia dizer francamente na Europa contribuição é menos de ordem filosófica que de ordem
Ocidental. moral. Tratava-se de derrubar o puritanismo; e influências
francesas não se podem negar no primeiro grande antipuri-
Nas obras de Helvétius, assim como nos outros mate-
tano: Franklin ( 1 6 d ). Como escritor, é inglês: o seu humo-
rialistas e semimaterialistas da Enciclopédia, a vontade de
rismo é uma edição simplificada, popular, do humorismo
denunciar é mais forte do que a vontade de agir; certa
de Addison e Steele, e essa urbanidade, inédita entre os
frouxidão do pensamento e o estilo aristocrático de viver
puritanos rudes, sugeriu a um crítico a definição de Fran-
são sintomas da incapacidade do intelectualismo para que-
klin como "o primeiro americano civilizado". Está certo,
brar os obstáculos do tradicionalismo feudal e eclesiástico.
Para este fim precisava-se de um élan místico, de um pri-
mitivismo ingénuo, fornecidos pelo pré-romantismo, arman-
do as massas populares que deviam lutar pela vitória da 168) B. Fay: The Revolutionary Spirit in France and America. A
burguesia. Essas circunstâncias e condições esclarecem-se Study o/ Moral and Intellectual Relldttons between France and
the United States at the End of the Eighteenth Century. New
melhor, acompanhando-se a evolução do pensamento revo- York. 1929.
169) Benjamin Franylin, 1706-1790.
Poor Richard's Almanack {1732/1757); Autobiography (começada
1771, publicada 1791); etc.
167 A) Alexander Nikolalevltch Radichtchev, 1749-1802. Ediçáo por J. Bigelow. 10 vols., New York. 1887/1888.
Viagem de Petersburgo a Moscou (1790); Ediçào por V. V. J. B. Mac Master: Benjamin Franklin as a Man of Letters.
Kallas, 2 vols., Moscou, 1907. Boston, 1887.
J. Lapchln: As Ideias Filosóficas de Radichtchev. Leningrado, Ph. Russel: Benjamin Franklin, the First Civillzed American.
1922. New York, 1926.
V. P. Semennikov: Os Estudos de Radichtchen. Moscou, 1923. C. Van Doren: Benjamin Franklin. New York, 1938.
1512 OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1513

se o conceito "civilização" inclui o utilitarismo, que é o


sem se precisar de revoluções. William Godwin ( m ) é como
traço característico do industria] e comerciante Benjamim
um denominador comum das tendências do fim do século.
Franklin, escritor pedagógico, rebelde contra o tirânico
Veio do calvinismo mais estreito, libertou-se pela leitura
rei da Inglaterra e inventor do fogão económico e do pára-
de Holbach e Helvétius, imbuiu-se de 'imoralismo", que
raios —
ressurgirá em suas filhas Mary, segunda esposa de Shel-
ley, e Clara, amante de Byron; para a propaganda das
"Eripuit coelo fulmen sceptrumque tyrannis".
suas ideias de anarquismo comunista escolheu, em Caleb
A coragem revolucionária de Franklin, empregada aliás em Williams, a forma do romance, mas não do romance revo-
negociações parlamentares e diplomáticas, tem a mesma lucionário-pornográfico de Restif de la Bretonne, e sim
origem que os seus sucessos técnicos e comerciais: trata-se a forma realmente popular do romance "gótico". Caleb
de puritanismo secularizado. Mas este modelo do burguês Williams é o primeiro romance policial. Depois de tudo
económico e empreendedor era um deísta de pouca fé, e a isso, já não causa estranheza a forte veia de sentimentalis-
pesquisa da sua vida particular revelou surpreendentes ves- mo nesse revolucionário rubro; e a "General Virtude and
tígios de libertinismo. O grande plebeu gostava da vida Happiness", no título dos seus Principies of Politicai Jus-
de Paris, embora afetasse simplicidade rousseauiana. tice, pressagiam imediatamente a "felicidade do maior nú-
A influência francesa torna-se preponderante em T h o - mero possível" do utilitarista Bentham. Anarquismo e libe-
mas Paine ( 1 7 0 ), o inglês agitado, rousseauiano revolucio- ralismo são expressões da mesma mentalidade nos pequenos
nário; o mais poderoso jornalista da revolução americana e grandes burgueses; e estes serviram-se do anarquismo
criando a frase inesquecível que inicia The American Cri- daqueles para fazer a Revolução.
sis: "These are the times that try men's souls." A alma
Jean-Jacques Rousseau ( 172 ) é um dos raros homens
do revolucionário Paine era a de um fundador de seita.
Veio do quakerismo, e o título The Age of Reason encobre que conseguiram modificar a face deste mundo. Os seus
uma true theology, uma nova religião da humanidade. Nada
de utilitarismo; e daí o triste fim de Paine na América
libertada. Na sua terra natal inglesa realizou-se a mesma 171) William Godwin, 1756-1836.
An Enquiry conceming the Principies of Politicai Justice and
transição, do éían místico ao utilitarismo, à maneira inglesa, its Influence on General Vírtue and Happiness (1793); Things
as they Are, or The Adventures of Caleb Williams (1794).
C. K. Paul: Williams Godwin, his Friends and Contemporaries.
2. vols. Loridon, 1876.
170) Thomas Paine, 1737-1809. H. Simon: William Godwin und Mary Wollstonecraft. Muenchen,
The American Crisis (19 de dezembro de 1776 até 9 de dezembro 1909.
de 1783); The Rights of Man (1791/1792); The Age of Reason, H. Roussin: William Godwin. Paris, 1913.
betng an Investigation of True and Fabulous Theology (1794/ G. Woodcock: Godwin. London, 1946,
1795). R. Glynn Grylls: William Godwin and his Circle. London, 1953.
Edição por M. D. Conway, 4 vols., New York, 1894/1896. 172) Jean-Jacques Rousseau, 1712-1778. (Cf. notas 20 e 64.)
M. D. Conway: The Life of Thomas Paine. 2 vols. New York, Si le rétablissement des sciences et des arts a contribué à
1892. épurer les moeurs, (1750); Discours sur Yorigine et les fondements
H. Pearson: Tom Paine. New York, 1936. de Vinégalité parmi les hommes (1754); Lettre à d'Alembert
M. A. Pardee: Thomas Paine, 1737-1809. Paris, 1938. (1758); Julie ou La nouvelle Héloise (1761); Du Contrat social
A. O. Aldridge: Man of Reason. New York, 1969. (1762); Émile ou De 1'éducation (1762); Lettres écrites de la
1514 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1515

escritos, outrora famosíssimos e divulgadíssimos, são hoje zador das ciências e artes, Rousseau levantou-se contra^
pouco lidos, porque já não é preciso lê-los; a forma enve- todas as convenções sociais, morais e políticas — contra
lheceu e o conteúdo pertence ao pensamento comum da as convenções impostas pelos poderes estabelecidos, e
humanidade. Rousseau tornou-se um símbolo, como um igualmente contra as novas, nas quais a Intelligentzia revo-
hino ou uma bandeira. O escritor mais emocional de todos lucionária de então pretendeu basear o progresso da huma-
os tempos virou objeto de entusiasmos e ódios, ambos pu- nidade. A s reivindicações revolucionárias do resto da sua
ramente emocionais. Nunca o vencerão nem o possuirão, obra constituem apenas as conclusões desse seu primeiro
se não fôr possível "racionalizá-lo", analisar o "símbolo". j desafio: no Discours sur Vinégalité, contra a ordem social;
Rousseau, como Nietzsche, entrou na literatura com na Nouvelle Héloise, cpntra a ordem moral; no Contrat
um duelo: o filósofo alemão, o Rousseau do século X I X , social, contra a ordem política. E tão sistemática era essa
atacou o progressismo suficiente do materialista e livre- revolta que não deixava de pensar no futuro e no instru-
pensador David Friedrich Straus; o escritor francês, o mento mais poderoso da formação do futuro, na pedagogiaj
Nietzsche do século X V I I I , atacou o progressismo, o ma- sistemática: no Êznile, bíblia da educação segundo a natu-
terialismo e o racionalismo de uma civilização inteira. Na reza, a própria Natureza é chamada como aliada para inver-
tese proposta à Academia de Dijon, sobre o valor civili- ter os valores da civilização artificial, estabelecendo-se nova
ordem da liberdade e felicidade geral. A base dessa visão
radiante do futuro é um pessimismo negro: tal como
montagne (1765); Revertes d'un Promeneur solitaire (1782); Les Nietzsche, Rousseau julgava a humanidade ameaçada pela
Conjessions (escr. 1765/1770, publ. 1781/1788). decadência. Nietzsche, filho do século da biologia, explicou
Edição das obras completas por V. D. Musset-Pathay. 2.» ed.,
23 vols. Paris, 1823/1826. a decadência pela corrução vital; Rousseau, filho do século
Edição da Nouvelle Héloise por D. Mornet, 4 vols. Paris, 1925/ da philosophie, explicou a decadência pela corrução moral^
1926.
Edição do Contrat Social por G. Beaulavon, 2.' ed., Paris, 1914. O antigo calvinista de Genebra, convertido ao deísmo sen-
Edição dos escritos políticos por C. E. Vaughan, 2 vols., Cam- timental, nunca deixou de ser perseguido pela reminiscên-
bridge, 1915.
Edição das Confessions (com as Revertes) por A. Van Bever. cia do dogma do pecado original; resolveu o problema da
Paris, 1927. decadência pelo mesmo dogma às avessas, afirmando a bon-
J. Morley: Rousseau. London, 1873. dade original do homem: o dogma em que se baseia a dou-
H. Beaudouln: La vie et les oeuvres de Jean-Jacques Rousseau.
2 vols. Paris, 1891. trina da soberania do povo e da democracia. E os inimigos
A. Chuquet: Jean-Jacques Rousseau. Paris, 1893.
J. Lemaítre: Jean-Jacques Rousseau. Paris, 1907. dela lançam contra Rousseau o libelo seguinte:
E. Faguet: Jean-Jacques Rousseau. Paris, 1912.
B. Bouvíer: Jean-Jacques Rousseau. Genève, 1912. A democracia é hoje um "lugar-comum", mas a qua-
P.-M. Masson: La religion de Jean-Jacques Rousseau. 3 vols. lidade de lugar-comum ainda não é garantia da verdade.
Paris, 1916.
E. Seillière: Jean-Jacques Rousseau. Paris, 1921. Os inimigos póstumos de Rousseau até invertem o silo-
E. H. Wright: The Meaning of Rousseau. Oxford, 1929. gismo: duvidam das premissas, porque a conclusão caiu
A. Schínz: La pensée de Jean-Jacques Rousseau. 2 vols. Nor-
thampton Mass., 1929. nas mãos de toda a gente. O resultado da vitória incon-
B. Grothuysen: Rousseau. Paris, 1949. testável de Rousseau — vivemos num mundo democrático
D. Mornet: Rousseau. Paris, 1950.
J. Guehenno: Jean-Jacques. Paris, 1950. — não teria sido uma nova ordem, mas uma nova anarquia.
F. C. Green: Jean-Jacques Rousseau. A Criticai Study of his Rousseau teria legado ao mundo a mesma anarquia moral
Li/e and Writings. Cambridge, 1955.
OTTO M A R I A CABPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1517

• sentimental que perturbou a própria vida: plebeu, apren-


dos anti-rousseauianos não é menos apaixonada do que foi
diz de relojoeiro, revoltado e fugitivo, convertido a o cato-
o libelo do próprio Rousseau contra a civilização aristocrá-
licismo e amante de madame de Warens e depois de outras
tica. A democracia rousseauiana é um fato do mundo mo-
grandes damas, doméstico maltratado, músico sentimental
derno; e fatos são obstinados. Não vivemos no paraíso,
na solidão das Charmettes, funcionário infiel e devasso,
isso é certo; mas nem sequer os próprios anti-rousseauaia-
reconvertido ao deísmo, marido da criada analfabeta T h é -
nos poderiam viver e respirar livremente num mundo anti-
rèse Levasseur, padrasto cruel dos próprios filhos, literato
rousseauiano, e muito menos poderiam falar e acusar —
profissional, experimentando toda a sorte de glórias, desi-
os anti-rousseauianos franceses já fizeram a experiência.
lusões e humilhações, fugitivo do país, expulso da Suíça
Toda a imensa literatura anti-rousseauiana do século XX
e da Inglaterra, enfim vítima da mania de perseguição —
é letra morta, porque não adianta derrubar um homem nem
o retrato do plebeu psicopatológico é tanto mais impressio-
é possível eliminar uma ideia, sobretudo quando a ideia
nante porque a testemunha principal é o próprio Jean-
não é do homem. A árvore genealógica da democracia é
Jacques Rousseau, o autor das Confissões. Essa autobio-
muito mais antiga do que a do plebeu Rousseau, e a vitória
grafia espantosa, ou melhor, esse grande plaidoyer perante
das suas ideias baseia-se em fatos da evolução social e
a posteridade, é o livro mais sincero e mais hipócrita, mais
económica que êle em parte ignorava e em parte não foi
humilde e mais orgulhoso, mais franco e mais confuso do
capaz de prever. Não foi a ideologia de Rousseau que
mundo. Através das frases retumbantes em favor da sim-
modificou a face deste m u n d o ; foi o seu verbo que exprimiu
plicidade natural e da inocência da vida campestre reve-
literariamente a modificação. Êle mesmo foi um inibido
lam-se as perversões de um literato corruto, de um libertino
— eis a fonte da anarquia na sua alma — e o ressentimento
vulgar, que se impõe, no entanto, pela eloquência torrencial.
foi a fonte da atividade literária que constitui o próprio
"Impõe" no sentido mais exato da palavra; porque esse
conteúdo da sua vida.
grande democrata, o teórico da volonté générale, a identi-
fica calmamente com as suas próprias doutrinas arbitrárias. Rousseau não agiu; escreveu. É preciso interpretá-lo
É um déspota como o são sempre os teóricos, inibidos de e julgá-lo como escritor que era. Na literatura também
a g i r ; e o intelectual plebeu e humilhado com os seus Rousseau é o grande revolucionário. Renovou os géneros
ressentimentos ardentes é o pior déspota de todos. É o e formas que encontrou, e a originalidade do seu vocabu-
Napoleão da literatura, capaz de massacrar nações inteiras, lário, da sua frase, da sua composição, é o critério mais
mas incapaz de restaurar a Europa. As Confissões são um seguro da grande revolução que êle operou no reino das
livro de importância histórica tão grande como as Confis- ideologias, com todas as consequências no terreno da ação.
sões de Santo Agostinho: duas autobiografias que anun- A análise literária não precisa considerar a ambiguidade
ciam e terminam a agonia de duas civilizações, pelo desmo- confusa Rousseau entre o entusiasmo exaltado de profeta da
ronamento total de todos os valores. Somente que Rousseau democracia e o pessimismo desesperado do maníaco, do
não foi um santo. Teria sido Padre da Igreja da anarquia paranóico; resolver essa contradição é da competência da
permanente. psicologia e da psicopatologia. É verdade que a mesma am-
biguidade se apresenta, em Rousseau, no terreno ideológico,
Eis o libelo da acusação no processo histórico, no qual entre o pessimismo da diagnose da decadência e o otimismo
Rousseau foi promotor público e é réu. Mas a acusação da fé na bondade humana; por isso se podem referir a Rous-
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1519
151B OTTO M A R I A CARPEAUX
Contrato Social: o último dos vários grandes tratados poli- l
•eau os democratas liberais e, igualmente, os democratas to- ticos escritos entre a revolução inglesa e a revolução fran-
talitários. Nesta reunião de elementos razoavelmente incom- cesa. Com a diferença de que a base teológica do antigo
patíveis, reside o caráter irracional, emocional, romântico, Direito natural já não existe em Rousseau; é substituída
da literatura de Rousseau. "Romântico" é êle até no sentido pela volonté générale do povo, que não precisa de argu-
do romanesco, ao ponto de confessar: "Le pays des chi- mentos razoáveis, porque sempre acerta instintivamente.
mères est le seul digne d'être habite". Rousseau não tomara Os traços do tirânico "Deus absconditus" do dogma calvi-
conhecimento de Cervantes. Os seus livros são romances nista não desapareceram de todo nessa volonté générale,
de cavalaria, as suas soluções de problemas são desfechos que é capaz de esmagar as minorias recalcitrantes. Por
de ficcionista — Faguet teve razão ao dizer: "Jean-Jacques outro lado, a segurança dos instintos irracionais liga-se ao
Rousseau, romancier f r a n ç a i s . . . . " Mas o defeito enorme sentimentalismo da época, revelando-se agora como germe
dessa definição é, antes de mais nada, o desprezo manifesto de decomposição de todos os cânones razoáveis, inclusive^
pelo género. O romance do século X V I I I é o veículo mais os da moral. La Nouvelle Héloise é a consequência revo-
poderoso da secularização das ideias religiosas das épocas, lucionária do romance richardsoniano; tem mesmo a forma
precedentes — Richardson secularizou o puritanismo. O epistolar desse género. O sentimento subjetivo também"
motivo do caráter romanesco — e portanto emocional — esmaga a família, deixando subsistir apenas os instintos
da literatura de Rousseau é a dificuldade que já se encon- da volonté générale, da harmonia despótica de inúmeros
trara no dogma dos seus antepassados calvinistas: entre o indivíduos emocionalmente agitados. É a única forma da
terror da reprovação do homem corruto e o orgulho da sociedade na qual — a natureza deu a todos os mesmos
predestinação do homem eleito produziu-se um état d'âme instintos — a desigualdade desaparece; todos são iguais,
ambíguo, insuportável. Os calvinistas resolveram o proble- e o plebeu enjeitado Rousseau também terá o seu lugar^
ma confiando na decisão arbitrária do tirânico "Deus abs- nesta sociedade. E i s o motivo do maior dos seus romances
conditus", decisão que se manifesta no sucesso social e sentimentais, as Confissões.
económico. O plebeu Rousseau devia confiar-se a uma
divindade menos dura, à força misteriosa da Natureza que Para a exposição literária desses complexos achou
sabe encontrar o caminho certo para todos. Só é preciso Rousseau o único método adequado: não a argumentação
confiar-se realmente a ela, deixar crescer os germes da lógica, mas a persuasão retórica, aplicada já nas teses à
bondade original na alma, desde a infância. E esta é a fé Academia de Dijon, cuja leitura ainda hoje é capaz de
que Rousseau tem em comum com os calvinistas anglo- empolgar o leitor sem preconceitos. A literatura de Rous-
saxônicos, a fé na onipotência da educação. Neste sentido seau satisfaz a todas as definições da retórica: nas Con-
renovou um género literário do Barroco, o "espelho dos fissões, a mise-en-scène dramática da própria personalidade;
príncipes"; o Emile é o "espelho do homem comum", o livro na Nouvelle Héloise, a "lógica do coração"; nos tratados,
da educação do povo soberano. Na ideia de uma educação a eloquência do tribuno; e até nos trechos de descrição da
segundo a natureza influiu, diretamente ou indiretamente, natureza a eloqiiência do solitário, recitando monólogos às
a pedagogia de Comenius; e esta baseia-se naquela mesma montanhas, aos lagos e à lua. A eloquência, em sentido tão
ideia da autodeterminação que a doutrina protestante do amplo, é o meio soberano de expressão do pré-romantismo.
"contrato social", a qual encontrou a expressão defintiva no Foi isso que os franceses sentiram em Rousseau como reno-
1520 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1521

vação da eloquência de Bossuet — Rousseau, o "Bossuet com a situação do povo em meio da crise agro-industrial
da Igreja da Democracia" — e o que Brunetière definiu do século X V I I I . De tudo isso resulta ser o idílio de Rous-_j
como a primeira fase da transformação d a eloquência fran- seau revolucionário — os germes estavam, talvez, em Gray,
cesa em poesia lírica; a segunda fase será representada por e, já antes, no "Newgate Pastoral", de Gay. Revolucionário
Chateaubriand, o Rousseau aristocrático; a terceira por é o entusiasmo de Rousseau, shaftesburiano de origem e
Hugo, o Rousseau da poesia. Sainte-Beuve, o crítico do jacobino nas conclusões; mais do que com o filósofo in-
romantismo, definiu o serviço prestado por Rousseau à glês parece-se Rousseau com os entusiastas do exército de
língua francesa: "II y a mis du vert." Cromwell; é um sectário. A sua fé é tão grande que vence
Esse vert não é inteiramente francês, e eis o outro ao desespero inato. Pretende e consegue renovar t u d o : a
defeito daquela definição faguetiana de Rousseau como sociedade, pela revolução, o amor, pelo sentimento, o pró-
romancier írançais. O subjetivismo revolucionário de Rous- prio homem, pela educação. E não falta a mistura — tão
seau explica-se pela sua condição de estrangeiro — em frequente nos movimentos místicos — entre sentimenta-
todos os sentidos — na França aristocrática e católica: lismo das expressões e libertinismo dos atos. Sem esse
Rousseau é plebeu, protestante e suíço. Como suíço, des- libertinismo inegável, Rousseau não teria sido o que foi,
cobriu a natureza selvagem, melancólica e terrível dos lagos o homem entre Franklin e Restif de la Bretonne. O "liber-
e montanhas. A natureza suíça inspirou-lhe a maneira de tinismo", no sentido pré-romântico, confere ao radicalismo
encarar com melancolia pré-romântica a sociedade e o Uni- ideológico da Enciclopédia o "élan vital" que leva à Revo-
verso, assim como o pré-romantismo inglês teve a sua fonte lução.
de inspiração nas montanhas e lagos da Escócia. A sua Rousseau é o tipo do "estrangeiro subversivo" q u e n
condição de plebeu, filho da cidade de Genebra, meio in- imigra clandestinamente para conspirar contra a ordem
dustrializada, humilhado na França agrária, despertou em estabelecida — o espantalho dos policiais de todos os tem-
Rousseau algo como uma consciência de classe proletária; pos. Mas este estrangeiro subversivo, profeta da utopia
e isso deu, afinal, sentido social ao populismo da literatura proletária, iniciou, pelo poder da sua eloquência ideológica,
pré-romântica. Enfim, o seu protestantismo criou a imagem o século da burguesia — destino já preestabelecido da
do homem predestinado para grandes coisas naquela pai- França de ce grand roi bourgeois. Rousseau não foi o
sagem da revolução industrial. Mas não era o calvinismo Messias ou o Lúcifer de um estado definitivo da sociedade,
dos patrícios grandes-burgueses das cidade, e sim uma vaga mas o ideólogo de uma fase transitória. Rousseau é o ple-
religiosidade mística, sentimental. É verdade que o pro- beu a serviço da revolução burguesa.^ É o representante do
testo rousseauiano contra o racionalismo corresponde ao povo que fêz, fisicamente, a revolução da qual só a bur-
protesto do protestantismo fideísta contra o intelectualismo guesia se aproveitará. A essa ambiguidade da sua situação
da escolástica católica. Mas a religião de Rousseau também histórica corresponde o caráter vago, emocional, da sua
é, como religião de plebeu, primitiva; corresponde antes ideologia, que já não é pré-romântica, e sim romântica. A
ao cristianismo "puro", simplificado — "como o dos pri- história do romantismo é a história das fases da dissolução
meiros cristãos" — dos místicos revolucionários da época da aliança entre o liberalismo burguês e a democracia po-
da Reforma. Devia ser assim, porque a situação do povo, pular. Por isso, Rousseau sobrevive, literariamente, só como
em meio da crise agrária do século X V I , se parecia bastante criador dos slogans do chamado "liberalismo democrático"
1522 OTTO MARIA CARPEAUX

— liberalismo da pequena burguesia — e aparece, ao mesmo


tempo, entre os precursores — dos mais vagos — do socia-
lismo. Nessa situação histórica de Rousseau reside o mis-
tério da repercussão enorme da sua ideologia e do esque-
cimento relativo da sua obra literária. O destino do retor,
como o do ator, é assim: exercer a influência mais intensa,
desaparecendo, depois, para sempre. -J C A P I T U L O IV
Rousseau é retor. Mas é preciso, mais uma vez, dis-
tinguir. A eloquência de Rousseau não é só e nem sempre O ÚLTIMO CLASSICISMO
é romântica e revolucionária, "Marseillaise" em prosa. Na
sua eloquência existe também uma massa de herança clas-
sicista, que o autodidata adquirira, as alusões mitológicas O P R É - R O M A N T I S M O acabou transformando-se, con-
tra todas as expectativas, em um novo classicismo.
e históricas, o período bem construído — o barrete frígio Os girondinos e jacobinos gostavam de referir-se a Plutarco
do jacobino é uma reminiscência grega. Em Rousseau, e a Tácito e ornar os seus discursos com alusões mitoló-
verdadeiro microcosmo confuso, já existem e coexistem os gicas, e o império de Napoleão I produziu um estilo de
elementos do heroísmo plutárquico da Gironde, do terro- arquitetura, pintura e artes decorativas, conhecido como
rismo espartano de Robespierre e Saint-Just, da monarquia "Style Empire", classicismo dos mais rigorosos. Basta citar
neo-romana de Napoleão; as pregas da capa de jacobino o nome de Jacques-Louis David. A literatura do "Style
e as dobras da capa do imperador da burguesia. No pseudo- Empire", na França e em outras partes, é bastante fraca;
classicismo retórico de Rousseau já se adivinha o novo, o só na Alemanha se produziu o fenómeno poderoso do clas-
último classicismo, o do Empire de Napoleão, de Goethe sicismo de Weimar, com Goethe no centro. Se o classicismo
e da burguesia vitoriosa. alemão estivesse isolado no meio de uma Europa pré-ro-
mântica, seria perfeitamente incompreensível; os nomes de
Alfieri, André Chénier, Monti e Quintana completam, po-
rém, o panorama de um classicismo internacional; são no-
mes de valor muito diferente, decerto; mas a questão não
é de valores, e sim de situação histórica. Nesse sentido,
pode-se acrescentar que a Inglaterra, está representada por
Samuel Rogers e Thomas Campbell, não faltando sequer
a América espanhola, com Olmedo e Andrés Bello.
Apesar disso, continua de pé a dificuldade de inter-
pretar Weimar como acontecimento europeu. Pois Goethe,
que parece aos alemães o maior clássico ou classicista da
literatura europeia — Nietzsche chamóu-lhe o único clássico
alemão de verdade — é considerado pelos estrangeiros como
u m dos maiores românticos. E m comparação com os cias-
1521 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1525

sicistas de outras nações, Goethe é diferente, A sua Iphi- do pré-romantismo, do classicismo e do romantismo na Ale-
genie auf Tauris, tão grega aos olhos dos alemães, é menos manha.
grega e mais cristã do que a Iphigénie en Aulide, de Raci- Disse-se sempre, e Nietzsche o repetiu com energia,
n e ; e o terceiro ato da Segunda Parte de Faust, a "tragédia que a Reforma luterana matou a Renascença alemã ou,
de Helena", o mais grego de tudo o que existe em literatura antes, a possibilidade nascente de uma Renascença alemã.
alemã, está enquadrado entre atos e cenas de ambiente A consequência teria sido o rompimento da Alemanha com
medieval e pensamento moderno. Compreende-se que os o resto da Europa. A s devastações da Guerra de T r i n t a
primeiros românticos considerassem Goethe como chefe Anos, à qual os historiadores alemães atribuem o seu atraso
do seu movimento, embora êle se recusasse a tal, renegando cultural de então, teriam sido apenas a consumação material
o seu próprio passado pré-romântico. Com efeito, Goethe, de um "fait accompli" no reino das ideias. A Reforma
o autor do Werther e da Primeira Parte de Faust, é o maior tonificou o feudalismo alemão, transformando os senhores
poeta do pré-romantismo, ao qual também pertence a parte feudais em príncipes soberanos de pequenos Estados; daí
mais importante da sua poesia lírica; a diferença tão fun- a impossibilidade da unificação política e económica, do
nascimento de uma burguesia independente, com a con-
damental entre pré-romantismo e classicismo só parece
sequência de produzir aquelas particularidades da psico-
existir como diferença entre as fases da sua evolução pes-
logia política dos alemães, que o mundo conhece bem. É
soal. Mas isso não acontece apenas com Goethe. A evolução
possível estudar mais de perto as origens ideológicas da
de Schiller é exatamente a mesma, no mesmo prazo de pou-
civilização alemã, quando se aplicam critérios e métodos
cos anos. E Friedrich Schlegel, o maior teórico do roman-
da "sociologia do saber" (*).
tismo, começou a carreira com os estudos mais profundos
que existem em língua alemã sobre a literatura grega. Na A Reforma luterana substituiu a autoridade central
verdade, a cronologia está confusa. Os manuais costumam da Igreja, em Roma, por duas outras autoridades nacionais
separar nitidamente três fases: o Sturm und Drang, isto é, que já estavam preestabelecidas na representação da Natio
o pré-romantismo alemão, mais ou menos entre 1760 e 1780; Germânica pelos príncipes e doutores, nos concílios me-
o classicismo de Weimar, entre 1780 e 1800; e o romantismo dievais: a administração da Igreja ficou com os príncipes,
entre 1800 e 1830; a vida de Goethe (1749 a 1832) compre- a autoridade do magistério eclesiástico com os professores
ende toda a época das três fases, das quais cada uma é das Universidades. Iniciou-se assim a separação tipica-
estranhamente curta; parecem, antes, efémeras, mais três mente alemã entre o poder material e o poder espiritual,
a coexistência de uma organização política, na base da
modas literárias do que três estilos. Os pré-românticos,
obediência passiva dos súditos, e de uma organização uni-
classicistas e românticos alemães, são, todos eles, contem-
versitária, de liberdade ilimitada. O resultado foi um tipo
porâneos. A rapidez d a evolução explica-se pelo fato de
nacional: o mesmo alemão, submisso como um servo na
que a literatura alemã, inteiramente separada das outras
repartição pública e rebelde como um titão no auditório
no começo do século X V I I I , recuperou, em duas gerações,
universitário. Uma nação de burocratas e sargentos e de
um atraso de dois séculos. As mesmas condições especiais
da civilização alemã, que causaram o atraso da sua lite-
ratura, também deram origem, depois, às características 1) H. Plessner: Das Schicksal deutschen Geistes im Ausgang seiner
buergerlichen Epoche. Zuerich, 1935.
1526 OTTO M A B I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1527

professores e doutores. A autoridade política desistiu da nhando o luteranismo a função de uma barreira, a Alemanha
intervenção no terreno espiritual; em compensação, a pes- separou-se da Europa. O humanismo degenerou em mera
quisa científica e ativídade literária e artística ficavam erudição sem consequências, ficando a transmissão dos co-
excluídas da vida pública. Primeira consequência: o cato- nhecimentos greco-latinos confiada a mestres-escolas de
licismo, que não se podia conformar com aquela separação, condição ínfima. Não houve Renascença alemã.
ficou icompatível com a civilização alemã; e as regiões O chamado Barroco alemão do século X V I I é uma
recatolizadas pela Contra-Reforma — o S u l da Alemanha tentativa para recuperar a Renascença malograda ( 2 ) : fun-
e a Áustria — retiraram a sua colaboração. E n t r e 1600 e cionários públicos altamente cultos da Silésia, sentindo
1800, a literatura alemã é exclusivamente protestante e dolorosamente o atraso cultural da Alemanha, criaram uma
principalmente luterana. As tradições clássicas, sobretudo literatura que se distingue pelas formas latinas de expres-
latinas, que o catolicismo sempre cultivou — que sobre- são, pela linguagem intencionalmente culta, pelo zelo em
viveram por isso à Contra-Reforma na Itália e E s p a n h a ; traduzir obras estrangeiras — qualidades típicas das lite-
que o catolicismo francês tinha em comum com os livres- raturas renascentistas. A tentativa fracassou, não por falta
pensadores; que o "catolicismo nacional" da Igreja angli- de base popular — pois desta carecem todas as Renascenças
cana defendeu contra os sectários — essas tradições clás- — nem pela incompatibilidade do espírito alemão com os
sicas perderam a força atuante na Alemanha, sendo a An- modelos romanos. Tal explicação adota, anacrônicamente,
tiguidade reduzida a mero objeto de estudos filológicos o ponto de vista do grecismo de Winckelmann e de Weimar.
por parte de especialistas. Nas seitas calvinistas, o huma- A experiência silesiana malogrou, porém, devido à inter-
nismo foi transferido para o terreno político; serviram-se venção do luteranismo, que é uma forma essencialmente
dos conceitos humanistas para defender a sua situação de gótica do cristianismo. Essa combinação do humanismo
minoria. Na Alemanha luterana, porém — e esta é a segunda com elementos cristãos-góticos deu, em vez da Renascença
consequência da Reforma alemã — a ilimitada liberdade malograda, um resultado diferente: o Barroco alemão.
espiritual do alemão tornou-lhe possível, sem se tornar he-
Mas por volta de 1700, esse Barroco já estava esgotado;
rético ou indiferente, continuar nas Igrejas estatais, que
pelo menos literariamente. Observou-se um fenómeno qua-
eram simples administrações públicas; não precisava for-
se inexplicável: no tempo em que Bach e Haendel elevaram
mar seitas, e com a inexistência das seitas não surgiram
a música alemã às maiores alturas, a Alemanha não possui,
jamais as reivindicações do jus resistendi nem, mais tarde,
praticamente, literatura alguma. Bach teve de contentar-se,
da tolerância religiosa e da democracia. Com o humanismo
para as suas paixões e cantatas, cora textos de poetastros
literário desapareceu também o humanismo político. No
lamentáveis. É uma fase de silêncio misterioso da poesia,
terreno comum de uma ou outra forma do humanismo
em torno de criações colossais e admiráveis da música e
podiam entender-se, em outros países, os católicos, os cal-
da arquitetura. ( 2 " A ).
vinistas e os livres-pensadores; reside nisso a comunidade
A Renascença da literatura emudecida só se tornou
espiritual da Europa. Os alemães ficaram excluídos, como
possível por meio de sucessivos enfraquecimentos da orto-
se falassem uma língua não-européia. A particularidade
religiosa e política da Alemanha e a ausência do huma-
nismo são dois aspectos do mesmo fenómeno. Desempe- 2) H. Cysarz: Barock Lyrik. 3 vols. Leipzig, 1937. (Vol. I, "Infcrod.")
2 A) R. Benz: Deutsches Barock. Stuttgart, 1949.
152» OTTO M Á F I A CARPEAUX HISTÓRIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1529

