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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESElSfTAQÁO
DA EDIpÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que elevemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
" visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propoe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. EstevSo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
< SUMARIO

Simples Voz ou Palavra de Deus?

A Encíclica "Rerum Novarum"


t-

A Ressurreicao de Jesús

O A Cruz, Sinal do Cristao

< Síndrome Videocompulsiva

A Igreja "Clandestina" na Tchecoslováquia


m

O
ce
CL

AMOXXXII AGOSTO 1991 351


PERGUNTE E RESPONDEREMOS
Publicado mansa!
AGOSTO - 1991
N9 351

Dwctor-Rcsponsawl:
SUMARIO
EttévSo Bettencourt OS8
Autor e Redator de toda a materia
Simples Voz ou Palavra de Deus? 337
publicada oeste periódico
Centenario de
Diretor- Adm inistrador: A Encíclica "Rerum Novarum"
O. Hildebrando P. Martins OSB deLeSoXIll 338

Admvmtracáo e distribui^io: Fato histórico? Mito?


Edicóes Lumen Christi A Ressurreicao de Jesús 350
Dom Gerardo. 40 - S? andar. S/501
Há quem negué:
Tel: (021) 291 7122
A Cria, Sinal do Cristáo 364
Caixa Postal 2666
20001 - Rio de Janeiro - RJ Excesso de Televisáo:
Síndrome Videocompulsiva 375
Impressáo e Enca<le>na(éo
Sob a perseguicáo:
A Igreja "Clandestina" na
Tchecoslováquia 379

"MARQUES-SARAJVA"
GRÁFICOS E EDITORES S.A^
Tels (OÍ1IÍ73-949I> ?'3-944

NO PRÓXIMO NÚMERO:

A encíclica "Centesimus Annus". - A violencia e a pena de Morte. - "Ma-


turidade sexual; Solucáo para a AIDS" (Jack Dominian). - Eutanasia no
Brasil?

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA.

ASSINATURA ANUAL (12 números): Cr$ 4.000,00 - Número avulso ou atrasado: Cr$ 400,00

Pagamento (á escolha).
1. VALE POSTAL á agencia central dos Correios do Rio de Janeiro em nome de Edi
cóes "Lumen Christi" Caixa Postal 2666 - 20001 - Rio de Janeiro - RJ.
2. CHEQUE NOMINAL CRUZADO, a favor de Edicóes "Lumen Christi" (endereco
\ agina»''' "
3. QRRE$!pE PAGAMENTO, no Banco do Brasil, conta N? 31.304-1 em nome do
Mosteiro de Sao Bento. pagável na agencia Praca Mauá/RJ N? 0435-9. (Nao enviar
. -.ajravej.4g.QPC ou depósito instantáneo - A ¡dentificacáo é difícil).
Simples Voz ou Palavra de Deus?
O Imperador Trajano (98-117) em 107 quis oferecer ao povo de Roma
"grandioso espetáculo": homens ilustres e gladiadores seriam expostos a
11.000 feras no Coliseu, a fim de que o público presenciasse a luta e "se d¡-
vertisse".1 Entre os condenados, estava um cristao chamado Inácio, bispo
de Antioquia (Siria). Fora preso por causa da sua fé. Durante a viagem para
Roma, a escolta que o acompanhava fez escala em Esmirna (Turquia de
hoje); ai Inácio resolveu escrever urna carta aos crístaos de Roma...

E que Ihes diría? — Quería pedir-lhes que nao intercedessem em seu


favor junto ás autoridades imperiais, mas deixassem que fosse levado até o
certame final e o martirio.3 Dessa carta merece destaque, entre outros, o
seguinte trecho:

"Se vos calardes a meu respeito, serei Palavra (Lógos) de Deus; se,
porém, amardes a minha carne, serei simples voz (phoné)" (n? 2).

A distíncáo entre phoné — simples voz — e lógos — palavra ou discurso


significativo - era usual entre os amigos. S. Inácio a aplica a si: o martirio
ou o testemunho de Cristo proferido até a morte cruenta o tornará palavra
de Deus; caso contrario, perdería a grande oportunidade da sua vida e se jul-
garia reduzido á condicao de simples sopro.

Os dízeres de S. Inácio tém valor perene. Lembram-nos que todo ho-


mem, por seu teor de vida, pode assumir tres configuracóes:

— será simples voz, sem significado, caso ceda á futilidade, supondo


um coracao vazio;
— será palavra de homem, caso sua vida se norteie pelas luzes da
mera razáo ou pela mensagem de um filósofo sem fé;
— será Palavra... de Deus, desde que o crístáo faga da mensagem do
Senhor o dínamo da sua existencia. Em tal caso, o seu viver já é Palavra de
Deus! Tal é a dignidade máxima que a vida humana possa assumir, qualquer
que seja a sua classe social; despretensiosa, voltada para os afazeres modestos
de cada dia, tal existencia traduz concretamente a mensagem de Deus. Mes-
mo que fale pouco, tal vida é eloqüente e persuasiva; ela levanta os ánimos e
abre horizontes O mundo procura tal tipo de existencia, pois está cheio
de vozes (phonai), mas carente de Logos (Palavra) de Deus.

Todo cristao é chamado a responder a tal anseio, fazendo de sua vida


a expressSo da mensagem de Deus. E.B.

1 NSo sem razio se diz que o povo da antiga Roma se contentava com panes
et circenses (pió e espectáculos de circo).
2 "Deixai que se/a presa dos animáis ferozes;por eles chegarei a Deus; oxalá
seja mofdo pelos dentes dos animáis, para tomar-me o pió puro de Cristo"

BIBUOTEC
337
"PERCUNTE E RESPONDEREMOS"

ANO XXXII - N? 351 - Agosto de 1991

Centenario de:

A Encíclica "Rerum Novarum"


de Leao XIII

Em sin tese: A encíclica Rerum Novarum de Leao XIII leva em conta a


mísera condicao dos operarios no sáculo passado, explorados que eram polo
capitalismo selvagem. Propoe, portan to, os direitos fundamentáis do traba-
Ihador: salario justo, repouso dominical, limitacao das horas de trabalho,
considerado das muiheres e enancas que trabalham, possibiUdade de que o
operario vé constítuindo o seu patrimonio particular...

Tal documento foi tido como revolucionario na sua época; parecía


exigente demais; hoje é considerado aínda muito tímido, pois novas reivin-
dicaedes da classe operaría se fazem ouvir. Se, porém, hoje as leis trabalhis-
tas garantem ao operario direitos indispensáveis para que leve vida digna,
isto se deve, em grande parte, ao brado de alarme levantado pelo Papa Leao
XIII há cem anos, quando publicou a sua encíclica "Sobre a Condicao dos
Operarios". De resto, a encíclica conserva a sua plena atualidade pelo fato
de que nao raro sao violados alguns dos principios que ela formula e que pe-
dem aplicacao mais estrita e fiel em vérios setores da economía contem
poránea.

***

Aos 15/05/1991 completaram-se cem anos de publicacao da primeira


encíclica social da Igreja. assinada pelo Papa Leao XIII e iniciada pelas pa-
lavras Rerum Novarum (Das coisas novas).x\ A data é importante, pois tal

1 As primeiras palavras da encíclica soam: Rerum Novarum semel excítate


cupidine — o que quer dizer: "Urna vez despertada essa avidez de ¡nova-
edes (r.erum novarum)".

338
A ENC. "RERUM NOVARUM"

documento foi comparado ao ressoar de um trováo, que despertou os cató


licos e o mundo para a procura de mais justica e fraternidade. A encíclica
abriu o caminho aos sucessivos pronuncia memos da Igrei» sobre a questao
social. Da i' a oportunidade de Ihe dedicarmos algumas páginas de resenha e
comentario. — Aos 02/05/1991, o S. Padre JoSo Paulo II deu a lumea encí
clica Centesimus Annus, commemorativa do centesimo aniversario da Re-
rum Novarum; será apresentada em PR 352/91.

1. O fundo de cena

1. Em fins do século XVIII e no comeco do século XIX registrou-se a


chamada "revolucao industrial": foram sendo exploradas as riquezas do
subsolo do globo e manufaturadas em fábricas e canteiros de obras. Reina-
va entao a filosofía liberal, que atribuía ao capital todos os direitos em vista
da conquista de maiores bens materiais. Em conseqüéncia, os operarios das
fábricas e das minas eram submetidos a duras condicóes de trabalho; mulhe-
res e menores de menos de dez anos de idade eram levados á extra cao de
carvao do fundo das minas; os salarios eram exiguos, ocasionando taxas de
mortalidade precoce; a morada era miserável, f¡cando muitos hómens e
mulheres aglomerados em suburbios. Nao havia instituicoes de defesa dos
trabaIhadores; os sindicatos eram perseguidos, e a assisténcia médica muito
precaria. O próprio Estado entrava na disputa do capitalismo competitivo,
mostrando-se indiferente á angustiosa sorte dos trabalhadores.

2. Da parte da Igreja, fizeram-se ouvir vozes em defesa da classe tra


ba I hadora.

Na Alemanha, destacou-se o bispo de Mogúncia, Mons. WMIhelm


Emmanuel von Ketteler (1811-77), que denunciou os grandes abusos do
capitalismo, deixando como principal escrito o livro "Die Arbeiterfrage
und das Christentum — A questao operaría e o Cristianismo" (1864). Numa
alocucao aos trabalhadores dizia:

"O caráter fundamenta/ que dá ao movimento operario sua importan


cia e signif¡cacao e que pertence, na verdade, á sua essSncia, éa tendencia á
associacao operaría, que tem por objetivo unir as torcas a servico dos interés-
ses operarios. A re/igiio só pode apoiar astas associacoes e Ihes dese/ar bom
éxito para o bem da classe operaría".

Mons. Ketteler pleiteava nesse discurso:

- aumento de salario correspondente ao verdadeiro valor do trabalho;

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

— diminuicao das horas de trabalho, de modo a nao se arruinar a saúde


do operario;

— regulamentacao dos dias de descanso. O tempo de descanso deve ser


calculado de acordó com o tempo de trabalho;

— proibicao do trabalho das enancas em fábricas durante a época em


que ainda sao obrigadas a freqüentar a escola;

— proibicao do trabalho das mulheres ñas fábricas, principalmente


quando sao mies de familia;

— proibicao do trabalho das mocas ñas fábricas.