d o x i a l u t e r a n a . A p r i m e i r a b r e c h a foi a b e r t a p e l o p i e t i s m o . N a d a m a i s n a t u r a l , p o r é m , do q u e a adoção d o s s e u s p o n t o s
N ã o é o p i e t i s m o u m a seita. O s s e u s a d e p t o s c o n t i n u a m de v i s t a p e l o s m a i o r e s e m e n o r e s h i s t o r i a d o r e s d a l i t e r a -
no seio das Igrejas estatais. Nos conventículos não se t u r a : G o t t s c h e d continua sendo apreciado como p e d a n t e
d u v i d a do d o g m a . A p e n a s se a p r o f u n d a a d e v o ç ã o , q u e ridículo, e Klopstock como precursor imperfeito do verda-
v i r a emocional, s e n t i m e n t a l , e n f i m l í r i c a . D e s e j a m a n i f e s - deiro c l a s s i c i s m o . A s s i m , u m a posição d e p o l é m i c a c r í t i c a
t a r - s e em p a l a v r a s . C r i a m - s e n u m e r o s o s t e r m o s e e x p r e s - t r a n s f o r m o u - s e em t e s e h i s t ó r i c a , c r i a n d o - s e u m a fable
sões q u e e n r i q u e c e m a l í n g u a . N a s c e a a m b i ç ã o d e p o s s u i r convenue, q u e p r e c i s a d e r e v i s ã o . Mas a n t e s s e r á c o n v e -
uma literatura religiosa em l í n g u a materna, e não só tra- n i e n t e a p r e s e n t a r o p a n o r a m a convencional, p a r a e n t r a r n o
t a d o s d e d o g m á t i c a l u t e r a n a . O p i e t i s m o foi f a t o r d e g r a n d e c o n h e c i m e n t o d o s fatos.
importância na génese da consciência nacional alemã ( 2 ' B ) .
Gottsched ( 8 ) , i n t r o d u z i n d o as r e g r a s e g é n e r o s do
O p r i m e i r o c e n t r o d o p i e t i s m o foi a c i d a d e d e H a l l e .
c l a s s i c i s m o f r a n c ê s , p r e t e n d e u civilizar e e u r o p e i z a r a l i t e -
A Universidade da mesma cidade é a porta de entrada do
ratura alemã. Não notou, porém, que o classicismo francês
r a c i o n a l i s m o filosófico n a A l e m a n h a . C h r i s t i a n v o n W o l f f
era i n c o m p a t í v e l com o e s p í r i t o alemão. E m c o n s e q u ê n c i a ,
(1679-1754), i n f o r m a d o p e l a filosofia d e L e i b n i z , d e u a o
r a c i o n a l i s m o i m p o r t a d o u m a feição i d e a l i s t a (*) m a i s c o m - f r a c a s s a r a m a s t e n t a t i v a s d e u m a p r o d u ç ã o l i t e r á r i a cria-
p a t í v e l com o e s p í r i t o a l e m ã o . A o m e s m o t e m p o , a c i d a d e d o r a s e g u n d o as r e g r a s f r a n c e s a s . Der sterbende Cato, a
de H a m b u r g o , meio anglicizada, abre-se a influências do admirada tragédia de Gottsched, não passa de uma pálida
r a c i o n a l i s m o i n g l ê s q u e se e s t e n d e r ã o a t é L e i p z i g ( 3 " A ) . i m i t a ç ã o do Cato, de A d d i s o n . O ditador literário teve,
E em Leipzig, um discípulo de Wolff, Gottsched, acredita a l é m d i s s o , a p o u c a s o r t e d e os s e u s m e l h o r e s d i s c í p u l o s ,
e n c o n t r a r u m m o d e l o p a r a se f o r m a r u m a l i t e r a t u r a a l e m ã s o b r e t u d o J o h a n n E l i a s S c h l e g e l (°), m o r r e r e m a n t e s d o
racionalista: o classicismo racional à maneira francesa, a t e m p o . O s p o e t a s m a i s l i d o s da época e r a m i n d e p e n d e n t e s
literatura de Corneille e Molière, La Fontaine e La Bruyère. de G o t t s c h e d : o anacreôntico H a g e d o r n (7), o fabulista
4 8
A h i s t ó r i a l i t e r á r i a a l e m ã d o s é c u l o X V I I I ( ) foi Gellert ( ), o suíço pietista Haller (°). Este último já
dominada por u m grande espírito crítico: Lessing, o ini- antecipou sentimentos pré-românticos, que também pre-
m i g o mortal de Gottsched e d o classicismo francês, intro- valecem nos imitadores da poesia descritiva de T h o m s o n :
d u t o r p r i n c i p a l da i n f l u ê n c i a i n g l e s a e p r e c u r s o r d o c l a s - em B r o c k e s ( 1 0 ) e E w a l d v o n K l e i s t ( , l ) . O s p r o t a g o n i s t a s
sicismo grecista de W e i m a r . Nota-se que a poesia cristã
t e ó r i c o s d o p r é - r o m a n t i s m o f o r a m os c r í t i c o s s u í ç o s B o d m e r
e p r é - r o m â n t i c a d e K l o p s t o c k n ã o a r r a n c o u a o g r a n d e crí-
tico a admiração incondicional dos outros contemporâneos.
5) Cf. "Classicismo da Ilustração", nota 40.
2B) K. Pinson: Pietism as a Factor in the Rise o) German Natio- 6) Cf. "Classicismo da Ilustração", nota 41.
nalism. New York, 1934. 7) Cf. "O Neobarroco como Base, etc", nota 26.
3) W. Arnsberger: Wolffs Verhaeltnis zu Leibniz. Heldelberg, 1887. 8) Cf. "Classicismo da Ilustração", nota 47.
3 A) Hans M. Wolff: Die Weltanschauung der deutschen Aufklae- 9) Cf. "Pré-Romantismo", nota 48.
rung. Bern, 1949. 10) Cf. "Pré-Romantismo", nota 43.
4) A. Koester: Die deutsche Literatur der Aufklaerungszeit. Leipzig,
102$, 11) Cf. "Pré-Romantlsmo", nota 34.
OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1531
1530
e Breitinger ( 1 2 ), imitando os "semanários morais" de Klopstock sobre os pré-românticos do "Sturm und Drang",
Addison e Steele, traduzindo Milton, defendendo o uso que, aliás, não gostavam de Lessing. Mas isso teria sido
do milagre na poesia, citando, pela primeira vez na Ale- um "erro dos moços", logo depois curados. Outro embaraço
manha, o nome de Shakespeare, combatendo a influência é a posição de W i e l a n d : embora a sua obra tenha enve-
francesa pela influência inglesa. Numa luta épica, os crí- lhecido, a ponto de hoje já quase não ser lida, é incon-
ticos de Zurique derrubaram o poder ditatorial do pro- testável a sua posição de destaque como um dos poetas
fessor de Leipzig; Gottsched só teve que opor uma epopeia mais influentes da segunda metade do século X V I I I . In-
ridícula de Schoenaich ao grande poema miltoniano de felizmente, Wieland é um classicista à maneira francesa.
Klopstock. Ao lado dele surgiu o habilíssimo Wieland, Como fazer? Dá-se importância ao fato de êle ter residido,
criador de um pré-classicismo ainda bastante afrancesado, na velhice, em W e i m a r ; e consideram-no, sem muita he-
mas já com inclinações pré-românticas. Ao mesmo tempo, sitação, como um dos grandes clássicos de Weimar, em-
Winckelmann chamou a atenção para a "verdadeira" An- bora nem o estilo nem o valor justifiquem essa classificação
tiguidade, a grega. Lessing, acabando definitivamente com artifical, que nunca foi reconhecida pela consciência da
o falso classicismo de Gottsched, propôs à nação um classi- nação. A verdade histórica deve ser outra. O pré-roman-
cismo autêntico; e este foi realizado por Goethe e Schiller, tismo atacou três vezes, porque o seu adversário era mais
depois de terem passado pelo pré-romantismo do Sturm forte do que se pensa: Lessing não o matara de todo, e a
und Drang. sua importância deve ser procurada em outra parte —
tarefa já realizada por Dilthey, que lhe revelou as fontes
Nesse panorama notam-se logo algumas incoerências.
místicas do pensamento. O verdadeiro grande adversário
O pré-romantismo aparece, nada menos do que três vezes,
de Gottsched é Klopstock, o chefe do pré-romantismo ale-
sempre de novo: nos poetas descritivos Brockes e Ewald
mão. Mas Gottsched sobreviveu a todos os ataques mortí-
von Kleist; em Klopstock; no "Sturm und Drang". A aver-
feros, porque conseguiu o seu objetivo: havia criado, na
são de Lessing por Klopstock continua a produzir efeito
Alemanha, um poderoso classicismo à maneira francesa,
nos hitoriadores modernos, que não podem negar a impor-
do qual Wieland é o representante principal.
tância decisiva da sua obra, mas sugerem a impressão de
que teria sido logo substituída pela influência mais decisiva Gottsched ( 13 ) foi poeta menos do que medíocre e críti-
de Lessing. Contudo, têm que admitir a influência de co literário de conhecimentos reduzidos e opiniões estreitas.
Pela segunda vez — o primeiro caso é o de Opitz — a
renovação literária da Alemanha estava confiada a uma
12) Johann Jakob Bodmer, 1698-1783. personalidade insignificante. Não se pode negar, no en-
Discourse der Mahler (com Breitinger, 1721/1723); tradução do
Paradise Lost (1732); Critische Abhandlung von dem Wunder- tanto, que Gottsched cumpriu a sua missão histórica, embora
baren in der Poesie (1740); Noah (1750/1752); traduçSo da se- ela lhe excedesse as forças, com decência e com um sucesso
gunda parte do Nibelungenlied (1757).
maior do que se admite. Gottsched era patriota; admirando
Johann Jakob Breitinger, 1701-1776.
Critische Dichtkunst (1739). a literatura francesa, doeu-lhe o atraso da alemã, as ex-
F. Servaes: Die Poetik Gottscheds und der Schweizer. Strtu- travagâncias estilísticas do Barroco sobrevivente, a gros-
bourg, 1887.
Q. de Reynold: Bodmer et 1'école suisse. Lausanne, 1912.
M. Wehrli: Bodmer und die Geschichte der Literatur. Zuerlch,
me. 13) Cf. "Classicismo da Ilustração", nota 40.
*s>

1582 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1533

s e r i a d o g o s t o p o p u l a r , a i n c o r r e ç ã o d a l i n g u a até n o s não é l i d o . N o s e u t e m p o , a s u a influência f o i i m e n s a ; a


a u t o r e s mais a p r e c i a d o s . O s e u p a t r i o t i s m o l i t e r á r i o c h e g o u sua c a r r e i r a l i t e r á r i a e m p o l g o u o século. V e i o d e a m b i e n t e
a p o n t o de v e n c e r a a v e r s ã o c o n t r a o B a r r o c o : e n c a r r e g a n d o p i e t i s t a , a d q u i r i u e r u d i ç ã o greco-latina m u i t o vasta, t o r -
o seu discípulo J o h a n n Elias Schlegel da refutação d o s nou-se, s o b a i n f l u ê n c i a d e B o d m e r , cristão e n t u s i á s t i c o , in-
e l o g i o s suíços de S h a k e s p e a r e , p r o p ô s - l h e d e m o n s t r a r a t e r p r e t a n d o pelo entusiasmo de Shaftesbury o cristianismo
s u p e r i o r i d a d e de G r y p h i u s . O s e u Noetiger Vorrat c o n t i - de M i l t o n ; fugiu, porém, logo, do sentimentalismo, trans-
n u a s e n d o a t é hoje a coleção m a i s c o m p l e t a da a n t i g a d r a - f o r m o u - s e em l i b e r t i n o a l e g r e , levando d u r a n t e c i n q u e n t a
m a t u r g i a alemã, i n d i s p e n s á v e l aos e s t u d i o s o s . O m é r i t o d e anos a v i d a d e u m e p i c u r e u e s t u d i o s o , licencioso s e m e x c e s -
Gottsched no que diz respeito à língua ainda é m a i o r : sos. D a m o c i d a d e c o n s e r v o u o i n t e r e s s e pela l i t e r a t u r a i n g l e -
c o n s e g u i u e x t i r p a r as i r r e g u l a r i d a d e s d i a l e t a i s , i m p o n d o sa. A d a p t o u a Johanna Gray, d e R o w e ; e a s u a t r a d u ç ã o d e
o d o m í n i o d a l í n g u a falada n a S a x ô n i a . A t é H a l l e r c o r r i g i u Shakespeare em prosa teve repercussão enorme, apesar das
a segunda edição das suas poesias s e g u n d o os p r e c e i t o s n o t a s r e s t r i t i v a s em s e n t i d o classicista. O ú n i c o e s c r i t o r
d e G o t t s c h e d , e n q u a n t o q u e só os s e u s i n i m i g o s B o d m e r e i n g l ê s , d o q u a l g o s t a v a i n t i m a m e n t e , era S t e r n e , e isso é
B r e i t i n g e r c o n t i n u a v a m a e s c r e v e r em l í n g u a r e a l m e n t e significativo. O pré-romantismo de Wieland, manifestan-
i n a d m i s s í v e l , cheia d e i d i o t i s m o s s u í ç o s e p a l a v r a s e s t r a n - do-se n a s s u a s v e r s õ e s d e c o n t o s d e fadas e r o m a n c e s d e
geiras. U m discípulo de Gottsched, A d e l u n g , compôs o cavalaria, t r a t o u s e m p r e esses a s s u n t o s c o m o m e i o c ó m i c o s ,
primeiro grande dicionário alemão, autoridade à qual Goe- em e s p í r i t o c e r v a n t i n o ; e isto t a m b é m n o p o e m a " r o m â n -
t h e e S c h i l l e r se s u b m e t e r a m . P o d e - s e a f i r m a r : t u d o o q u e t i c o " Oberon, d e u m e n c a n t o a t é h o j e n ã o a p a g a d o , q u e é
foi e s c r i t o d e p o i s d e G o t t s c h e d , c o n t i n u a l e g í v e l ; t u d o o a s u a o b r a - p r i m a . O s a n t i g o s q u e a sua e r u d i ç ã o p r e f e r i u
q u e foi e s c r i t o a n t e s p r e c i s a d e c e r t a s a d a p t a ç õ e s l i n g u í s - f o r a m L u c i a n o e H o r á c i o , os v o l t a i r i a n o s da A n t i g u i d a d e .
ticas para ser compreensível. Enfim, Gottsched conseguiu Os s e u s Komische Erzaehlungen (Contos Cómicos) e pe-
impor o gosto francês. A revista gottschediana Beitraege quenas p o e s i a s , e n g r a ç a d a s e l i c e n c i o s a s a t é a o b s c e n i d a d e ,
zur critischen Historie der deutschen Sprache, Poesie und s i t u a m - s e e n t r e os d e V o l t a i r e , P i r o n e B e r n i s , m o d e l o s
Beredsamkeit, e d i t a d a em L e i p z i g e n t r e 1732 e 1744, m a n -
tinha o monopólio do bom-gôsto literário. Gellert, sem
se e n t r e g a r i n t e i r a m e n t e , a d o t o u a l i n g u a g e m d e G o t t s c h e d Der goldene Spiegel (1772); Geschichte der Abderiten (1774);
e o m o d e l o f r a n c ê s d e L a F o n t a i n e ; e G e l l e r t foi o e s c r i t o r Oberon (1780); Neue Goettergespraeche (1791); Geheime Ges-
chichte des Philosophen Peregrinus Proteus (1791); Agathodae-
a l e m ã o m a i s l i d o do s é c u l o X V I I I . O c l a s s i c i s m o g o t t s c h e - mon (1799); Aristipp (1800/1802); etc, etc.
diano triunfou, enfim, em W i e l a n d . Edições por H. Duentzer. 40 vols., Berlin. 1879/1882. e por B.
Seuííert. 50 vols., Berlin, 1909/1932.
F. Bobertag: Wielands Romane. Breslau. 1881.
W i e l a n d ( " ) pertence ao n ú m e r o dos chamados "clás- M. Koch: "Wieland". (In: Allgemeine Deutsche Biographie.
s i c o s " , aos q u a i s se r e t r i b u i u m c u l t o d o s l á b i o s ; já q u a s e Vol. XLII. Leipzig. 1897.)
A. Behmer: Sterne und Wieland. Muenchen, 1899.
E. Ermatinger: Die Weltanschauung des jungen Wieland. Frau-
enfeld, 1907.
14) Christoph Martin Wieland, 1733-1813. E. Stadler: Wielands Shakespeare. Strasbourg, 1910.
Empfindungen eines Christen (1757); Johanna Gray (1758); Don H. Wahl: Geschichte des Teutschen Merkur. Berlin, 1914.
Sylvio de Rosalva (1764); Komische Erzaechlungen (1765); tradu- W. Michel: Wieland. Paris, 1938.
ção de 22 peças de Shakespeare em prosa (1762/1766); Geschichte F. Sengle: Wieland. Stuttgart, 1949.
des Agathon (1766/67); Musarion (1769); Der neue Amadis (1771); H. Wolffheim: Wielands Begrijf der Humanitaet. Hamburg, 1949.
1534 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1535

de um grecismo alexandrino, de um classicismo rococó. a base burguesa do "último classicismo" — de Weimar e


Os romances de Wieland, todos de assuntos gregos, são dos seus contemporâneos — deve ser algo diferente, e as
obras de erudição sólida, ainda hoje interessantes pela ati- suas fontes ideológicas tampouco podem ser encontradas
tude de oposição contra a Grécia idealizada, meio cristã, no racionalismo que enformou Pope, Voltaire e Wieland.
de Weimar; descobrindo a significação do cinismo grego As origens ideológicas do classicismo alemão devem residir
e dos sofistas, Wieland é um precursor de Nietzsche, ao no próprio pré-romantismo; e, sendo assim, torna-se o pré-
passo que o romance autobiográfico Agathon se situa entre romântico Klopstock a figura central da evolução literária.
os "romances de formação", entre Simplicissimus e Wi- Lessing chegou ao auge da sua atividade quando as obras
lhelm Meister. A erudição de Wieland é ainda de tipo decisivas de Klopstock já haviam sido publicadas; maB en-
barroco; e ele escolheu um género barroco, o dos "espelhos controu logo a resistência dos pré-românticos do "Sturm
de príncipes", para expor, no Goldener SpiegeJ (Espelho de und Drang", que se inspiraram em Klopstock; a sua crítica
Ouro), as suas ideias políticas de um absolutismo ilustrado. religiosa, antiortodoxa, mas não-racionalista, só repercutiu
Wieland é representante amável e respeitável de altos
muito mais tarde, através de Schleiermacher. Lessing, como
ideais humanitários. Valeria a pena redescobri-lo.
classicista, não é posterior, mas anterior a Klopstock, e o seu
O sucesso de Wieland é significativo. A sua revista predecessor imediato é Winckelmann — mais um classicista
Teutscher Merkur, editada entre 1773 e 1789, foi o órgão alemão que se distingue profundamente dos classicistas
líder da literatura alemã. Wieland conseguiu — o que da Ilustração. Estudando-se Winckelmann, revelam-se as
nem Gellert conseguira — atravessar as fronteiras da Ale- origens ideológicas que produziram a particularidade do
manha luterana, conquistar o Sul católico e a Áustria, en- classicismo alemão.
sinando-lhes a língua de Gottsched e incorporando-os à O classicismo alemão não se inspirou na França, como
literatura alemã, depois de uma separação de quase dois Gottsched exigiu, nem na Grécia, como Weimar alegou,
séculos. Essa vitória foi a do classicismo da Ilustração mas na mesma fonte, em que irá inspirar-se o pré-roman-
do qual Wieland é o prnicipal representante alemão. Por tismo: a mística. A afirmação parecerá estranha a quem
intermédio de Wieland, Gottsched vencera. A Alemanha
conheça a prosa equilibrada e a ideologia pagã de Winckel-
tinha o seu classicismo; estava re-europeizada.
mann. O caso de Brockes ( 16 ) serve, porém, para demonstrar
Mas esse classicismo não é o de Goethe e Schiller. as possibilidades de divergência entre forma e estilo: em
Wieland não é de Weimar, senão pelo acaso de ter fixado Brockes, a forma é sentimental, a ideologia é racionalista,
ali sua residência nos últimos anos da vida. Goethe e o estilo é barroco. O caso de Winckelmann ( 1 0 ) é algo
Schiller chegaram ao classicismo através do pré-romantis-
m o ; comparados com Wieland, revelam a particularidade 15) Cf. "Pré-Romantismo", nota 33.
pré-romântica do classicismo de Weimar, bastante diferente 16) Johann Joachim Winckelmann, 1717-1768.
do classicismo europeu da Ilustração. O classicista Wie- Gedanken ueber die Xachahmung der griechlschen Werke in der
Malerei und Bildhauerkusnt (1764); Qeschichte der Kunst des
land pertence ao ciclo Pope-Voltaire-Parini; os seus con- Altertums (1764).
temporâneos em Weimar pertencem a um outro classicismo, Edição de Seleta por H. Uhde-Beraays, 2 vola., Leipzig, 1925.
K. Justi: Winckelmann, seine Werke und seine Zeitgenossen.
o de Alfieri e Chénier. O classicismo da Ilustração apóia- 3.tt ed. 3 vols. Leipzig, 1923.
se, como todos os classicismos modernos, em base burguesa; B. Vallentin: Winckelmann. Berlín, 1931.
W. Waetzoldt: Winckelmann. Basel, 1942.
1536 O T T O MARIA CARPEAUX HISTÓRIA »A LITERATURA OCIDENTAL 1537

parecido. Era um pobre mestre-escola prussiano, encar* essas esculturas devem a celebridade europeia — revelam
regado de ensinar o grego a meninos estúpidos. Continuou uma emoção profunda, religiosa; a condição proletária de
os seus estudos na maior miséria; uma força íntima, mis- Winckelmann faz pensar em religiosidade extra-oficial,
teriosa, atraiu-o das letras gregas para a arte grega, que sectária, e a sua indiferença em questões de mudança de
era então apenas objeto de pesquisas arqueológicas; as religião lembra aquelas seitas que atenuaram o rigor dog-
cópias de estátuas gregas, que viu em Dresden, comove- mático para promover a união das Igrejas separadas. Será
ram-no com a força de uma revelação religiosa. Foi para preciso meditar no famoso trecho da Nachahmung: "A
Roma, converteu-se, com facilidade quase leviana, ao cato- qualidade geral e significativa das obras-primas gregas é
licismo para poder residir na cidade papal; chegou a ser uma simplicidade nobre e grandeza tranquila, na atitude
nomeado diretor do Museu das Antiguidades do Vaticano. e na expressão. Assim como a profundeza do mar continua
O fim terrível do grande entusiasta, apunhalado por um la- sempre calma, por mais que a superfície se torne tempes-
drão que se fingiu vendedor de objetos de arte, já sugeriu tuosa, assim também a expressão das estátuas gregas revela,
romances e peças em várias literaturas; provavelmente o acima das paixões, uma grande alma, quieta." Não é possí-
criminoso se havia introduzido como amante, pois Winckel- vel ler isso sem pensar na "luz íntima" dos "quietos no
mann era pederasta — a tal ponto estava identificado com país", dos místicos renanos, e na "Schoene Seele", a "alma
os costumes gregos. hemosa" dos místicos teresianos. Conradus Mutianus já
falara de "beata tranquillitas", que é um termo técnico da
Winckelmann é uma figura europeia; a primeira figura
mística. Winckelmann transformou o sentido religioso em
europeia da literatura alemã. A sua história da arte antiga,
sentido estético, e essa secularização terá consequências
traduzida para todas as línguas, substituiu os modelos ro-
enormes: a "síntese greco-alemã" como base de uma cul-
manos pelos modelos gregos, criou um novo classicismo
tura de perfeição universal, nos indivíduos, e de uma "reli-
europeu, o de Goethe e Chénier, criou a imagem da Grécia
gião da cultura", na nação. A liberdade religiosa do ale-
serena e olímpica — êle mesmo fala de "edle Einfalt und
mão transformar-se-á em liberdade estético-científica, sub-
stille Groesse" ("simplicidade nobre e grandeza tranquila")
sistindo, porém, a indiferença política.
das esculturas gregas — imagem que prevalecerá até Burck-
hardt e Nietzsche descobriram, um século depois, a Grécia A relação entre Winckelmann e Lessing é das mais
trágica e pessimista. O proletário Winckelmann, fazendo complicadas; um trecho da Geschichte der Kunst des Alter-
uma carreira vertiginosa, é modelo da atitude antipopular, tums (História da Arte da Antiguidade) sobre o Laocoonte,
pseudo-aristocrática, que será a de W e i m a r ; e a maneira inspirou o Laokoon de Lessing, cuja estética irá inspirar,
como êle disciplinou o demónio na sua alma, constituirá por sua vez, o classicismo de Goethe e Schiller. Mas, intor-
exemplo para os Goethes, Hoelderlins, Stifters, Moerikes. pretando-se assim a sucessão dos fatos históricos, não se
Todos eles escondem, por trás da calma aparente, as ten- compreende a existência do pré-romantismo alemão, do
tações superadas; e em Winckelmann há mais um segredo, "Sturm und Drang", entre Lessing e Goethe; e a obra de
além da patologia sexual. As maravilhosas descrições do Klopstock perderia toda a significação. Na verdade, Les-
Laocoonte, do Apolo do Belvedere, da Juno Ludovisi, nas sing, em vez de "continuar Winckelmann", percorreu um
Gedanken ueber die Nachahmung der griechischen Werke caminho que parece o oposto ao de Winckelmann: do
(Ideias Sobre a Imitação das Obras Gregas) — às quais classicismo francês à "mística da cultura".
OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1539

Lessing ( 17 ) é o maior crítico literário do século X V I I I . No Laokoon, matou a poesia descritiva, estabelecendo a
O superlativo não passará sem sofrer restrições, porque fronteira entre a poesia e a pintura — lição de valor per-
Lessing não era um mestre de interpretação; nisto, Cole- manente, que nem sempre foi ouvida, mas já pertence ao
ridge é superior. As análises de Lessing, sobretudo as pequeno número das teorias estéticas indiscutidas. Lessing
famosas análises de peças francesas, na Hamburgische Dra- pretendeu excluir da poesia os géneros descritivo e didá-
maturgie, serviram-lhe para fins polémicos ou fins doutri- tico, os géneros estáticos, porque identificou poesia com
nários, para destruir a celebridade dos objetos da análise movimento. O teatro, isto é, a poesia em movimento físico,
ou para extrair deles lições teóricas. Lessing pôs toda a significou para êle, como para todo o século X V I I I , o
sua erudição imensa a serviço de lutas literárias; a sua cume mais alto da literatura. A Hamburgische Dramaturgie
crítica é sempre polemica, é jornalismo no mais alto sentido (Dramaturgia de Hamburgo) ressente-se, apesar da pers-
da palavra, jornalismo de um lutador de coragem inédita picácia inigualada das análises, de muitos erros: cometeu a
para atingir o idealismo mais puro, servindo-se de um estilo injustiça enorme de estender a Racine e Corneille a con-
rápido, epigramático, mordaz, eloquente: a primeira prosa denação do teatro de Voltaire; e, continuando crente orto-
moderna em língua alemã. Possuía o talento de matar os doxo da infalibilidade dos antigos, empregou os sofismas
seus adversários; mas só empregou a arma terrível com o mais artificiais para apoiar nas expressões ambíguas de
fim de contribuir para a vitória das suas ideias justas. Nas Aristóteles a nova dramaturgia. Mas a lição principal da
Bríefe, die neueste Literatur betreffend (Cartas Sobre a ' obra — a dignidade literária e humana do teatro como uma
Literatura Recente), matou Gottsched, para livrar o teatro das supremas instituições nacionais — inspirou durante
alemão das influências francesas e preparar uma nova arte mais de um século a cena alemã e continua como aspiração
cénica, baseada nas lições dos gregos e de Shakespeare. de todas as nações cultas. Como crítico-lutador, Lessing
não tem paralelo na história da literatura.

17) Gotthold Ephraim Lessing, 1729-1781. A sensibilidade moral de Lessing não lhe permitiu
Der junge Gelehrte (1748); Die Juden (1749); Schriften (1753/ limitar à literatura a sua atividade crítica. Com a mesma
1755); Miss Sara Sampson (1755); Briefe, die neueste Literatur
betreffend (1759/1765); Philotas (1759); Laokoon (1766); Minna coragem investiu contra o eruditismo pedante dos falsos
von Barnhelm (1767); Hamburgische Dramaturgie (1767/1768); humanistas; interpretou a Antiguidade não com objetó
Briefe antlquarischen Inhalts (1768); Wie die Alten den Tod
gebildet (1769); Emilia Galotti (1772); Wolfenbuetteler Frag- morto da arqueologia, mas como parte da nossa vida inte-
mente (1774/1777); Anti-Goeze (1778); Nathan der Weise (1779); lectual. O pequeno tratado Como os Antigos Imaginaram
(1779); Ernst und Falk (1780); Die Erziehung des Menschen-
geschlechte8 (1780). a Morte (Wie die Alten den Tod gebildet) — demons-
Edição por J. Petersen e W. Oelshausen, 25 vols., Berlin, 1925/ trando que os antigos representaram a Morte, não como
1929. esqueleto horrível, mas como irmã do sono e como génio
W. Oehlke: Lessing und seine Zeit. 2 vols. Muenchen, 1919.
W. Dilthey: "Lessing". (In: Erlebnis und Dichtung. 7.» ed. consolador — marca época na história do espírito europeu:
Leipzig, 1920.) em vez do protesto racionalista contra o cristianismo, surge
Er. Schmidt: Lessing, Geschichte seines Lebens und seiner Schrif-
ten. 4.» ed. 2 vols. Berlin, 1923. o protesto estético, neopagão, de um novo helenismo. Con-
F. Gundolf: Lessing. Heidelberg, 1929. tudo, a crítica religiosa de Lessing, dirigida contra a orto-
W. Lelsegang: Lessings Weltanschauung. Leipzig, 1931.
H. B. Oarland: Lessing, the Founder of Modem German Lite- doxia luterana, superou em intensidade todos os ataques
rature. London, 1949. dos "free-thinkers" e "philosophes". Sob o pretexto de ter
H. Schnelder: Lessing, Zwoelf Studien. Muenchen, 1951.
1540 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1541

encontrado, na biblioteca de Wolfenbuettel, que dirigia, comédia Minna von Barnhelm, embora desenrolando-se em
fragmentos de um autor desconhecido, publicou, sob o título ambiente prussiano, é uma comédia à maneira francesa, se
de Wolfenbuetteler Fragmente, capítulos de um manuscri- bem que muito aprofundada. A grande tragédia Emília Ga-
to inédito do velho deísta Reimarus, obra audaciosa que lotti, obra-prima do teatro lessinguiano, pela qual pretendeu
ridiculariza os milagres do Velho Testamento, duvidando da o autor exemplificar as suas teorias dramatúrgicas — tragé-
veracidade histórica da Ressurreição de Cristo, e afirman- dia de composição magistral, apesar de certas fraquezas
do, enfim, que Jesus não se proclamara redentor do mundo da motivação psicológica revelarem que Lessing foi mais
e sim, apenas, Messias dos judeus; o resto teria sido in- crítico do que criador — está muito mais perto dos fran-
venção dos apóstolos. Lessing não se identificou com as ceses do que de Shakespeare. Lessing é classicista, mais
opiniões de Reimarus, com as quais, no entanto, começam à maneira de Voltaire que à de Goethe. O seu pensamento
os estudos modernos sobre a vida de J e s u s ; mas defendeu parece racionalista; todas as suas atitudes tão as de um
o direito de publicar todas as objeções possíveis contra a lutador da Ilustração, sobretudo as suas últimas atitudes
verdade do cristianismo; e defendeu esse direito com tanta contra a ortodoxia luterana. Além do Nathan, não se es-
força, contra o poderoso pastor hamburguense Goeze e quecem o diálogo Ernst und Falk, expondo doutrinas da
contra todo o clero luterano, que este, à falta de contra- maçonaria, e o último tratado Ueber die Erzichung des
argumentos, pediu e conseguiu a proibição de publicações Menschengeschlechtes, entrevendo uma "Educaçfio da Hu-
teológicas da parte de Lessing. Ainda assim o crítico manidade" para uma nova Igreja humanitária, para além
continuou a luta, escrevendo o drama Nathan der Weise do cristianismo.
(Natan, o Sábio), peça literariamente fraca, mas eficiente Lessing afirmou não ser inimigo da ortodoxia, e re-
e admirável pela emoção sincera em favor da tolerância. cusou qualquer ligação com o racionalismo; e a veracidade
A parábola do judeu Nathan — comparando as três religiões superior desse grande homem de bem não permite inter-
principais a três anéis iguais, que um pai legara aos filhos, pretar aquelas afirmações como medidas de precaução. De-
e dos quais ninguém sabe qual o anel autêntico — foi a vemos a Wilhelm Dilthey a análise penetrante que revelou
coisa mais forte que se disse no século X V I I I contra as um Lessing desconhecido, um anti-racionalista visceral,
religiões positivas. pensador de inclinações místicas, ocupado com estudos
Nisso, assim como em outros aspectos, é Lessing, o gnósticos, dando interpretação mística ao credo maçónico.
francófobo, um filho da Ilustração francesa. Começou êle Esse anti-racionalismo explica, talvez, a sua aversão aos
com pequenas comédias no estilo de Destouches; a sua franceses, então os partidários principais do racionalismo;
crítica, embora dirigida contra a dramaturgia de Voltaire, cxplica-a melhor do que a tese de um estreito patriotismo
é largamente voltairiana; o próprio Nathan der Weise, de Lessing, que foi grande cosmopolita. A sua atitude
"pièce à thèse", lembrando a Zaire e Orphelin de la Chine, em face do cristianismo não é a negação, é antes a dúvida.
revela o discípulo dos franceses. E isso não é tudo. Lessing Pelo menos foi interpretada assim uma das suas passagens
cedeu pouco às influências inglesas que êle mesmo defen- mais famosas: "Se Deus tivesse na mão direita a Verdade,
deu. A tragédia burguesa Miss Sara Sampson parece-se, e na mão esquerda o desejo de encontrar a Verdade, em-
apesar dos nomes ingleses, mais com os dramas burgueses de bora com o destino procurá-la sempre e sempre, e me
Diderot do que com qualquer modelo inglês. A excelente dissesse: — escolhe! — eu, humildemente, pegaria a es-
154-2 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1543

querda, dizendo: dá esta, Pai, a própria Verdade só é para mais uma vez, isolada na Europa pré-romântica. Parado-
Vós". Se isso é cepticismo, não é o de Bayle e Hume. É xalmente, o papel de incorporar a literatura alemã à lite-
antes um cepticismo pascaliano, uma religiosidade em busca ratura europeia não coube ao grande europeu Lessing, mas
de caminho; em todo o caso, não é uma religiosidade cristã, ao patriota cristão Klopstock.
nem tampouco anticristã. Dilthey conseguiu demonstrar Klopstock é saxônico como Lessing; carrega, como
— e Leisegang o confirmou — que Lessing era um gnóstico este, a herança luterana. Mas em vez de formar-se, como
moderno, procurando uma religião além do cristianismo
Lessing, na afrancesada Berlim de Frederico o Grande,
dogmático, uma Terceira Igreja. Por isso, a alternativa
formou-se na Suíça. A Suíça alma terá os seus maiores
"Ortodoxia — Racionalismo" não tinha sentido para êle.
escritores no século X I X : Goethelf Burckhardt, Gottfried
A sua atitude era, purificada e racionalizada, a dos místicos
Keller, Conrad Ferdinand Meyer. Mas estes, embora de
renanos ou mesmo a dos franciscanos "espirituais"; mas
categoria europeia, serão provincianos quanto à repercussão.
a fé do seu século na onipotência da educação levou-o a
Os suíços do século X V I I I , muito menores quanto ao valor
falar em "educação do género humano" para esse fim.
— Haller, Bodmer, Breitinger, Gessner — foram europeus
Como pensador, Lessing chegou, no fim da vida, às quanto à repercussão. São calvinistas que não conhecem o
origens espirituais de Winckelmann; e como poeta é dis- isolamento luterano; são republicanos insubmissos, vivem
cípulo dos franceses. Essa combinação paradoxal explica- em contato perpétuo com os seus patrícios de língua
Ihe a ambiguidade: grande libertador no sentido do racio- francesa, têm relações com os italianos ilustrados da Lom-
nalismo, e profeta secreto no sentido da mística. Daí bardia, participam da descoberta poética dos seus Alpes
decorrem as suas repercussões diferentes: como teórico da pelos estrangeiros; são mediadores natos ( 1 8 ), desempe-
literatura e dramaturgo inspirou o classicismo de W e i m a r ;
nhando na literatura alemã do século X V I I I um papel
como pensador inspirou a "Bildungsreligion", o cristianis-
de semeadores meio estrangeiros, semelhante ao papel do
mo estético e a-dogmático de Schleiermacher. Nem como
suíço Rousseau, na França. Entre as influências estran-
poeta nem como pensador Lessing podia inspirar confiança
geiras que a Suíça trouxe aos alemães, prevalece a inglesa,
aos pré-românticos: não estava bastante entusiasmado por
de importância tão fundamental que se pode afirmar: a
Shakespeare, não era bastante anti-racionalista, nem gostava
literatura alemã do século X V I I I é filha da inglesa ( 1 0 ).
da poesia cristã de Klopstock. O que havia de pré-român-
A prioridade cabe aos suíços Bodmer e Breitinger, tradu-
tico em Lessing, tornando-o capaz de influenciar o futuro,
tores e defensores de Milton, autor que causou na Ale-
é o elemento místico do seu pensamento. A parte melan-
manha impressão profundíssima. Chamaram a atenção para
cólica, populista, "inglesa", do pré-romantismo não encontra
apoio nesse discípulo dos franceses. Dentro da literatura Thomson, do qual Brockes traduziu as Season. Para apoiar
alemã, Lessing é o purificador da atmosfera, o libertador
indispensável; dentro da literatura europeia, Lessing é um
18) Fr. Ernst: "La tradltion médiatrlce de la Sulsse au XVIIIe et
anacrónico, chegando tarde demais como classicista à ma- XIXe siècles". (In: Revue de Littérature comparée. Vol. VI.
neira francesa, ou cedo demais como classicista à maneira 1926.)
de Weimar. Com Lessing só, a literatura alemã teria ficado, 19) M. Koch: Ueber die Beziehungen der englisehen Literatur zur
deutschen im 18. Jahrhundert. Leipzig, 1883.
OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1545

a doutrina pré-romântica dos críticos de Zurique, que já -sim de uma necessidade íntima, do entusiasmo religioso
falavam em Homero e na Bíblia, Young será um aliado e poético do adolescente genial. No entanto, o Messias
precioso. Wieland, durante o seu estágio na Suíça, recebeu não é lido hoje por ninguém, a não ser em trechos seletos
a sugestão de traduzir Shakespeare. na escola secundária; até se pode afirmar que a obra, em
A Bíblia luterana e o Homero grego na escola confir- conjunto, é ilegível. A epopeia compõe-se de grandes blo-
maram o jovem estudante Klopstock ( 2 0 ) no propósito de cos, cenas imaginadas com força criadora superior, mas
tornar-se o Milton da sua nação — conheceu Milton através nunca realmente vistas; o entusiasmo religioso derrama-se
dos suíços. Os primeiros três cantos do Messias saíram em discursos e .diálogos intermináveis, em descrições das
em 1748: é a data histórica mais importante da história mais vagas, em lágrimas abundantes — tudo celeste, celeste
literária alemã. Klopstock criou uma nova linguagem poé- demais, irreal, nebuloso, como se fora visto através de
tica, igualmente distante do gongorismo dos últimos poetas véus. Os contornos se perdem, os corpos se desfazem,
barrocos, da trivialidade seca dos gottschedianos e da ter- resta apenas uma vaga música, um "gloria in excelsis" em
nura superficial dos anacreônticos: uma língua grave, sole- língua alemã. Estamos bem longe da disciplina clássica
ne e digna, a de Goethe, Schiller, Hoelderlin e de todos do calvinista Milton e mais perto da religiosidade luterana
os maiores poetas alemães até George. Kloptosck criou que criou a música cósmica de Bach, antes de a alma alemã
um metro: o hexâmetro homérico, adaptado de maneira se tornar capaz de exprimir-se em palavras. Por isso, Klops-
admirável à língua alemã; será esse o metro da tradução tock foi incapaz de compor um drama, embora Der Tod
de Homero, de Voss, de Hermann und Dorothea, de Goethe, Adams (A Morte de Adão) comovesse a Europa inteira,
do Archipelagus, de Hoelderlin. Klopstock criou o primeiro exercendo influência até sobre Alfieri e na França. O
poema da literatura alemã moderna ao qual se pode chamar génio de Klopstock é principalmente lírico; quando não
"diretamente inspirado" — apesar da influência decisiva peca por experimentos métricos — introduziu na poesia
alemã todos os metros antigos — está cheio de lirismo.
d e Milton — porque não proveio da vontade de imitar e
Mas até nas poesias religiosas sofre da mesma falta de
clareza que se observa no Messias, perdendo-se em lugares-
comuns retumbantes. Nas odes, o primeiro verso cria logo
20) Friedrlch Gottlleb Klopstock, 1724-1803. (Cf. "O Pré-Romantls-
mo", nota 142.) uma atmosfera poética que se impõe à mente do leitor,
Messias (c.I-IH, 1748; c.I-V, 1751; c.vT-X, 1756; c.XI-XV, 1760; como na maravilhosa ode Der Zuerchersee — mas o resto,
c. XVI-XX, 1773);
Der Tod Adams (1757); Oeistliche Lieder (1758); Geistlíche prolongando-se muito, torna-se dispensável. Klopstock
Lieder (1769); Hermanns Schlacht (1769); Oden (1771); Die estava consciente dessa falta de realidade na sua poesia;
teutsche Gelehrtenrepublik (1774); Hermann und die Fuersten
(1784); Hermanns Tod (1787). procurava o chão sob os pés, e acreditava encontrá-lo no
Edição das obras por R. Hamel. 4 vols., Stuttgart, 1884.
E. Bailly: Êtude sur la vie et les oeuvres de Klopstock. Paris, sentimento nacional. O patriotismo literário de Gottsched
1888. •e Lessing, compatível com a tolerância de cosmopolitas
F. Muncker: Klopstock; Geschichte seines Lebens und selner do século X V I I I , transforma-se, em Klopstock, em nacio-
Schriften. 2.» ed. Stuttgart, 1900.
F. Gundolf: Hutten, Klopstock, Arndt. Heidelberg, 1924. nalismo teutônico, ciumento até dos inglêses-modelos. Mes-
H. Kindermann: Klopstock's Entdeckung der Nation, Danzig,
1935. mo aí, Klopstock estava fora da realidade: em vez de en-
M. Freivogel: Klopstock, der heilige Dichter. Bem. 1955.
1546 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1547

contrar o povo alemão real, evadiu-se para o falso escandi- Stolberg ( 2 3 ), grande aristocrata ou antes junker, que tam-
navismo das odes bárdicas e das peças dramáticas, chamadas bém preferiu os metros clássicos para exprimir um violento
"Bardiete", nas quais glorificou o herói nacional Armínio. nacionalismo alemão e — o que surpreende — um ódio
Em virtude disso mesmo, com o nacionalismo e o escandi- veemente contra reis, príncipes, aristocratas e o clero. Esse
navismo, é Klopstock um pré-romântico típico, um poeta da tradutor da Ilíada — antes de Voss e em espírito alemão,
sua época. popular — e tradutor do Ossian completo parece pertencer
ao "Sturm und D r a n g " ; mas em vez de aderir a esse pré-
Por motivos diferentes, Gottsched e Lessing foram
romantismo revolucionário, converteu-se, depois, ao catoli-
anacrónicos; Klopstock, ao contrário, é o contemporâneo
cismo — ato que suscitou indignação na Alemanha protes-
autêntico de Young e Macpherson; e nos últimos anos
tante e contribuiu para o esquecimento das suas poesias
da vida, entusiasmando-se pela Revolução Francesa, reve-
posteriores, das quais várias são superiores às de todos os
lar-se-á contemporâneo de Rousseau. Com Klopstock, a
seus contemporâneos e, às vezes, dignas de Goethe. Quem
literatura alemã enquadrou-se enfim na literatura europeia.
atacou implacàvelmente o convertido foi o seu antigo com-
Mas é preciso verificar que — com poucos anos de distância panheiro no "Hainbund", Voss (**)» que, como tradutor
— se seguiram dois pré-romantismos alemães, muito dife- clássico de Homero, preparara os caminhos do classicismo
rentes: um, inspirando-se em Klopstock, pré-romantismo de Weimar.
cristão e alemão-nacionalista, o dos poetas do "Hainbund";
e outro, shakespeariano, rousseauiano e revolucionário, o As diferenças entre os classicismos dos klopstockianos
"Sturm und Drang". Hoelty, Stolberg e Voss contribuem para esclarecer a sig-
nificação do classicismo métrico do pré-romântico Klops-
Klopstockianos foram foram todos os "bardos" alemães, tock e precisar a sua posição dentro da literatura alemã.
que fingiram cantar em "Hainen", quer dizer, os bosques A arte poética de Klopstock propõe, com efeito, um pro-
da Alemanha antiga. O próprio "Hainbund" foi uma socie- blema delicado: o espírito da sua poesia é pré-romântico,
dade poética de estudantes da Universidade de Goettingen; a forma é classicista. A ligação só foi possível por meio
fundaram em 1770 uma publicação periódica, o Goettinger de uma qualidade de Klopstock que se releva na grandilo-
Musenalmanach, e em 1772 a associação efémera daquele qiiência das suas metáforas: é sua mentalidade barroca ( 2 5 ).
nome; reuniram-se de noite nos bosques, cantando ao luar, Klopstock é o único poeta alemão algo comparável a Bach,
queimando os livros indecentes de Wieland e jurando que-
rer morrer pela pátria, Buerger ( 21 ) foi um dos chefes do
"Hainbund", do qual se afastou depois, pelo seu imoralismo 23) Friedrich Leopold, Graf zu Stolberg, 1750-1819.
revolucionário e pelo espirito realista que lhe inspirou a Tradução da Ilíada (1778); Gedichte (com o irmão Christian
Stolberg (1779); Die Gedichte von Ossian (1806); Gesammelte
balada alemã. Hoelty (**) representou a parte humanista Werke (1820/1825).
J. Janssen: Friedrich Leopold Stolberg. 4.» ed. Freiburg, 1910.
do génio de Klopstock, a arte de compor em complicados O. Hellinghaus: Friedrich Leopold Graf zu Stolberg. Leipzig,
metros antigos. O mais klopstockiano entre todos foi Fritz 1920.
24) Cf. "Pré-Romantismo", nota 123.
25) O. Walzel: "Bardckstil bei Klopstock". (In: Fe3tschrift fuer H. M.
21) Cf. "Pré-Romantismo", nota 144. Jellinek. Leipzig, 1928.)
22) Cf. "Pré-Romantismo", nota 42. R. Benz: Deutsches Barock. Stuttgart, 1949.
LS48 OTTO MARIA CABPEAI HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1549

o maior músico barroco, que também r e u n i u a inspiração nado — recebe em Londres, em 1758, lendo a Bíblia, uma
melódica popular às formas clássicas da música renascen- revelação repentina que o transforma em membro dos con-
tista. É o Barroco protestante. Os precursores poéticos ventículos agitados da sua terra meio prussiana, meio esla-
de Klopstock, é mister procurá-los entre os poetas pós- va. Eis um místico autêntico; estudos modernos reconhecem
barrocos do século X V I I I : Brockes e Haller. E o único nele um precursor do existencialismo cristão. Hamann
verdadeiro sucessor de Klopstock, pelo estilo e pela men- considera o racionalismo como inimigo de Deus e do ho-
talidade, é um luterano barroco, perdido na Grécia dos seus mem. É algo como um metodista, muito longe do senti-
sonhos: Hoelderlin. O classicismo dos poetas do "Hain- mentalismo quietista e da "Schoene Seele"; odeia o huma-
bund" é diferente; é, ou pretende ser, mais "popular", no nismo, pretende revolucionar a literatura. Como místico do
sentido em que Homero foi interpretado pelos pré-român- "Reino dos Céus", aproxima-se do tcheco Comenius. Como
ticos ingleses. Existem, pois, no pré-romantismo alemão, "cabalista", que reconhece nas coisas do mundo as siglas
resíduos de misticismos diferentes. Um desses misticismos - misteriosas da "língua divina", está perto do místico sile-
provém do Barroco protestante, revela afinidades com Mil- siano Boehme, por sua vez também meio eslavo. Em
ton, aparece em Haller e Klopstock, estraga os poetas do linguagem confusa, em fragmentos incoerentes, Hamann
"Hainbund", enquanto não conseguem fugir para a inspira- propõe uma teoria mística da poesia. Os objetos da Natu-
ção popular; e acaba em Hoelderlin. Outro misticismo, o reza são os elementos e letras da língua divina, que não
renano de Poiret e da "Schoene Seele", aparece em W i n c - têm nada a ver com a língua racional. "Poesia, porém, é
kelmann, revela afinidades com o sentimentalismo inglês, a língua materna do género humano." Pela língua poética,
e leva a Goethe, primeiro ao Goethe do Weither, depois ao o homem cria uma imagem do mundo divino. O poeta é
Goethe grego de Weimar. Ambos são incapazes de aliar-se o homem que se entende com Deus diretamente, sem inter-
ao espírito nacional alemão, e tampouco ao rousseauismo. venção da "Ratio". A capacidade de se comunicar assim
Só um terceiro misticismo consegue unir-se com o populis- com Deus, comparável à união mística do "génio religioso",
mo pré-romântico, nacionalista e revolucionário, produzindo constitui o génio poético.
o "Sturm und Drang". É um misticismo originado na E u r o -
pa oriental, provavelmente eslava. E é digno de nota o fato Esse conceito encontrou-se com o conceito de "génio
de serem os representantes mais típicos do "Sturm und original" de Young, fazendo nessa época sensação na Ale-
Drang" "orientais": Hamann e Herder, da Prússia Oriental, manha ( 2 T ). As suas Conjectures on Original Composition
Lenz, do Báltico. Os outros "Stuermers", os renanos Goethe
e Klinger, o suavo Schiller, só passaram pelo movimento
Edição das obras completas por M. Petrl, 4 vols., Hannover,
para chegar a outros resultados. 1872/1874.
Edição de obras escolhidas por R. Unger, Jena, 1905.
Hamann (*•) é o primeiro daqueles místicos orientais: J. Minor: Hamann in seiner Bedeutung juer die Sturm und
Drangperiode. Frankíurt, 1881.
teólogo malogrado, comerciante fracassado, devasso arrui- S. Unger: Hamann und die Aufklaerung. 2 vols. Jena, 1911.
J. Blum: La vie et Voeuvre de Johann Georg Hamann. Paris,
1912.
J. Nadler: Johann Georg Hamann. Salzburg, 1949.
38) Johann Georg Hamann. 1730-1788. K. Grunder: Die Hamann-Forschung. Geschichte der Deutun-
Sokratische Denkwuerdigkeiten (1759); Aesthetica in nuce (1772), gen. Guetersloh, 1956.
etc. 27) I. L. Kind: Young in Germany. New York, 1906.
1550 OTTO M A M A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1551

são de 1759; e já no mesmo ano Moses Mendelssohn, o embora não menos pré-românticos, são de outra proveniên-
amigo de Lessing, lhe acompanha as ideias, proclamando cia: de Shaftesbury. P o r isso, Herder não caiu no anti-
Shakespeare como génio, apesar de ter desconhecido os humanismo radical de Hamann; não cedeu, como os "Stuer-
antigos e as "regras". Em 1760, Teubern traduziu a obra mers", ao desprezo da forma; conservou sempre o respeito
inglesa; Lessing a aprova, Hamann e Herder estão entusias- da qualidade literária e podia servir de guia ao futuro
mados. Em Shakespeare encontrara-se o modelo do génio classicista Goethe. No começo, Herder só se parece limitar
original, em comunicação direta com Deus. E n t r e 1762 a dar expressão compreensível e coerente aos fragmentos
e 1766, Wieland dá a tradução alemã, em prosa, de 22 peças confusos da estética irracionalista de Hamann: sobretudo
shakespearianas. Na prosa algo dura, como de gravuras no tratado sobre a origem da língua. Com o fervor místico
góticas em madeira, dessa tradução, os jovens alemães re- do seu mestre, Herder proclamou a descoberta da poesia
conhecem o próprio espírito germânico. (" 8 ). O profeta na Bíblia. Enfim, conheceu Shakespeare e Ossian, e explo-
desse espírito foi Herder. diu, por assim dizer, nos ensaios da coleção Von deutscher
A contribuição de Herder ( 2 9 ), conterrâneo, discípulo Art und Kunst (Da Mentalidade e Arte Alemã). Não é
e amigo de Hamann, para o pensamento pré-romântico ale- fácil, hoje, apreciar devidamente esse trabalho: primeiro,
mão consiste, primeiro, na aplicação do conceito "génio", porque a forma rapsódica, abrupta, do estilo prejudica a
já revelado em Homero, na Bíblia, em Shakespeare e Ossian, expressão; depois, porque as descobertas estéticas ali ex-
à poesia popular. Mas os critérios estéticos que emprega, postas se tornaram, desde então, lugares-comuns. Herder
é um espírito precursor: um dos maiores pensadores da
humanidade, experimentando a desgraça de terem sido as
28) A tradução de Wieland também tem sido julgada de outra ma- suas ideias geralmente aceitas a ponto de se lhes esquecer
neira. F. Gundolf (Shakespeare und der deutsche Geist. Berlin,
1914) achou-a sentimental e algo em estilo do Rococó francês. a origem. Sem dúvida, aquelas páginas Von deutscher Art
O fato principal é, porém, que a tradução foi feita em prosa und Kunst constituem a maior peça de crítica literária em
coloquial. A mocidade recebeu a impressão de Shakespeare ter
sido um autor que falou a língua de todos os dias dos alemães língua alemã e um dos grandes documentos da história lite-
de 1760: um Shakespeare naturalista. rária europeia. O ensaio sobre Shakespeare é a primeira
29) Johann Gottfried Herder, 1744-1803. (Cf. "O Pré-Romantismo", interpretação sintética do maior dos poetas, a primeira
nota 146.)
Kritische Waelder (1769); Abhandlung ueber den Ursprung der interpretação de uma obra literária — no caso, do Macbeth
Spraehe (1772); Von áeutscher Art und Kunst (1773); Die ael- — como estrutura coerente e viva; Schlegel, Coleridge e
teste Urkunde des Menschengeschlechts (1774); Stimmen der Vo-
elker in Liedern (1778/1779); Vom Geiste der hebraeischen Poesíe De Sanctis lhe devem muito. Em vão, o patriotismo ger-
(1782/1783); Ideen zur Philosophie der Geschichte der Mensch- mânico de Herder procurou coisa de valor parecido na
heit (1784/1791); Briefe zur Befoerderung der Humanitaet (1793/
1797); Der Cid. nach spanischen Romanzen (1805). antiga literatura alemã, mas encontrou-a na arquitetura;
Edição das Obras Completas por B. Suphan, 32 vols., Berlin, nas catedrais medievais. Ao seu jovem discípulo Goethe
1877/1909.
R. Haym: Herder nach seinem Leben und seinen Werken. 2 vols., mandou escrever o ensaio sobre a catedral de Estrasburgo,
Berlin, 1880/1885. com o qual começa a se esboçar o medievalismo romântico.
K. Siegel: Herder ais Philosoph. Stuttgart, 1907.
A. Bossert: Herder, sa vte et son oeuvre. Paris, 1916. Essas grandes obras de arte, as catedrais, foram o resultado
E. Kuehnemann: Herders Leben. 3.fc ed. Muenchen, 1927. de trabalho coletivo de séculos inteiros, obras anónimas
A. Gillies: Herder. Oxford, 1945.
W. Dobbek: Johann Gottjried Herder. Weimar. 1950. como a poesia popular. Nela, Herder encontrou o máximo
R. T. Olark: Herder. His U/e and Thought. Berkeley, 1955.
1552 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1553

de génio poético. O ensaio sobre Ossian ainda repete os outro. Como filho do século ilustrado, Herder acreditava
esquemas da crítica inglesa. A compreensão madura dos no progresso infinito da humanidade para o humanitarismo;
génios diferentes das várias nações encontra-se na intro- viu, porém, esse progresso não em linha reta e sim apenas
dução à antologia Stimmen der Voelker in Liedexn (Vozes nas espirais complicadas da história. Evitando os anacro-
dos Povos em Canções); é uma antologia de lieds alemães, nismos de Voltaire, aproximou-se das distinções de Viço
canções inglesas, escandinavas, eslavas e até "romances e sobretudo das "condições da evolução histórica" de Mon-
espanhóis". Então, o termo lied, de origem anacreôntica, tesquieu; entretanto, interpretou essas condições menos
mudou de significação, começando a definir o género mais como geofísicas — embora prestando toda a atenção a
autêntico da poesia alemã. O modelo da antologia foram esse aspecto — do que como condições espirituais, resul-
os Reliques, de Percy, do qual Herder traduziu algumas tados da cooperação entre o "espírito dominante" das dife-
baladas. E n t r e as suas descobertas pessoais figuram as rentes épocas e o "espírito particular" das nações e raças.
baladas iugoslavas. E todas essas expressões poéticas, Her- Considerava como a expressão mais completa dessas con-
der as traduziu com a mesma mestria com que traduzirá, dições históricas as literaturas, e tornou-se deste modo o
no fim da vida, o Poema dei Cid. criador da história literária comparada. O novo método
Herder não tinha talento para fazer poesia original. histórico de Herder era um instrumento de sensibilidade
Como tradutor, era um mestre, pela capacidade da empathy, inédita para compreender e caracterizar as diferenças de
do sentir com almas alheias, individuais ou coletivas. Her- espírito e expressão das difrentes épocas históricas. Herder
der é o primeiro europeu que, conservando-se cosmopolita é o criador do historismo, isto é, do método que dominará
no sentido da Ilustração, interpretou a Europa como sin- o trabalho científico do século X I X ; o método utilizado
fonia de múltiplas vozes diferentes, das vozes nacionais, primeiro pela ciência romântica e, depois, pela ciência
sabendo distingui-las e caracterizá-las. Eis a segunda gran- positivista.
de contribuição de Herder para o pensamento pré-romântico O historismo é uma expressão máxima do espírito
e romântico: criou o nacionalismo literário. Substituiu a burguês. A sua significação sociológica reside no fato de
uniformidade da estética classicista pela consciência das que a burguesia, depois de ter feito a Revolução, já não
particularidades nacionais, criou a consciência nacional dos precisa de outras revoluções, confiando-se ao progresso
alemães, dos escandinavos, dos eslavos. E esta parte do lento e "natural". Herder parece-se algo com Burke, ini-
seu pensamento de um homem do século X V I I I terá um migo da Revolução Francesa porque a burguesia inglesa
futuro imenso e nefasto: no pangermanismo e no pan-esla- já tinha feito a sua revolução, em 1688. Herder foi o profeta
vismo. Desse futuro, Herder não é o culpado. As suas revolucionário da não-revolução. Explica-se assim o seu
ideias eram diferentes. É verdade que atribuiu a cada nação trágico destino pessoal, a cujo pensamento se preparava
e a cada raça uma "missão histórica", que corresponderia um futuro tão grande. O novo classicismo de Weimar teve
às particularidades raciais, antecipando assim uma ideia que negar as suas ideias estéticas pré-românticas; e o pré-
central de Hegel. Mas Herder não é hegeliano avant la romantismo do "Sturm und Drang", sendo revolucionário,
lettre; quando muito, êle se situa entre Rousseau e Hegel, teve que negar as suas ideias de evolução histórica. Os
substituindo a evolução histórica, desultória e revolucioná- jovens preferiram Rousseau. Herder morreu meio esque-
ria do primeiro, pela evolução histórica, coerente e lógica do cido; mas, a esse tempo, o pré-romantismo já havia sido
OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1555
1554.

substituído pelo romantismo. E das doutrinas de Herder de maneira revolucionária. "Génio" é consequência de uma
surgirá o conservantismo nacional da P r ú s s i a e de todos inspiração, sem consideração das diferenças sociais; o génio
os conservadores que confiam na H i s t ó r i a — e dos revo- confere a nobreza a qualquer homem bem dotado, mesmo
lucionários que também confiam na História. das classes médias ou baixas da sociedade. Qualquer um
Não é fácil traduzir as palavras " S t u r m und Drang": pode ser herói como os heróis de Plutarco. Na leitura
"Angústia e Entusiasmo", "Ânsia e E x p l o s ã o " seriam ex- assídua de Plutarco pelos "Stuermer" reflete-se a educação
pressões algo equivalentes. Sturm und Drang é o título de nas escolas humanistas; mas Rousseau e Alfieri também
uma peça do "Stuermer" Maximilian Klinger, publicada em gostavam muito do biógrafo grego. E qualquer um, mesmo
1776. O título impôs-se como apelido do movimento, porque o plebeu, pode ser herói como os de Shakespeare e como
exprimiu bem a mentalidade alemã por volta de 1770, a o próprio Shakespeare, se tiver génio. Oa conceitos "génio"
mistura de mística, à maneira da Alemanha oriental, e de e "herói" misturam-se, confundem-se: o herói é considerado
populismo revolucionário, à maneira de Rousseau. Os como o génio das épocas e nações primitivas — e "Primi-
"Stuermer" eram jovens que, fugidos do seio de famílias e tivismo" é a palavra de ordem do século — que reage contra
escolas pietistas, chegando a chocar-se com a realidade os requintes da civilização aristocrática, assim como o ple-
feudal da sociedade alemã. Com o fervor místico, herdado beu Rousseau reagiu contra os salões de Paris. Contra as
dos antepassados, fizeram a propaganda das ideias inglesas bienséances do classicismo, dissimulando as verdades desa-
de poesia popular e das ideias de revolução popular de gradáveis, os "Stuermer" apregoam o realismo duro, a
Rousseau. Eis o ambiente e os motivos do "Sturm und ocupação com problemas sociais e sexuais, as expressões
Drang" ( 3 0 ). fortes e até os palavrões da gíria, a prosa em vez do verso,
O instrumento com o qual os "Stuermer" pretenderam assim como fala o homem do povo. Esse realismo, os "Stuer-
derrubar a literatura e a sociedade do ancien regime, foi mer" acreditavam encontrá-lo em Shakespeare.
o conceito do "génio". Hamann dera a esse conceito um
acento religioso, já pré-existente no uso da palavra por A influência de Shakespeare sobre a nova literatura
Lowth que, descobrindo a poesia na Bíblia, misturou o alemã é enorme ( 3 2 ). J á não eram possíveis o desprezo
conceito teológico da Inspiração e o conceito estético. Os de Gottsched nem a prudência de Lessing. Contra as
jovens criaram uma "religião do génio" ( 3 1 ). A identifi- restrições, inspiradas na estética classicísta, nas notas da
cação entre génio poético e génio popular foi interpretada tradução de Wieland surgiram protestos veementes. Sha-
kespeare foi idolatrado. Mas só se adivinharam aspectos
30) H. A. Korff: Der Geist der Goethezeit. Vol. I. Leipzig, 1923. parciais do seu génio. O século X V I I I não conhecia outras
H. Kindermann: Die Entwicklung der Sturm und Drangbewe- convenções teatrais além das do classicismo francês. A
gung. Stuttgart, 1925. técnica dramática de Shakespeare não foi reconhecida pelos
F. J. Schneider: Deutsche Dichtung der Geniezeit. 2.* ed.
Stuttgart, 1952.
H. B. Garland: Storm and Stress. London, 1952.
R. Pascal: The German Sturm and Drang. Manchester, 1952. 32) E. Walther: Der Ein/luss Shakespeare": auf die Sturm und
31) F.. zilsel: Die Entstehung des Geniebegriffs. Tueblngen, 1926. Drangperioãe unserer Literatur. Chemnitz, 1890.
P. Grappin: La théorie du Génie dans le préclassicisme alleman&. Fr. Gundolí: Shakespeare und der deutsche Geist. Berlin, 1914.
Paris, 1952.
L556 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1557

"Stuermers", como resultado de convenções teatrais diferen- também autor de dramas sentimentais ao gosto inglês,
tes, e sim considerada como ausência de técnica dramática transformou as peças de Shakespeare em dramas burgueses-
— teatro sem lei, privilégio do génio exuberante. Não teriam sentimentais, a o gosto alemão. Deste modo, os espectadores
compreendido o papel do verso neste "teatro em liberdade"; sentiam esse Shakespeare schroederiano como poeta con-
e, com efeito, os "Stuermers" só conheciam o Shakespeare temporâneo, tanto mais que os atôres usavam trajes "mo-
em prosa, o de Wieland (em prosa também traduziu E s - dernos", quer dizer, de 1770. Foi assim que Shakespeare
chenburg as peças restantes), o que fortaleceu a impressão se incorporou à literatura alemã, em cuja história o dia
de um teatro fora de todas as convenções de estilo e esti- 20 de setembro de. 1776 é uma data decisiva.
lização; de uma arte realista. E essa impressão chegou ao A data gravou-se na memória da época. Ainda em
auge, quando as peças de Shakespeare se viram represen- Wilhelm Meisters Lehrjahre (Anos de Aprendizagem de
tadas, nos palcos da Alemanha ( 3 3 ). A princípio, os Wiíhelm Meister), a ação gira em torno de uma represen-
atôres alemães eram incapazes de representar papéis de tação de Hamlet. Todos os romances daquele tempo estão
Shakespeare; os diretores de teatro receavam o protesto cheios de discussões dramatúrgicas — ter um teatro sha-
indignado dos espectadores "cultos"; quando muito, fize- kespeariano era a suprema ambição dessa nação apolítica;
ram adaptações ao gosto classicista, como o Richard III, e mais do que uma vida de intelectual pequeno-burguês
de Weisse. O mérito imenso de ter introduzido Shakes- • estragou-se no ambiente dos bastidores. Deu-se isso na
peare no teatro alemão, onde êle devia dominar até hoje, vida e no romance de Moritz ( 3 6 ), que é, com exceção de
cabe ao grande ator Schroeder ( 84 ) que, como diretor do um fato, o representante mais típico do "Sturm und D r a n g " :
Teatro Municipal de Hamburgo, fêz representar, a 20 de filho de um artesão, criando-se na pobreza, angustiado pelo
setembro de 1776, o Hamlet. Depois, representou mais 6 pietismo do ambiente, fugindo dos fantasmas da sua ima-
peças, em Hamburgo e no Teatro Nacional de Viena, edu- ginação, fracassando como ator no teatro — eis o enredo
cando o público e educando uma falange de atôres famosos. do seu romance autobiográfico Anton Reiser, um dos livros
Schroeder era homem prudente; conhecendo o sentimen- mais interessantes do século pela exatidão da auto-obser-
talismo e os preconceitos do público alemão, não repre- vação psicológica. Moritz cultivava a psicologia como ciên-
sentou versões integrais de Shakespeare. T i r o u as expres- cia, antecipando várias doutrinas do romantismo e da psi-
sões e cenas que lhe pareciam fortes demais, deu a algumas canálise sobre os sonhos e o subconsciente. O destino,
tragédias um happy end — em suma, Schroeder, que era porém, levou-o depois para a Itália e para os estudos gregos
— eis o elementos atípico da sua biografia, aproximando-o