Na Austria, nota-se a figura do barato Karl von Vogelsang (1818-1890),


que reuniu personalidades de destaque, a fim de lutarem contra os crimes do
capitalismo liberal e também contra as tendencias do socialismo emergente,
que transformaría o mundo "numa monstruosa organizacao de trabalho tor
eado".

Na Suíca foram muito atuantes duas figuras: Gaspar Decurtins (1885-


1916), estadista, que fundou o Movimento Social Cristáo e escreveua obra
"A questao da protecao internacional do trabalhador". Foi seu contempo
ráneo o Cardeal D. Gaspar Mermillod (1824-1892), bispo de Lausanne
e Genebra, que se tornou infatigável arauto da justica social; dizia em
28/02/1868, na igreja de Sta. Clotilde em Paris:

"Quem quer penetrar até a raíz profunda de nossas agitapdes atuais,


percebe bem depressa que ela reside na questao social: Todos repetimos que
estamos numa apoca de transigió, que urna ve/ha sociedade está em ruinas
e que urna nova se vem formando. Dafas incertezas, as hesitacoes: na super
ficie, gritos de alarme; nos subterráneos, paixoes ardentes e violentas. Cer-
ram-se fileiras de ambos os lados na alternativa de transformar o mundo
num campo de batalha ou de assinar um tratado de paz entre ricos e po
bres.

As obras cristas e nossa atividade pessoal devem dar a sua ativa contri-
buicao para a solucao pacífica destes inumeráveis problemas...

Se cabe ao nosso sáculo a honra de ter-se dado conta destes grandes


problemas da humanidadg, cabe também i Igreja a honra de sonda-Ios com
coragem e rgsolvé-los com energía. Quem tomará a mSo do proprietário e
do proletario para as unir? Quem se nao Jesús Cristo?... O que nos salva
rá, nao á um Cristianismo debilitado e inerte, mas um Cristianismo serio e

340
A ENC. "RERUM NOVARUM"

vivido, encarnando-so em virtudes capazes de empolgar o povo e inspirar-


Ihe otimismo e consciéncia de sua dignidade...

Nao quero ser nem o cortesao dos ricos, nem o adulador dos pobres.
Nao quero ser tributario nem das opinides dos poderosos nem das dos hu
mildes. .. Mas insisto em vos repetir que a crise que atravesamos é urna
das mais graves e das mais cruéis que nossa geracaojá conheceu... A Inter
nacional, notai-o bem, 6 ao mesmo tempo urna doutrína sedutora, um exér-
cito em marcha, um corpo que se organiza. Para solucionar a questao social,
seria necessário ter o coracao de urna Irma de Candado e a lucidez genial de
S. Tomás de Aquino".

O Car dea I Mermillod foi encarregado por Leao XIII de orientar urna
comissao de estudos dos problemas sociais, que teve influencia decisiva na
preparacáo da encíclica Rerum Novarum.

Na Italia destacou-se o Pe. Taparelli D'Azeglio, que teve como aluno o


jovem Gioacchino Pecci, futuro Leáo XIII. Mais relevante aínda foi a figura
de Giuseppe Toniolo, jurista e economista, que também contribuiu concre
tamente para a elaboracao dos principios da Rerum Novarum.

A Franca e a Bélgica tiveram notáveis pensadores e agentes de renova-


cao social: Léon Harmel, Rene de la Tour du Pin, Albert de Mun, D. Doutre-
loux, bispo de Liáge, e D. Stillemans, bispo de Gartd.

Na Inglaterra salientou-se o Cardeal Henry Edward Manning, e nos


Estados Unidos o Cardeal James Gibbons, arcebispo de Baltimore, cuja;
teses foram reconhecidas por Leao XIII como de grande valor.

3. Da parte dos nao crístáos, varias vozes se levantaram, ao mesmo


tempo que a classe trabalhadora se insurgía. Em 1848 Karl Marx e Friedrich
Engels langaram o Manifestó Comunista. Em 1864 foi fundada em Londres
a Primeira Internacional Socialista, que apregoava o programa marxista de
luta dos operarios contra o capitalismo. Em 1889 fundou-se em París a Se
gunda Internacional Socialista. A agitacao se propagava ardente pelos círcu
los operarios, quando, dois anos mais tarde, foi publicada a encíclica Rerum
Novarum.

Vé-se assim o paño de fundo ou a trama de idéias e fatos subjacentes á


Rerum Novarum. Esta col he os frutos dos intensos traba Ihos de pensadores
católicos que no decorrer do sáculo XIX lutaram pela justica social; a Igreja
nao ficou estranha á questao operaría, mas ao contrario acompanhou-a com
sucessivas intervencoes até a publicacao da sua primeira encíclica social.

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

Vejamos agora.

? As linhas centráis da encíclica

Distinguiremos quatro subtítulos:

2.1. Liberalismo e coletivismo em confronto

1. Leáo XIII toma por tema central da sua encíclica a triste situacao
em que se encontram desprotegidos os trabalhadores de sua época:

"O sécalo passado destruiu, sem as substituir por coisa alguma, as cor-
poracoes antigás, que eram para os trabalhadores urna protegió; os princi
pios e o sentímentó religioso desapareceram das teis e das ¡nstítuícoes públi
cas e, assim, pouco a pouco, os trabalhadores, ¡solados e sem defesa, tém-se
visto, com o decorrer do tempo. entregues é mareé de senhores desuníanos
e á cobica de urna concurrencia desenfreada. A usura voraz velo agravar aín
da mais o mal. Condenada multas vezes pelo julgamento da Igreja, nao tem
deixado de ser praticada sob outra forma por homens ávidos de ganancia e
de insadável ambicao. A tudo isto deve acrescentar-se o monopolio do tra-
balho e dos papéis de crédito, que se tornaram o quinhao de um pequeño
número de-ricos e de opulentos, que ¡mpoem um jugo quase servil á ¡mensa
multidio dos proletarios" fRerum Novarum n? 2).

0 principal fator responsável por tal estado de coisas era o pensamen-


to liberal, que predominava entre os empresarios do sáculo XIX. O libera
lismo proclamava o uso ¡rrefreado da liberdade no setor sócio-político-eco-
nómico; é antidogmático ou contrario a principios filosóficos ou éticos de
valor perene.

Já em 1885 Leáo XIII publicara a encíclica Immortale Dei, e em 1888


a encíclica Libertas, ñas quais condenava o liberalismo, por enfatizar o indi
vidualismo com grave detrimento para os valores sociais e o bem comum; era
o liberalismo dos patroes possuidores de capital, mas desligados de normas
éticas, que provocava as míseras condicoes de trabaIho e vida dos operarios.

Em réplica a tais abusos ia tomando vulto no sáculo XIX o coletivismo


ou socialismo. Este apregoava a transferencia do capital dos cidadaos parti
culares para as maos do Estado; o único grande proprietário seria o Governo,
ao quaí os socialistas tributavam sua confianca, julgando que seria um justo
administrador dos bens da coletividade.

Ora Leao XIII bem percebeu que tal alternativa era ilusoria. Daía re-

342
A ENC. "RERUM NOVARUM"

jeicao, na Rerum Novarum, do coletivismo socialista, talvez mais perigoso


do que os próprios males que ele pretendía eliminar:

"A perturbado em todas as classes da sodadaJe, urna odiosa e insu-


portável servidao para todos os cidadaos, porta abertr a todas as invejas, a
todos os descontentamentos, a todas as discordias; o talento e a habilidade
privados dos seus estímulos e, como conseqüSncia necessária, as riquezas
estancadas na sua fonte, enfim, em lugar dessa igualdade tao sonhada, a
igualdade na nudez, na indigencia e na miseria" (n? 12).

Com muita lucidez o Papa antevia as funestas conseqüéncias do socia


lismo marxista. Quase cem anos mais tarde, a ¡mplosáo dos países comunis
tas havia de confirmar as apreensoes de Leáo XIII.

Assim, pois, o Sumo Pontífice tomava posicfo frente aos dois siste
mas que tentavam os homens da época, incluidos os fiéis católicos,1 do sé-
culo XIX: o liberalismo capitalista, que exaltava a liberdade a ponto de ex
plorar os pequeninos indefesos, e o coletivismo socialista, que apregoava a
igualdade de todos os homens, mas em troca da renuncia á liberdade indi
vidual (o Estado seria o grande proprietário e ditador). Estava assim esbo-
cada a via media pela qual se desenvolvería a doutrina social da Igreja:
procuraría evitar os extremismos, pregando o respeito á pessoa. humana e a
seus justos direitos, de modo, porém, a nao ferir os interesses comuns ou o
bem da sociedade como tal.

2.2. Propriedada particular

Condenado o coletivismo socialista, Leáo XIII defende a propriedade


particular, baseando-se na tradicao do género humano em geral bem como
em razoes de ordem filosófica:

"O fím ¡mediato visado pelo trabalhador é conquistar um bem que


possuirá por direito particular e propriedade sua. Porque, se pde á disposl-
cao de outrem as suas forcas e a sua industria, nao ó por outro motivo se-
nao para conseguir prover i sua sustentacSo e ás necessidades da vida, e es
pera do seu trabalho nao só o direito ao salario, mas aínda um direito estri-
to e rigoroso a usar dele como entender.

1 Havia, sim, os católicos liberáis e os católicos sociais. Aqueles achavam que


as condicoes de miseria eram conseqüéncias inevitáveis das leis económicas,
que os próprios mecanismos de mercado haveriam de corrigir aos poucos.
Os católicos sociais, porém, viam a urgencia de profundas reformas que con-
cretizassem as exigencias sociais da fé crista.

343
8 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

Por conseguíate, se. reduzindo as suas despesas, o trabalhador chegou


a fazer algumas economías, e se, para assegurar a sua conservacao. as empre-
ga. por exemplo, na rompra de um campo, tomase evidente que esse cam
po nao é outra coisa senao o salario transformado, e por isto o terreno assim
adquirido seré propriedade do operario com o mesmo titulo que a remune-
racao do seu trabalho. Mas quem nao vé que é precisamente nisto que con
siste o direito de propriedade mobiliária e ¡mobiliária? Assim a conversao da
propriedade particular em propriedade colativa, tao preconizada pelo socia
lismo, nao teña outro efeito senao tornar a situacao dos operarios mais pre
caria, tirando-lhes a livre disposicao do seu salario e roubando-lhes, por isto
mesmo, toda a esperance e toda a possibitidade de engrandecerán) o seu
patrimonio e melhorarem a sua situacao" (n? 4).

Vejamos agora nesta seqüéncia

2.3. Os deveres do Estado

Surpreendendo rnuitos dos seus contemporáneos, Leao XIII preconi-


zou a intervencáo do Estado nao so em materia económica, mas também no
relacionamento entre patroes e operarios, a f im de tutelar os direitos destes.
Os homens de bem da época julgavam que bastaría ao Estado exercer sabia
política económica ou sagaz administracao da economía nacional; desta re
sultaría a solucao da questao social. Com outras palavras: julgavam que o
desenvolví mentó social seria urna conseqüéncia gradativa e automática do
desenvolvimento económico. Sao palavras de Leáo XIII:

"0 Estado pode melhorar muitfssimo a sorte da classe operaría, e


isto em todo o rigor do seu direito. e sem ter a receara censura de ingeren
cia indevida, pois, em virtude mesmo do seu oficio, o Estado deve servir ao
intaresse comum. E á evidente que, quanto mais se multiplicaren! as vanta-
gens resultantes desta acio de ordem geral, tanto menos necessidade haverá
de recorrer a outros expedientes para remediar a condicao dos traba/ha-
dores.

Os pobres, a mesmo título que os ricos, sao, por direito natural, cida-
daos... Como seria desarrazoado atender a urna classe de cídadaos e negli-
genciar outra, tornase evidente que a autoridade pública deve também to
mar as medidas necessárias para salvaguardar os ¡nttresses da classe opera
ría. Se e/a faltar a isto, violará a estrita justica, que quer que a cada um seja
dado o que Ihe é devido" (n? 27).

"O trabalho tem urna tal fecundldade e urna tal eficacia que se pode
admitir, sem receto de engaño, que efe é a fonte única de onde procede a ri
queza das nacoes. A eqüídada manda, pois, que o Estado se preocupe com

344
A ENC. "RERUM NOVARUM" 9

os trabajadores, o proceda de modo que de todos os bens que «les propor-


cionam á sociedade, Ihes seja dada urna parte razoável, como habitado e
vestuario, o que possam viver á cusía de menos trabalhor ¿ prívales.

De onde resulta que o Estado deve favorecer tudo que, de porto ou


de longe, pareca de natureza a melhorar a sorte deles. Esta solicitude, longe
de pre/udicar alguóm, tornar-se-á, ao contrarío, proficua a todos, porque
importa soberanamente á nacao que homens, que sao para ela o principio de
bens tao indispensáveis, nao se encontrem continuamente a bracos com os
horrores da miseria" (n° 27).

Temos aquí o esboco do que hoje se chama "a Previdencia Social".

2.4. Direito de Associacao

Leao XIII foi ousado ao proclamar o direito dos trabajadores a cons


tituir associacoes para a defesa dos seus interesses ou, com outras palavras,
os sindicatos livres. No sáculo XIX tal direito era contraditado pelas autori
dades e os patroes, que podiam contar com a repressao policial para coibir
o exercício de tal direito.

"Os direitos dos operarios devem ser religiosamente respeitados e o


Estado deve assegurá-los a todos os cidadaos, prevenindo e vingando a sua
violacao. Todavía, na protecao dos direitos particulares, deve preocuparse
de maneira especial com os fráeos e indigentes. A cfasse rica faz de suas ri
quezas urna especie de baluarte e tem menos necessidade de tutela pública.
A classe indigente, ao contrario, sem riquezas que a ponham a coberto das
injusticas, conta principalmente com a protecao do Estado. Que o Estado se
faca, pois, sob um particularfssimo título, a providencia dos trabalhadores,
que em geral pertencem á classe pobre" (n? 38).

0 Papa sabe que na sua época existem associagoes nao cristas que che-
gam a tiranizar os seus membros. Daí o apelo a que os operarios cristáos fun-
dassem seus sindicatos próprios:

"Em nenhuma época se viu tao grande multiplicidade de associacoes


de todo género, principalmente de associacoes operarías...

Mas ó opiniao, confirmada por numerosos indicios, que elassao ordi


nariamente governadas por chefes ocultos, e que obedecem a urna palavra
de ordem igualmente hostil ao nomo cristao o é seguranca das nacoes: depois
do terem acambarcado o trabalho em todas as empresas, se há operarios que
se recusam a entrar em seu seio, fazem-lhos expiar a recusa pela miseria.

345
10 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

Neste estado de coisas, os operarios crístSos nao tim remedio senao


escolher entre dois partidos: ou darem os seus nomos ás sociedades de que a
religiao tem tudo a recear, ou organizarem-se eles mesmos e uniremassuas
torcas para poderem sacudir denodadamente um jogo tSo injusto e tSo
¡ntolerável.

Haverá homens verdaderamente empenhados em arrancar o supremo


bem da humanidade a um perigo ¡mínente, que possam ter a menor dúvida
de que é necessário optar por este último alvitre?" (n? 40).

2.5. Salario justo e outros direitos do trabalhador

Outro passo audaz da encíclica Rerum Novarum foi a proclamado da


necessidade de se pagar salario justo ao trabalhador. Salario justo é entendi
do pelo Pontífice como aquele que garante ao operario dignas condicoes de
vida, adequada subsistencia de sua familia e possibilidade de poupanca para
enfrentar os imprevistos da vida:

"O operario que percatar um salario suficiente para ocorrer com desa-
fogo ás suas necessidades e ás da sua familia, se for prudente, seguirá o con-
selho que parece dar-lhe a própría natureza: ap/icar-se-á a ser pardmonioso e
agirá de forma que, com sabias economías, vá juntando um pequeño peculio,
que Ihe permita chegar um dia a adquirir um modesto patrimonio" (n? 34).

O repouso dominical é outra justa reivindicacao enfatizada pela en


cíclica:

"Daqui vem como conseqOSncia a necessidade do repouso dominical.


Isto, porém, nao quer dizer que se deva estar em ocio por mais largo espaco
de tempo, e muito menos significa urna total inercia, como muitos desejam,
e que é fonte de vicios e ocasiao de dissipacio; mas um repouso consagrado
á religiao.

Unido á religiao, o repouso tira o homem dos trabalhos e das ocupa-


goes da vida ordinaria para o rechamar ao pensamento dos bens celestes e
ao culto devido á Majestade de Deus" (n? 32).

A delimitacao das horas de trabalho de tal modo que o operario nao


seja acabrunhado por sobrecarga excessiva, eis outro ponto recomendado
pelo Pontífice:

"Nao é justo nem humano exigir do homem tanto trabalho a ponto


de fazer pelo excesso da fadiga embrutecer o espirito e enfraquecer o cor-
po. A atividade do homem é limitada como a sua natureza. O exercfdo e o

346
A ENC. "RERUM NOVARUM" 11

uso a aperfeicoam, mas é preciso que. de quando em quando. se suspenda


para dar lugar ao repouso.

Por conseguirte, nao deve o trabalho prolongarse por mais tempo do


que as farpas permitem. Determinar a quantídade do repouso depende da
qualidade do trabalho. das circunstancias do tempo e do lugar, da complot-
cao e saúde dos operarios. O trabalho, por exemplo.de extrair pedra, ferro,
chumbo e outros materíais escondidos debaixo da tena, sendo mais pesado
e nocivo i saúde, deve ser compensado com urna duracSb mais curta.

Deve-se atender tambóm ás estacóos, porque nao poucas vezes um tra


balho que fácilmente se suportaría numa estacao, noutra ó de fato insupor-
tável ousomentese vence com dif¡cuidado" (rfí 32).

Leve-se em considerado a condicao das mulheres e das enancas que,


por sua índole natural, nao podem ser submetidasa tarefas violentas:

"O que pode fazer um homem válido e na forca da ¡dade, nao será
equitativo exigi-lo de urna mulher ou de urna crianpa. Especia/mente a infan
cia. .. nao deve entrar na oficina senao depois que a idade tenha desenvolvi
do neta as torcas físicas, intelectuais e moráis; do contrarío, como urna plan
ta aínda tenra, ver-se-á murchar com um trabalho demasiado, precoce e será
prejudicada a sua educacao.

Também há trabalhos que nao se adaptam tanto á mulher, á qual a


natureza destina de preferencia os afazores domésticos, que, por outro lado,
salvaguardan! admiravelmente a honestidade do sexo, e corresponderá me-
Ihor, pela sua natureza, ao que pede a boa educacao dos filhos e a prosperí-
dade da familia. Em geral, a duracao do descanso deve-se medir pelo dispen
dio das foreas que ele deve restituir" (n? 33).

É de notar ainda que Lelo XIII, embora proponha solucóes de ordem


social e humanitaria, nao esquece que a raíz de qualquer reforma social éa
renovacáb dos costumes de todos os cidadaos (ricos e pobres):

"0 que torna urna nacao próspera, sao os costumes puros, as familias
fundadas sobre bases de ordem e de moralidade, a prática da refigiao e o res-
peíto da justica, urna imposicao moderada e urna reparticao equitativa dos
encargos públicos, o progresso da industria e do comercio, urna agricultura
florescente e outros elementos, se os há. do mesmo género: coisas estas que
nao so podem aperfeicoar sem fazer subir outro tanto a vida e a felicidade
dos cidadaos" (n? 26).

Todas estas propostas e normas sociais de Leao XIII eram ¡novadoras

347
12 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

na sua época e continuam a ter hoje sua plena atualidade. Outrora os no-
mens pensavam em sujeitar a economía apenas á mecánida das leis do mer
cado; nao Ihes era fácil conceber urna economía sujeita ás normas da Ética
ou urna economía regida por valores moráis. Cem anos maís tarde ou em
nossos días, pode haver mais respeito pelos valores éticos na área da econo
mía (as leis trabalhistas o impóem em certo grau), mas aínda falta muito
para que se alcance o ni'vel ético indíspensável na vida económica e na vida
pública de nossas sociedades.

Por causa de suas teses, a Rerum Novarum foi na sua época conside
rada revolucionaría. Tornou-se, porém. a Magna Carta do operar¡ado víti-
ma da exploracao do capítalisto selvagem.1 A legislacao trabalhísta hoje
existente em quase todos os países do mundo muíto deve á intuicao, sus
citada e alimentada por Leao XIII, dos valores humanos e cristaos dos tra-
balhadores.

3. ConclusSo

A guisa de conclusao, sejam citadas palavras do Papa Joao Paulo II


destinadas- a ser I idas ñas reuniSes comemorativas do centenario da Rerum
Novarum:

"A encíclica Rerum Novarum deve ser re/ida com os olhos de hoje
para se descobrir a sua permanente e viva atualidade. Ela nos ansina tam-
bém a renovar nossa intuicao, a considerar todas as coisas novas que surgem,
nSo raro na escuridao a na desorden), para que Ihes damos sentido a har-
monta.