33) R. Genée: Geschichte der Shakespeare1 schen Dramen in Deuts-


chland. Leipzig, 1878.
35) Karl Philipp Moritz, 1757-1793.
34) Friedrlch Ludwig Schroeder, 1744-1816.
Adaptações shakespearianas: Hamlet (1776); Der Kaufmann von Magazin zur Erfahrungsseelenkunde (1783/1793); Anton Reiser
Venedig (1777); Mass Juer Mass (1777); Koenig Lear (1778); (1785/1790).
Koenig Richard II (1778); Koenig Heinrich IV (1778); Macbeth Edição de Anton Reiser por L. Geiger, Heilbronn, 1886.
(1779). H. Eybisch: Anton Reiser. Leipzig, 1909.
B. Litzmann: Friedrich Ludwig Schroeder. 2 vols. Hamburg. G. Hinsche: Karl Philipp Moritz ais Psychologe. Halle, 1912.
1890/1894. R. Minder: Die religioese Entwicklung von Karl Philipp Moritz.
Berlin, 1936.
1558 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1559

de Goethe. O caso de Jung-Stilling ( 36 ) é parecido: origem "neopietismo" era o suíço Lavater ( S7 ), o criador da fisiog-
humilde, pobreza, educação pietista, obra autobiográfica — nomonia e propagandista de uma religiosidade altamente
só o desfecho é diferente. J u n g não era, como Moritz, sentimental, chorosa e com acessos de sensualidade. A sua
uma natureza fáustica, inquieta, mas um místico angustiado influência sobre a juventude intelectual da Alemanha foi,
que acabou no ocultismo mais fantástico; os seus escritos durante alguns anos, ilimitada; o próprio Goethe o adorava.
Lavater representa o aspecto sentimentalista do "Sturm und
apocalípticos são o último produto deformado da ideia da
Drang". A parte rousseauiana estava encarnada em literatos
"Ecclesia spiritualis". Nem sequer se adivinha isso, lendo-
boémios, como o lendário Christoph Kauffmann, que an-
lhe a autobiografia, história de uma mocidade resignada e dava de cidade em cidade, julgando-se herói de Plutarco
panorama atraente da vida das classes baixas no século ou Shakespeare, porque viveu como os selvagens imaginá-
X V I I I , livro que Nietzsche considerou um dos cinco me- rios de Rousseau, e que, sem ter escrito uma linha, virou
lhores livros da literatura alemã. O mesmo Jung-Stilling famoso como "génio". Era o tipo do "Kerl", quer dizer,
foi, depois, capaz de perturbar a mente da visionária Julia- "homem rude e forte", ideal dos "Stuermers" e herói das pe-
ne von Kruedener, cujos sonhos de reunião das Igrejas e ças turbulentas de Klinger ( 8 8 ) ; um "Kerl" é W i l d (o nome
nações cristãs empolgaram o tzar Alexandre I. Assim — significa "selvagem"), herói da peça "Sturm und Drang",
os caminhos da divulgação tornam-se misteriosos — as que deu o nome ao movimento literário. Série de cenas
ideias de Jung-Stilling se propagaram na Rússia e apare- incoerentes, personagens meio loucos, sintaxe violada, pa-
lavrões — o autor acreditava assim ter feito uma tragédia
cerão no fim do século XIX, com reminiscências literais,
nas Três conversações, de Soloviev.
Moritz e Jung-Stilling pertenceram, pelas origens, ao
37) Johann Kaspar Lavater, 1741-1801.
ambiente pietista da Renânia, agitado então pela importação Geheimes Tagebuch (1771/1773); Von der Physiognomik (1772);
Physiognomische Fragmente zur Befoerderung der Menschen-
de misticismos da Alemanha oriental, de origem eslava; kenntnis und Menschenliebe (1775/1778).
Hamann fora desses "orientais" fascinantes. O chefe desse Ch. Janentzky: Johann Kaspar Lavater. Frauenfeld, 1928.
M. Lavater-Sloman: Genie des Herzens. Die Lebensgeschichte
Johann Karpar Lavaters. Zuerich, 1939.
36) Johann Helnrich Jung, dito Jung-Stilling, 1740-1817. 38) Maximilian Klinger, 1752-1831.
Heinrich Stillings Jugend (1777); Heinrich Stillings Juenglings- Otto (1775); Das leidende Weib (1775); Sturm und Drang (1776);
jahre (1778); Heinrich Stillings Wanderschaft (1788); e t c ; — Die Zwillinge (1776); Die neue Arria (1776); Medea in Korinth
Siegesgeschichte der christlichen Religion (1799); Erster Nachtrag (1791); Medea auf dem Kaukasos (1791); Fausts Leben, Taten
zur Siegesgeschichte der christlichen Religion (1805); Theoríe der und Hoellenfahrt (1791); Geschichte. Giafars des Barmeciden
Geisterkunde (1808). (1792); Geschichte Raphaels de Aquillas (1793); Reisen vor der
Edição das Obras Completas por I. N. Grollmann, 14 vols., Stutt- Suendflut (1795); Faust der Morgenlaender (1797); Geschichte
gart, 1835/1838. eines Teutschen der neuesten Zeit (1798); Der Weltmann und
der Dichter (1798); Betrachtungen und Gedanken ueber vers-
Edição da autobiografia in: Reclam's Universalbibliothek. Leipzig, chiedene Gegenstaende der Welt und der Literatur (1803/1805).
n.° 663/667. Edição de obras escolhidas por A. Sauer, 8 vols., Stuttgart, 1878/
A. Stecher: Jung-Stilling ais Schri/tsteller. Strasbourg. 1913. 1880.
H. R. C. Guenther: Jung-Stilling. Ein Beitrag zur Psychologie M. Rieger: Klinger in der Sturm und Drangperioãe. Dramstadt,
des âeutschen Pietismus. Berlin, 1928. 1890.
E. Benz: "Russische Eschatologie. Studien zur Einwirkung der M. Rieger: Klinger in seiner Rei/e. Darmstadt, 1896.
deutschen Erweckungsbewegung in Russland". (In: Kyrios, 1/2, W. Kurz: Klingers Sturm und Drang. Halle, 1913.
1936.) E. Volhard: Klingers philosophtsche Romane. Halle, 1930.
1560 OTTO MARIA CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1561

shakespeariano Contudo, Klinger, amigo de infância de ferem o coração, ataque vigoroso a problemas políticos e
Goethe, mas separado dele pela condição humilde dos seus sexuais. A sua poesia lírica, publicada decénios depois da
pais, foi um escritor de grande talento e u m caráter inde- sua morte, revelou um grande talento, talvez não muito in-
pendente. Após a tentativa de "out-Herod Herod", escreveu ferior ao génio de Goethe.
duas tragédias sobre Medeia, adaptações interessantes do O próprio Lenz, amigo invejoso de Goethe, sentiu-se
assunto grego em estilo shakespeariano, e uma longa série dolorosamente eclipsado pelo poeta maior. Quando o ro-
de romances sobre Fausto — já então o personagem lendário mântico Tieck publicou, em 1828, as obras inéditas de Lenz,
parecia aos "Stuermers" a personificação das suas próprias aproveitou-se da ocasião para esboçar um panorama da lite-
ambições ilimitadas. Como o Fausto de Goethe, Klinger ratura alemã de 1775, colocando Lenz, em vez de Goethe,
acabou na corte, alto funcionário do tzar dos russos, mas no centro. Mas a obra de Lenz não bastava para justificar
conservando a sua independência pessoal. Sua obra de a inversão dos valores; na verdade, Tieck jogou o próprio
velhice, o livro de aforismos Betrachtungen und Gedanken, Goethe contra Goethe, quer dizer, o "Stuermer" Goethe
revela algo do espírito das conversações de Goethe com contra o classicista Goethe.
Eckermann. Klinger situa-se entre o conformismo político Goethe ( 4 0 ) pertence ao "Sturm und Drang" pelas suas
do luterano alemão espiritualmente insubmisso, e o confor- cbras mais populares: a tragédia histórica, "shakespearia-
mismo político do classicista Goethe. Quem, entre os na", Goetz vou Berlichingen, até hoje muito representada
"Stuermers", não fosse capaz de conformar-se acabava m a l : na Alemanha. Depois, sua obra de mais larga repercussão
assim o maior entre eles, Lenz ( 3 9 ), filho do Báltico. Ga- internacional, o Werther,, o único dos romances sentimen-
nhou fama em pouco tempo; depois, incompatibilizou-se tais do século X V I I I que ainda continua legível; enfim,
com toda a gente; enfim submergiu na noite da loucura. uma parte considerável da sua obra lírica. Ainda como
Lenz foi um génio malogrado; em outras condições e com "Stuermer" redigiu Goethe as primeiras versões das suas
mais firmeza de caráter teria sido um dos maiores escri- cbras mais definitivas: o Urfaust, primeiro esboço de
tores da literatura alemã. No seu drama burguês Die Sol- Faust, e o romance Wilhelm Meisters theatralische Sen-
daten (Os Soldados) conseguiu criar um estilo dramático dung (A Vocação Teatral de Wilhelm Meister), primeira
próprio, que de vez em quando reaparecerá na dramaturgia versão de Wilhelm Meisters Lehrjahre. Medievalismo e
alemã: cenas fortemente realistas em sequência incoerente shakespereolatria, sentimentalismo revoltado e desesperado
c rápida, desfecho brutalmente trágico, diálogo lacónico com reminiscências de Ossian, poesia popular, ambições
em linguagem popular, humorismo grosseiro e emoções que titânicas, fáusticas, problemas da relação entre os sexos,
vagabundagem letrada, discussões sobre Hamlet — aí estão,
naquelas primeiras obras de Goethe, todos os motivos e
39) Jakob Michael Relnhold Lenz, 1751-1792. preocupações do "Sturm und Drang". Se porventura falta
Der Hofmeister (1774); Die Soldaten (1776); Gesammelte Schrif-
ten (edit. por. L. Tieck, 1828.) qualquer coisa, seria possível encontrá-la na fase correspon-
Edição por F. Blei, 5 vols., Muenchen. 1909/1913.
L. Tieck: Goethe und seine Zeit. 1828 (Introdução da edição ci-
tada, vol. I).
Er. Schmidt: Lenz und Klinger. Berlin. 1878. 40) Goetz von Berlichingen mit der elsernen Hand (1773); Die Leiden
M. N. Rosanov: Lenz, der Dichter der Sturm und Drangperiode des jungen Werthers (1774); Clavigo (1774); Urfaust (1775);
(trad. do russo). Leipzig, 1909. Stella (1776); Wilhelm Meisters theatralische Sendung (1777).
li Kindermann: Lenz und die deutsche Romantik. Wien, 1925. Cf. nota 93.
1562 OTTO MABIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1563

dente do seu companheiro de tempos posteriores, Schil- vezes, Chateaubriand o imitará, no René. Na França sur-
ler ( 4 1 ) : o entusiasmo shaftesburyano das primeiras poe- girá até um W e r t h e r às avessas, o Julien Sorel, de Stendhal.
sias; a revolta anarquista dos Raueuber (Os Bandoleiros), E houve, na Itália, o W e r t h e r patriota, o Jacopo Ortis, de
que continua uma peça querida da mocidade alemã; o re- Foscolo.
publicanismo de Fiesco, a corajosa tragédia social Kabale
und Liebe (Intriga e Amor) mal construída, mas de irre- Schiller parece muito mais revolucionário — foi filho
sistível efeito no palco. As diferenças são, no entanto, da classe média inferior; mas esta estava oprimida demais,
consideráveis: diferenças de origens, de repercussão e de na Alemanha, para poder pensar em emancipação política.
evolução. Goethe, filho da classe média superior, após ter Só na França foi o jovem Schiller festejado como revo-
sido poeta anacreôntico e de ter passado pelo pietismo lucionário; a Convenção conferiu-lhc o título de cidadão
sentimental da Renânia, foi amigo e discípulo de H e r d e r ; honorário da República. No resto, só encontrou ressonân-
os seus modelos são os do pré-romantismo inglês, Shakes- cia, fora da Alemanha, onde uma juventude precisava, como
peare e a Bíblia, Homero e Ossian; e assim dará nova vida ele mesmo, reagir ao entusiasmo religioso. E i s a tonalidade
revolucionária ao drama histórico, ao romance sentimental particular do " S t u r m und Drang" escandinavo, colocado en-
à maneira de Richardson e Rousseau, e ao lied. Schiller tre Klopstock e Schiller.
veio de Klopstock, o estilo o revela; libertou-se do vago
entusiasmo religioso pela influência de Rousseau e pela As primeiras influências pré-românticas na Suécia, fo-
leitura de Plutarco — em tradução francesa, aliás, porque ram inglesas: Thomson, Young, Ossian. Ideias de Rous-
não sabia o grego — e inspira nova vida revolucionária ao seau entraram através do famoso salão literário de Hedwig
choroso drama burguês. Charlotte Nordenflycht ( 4 8 ), mulher apaixonada pelo "pro-
gresso", mas sentimental e angustiada na poesia. O pleno
São diferentes, também as repercussões. Werthers
impacto de Rousseau e Klopstock juntos produziu em Lid-
junge Leiden (Os Sofrimentos do Jovem Werther) é o livro
ner ( 44 ) um sentimentalismo febril e histérico; é um Schil-
alemão de mais larga repercussão internacional ( 4 2 ) ; im-
ler sem saída para o classicismo, mas de uma força admi-
pressionou em toda a parte onde os filhos da classe média
rável para exprimir visões estranhas. Na Dinamarca, porém,
superior se revoltaram, desesperados, contra a sociedade
feudal. Daí o êxito limitado na Inglaterra, de estrutura nasceu o maior poeta pré-romântico do N o r t e : Johannes
social diferente — mais tarde, porém, o aristocrata Byron
tornou-se wertheriano, porque encontrava-se em situação
semelhante diante da sociedade burguesa. O sucesso do 43) Hedwig Charlotte Nordenflycht. 1718-1763.
romante foi enorme na França, desde a primeira tradução, Den soerjand Turturdufvan (1743); Qwinligit Trankespel. Af en
Herdinna i Norden (1744/1750).
já de 1776; Napoleão leu o Werther nada menos que sete Edição por H. Borelius, 3 vola. Stockholm, 1924/1928.
J. Kruse: Hedwig Charlotte Nordenflycht. Stockholm, 1895.
H. Borelius: Hedwig Charlotte Nordenflycht. Stockholm, 1921.
41) Die Raeuber (1781); Anthologie auf das Jahr 1782 (1782); Die 44) Bengt Lidner, 1757-1793.
Verschwoerung des Fiesko zu Genua (1783); Kabale und Liebe Aret (1783): Spastaras doed (1783); Medea (1784); Gericht
(1784). (1788); Jerusalém (1788).
Cf. nota 100. K. Warburg: Lidner. Stockholm, 1889.
42) J. W. Appel: Werther und seine Zeit. 4.» ed. Oldenburg. 1896. L. Josephson: Lidner. Stockholm, 1947.
1564 O I T O MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1565

Ewald ( 4 0 ), um dos mais típicos entre os "Stuermers", mas por mais diferentes que fossem os motivos, acabaram na
um génio malogrado. Fugiu do pietismo da casa paterna, mesma condenação da Revolução Francesa que tinham sau-
fracassou na vida; e voltou para morrer, com 38 anos de dado com entusiasmo. O burguês Goethe nunca tivera
idade, na miséria. Deixou — isso já não surpreende — uma ilusões a respeito; em compensação, era mais capaz de
autobiografia arrependida e muita poesia lírica, canções compreender a significação do acontecimento e profetizar,
eróticas, patrióticas e religiosas que Ewald costumava in- já em 1792, o advento de uma nova era da história. O
serir em tragédias classicistas de assuntos nacionais — e conformismo é característico de todos os classicismos; e
no vaudeville Fiskerne, mistura de pastoral lírica e opereta no caso do classicismo alemão também existe um fundo
de colorido nacional; Fiskerne é o primeiro espécime de burguês, embora de importância reduzida.
um género particular da literatura dinamarquesa, da qual Durante todo o século X V I I , apesar de épocas de paz
Ewald foi o primeiro grande poeta lírico. Baggesen ( 4 "), prolongadas e de certos progressos, a Alemanha não se
enfim, que começara como folhetinista espirituoso, à ma- refizera dos estragos da Guerra de Trinta Anos; a vida
neira de Sterne, preferiu escrever, em vez de em dinamar- suntuosa das pequenas cortes, iludindo pelas aparências
quês materno, em língua alemã, na língua e no estilo de artísticas, não era índice de situação económica melhor.
Schiller, exprimindo, como Rousseau, a emoção religiosa e Só nos últimos decénios do século se torna notável o co-
os seus sentimentos de indignação revolucionária perante a mércio marítimo de Hamburgo, alimentado pela indústria
paisagem majestosa dos Alpes. Mais tarde, o boémio aven- de linho e pela mineração na Prússia e na Saxônia. A
tureiro voltará ao estilo picante, satírico, afrancesado, para Alemanha assistiu, então, a algo como os começos tímidos
lutar contra Oehlenschlaeger e o romantismo dinamarquês; de uma "revolução industrial" em tamanho provinciano,
no foro íntimo, tinha-se conformado com a burguesia. que só tomará vulto depois de 1830. O próprio Goethe,
como ministro de Estado em Weimar, ocupou-se com os
Quem, entre todos os contemporâneos de Schiller, mais
negócios da mineração. Certas poesias suas, dos seus pri-
se parece com êle, é Alfieri que não o conheceu. Pessoal-
meiros anos de Weimar e já depois do "Sturm und Drang",
mente, não tinham muito em comum: o desdenhoso aristo-
sobre os benefícios da paz e do trabalho, lembram as após-
crata italiano e o ambicioso pequeno-burguês alemão. Mas
trofes de Pope — "Hail, sacred p e a c e ! . . . " — depois da
revolução de 1688. Afinal, poder-se-ia estabelecer um pa-
46) Johannes Ewald. 1743-1781. ralelo entre o plutarquismo rousseauiano do "Sturm und
Soergekantate over Frederik V (1766); Adam og Eva (1769); Drang" e o classicismo afetado e yiolento dos jacobinos;
Rolf Krake (1770); Balders Dod (1774); Fiskerne (1778.); auto-
biografia Levned oq Meninger (1783). e mais outro paralelo entre o classicismo majestoso de
Edição por H. Briz e V. Kuhr, 6 vols., Kjoebenhavn, 1914/1924. Weimar e o estilo Empire dos palácios e móveis de Na-
H. Magon: Die Klopstockzeit in Daenemark. Vol. I: 'Johannes
Ewald". Hamburg, 1926. poleão. Mas este confronto seria esquemático demais; e
K. Flor: Johannes Ewald. Kjoebenhavn, 1943. não daria a atenção devida à diferença entre o grecismo
46) Jens Baggesen. 1764-1826. de Goethe e o classicismo neo-romano de Alfieri e dos
Labyrinthen (1792/1793); Parthenais oder dle Alpenreire (1804); jacobinos, do qual Schiller está mais perto. Este mesmo
Adam und Eva (1827).
H. Arentzen: Baggesen o/ Oehlenschlaeger. 8 vols. Kjoebenhavn, criou, para formular a diferença, as expressões "poesia
1870/1878. ingénua" e "poesia sentimental", distinção que aprofundou
J. Clausen: Jens Baggesen, en Utteraer-psychologisk Studie.
Kjoebenhavn, 1895.
OTTO M A R I A CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1567
os conceitos pré-românticos a respeito de Homero e Vir-
que incompatíveis com a tradição geral europeia; e a in-
gílio. O senso histórico, conquista dos pré-românticos e
fluência francesa, inevitável, apesar de toda a francofobia,
de Herder, destruiu a antiga identificação simplista das
era afinal uma tradição latina, mais acessível aos alemães
coisas gregas e das coisas romanas; os estudos arqueoló-
do que a Grécia longínqua e remota. J á Schiller, pequeno-
gicos de Caylus e Winckelmann contribuíram para o mesmo
burguês sem formação grega, menos "elite" do que Goethe,
fim. Reconheceram-se na arte e literatura romana os arti-
preferiu fornias latinas, aproximando-se, depois, cada vez
fícios de uma civilização imitadora, requintada e decadente,
mais da tragédia francesa. A procura de épocas de "ge-
enquanto a Grécia aparecia como o paraíso dos génios
nialidade original" não parou depois da descoberta da Gré-
originais, primitivos sem vulgaridade. Homero foi consi-
cia; e já na época de Weimar, Heínse descobriu a Renas-
derado como o Ossian de um país mediterrâneo e de uma
cença italiana, que tinha para êle cores pré-românticas
Idade Áurea. Para os alemães, a distinção entre Atenas
assim como a Grécia weimariana. No fundo, os "gregos"
e Roma significou uma revelação de primeira ordem. Três
de Weimar são pré-românticos, vestidos à moda de Atenas.
vezes — antes da Reforma, no século barroco, e na época
O último classicismo é o último capítulo do pré-roman-
de Gottsched — pretenderam construir um classicismo
tismo.
alemão; e cada vez fracassaram, porque a Antiguidade
se lhes apresentou vestida à romana. Os alemães não são Esse classicismo pré-romântico não se limita à Ale-
de origem latina nem de religião romana como os italianos e manha; é um movimento europeu ao qual pertencem Alfieri,
franceses, nem possuem a tradição latinista dos ingleses. Monti, Foscolo, Meléndez Valdês, Chénier ( 4 S ). Não é
Com a Grécia, porém, nenhuma das nações europeias está o artifício de um grupo de evasionistas, assustados pela
ligada pelo sangue ou pelas tradições religiosas, de modo Revolução. Ao contrário, é a consequência da Revolução
que os alemães não se encontravam, a esse respeito, em
que, começando como explosão pequeno-burguesa, logo se
situação de inferioridade. E a interpretação da Grécia
transformou em vitória da burguesia; e à base burguesa
como país da poesia original, da aurora da humanidade,
corresponde a forma classicísta, conspicuous consumption,
facilitou a identificação mental dela com a Alemanha, na-
que imita o classicismo da aristocracia derrotada.
ção jovem, isto é, que só então começara a ter uma litera-
tura própria. O grecismo tornou-se parte integral da "cul- Dentro do último classicismo é possível distinguir três
tura", da Bildungsreligion; a síntese greco-alemã tornou-se fases estilísticas: na primeira ainda prevalecem os elemen-
a suprema ambição ( 4 7 ) ; a Grécia, uma religião. Homero, tos romanos; na segunda o fundo pré-romântico é mais
na tradução de Voss, e Platão, na tradução de Schleierma- sensível; na terceira estabelece-se o-equilíbrio de um clas-
cher, pareciam autores alemães. sicismo burguês. As três fases não se sucedem em ordem
rigorosamente cronológica. Não se trata de uma evolução,
Não é preciso dizer quanta ilusão havia em tudo isso. e sim de três soluções diferentes de um mesmo problema:
A Alemanha não era "jovem": tinha tradições, se bem romper a aliança entre o Classicismo e a Ilustração, para
chegar do classicismo aristocrático ao classicismo burguês.

47) O. Stefansky: Das hellenisch-deutsche Weltbílâ. Leipzig, 1925.


W. Rehm: Griechentum und Goethezeit. Geschichte eines Glau-
bens. 3.' ed. Bem, 1952. 48) Fr. Ernst: Der Klassizismus in Italien. Frankreich und Deuts-
chland. Zuerich, 1014.
1568 OTTO M A R I A C A R P E A U X HISTÓRIA DA L I T E R A T U R A O C I D E N T A L 1569

Ainda meio "romano" era o conde de Caylus ( 4 *), q u e l o g o s e a f a s t a da s o l i d e z e d o vigor e p i g r a m á t i c o d e


ao qual Winckelman deveu sugestões preciosas. A s suas M i r a b e a u , p a r a d e r r a m a r - s e e m declamações s e n t i m e n t a i s
grandes obras de gravuras de objetos arqueológicos res- o u t e r r i f i c a n t e s . O o r a d o r t í p i c o d a Revolução é o g i r o n d i n o
piram a atmosfera dos museus do Vaticano construídos no P i e r r e - V i c t u r n i e n V e r g i n a u d (1758-1793), s e n h o r d e elo-
século X V I I I : vastas salas bem iluminadas, de arquitetura quência d e a d v o g a d o , s a l g a d a d e citações e r e m i n i s c ê n c i a s
simples, cheias de uma multidão de estátuas brancas. O l a t i n a s . O s e u i n i m i g o R o b e s p i e r r e falava m e l h o r , m a s n o
classicismo "romano" do grande pintor jacobino Jacques- mesmo estilo. Camille Desmoulins ( M ) , como orador, é
Louis David realizou a arte que Caylus desejara ver. As apenas o t r i b u n o vulgar do Palais-Royal; como redator do
estátuas de Caylus em movimento, eis o romance do abbé Vieux Cordelier é um jornalista de primeira ordem. M a s
Barthélemy ( 6 0 ), o Jeune Anacharsis: um enredo simples n u n c a a n t e s n e m d e p o i s se v i u j o r n a l d e s t i n a d o ao p o v o ,
serve para dar fundo novelístico a u m guia de antigui- em que t ã o g r a n d e p a r t e d o t e x t o consistisse em citações
dades gregas. E esta obra de erudição considerável e im- d e L í v i o e T á c i t o , s e m e s q u e c e r os v e r s o s d e O v í d i o e
potência criadora absoluta foi um dos livros mais lidos do L u c a n o . E n ã o foi m e r a a f e t a ç ã o : D e s m o u l i n s e r a u m a
fim do século, a ponto de tornar-se popular e de aparecerem n a t u r e z a d e G r a c o e caiu c o m o u m Graco.
entre os jacobinos diversos sujeitos com o nome de Ana- Se a r e t ó r i c a é u m m e i o d e mettie-en-scène a própria
charsis. Toda a literatura do jacobinismo e do Empire ( 6 1 ) personalidade, não nos espanta a popularidade do teatro
é assim: literatura de homens e mulheres em toga romana nessa época d e políticos-atôres e tragédias históricas vivi-
e chlamynx grega, estas deitadas em sofás "antigos", na das (6B). O d r a m a t u r g o mais notável do teatro jacobino
atitude de madame Récamier, aqueles agitando patetica- é Marie-Joseph de Chénier ( 5 e ) , irmão do grande e infeliz
mente os braços na tribuna. O ditador da poesia é o frio p o e t a g u i l h o t i n a d o , ao q u a l d e f e n d e u n o Discours sur la
poeta descritivo Fontanes (° 2 ), pouco sensível às emoções calomnie. A s tragédias de M. J. Chénier são voltairianias;
humanas, mas homem de grande dignidade pessoal. O apenas, a alusão "filosófica" é substituída pela alusão po-
género específico da literatura jacobina é a oratória ( D 3 ), lítica. Não faltam vigor de expressão e coragem d e atitude
contra os t e r r o r i s t a s :
49) Anne-Claude-Philippe, comte de Caylus, 1692-1765. " D e s l o i s et n o n d u s a n g : n e s o u i l l e z p a s v o s m a i n s ! "
Recueil d'antiquités égyptiennes, étrusques, grecques, romainea et
gauloises (1752/1767); Tableaux d'Homère et de Virgile (1757).
S. Rocheblave: Essai sur le comte de Caylus. Paris, 1887.
50) Jean-Jacques Barthélemy, 1716-1795. 54) Camille Desmoulins, 1760-1794.
Voyage du jeune Anacharsis en Grèce vers le milieu du IVe Le Vieux Cordelier (dezembro de 1793 até fevereiro de 1794).
siècle avant 1'ère vulgaire (1788). Edição do Vieux Cordelier por A. Mathiez, Paris, 1936.
M. Badolle: Uabbé Barthélemy et Vhellénisme en France dans J. Claretie: Camille Desmoulins. Paris, 1908.
la deuxième moitié du XVIIIe siècle. Paris, 1927. 65) H. Welscbinger: Le théátre de la Révolution. Paris, 1881.
61) M. Albert: La littérature française sous la Révolution, 1'Empire
et la Restauration. 1789/1830. Paris, 1891. 66) Marie-Joseph de Chénier, 1764-1811.
Charles IX (1789): Caius Gracchus (1792); Timoléon (1794);
52) Cf. "O Neobarroco como Base", nota 31. Tibère (public. 1819; repres. 1844).
53) A. Aulard: Les orateurs de la Révolution. 3 vols., Paris, 1905/ A. Liéby: Etude sur le théátre de Marie-Joseph Chénier. Paris,
1907. 1901.
1570 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1571
0T
Menos franco era Nepomucène Lemercier ( ) ; August tempestade furiosa da sua época, de que êle era a expressão
Wilhelm Schlegel saudou-lhe o Agamemnon como reno- mais perfeita. À primeira vista, não parece assim: o clas-
vação da tragédia francesa — mas Lemercier só pilhara, e sicismo de Alfieri é retórico, seco, criando tipos sem vida,,
com prudência, Shakespeare, que conheceu através das estátuas que andam, movidas por paixões artificiais, última
traduções e versões de Le Tourneur e Ducis. A sua obra decadência da tragédia francesa. Pelo esquema, as suas
realmente original é a "comédia histórica" Pinto, anteci- tragédias não se distinguem muito dos melodramas de Me-
pação da dramaturgia de Scribe, explicando acontecimentos tastásio; e assim com os espectadores do grande libretista,
históricos por pequenas intrigas pessoais. Lemercier já Alfieri também é um aristocrata decadente e neurastênico
mão é um jacobino e sim um burguês do Empire. em vésperas da Revolução. Na verdade, a inegável neu-
O teatro jacobino não tem muito valor nem é indepen- rastenia de Alfieri é a sua força; agitou uma vida que
dente. Soube aproveitar-se de várias lições estrangeiras, parecia destinada a encharcar-se no vício. Durante quase
sobretudo do teatro "pré-jacobino" de Alfieri, com o qual trinta anos, o aristocrata piemontês levou a vida fútil dos
Marie-Joseph de Chénier tem mais do que um ponto de seus companheiros de classe do rococó, até que em 1775,
contato ( 5 8 ). uma espécie de revelação ou conversão repentina o escla-
Alfieri ( 50 ) realizou o que aqueles escritores jacobinos receu sobre 'Tozio mio stupido". Até aquela data só tinha»
tentaram em vão: eternizou em grande estilo clássico a falado francês; aprendeu, então 'Tidioma gentil", leu o s
antigos, e, como êle mesmo diz, "entre muitas lágrimas",,
características do sentimentalismo do século, e escreveu
57) Nepomucène Lemercier, 1771-1840. sua primeira tragédia. Conheceu a condessa Luísa Albany,
Agamemnon (1797); Pinto (1800). que fora amante do último rebento da casa Stuart; levou
O. Vauthier: Essai sur la vie et sur les oeuvres de Nepomucène
Lemercier. Paris, 1886. com ela uma vida meio de grande senhor, meio de vaga-
58) O. Tognozzi: Alfieri e Marie-Joseph Chénier. Pistoia, 1906. bundo; escapou em Paris ao terrorismo da Revolução que
59) Vittorio Alfieri, 1749-1803. tinha saudado; passou os últimos anos em Florença, evi-
Cleópatra (1775); Tragedie (edit. Didot, 1787/1789; Filippo, 1783; tando os homens, olhando só para os grandes monumentos
Polinice; Antigone; Virgínia, 1777; Agammemnone, 1776; Oreste,
1777; Rosmunda; Ottavia, 1779); Timoleone, 1780; Merope, 1782; do passado, sonhando com associar-se a Dante e Petrarca,
Maria Stuarda; La Congiura de" Pazzi; Saul, 1782; Sofonisba,
1787; Mirra, 1784; Bruto primo, 1787; Bruto secondo, 1788);
Alceste (1798).
Comédias: UUno (1800); I Pochi (1801); / Troppi (1802); L'An- P. Gobetti: La filosofia politica di Vittorio Alfieri. Torino, 1923".
tidoto (1803); II Divorzio (1803); La Finestrina (1803). A. Momigliano: Mirra. Firenze, 1923. •
Poesia: Etruria vendicata (1784); Satire (1792/1797); Misogallo U. Calosso: Uanarchia di Vittorio Alfieri. Bari, 1924. (2* ed.,
(1799); Rime (1803). 1949).
Prosa: Del príncipe e delle lettere (1795); Delia Tirannide (1801); N. Busetti: La vita c le opere di Vittorio Alfieri. Llvorno, 1924.
Viia di Vittorio Alfieri da Asti scritta da esso (1804). A. Momigliano: Saul. Catania, 1925.
Edição das obras completas (reimpressão da edição de Pisa, 1805/ L. Vincentl: "Alfieri e lo Sturm und Drang". (In: Festgabe Juer
1815), 11 vols, Torino, 1903. Karl Vossler. Muenchen, 1932.)
Edição das tragédias por R. Dusl, Torino, 1926; Edição das comé- B. Croce: "Alfieri". (In: Poesia e non poesia, 2." ed. Bari, 1936.)
dias por F. Magginl, Firenze, 1928. M. Fubini: Vittorio Alfieri. II pensiero, la tragedia. Firenze, 1937.
Edição da Vita por F. Maggini, Firenze, 1927; Edição das Rime R. Ramat: Alfieri tragico-lirico. Firenze, 1940.
por M. Scherilio, Milano, 1917. G. Natali: Vittorio Alfieri. Roma, 1949.
E. Bertana: Vittorio Alfieri, studiato nel pensiero, nella vita e G. A. Levi: Vittorio Alfieri. Firenze, 1950.
nell' arte. 2.» ed. Torino, 1904. C. Cappuccio: La critica alfieriana. Firenze, 1951,
1572 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1573

Ariosto e Tasso como o quinto grande poeta da Itália e colorido local e histórico, ausência das banalidades amo-
seu primeiro trágico; e foi sepultado no Panteão nacional rosas, rapidez quase precipitada da ação. Dentro desse
de Santa Croce; ali ficou lembrado pelo epitáfio que êle sistema, a sua técnica é magistral. A sua Merope é superior
mesmo compusera: "Optimis perpaucis acceptus, nemini à Merope, de Voltaire; a sua Virgínia é superior a todas
nisi fortasse sibimet ipsi despectus." E i s o homem que as numerosas versões do assunto; a sua Mirra é um pen-
se nos apresenta na Vita di Vittorio Alfierí da Asti scritta dant digno de Phèdre. Seu Oreste é o que, no teatro mo-
da esso, uma das maiores autobiografias de todos os tempos derno, mais se aproxima do grego. Em Agamemnone há
e a maior das suas obras. Uma grande alma viril entre cenas de vigor shakespeariano; e Timoleone é o cume do
as máscaras do Rococó. "teatro jacobino". Quando são lidos parecem frios; no
Um grande homem, mas não um igualmente grande palco, ardem de paixão. "Scrivere tragedie vuol dir essere
poeta. Orgulhava-se da dureza intencional dos seus versos — appassionato e bollente." A sua retórica retumbante mas
lacónica até o mínimo possível de palavras é expressão de
"son duri, d u r i . . . uma paixão violenta; às vezes, os seus personagens parecem
estar com vontade de se dilacerar um ao outro. São, todos
Non son cantati,
eles, retrato do autor —
Stentati, o s c u r i . . .
Saran pensati."
"Irato sempre, e non maligno mai;
Após dois séculos de música doce pretendeu ensinar à La mente e il cor meço in perpetua lite."
i
língua italiana a pensar e agir. Sem dúvida, naquela dureza
havia incapacidade involuntária de cantar. Alfieri é o único O próprio Alfieri é o maior dos seus personagens trágicos.
poeta notável da literatura universal que precisava aprender É um individualista furioso, com o desejo violento de
a poetar, que se forçou a poetar. Só é poeta espontâneo não ver ninguém acima de si, um inimigo mortal dos
nos sonetos, expressões imediatas da sua grande alma; "tiranos" —
muitas vezes, são auto-retratos ou instantâneos dos seus
estados de alma, muito variáveis: " . . . In trono
Trema chi fa tremar"
"Sperar, temere, rimembrar, d o l e r s i . . . "
— de todas as tiranias, seja a dos reis, seja a outra tirania,
É raro o uso do soneto para confissões assim, e, por isso, a da multidão que êle denunciou, enfim, em sátiras tre-
é tanto mais espantosa a arquitetura magistral dos sonetos mendas contra a Revolução Francesa. J á se notou que o
personalíssimos de Alfieri. Evidentemente, aquele classi- autor de Delia tirannide tratou os tiranos nas suas tragédias
cismo que parece seco, lhe era indispensável para desci- com simpatia secreta; no fundo, êle mesmo era um tirano
plinar sua alma apaixonada. Por isso, Alfieri acreditava nato, um anarquista, possesso de paixões demoníacas, re-
ter inventado o seu sistema dramatúrgico que, na verdade, bentando contra quem podia limitar-lhe a "liberdade" que
pouco se distingue do sistema de Voltaire: concentração só a sua situação histórica o fêz confundir com revolução
máxima do diálogo, falta (típica do século X V I I I ) de e patriotismo italiano. Não teria aguentado regime nenhum.
1574 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1575

Por isso, era um homem melancólico e desesperado, tal Personagem alfieriano é Napoleão Bonaparte ( 8 0 ), jacobino
como se retratou nos versos do Saul, sua maior tragédia, insubordinado, general da República, primeiro cônsul, e,
inspirada pela dramaturgia de Shakespeare e pelos versos enfim, imperador dos franceses. Lanson notou o grande
ossiânicos de Cesarotti. estilo, classicista e pessoal, das suas proclamações e dis-
Alfieri parece classicista, porque foi italiano. Na ver- cursos, a força epigramática das suas metáforas, as reminis-
dade, é o maior poeta do "Sturm und Drang", inibido pelas cências de leituras latinas. Não consta que Napoleão tenha
conhecido Alfieri; as suas leituras preferidas eram Plu-
tradições clássicas da língua neolatina. Parece-se muito
tarco, César e o Werther; no teatro, gostava de Corneille,
com Schiller, com quem se encontrou em dois assuntos,
cujas tragédias o grande ator clássico Talma lhe represen-
Filippo e Maria Stuarda. A sua atitude política é, porém,
tava de tal modo que devem ter parecido tragédias do poeta
mais nítida do que a do conformista alemão. Nas suas
que prefirira aqueles mesmos livros: Alfieri. Assim como
Satire aparece uma classe que êle odeia-mais ainda do que
este, Napoleão também não era propriamente poeta, mas
os "reis" e "tiranos": a "Sesqui-Plebe" dos advogados,
grande escritor porque era grande homem. De fora da
comerciantes e escribas; a classe média. Odeia o absolu-
literatura, dominava a literatura do seu tempo, como domi-
tismo dos reis católicos, a tirania prussiana, a tirania jaco-
nava exércitos, países e nações.
bina, e simpatiza só com a Inglaterra aristocrática. Não é
burguês, de modo algum, e por isso o seu classicismo é Aos escritores do tempo de Napoleão custou muito
falso. Os contemporâneos consideravam-no, deveriam con- acompanhar-lhe o caminho tortuoso de jacobino, general,
siderá-lo jacobino. Os críticos do século X I X admiravam- cônsul, imperador. Caracteres mais fortes escaparam-lhe,
no como profeta da Itália unificada, monárquica e consti- fazendo oposição; e, como se fosse consequência inelutável
tucional, assim como êle mesmo se apresentou como profeta da atitude oposicionista, Chateaubriand e madame de Staèl
de dias melhores da pátria então humilhada: abandonaram o classicismo, tornando-se românticos. Fiéis
ao "grande estilo" só podiam ficar os conformistas e opor-
tunistas, como Bilderdijk ( 6 1 ), que os holandeses conside-
"Gli odo gia dirmi: o vate nostro, in pravi ravam, durante o século X I X , o seu maior poeta depois de
Secoli nato, eppur create hai queste
Sublimi età, que profetando andavi."
80) Napoléon Bonaparte, 1769-1821.
Edição das obras literárias por T. Martel, 4 vols., Paris, 1888;
Patriotismo sincero, mas tão ilusório como o seu democra- Edição das proclamações e discursos políticos por Q. Barrai,
tismo — atitudes falsas que estragaram a obra do grande Paris, 1806.
A. Guillois: Napoléon, Vhomme, le politique, Vorateur. 2 vols.
individualista. Não fica m u i t o : Saul, um grupo de sonetos, Paris. 1889.
e sobretudo a Vita. Alfieri só exprimiu, apresentou e G. Lanson: Histoire de la littérature française (Qmc partie,
livre I, chap. I I ) . 12." ed. Paris, 1912.
profetizou a sua própria pessoa. Não é poeta pelo génio N. Tomiche: Napoléon écrivain. Paris, 1952.
poético, nem sequer pelo talento poético. É poeta autêntico, 61) Willem Bilderdijk, 1758-1831.
porque foi um grande homem. Bloemtjes (1785); Buitenlevcn (1800/1802); De Mensch (1804/
1805; versão livre do Essay on Man, de Pope); Oebed (1806);
O personagem ideal de Alfieri não é o jacobino tira- Ode aan Napoléon' (1806); Willem van Holland (1803); Floris V
(1808); De ziekte der Geleerden (1809) ; De Kunst der Poezie
nicida, mas o grande indivíduo; mesmo que fosse tirano. (1809); De Ondergang der eerste Wereld (1810); De Geestenioe-
1576 OTTO MARIA CABPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1577

Vondel; até hoje o apreciam muito os círculos calvinistas do Rococó, poesias que parecem anacreônticas, mas que,
da sua pátria. Com efeito, Bilderdijk possuiu o dominio na verdade, são ovidianas; Savioli traduzira mesmo Ovídio.
absoluto da língua. Soube insuflar certo lirismo a um Por mais estranho que pareça, Ovídio, o poeta mais querido
poema didático à maneira de Pope, De Ziekte der Geleer- entre os latinos, durante tantos séculos, estava meio esque-
den; também soube fazer poesia anacreôntica; as suas cido no século X V I I I . Savioli lembrou-se do erótico latino,
canções religiosas revelam emoção sincera, se bem que em porque êle, como toda a sua época, tinha perdido a fé em
linguagem retórica. A sua ode a Napoleão, conquistador da tudo menos n o prazer; é um poeta puramente pagão, e isso
Holanda, é mesmo uma obra-prima do grande estilo; mas sem afetação; por essa razão mesma é poeta autêntico. O
não é sincera. Bilderdijk mostrou coragem cívica só depois, neopaganismo de Savioli é o sinal do aparecimento do
como lutador reacionaríssimo contra o liberalismo e a demo- neoclassicismo na literatura italiana; mas o resultado psi-
cracia do seu tempo. Na verdade, era um egoísta e comodis- cológico foi apenas certa falta de resistência contra influên-
ta, oportunista e hipócrita, ortodoxo intolerante e libertino cias e imposições alheias. O primeiro impacto veio do
devasso, leitor confuso de mil livros, classicista à maneira ossianismo de Cesarotti, tornando a língua clássica capaz
de Pope pelo hábito e, acompanhando a moda, meio român- da expressão de meio-tons e nuanças. Depois veio o impacto
tico à maneira de Ossian. A mistura deu, às vezes, certo: da Revolução Francesa, produzindo uma literatura jacobina
no poema bíblico De Ondergang der eerste Wereld (O em língua italiana ( 0 3 ). Poucos são os que resistem: entre
Fim do Primeiro Mundo) há algo de Milton; e nas poesias estes, significativamente, se encontram os liberais pré-re-
religiosas há algo de Wordsworth. A literatura holandesa volucionários que adotam, contra o classicismo dos jacobi-
moderna devia condenar este último classicista e romântico nos, o estilo pré-romântico, como Alessandro Verri ( 03 * A ),
malogrado pelo conformismo e a intolerância. O mesmo o irmão do liberal Pietro V e r r i ; em uma espécie de medi-
destino de "ser o último" foi, em outro pólo da literatura tação dialogada em prosa, Le notti romane ai sepolcro degli
europeia, o de Monti; com a diferença de que o enobreceu Scipioni usou expressões de Young para defender um vago
a grande tradição da literatura italiana, na qual ele foi o patriotismo romano-italiano. Monti partirá de atitude se-
último representante do estilo antigo. melhante. Com tudo mais, o classicismo jacobino conquistou
as novas repúblicas, criadas pelos franceses: a República
O começo desse fim encontra-se nas poesias eróticas
Cisalpina, na Lombardia, a República Cispadana, na Ro-
de Ludovico Savioli (° 2 ), encantadoras miniaturas ao gosto
mana, a República Partenopeia, em Nápoles. Testemunha
desses tempos agitados é Carlos Botta (° 4 ), jacobino, depois
reld (1811); Uitvaard (1811); Hollands Verlossinç (1813/1814);
Boetzang (1826).
Edição por J. Van Vloten, 4 vols., Haarlem, 1884. 63) P. Hazard: La révolution française et les lettres italiennes. Paris,
H. Bavinck: Bilderdijk ais denker en dichter. Haarlem, 1906. 1910.
O. Van Elring: Willem Bilderdijk, een dichterstudiè. Haag, 1908. 63 A) Alessandro Verri, 1741-1816.
W. Kloos: Bilderdijk. Bloemlezing met inleiding. Amsterdam, Le notti romane ai sepolcro degli Scipioni (1792).
1909. A. Leprieri: Studio biográfico critico su Alessandro Verri e le
62) Ludovico Savioli, 1729-1804. "Notti romane". Milano, 1900.
Amori (1765). 64) Cario Botta, 1766-1838.
Edição em: G. Carducci: Poeti erotici dei secolo XVIII. Flrenze. Storia delia guerra delVindipendcnza degli Statl Uniti d'America
1868. (1809); Storia d'Italia dal 1789 ai 1814 (1822); — Camillo (1816).
A. Baccolini: Vita e opere di Ludovico Savioli. Bologna, 1922. C. Pavesio: Cario Botta e le sue opere istoriche. Flrenze, 1874.
2578 OTTO MARIA CABPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1579

partidário de Napoleão, autor de u m poema classicista niosos, nunca profundo, sempre brilhante, aberto a todas
Camilío; e, sobretudo, historiador da Itália jacobina em as influências tradicionais e estrangeiras, sem revelar ja-
estilo clássico, eloquente e conciso, grave, sereno e, por mais a sua alma, talvez porque não a tivesse. Não cantou
vezes, ligeiramente irónico. As tragédias de Alfieri, até para exprimir-se, mas para encantar os outros. Nesse obje-
então pouco conhecidas e quase nunca representadas (per- tivismo reside, não obstante as reminiscências de Shakes-
paucis acceptus), revelaram, naquele tempo a sua eficiência peare e Ossian, a sua qualidade essencial de classicista
revolucionária, constituindo a pièce de iésistance do teatro anti-romântico e, também, a sua semelhança com Metastá-
jacobino; e Botta descreve-lhes o sucesso popular: " E m sio, enfeitador de festas aristocráticas. Monti enfeitou
Nápoles, durante a época da República Partenopéia, as festas aristocráticas, eclesiásticas, revolucionárias, impe-
tragédias de Alfieri foram representadas em presença de riais, austríacas, tudo com a mesma facilidade — e isso
uma multidão enorme, e de vez em quando levantaram-se importa — com a mesma sinceridade ingénua. Era con-
oradores, interrompendo os atôres e dizendo: — Notai, ci- formista por índole, e as suas obras só se compreendem
dadãos, que esse caso é o nosso caso, seja o do Bruto ou tomando-se o ano da publicação como critério. Os Versi
da Virginia ou do Timoleão. Todos aplaudiram, e os atôres de 1783 são pré-revolucionários; imitam Ovídio e Savioli,
continuaram, até se levantar outro orador, exigindo a morte embora não faltem reminiscências do então "moderníssimo"
de todos os tiranos. Os gritos dos napolitanos subiram até Young. A ode Al signor di Montgolfier, celebrando o pri-
o céu." meiro vôo de balão, lembra os "vers antiques sur des pensars
O Marie-Joseph Chénier dos jacobinos italianos foi noveaux", de Chénier, mas a Monti não importam os pen-
Giovanni Pindemonte ( eB ), irmão do pré-romântico Ippolito samentos, e sim os versos. Aristodemo, tragédia classicista,
Pindemonte, autor de grandes odes, de atitude profética, era nova pela doce melancolia que o poeta aprendera no
à República Cisalpina e sobre as vítimas da derrota da Re- Ossian de Cesarotti. A Revolução Francesa ameaça, tam-
pública Partenopéia; Pindemonte também foi dramaturgo, bém na Itália, a vida aristocrático-literária que é o mundo
em estilo mais de Voltaire do que de Alfieri. de Monti. Em Roma, o povo fanatizado assassinou o agente
A obra poética de Vincenzo Monti ( c c ) é de uma
abundância perturbadora. Durante 50 anos soube cantar
os assuntos mais diferentes, em versos dos mais harmo- Mascheroni (Mascheroniana, 1802); II Beneficio (1805); II Bardo
delia Selva nera (1806); La spada di Federico II (1806); Palin-
genesi politica (1809); tradução da Ilíada (1810); Sermone sulla
mitologia (1825); Pel giorno onomástico delia sua donna (1826);
65) Giovanni Pindemonte, 1751-1812. Feroniade (1828); etc, etc.
/ Baccanali (1788); La Republica Cisalpina (1797); Adelina e Edição das obras completas por O. Carduccl, 6 vote., Firenze,
Roberto (1807). 1862/1869.
01. Puglisi: Giovanni Pindemonte nelle lettere e nella storia dei Edições dos poemas, poesias e tragédias por N. Vaccalluzzo, To-
suo tempo. Milano, 1905. rino, 1927, e por O. Natali, Palermo, 1828.
A. Scandola: Giovanni Pindemonte. Pola, 1927. C. Steiner: La vita e le opere dl Vincenzo Monti. Ltvorno, 1915.
66) Vincenzo Monti. 1754-1828. E. Bevilacqua: Vincenzo Monti. Firenze, 1928.
Prosopopea di Pericle (1779); Ver si (1783); Al signor dl Mont- V. Cian: Vincenzo Monti. Pavia, 1928.
golfier (1784); Aristodemo (1786); Versi (1787), In morte di Vgo F. Allodoli: Monti. Milano. 1929.
Bassville Wassvilliana, 1793); Musogonia (1793); Prometeo (1797); B. Croce: "Monti". (In: Poesia e non poesia. 2.» ed. Bari, 1936.)
Per il congresso di Udine (1797); Versi (1799); Cofo Gracco L. Fontana: Vincenzo Monti, prosatore e retore. Oenova, 1943.
(1800); Per la liberazione d'Italía (1801); In morte di Lorenzo L. Fontana: Vincenzo Monti, verseggiatore e poeta. Génova, 1948.
1580 OTTO MARIA CAHPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1581

francês Bassville, e logo Monti inventa, na Bassvilliana, tinha sacrificado mais de uma vez. É um poema sincero
os remorsos póstumos do revolucionário; à alma arrepen- e belo, este em que a melancolia ossiânica chora a morte
dida do assassinado, o poeta apresenta, em grandes quadros das criaturas divinas do céu grego. É o canto fúnebre de
dantescos, os horrores do terrorismo, a morte de Luís X V I um mundo que já desaparecera.
no patíbulo e a reação das forças divinas e monárquicas. Monti, dotado de uma habilidade eclética sem par, sa-
E imitou a linguagem grave de Dante com tanta habilidade bia dizer tudo em versos italianos. A sua tradução da Ilíada
que a Bassvilliana se tornou o seu poema mais belo e um não é uma modernização como a de Pope, nem uma ro-
dos mais belos da literatura italiana. Mas Monti não era mantização como a de Cowper, e é mais latina do que a
medievalista; sentiu com instinto infalível o trend do fu- de Voss; o
t u r o : quase ao mesmo tempo imitou, na Musogonia, o
Progress of Poesy, de Gray, profetizando uma nova era. " . . . cantor di Bassville,
Esta veio com a invasão da Itália pelo general republicano cantor, che di care itale note
Napoleão Bonaparte — e Monti lhe dedicou o Prometeo, vesti l'ira d ' A c h i l l e . . . "
celebrando-o como vencedor luminoso sobre reis tirânicos
e monges obscurantistas. Foi para Paris. Lá, escreveu a pretendeu demonstrar o caráter greco-romano da sua lín-
tragédia Caio Gracco, acompanhando de perto o Caius gua. Incorporou à literatura italiana todos os estilos e
Gracchus, de M. J. Chénier, mas inserindo imponentes todos os sentimentos novos, transformando t u d o em deco-
cenas de massas, ao gosto de Shakespeare. Depois da ba- ração suntuosa e, no entanto, harmoniosa. E m todos os
talha de Marengo, Monti festejou a Liberazione d'Itália; disfarces estilísticos e ideológicos, é sempre o artista do
e a Mascheroniana, dedicada aos manes de um amigo e Empire, o mais autêntico dos neoclassicistas. A sua poesia
grande matemático, canta os heróis e os benefícios da paz, é menos fruto de experiências que de leituras e impressões
lembrando o Windsor Forest, de Pope, mas com quadros alheias, é poesia de segunda mão; mas a forma é sempre
descritivos e bucólicos à maneira do "Cinquecento" ita- sua, a forma é t u d o : o conteúdo e o endereço não importam,
liano — a Mascheroniana é a obra mais perfeita de Monti. as vacilações políticas de Monti não têm significação al-
No 11 Bardo delia Selva nera sacrifica à moda da poesia guma. Nada ou pouco de emoção pessoal, mas grande arte,
bárdica, para glorificar as vitórias de Nepoleão na Ale-
manha "nórdica"; enfim, na Palingenesia politica, dedicada
"Di gentil poesia fonte perenne."
a Eugène Beauharnais, vice-rei da Itália, Monti conseguiu
a maravilha de se declarar, ao mesmo tempo, partidário
de Napoleão e patriota italiano. Vieram os anos da Res- Pela indiferença de formalista poético, Monti ainda se
tauração monárquica, e então, submetendo-se de novo aos aproxima de Metastásio; neste também já havia alguns
poderes reestabelecidos, Monti revelou, pela primeira vez, elementos pré-românticos, os que Monti empregou com
independência corajosa, resistindo ao romantismo vitorioso, maior liberdade e com a mesma incompreensão. No fundo,
permanecendo fiel ao classicismo. No Sermone sulla mito- a realidade política que o inspirou constantemente, signi-
logia defendeu os deuses olímpicos, as ninfas e os faunos, ficou, para êle, bem pouco. A sua verdadeira pátria era o
contra as divindades bárbaras do Norte, às quais êle mesmo reino das divindades olímpicas, que defendeu, por isso,
com tanta emoção anacrónica, em pleno romantismo:
1582 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1583

"Audace scuola boreal, dannando revela conhecimento de Parini, e o seu poema An friso a
T u t t i a morte gli dei, che di leggiadre Belisa inspirou-se na canzonetta La Liberta, de Metastásio.
Fantasie già fiorir le carte argive Os melodramas de Metastásio foram importados, na Espa-
E le latine, di spaventi ha pieno nha, pelo famoso cantor Cario Farinelli, e gozaram, da
Delle Muse il bel r e g n o . . . " parte do público espanhol do século X V I I I , o favor de
mais de 50 edições. A ternura de Metastásio substituiu aos
Monti sabia que a mitologia poética era o último meio de espanhóis o sentimentalismo pré-romântico; e Metastásio
comunicação supra-nacional entre os poetas de tantas lín- era árcade. A Arcádia espanhola nasceu já contaminada
guas europeias; a mesma alusão mitológica era entendida pelo germe do pré-romantismo. O sinal da influência me-
imediatamente e da mesma maneira em Lisboa e Estocolmo, tastasiana é o uso da sua forma métrica, da octavilla ( 0 8 ) ;
em Londres e Petersburgo, em Paris, Milão e Berlim. Com e esse metro aparece primeiro em Meléndez Valdês, que
a expulsão definitiva dos deuses olímpicos pelos bárbaros é algo como um Monti espanhol.
do romantismo, acabou a última comunhão internacional Meléndez Valdês ( 00 ) foi, sem dúvida, uma natureza
da literatura europeia. Monti, como último mitólogo entre profundamente poética. Sua poesia é delicada, pálida, nuan-
os poetas, ainda pertence ao Ancien Regime; mas repre- çada, quase sempre em tom menor; admirável decerto, mas
senta também a grande união europeia que era o Empire sem nos transmitir o porquê do enorme prestígio de que
de Napoleão. Depois, os burgueses tiveram que criar os gozou. Talvez o motivo tenha sido a versatilidade do poeta.
novos Estados nacionais, adotando o nacionalismo que a Por um lado, é um árcade, cantor anacreôntico, às vezes
Revolução lhes ensinara. Eis a tarefa do "classicismo pré- até um pouco obsceno, como em Los besos de Amor. Poe-
romântico", quer dizer, do classicismo revolucionário e sias bucólicas, horacianas, e sonetos revelam a mestria de
nacional, se bem que revolucionário e nacional apenas na forma de um classicista em tom menor. Por outro lado, é
literatura. até um "classicista da Ilustração", festejando em odes pom-
posas os progressos da humanidade, como em La Gloria de
Os primeiros elementos pré-românticos dentro do clas-
las Artes. Dentro desses estilos século X V I I I , causam
sicismo ancien regime já apareceram em Metastásio, e as
surpresa as poesias religiosas, profundamente sentidas, das
primeiras reações se manifestaram na Espanha. No século
X V I I I , assim como no século XVI, a literatura espanhola
sofreu fortes influências italianas ( 6 7 ). Luzán deve a sua
relativa liberdade a respeito de Boileau às leituras de 68) A. Coester: "Influences of the Lyrlc Drama of Metastásio on the
Spanish Romantic Movemenf (In: Hispanic Review, VI, 1938.)
Muratori e Gravina, que inspiraram, por outro lado, as
69) Juan Meléndez Valdês, 1754-1817.
heresias estéticas do padre Feijóo. Chiabrera e Filicaja, Poesias (1820).
assim como Petrarca e Tasso, são lidos e imitados pelos Edições: Biblioteca de Autores Espafioles. vol. LXVIII, e por P.
Salinas (Clásicos Castellanos, vol. LXIV»
dois Fernández de Moratín, Nicolás e Leandro, e os seus E. Mérimée: "Meléndez Valdês". (In: Revue Hispanique, I, 1894.)
amigos. A atitude de Jovellanos em face da aristocracia P. Salinas: Prólogo da edição citada.
A. González Palencia: Meléndez Valdês y la literatura de cordel.
Madrid. 1931.
W. E. Colford: Jxlan Meléndez Valdês. A Study in the Transitlon
67) V. Cian: Itália e Spagna nel secolo XVIII. Torino. 1896. from Neo-classicism to Romanticísm in Spanish Poetry. New
A. Farinelll: Itália e Spagna. Vol. n . Torino, 1929. York, 1942.
1584 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATUHA OCIDENTAL 1585

quais a mais famosa é Presencia de Dios; e justamente esta a poesia de Alberto L i s t a ( 7 1 ), quase tão famoso no seu
é versão livre de uma ária, "Dovunque il guardo giro", tempo como pouco antes fora Meléndez Valdês. Lista é
do Oratório Passione di Cristo, de Metastásio. Deste, que ainda menos original; é um mestre de todas as formas
Meléndez Valdês imitou fartamente, lhe vieram o senti- clássicas, quase como Monti, mas com maior profundidade
mentalismo e as finas nuanças musicais que ainda hoje de sentimento, de um sentimento algo mais moderno: cris-
podem encantar e foram devidamente salientados pelo poeta tão, liberal e romântico. Imita Horácio e Virgílio, Fray
moderno Pedro Salnias. Em poesias noturnas, como La Luis de Léon e Rioja; entre os modelos estrangeiros apa-
Noche y la Soledad, não se dissimulam influências da poesia rece até Pope, d o qual traduziu a Dunciad (El Império
pré-romântica, e a Elegia V — de la estupidez), mas principalmente Metastásio. O poeta
Lista é um classicista d i g n o ; o homem Liata é um padre
de ideias liberais e cultura europeia. Bapronceda e vários
"Luna! piadosa luna! cuánto peno.
outros românticos foram seus discípulos, Êle mesmo, po-
No, jamás otro en tu carrera viste
rém, atacou o romantismo nas conferências do Ateneo, em
A otro infeliz, cual yo, de angustias lleno."
1835 e 1838. Continuou fiel ao claasicismo, embora per-
tencesse à ala pré-romântica.
— revela claramente leituras de Young, que o poeta, aliás,
confessou. Acrescentam-se influências de Rousseau, trans- O neoclassicismo pré-romântico — a própria expressão
formando-se Meléndez Valdês, o autor da famosa Elegia *é contraditória — pretende conservar um equilíbrio que é
de las miséria humanas, em cantor da filantropia chorosa: bastante precário. Talvez por isso mesmo tivesse encon-
trado a sua expressão mais perfeita não em palavras, cujas
" E l dano universal mi propia pena significações racionais sempre ameaçam aquele equilíbrio,
Me hizo, luna, olvidar; miro a mi hermano." mas na arte mais vaga, mais irracional dos Sons: na música
dramática de Gluck ( 7 2 ). O ponto de partida do grande
compositor alemão foi, mais uma vez, Metastásio, do qual
Meléndez Valdês conserva, no entanto, a dignidídade esti-
lística do classicismo; era "afrancesado", partidário de
Napoleão, e morreu exilado na França. 71) Alberto Lista, 1775-1848.
Poesias (1822. 1837).
O aburguesamento do classicismo espanhol pelas in- Edição: Biblioteca cie Autores Espaftoles. vol. LXVII.
M. Chaves: Don Alberto Lista. Sevilla, 1912.
fluências pré-românticas continua em Reinoso (™), cujo H. Juretschke: Vida, obra y pensamiento de-Alberto Lista. Madrid,
forte poema, La innocencia perdida, se parece com o Pa- 1951.
radise Lost, de Milton — guardando-se as dimensões — 72) Christoph Willibald von Gluck, 1714-1787.
Ranierl dei Calsabigí, 1715-1795.
não apenas pelo assunto, mas também pelo sentimento óperas de Gluck com libretos de Caleabigl: Orfeo ed Euridice
moderno em forma clássica. A s mesmas palavras definiram (1762); Alceste (1767); Paride ed Elena (1769),
óperas de Gluck com libretos de outron: Iphioánie en Aulide
(versão de Racine por Le Blanc du Roullet, 1774); Armide
(Quinault, 1777); Iphigénle en Tauride (Nlcolas François Guil-
lard, 1779).
70) Félix José Reinoso, 1772-1841. Sobre Gluck:
La inocência perdida (1799; publ. 1804). A. B. Marx: Gluck und die Oper. 2 vols. Leipzig, 1863.
Ediç&o por A. Martin Villa (com prólogo biográfico), Sevilla, 1872. E. Newman: Gluck and ttie Opera. London, 189B.
1586 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1587

compôs vários melodramas, sempre à maneira dos maestros versão metrificada 1787), de Goethe. A fase parisiense
italianos, até encontrar, em Viena, o homem que pensava, de Gluck enquadra-se estilisticamente no movimento gre-
como êle mesmo, em uma reforma d a ópera: o italiano cista de Caylus e Barthélemy. Em Paris não obterá im-
Calsabigi. O intuito era a purificação da ópera, o re- portância o teatro "romano" à maneira de Alfieri; mas
trocesso às fontes, caminho do Rococó à tragédia grega. surgirá uma poesia grega, à maneira de André Chénier.
E logo na primeira ópera de Gluck e Calsabigi, Orfeo ed A s poesias de André Chénier ( 7:i ) foram publicadas
Euridice, deu-se como resultado a união de nobres linhas em 1819, quer dizer vinte e cinco anos depois da sua morte
clássicas com emoções românticas. Alceste está, talvez, mais e um ano antes de Lamartine iniciar a série de volumes de
perto do classicismo sentimental do Hainbund. É signi- poesia romântica francesa. Chénier deveria ter parecido, en-
ficativo o fato de ter Gluck feito também a música para tão, anacrónico; mas foi logo saudado como o precursor do
odes de Klopstock. Depois, em Paris, trabalhou com fracos romantismo. Descobriram-se nas suas poesias certas qua-
imitadores de Racine; e conseguiu, no entanto, em Iphi- lidades românticas — o enjambement frequente, o adjetivo
génie en Aulide e Iphigénie en Tauride, a vitória do neo- "pitoresco"; mas, antes de tudo, parecia "romântica" a
classicismo mais nobre sobre a hostilidade de falsos clas- sua vida e a sua m o r t e : o poeta, encarcerado na prisão
sicistas da espécie de L a Harpe e Marmontel. Mas é digno de St. Lazaire, escrevendo os últimos versos na noite an-
de nota que Rousseau e Suard, o tradutor de Ossian, o terior à execução na guilhotina; e morrera tão jovem como
apoiassem. A obra de Gluck, à qual os historiadores da é o monopólio dos poetas românticos. Fizeram dele um
literatura, em geral, nem sequer aludem, teve as mais im- Chatterton francês. A posteridade melhor esclarecida pre-
portantes repercussões literárias. Nas casas de ópera euro- feriu compará-lo aos "novos gregos", Hoelderlin e Keats.
peias, as obras de Gluck não gozam, hoje, de grande po- Os últimos fanáticos do classicismo, porém, não lhe admi-
pularidade, com exceção talvez de Paris, onde continuam tiram nada de grego, dizendo Baour-Lormian aos român-
a constituir a base histórica do repertório; na ópera de ticos:
Gluck sobrevive algo do espírito autêntico da grande tra-
gédia francesa, não de Voltaire, mas de Racine. Para os "Nous, nous datons d'Homère, et vous dVAndré Ché-
alemães, Gluck é o precursor de Wagner, do restabeleci- nier." E este Baour-Lormian havia traduzido Ossian! Con-
mento da tragédia mística em vez do teatro histórico dos
epígonos de Schiller. As repercussões imediatas foram
diferentes. As óperas da fase vienense de Gluck contri- 73) André Chénier, 1762-1794.
Poésies (publicadas por Hyacinthe de Latouche, 1819).
buíram em muitos espíritos, na Alemanha, à transição do Edições por P. Dímoíf, 3 vols., Paris, 1908/1919; por A. Bellessort,
" S t u r m und Drang" para o classicismo de Weimar; existe 2 vois., Paris. 1925; e por H. Clouard, 3 vols., Paris, 1927.
C. - A. Saínte-Beuve: "Chénier". (In: Catiseries du Lundi, vol. IV,
uma relação subterrânea entre Iphigénie en Tauride (1779), e Portraits littéraires, vol. I.)
de Gluck, e Iphigénie auf Tauris (versão em prosa 1779, F. Brunetière: "Classlque ou Romantique". (In: Êtudes critiques
sur 1'hístoire de la littérature française. Vol. VI.)
E. Faguet: André Chénier. Paris, 1902.
F. Roz: André Chénier. Paris, 1913.
E. Faguet: Histoire de la poésie française. Vol. X. Paris, 1936.
I. d'Udine: Gluck. Paris, 1913. Ch. Maurras: "Chénier": (In: Tableau de la littérature française*
Sobre Calsabigi: de Comeille à Chénier. Paris, 1939.)
G. Lazzeri: La vita e Vopera letteraria di Ranieri dei Calsabigi. G. Walter: André Chénier, son mílieu et son temps. Paris, 1946.
Città di Castello, 1907. E. Herbillon: André Chénier. Paris, 1949.
OTTO MARIA CARPEAUX
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1589

tuilo, tinha razão: Chénier não era dos gregos de Homero, Chénier é u m poeta ambíguo: muito grego e muito
e sim dos gregos de Constantinopla do século X V I I I ; moderno ao mesmo tempo. Dentro dos conceitos e termos
nascera lá, de mãe grega. Raça e formação incompatibili- da crítica francesa, girando em torno da antítese "clássico-
zaram-se, de antemão, com o classicismo à maneira romana: romântico", a discussão sobre a verdadeira qualidade do
« por isso, o grego parecia romântico aos franceses de estilo de Brunetière — "Classique ou Romantique" — não
tradição latina. Chénier era menos romano que Caylus, apresenta uma solução defintiva; e o caráter fragmentário
para não falar de David; era um grego mais autêntico do da obra não contribui para esclarecer a situação de Chénier.
•que o "jeune Anacharsis", do abbé Barthélemy. As suas Era um grego autêntico, mas no mundo grego já decadente;
tradições não eram as do grecismo francês, grecismo ar- e era um homem moderno, no sentido de 1780. A Grécia
queológico. Nota-se o erotismo brutal de várias das suas reflete-se na sua poesia através de uma saudade melan-
Elégies, mas que são ao mesmo tempo pendants da per- cólica que êle aprendera em Young; apenas com a diferença
versidade dissimulada, de gente sexualmente exausta, de de que o "Ronsard encyclopédiste" soube exprimir essa
certos quadros de Boucher e Fragonard. Daí Chénier fugiu melancolia em imagens francesas —
para o mundo idílico das Bucoliques, diferentes do idílio
de salão dos poetas anacreônticos e também diferentes
" ô Versailles, ô bois, ô portiques,
do idílio sentimental de Diderot e Greuze. Escreveu algu-
Marbres vivants, berceaux a n t i q u e s . . . " —
mas falsidades à maneira de Delille. Mas UAveugle, Le
Malade, Le Mendiant, La Liberte lembram menos Paris
do que Paros, as ilhas do mar jónico. Versos como estes — quase antecipando o Verlaine das Fêtes galantes. "Clas-
sicismo pré-romântico" ou "Pré-romantismo classicista"
seria a palavra-chave para resolver o problema daquelas
"Diamant ceint d'azur, Paros, oeil de la Grèce,
discussões intermináveis. Havia algo mais do que isso em
De 1'onde Egée astre éclatant" —
Chénier; o famoso verso que constitui a confissão do seu
pareceram, realmente, de um novo Teócrito; se não hou- "orfismo" pré-romântico —
vesse, também, em Chénier vestígios do racionalismo pouco
idílico dos "philosophes" do século X V I I I . "Saluta, Thrace, ma mère, et la mère d'Orphée..." —

"Sur des pensers nouveaux faisons des vers deixa adivinhar evoluções futuras que o teriam levado
antiques", para junto de Hoelderlin; mas que não chegaram a reali-
zar-se. Interveio a morte, em face da qual Chénier revelou
eis o verso mais citado de Chénier, e os "pensers nouveaux" um estoicismo quase romano; e surpreende o realismo dos
eram os de Buffon, de Condillac, de Holbach. Chénier seus versos satíricos contra os jacobinos — de coragem
era materialista; como admirador de Lucrécio concebeu o e directness inéditas de expressão, empregando até a pa-
plano do poema didático Hermes, e os fragmentos conser- lavra proibida "merde". Outro aspecto, mais grego, dessa
vados lembram a perda do que teria sido uma das maiores directness de Chénier é o estilo de certas Bucoliques,
criações poéticas em língua francesa. Mas teria sido um lembrando as estatuetas realistas da época alexandrina.
poema francês, e não um poema grego. P o r fim Chénier é ainda racionalista, pretende transfi-
ir,<m OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1591

gurar em poesia a ciência de Newton e a técnica da Enci- Berzsenyi algo da magia verbal de Chénier; atrás das
clopédia. Teria sido poeta da burguesia? Não fora da- formas rígidas do classicista aparecem metáforas que só
queles que fizeram a Revolução; não t i n h a nada com a os simbolistas húngaros voltarão a apreciar, um século
pequena-burguesia jacobina. Nem fora da nova burguesia, mais tarde. E m ponto geograficamente oposto situa-se o
fantasiada de trajes gregos, do Diretório, que se aproveitou inglês Thomas Campbell ( 7 5 ). Organizou a antologia Spe-
da Revolução para fazer grandes negociações e negociatas; cimens of the British Poets, o grande repositório da poesia
então, o poeta já estava morto. Chénier estava tão fora classicista dos tempos de Pope e Gray; e no mesmo estilo
da política de 1794 como da literatura de 1794; é mais escreveu as canções patrióticas que lhe imortalizaram o
anacrónico do que se pensa. O seu verdadeiro lugar seria nome: Ye Mariners of England que os meninos ingleses
entre os tardios classicistas ingleses, burgueses cultos da sabem de cor; Hohenlinden, celebrando uma batalha vito-
época vitoriana, humanistas com uma saudade sincera da riosa sobre os franceses; e Battle oí the Baltic, sobre o
Grécia no coração. A Grécia de Chénier é como a Pérsia bombardeio pouco glorioso de Copenhague, pela esquadra
de Fitzgerald, que também era descrente. Classicismo é inglesa. Mas em Hohenlinden —
uma atitude burguesa; e o classicismo de Chénier não é
o falso classicismo dos nouveax riches da Revolução, e sim "On Linden, when the sun was low,
o da burguesia culta, muito depois da Revolução — ou Ali bloodless lay the untrodden snow;
muito antes. Muito antes: então, seria o grecismo de And dark as winter was the flow
Racine, com o qual Chénier não deixa de revelar certas Of I s e r . . . "
semelhanças. Muito depois: então, seria o classicismo que
já passara pelas experiências do romantismo. E nesse sen- — há algo das nuanças atmosféricas de William Collins;
tido, Chénier fora precursor do romantismo. A sua atitude e em Ode to Winter as reminiscências da moda escadinava
burguesa — mais do que as origens raciais — determinou- e as rimas convencionais não conseguem estragar a música
lhe o classicismo; a época inspirou-lhe as nuanças pré- "órfica" de um verso como
românticas; o seu génio estava inspirado pela "órfica" na
qual reside o encanto inefável da sua poesia luminosa e "But Man will ask no truce to death,
fragmentária. No bounds to human woe."
Apesar da sua situação e génio todo pessoais, teve Campbell volta a ser apreciado como grande poeta;
Chénier autênticos contemporâneos que não conheceu. O nota-se que The Battle of the Bakic foi uma poesia da
mais longínquo deles foi Daniel Berzsenyi ( 7 4 ), ao qual
preferência de Gerard Wanley Hopkins.
os seus próprios patrícios chamam "o Chénier húngaro".
O neoclassicismo de Monti tem tampouco colorido
Poeta horaciano e poeta patriótico — esse classicismo atua-
pré-romântico, inspirado apenas por certo oportunismo
lizado ainda não faria um Chénier, se não houvesse em

75) Thomas Campbell. 1777-1844.