Do ponto de vista humano, os desafios da nossa sociadade sao tao


vultosos a complexos que seríamos levados a desanimar a desesperancar-nos
do homem. Mas Deus está conosco, Deus tica sendo o Senhor da historia.
O Evangelho 4 sempre novo: ele coloca am nossas mSos samantes que nio
cessam de fecundara térra para torna-/a mais habitável...

Das grandes mudancas que tumultuam a nossa época, guardemos


urna liceo: Deus 4 a verdadeira medida do homem; só Deus revela plena
mente o homem ao homem. Frente é crisa das ideologías e das estrategias,
nio recaéis colocar nosso conhecimento do homem ao sen/ico de sua vida
social, cultural, política a económica. Que a verdade a a dignidade do no-

1 Ao lado do capitalismo selvagem existe o capitalismo moderado por


leis trabalhistas, que tornam aceitável tal forma de capitalismo.

348
A ENC. "RERUM NOVARUM" 13

mem se/'am semprg salvaguardadas nos novos caminhos da historia palos


quais ele envereda1.

Para responder ás exigencias concretas do Evangelho, nao vos bastará


urna comemoracao, em data precisa, da Rerum Novarum, nem vos bastará
todo este ano que dedique! ao estudo do pensamento social da Igrej'a. Estai
convictos de que se trata de um canteiro semprg aborto, de um canteiro a
que todos sao chamados para que toda a humanidade. na precariedade de
sua condícao, responda sempre melhor á sua divina vocacao" (extra/do de
L'OSSERVATORE ROMANO, ed. francesa, 05/03/91, p.2).

• **

Por que crer? A Fé e a Revelacao, por Luiz José de Mosquita. Introdu-


cao do Cardeal Moreira Nevos O.P. - Ed. Ave María, Rúa Martim Francisco,
656,01226 Sao Paulo (SP). 1991, 140 x 210 mm, 493 pp.

Obra valiosa, que aborda o toma fundamental da fé em termos seguros


o de maneira exaustiva. A Parte I versa sobre a Fé, a II sobre a Revelacao, a
III aprésente textos documentáis sobre a fé, tirados do Novo Testamento,
dos Concilios, dos escritos dos Papas e mestres famosos. O autor utiliza sóli
do instrumental filosófico, comecando por expora Filosofía da Fé, aoque
se segué a Teología da Fé. Recorre tambóm com freqüéncia e sabedoría á
historia o á Tradicao da Igre/'a.

A obra merece ser amplamente divulgada mesmo entre pessoas que di-
zem nao ter fé, pois o autor possui sólido cabedai filosófico, que /he permite
talar racionalmente também aqueles que nao acreditara, mas nao se furtam
ao raciocinio. Para quem já tem fé, o estudo do Prof. Mosquita contribuí pa
ra a purificacio o o fortalecimento dessa fé, visto que ho/'e om día nao raro
se confundem fé e crendice, fé e vago sentimento religioso. Ás pp. 231-237
o autor oferece urna bibliografía variegada sobre o assunto, abrindo pistas
para ulteriores pesquisas.
Destacam-se as palavras com que o Cardeal Moreira Naves aprésente
0 livroáp. IV:

"Nao á cortamente, um livro fácil, leitura amena para horas de descon-


tracáo, este novo livro de Luiz José de Mosquita. É um exercfcio de reflexáo
e pesquisa, trabalho arduo de demolicao (de falsos edificios doutrinais) e de
construcáo (de um verdadeiro arcabouco feito com o melhor material dispo-
nível), obra de análise paciente e, depois, de sfntese luminosa e wclarecedo-
ra. Nao creio que falte, na construcáo original dos capítulos, nenhuma ques-
tao essencial, serena ou polémica que seja, no campo da fé e da revelacao".
Parabons ao autor, que pode ter consciSncia de haver enriquecido a
bibliografía teológica brasileiral
E.B.

349
Fato histórico? Mito?

A Ressurreigáo de Jesús

Em sin tese: A ressurreicao corporal de Jesús era professada tranqui


lamente pela Igreja nascente, sem que os judeus ou outros adversarios a pu-
dessem apontar como termo de fraude ou de alucinacao. De resto, o sepul
cro vado de Jesús era um testemunho que corroborava a noticia. Nunca esta
tena passado adiante se o sepulcro de Jesús nao estívesse vaz'to. De resto, os
Apostólos só podiam apregoar a ressurreicao de Jesús vencidos pela eviden
cia dos fatos, pois nao estavam predispostos a supó-la ou admití-la; antes,
haviam perdido todo ánimo quando viram o Mestre preso e condenado; a
noció mesma de um Mossias crucificado só podía parecer escandalosa e
blasfema.

Quem nega a ressurreicao corporal de Jesús, deve lógicamente admi


tir que vinte sáculos de Cristianismo (sempre apregoado com a mensagem
da ressurreicao) estáo baseados sobre mentira ou doenca mental. Ora esta
hipótese é mais exigente ou supSe um maior milagro do que a tese mesma da
ressurreicao de Jesús devida á Onipoténcia Divina, é mais razoável crer na
ressurreicao de Jesús do que explicar a pujanca do Cristianismo por um
sonho de gente desonesta ou alucinada.

As implicacoes teológicas da ressurreicao de Jesús sao principalmente


as tres seguintes: i) corroborar g autenticar a pregacao de Jesús, pois só
Deus pode ressuscltar um morto; se ressuscitou Jesús, quis assim por sua
cháncela sobre a missao de Cristo; 2) é penhor da nossa própria ressurreicao,
pois há continuidade entre a sorte de Cristo e a nossa própria sorte; 3) foi
condicao para que o Espirito Santo fosse enviado eos homens como rema
tador da obra de Cristo; é o Espirito Santo quem congrega todos os povos
no Corpo de Cristo que é a Igreja, a fim de que recebam de Cristo Sacerdote
as gracas necessárias para chegarem é vida eterna.

* • *

A ressurreicao de Jesús constituí artigo fundamental da fé crista, a


ponto que Sao Paulo pode dizer: "Se Cristo nao ressuscitou, vazia é a nossa

350
A RESSURREigÁO DE JESÚS 15

pregacáo; vazia também é a vossa fé... Se Cristo nao ressuscitou. vazia é a


vossa fé; aínda estáis nos vossos pecados" (ICor 15, 14.17). Na verdade.
talvez queira alguém pensar que a mensagem do Cristianismo é tao rica e
bela que ela pode dispensar a proposicáo da ress'irreicá*o de Jesús; esta nao
faria falta... Verifica-se, porém, que nos escritos do Novo Testamento e
nos da ¡mediata Tradicáo crista é tal a énfase na ressurreicao de Jesús que
ela deve ocupar lugar primordial e indispensável no conjunto das verdades
da fé. - Em conseqüéncia, procuraremos, ñas páginas seguintes, examinar
as credenciais ou a credibilidade dessa proposicáo; após.o que examinare
mos o seu sentido teológico.1

1. A ressurreicao de Jesús: credibilidade

A credibilidade da ressurreicao de Jesús baseia-se sobre duas princi


páis pilastras: 1) o testemunho dos Apostólos e da Igreja nascente; 2) o se
pulcro vazio.

1.1. O testemunho dos Apostólos

1.1.1. Observacoes preliminares

1) Antes de percorrer os depoimentos dos Apostólos, deve-se notar


que eles nao tinham disposipóes psicológicas para "inventar" a noticia da

1 Este artigo e o subseqüente (relativo á Cruz de Jesús) tém em vista, entre


outras coisas, responder a urna noticia /angada pe/o JORNAL DO BRASIL,
ed. de 27/04/91, 1? Caderno, p. 9, segundo a qual Jesús nio ressuscitou:
"LONDRES — Jesús Cristo nio teña morrido na cruz esua ressurrei
cao foi apenas urna reanimacao. A tese, destinada a gerar polémicas, fot de
fendida pelo dentista inglés Trevor Lloyd Davies, de 82 anos, e sua múlher,
a teóloga Margaret. Segundo eles, autores de um estudo publicado na revista
do Colegio Real de Medicina de Londres, Cristo entrou num estado de hipo-
tensao na cruz e perdeu os sentidos.
De acordó com essa teoría, ao ser retirado da cruz, a circulacao san
guínea se restabeleceu e entao Cristo deu sinais de vida. Isso explica o fato
de Ele nao ter sido enterrado e, sim, simplesmente colocado no sepulcro,
dizem os pesquisadores. Eles, para reforear essa tese, lembram que os Evan-
gelhos dizem que Cristo agonizou seis horas, quando, em verdade, os cruci
ficados sofriam urna lenta agonía, que podía durar de tris a quatro dias.
Os pesquisadores admitem que os testemunhos dos apostólos sobre a
ressurreicao poderiam dever-se a um tipo de auto-sugestao. 0 casal pediu á
Igreja que nao leve a mal sua teoría, pois poderá se tornar aínda mais forte se
incluir em seu credo algumas verdades científicas".

351
16 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

ressurreicáo de Jesús ou para "sonhar alucinadamente" com tal evento.


Aínda impregnados das concepcoes de um messianismo nacionalista e políti
co, capitularan-i quando vi ramo Mestre preso e aparentemente fracassado; fu-
giram para náfo ser p .sos eles mesmos (cf. Mt 26. 31 s); Pedro renegou o Se-
nhor (cf. Mt 26, 33-35). O caso de Tomé é o mais significativo: resístiu ao
testemunho dos demais Apostólos e pediu provas palpáveis da ressurreicao
(cf. Jo 20, 24-29). Somente após a evidencia do fato, rendeu-se á verdade.

2) O conceito de um Oeus morto e ressuscitado na carne humana era


totalmente alheio á mentalidade dos judeus. Estes tendiam a distanciar cada
vez mais dos homens o Senhor Deus; nem sequer pronunciavam o nome
Javé por receio de o profanarem (circunscreviam-no mediante as locucoes
o Eterno, o Céu, a Gloria, o Nome, Ele...; cf. 1Mc 3,18.50.60; 4,10.24...).
Por conseguinte, nao emergiria espontáneamente do espirito dos Apostólos
a ñoclo de um Deus feito homem, morto na Cruz e ressuscitado: tal idéia
era escandalosa para Israel (como era loucura para os gregos), conforme nota
Sao Paulo em 1Cor 1,23. Só após seria relutáncia os Apostólos reconhece-
ram o fato da ressurreicáo de Jesús; cf. Mt 28, 17; Me 16, 11.13$; Le 24,
11.25.37-41.45.