The Pleasures of Hope (1799); Miscellaneous Poems (1824); Spe-
74) Daniel Berzsenyi, 1776-1838. cimens of the British Poets (1819).
Edição por F. Toldy, Budapest, 1864. Edição por J. L. Robertson, Oxford, 1907.
J. Vaczy: Berzsenyi Daniel. Budapest. 1895 (em húngaro). J. C. Hadden: Thomas Campbell. Edinburg, 1899.
1592 Oiro MARIA CABPEAUX HlSTÓBIA DA LlTERATUBA OCIDENTAL 1593

p o é t i c o , q u e j á se c h e g o u a d u v i d a r d a e x i s t ê n c i a d e u m Epistola é m a i s r o m â n t i c a d o q u e o poema d o g r a n d e r o -
verdadeiro pré-romantismo italiano. Pois Alfieri, o "Stuer- m â n t i c o i t a l i a n o : n a v e r d a d e , F o s c o l o foi u m g r a n d e c l á s -
m e r " p i e m o n t ê s , é exceção p e r s o n a l í s s i m a ; e n o fim d o sico grego.
s é c u l o j á s u r g e u m neoclássico t ã o p u r o c o m o F o s c o l o . U g o F o s c o l o ( 7 7 ) , u m a das m a i s n o b r e s f i g u r a s d a
M a s e s t e é a n t e s u m r e c o n v e r t i d o ao c l a s s i c i s m o , d e p o i s l i t e r a t u r a i t a l i a n a , foi p a t r í c i o d e C h é n i e r : n a s c e u , c i d a d ã o
de seus começos pré-românticos. Binni (76) conseguiu d a R e p ú b l i c a d e V e n e z a , e m u m a d a s ilhas d o m a r j ó n i c o ,
e s c l a r e c e r m e l h o r a evolução e as p a r t i c u l a r i d a d e s d o p r é - em
romantismo italiano, que é um compromisso m u i t o especial
entre "revolta romântica" e "permanência da tradição clás- "Zacinto mia, che te specchi nell'onde
s i c a " . O s p r i m e i r o s v e s t í g i o s d e s s a s í n t e s e p r e c á r i a j á se Del grego m a r . . . "
e n c o n t r a m em P a r i n i ; depois, n a f o r m a c l á s s i c a do ossia-
nista Cesarotti e no sentimento romântico do tradicionalista É o m e n s a g e i r o d a b e l e z a g r e g a , n u m país e n u m m o m e n t o
Alessandro Verri. Encontra-se a mesma ambiguidade na h i s t ó r i c o em q u e a t r a d i ç ã o clássica estava r e p r e s e n t a d a
crítica literária de Baretti e na dramaturgia voltairiana p o r u m l a t i n i s t a c o m o S a v i o l i ou p o r u m " o p o r t u n i s t a "
do furioso Alfieri. Só Foscolo chegará a u m equilíbrio p o é t i c o c o m o M o n t i . N o p i n d a r i s m o de C h i a b r e r a , q u e
p e r f e i t o q u e j á se a n u n c i a , p o r é m , na p o e s i a d e I p p o l i t o redescobriu, a c r e d i t a r a encontrar uma arte mais grega, até
P i n d e m o n t e (7e"A), o irmão tragediógrafo Giovanni Pin- t q u e a Revolução o arrancou da biblioteca d e filólogo, in-
d e m o n t e . A c r e d i t a v a ser r o m â n t i c o , e m b o r a a s u a o d e La dicando-lhe o "verdadeiro" caminho para a Grécia: através
maliconia tenha mais de Metastásio do que de Young. A da Natureza livre. O romantismo de Foscolo não é o dos
e x c e l e n t e t r a d u ç ã o da Odisseia coloca-o e n t r e os d i s c í p u l o s românticos, é o de Rousseau. A revolução decepcionou-o,
de M o n t i ; e "questo mar pieno d'incanti" — assim apos- porém, profundamente; Napoleão traiu a Itália, desmem-
t r o f o u o m a r d e U l i s s e s — fica l o n g e d a s l a g u n a s d a s u a
t e r r a veneta. Lá, na Grécia, nascera-lhe o amigo Foscolo,
77) Ugo Foscolo, 1778-1827. (Cf. "O Pré-Romantísmo", notas 53 e 91.)
ao q u a l P i n d e m o n t e d e d i c o u a Epistola, abandonando o Le ultime lettere di Jacopo Ortis (1798); Poesie (1803); Carme
o p l a n o d e e s c r e v e r I cimiteri; porque o amigo já tinha dei Sepolcri (1807); Ricciarda (1813); Le Grazie (1814); —
DelVorigine e ufficio delia letteratura (1808); Saggio sullo stato
e s b o ç a d o o Carme dei SepoJcri. E há quem pense que a delia letteratura italiana (1818); Sul testo delia Commedia di
Dante (1818); Saggi sul Petrarca (1824); Discorso storico sul testo
dei Decamerone (1825).
Edição crítica das poesias por G. Chiarinl, 2.» ed., Livorno, 1904.
76) W. Binni: Preromanticismo italiano. Napoli, 1948. Edição das obras em prosa por V. Cian, 3 vols,, Bari, 1912/1920.
F . De Sanctis: "Ugo Foscolo". (In: Saggi critici. Vol. II.)
76 A) Ippolito Pindemonte, 1753-182B. A. Graf: Foscolo, Manzoni, Leopardi. Torino, 1898.
Poesie campestri (1788); Arminio (1804); Epistola (1805); tra- E. Donadoni: Vgo Foscolo, pensatore, critico e poeta. Palermo,
dução da Odisseia (1822). 1910.
P. dal Rio: Sulla vita e suite opere di Ippolito Pindemonte. G. Manacorda: Studi Foscoliani. Bari. 1921.
Venezia, 1856. M. Fubini: Vgo Foscolo. Torino, 1928.
F. Torraca: "I Sepolcri di Pindemonte". (In: Discorsi e Ri' G. Natali: La vita e le opere di Vgo Foscolo. Livorno, 1928.
cherche. Livorno, 1888.) A. Caracolo: Vgo Foscolo, 1'homme et le poete. Paris, 1934.
G. Gini: Vita e studio critico delle opere di Ippolito Pinde- F. Flora: Foscolo. Milano, 1940.
monte. Como, 1889. L. Malagoli: Sulla genesi delia lirica foscoliana. Pisa, 1949.
O. Bassi: Fra classicismo e romanticismo Ippolito Pindemonte. E . R. Vincent: Vgo Foscolo. An Italian in Regency England.
Milano, 1934. Cambridge, 1953.
1594 OTTO MARIA CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITEBATURA OCIDENTAL 1595

brando-a e sacrificando-a, em vez de libertá-la. Até então, Mas além de Young havia outras influências inglesas,
Foscolo fora o poeta principal do jacobinismo italiano; diferentes. N a melancolia younguiana de Foscolo há certo
tinha publicado, em 1797, Bonaparte Liberatore, "oda dei sentimentalismo filantrópico, à maneira de Sterne, do qual
liber'uomo Ugo Foscolo". E logo depois, pelo tratado de o poeta italiano traduziu a Sentimental Journey; e a página
paz de Campofórmio que entregou Veneza aos austríacos, aberta ao lado dos Night Thoughts é a Elegy written in
viu-se, outra vez, "escravo". A desilusão política confun- a Country Churchyard, de Gray. Como este, Foscolo é um
diu-se com desilusões eróticas, e assim escreveu Le ultime intelectual revoltado, e a sua nova religião humanitária,
lettere di Jacopo Ortis, o Werther italiano. Mas Ortis não já não rousseauiana, é algo burguesa, utilitarista; talvez
é W e r t h e r ; é um não fosse casualmente que ao exilado Foscolo estava pre-
destinado a viver na Inglaterra, onde chegará a ficar en-
"Figlio infelice, e disperato amante, terrado —
E senza p á t r i a . . . " ,
" . . . a noi prescrisse
principalmente "sem pátria", até que a encontrou no reino II fato illacrimata sepoltura."
ideal da poesia. Desiludido do evangelho rousseauiano da
Natureza, Foscolo voltou, através de uma fase de vida Lá, entre as brumas inglesas, reencontrou, em espírito, a
devassa, ao humanismo livresco; curou-se, voltando à tra-
pátria grega. Le Grazie são o seu poema mais clássico,
dição humanista, na qual descobriu a herança grega e a
mais pagão —
consciência nacional, a pátria imperecível dos italianos.
Foscolo, tendo passado pelo nacionalismo principiante da
Revolução jacobina, é mais italiano do que Chénier fora "Alie Grazie immortali
francês. Define os seus versos como "corde eolie derivate Le t r e di Citerea figlie gemelle
su la grave itala cetra"; está consciente de uma missão de È sacro il t e m p i o . . .
renovação nacional, mas cumpre-a — e nisso reside o mila- . . . Entra ed adora."
gre — por meio de uma poesia toda pessoal. As poesias
A Luigia Pallavicini e Alia arnica risanata, os sonetos Alia Foscolo não podia guardar ilusões quanto ao caráter teó-
será, A Zacinto, Di se stesso, nasceram da emoção subjetiva, rico, por assim dizer filosófico, desse último resultado
cristalizada, sem resíduo, em forma objetiva. Por essa dos seus esforços poéticos. Abandohou a poesia, tornando-
objetividade revela-se Foscolo como grego; é um clássico se crítico da poesia. Na crítica, enfim, é romântico: é
autêntico. Acreditava-se romântico, pretendeu imitar os discípulo de Herder. O antigo humanista introduziu na
Night Thoughts, de Young, quando começou o Carme dei literatura italiana a crítica histórica, interpretando Dante,
Sepolcri: Petrarca e Boccaccio como figuras e expressões do tempo
deles. Foscolo é um grande crítico — e, dolorosamente,
"AlFombra de' cipressi e dentro 1'urne sente a crítica como o fim da poesia. J á tinha antecipado
Confortate di p i a n t o . . . " essa emoção:
/

1596 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1597

"Non son chi fui; peri di noi gran p a r t e : versificador habilíssimo Arriaza ( 70 ) até a verve profética
Questo che avanza è sol languore e pianto. da Canción dei Pirineu — críticos modernos chegam, aliás,
E secco è il m i r t o . . . " a comparar com Le Crazie, de Foscolo, a "beleza escultural"
do seu poema Terpsícores o las gradas dei baile. Um
"Secco è il mirto", as palavras têm significação profunda. verdadeiro Foscolo burguês é o outrora famosíssimo Quin-
No exílio, defendeu a sua atitude: "Bensi mi vergogno tana ( 80 ) — Menéndez y Pelayo ainda ousou comparar-lhe
che queste opinioni nella mia gioventíi io le scriveva adi- a poesia classicista com a de F r a y Luis de León. Foi um
r a t o . . . mi doleva troppo sdegnosamente di molti individui; liberal do século X V I I I , depois poeta cívico da Espanha
e poscia troppo dei mondo; e poscia delia fortuna; e con constitucional de 1812 e rapsodo patriótico e pomposo da
1'andare degli anni anche troppo di me; finche disingannato guerrilha popular contra os franceses. Cantou as grandes
delia vanità de'lamenti, e non dolendomi piú di cosa veruna, invenções libertadoras da humanidade (A la invención de
mi sperai d'invecchiare tacitamente." Esse estoicismo é la Imprenta) a ressurreição nacional (A Espana después
o de Chénier, e a situação histórica dos dois poetas é de la Revolución de Marzo); apresentou aos espanhóis do
análoga. Chénier foi guilhotinado como inimigo da Revo- seu tempo o novo Plutarco das suas Vidas de espanoles
lução; e Foscolo teve que defender-se contra a acusação célebres, como modelo; às vezes aparece o motivo, tão
de incoerência política. Continuava êle a galofobia patrió- típico do século X I X espanhol, da decadência nacional:
tica de Alfieri? Ou continuava a defender os princípios
da Revolução contra o traidor Napoleão? Ou se tornara
" . . . La heróica Espana
reacionário? "Secco è il mirto". O historismo é uma atitude
De entre el estrago universal y horror
tipicamente burguesa, pósrevolucionária. Foscolo fora o
Levanta la cabeza esanglentada
último poeta no estilo antigo, um "vate". Depois, haverá
Y vencedora de su mal d e s t i n o . . . "
os críticos e os boémios, os intelectuais e os revoltados
da burguesia.
O "mal destino" de Quintana quis que êle, vestido no fraque
O processo do neoclassicismo repetiu-se em toda a burguês, recebesse a coroa de poeta, das mãos da indigna
parte; até na Espanha e na América espanhola. O Foscolo rainha Isabel II — a farsa aconteceu em pleno juste-milieu.
espanhol — mas é preciso pedir licença para comparar "o
deus ao macaco" — é Galego ( 7 8 ), retórico retumbante da
famosa ode patriótica El dos de Mayo; contudo, há algo 79) Juan Bautista Arriaza, 1770-1837.
de melancolia foscoliana na sua Elegia a la muerte de la Poesias patrióticas (1810); Poesias (1829).
Edição: Biblioteca de Autores Espanoles, vol. LXVII.
Duquesa de Frias. O patriotismo classicista inspirou o Edição da Terpsicore por M. Altolaguirre, Madrid, 1936.
M. Menéndez y Pelayo: Historia de las ideas estéticas en Espaila.
Vol. VI.
76) Juan Nícasio Gállego, 1777-1853. 80) Manuel José Quintana, 1772-1857.
Poesias (Ediçáo da Academia Espafiola, 1854). Poesias (1802); Pelayo (1805); Poesias (1821, 1825); —
Edição: Biblioteca de Autores Espanoles. vol. LXVII. Obras completas (edit. por A. Ferrer dei Rio, Biblioteca de Au-
M. González Negro: Estúdio biográfico de D. Juan Nicaalo Qa* tores Espanoles, vol. XIX, Madrid, 1852); vidas de espaúoles
llego. Zamora, 1901. célebres (1807/1834).
1598 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1599

A arte de Quintana hipnotizou e dominou durante é a parte menos volumosa da obra imensa do grande jurista
decénios a poesia espanhola, e igualmente a hispano-ame- e polígrafo venezuelano. Na Silva a la agricultura de la
ricana. Forneceu aos poetas das novas repúblicas o estilo zona tórrida refutou, sem propósito, as futuras teorias de
para amaldiçoar os espanhóis, saudar os libertadores e poesia nativista, demonstrando que um assunto americano
bajular os caudilhos. O equatoriano Olmedo ( 8 1 ), que em pode servir para uma grande peça de oratória poética bem
1808 dedicara uma grande ode quintaniana A Maria Antónia europeia. A Oración por todos, versão livre da Prière pour
de Borbón, dedicou, em 1825, ao libertador Bolívar o famoso tous, de Victor Hugo, é a profissão de fé de Bello, que foi
liberal cristão. "Liberal" é, aliás, maneira de dizer; no
Canto a la victoria de Junín; e, em 1833, dedicou a um cau-
Chile, sua segunda pátria, o grande humanista estabeleceu,
dilho qualquer o maior dos seus poemas, a ode A Minarica.
no setor do ensino superior, uma ditadura ferrenha, corres-
A carreira de Olmedo é como que uma antecipação da evo-
pondendo à sua política autoritária. Desde os tempos de
lução da burguesia colonial. Menos arte e mais caráter
Andrés Bello, humanismo e reação política são quase sinó-
revelou o cubano Heredia ( 8 - ) ; à pomposa retórica da ode nimos na América espanhola. A nova burguesia semicolo-
Al Niágara prefere-se a outra, Ante el Teocalli de Cholula: nial tinha encontrada a sua expressão.
sob a eloquência liberal, indignada pelas superstições san-
Na Europa não aconteceu exatamente o mesmo. Os
grentas dos velhos mexicanos, aparece a melancolia pré-
últimos representantes do neoclassicismo permaneceram
romântica dos reinos que se foram e das gerações que
fiéis ao patriotismo, e o estilo atrasado, dos seus produtos,
passam, deixando apenas monumentos mudos. Mas Olmedo
harmonizou-se bem com um liberalismo moderado de satu-
é um provinciano e Heredia um pobre-diabo ao lado da
rados. Delavigne ( 8 4 ) é um t i p o : as poesias Les Messé-
figura imponente de Don Andrés Bello ( 8 a ). A poesia niennes e a tragédia Les Vêpres siciliennes, no lendemain
da derrota de Napoleão deveram o sucesso à expressão
de sentimentos patrióticos, antialiados, em estilo século
Edição das poesias por N. Alonso Cortês (Clásicos Castellanos).
E. Pifieyro: M. J. Quintana. Ensayo crítico y biográfico. Paris,
X V I I I ; o resto da produção de Delavigne, comédias pseu-
1892. domolièrianas e tragédias pseudovoltairianas, já serve à
M. Menéndez y Pelayo: "Quintana considerado como poeta lírico". oposição contra o teatro romântico. Pois para os burgueses
(In: Estúdios de critica literária. Vol. V. Madrid, 1908.)
81) José Joaquin Olmedo, 1780-1847. de Paris, romantismo parecia significar ressurgimento dos
Poesias (1849).
Edição por A. Espinosa Pólit. México, 1947.
V. M. Randón: Olmedo. Paris, 1904.
M. L. Amunategui: Andrés Bello. Santiago de Chile, 1882.
82) José Maria de Heredia, 1803-1839. A. Balbin de Unquera: Andrés Bello, su época y sus obras. Madrid,
Poesias (1825). 1910.
Edição por E. Valdês y De Latorre. 2 vols. Habana, 1939. E. Orrego Vlcufta: Don Andrés Bello. Santiago de Chile, 1935.
J. M. Chacón y Calvo: Ensayos de literatura cubana. Madrid, O. Grases: Andrés Bello, el primer humanista de América. Buenos
1922. Aires, 1946.
E. Larrondo: Heredia. México, 1935. 84) Casimir Delavigne, 1793-1843.
83) Andrés Bello, 17B1-1865. Les Messéniennes (1819); Les Vêpres siciliennes (1819); Vécole
Silva a la agricultura de la zona tórrida (1826); Oración por todos des vieillards (1823); Louis XI (1832).
(1840), etc. (muitas obras científicas). Edição Didot, 4 Vols., Paris, 1870.
Edição das obras completas por P. G. Ramirez, 15 vols.. Santiago F. Vaucheux: Casimir Delavigne. Paris, 1893.
de Chile, 1881/1893. A. Favrot: Êtud sur Delavigne. Paris, 1894.
JÓOO OTTO M A B I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1601

vícios aristocráticos. Aí está Ponsard ( 8 5 ) , ao qual coube roada de ê x i t o ; e da nova monarquia burguesa do juste-
a vitória definitiva na campanha que começara com a "ba- milieu foi Béranger o poeta oficial, a glória poética do
taille d U e r n a n i " ; treze anos depois, o êxito da sua Lucrèce reino dos banqueiros. As canções de Béranger são típicas
derrotou o teatro romântico. O tema, a resistência da vir- de literatura falsa, feita por intelectuais para o mau gosto
tude republicana contra o déspota arrogante, é significativo. popular; o tradicionalismo da sua forma não é classicista,
Ponsard, que nunca se cansou de exaltar as virtudes bur- é um resíduo do classicismo. Na Inglaterra, a situação
guesas, é um dramaturgo de 1770, colocado por um erro social adiantada não permitiu a existência de um Béranger;
da História em 1840, nas vésperas de um outro teatro anti- os cantores do "Chartist Movement" são proletários revo-
romântico, o do burguês Augier. lucionários. É a diferença entre fábrica e atelier. Então,
O reacionarismo literário desses últimos classicistas os próprios banqueiros se encarregam de cultivar com tei-
não deve ser confundido com reacionarismo político; ao mosia o estilo "clássico", como o banqueiro Samuel Ro-
contrário. Na demonstração disso reside o motivo prin- gers ( 8 7 ), que cantou, não sem talento, as belezas da paisa-
cipal para falar, em uma história literária, de Béranger ( 8 6 ), gem e arte italianas. A Edinburgh Review do crítico temido
poeta tão famoso como medíocre. O estilo de chanson Francis Jeffrey teceu-lhe os maiores elogios, jogando-o
parísienne das suas mofas contra o "roi d'yvetot" e o arro- contra o "italianismo vicioso" de Shelley e Keats. Mas
gante "marquis de Carabas", contribuiu para a eficiência a Edinburgh Review, tão reacionária na literatura, era
da sua "poesia" política, a ponto de iludir os estrangeiros, liberal em matéria política; entre os colaboradores prin-
de tal modo que Béranger se tornou celebérrimo; até um cipais, estava Lord Brougham, que conseguiu, em 1832, a
Goethe o admirava. Infelizmente, essa popularidade não "Reform Bill", o aburguesamento da Casa dos Comuns.
acabou de todo, e algumas das suas piores poesias senti- A burguesia continuava, depois de 1800 a 1815, favo-
mentais continuam a figurar nas antologias escolares, es- recendo o classicismo sans phrase, sem intervenções pré-
tragando o gosto dos meninos. A oposição de Béranger românticas. Este já não era capaz de produzir uma grande
contra a aristocracia restaurada e a sua criação de uma lenda poesia, mas houve um "fenómeno de compensação", que
popular em torno do exilado Napoleão, constituem mais ainda não foi devidamente reconhecido pela historiografia
uma tentativa da burguesia de aproveitar-se dos pequenos- literária: em vez de produzir uma grande poesia, o "pro-
burgueses para os seus fins. Em 1830, a tentativa foi co- saísmo burguês" exprimiu-se através de um grande romance
classicista. Este é representado por Jane Austen; e só assim
se explica a existência isolada dessa grande escritora.
85) François Ponsard, 1814-1867. (Cf. "O Fim do Romantismo", nota
29.) O neoclassicismo, a princípio, não soube dominar o
Lucrèce (1843); Charlotte Corday (1850); Vhonneur et 1'argent género essencialmente moderno: só repetiu os "clichés"
(1863); Le llon amoureux (1866).
Edição: Oeuvres, 3 vols., Paris, 1865/1876. do grecismo artificial do abbé Barthélemy. No fim, o
C. Latreille: La jin du théâtre romantique et François Ponsard. neoclassicismo revela a sua feição burguesa, falhando na
Paris, 1899.
86) Jean-Pierre de Béranger, 1780-1857.
Chansons (1815, 1821, 1828, 1833, 1857). 87) Samuel Rogers, 1763-1855.
A. Boulle: Béranger, sa vie, son oeuvre. Paris, 1908. The Pleasures of Memory (1792); Italy (1822/1828).
J. Lucas-Dubreton: Béranger, la chanson, la politique, la aooiété. Edição por E. Bell, London, 1875.
Paris. 1934. R. Ellis Roberts: Samuel Rogers and his Circle. London, 1910.
1602 OTTO MARIA CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1603

poesia e produzindo uma arte novelística de primeira or- consideraram essas leituras como fontes do prosaísmo que
dem. Através dessa reflexão, Jane Austen é libertada do estragara a literatura holandesa; o grande crítico Busken
seu isolamento histórico; continua, porém, isolada em fun- Huet escreveu u m ensaio fulminante contra "os velhos
ção do seu génio; não se pretenderá transformar o fenó- romances". É preciso, porém, encarar bem a mentalidade
meno individual em movimento literário, por meio de que se esconde atrás da forma desse romance burguês;
aproximações artificiais. Contudo, há que assinalar o caso é uma ironia discreta, mas contínua, contra o próprio sen-
análogo, e mais ou menos contemporâneo, das escritoras timentalismo, uma tendência ligeiramente racionalista. E
Elizabeth Wolff-Bekker e Aagje Deken ( 8 8 ), um dos casos a própria revalorização de 1920, na Inglaterra, contribuiu
mais felizes de colaboração literária. E r a m holandesas e para reconhecer-se em Mejuffrouw Sara Burgerhart, a
de ambiente calvinista, dois fatos que bastam para explicar irmã, a única irmã de Emma e Elizabeth, de Jane Austen.
a tendência pedagógica da sua literatura. Mas a sua pe- A maior romancista inglesa foi precedida por outras
dagogia já não era a de Comenius e sim a de Rousseau, senhoras das letras que cultivaram um género, hoje pouco
e seu processo novelístico é o epistolográfico, de Richard- apreciado, o "tea-table romance". Fanny Burney ( 8B ), ma-
son. Contudo, e isso completa a enumeração das influências dame d'Arblay pelo casamento com um émigrant francês,
estrangeiras, as duas damas não sacrificaram ao sentimen- criou o romance para moças; mas também foi lida pelos
talismo choroso, porque tinham lido Sterne, aprendendo homens, e Macaulay ainda considerava Eveline como um
o seu estilo vivo, o seu humorismo fino. Surgiram, assim, dos grandes romances ingleses. Madame d'Arblay não tinha
os primeiros romances legíveis da literatura holandesa. A nada do humorismo brutal da Restauração e de Smollett;
tendência pedagógica, nas obras do século X V I I I , costuma por outro lado, a sua pretensão de "not to show the world
sufocar o interesse do leitor moderno; mas isso não acon- what it actually is, but what it appears to a young girl"
tece com o primeiro romance, Sara Burgerhart, que é um não é mera simplificação — também pode ser interpretada
modelo de caracterização penetrante, quase dramática. Os como "perspectivismo" filosófico, lembrando processos de
romances de Wolff-Bekker e Deken foram, durante um Henry James. Mais perto daquelas duas holandesas, situa-
século inteiro, a leitura preferida das classes médias, na se Maria Edgeworth (°°), cuja outrora famosa Belinda
Holanda; e os precursores do movimento simbolista de 1880

89) Fanny Burney, madame d'Arblay, 1752/1840.


Eveline (1778); Cecília (1782).
88) Elizabeth (Betje) Wolff-Bekker. 1738-1804. Edição de Eveline por F. D. Mackinnon, Oxford, 1930.
Aagje Deken, 1741-1804. W. T. Hale: Madame d'Arblay's Placç in the Development of
De Histoire van Mejuffrouw Sara Burgerhart (1782); Histoire van the English Novel Indianopolis. 1916.
áen Heer Willem Leevend (1784/1785); Brieven van Abraham A. A. Overman: An Investigation tnto the Character of Fanny
Blankaart (1787/1789); Histoire van Mejuffrouw Cornélia Wilds- Burney. Amsterdam. 1933.
chut (1793/1796). Chr. Lloyd: Fanny Burney. London, 1936.
Edição por J. Platen, 4 vols., Schiedam, 1886. 90) Maria Edgeworth, 1767-1849.
C. Busken Huet: Oude romans. Haarlem, 1877. Castle Rackrent (1800); Belinda (1801); etc. etc.
J. W. A. Naber: Elizabeth Bekker-Wolff en Aagje Deken. Haarlem. Edição Dutton, 12 vols., London, 1893.
1912. Th. Goodman: Maria Edgeworth, Novelist of Reason. New
H. C. M. Ghijsen: "Wolff en Deken's romans uit haar bloeitijd". York, 1936.
(In: De Gids. 1923. 4/5.) R. G. Mood: Maria Edgewoth's Apprenticeschtp. Urbana, 1938.
H. M. De Haan: "De invloed van Richardson op Jane Austen en P. H. Newby: Maria Edgeworth. London, 1950.
op Nederlandsche auteurs". (In: Nieuwe taalgids XXIX, 1038.) J. C. Clarke: Maria Edgeworth. London, 1950.
1606 OTTO M A R I A CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1607

para descrever objetos e ambiente material lembra até a que o dos grandes satíricos classicistas ingleses, Dryden
falta de colorido local, na tragédia clássica francesa; e às e, particularmente, P o p e ; a crítica contemporânea preferiu
vezes, como em Mansfield Park, escondem-se atrás de cenas 0 termo "wit." A obra de J a n e Austen é como um Rape
triviais, graves conflitos trágicos. E m J a n e Austen há 01 the Lock desdobrado e aburguesado, tão "fútil" e tão
algo de Racine. Mas é mais "moderna" que os clássicos "profunda" como a obra de P r o u s t ; ambos estão definidos
franceses, que tinha, aliás, lido muito. É uma grande pre- nas palavras com que W a l t e r Scott elogiou a arte de J a n e
cursora. Os seus persdnagens podem ser shakespearianos, Austen, "the exquisite touch which renders ordinary com-
mas a maneira lenta e vagarosa de pô-los em movimento, monplace t h i n g s and characters interesting."
a maneira de deduzir dos caracteres as complicações — Só uma vez o "esprit" jocoso de Austen se tornou mor-
com a maior mestria, em Pride and Prejudice e Emma, daz: quando, em Northanger Abbey, parodiou os falsos
será a técnica de Henry James; como intermediário, F . R. mistérios e horrores dos "romances góticos" de Ann Rad-
Leavis considera a George Eliot, que herdara de Jane cliffe. Os motivos da repulsa que a falsidade "gótica"
Austen a profunda seriedade moral na crítica da vida. lhe inspirou, são complexos: certo racionalismo malicioso,
É muito mais difícil reconstruir as relações literárias estilo século X V I I I , que ela tinha em comum com Sterne,
de J a n e Austen para trás. J á se disse que ela conheceu e que é, no fundo uma expressão do bom-senso inglês;
bem os franceses. Eram reduzidos, porém, os seus conhe- depois, o seu "bom gosto" infalível, realmente "clássico";
cimentos de literatura inglesa: gostava principalmente de enfim, o protesto do espírito da gentry, da classe média
Samuel Johnson, o crítico classicista, e de Crabbe, o realista superior, contra o plebeísmo daquele género. Na obra de
em forma classicista — como ela mesma. T a l como o clas- J a n e Austen estão ausentes a alta aristocracia e o povo;
sicismo inglês em geral, J a n e Austen revela pouco lirismo ela se encontra exatamente no juste-milieu da sociedade
e nenhuma paixão; parece-se com pintores de genre ho- inglesa, no ponto em que a aristocracia já está meio abur-
landeses, e já foi comparada ao luminoso Vermeer van guesada e a burguesia já goza de certos privilégios aristo-
Delft. A severa disciplina classicista exclui todo o subje- cráticos. Daí o protesto, sempre moderado, contra "pre-
tivismo. Desapareceram de todo, na obra, os ressentimentos conceitos e orgulhos" aristocráticos, e o protesto mordaz
da solteirona, menos talvez na ternura do seu último roman- contra o gosto plebeu. Sempre, porém, Jane Austen observa
ce, Persuasion. Jane Austen é objetivíssíma a respeito "les bienséances". É classicista, disciplinada, e por isso
do mundo que encontrou e no que toca aos personagens "estreita"; tão estreitamente inglesa quanto Racine é es-
que criou. As quiet situations que o seu gosto e tempe- treitamente francês. Saintsbury e Strachey concordaram
ramento preferiam, não têm nada com o sentimentalismo em defini-la como o "Racine da comédia"; mas, em prosa
de Richardson, embora tenham muito com a sua psicologia, burguesa.
e nada com o seu moralismo. Quando Jane Austen é O isolamento de J a n e Austen na literatura europeia
moralista, é moraliste no sentido francês, e, realmente, a do seu tempo, prende-se, em parte, ao fato de estar o trend
sua maneira de apreciar os motivos psicológicos dos Beus da evolução literária ainda determinado principalmente
"heróis" e "heroínas" tem algo de La Rochefoucauld. O pela poesia, e o neoclassicismo à maneira francesa já estar
seu esprit também é classicista, embora menos francês do poeticamente esgotado. Depois de J a n e Austen, aparecerá
1608 OTTO M A M A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1609