3) É de notar outrossim que a pregacao dos Apostólos era severamente


controlada pelos judeus, de tal modo que qualquer mentira seria ¡mediata
mente denunciada; os membros do Sinedrio eram ciosos de encontrar algum
título de acusacao contra os Apostólos, mas nao o encontraram, a ponto
que Gamaliel recomendou aos correligionarios: "Deixai de ocupar-vos com
estes homens. Soltai-os, pois, se o seu intento ou a sua obra provém dos ho
mens, destruir-se-á por si mesma; se vem de Deus, porém, nao podereis des-
trui-los. E nao aconteca que vos encontréis movendo guerra a Deus" (At 5,
38s). Por conseguinte, se a ressurreicao de Jesús, apregoada pelos Apostólos
nao correspondesse a um fato real ou se pudesse ser apontada como mentira
fraudulenta, os judeus nao teriam perdido a ocasiáo de o fazer. Se nao o f¡-
zeram, isto se deve á impossibilidade de demonstrar a falsidade de tal no
ticia.

1.1.2. 0$ textos do Novo Testamento

1) Um dos textos mais expressivos é o de TCor 15,1-8:

"l Fago-vas conhecer, irmSos, o Evangelho que vos pregue/', o mesmo


que vos recebgstes e no qual permanecéis firmas.

2 Por ele também seréis salvos, se o conservantes tal como vó-lo pro-
guei... a menos que nao tenha fundamento a vossa fé.

352
A RESSURREICÁO DE JESÚS 17

3 Transmití-vos, antes de tudo, aquito que eu mesmo recebi, a saber.


Que Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras,

4equo1o\ sepultado

e que ressuscitou ao terceiro día conforme as Escrituras

5 e que apareceu a Cefas, depois aos doze.

6Posteriormente apareceu de urna vez a mais de quinhentós irmios,


dos quais a maior parte vive até hoje, alguns, porém, ¡á morreram.

1Depois apareceu a Tiago e, em seguida, a todos os Apostólos.

8 Por fim, depois de todos, apareceu também a mim, como a um


abortivo".

Estes dizeres sao de época muito antiga ou do sexto decenio do sácu


lo I (56/57); pouco mais de vinte anos apenas os separam da Ascensáo de
Jesús. Referem-se á prega cao que Sao Paulo realizou em Corínto entre os
anos de 50 e 52; nessa época, o Apostólo entregou aos fiéis os ensinamentos
que Ihe haviam sido anteriormente entregues. - Alias, também em ICor 11,
23 afirma o Apostólo ter transmitido aos corintios o que Ihefora transmiti
do, a saber: a mensagem referente á Ceia do Senhor.

E quando recebeu Paulo tais ensinamentos?

Ou por ocasiao da sua conversao, que se deu aproximadamente no


ano de 35, ou no ensejo de sua visita a Jerusalém, que teve lugar em 38, ou,
ao mais tardar, por volta do ano de 40.

Observe-se agora o estilo do texto de 1 Cor 15.3-8: as frases sao curtas,


incisivas, dispostas segundo um paralelismo que Ihes comunica um ritmo no*
tável. Abstracao feita dos vv. 6 e 8, dir-se-ia que se trata de fórmulas es
tereotípicas, forjadas pelo ensinamento oral e destinadas a ser freqüente-
mente repetidas. Nesses versículos encontram-se varias expressoes que nao
ocorrem em outras cartas de Sao Paulo: assim "conforme as Escrituras",
"no terceiro día", "aos doze", "apareceu, óphthe" (expressao que so ocorre
sob a pena de Sao Paulo num hiño citado pelo Apostólo em ITm 3,16).

Em particular, o verbo óphthe ocorre quatro vezes nos vv. 5-8. Signifi
ca "apareceu, deu-se a ver, mostrou-se". é o vocábulo técnico para designar
as aparicoes de Jesús ressuscitado; cf. Le 24, 34; At 9,17; 13,31; 26,1. Tal
verbo afasta a hipótese de que os Apostólos tenham tido alucinacóes mera
mente subjetivas ou imaginosas; "deu-se a ver" supSe a rea I ida de corpórea

353
18 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

de Jesús, que os Apostólos puderam apalpar; cf. Le 24. 37-41. Tem seu si
nónimo em At 10. 40s: "Deus O ressuscitou ao terceiro dia e concedeu-lhe
que se tornasse manifestó... a nos. que comemos e bebemos com Ele após
a sua ressurreicao".

Estas indicacoes evidenciam que Sao Paulo em ICor 15, 3-8 reproduz
urna fórmula de fé que ele mesmo recebeu já definitivamente redigida pou-
eos anos (dois, cinco, oito anos?) após a Ascensáo do Senhor Jesús. 0 v.6.
quebrando o ritmo do conjunto, talveztenha sido introduzido posterior
mente; quanto ao v.8. é por certo urna noticia pessoal que Sao Paulo acres-
centa ao bloco.

Vé-se, pois, que desde os primeiros anos da pregaclo do Evangelho já


existia entre os fiéis urna profissáo de fé na ressurreicáo de Cristo formulada
em frases breves e pregnantes; tais frases eram transmitidas como expressSes
exatas da mensagem dos Apostólos.

Ora essa fórmula de fé antiqüíssima professa a ressurreicáo corpórea


de Cristo como realidade histórica. Para a comprovar, havia testemunhas
oculares, das quais. diz Sao Paulo, muitas aínda viviam vinte e poucos anos
após a ressurreicáo do Senhor.

Tal depoimentó de primeira hora, concebido e transmitido pelos dis


cípulos ¡mediatos do Senhor, já seria argumento suficiente para remover
qualquer teoría tendente a desvirtuar a fé na ressurreicáo corporal de Cristo.
Esta fé nao surgiu tardíamente na historia das primeiras comunidades cristas,
mas é o eco direto da missao de Cristo acompanhada dia a dia pelos Apos
tólos.

2) A Ia carta de Sao Paulo aos Corintios quer incutir aos fiéis a nocao de
ressurreicáo de todos os mortos. Esta perspectiva horrorizava os gregos, pois
Ihes parecía equivaler á volta ao cárcere ou ao sepulcro do corpo. Na sua ar-
gumentacáo o Apostólo parte do fato da ressurreicáo de Cristo, verdade
tranquilamente aceita por todos; o que eles punham em dúvida, era sua pro-
pria ressurreicáo:

"Se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns
dentro vos dizer que nao há ressurreicao dos mortos? Se nao há ressurreicao
dos mortos, também Cristo nao ressuscitou. E, se Cristo nao ressuscitou, va-
ziaéanossa pregacSo. vazia também 6a vossa fé" (ICor 15, 12-14).

Vé-se, pois. que a Igreja antiga estava convicta da ressurreicáo de Cris


to. Nem todos, porém, queriam aceitar semelhante sorte para si, por moti
vos filosóficos.

354
A RESSURREIgAO DE JESÚS 19

3) Vem ao caso aínda o texto de Le 24, 36-43:

"Jesús se apresentou no meio dos Apostólos e disse: 'A paz esteja con-
vosco'.' Tomados de espanto e temor, imaginavam ver uní espirito. Mas ele
disse: 'Por que estáis perturbados e por que surgem tais dúvidas em vossos
coracoes? Vede minhas maos e meus pos: sou eu'. Apaipai-me e entendei que
um espirito nao tem carne nem ossos, como estáis vendo que eu tenho'. Dizen-
do isto, mostrou-ihes as maos e os pés. E, como, por causa da alegría, nao po-
diam acreditar aínda e permaneciam surpresos, disse-lhes: 'Tendes o que co
mer?' Apresentaram-lhe um pedaco de peixe assado. Tomou-o entao e co-
meu-o diante deles".

Aos Apostólos amedrantados, que julgavam ver um fantasma. Jesús


pede que o apalpem e verifiquem que tem carne e ossos: "Vede minhas
maos e meus pés, vede que sou eu mesmo" (Le 24. 39). Além disto, comeu
na presenca deles para Inés incutir o realismo de sua corporeidade ressus-
citada (vv. 42s).

4) Também é importante o texto de Jo 20, 19s: na noite de Páscoa.


Jesús aparece aos discípulos e dá-lhes a tocar suas maos e seu lado, certa-
mente porque ai estavam as chagas que o identificavam como o Senhor
morto e ressuscitado. A Sao Tomé, incrédulo, disse Jesús com mais énfase
ainda: "Poe teu dedo aqui, e vé minhas maos. Estende tua mao e póe-na
no meu lado, e nao sejas incrédulo, mas eré". Respondeulhe Tomé: "Meu
Senhor e meu Deus!" (Jo 20. 27$). - A pouca fé do Apostólo foi assim ven
cida pela evidencia dos fatos.

Examinemos agora os testemunhos relativos a

1.2. O sepulcro vazio

O primeiro acontecimento da manha do domingo de Páscoa foi a des-


coberta do sepulcro vazio; cf. Me 16, 1-8.

Os chefes dos judeus tomaram consciéncia do significado deste fato, e


resolveram dissipá-la:

"Deram aos soldados urna vultosa quantia de dinheiro, recomendando:


'Dizei que os seus discípulos vieram de noite, enquanto dormíeis, e rouba-
ram o cadáver de Jesús. Se isto chegar aos ouvidos do Govemador, nos o
convenceremos, e vos deixaremos sem compllcacao'. Eles tomaram o dinhei
ro e agiram de acordó com as instruedes recebidas. E espalhou-se esta histo
ria entre os judeus até o dia de hoja" (Mt 28, 12-15).

Ao comentar este episodio, S. Agostinho salienta a sua índole ridi'cu-

355
20 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

la: os guardas nao podiam ser testemunhas de algo ocorrido durante o sonó
dos mesmos. Quem dormiu, nao foram os guardas, mas foram os chefes dos
judeus, que deram tais ordens aos guardas!

O sepulcro vazio, na verdade, era condicao indispensável para que os


Apostólos pudessem anunciar a ressurreiclo de Jesús pouco tempo depois
da sua morte (cf. At 2, 24-32). A pregacao da ressurreicao de Jesús, por
parte dos Apostólos, teña sido totalmente desacreditada se em Jerusalém
se pudesse mostrar um sepulcro a conter o cadáver de Jesús em decompo-
sicao. Os arautos da ressurreicao teriam sido escarnecidos se o sepulcro
vazio de Jesús nao falasse em favor deles.

O sepulcro vazio significa que o cadáver de Jesús foi assumido pela


alma humana de Jesús, de modo a reconstituir a sua natureza íntegra, á
qual estava unida a Divindade da segunda Pessoa da SS. Trindade.

A esta altura quatro dúvidas merecem consideradlo.

1.3. Quatro questoas

1.3.1. O Docetismo

Já no século primeiro do Cristianismo alguns pensadores, repudiando


a materia como algo de mau em si, afirmavam que Jesús nao ressuscitara cor-
poralmente. Tais eram os Docetas e os Gnósticos; o dualismo "materia x es
pirito" nao Ihes permitía admitir que a Divindade tivesse glorificado a mate
ria, ressuscitando-a após a morte; por conseguir»te, diziam que Jesús ressusci-
tado tinha apenas urna aparéncia, mas nao a realidade, de um corpo mate
rial; o cadáver de Jesús, no caso, teria sofrido a decomposicao do sepulcro.

A esta objecüo respondemos:

1) Seja recordada a énfase com que os evangelistas incutem a presenca


das chagas e das notas típicas do corpo de Jesús após a ressurreicao;

2) O corpo nao é um acídente estranho ao ser humano; muito menos é


cárcere ou sepulcro da alma; esta nao é um anjo punido na carne, mas foi
criada para se aperfeicoar na carne humana. Isto quer dizer que o corpo é
corresponsável pela sorte (mísera ou gloriosa) da pessoa; com seus afetos e
paixoes ele integra a personalidade. Por isto também é conveniente que ele
participe do estado postumo, re-unido á alma humana pela ressurreipao.
Foi por isto que o Filho de Deus quis assumir a natureza corpórea do ho-
mem; viveu as sucessivas etapas da vida humana — o nascer, o crescer, o tra-
balhar, o lutar, o sofrer e o morrer — e ressuscitou, restaurando a carne hu-

356
A RESSURREICAO DE JESÚS 21

mana, que servirá de instrumento ao pecado. Em conseqüéncia, todo ho-


mem sabe que é chamado á consumacao da vida em sua condicao psicosso-
mática. Para afirmar estas verdades frente aos Gnósticos do século III, o
escritor cristao Tertuliano (t220 aproximadamenve) ?screvia: "Caro cardo
salutis. - A carne é o gonzo da salvacSo", isto é, mediante a carne de Cristo
morta e ressuscitada veio a salvacao ao mundo.

1.3.2. A desmitizacao contemporánea

A escola de Rudolf Bultmann julga que todo episodio transcendental


só pode ser ficcao ou mito. Por isto nega a ressurreicao corpórea de Jesús.
Afirma, sim, que o que ressuscitou foi a Palavra de Deus; esta foi ameacada
de sufocacao pelos judeus perseguidores, mas superou as adversidades e
propagou-se vi temosamente pelas regióes do Imperio Romano. A mensagem
de Jesús assim ressuscitou, e nao o mensageiro.

Respondemos: a teoria da desmitizacao ressente-se de um preconceito


racionalista, tao dogmático quanto o Credo que ela combate: de antemao
nega qualquer possibilidade de milagre; por conseguinte, tem que procurar
urna expl¡cacao natural para o anuncio da ressurreicao de Jesús, sem levar
em conta os textos do Novo Testamento, que sao assim violentados. Ora as
proposites gratuitamente preconcebidas nao fazem parte do ámbito da
ciencia. Esta é objetiva; examina os dados de cada questao, sem predefinir
a respectiva solucao.

Ademáis seja aqui recordado tudo quanto anteriormente foi dito em


resposta á objecáo doceta-gnóstica.

Ainda é de se ponderar o seguinte: se a ressurreicao de Cristo nao fosse


real, o Cristianismo estaria baseado sobre enorme mentira ou alucinacao,
pois os pregadores do Evangelho nunca anunciaram a Boa-Nova sem incluir
necessaríamente a noti'cia da ressurreicao corporal do Senhor. Algo de falso
ou de mórbido seria o pedestal de vinte sáculos de Cristianismo. Ora tal
hipótese supoe um portento ou um milagre de primeira grandeza; as menti
ras ou falsidades nao resistem ao tempo e, cedo ou tarde, sao desvendadas
(tal foi o caso da lenda dos LXX, da "DoacSo de Constantino", das "Decre
táis do Pseudo-lsidoro", das obras do Pseudo-Diom'sio Areopagita. . .). Ora
até hoje nao se pode derrubar a crenca na ressurreicao de Cristo como se
fosse leridana ou mítica. As teorías que tencionam fazé-lo (alegando fraude
dos Apostólos ou sepultamento de Cristo ainda vivo) se comprovam como
ridiculas e destituidas de peso científico.

é, por conseguinte, mais razoável crer no milagre da ressurreicao de


Cristo por obra da Onipoténcia Divina do que crer que, segundo o "milagre"

357
22 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

do racionalismo moderno, a mentira e a doenca mental tenham dado o fruto


de vinte sáculos de Cristianismo,... sáculos que foram certamente benemé
ritos nao so para a religiao, mas também para a cultura e o progresso da hu-
manidade. 0 ediffci' do Cristianismo lógicamente requer um pedestal mais
sólido do que a desonestidade e a debüidade mental.

1.3.3. A ressurreicao: fato histórico?

Há quem negué em nossos dias a historicidade - nao, porém, a realida-


de - da ressurreicao de Jesús. Como efeito; dizem que nao pode ser tido co
mo histórico o acontecimento que nao caia sob o controle do método da
pesquisa histórica, ou seja, o acontecimento que tenha aspectos transcen
dental. Ora Cristo ressuscitado já nao morre; nao retornou á vida mortal
(como Lázaro, a filha de Jaira e o filho da viúva de Nai'm voltaram; cf. Jo
11, 1-44; Me 5, 21-43; Le 7, 11-17); nao mais esteve sujeito á doenca e á
morte; adquiriu um corpo glorioso, pertencente a outra ordem de coisas.
Além disto, dizem, a ressurreicao de Jesús nao foi observada por nenhuma
testemunha; quando as mulheres chegaram ao sepulcro, já o encontraram
vazio.

Em resposta, notamos que a questáo se reduz ao uso do vocábulo


"histórico", sem que os objetantes tencionem negar a realidade da ressur
reicao de Jesús. É, portanto, relativamente secundaria. Todavia gera equí
vocos, pois pode parecer negar a própria ressurreicao do Senhor. Por isto
nao é recomendável dizer que esta nao foi um fato histórico. O teólogo
protestante W. Pannenberg muito sabiamente propde outra nocao de "his
tórico": é histórico todo evento que possa caber em coordenadas de espa-
co e tempo, ou seja, todo evento que tenha acontecido em determinado
momento e em determinado lugar; ora a ressurreicao de Jesús pode ser
datada (9 de abril do ano 30, com muita probabilidade), como também po
de ser situada na Palestina, em Jerusalém, ficando o sepulcro vazio como
indicacao topográfica. — Daí poder-se dizer que a ressurreicao de Jesús nao
foi somente um fato real, mas também foi um fato histórico, segundo Pan
nenberg e teólogos de autoridade.

1.3.4. "Jesús nao chegou a morrer na Cruz, mas apenas perdeu os


sentidos"

Este assunto já foi abordado em PR 321/1989, pp. 85-89. A hipótese


aventada nao só é totalmente gratuita, mas ainda é francamente contraditada
pelo golpe de lanca que foi infligido a Jesús e que bastaria para matá-lo,
pois atingiu o coracao. - Tal hipótese, portanto, gratuita como é, carece de
valor científico.

358
A RESSURREICÁO DE JESÚS 23

2. O sentido teológico da ressurreicfo

Distinguiremos tres aspectos teológicos da ressurreicao de Cristo.

2.1. Sinete de autenticado

Jesús, como homem, morreu após haver pregado o Evangelho, que de-
sagradou aos judeus. O Pai o quis ressuscitar testemunhando, por este sinal
de su a onipoténcia, a autenticidade da pregacáo de Jesús. Nao sem razáo as
fórmulas de fé mais antigás apresentam o Pai como autor da ressurreicSo de
Jesús: "Deus ressuscitou esse Jesús, e disto nos todos somos testemunhas"
(At 2, 32), disse Sao Pedro no dia de Pentecostés.1 A propósito escreve Joáo
Paulo II na encíclica Dives in Misericordia: "A cruz nao é a última palavra
do Deus da alianca: essa palavra será pronunciada na alvorada quando as
mulheres, em primeiro lugar, e os discípulos, depois, indo ao sepulcro do
Crucificado, verao o túmulo vazio e proclamarlo pela primeira vez: 'Res
suscitou!' " (n? 7).

Com efeito; nenhum homem pode ressuscitar um mono. Por conse-


guinte, se Jesús, como homem, ressuscitou, isto é obra de Deus, que assim
quis dar um sinal comprovante da messianidade do Ressuscitado.

Ressuscitando Jesús, o Pai houve por bem fazé-lo Kyrios ou Senhor


de todos os homens e da sua historia, como atestam alguns textos bíblicos:

At 2, 36: Diz Sao Pedro no dia de Pentecostés: "Saiba com certeza


toda a Casa de Israel: Deus o constituiu Senhor (Kyrios; e Cristo, este
Jesús a quem vos crucificastes".

Rm 14, 9: "Cristo morreu e reviveu para ser o Senhor dos morios e


dos vivos".

Fl 2, 9-11: "Deus sobreexaltou Jesús grandemente e O agraciou com


o Nomg que está ácima de todo nomo, para que, ao nomo de Jesús, se dobre
todo joelho... e. para a gloria de Deus Pai, toda Kngua confesse: Jesús 6
o Senhor".

Rm 10, 9: "Se confessares com tua boca que Jesús é Senhor e erares
em teu coracao que Deus o ressuscitou dentro os monos, serás salvo".

1 Nao há dúvida de que Jesús, como Deus, também ressuscitou a sua huma-
nidada, eomungando com o Pai e o Espirito Santo numa só atividade.

359
24 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

Note-se que Kyrios era, na linguagem oficial dos romanos, o designa-


tivo do Imperador. Cf. At 25. 26: diz Festo, procurador romano: "Nada
tenho de concreto sobre Paulo, para escrever ao Kfríos (= Imperador}".