só um romancista continental que conserva o classicismo foi resultado individual da elaboração de um estilo; e essa
estilístico: Stendhal; mas este já desaprovou Racine. As elaboração efetuou-se a propósito do problema de con-
mudanças da situação social explicam a diferença paradoxal quistar Shakespeare para a língua alemã.
entre as atitudes do neoclassicismo pré-romântico e do A assimilação de Shakespeare ao espírito alemão ( 92 )
neoclassicismo da última fase: Foscolo fugiu da Itália, começou com a conquista do mero conteúdo, dos enredos,
Stendhal fugiu para a Itália. Os poetas que pertencem a pelos "comediantes ingleses", isto è, atôreg viajantes, em
esta última fase foram confundidos, de maneira pouco feliz, parte ingleses mesmo, em parte imitadores alemães, que
com outros, sob a denominação comum de "Mal du siècle" usaram peças inglesas, modificando-as a seu gosto. Em
ou "Weltschmerz"; é preciso romper com essa fable con- 1626, a cidade de Dresden viu um repertório bastante
venue, porque o pessimismo não é um critério literário, e grande de peças de Shakespeare, sem chegar a conhecer o
alguns daqueles poetas — como Shelley — nem sequer eram nome do poeta. As peças estavam transformadas em dra-
pessimistas. Existe, porém, um grupo estilisticamente bem malhões de sangue e horror e em farsas grosseiríssimas;
definido: o de Byron, Leopardi e Vigny. São classicistas gozaram de preferências Titus Andronicus e The Merchant
obstinados, em pleno romantismo: Byron, que pretende of Venice, com o judeu como palhaço. Da língua poética
imitar o verso de P o p e ; Leopardi que se inspira nas tra- de Shakespeare, não se traduziu nenhuma palavra. Depois
dições classicizantes da literaturas italiana; e Vigny, o de um período de esquecimento relativo, a influência lite-
sucessor de Chénier. Até Puchkin, o "Goethe russo", está rária inglesa, desde o começo do pré-romantismo, impôs
perto desse grupo, não tendo nada em comum com o ro- nova tentativa de assimilação; mas esse primeiro pré-ro-
mântico Lermontov. Na Alemanha, porém, não existe ne- mantismo alemão ainda não dispunha de uma língua capaz
nhum poeta classicista-pessimista assim; os representantes de interpretar Shakespeare — é significativa a ausência
do "Weltschmerz" na Alemanha, são românticos, de língua de Klopstock, oriundo de outra estirpe, na história do
desleixada, como Lenau, ou liberais irónicos, como Heine. Shakespeare alemão; a tarefa coube aos classicistas já
O pendant alemão daquele grupo é o seu contemporâneo sentimentalizados. Nesse sentido, Christian Félix Weisse
Schopenhauer, prosador clássico — e pessimista. O que deu as suas versões livres, em gosto francês, de Richard III
faltava à Alemanha era uma grande tradição de poesia (1759) e Romeo und Júlia (1767), alcançando tanto sucesso
clássica. O poeta "clássico" da mesma época é o epígono que substituíram, no palco, durante decénios, traduções
Platen, que se gabava ser o último discípulo de Goethe; mais exatas. Corresponde a essa fase a atitude prudente
e foi, em Verdade, o único. de Lessing, que preferiu, como modelo imediato, o drama
Com efeito, o classicismo de Weimar, variante alemã burguês dos ingleses. Esse drama deu a primeira forma
do último classicismo europeu, caracteriza-se pela circuns- do Shakespeare alemão: a prosa de Wieland, que traduziu,
tância de não ser um movimento literário, e sim o estilo entre 1762 e 1766, vinte e duas peças, sendo a tradução com-
de uma só pessoa: de Goethe; ou, adotando-se o critério pletada por Johann Jacob Eschenburg (1775/1782), e trazi-
menos rigoroso da vox populi, o estilo de duas pessoas,
Goethe e Schiller. O classicismo de Weimar não conquis-
92) F. Gundolf: Shakespeare und der deutsche Geist. 2.» ed. Berlln,
tou a nação, por falta de uma tradição clássica precedente; 1914.
1610 OTTO MARIA CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1611

da ao palco, a partir de 1776, por Schroeder, em adaptações Goethe ( 9 3 ) , conversando com Eckermann, definiu a
burguesas-sentimentais. Mas essa forma já não correspon- sua poesia lírica com as palavras: "Foram, todas, poesias
deu ao progresso da evolução literária. O reconhecimento de ocasião, q u e r dizer, a realidade deve ter fornecido a
de Shakespeare como "original" exigiu a assimilação da pró- ocasião e a matéria. Um caso particular torna-se universal
pria estrutura do teatro shakespeariano, do qual a lingua e poético, quando um poeta o trata. Todas as minhas poe-
faz parte; e, pretendendo a nova literatura também ser sias são poesias de ocasião." Estas palavras produziram
"original", dependeu o destino literário da Alemanha do efeito espantoso: há um século, que uma ciência espe-
bom êxito daquela tarefa. Herder deu os primeiros passos, cializada, a chamada "Goethe-Philologie", se vem ocupando
traduzindo, nas Stimmen der Voelker, vários songs de dos mínimos pormenores da vida de Goethe, dos seus amo-
Shakespeare, pela primeira vez em versos. As traduções res, leituras e viagens, até aos detalhes da sua digestão,
de Love's Labour's Lost (1774), por Lenz, e de Macbeth na esperança de encontrar assim as "ocasiões", a chave das
(1783), por Buerger, dão testemunho, enfim, de compreen- suas obras. A pessoa, à qual foi dedicado esse culto cien-
são certa; mas ainda não haviam conseguido dominar o tífico, desapareceu nas nuvens da idolatria, e a obra decom-
verso de Shakespeare. Este só aparece na tradução mara- pôs-se na mesa anatómica dos filólogos. Será preciso pro-
vilhosa de dezenove peças (1797/1801), por August Wilhelm curar o verdadeiro sentido daquelas palavras "ocasião" e
Schlegel, criando êle um autêntico "clássico" alemão, tão "realidade". Mas por enquanto o sentido geralmente aceito
clássico como Goethe; ou mais exato: a língua de Schlegel serve para nos orientar provisoriamente na obra imensa
é a de Goethe. de Goethe.
Infelizmente, foram apenas dezenove peças; a continua-
ção da obra, por Wolf Baudissin e Dorothea Tieck, sob a
supervisão de Ludwig Tieck, não obteve resultado igual. 93) Johann Wolfgang von Goethe, 1749-1832. (Cf. nota 40; cf. "O
Pré-Romantismo", nota 87.)
O Shakespeare de "Schlegel-Tieck" é produto híbrido. Goetz von Berlichingen (1773); Clavigo (1774); Die Leiden des
Ninguém conseguiu continuar Schlegel, assim como nin- jungen Werther (1774); primeiro esboço de Faust (Urfaust, 1775;
publlc. por Er. Schmidt, 1887); Die Geschwister (1776); Stella
guém conseguiu continuar, ou até mesmo acompanhar ape- (1776); primeiro esboço de Wilhelm Meisters Lehrjahre (.Wilhelm
nas, Goethe; a justaposição usual de Goethe e Schiller Meisters theatralische Sendung, Urmeister, 1777; public. por H.
Maync, 1911); Der Triumph der Empjindsamkeit (1778); primeira
é erro e confusão — isso se revela de maneira mais evidente versão, em prosa, da Jphigenie (1779); Gedichte (vol. IV das
pela tradução infeliz de Macbeth, por Schiller. Goethe não Schriften, 1779); Gedichte (vol. I der Gesammelte Schriften,
(1787) Iphigenie auf Tauris (1787);. Egmont (1788); Torquato
encabeça um movimento literário; é um caso isolado. Tasso (1790); Faust. Ein Fragment (1790); Reineke Fuchs (1794);
Roemische Elegien (1795); Wilhelm Meisters Lehrjahre (1796);
A sua vida literária parece acompanhar a evolução Hermann und Dorothea (1797); Balladen (1798/1799); Achilleis
(1798); Die Metamorphose der Pflanzen (1799); Die natuerliche
da literatura alemã e as fases da conquista de Shakespeare: Tochter (1803); Wlnckelmann und sein Jahrhundert (1805);
poeta anacreôntico em Leipzig; "Sturm und Drang" e senti- Pandora (1807); Faust. I (1808); Die Wahlverwandtschaften
(1809); Dichtung und Wahrhelt (1811/1814); Gedichte (1812);
mentalismo em Goetz von Berlichingen e Werther; neo- Farbenlehre (1812); Italienische Reise (1816/1817); Zur Natur-
classicista até chegar a transições românticas; e, na velhice, wissenschaft (1817/1823); Kunst und Âltertum (1818/1832); West-
Oestlicher Diwan (1819); Correspondência com Schiller (1828/
depois da apostasia dos românticos, a solidão completa. Só 1829); Wilhelm Meisters Wanderjahre (1829); Obras póstumas
esta era a posição verdadeira de Goethe. (Faust II, poesias, etc, 1833/1842);—
1612 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1613

E r a filho da b u r g u e s i a d e F r a n k f u r t , u m a d a s " c i d a d e s m e n t e l i v r e e e s p o n t â n e a e m l í n g u a alemã. N o f u n d o , G o e -


l i v r e s " medievais d a A l e m a n h a , g o v e r n a d a s p o r u m pa- t h e não esqueceu nunca essa primeira experiência erótica,
t r i c i a d o b u r g u ê s d e a p a r ê n c i a s s e m i f e u d a i s . R e c e b e u as n e m o s e n t i m e n t o d e c u l p a q u e deixou n a s u a alma. N o
p r i m e i r a s i m p r e s s õ e s d e l i t e r a t u r a viva n a U n i v e r s i d a d e p r i m e i r o esboço d e Faust, o c h a m a d o Urfaust, e n t r e c e n a s
gottschediana de Leipzig, estreando com poeta anacreôn- g r o s s e i r a s d e v i d a e s t u d a n t i l , à m a n e i r a dos p r é - r o m â n t i c o s ,
tico. E m Estrasburgo, tornou-se discípulo de H e r d e r . j á se e n c o n t r a a t r a g é d i a d e G r e t c h e n , da m o ç a a b a n d o n a d a ;
entusiasmando-se por Shakespeare, Ossian, Idade Média é t r a n s f o r m a ç ã o p e s s o a l d o a s s u n t o social da i n f a n t i c i d a ,
a l e m ã e p o e s i a p o p u l a r . A t r a g é d i a h i s t ó r i c a Goetz von assunto tratado quase p o r todos os "Stuermers". Aquela
Berlichingen, obra incoerente, mas vigorosa, p r e t e n d e u m e s m a e x p e r i ê n c i a d e u i n t e n s i d a d e ao r o m a n c e s e n t i m e n t a l
g l o r i f i c a r , à m a n e i r a das " h i s t ó r i a s " d e S h a k e s p e a r e , o d e Werther, espécie d e autopunição literária, parecendo
passado tumultuoso da Alemanha, a Reforma e a revolução ao m u n d o o maior d o c u m e n t o da melancolia ossiânica dos
dos camponeses, e conseguiu, como documento do despertar pré-românticos e conseguindo o primeiro e único sucesso
da nação, sucesso barulhento. O conhecimento da poesia internacional da carreira literária de Goethe. O motivo
popular alsaciana forneceu meios d e expressão à s expe- que o arrancara ao idílio de Sesenheim, fora a consciência
r i ê n c i a s e r ó t i c a s c o m F r i e d e r i k e B r i o n , filha d o v i g á r i o d e t e r u m a g r a n d e m i s s ã o ; e n t ã o , a c r e d i t a v a ter e n c o n t r a d o
da aldeia de Sesenheim; Goethe não era capaz de ligar-se essa m i s s ã o n a t a r e f a d e c r i a r n a A l e m a n h a u m t e a t r o
p a r a s e m p r e a esse i d í l i o g o l d s m i t h i a n o , a b a n d o n a n d o , p o r * s h a k e s p e a r i a n o ; e e s b o ç o u u m r o m a n c e , Wilhelm Meisters
isso, a a m a d a , à q u a l d e d i c a r a o s s e u s m a i s b e l o s p o e m a s tbeatralische Sendung (A Missão Teatral de Wilhelm
em t o m popular: Willkommen und Abschied (Bem-vinda Meistei), o Urmeister, no meio do qual estavam discussões
e Despedida), Neue Liebe, Neues Leben (Novo Amor, Nova s o b r e u m a a p r e s e n t a ç ã o d e Hamlet. No ano anterior, havia
Vida), Heidenroeslein — a primeira poesia lírica inteira- S c h r o e d e r r e a l i z a d o essa p r i m e i r a r e p r e s e n t a ç ã o d e S h a -
kespeare na Alemanha. Da mesma época tormento»* e

Johann Peter Eckermann: Gespraeche mlt Goethe (1837).


Edição completa (Sophien-Ausgabe) (com correspondência, diá-
rios, conversações, e t c ) , 133 vols., Weimar, 1888-1919. W. Bode: Goethe. 9 vols. Muenchen. 1920/1927.
Edições completas por E. von der Hellen, 40 vols., Stuttgart, Herm. Grimm: Goethe. 8." ed. Berlin, 1923.
1902/1907, e por C. Noch, 40 vols., Muenchen, 1910/1929. H. A. Korfí: Der Geist der Goethezeit. 3 vols. Leipalg, 1923/
Edição do Eckermann por H. H. Houben, 14." ed., Leipzig, 1916. 1933.
Kuno Fischer: Goethe-Schrijten. 9 vols. Heildelberg, 1890/1894.
H. Duentzer: Ooethes lyrische Gedichte (edição comentada). H. A. Korff: Die Lebensidee Goethes. Leipzig, 192B.
3." ed. 3 vols. Leipzig, 1896/1898. K. Burdach: Goethe und sein Zeíío/(.) ÇXni Vorapiel Vol. n .
Er. Schmidt: Richardson, Rousseau, Goethe. 2.* ed. Leipzig, 1902. Halle, 1926.)
F. Baldensperger: Goethe en France. Paris, 1904. F. Gundolf: Goethe. 12.» ed. Berlin, 1928.
A. Bielschowsky: Goethe. 2.» ed. 2 •, '29.
G. Dalmeyda: Goethe et le arame antique. Paris, 1908. Ch. Du Bos: "Aperçus sur Goethe". (In: Aproximationa. Vol. V.
V. Hehn: Gedanken uéber Goethe. 7.* ed. Berlin, 1909. Paris, 1932.)
H. St. Chamberlain: Goethe. Muenchen, 1912. W. Leisegang: Goethes Denkform. Leipzig, 1932.
G. simmel: Goethe. Leipzig, 1913. W. Landsberg: Goethe und die bildende Kunst. Berlin, 1932.
B. Croce: Goethe. Bari, 1919. B. Fairley: A Study o) Goethe. Oxford. 1948.
E. Traumann: Goethes Faust. 2 vols. Muenchen, 1919/1920. G. Lukacs: Goethe und setne Zeit. Bem, 1947.
W. Scherer: Aufsaetze uéber Goethe. 2.» ed. Berlin, 1920. E. Staiger: Goethe. 3 vols. Zuerich, 1948/1957.
W. Dilthey: "Goethe und die dichterische Phantasle". (In: Dai K. Vietor: Goethe. Bem. 1949.
Erlebnis und die Dichtung. 7.' ed. Leipzig, 1920.) Fr. Strich: Goethe und die Weltliteratur. Bem, 1949.
1614 OTTO MARIA CARPEAUX H I S T Ó R I A DA L I T E R A T U R A OCIDENTAL 1615

esperançosa do "Sturm und Drang" goethiano são as gran- esboços geniais d a mocidade: Wilhelm Meisters Lehr-
des odes "prometéias", Prometheus e Das Goettliche (O Di- jahre (Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister), que
vino), nas quais o desafio do anarquista à divindade se fora projetado como romance da "missão teatral", torna-se
mistura com a descoberta da divindade na Natureza — já "romance de educação" de um sonhador para a realidade;
haviam começado as leituras de Spinoza. O wertherismo em Faust, os poderosos monólogos do mais titânico "Sturm
é superado na ode Harzreise im Winter (Viagem ao Harzno und Drang" e a tragédia da infanticida Gretchen, vítima
Inverno), um dos maiores poemas líricos de Goethe. O do titão, vão ser reunidos, não sem certas incoerências, no
poeta já se encontrava em Weimar, a convite do duque que é, afinal, a maior obra dramática da literatura alemã.
Carlos Augusto, como conselheiro e depois ministro — e, No auge da vida e literatura de Goethe apareceram
no novo ambiente de uma corte culta, de atividades mul- duas influências alheias, que o desviaram do caminho:
tiformes e do amor a Charlotte von Stein acalmou-se a Schiller e a Revolução. Schiller trouxe teorias literárias,
tormenta juvenil, nasceram as magníficas poesias "Wan- a filosofia kantiana, certo idealismo moralizante, a visão
derers Nachtlied" ("Canção de Noite do Caminhante") da arte como outro mundo acima da realidade, da qual
"An den Mond" ("A Lua"), "Gesang der Geister ueber Goethe então, pela primeira vez, começou a afastar-se; só
den Wassern" ("Canção dos Fantasmas Sobre as Águas"), uma vez, no fragmento dramático Pandora — uma das suas
nas quais a emoção passada está "recollected in tranquilli- obras mais poderosas e menos conhecidas — conseguiu
ty". E já sabia, então, escrever os ritmos disciplinados do transfigurar essa teoria em realidade artística. Por en-
"Grenzen der Menschheit" ("Limites da Humanidade"), quanto, o neoclassicismo abrandou-se, nas baladas e tam-
já esboça, embora em prosa, uma tragédia clássica, uma bém no poema Hermann und Dorothea — belíssimo idílio
Jphigenie. Dois anos de viagem pela Itália completaram a mas pouco mais do que isso — em que já atua a outra
conversão do antigo discípulo de Herder ao neoclassicismo influência alheia: a Revolução. Hermann e Dorothea fo-
grego. Torquato Tassô é drama da educação do poeta gem da Revolução, na qual os instintos bárbaros desper-
sentimental pelas desgraças da realidade; em Iphigenie auf taram de novo; o instinto conservador do artista Goethe
Tauris, passado e presente desapareceram, transformando- reagiu, desde então e definitivamente, contra toda a polí-
se a revolta prometéia em vitória quase cristã do sentimento tica. Tomou a mesma atitude de indiferença meio hostil
humanitário sobre os instintos selvagens: "Lebt wohl!"; contra a Revolução, contra o nacionalismo alemão e contra
essas palavras lacónicas de despedida com as quais Thoas, as reivindicações liberais. Retirou-se para o estudo das
o rei bárbaro, deixa sair em paz Iphigenie e os gregos, não ciências naturais, anatomia, botânica, meteorologia, óptica;
é o fim de uma tragédia grecizante, mas de uma obra fêz pelo menos uma descoberta importante, a do "os in-
permanente — segundo Taine, a maior obra literária da termaxillare"; e antecipou, pela hipótese da metamorfose
época moderna. Está no auge o poder de Goethe de trans- das plantas, certas teorias darwinistas. Na óptica, elaboran-
figurar em formas objetivas as experiências subjetivas. As do uma teoria antinewtoniana das cores, substituindo a de-
Roemische Elegien (Elegias Romanas), reminiscências de composição espectral da luz pela polariedade de luz e som-
um amor romano, reúnem de maneira incomparável o mais bra, acreditava ter realizado a maior obra da sua vida,
intenso sentimento moderno e o verso clássico. É então infelizmente sem ser compreendido pelos especialistas.
que Goethe se torna capaz de dar forma definitiva aos Reuniu em sua casa, em Weimar, coleções notáveis de
l«'lfi OTTO M A R I A C A R P E A U X H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1617

minerais, esculturas, desenhos. Reagiu contra o roman- Wahrheit (Poesia e Verdade), grande panorama do mo-
tismo na pintura, pregando o classicismo mais estreito nas vimento literário alemão por volta de 1770, com a figura
artes plásticas. Abandonado pelos românticos, que no co- do próprio a u t o r no centro. A posteridade confirmou essa
meço do movimento o tinham idolatrado, Goethe quase visão histórica que ilumina uma qualidade característica
saiu da literatura; mas não inteiramente. Criou, nas Wahl- de Goethe: o seu egoísmo enorme. Evidentemente, a pa-
verwandtschaften (Afinidades seletivas), u m dos primeiros lavra "egoísmo" não tem aqui a acepção de uma censura
romances psicológicos da literatura europeia, e produziu, moral; pretende definir a atitude moral dos maiores génios
inspirado pelas traduções de Hafis, o seu último volume da humanidade, aos quais serve tudo para os seus fins,
de poesia, o Weste-Oestlicher Diwan (Divisão Ocidental- que são, afinal, os fins da humanidade. A Goethe serviu
oriental), onde se encontram as suas poesias mais amadu- tudo: mulheres e amigos, nação e Estado, trabalho, ciên-
recidas, mais clássicas, apesar das aparências orientais da cias, literatura, arte, a própria época histórica; tudo isso
forma. Os últimos anos de Goethe foram dedicados ao teve para êle, o valor instrumental de ser "ocasião" para
romance Wilhelm Meisters Wander jahre (Anos de viagem êle transfigurar em poesia. Daí a universalidade, a poli-
de Wilhelm Meister), continuação dos Lehr jahre, obra grafia desse génio do egoísmo. Excluiu, parece, só a polí-
incoerente, composta de contos, aforismos e digressões vá- tica; quando ela lhe interompeu a produtividade literária,
rias, entre as quais os trechos notáveis sobre a "educação a ponto de o seu génio parecer exausto, retirou-se para
para o respeito", esboço de uma pedagodia social. Dedi- as ciências naturais, deixando o mundo ao egoísmo parecido
cou-se também, nesta fase, à segunda parte de Faust, na de Napoleão, ao qual admirava como o seu par.
qual acompanha o herói pelas falsidades da corte; pela
Grécia, onde o representante do espírito germânico se en- Durante decénios, essa atitude de Goethe constituiu,
contra com a beleza antiga; através da vida de um empreen- na Alemanha, o motivo dos ataques mais hostis. Com o
dedor de grandes obras públicas a serviço da humanidade; mesmo egoísmo imoral, disseram, com o qual usou e aban-
até a assunção do condenado e o perdão no céu. As últimas donou inúmeras mulheres, ficou indiferente, quando a na-
poesias de Goethe, como Trillogie der Leidenschaft (Tri- ção alemã se viu obrigada a defender a sua existência
logia da Paixão) e Bei Betrachtung von Schillers Schaedel contra Napoleão; e depois, ter-se-ia desinteressado, da
(Contemplação do Crânio de Schiller), pertencem àquela mesma maneira, das reivindicações mais justas do libera-
categoria extraordinária de "obras de velhice", na qual se lismo, continuando no comodismo de servidor submisso
encontram as últimas gravuras de Rembrandt e os últimos de um príncipe de país minúsculo. E para quê? Nem
quartetos de Beethoven. Mesmo depois da morte de Goethe sequer para fazer literatura, na qual era um génio, mas
não cessaram de aparecer coleções enormes de obras iné- para brincar com aparelhos físicos e apresentar hipóteses
ditas, diários, cartas, conversas, e entre estas as Conversa- absurdas, anticientíficas. Contudo, aquelas "brincadeiras"
ções com Goethe, do seu secretário Johann Peter Ecker- de cientista-diletante forneceram à análise imparcial a cha-
mann, súmula da sua sabedoria de homem muito velho, ve para a compreensão de Goethe. Êle revoltou-se contra
muito experimentado e que era um génio. a Revolução, e devia fazê-lo; como filho da burguesia meio
feudal da Alemanha antiga, não podia estar com o libera-
A relação íntima entre a vida e a obra de Goethe foi lismo da nova burguesia, que não era capaz de compreender
salientada por êle mesmo, na autobiografia Dichtung und o génio e que, realmente, acabaria, depois, com todos os
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1619
161 a OTTO M A R I A CARPEAUX

ideais goethianos de civilização humanista e cultura indi- hierarquia de tipos, cujo protótipo seria o tipo humano.
vidualista. Ao mesmo tempo, Goethe sabia m u i t o bem que E, deste modo, extraiu dos estudos biológicos a lei da sua
uma época terminara; estava presente, a 19 de setembro vida: a elaboração d e uma personalidade própria e perfeita,
de 1792, quando, em Valmy, os aliados se retiraram, pela como tipo humano. E i s o conceito goethiano de "Bildung",
primeira vez, diante do exército jacobino; e a escaramuça de "formação": a transformação do caos de experiências
insignificante arrancou-lhe as palavras proféticas: "Daí e conhecimentos em uma estrutura orgânica.
começa uma nova era da história universal." O seu dilema A esse fim chegou Goethe na velhice. As fases do
era o do intelectual que vê razões justas de ambos os lados caminho estão documentadas pela sua poesia lírica, a par-
da barricada; e a sua conclusão era o niilismo político. tir das primeiras erupções pré-românticas e do Prometheus;
Na história só viu, como homem do século X V I I I , um através da superação do sentimentalismo, em Harzreise im
"tableau des crimes et des malheurs", iluminado pelas raras Winter; a transfiguração artística do erotismo, nas Roe-
intervenções de homens de génio como Napoleão. Essa mische Elegien; a compreensão alegre, serena e religiosa
incompreensão histórica aconselhou-lhe a retirada para as da vida no West-Oestlicher Divan; até ao resultado su-
ciências anti-históricas, as ciências naturais: seu refúgio. premo, em Bei Betrachtung von Schillers Schaedel; quando
Mas o discípulo de Rousseau e Shaftesbury •** tinha pas- a contemplação do crânio exumado de Schiller lhe revela
sado, na mocidade, pelo sentimentalismo dos místicos re- a ação permanente de "Deus-Natureza", de "dissolver em
nanos — não era capaz de fazer ciência racionalista; o espírito a matéria" e "conservar para sempre", como se
uso da matemática nas ciências físicas aborreceu-o a ponto fossem matéria, "os produtos do espírito":
de produzir um verdadeiro ódio pessoal contra Newton.
A sua teoria antinewtoniana das cores é, do ponto de vista "Was kann der Mensch im Leben mehr gewinnen,
do físico, absurda; mas está perfeitamente certa como teoria Ais dass sich Gott-Natur ihm offenbare:
fisiológica das sensações subjetivas ( 9 4 ). Goethe consi- W i e sie das Feste laesst zu Geist zerrinnen,
derava e devia considerar sua Farbenlehre (Teoria das W i e sie das Geisterzeugte fest bewwahre."
Cores) como a obra máxima da sua vida, porque já tinha
descoberto a lei da sua própria personalidade: a lei da É o credo do espinozismo espiritualista. A poesia
polaridade de todos os fenómenos. Esse conceito serviu-lbe lírica de Goethe é — ao contrário do que se pensa, sobre-
para inspirar vida e movimento ao sistema algo mecanicista tudo no estrangeiro — a parte mais importante da sua
do seu querido Spinoza, criando um espinozismo vitalista, Obra; mais importante do que os dramas, principalmente
que é, no fundo, neoplatonismo. Do panteísmo vago e líricos, os romances, de um estilo novelístico hoje já ligei-
entusiástico dos pré-românticos salvou-o o senso artís- ramente antiquado, e as numerosas opere errate que só
tico da forma: como supremo resultado da cooperação das um Benedetto Croce teve a coragem de condenar fran-
forças da Natureza, reconheceu a elaboração de tipos per- camente. Segundo a opinião de um crítico americano,
feitos nos quais a vida se cristaliza. Chegou a pensar numa Goethe criou um número maior de poesias líricas perfeitas
do que qualquer outro grande poeta — em todo o caso,
um mundo lírico completo, no qual estão representadas
94) W. Jablowski: Vom Sinn der Goetheschen Naturforachung. Berlln, todas as formas e metros: hinos pré-românticos em versos
1927.

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L620 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1621

livres ao lado de elegias à maneira de Propércio. Mas em rapidamente, e na época dos modernismos acabou. "What's
geral, são do tipo da poesia popular; são lieds. Da poesia price glory!" O único sucesso internacional de Goethe,
popular autêntica distingue-se pelo poder de transfigurar o Werther, deveu os aplausos à poesia ainda não "racio-
a Natureza, poder tão grande em Goethe que lembra a força nalizada"; o romance constitui exatamente o ponto de par-
das nações primitivas para criar mitos. A crítica fala, no tida da "éducation sentimentale" de Goethe. As fases se-
caso, de "imaginação criadora"; Goethe a sentiu como guintes estão marcadas: pelo titanismo trágico de Faust I;
expressão de forças perigosas na sua alma — falou do seu pela educação à conduta racional da vida, em Torquato
"Demónio"; e todo o trabalho da sua vida esteve dedicado Tasso; pela educação à "prosa" da vida, em Wilhelm Meis-
à tarefa de subjugar o Demónio que o levou a querer ter Lehrjahre (Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meis-
dominar os outros e incompatibilizar-se com o mundo. ter). E depois, o caminho recomeçou nas mesmas espirais,
As Wahlverwandtschaften, romance de psicologia são o mas num plano superior, em Wahlverwandtschaften, Faust
romance da vitória moral sobre o Demónio; e ainda em um II e Wilhelm Meisters Wanderjahre. Deste modo dialético
dos últimos e mais poderosos poemas, Trilogie der Lei- percorreu Goethe as fases literárias da "época de Goethe":
denschaft, surge até a sombra sangrenta de Werther. Con- do pré-romantismo, através do classicismo, até o roman-
tudo, Goethe encontrou o equilíbrio que o fez tirar a con- tismo — e, enfim, um realismo que é unicamente seu.
clusão da sua vida: "tudo o que chegaram a ver esses olhos Goethe, subjetivista pré-romântico, estava em harmonia
felizes, como quer que tenha sido — foi bom" — com o subjetiyismo da nascente literatura nacional; daí o
sucesso retumbante de obras como Goetz von Berlichingen,
"Ihr guecklichen Augen, Werther, Faust I, que mais tarde não se repetiu. Goethe,
W a s je ihr geseh'n, classicista, estava em harmonia com o mundo do Deus-
E s sei, wie es wolle, Natureza por intermédio da arte clássica: daí o paganismo
E s war doch so schoen." das Roemische Elegien e a santidade quase cristã da Iphi-
genie auf Tauris. Em Pandora, o classicismo de Goethe
O equilíbrio é o grande mistério de Goethe. A sua obra chegou a uma beleza quase super-real; e na pequena bio-
compreende toda a esfera de emoções humanas, e contudo grafia Winckelmann und sein Jahr hundert (Winckelmann
a sua poesia tem algo de disciplinado, de moderado; nas e seu século) foi capaz de redigir em termos lapidares
obras da velhice, até algo de frio. É — se isso existisse o testamento do grecismo conscientemente pagão e da ci-
— "poesia racional", que foi suspeita aos românticos; real- vilização renascentista. Testamento, porque em sua própria
mente, perdeu cada vez mais a influência sobre a literatura obra já estavam disseminados os germes do romantismo,
viva, na própria Alemanha. E não foi nunca realmente sobretudo em Faust, síntese de todos os seus esforços,
"popular"; o culto imenso, dedicado à sua memória, sugere comentário da sua vida e programa da evolução da lite-
antes a impressão de um culto dos lábios. Nem sequer ratura alemã: a primeira parte é principalmente pré-ro-
durante um momento a obra de Goethe cessou de ser objeto mântica, com antecipações classícistas (cena "Wald und
de leitura, estudo e do supremo prazer estético de todos H o e h l e " ) ; a segunda parte é toda ela classicista, mas
os cultos; mas, com o tempo, a influência de Goethe sobre Mefistófeles já não é um demónio pré-romântico e sim
realistas, naturalistas, simbolistas, expressionistas diminuiu u m ironista romântico; e o terceiro ato, o encontro do
1622 OTTO MARIA CARPEAUX H I S T Ó R I A DA LITERATURA OCIDENTAL 1623

Fausto germânico com a grega Helena, realiza em versos Schiller foi um desdobramento da estética kantiana; e num
sof oclianos uma aspiração que os românticos nem souberam sentido limitado pode-se afirmar que a filosofia de Kant ( 9B )
apreciar, a síntese entre a beleza antiga e a realidade constitui a base teórica do classicismo de Weimar. O
moderna. O fim, a ascensão de Fausto ao céu católico, conceito epistemológico de Kant, isto é, a limitação do
é calderoniano. Mas esse fim romântico coroa os trabalhos saber humano segundo as limitações das nossas faculdades
de Fausto em prol da conquista da terra para os homens de conhecer a realidade, destruiu igualmente a Razão todo-
do futuro; Goethe já está além do romantismo, na época poderosa dos racionalistas e os pseudo-conhecimentos fan-
das grandes empresas capitalistas e das reivindicações so- tásticos dos metafísicos. O saber humano não pode exceder
ciais, às quais alude mais do que uma vez em Wilhelm os dados, fornecidos pelos sensos e classificados conforme
Meisters Wanderjahre. O esboço de uma pedagogia social as categorias da nossa organização mental; o resto é obra
e da "religião do respeito", neste romance, é o comentário da imaginação. Com isso, teologia e metafísica estavam
do fim de Faust II; e as ideias de uma religiosidade livre, afastadas, ou antes foram substituídas por aquelas obras
nas Conversações com Eckermann, continuam a pedagogia da imaginação que não pretendem representar realidade:
social para além da morte, até aos reinos da imortalidade. as obras de arte. E a única limitação dessa atividade cria-
dora é a lei moral — moral autónoma aliás. Interpretando-
"Willst du in's Unendliche schreiten, se Kant assim, o idealismo epistemológico do filósofo
Geh' nur i mEndlichen nach allen Seiten." transforma-se naquele vago idealismo moral e estético que
é considerado como base teórica do classicismo de Weimar.
"Bildung", "formação", eis a grande lição que Goethe É evidente que esse idealismo não tem nada que ver com
deixou e que lhe justifica o "egoísmo"; o ideal da cultura o classicismo de Goethe; e é uma noção tão estreita que
universal do homem, o ideal da Renascença, chegou em nenhum classicismo cabe nesse conceito a não ser o de
Goethe ao auge e ao fim. Enquanto se pode dizer que "a Schiller. Em consequência disso, a historiografia literária
lição de Goethe" não é permanente, só não é porque não alemã, informada pelo classicismo "oficial" de Weimar,
será eterna a civilização que com os gregos começara. Goe- caiu em erro secular: Goethe e Schiller foram confundidos;
the é o último grego, o último grande individualista da os classicistas "dissidentes" foram maltratados, Heinse ca-
Renascença que com êle acabou. Viço afirmara que depois luniado e Hoelderlin esquecido. A verdade histórica só
dos heróis vêm os homens; depois de Goethe vieram os podia ser recuperada pelo estudo das fontes do classicis-
burgueses. Morreu dois anos depois da Revolução de Julho. mo ( 9 e ).