Á luz destas observacoes, entende-se que o Apocalipse aprésente Jesús


como o Senhor dos tempos: é o Cordeiro que em suas maos traz o livro da
historia; este vai-se abrindo aos poucos e os acontecimentos vao-se desenro
lando na térra; nada, porém, do que acontece neste mundo, está fora do ám
bito desse livro ou escapa ao senhorio de Jesús Cristo; cf. Ap 5, 1-14. Alias,
o próprio Jesús declara em Ap 1, 17s:

"Eu sou o Primeiro e o Último, o Vívente; estiva morto, mas eis que
estou vivo pelos sáculos dos sáculos, e tenho as chaves da Morte e da ragiao
dos monos".

2.2. Processo que se prolonga em todos os homens

Segundo os escritos do Novo Testamento, a ressurreicao de Jesús nao


é um fato fechado em si, mas é o im'cio de um processo que se estende a to
dos os homens. Com efeito; Sao Paulo chama Cristo ressuscitado "o Primo
génito dentre os mortos" (Cl 1.18). A Ele, ressuscitado em primeiro lugar,
seguir-se-á a ressurreicao dos irmáos: "Cada qual na sua ordem: Cristo, as
primicias; depois, os que sao de Cristo, por ocasiao da sua segunda vinda;
a seguir, haverá o fim" (ICor 15, 23s).

Desde toda a eternidade, o Pai houve por bem fazer-nos conformes á


imagem do seu Filho ressuscitado, como escreve Sao Paulo em Rm 8,29$:

"Os que Ble conheceu de antemao, tambóm os predestinou a ser con


formes á imagem de seu Filho, a fim de ser Ele o primogénito entre muitos
irmaos. E os que predestinou. tambóm os chamou, e os que chamou, tam-
bém os justificou, e, os que justificou, também os glorificou".

O significado deste texto se percebe bem se se dá átencao ás fórmu


las paralelas: "Primogénito entre muitos irmaos" (Rm 8, 29) e "Primogéni
to dentre os mortos" (Cl 1, 18). O ser primogénito, modelo dos irmaos, im
plica "ser o primeiro a ressuscitar dentre os mortos". Os mortos ressuscita-
rao a semelhanca da ressurreicao de Cristo.

O mesmo Sao Paulo se compraz em desenvolver esta doutrina, afir


mando que na ressurreicSo de Cristo teve infcio a nossa própria ressurreicao.
Eis a ousada sentenca do Apostólo, que mais adianto merecerá explicacao
mais detida:

360
A RESSURREICÁO DE JESÚS 25

"Quando estávamos monos em nossos delitos, (Dsus Pai) vivificou-nos


juntamente com Cristo - pela graca fostes salvosl - e com Ele nos ressusci-
tou $ nos fez assentar nos céus, em Cristo Jesús" (Ef 2, 5s).

0 mesmo ocorre em Cl 3, 1-4:

"Se ressuscitastes com Cristo, procura/' as coisas do alto, onde Cristo


está sentado á direita de Deus. Pensai ñas coisas do alto, e nao ñas da térra,
pois morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando
Cristo, Que é a vossa vida, se manifestar, entao vos também com Ele seréis
manifestados em gloria".

Pergunta-se: em que sentido já fomos ressuscitados e glorificados com


Cristo, se ainda somos pecadores e mortais?

A resposta é dupla:

1} Cristo, como homem, tendo sido ressuscitado e glorificado, mere-


ceu para todo o género humano o direito a semelhante sorte. Urna porcao da
natureza humana acha-se glorificada em penhor de que a natureza humana
inteira venha a ser também glorificada. Urna parte de nos ou a Cabeca do
género humano está nos céus, na expectativa de que o resto do corpo che-
gue ao mesmo termo.

2) Todavía nao apenas um penhor ou um direito nos foi concedido


mediante a Páscoa de Cristo. Um auténtico principio de vida nova ou defi
nitiva foi depositado dentro de nos por ocasiao de um evento muito concre
to de nossa existencia: o Batismo. Sao Paulo o diz sintéticamente em Cl 2,12:

"Fostes sepultados com Cristo no Batismo; também com Ele ressusci


tastes, porque acreditastes no poder de Deus, que o ressuscitou dos mor-
tos".

Esta idéia é explicitada em Rm 6, 3-11. Sao Paulo tem em vista o mo


do como o Batismo era ministrado na Igreja antiga: o catecúmeno era mergu-
Ihado em urna piscina (o que significava o morrer e ser sepultado com Cris
to) e retirado dágua (o que significava o ressuscitar com Cristo). Em última
análise, isto quer dizer que o Batismo confere urna participacao sacramental
na morte e ressurreicáo de Jesús; este ato sacramental tem que ser reafir
mado e desdobrado na vida ética do cristao dia por dia: é preciso morrer
com Cristo para o pecado e ressuscitar com Cristo para urna vida cada vez
mais condizente com o modelo do Cristo Jesús; evitando o pecado e desen-
volvendo a vida nova, o cristao chegará á gloriosa ressurreicáo final:

361
26 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

"Se nos tomamos urna só coisa com Ele por uma morte semelhante
é sua, seremos também uma só coisa com Ele por uma ressurreicSo seme
lhante á sua" (Rm 6,5).

"Se morremos com Cristo, eremos que também vivaremos com


Ele" (Rm 6,8).

Ou aínda:

"Pelo batismo fomos sepultados com Cristo na morte, para que, como
Cristo foi ressuscitado dentro os monos pela gloría do Pai, assim também
nos vivamos uma vida nova" (Rm 6.4).

Numa palavra: o Batismo é o inicio ou o germen da nossa ressurreicao


e nos levará á plenitude da vida, se soubermos fomentar esse germen pela re
nuncia ao pecado e pelo exercício das virtudes cristas.

2.3. O dom do Espirito

Jesús quis associar sua glorif ¡cacao ao dom do Espirito Santo, que Ele
havia de outorgar aos homens como penhor de sua plena santificacao. As
sim, por exemplo, lé-se em Jo 7,37-39:

"No último dia da festa, o mais solene, Jesús, de pé. disse em alta voz:

'Se alguém tem sede, venha a Mim.


E beba aqueta que eré em Miml
Conforme a palavra da Escritura,
Do seu seio jorrario ríos de agua viva'.

Ele falava do Espirito, que deviam recebar aqueles que tlnham acredi
tado ne/e, pois nSo havia ainda Espirito, porque Jesús aínda nao fora glori
ficado".

Como se depreende, os ríos de agua viva provenientes do Messias sig*


nificam o Espirito Santo, que devia ser dado aos homens em conseqüéncia
da glorif¡cacao de Jesús.'

Na última ceia, Jesús voltou a prometer:

1 O texto bíblico subjacente a esta afirmacSo de Jesús éode Ez 47, 1-12: o


profeta descreve uma grande torrente que sai do Templo de Jerusa/ém e que
se dirige para o deserto, convertendo-o emjardim e pomar, imagem dos 'fru
tos do Espirito Santo enviado por Jesús após a sua Ascensao.

362
A RESSURREICÁO DE JESÚS 27

"Eu vos digo a verdade: é de vosso interese que eu parta, pois, se eu


nao for, o Paráclito nao vira a vos. Mas, se eu tor. envii-to-ei a vos" (Jo
16. 7).

"Tenho aínda multo que vos dizer, mas nao podéis agora suportar.
Quando vier o Espirito da verdade. Ele vos conducirá á verdade plena, pois
nao falará de si mesmo. mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos comunicará
as coisas futuras" (Jo 16, 12s).

"0 Paráclito, o Espirito Santo, que o Pai enviará em meu nome. vos
ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse" (Jo

É, pois. o Espirito Santo que completa a obra salvi'fica de Jesús, reu-


nindo os homens num só Corpo, do quat Cristo é a Cabera e o Espirito é o
principio vivificante. É o Espirito que nos faz "filhos no FILHO" (cf. Rm
8, 15; Gl 4,6} e nos impele a voltar ao Pai (cf. Ef 2, 18).

Glorificado nos céus e enviando-nos o seu Espirito, Jesús adquire um


modo de presenca novo aqui na térra: perde a presenca física, sempre limi
tada a um só lugar, para se fazer sacramentalmente presente; a Igreja é o
Grande Sacramento de Jesús, no qual sao ministrados aos homens os sete sa
cramentos ou sete cañáis da grapa, que atingem cada criatura desde o nascer
até o morrer. S. Agostinho exprime muito vivamente este modo de agir de
Cristo, ao comentar as palavras de Joáo Batista em Mt 3", 11: "Ele vos
batizará no Espirito Santo":

"Batize Pedro, á Cristo quem batiza. Batize Paulo, é Cristo quem ba-
tiza. Batize Judas, 6 Cristo quem batiza" fin loannis Evangelium 5.7).

Por tras da acao litúrgica do ministro humano, efetuada em nome


de Cristo, e através das suas palavras pobres, é Cristo quem age, exercendo
o seu sacerdocio, quando consagra o catecúmeno pelo Batismo, quando
consagra o pao e o vinho na Eucaristía, quando perdoa os pecados no sacra
mento da ReconciliacSo, quando une os conjuges em matrimonio...

Nao é simplesmente Oeus Filho quem purifica e santifica os homens,


mas é Jesús Cristo — o Filho feito homem e glorificado para ser nosso Sacer
dote Perpetuo - quem exerce o seu pontificado na Igreja vivificada pelo Es
pirito Santo.

Tal é o alcance teológico da glorif¡cacao (ressurreicao e ascensao) de


Jesús. O Senhor rompe os limites dos tempos e se faz presente a todos os
tempos, sempre vivente para interceder por nos (Hb 7,25) junto ao Pai no
"santuario celeste" {Hb 9,12.24) e junto a nos em nossos santuarios terres
tres, onde Ele nos prepara para urna ressurreicao semelhante á sua.

363
Há quem negué:

A Cruz, Sinal do Cristáo

Em síntese: Alegam as Testemunhas de Jeová que a Cruz é um sím


bolo pagao introduzido no sáculo IV no uso dos crístaos. — Ora tal afirma-
fio fere a documentado mais antiga do Cristianismo, a comecar pelos tex
tos bíblicos, que louvam e exaltam a Cruz de Cristo: Mt 10, 38; 16, 24;
Me 8, 34; Le 9, 23; 14, 27; Gl 2, 19; 6, 12.14,

Logo nos sécu/os 11/111 temos noticia de que os crístaos se persignavam


com o sinal da Cruz; ver Tertuliano, Hipólito, cujos textos sao transcritos
no corpo deste artigo. Os mártires se muniam com esse sinal antes de enfren
tar a luta final.