Goethe gostava de tecer teorias sobre as artes plásticas; A identificação de beleza estética e beleza moral não
em compensação, sentia repulsa pelas teorias literárias, é autenticamente kantiana; a estética de Kant-Schiller só
porque lhe perturbavam a elaboração subconsciente dos
seus projetos; e sentiu também repulsa pela estética, q u e
o aborreceu assim como todas as abstrações. Só a amizade 95) Immanuel Kant, 1724-1804.
Kritik der reinen Vernunft (1781); Kritik der praklischen Ver-
com Schiller, a partir de 1794, lhe sugeriu as considerações nunjt (1788); Kritik der Urteilakraft (1790).
estéticas, nem sempre felizes, que enchem a correspon- K. Vorlaender: Kant, Schiller, Goethe. Leipzig, 1907.
dência dos dois "príncipes dos poetas". A contribuição de 96) Fr. Schultz: Klassik und Romantik der Deutschen. Vol. I: Die
Orundlagen der klassisch-romantischen Kultur. Stuttgart, 1935.
1624 OTTO M A R I A CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1625

racionalizou, por meio daquela identificação, o conceito tianismo — conflito tipicamente barroco — rebentou no
de Winckelmann, a interpretação moral da beleza. Pela classicismo barroco de Hoelderlin. Nenhum destes é, de
mística da "simplicidade nobre e grandeza tranquila", modo algum, chefe de movimentos literários. Todos são,
Winckelmann pretendeu tornar aceitável ao mundo cristão principalmente Goethe e Hoelderlin, os classícistas mais
o neopaganismo grego. O realizador dessa síntese greco- autênticos, indivíduos mais ou menos isolados, porque o
alemã é Goethe: no auge do classicismo erigiu ao pre- classicismo alemão não teve bases populares.
cursor o monumento biográfico, já puramente pagão, de O classicismo pré-romântico de Heinse ( 9S ) surgiu no
Winckelmann und sein Jarhundert. Esse conceito estático mesmo momento que o classicismo de Goethe: Iphigenie
do classicismo recebeu o necessário élan vital pelo entusias- auf Tauris e Ardinghello saíram no mesmo ano de 1787.
mo pré-romântico de Shaftesbury; a influência imediata A historiografia literária, assustada pelo imoralismo de
de Shaftesbury sobre Herder, Goethe e Schiller foi incal- Heinse, cometeu contra êle a injustiça de caracterizá-lo
culável; e nos anos de Weímar veio juntar-se a influência como o "naturalista" do "Sturm und Drang" — apreciação
do filósofo holandês Frans Hemsterhuis (1720-1790) ( 9 7 ), das mais incompreensivas. Heinse é um grande escritor:
que transformara o irracionalismo místico de Hamann em na arte difícil de escrever em palavras obras de arte plás-
irracionalismo estético e moral, shaftesburyano. Hems- tica ninguém o alcançou em língua alemã, e poucos em
terhuis, já citado por Herder, foi fartamente utilizado por outras línguas. Não é menos digna de nota a espécie de
Schiller. Reduzido ao prazer individual da beleza, o entu- obras plásticas que estão descritas em Ardinghello: não
siasmo estético deveria acabar em orgia, conforme o dizer são estátuas gregas e sim quadros italianos da Renascença.
de Disraeli: "Toda religião da beleza acaba em orgia". Numa época em que Raffaello e Tiziano se citaram, com
Foi este o caso do classicismo pré-romântíco de Heinse. ar de indulgência, entre "os melhores imitadores dos an-
Herder escapou a esse perigo, substituindo o conceito da tigos", Heinse descobriu o valor próprio e independente
beleza individual pelo conceito da beleza coletiva, da for- da Renascença italiana, de Mantegna, Michelangelo, An-
mação estética das nações e da humanidade. Eis a fonte drea dei Sarto; é o percursor de Gobineau, Ruskin e
do realismo social das últimas obras de Goethe e da "reli- Burckhardt. Sua intuição genial baseava-se na lição de
gião do respeito". Neste classicismo só sobreviveram resí- Winckelmann — mas um Winckelmann visto através do
duos da mística cristã, pré-winckelmanniana; daí a apa- "naturalismo". Certo panteísmo fê-lo descobrir beleza em
rência pagã do classicismo de Weimar. Mas os weimarianos toda parte, nas obras de Deus-Natureza, nas obras do ho-
usaram a linguagem poética do mais cristão dos grandes
poetas pré-classicistas: Klopstock; de fontes barrocas,
tinha êle criado o estilo de expressão do qual Herder, 98) Johann Jacob Wilhelm Heinse, 1749-1803.
Goethe e Schiller se deviam fatalmente servir. Schiller, Ardinghello und die glueckseligen Inseln (1787); Hildegard von
Hohenthal (1795); etc.
o mais klopstockiano entre eles, fugiu para um moralismo Edição por C. Schueddekopf e C. Leitzmann, 10 vols., Leipzig,
sem acentos religiosos. O conflito entre classicismo e cris- 1907.
R. Roedel: Johann Jacob Wilhelm Heinse. Sein Lében und seine
Werke. Leipzig, 1892.
E. Utitz: Heinse und die Aesthetik zur Zeit der deutschen Auf-
klaerung. Halle, 1906.
W. Brecht: Heinse und der aesthetische Immoralismus. Berlin,
97) F. Bulle: F. Hemsterhuis und der deutsche Irrationalismus dei 18. 1911.
Jahrhunderts. Leipzig. 1911.
1626 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1627

mem-artista, e no próprio corpo do homem. J á se definiu e da literatura universal de todos os tempos, foi muito
Heinse, o secretário de um bispo corruto da Renânia, como maltratado pela posteridade. J á os contemporâneos o ti-
"Rousseau em uma corte do Rococó", explicando-se assim nham considerado apenas como imitador de Schiller; e
a sua lubricidade, o prazer em descrever cenas lascivas. quando o seu fracasso literário terminou na noite de qua-
Na verdade, as "cortes do Rococó" que Heinse conheceu, renta anos de loucura, Hoelderlin foi meio esquecido; a
já eram bastante classicistas: entusiasmavam-se por Caylus posteridade só guardou a imagem de um adolescente idilico
e Winckelmann, apreciavam muito a música de Gluck e e infeliz vivendo nas nuvens; e pouco faltou para as gera-
do seu emulo italiano, Jommelli — em Hildegard von ções mais realistas da segunda metade do século XIX
Hohenthal, forneceu Heinse admiráveis paráfrases verbais
zombarem do "idealista ingénuo" e "romântico" — até hoje,
de obras musicais. Do seu panteísmo pagão veio-lhe a
certos manuais continuam a falar do "romantismo de Hoel-
confusão entre natureza e arte, entre intuição e instinto;
derlin", certamente a mais imprópria entre as aplicações
enfim, o sexualismo requintado, que reaparecerá na Lu-
impróprias do termo. Consideravam-se como suas obras
cinde, do romântico Friedrich Schlegel. Heinse representa
mais típicas o romance Hyperion, sem realidade novelística
o classicismo pré-romântico.
alguma, e de poemas como Archipelagus, que é uma grande
No pólo oposto está Hoelderlin ( e o ) ; e o seu caso é elegia schilleriana. Admitiu-se-lhe talento elegíaco, e ci-
tanto mais sério, quanto é certo tratar-se não de um talento, tou-se em todas as antologias a elegia Hyperions Schick-
e sim de um génio; tanto mais sério que o seu mergulhar salslied, sem se compreender a profundeza metafísica da
na loucura não representa um caso pessoal, mas simboliza última estrofe, descrevendo a queda "fatal" dat criaturas
o último conflito entre classicismo e cristianismo antes humanas" para o "abismo do incerto":
de ambos desaparecerem, provisoriamente, da literatura
europeia. Hoelderlin, um dos maiores poetas da Alemanha
" E s schwinden, es fallen
Die leidenden Menschen
99) Friedrich Hoelderlin, 1770-1843. Blindlings von einer
Hyperion (1797/1799); Lyrische Oedichte (1826).
Edições: por N. Hellingrath, F. Seebass e L. Pigenot, 6 vols., Stufe zur andren,
Muenchen, 1913/1923; por W. Boehm, 5 vols., Jena, 1924; por W i e Wasser von Klippe
Fr. Beissner, 8 vols., Stuttgart, 1947/1955.
W. Dllthey: "Hoelderlin". (In: Erlebnis und Dichtung. 7.a ed. Zu Klippe geworfen,
Leipzig, 1920.) Jahrlang ins Ungewisse hinab".
W. Michel: Friedrich Hoelderlin. Weimar, 1920.
K. Victor: Die Lyrik Hoelderlins. Frankfurt, 1921.
I. Maione: Hoelderlin. Torino, 1926.
W. Boehm: Hoelderlins Leben. 2 vols. Halle, 1928/1930. Só Nietzsche descobriu nessa definição poética da exis-
F. Beissner: Hoelderlins Uebersetzungen aus dem Griechischen. tência humana pessimismo e fatalismo autenticamente
Stuttgart, 1953.
P. Bertaux: Hoelderlin, essai de biographíe intérieure. Parla, gregos, o "lado noturno da Grécia" que os "idealistas"
1936. Goethe e Schiller calaram e esconderam, se não o igno-
P. Boeckmann: Hoelderlin und seine Goetter. Muenchen, 1936.
W. Michel: Dos Leben Friedrich Hoelderlins. Bremen, 1949. raram. Os nietzscheanos celebraram o Hoelderlin dioni-
M. Heidegger: Erlaeuterungen zu Hoelderlins Dichtung. Frank- síaco, ébrio de entusiasmo divino, dançando sobre os
furt, 1951.
A. Pellegrlnl: Hoelderlin. Storia delia critica. Firenze, 1956, abismos da existência humana, revelando aos mortais o
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1629
1628 OTTO MARIA CARPEAUX

segredo dos deuses e castigado, por estes, com a loucura e sim obra de imaginação que pretende substituir as defi-
sagrada. E agora se descobriu que justamente os maiores ciências da realidade. Nisso, o classícista Hoelderlin não é
poemas de Hoelderlin nasceram quando ele j á estava louco. só o contemporâneo dos classicistas de Weimar. Mas o
Um poema "puro", quase um lied, como Haelftç des Lebens, seu classicismo é — ao contrário do que parece — menos
revelou agora sentido profético. Deu-se importância espe- idealista e mais realista; Goethe e Schiller nunca esque-
cial aos colossais fragmentos de hinos e odes que a loucura ceram o caráter ideal, isto é, irreal, das suas produções
não deixara mais terminar. Falava-se de poeta pindárico, poéticas, ao passo que Hoelderlin, por mais estranho que
do único poeta pindárido dos tempos modernos, no mo- pareça, acreditava literalmente nos deuses gregos, como
mento em que a sua personalidade poética estava mais se êle mesmo fosse um grego. O seu fatalismo faz parte
romantizada do que nunca. O neo-romantismo de 1910 gos- do credo grego; no hino Pôr-de-sol interpretou o crepús-
tava de opô-lo a Goethe: seria êle o maior poeta alemão, culo como êxodo do deus —
o poeta de uma nova juventude heróica. Hoelderlin voltou
a ser o poeta dos estudantes; e dizem que os estudantes "Doch fern ist er zu frommen Voelkern,
voluntários, que caíram em 1914, na batalha de Langemarck, Die ihn noch ehren, hinweggegangen".
tinham nos lábios os versos nos quais Hoelderlin celebrara
o suicídio heróico como "volta aos deuses", como "o ca- Hoelderlin é filho da Suécia; país arquiluterano, mas em
minho mais curto para voltar ao Universo": que — coisa que não aconteceu em outra parte — pululavam
as seitas pietistas e outras, apocalípticas e schilliastas e cren-
"Denn selbstvergessen, allzu bereit den W u n s c h tes na metempsicose. Ao mesmo tempo, a Suévia é o país
Der Goetter zu erfuellen, ergreift zu gera, da mais rígida disciplina humanista; o colégio de Maul-
W a s sterblich ist bronn e a Universidade de Tuebingen são verdadeiros ni-
ins Ali zurueck die kuerzeste Bahn." nhos do grecismo mais ortodoxo. Hoelderlin encheu a
filologia clássica, que lhe transmitiram, com o fervor
É preciso, porém, tomar a sério as palavras do poeta místico dos seus antepassados; também ficou impressionado
pelo panteísmo órfico do seu condiscípulo e amigo de
sem cair em anacronismos. O conceito do suicídio, em
mocidade, Schelling, o futuro filósofo do romantismo; e
Hoelderlin, não é expressão de heroísmo patriótico; mas
acabou acreditando na mitologia grçga. A consequência
tampouco deve ser encarado como mero verbalismo esté-
foi a luta íntima entre classicismo e cristianismo na alma
tico. Hoelderlin não é nada esteta; e as comparações fre-
do poeta, encontrando expressão definitiva na ode Patmos,
quentes do poeta alemão com Chénier e Keats não servem
na qual Cristo aparece entre os deuses do Olimpo grego.
para interpretá-lo bem. O romance "idealista" Hyperion
O fim, a exigência da "boa interpretação da letra" —
está no pólo oposto de Ardinghello, com o qual tem certas
semelhanças exteriores; não porque seja mais "moral" ou
menos individualista, manifestando preocupações bastante " . . . dass gepfleget werde
realistas e muito justificadas em torno do destino da civi- Der feste Buchstab' und Bestehendes wohl
lização alemã; mas porque não é fantasia irresponsável Gedeutet..."
1630 OTTO MARIA C A R P E A U X HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1631

— é indubitavelmente luterano, coisa da qual não existe por Goethe. O classicismo órfico ficará sempre isolado
traço em Goethe e Schiller, embora fossem batizados na — e até evidenciará as aparências de caso patológico —
igreja luterana. Com efeito, a língua solene, sublime, festi-
porque se refere àquela parte da civilização antiga que
va de Hoelderlin pareceu somente schilleriana, e êle pareceu
o Ocidente moderno não herdou, nem assimilou, nem pôde
apenas um epígono de Schiller enquanto esteve esquecido
assimilar.
o papel histórico do grande poeta, este realmente luterano,
que criara a língua poética dos alemães: Klopstock. Em A "tragédia" da literatura alemã — a expressão talvez
Klopstock aprendeu Hoelderlin a ambição de imitar os seja forte demais — não consistiu, porém, em uma confusão
complicados metros gregos — Schiller nunca pensou nisso; entre Hoelderlin e Goethe; a sua evolução histórica não
e de Klopstock provém o tom misterioso, órfico, das tra- seguiu nenhum dos dois, e sim Schiller. Com êle é que
duções de Hoelderlin é, assim como o fora o estilo de Goethe foi confundido.
Klopstock, barroco; e o hermetismo da sua expressão só O classicismo barroco de Hoelderlin malogrou pelo
foi plenamente compreendido, quando a poesia barroca mesmo fato que fêz fracassar o humanismo do Barroco
ressurgira do esquecimento multissecular. Desde então, alemão: pela intervenção do cristianismo luterano, gótico,
Hoelderlin está sendo cada vez mais "atualizado". Em antigrego. O classicismo de Goethe não se chocou com
1930, Pierre-Jean Jouve já o pôde celebrar como precursor o mesmo obstáculo; mas é significativo que a resistência
do surrealismo. Compararam-no, então, a Nerval e Van alemã contra a influência de Goethe se tivesse servido
Gogh. Poucos anos mais tarde, Hoelderlin aparece entre tantas vezes de pretextos cristãos. Pretextos foram, porque
os precursores do existencialismo: assim lhe interpretou
a resistência não se limitava aos grupos cristãos — os
Martin Heidegger vários poemas, como expressões da an-
nacionalistas de 1813 e os liberais e radicais de 1830 usaram
gústia metafísica. Mas nenhuma interpretação, seja psico-
contra Goethe argumentos muito parecidos. Na verdade,
patológica, seja filosófica, atinge o fundamento dessa Obra
o classicismo de Goethe ficou como um fenómeno isolado,
que o próprio poeta definiu como "o que permanece":
porque na Alemanha não se encontrava a base social de
um classicismo como movimento: não havia burguesia. Os
" W a s bleibt aber, stiften die Dichter". começos da revolução económica na Alemanha foram su-
focados pelas invasões bélicas dos jacobinos e de Napoleão.
Hoelderlin é hoje um dos poetas de maior influência na Em vez de uma burguesia com sólidas bases económicas,
literatura universal. Mas não se pode afirmar que o sentido havia só o "Bildungsbuerger", o alto funcionário ou rendei-
dos seus versos já tenha sido inteiramente decifrado. ro abastado de formação humanista, isto é, o pequeno grupo
Ninguém já pensa em comparar Hoelderlin a Chénier que produziu e compreendeu o classicismo de Weimar.
ou Keats. Se não se pode deixar de tecer comparações, Goethe, filho do patriciado de Frankfurt, era um "Bil-
só pode ser lembrado Blake. Como profetas órficos, são dungsbuerger" assim. E esse grupo não teve futuro. O
dois grandes isolados. Ninguém compreenderia a evolução futuro pertenceria a uma outra classe, à pequena-burguesia
da literatura inglesa, colocando Blake no lugar ocupado por de então, que chegará a ser grande burguesia pela revolução
Wordsworth. Tampouco é possível colocar Hoelderlin no económica da primeira metade do século XIX. A essa
centro da literatura alemã: pois esse centro está ocupado pequena-burguesia futurosa pertenceu Schiller.
L632 OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1633

Schiller ( l0,) ) percorreu, aparentemente, o mesmo ca- pendant da última fase, da fase de realismo social de
minho que Goethe. Começou com dramas violentos, ao Goethe. Na verdade, a evolução de Schiller é diferente
gosto do "Sturm und Drang", em prosa realista: a tragédia em todos os pontos e sentidos. Veio êle da pequena-bur-
da revolta anarquista contra toda a injustiça, Die Raeuber, guesia luterana, perturbada pela corrução das pequenas
que excitou a Alemanha inteira e continua a excitar os cortes afrancesadas do Rococó pela influência de ideias
adolescentes; a "tragédia republicana" Fiesko; o drama racionalistas. As tragédias do "Sturm und Drang", de Schil-
social Kabale und Liebe, contrastando de maneira revolu- ler, são revolucionárias e veementes como as de Alfieri;
cionária a corrução da corte e a honestidade da desgraçada mas a forma verbal é diferente. Estão numa prosa bombás-
pequena-burguesia. Depois, de repente, Schiller abandonou tica, bem barroca, correspondente ao lirismo klopstockiano,
a prosa, apresentando Don Carlos, grande tragédia histórica ao que Schiller sacrificara nas suas primeiras poesias.
em verso branco, pregando ideias rousseauianas de liberdade Partindo do pré-romantismo de pobre estudante atrasado,
e tolerância, embora já bem atenuadas. Seguiram-se mais chegou o dramaturgo ao classicismo aburguesado; em vez
de dez anos de estudos históricos e filosóficos, até aparecer de escrever, como Goethe, dramas líricos para a leitura,
a obra-prima de Schiller, a trilogia histórica Wallenstein. transformou o género dos grandes espetáculos barrocos em
Então, o dramaturgo já era o grande "clássico" do teatro género da moderna tragédia histórica. Atenuou a ideologia
alemão, clássico algo à maneira francesa, pela regularidade rousseauiana até a um liberalismo bem moderno, de frases
da composição e a eloquência dos discursos no palco, qua- esplêndidas sobre Liberdade e Tolerância, que não chamam
lidades que se acentuam em Maria Stuart e em Jungfrau a atenção da polícia. Nesse conformismo relativo, Schiller
von Orleans. Enfim, Wilhelm Tell, o drama da liberdade é um descendente da tragédia clássica francesa, apenas com
suíça, tornou-se a "peça nacional" do teatro alemão; parece algo mais de liberdade dramatúrgica; realizou o que Les-
sing exigira. Criou o teatro alemão.
100) Johann Friedrich Schiller, 1759-1805. (Cf. nota 41.) Schiller é, na Alemanha, incomparavelmente mais po-
Die Raeuber (1781); Die Verschwoerung des Fiesko zu Genua
(1783); Kabale und Liebe (1784); Don Carlos (1787); Der Geis- pular do que Goethe. É lido nas escolas, querido da
terseher (1789); Ueber Anmut und Wuerde (1793); Ueber naive mocidade e citado por todos a toda hora. Forneceu à língua
und sentimentalische Dichtung (1796); Wallenstein (1800);
Gedichte (1800/1803); Maria Stuart (1801); Die Jungfrau von corrente um tesouro enorme de expressões, citações, frases-
Orleans (1802); Die Braut von Messina (1803); Wilhelm Tell feitas. Mas a mais citada das frases-feitas não é dele, e sim,
(1804); Demetrius (1805).
Edição por C. Schueddekopf e C. Hoefer, 22 vols., Muenchen, em torno dele: é a expressão "Goethe e Schiller". J u s -
1910/1926. i tifica-se pelo fato biográfico da amizade pessoal entre os
O. Brahm: Schiller. 2 vols. Berlin, 1888/1892.
0. Thomas: The Life and Works o) Friedrich Schiller. New dois poetas. Mas não se justifica como fato central da
York, 1901. história da literatura alemã. Não é, porém, necessário po-
K. Berger: Schiller. Sein Leben und seine Werke. 2 vols.
Muenchen, 1905/1909. lemizar contra essa rotina dos manuais. Os próprios ale-
1. G. Robertson: Schiller after a Century. Edinburg, 1906. mães já começaram a reduzir a admiração nacional por
L. Bellermann: Schíllers Dramen. 5.' ed. 3 vols. Berlin, 1914/
1919. Schiller a termos mais justos. É conhecido o protesto
Fr. Strich: Schiller. Sein Leben und seine Werke. Berlin. 1928. de Nietzsche contra o " e " naquela frase-feita "Goethe e
R. Buchwald: Schiller. 2 vols. Leipzig, 1937.
M. Gerrard: Schiller. Bem, 1950. Schiller". Os realistas e naturalistas alemães sempre de-
E. L. Stahl: Friedrich Schiller's Drama. Oxford, 1954. testaram o idealista Schiller, denunciando-lhe a tendência
B. von Wiese: Schiller. Berlin, 1959.
163»
OTTO M A R I A CARPHAUX
HlSTÓlUA l»\ I ITI.MAU 1 1688
de abrandar e amenizar os fatos duros da realidade i o d a i
Schiller tem "les vertus de ses défauti". A f r a n q u t i t
e histórica. Mas não se trata, como se poderia pensar, da
ideológica dos seus conflitos dramáticos fax a força do»
um protesto ideológico. Pois os poetas e críticos do sim-
efeitos cénicos. A esse respeito, o dramaturgo alomio é
bolismo e do pós-simbolismo também continuam hostis a
infalível: é um dominador do palco e das plateias.
Schiller ou indiferentes. O verdadeiro objeto da crítica
é o estilo, a linguagem do dramaturgo. Por isso não parece justo censurar-lhe a falta de liris-
mo. É menos poeta do que grande orador, vigoroso jor-
As poesias de Schiller não são absolutamente medío- nalista em versos dramáticos, um moralista dos ideais
cres. Não se pode negar às popularíssimas baladas o talento
burgueses. Atrás das aparências nota-se um dramaturgo
narrativo nem aos poemas filosóficos a felicidade na ex-
burguês, menos radical do que Ibsen, mais poético do que
pressão de pensamentos importantes. A p e n a s : não se trata
Augier; um mestre da propaganda dramática, como Shaw
de poesia lírica. Schiller, mestre da retórica sonora, não
— e, apesar de tudo, superior a todos eles pela nobreza
possui lirismo nenhum. A sua linguagem dramática, tão
da sua atitude literária e humana. E r a um pequeno-burguês,
sentencíosa, que boa metade dos seus versos entrou naquele
mas filho de uma época de grande literatura; e foi amigo
"tesouro das citações frequentes", não serve para caracte-
de Goethe. É muito difícil qualquer afirmação quanto
rizar os personagens, mas para manifestar as ideias do
dramaturgo. aos valores permanentes que criou: Kabale und Liebe e
Wallenstein ficarão decerto para sempre; Don Carlos e
Essas ideias são, em grande parte, as de Kant. No Wilhelm Tell ainda por muito tempo; Maria Strart é uma
terreno da estética, os escritos de Schiller aprofunda- peça de efeito garantido; o resto importa só aos diretores
ram e ampliaram muito o pensamento kantiano. No de teatro. Apesar do ódio, às vezes fanático, que todos
terreno da ética, Schiller é menos profundo. O rigor do os shakespearianos, realistas, naturalistas e simbolistas ale-
"imperativo categórico" transforma-se-lhe em disciplina mães lhe dedicaram, de modo que a sua influência sobre
dos instintos e sentimentos que o dramaturgo considera a literatura viva já desapareceu há decénios, Schiller con-
como menos compatíveis com os elevados ideais da conduta tinua dominando o palco do teatro alemão; mas não aparece
política e particular. Todos os conflitos reduzem-se-lhe a com frequência nos palcos estrangeiros. Não é um grande
um s ó : o conflito que o dramaturgo chega a perceber atrás poeta nem um dos maiores dramaturgos da literatura uni-
das grandes crises históricas. Dá à História, conforme a versal, mas um grande moralista alemão.
observação maliciosa de Nietzsche, "uma injeção de mora-
lina". E ela vira o "Tribunal da Justiça eterna". A importância de Schiller na evolução da "cultura"
alemã é muito maior do que a dos valores literários que
Não é uma filosofia muito profunda da história, esta. êle criou ( l 0 1 )- Para os alemães, Schiller desempenhou
Estraga por completo a tragédia de Joana d'Arc, na Jung- o papel de Rousseau na França e no m u n d o : educou o
frau von Orleans. Prejudica seriamente o conflito real- pequeno-burguês para a ação histórica, ensinando-lhe a
mente político-histórico em Wallenstein que é, no entanto, agir em harmonia com ideais, ou então — a definição
a obra-prima de Schiller. Mas prejudica muito menos a depende do ponto de vista — a alegar ideais como motivos
tragédia de Maria Stuart, porque nessa obra o conflito da sua ação. Uma das razões da grande influência de
histórico já está reduzido a conflito psicológico. É, de
todas as peças de Schiller, a de mais seguro efeito no palco.
101) H. Cysarz: Von Schiller zu Nietzsche. Halle, 1928.
1636 OTTO MARÍA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1637

Schiller é a sua neutralidade religiosa: conservando os nário da seita dos Herrnhuter. A sua inteligência lúcida
princípios da moral cristã e proclamando a sua fé na justiça e crítica não aceitou nada ou pouco do pietismo sentimental
divina na História, nunca chega a exigir a adesão a defi- ou das fantasias apocalípticas sobre uma Terceira Igreja.
nições dogmáticas, de modo que os protestantes, os cató- Mas recebeu e aceitou tudo isso em forma já secularizada:
licos e os livres-pensadores se podiam reunir, sem escrú- em Winckelmann, seu mestre no grecismo, aprendeu a
pulos, na sua sala de espetáculos morais. Schiller é uma mistura de religião e estética, a religião da beleza; em
das maiores forças da secularização da moral cristã. Uniu Lessing, a ideia de uma educação da Humanidade para
a nação politicamente ainda não definida, ou antes, criou além do cristianismo. Schleiermacher é o padre de uma
a consciência nacional dos alemães, dando-lhes como ban- Igreja nova: a do luteranismo novo, em que o dogma é
deira quase religiosa os ideais da futura burguesia. Esses substitbído pelo vago "sentimento da dependência cós-
ideais, vestiu-os Schiller do heroísmo histórico das suas mica", de modo que a crítica bíblica mais radical chega
tragédias; deu ao burguês alemão, então em situação social a perturbar a vida eclesiástica; o cidadão, permanecendo
muito precária, a consciência da superioridade pela "cul- calmamente na Igreja oficial, concentra todo o seu entu-
tura", pela "Bildung". Com isso, Schiller restabeleceu o siasmo religioso no culto das ciências, das artes e da lite-
que o racionalismo da Ilustração e o rousseauianismo pré- ratura. Schleiermacher terminou a obra de secularização
romântico perturbaram: o equilíbrio íntimo do alemão de Schiller: criou um novo protestantismo alemão, deu ao
luterano. O burguês idealista e moderado de Schiller é "Bildungsbuerger", ao "burguês culto", a "Bildungsreli-
perfeitamente identificado com o luterano de sempre, sú- gion", a "religião da cultura", a religião do século XIX.
dito submisso do Estado e pensador de liberdade ilimitada. E para cultivá-la organizou Wilhelm von Humboldt ( 1 0 2 ' A ),
O programa de ação desse tipo humano foi estabelecido a Universidade de Berlim, a Universidade de Hegel e,
por Friedrich Schleiermacher ( 1 0 2 ). As suas relações pes- mais tarde, de Dilthey. O fino esteta, criador da linguística
soais, íntimas, com os românticos de Iena e a sua atuação comparada e adepto do liberalismo humanitário, é um dos
como pregador em Berlim, na época do levante nacional fundadores da Prússia moderna.
prussiano contra Napoleão, deram-lhe a fama de romântico.
O seu estilo e a sua tradução admirável dos diálogos de O famoso " e " em "Goethe e Schiller" tem significação
Platão indicam antes relações com Weimar; as suas origens histórica. "Goethe, to the great majority of you, would
espirituais são, porém, diferentes. Era silesiano, da terra remain problematic, vague", disse Carlyle aos ingleses;
dos místicos barrocos da Alemanha. Formou-se num semi- e podia dizer o mesmo aos alemães. Só entre 1770 e 1780,
Goethe foi realmente o chefe da literatura alemã; depois
subiu a alturas inacessíveis, e só o seu nome ficou na terra,
servindo de pseudónimo ao domínio espiritual de Schiller
102) Friedrich Ernst Daniel Schleiermacher, 1768-1834. e Schleiermacher. Na literatura também: os chamados
Reden ueber die Religion (1799); Monologen (1800); tradução
de Platão (1804/1809); Christliche Glaubenslehre (1821/1823); epígonos de Goethe são todos, no fundo, epígonos de
etc, etc.
Edição de obras escolhidas por O. Braun e J. Bauer, 4 vols.,
Leipzig, 1910/1913. 102A) Wilhelm.von Humboldt. 1767-1835.
W. Diíthey: Das Leben Schleiermachers. 2.» ed. Berlin. 1922. A. Leitzmann: Wilhelm von Humbdolt. Halle, 1919.
W. Luetgert: Die Religion des deutschen Idealismus. 3 vols. S. A. Koehler: Wilhelm von Humboldt und der Stat. Muen-
Guetersloh, 1923/1925. chen, 1927.
16:ÍH OTTO MARIA CARPEAUX HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 1639

Schiller, de Platen até aos poetastros que ainda na segunda Weimar era uma cidade nas nuvens, pátria celeste de um
metade do século X I X fabricaram inúmeras tragédias his- grupo — ou, se quiserem, de uma classe — de homens
tóricas em versos brancos. O pseudoclassicismo de um cultíssimos. Uma aristocracia da inteligência criou aquelas
pseudo-Weimar conquistou a Alemanha burguesa; mas só isuas obras em meio de uma miséria revoltante dos peque-
assim Weimar podia conquistar os alemães. Esse pseudo- inos-burguses e camponeses, e também dos pequenos inte-
classicismo é a forma sob a qual a Alemanha aceitou a lectuais, dos pastores protestantes e mestres-escola. A
Revolução burguesa, formando uma burguesia que sobre- maioria esmagadora da nação estava contra Weimar; não
viverá ao romantismo antiburguês e será positivista. apenas contra Goethe, mas também contra Schiller, en-
O classicismo alemão é uma renascença platónica do quanto estava ligado a Goethe. Em 1796, ocorreu a Goethe
misticismo europeu. Pelo platonismo, por mais afrouxado e Schiller a ideia pouco feliz de lançar as Xenien, coleção
que já tenha sido, conseguiu-se transformar a Alemanha de epigramas satíricos contra a mediocridade literária dos
luterana e pietista, até então separada da Europa ocidental, racionalistas, sentimentalistas e pré-românticos obstinados;
em país do "protestantismo cultural", científico e literário, rebentou uma grande guerra literária, e entre os inimigos
enfim europeizado; nesse momento, madame de Staél des- apareceram os velhos Gleim, Klopstock e Herder ( , 0 4 ) .
cobriu a Alemanha para os franceses e para a Europa. Segundo estudos recentes ( 1 0 5 ), não se tratava de um in-
Terminara a evolução que Gottsched, Lessing e Herder cidente isolado, mas de uma luta permanente: na verdade,
inciaram, a tarefa de europeizar a Alemanha, à qual coube, Weimar não era a capital literária da nação.
então, a missão histórica de divulgar o romantismo. Por Racionalismo, sentimentalismo e "Sturm und Drang"
isso, Weimar parece clássica aos alemães e romântica aos sobreviveram muito bem, embora não como alta literatura,
estrangeiros que só lhe sentiram os efeitos. Como europeu, mas como literatura vulgar, leitura dos pequenos intelec-
Goethe era romântico, e a Europa aceitou-o como român- tuais e do povo. Em Berlim, o velho racionalista Nicolai,
tico. Como alemão, Goethe foi classicista; e os românticos o último dos amigos de Lessing, continuava como ditador
alemães revoltaram-se contra êle. Mas não só os român- á crítica literária. No teatro dominou o drama burguês
ticos; também o pré-romantisrno que êle abandonara. Só choroso de Kotzebue, sofrendo apenas a concorrência
no século XIX, uma pseudo-Weimar venceu; a verdadeira dos imitadores incansáveis do Goetz von Berlichingen,
Weimar era insuportável aos contemporâneos. entre eles alguns dramaturgos de talento e sucesso como
Joseph August von Toerring (Agnes Bernauerin, 1780),
No classicismo de Weimar há um irrealismo funda-
e Joseph Marius Babo (Otto von vVitelsbach, 1782) ( 1 0 6 ).
mental. Um dos seus críticos mais penetrantes, o teólogo
Os livros mais lidos eram os "romances góticos" ale-
protestante Paul Tillich ( 1 0 3 ), chama a atenção para a
indiferença dos "clássicos" de Weimar com respeito aos
interesses e necessidades mais urgentes da nação, naquela 104) E. Boas: Schiller und Goethe im Xenienkampf. 2 vols. Stutt-
época, e a indiferença de todos os classicistas pseudo- gart, 1851.
weimarianos, do século XIX, a respeito do proletariado. 106) A. Bettex: Der Kampf um das klassische Weimar. Zuerich,
1936.
108) O. Brahm: Das deutsche Ritterdrama des 18. Jahrhunderts.
103) P. Tillich: Kairos. Vol. I. Darmstadt, 1926. Strasbourg, 1880.
1640 O T T O M A R I A CARPEAUX

mães ( 1 0 7 ), fabricados em massa por literatos como Spiess,


Cramer e Vulpius; este último, por sinal, cunhado de
Goethe. A solidão de Goethe e Schiller no seu tempo
foi um dos motivos de sua amizade pessoal, produzindo-se
depois o " e " dos confusionistas. Mais tarde, a burguesia
já avançada pôde aceitar Schiller; então, o antigo rous-
seauiano e revolucionário pareceu traidor aos pequenos ÍNDICE DO VOLUME I I I
intelectuais, aos vigários e professores de aldeia que viviam
com o povo. O "clássico" deles era Jean P a u l ; e com este,
PARTE VI
o pré-romantismo sentimental dá as mãos ao romantismo,
como se Weimar nunca tivesse existido.
ILUSTRAÇÃO E REVOLUÇÃO
Goethe não possuía, no seu tempo, justamente aquilo
que a posteridade lhe concedeu sem hesitação: autoridade.
Capítulo I
O fundamento do seu classicismo e de todo classicismo, a
autoridade dos antigos, já estava abalado demais pelo pré-
Origens Neobarrocas 1 175
romantismo. O classicismo alemão, sem sólida base social
nem literária, não corresponde ao classicismo do Estado Capítulo II
unitário de Luís X I V nem ao classicismo da burguesia
inglesa depois de 1688; corresponde antes ao classicismo Classicismo Racionalista 1 283
provinciano das pequenas repúblicas italianas das proto-
renascenças. Como estas, preparou apenas uma época bur- Capitulo III
guesa; em Faust II, a tragédia do empreendedor moderno,
Goethe resumiu todas as Renascenças passadas e antecipou O Pré-romantismo 1 369
o realismo do século por vir. Foi a última das Renascenças.
Capítulo IV

O Último Classicismo . 1 523

107) K. Mueller-Fraureuth: Die Ritter- und Raeuberromantik.


1899.

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