Na arte crista tem-se a sepultura dos Aurelios em Roma, onde aparece


a figura de um homem apontando para urna cruz em atitude de respeito.
Visto que a Cruz era instrumento de suplicio dos malfeitores, os crístaos
foram sobrios em suas representares gráficas até o século IV; usavam os
símbolos da áncora, do tridente e do T (tauj para indicar a Cruz de Cristo
vitorioso. Somonte após a conversao de Constantino (y337) a cruz deixou
de ser patíbulo de condenacao dos criminosos na vida do Imperio; tornou-
se entao únicamente o símbolo da vitaría de Cristo e o sinal dos crístaos,
reproducido de muitas maneiras na arte, na Liturgia, na piedade particular,
na literatura...

* * *

As Testemunhas de Jeová negam que a Cruz seja o sinal do cristao.


pois dizem que é um símbolo pagao em uso nos diversos povos pré-cristáos
como ornamento ou como instrumento de suplicio. Ademáis afirmam que
Jesús nao foi pregado a urna cruz de tirapos, mas a um simples poste ou es
taca (staurós). Além disto, asseveram que os instrumentos de tortura dos cri
minosos (lenho, pedra, espada, cordames...) eram enterrados como algo de
abominável, que nao deveria, de modo nenhum, ser venerado. Com estas

364
A CRUZ. SINAL DO CRISTÁO 29

sentencas, as Testemunhas querem criticar e condenar a estima que os cris-


tábs, desde os tempos de Sao Paulo,1 dedicam á Cruz de Cristo.

Vejamos, pois, com objetividade o que a historia nos diz a respeito


da Cruz.

1. No mundo pagao: a cruz

A cruz ocorre no uso dos povos amigos, seja como ornamento, seja
como instrumento de suplicio.

1.1. Ornamento

Na Assíria, certas ¡magens apresentam os reis. como, por exemplo,


Assurnasirpal e Samsiramman, trazendo urna cruz pendente do pescoco. A
cruz era o mais simples e natural dos ornamentos geométricos, pois consta
apenas de duas linhas postas em transversal.

Também se usavam brincos em forma de cruz, pendentes das orelhas.


como atestam alguns túmulos púnicos descobertos em Cartago. Ver p. 366,
n.1.

No Egito usava-se o tau (em forma de T) portador de urna alca ou do


sinal ank; podia pender de um colar. O símbolo ank foi tido como símbolo
fálico — h i pótese arbitraria que caiu em descrédito; parece que indicava o
sol (pois tinha a forma arredondada), sol que era considerado como a fonte
de toda a vida sobre a térra. Ver p. 366, n. 1.

Encontra-se também a cruz gamada ou a cruz svastika, de origem in-


certa. Muito espalhada entre diversos povos, parece ter sido um emblema re-

1 1Cor 1,18: "A linguagem da Cruz... para aqueles que se salvam,


para nos, é poder de Deus".

Gl 6, 14: "Nao acóntela gloriar-me senao na Cruz da Nosso Senhor


Jesús Cristo".

1Cor 1, 17: "... anunciar o Evangelho, sem recorrer á sabedoria da


linguagem, a fim de que nao se torne inútil a Cruz de Cristo".

365
30 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

ligioso característico da raca indo-germánica. Simbolizava o sol. Os Vedas a


chamam "a roda inflamada".1

A Cruz de Malta também era freqüente. Estava ligada ao culto do sol.


Mais tarde, tornou-se símbolo do poder rágio, visto que o sol é o reí dos as
tros e o mais benfazejo de todos.

Em suma, a cruz era um sinal muito espontáneo e polivalente entre


os povos amigos, até mesmo no México e na América Central.

1.2. Instrumento de suplicio

Originariamente a tortura dos condenados se fazia mediante uma esta


ca fincada na térra e terminada em ponta; chamava-se em grego staurós e em
latim acuta crux.

Posteriormente, porém, {ainda antes de Cristo) acrescentou-se a essa


estaca vertical uma trave horizontal, á qual era fixado o réu, seja medíante
pregos, seja mediante cordas. A estaca era dita 'es em hebraico; nota-se, po
rém, que tal vocábulo foi traduzido, na versao dos LXX (200 a.C. aproxima
damente) por xylon dídymon, isto é, lenho duplo ou geminado (o que mos
tra que o instrumento usual já era a cruz de dois bracos); cf. Js 10, 26s
(a Biblia de Jerusalém usa o termo árvore!).

Quando a cruz tinha dois bracos, o poste vertical e maior já se encon-


trava fincado na térra; o supliciado levava o poste menor, ao qual era preso
quando chegava ao lugar do suplicio; essa trave era posteriormente suspensa
ao lenho vertical.

Distinguiam os romanos a crux sublimis (de certa altura) e a crux hu-


milis (menos alta), usual no caso em que o réu era também condenado a ser
devorado pelas feras (ad bestias) enquanto pendia da cruz.

A trave menor transversal podía ter dois formatos:

1 Eis os símbolos de que fala o texto ácima:

T
ank egipcio cruz svastika brinco púnico

366
A CRUZ. SINAL DO CRISTÁO

- a furca, arqueada. O escravo condenado carregava a furca sobre os


ombros, enquanto caminhava confessando em voz alta o seu delito. Esta
penalidade costumava ser precedida pela flagelacao, que em alguns casos
era prolongada até matar o réu;

- o patibulum, ou seja, a trave com que se trancava a porta de casa.


Era também posto sobre os ombros do condenado.

Muitas vezes acrescentava-se á trave vertical. o cornu, isto é, um pe-


daco de madeira, que era afixado ao poste vertical na altura.do traseiro do
réu, a fim de que ai se apoiasse e nao morresse tao rápidamente, vítimade
asfixia.

Sabemos que muitos povos antigos costumavam punir os delitos mais


graves com a morte de cruz. Os persas a utilizavam; o costume passou para o
Imperio de Alexandre Magno, que em 331 venceu os persas, dando origem
a cultura helenística, que recobriu o Imperio greco-romano. Os cartaginenses
puniam os reís, nacionais e estrangeiros, com a cruz. Parece que foram eles
que transmitiram o costume aos romanos, os quais, por sua vez, o fizeram
chegar á Palestina nos tempos de Alexandre Janeu (67a.C), re i de Judá im
pregnado de cultura helenística. Os romanos aplicavam o suplicio da cruz
aos piratas, bandidos e rebeldes; era dito supplicium servile, porque destina
do originariamente aos escravos; aplicavam-no, porém, ocasionalmente aos
cidadaos romanos, apesar dos protestos de Cicero.

1.3. Como se fazia a crucifixSo?

Geralmente o réu condenado á crucifixao passava por dois tormentos


previos: era flagelado e carregava a furca ou o patibulum até o lugar da cru
cifixao. A haste vertical, como dito, jé se encontrava fixa na térra ou era
fincada pouco antes da execucüo do suplicio; havia mesmo campos de hastes
verticais á espera dos réus, que seriam suspensos depois de presos á trave
horizontal.

Nao se acha em nenhum texto da antigüidade a noticia de que o con


denado levava a cruz inteira. Esta facanha seria muito difícil ou mesmo im-
possível, dado o peso da cruz e visto que o réu já estava debilitado pela fla
gelacao anterior. Até um homem sadio e forte tena dificuldade em realizar
tal facanha, que de resto poderia levar muito tempo. Donde se vé que a
expressáo "carregar a cruz" é urna figura de linguagem (sinédoque), que
mencionava o todo implicado por urna de suas partes.

O "caminho da cruz" era seguido por populares, que escarneciam


o réu.

367
32 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

Chegando ao lugar do suplicio, o condenado era fixado á trave hori


zontal deitada por térra e, a seguir, erguido e preso á trave vertical. Se esta
fosse muito alta, os carrascos usavam cordas ou escada. Os pés do réu eram
presos ¿ haste vertical mediante cordas ou pregos. Há autores que supoem
tenha havido um suporte ou suppedaneum de madeira debaixo dos pés, a
fim de evitar a morte rápida por asfixia violenta devida ao peso do corpo
suspenso pelos bracos.

Os réus crucificados podiam sobreviver longamente, ás vezes durante


um dia e urna noite ou até durante tres días.

A causa ¡mediata da morte era a asfixia. O sangue nao conseguia che-


gar ao cerebro através do organismo suspenso no patíbulo; concentrava-se
nos pulmoes e acabava impedindo as pulsacoes do coracao. Os condenados
á cruz eram vigiados por soldados antes e depois da morte. Os cadáveres fica-
vam expostos na cruz ás feras e ás aves.

Podiam ocorrer ainda outras práticas no processo da crucifixao. Os


judeus prisioneiros na guerra de 66-70, contra os romanos, foram crucifica
dos em posicSes diversas. Em alguns casos, os réus pendiam da cruz, de ca-
beca para báixo. A outros se acelerava a morte mediante fogo, fu maca, fra-
tura das pernas ou golpe de I anca. Os cadáveres podiam ser entregues aos
familiares que os pedissem.

2. A crucifixao de Jesús

Estes dados históricos contribuem para ilustrar o suplicio sofrido por


Jesús no Calvario.

1. Os amigos perguntavam por que o Senhor quis padecer tao doloro


so tipo de morte. E apontavam razoes diversas, entre as quais se destaca
aquela que Latáncio (inicio do séc. IV) apresenta: o Senhor quis recobrir,
com a sua morte extremamente dolorosa e ignominiosa, toda modalidade
de morte que os homens possam experimentar; saibam todos que Deus feito
homem já atravessou e santificou todas as angustias que afetam os homens
(Instituicoes IV. 26), e abracem a sua cruz com ánimo confiante e esperan-
coso; quem padece com Cristo, ressuscitará com Cristo.

Outra razio clássica é o designio divino de "recapitular" tudo em


Cristo (cf. Ef 1, 9s): o 2? Adao quis percorrer o caminho do 1? Adao para
a morte, mas numa atitude de amor e entrega ao Pai, em resgate do desamor
e da desobediencia do 1? Adao; o sinal negativo que marcava a morte e seus
precursores (as.dores da morte) foi assim convertido em sinal positivo; a
morte tornou-se o caminho que leva a nova vida e nao á ruina definitiva.

368
A CRUZ. SINAL DO CRISTÁO 33

Ademáis, como o primeiro Auáo pecou mediante o lenho proibido no pa


raíso, o segundo Adao quis fazer do lenho (da Cruz) o instrumento de
resgate do primeiro Adao; o homem que se precipitou na morte mediante o
lenho, encaminha-se para a plenitude da vida mediante o lenho (da Cruz).

2. Procuremos agora reconstituir os pormenores da crucifixáo de Jesús.

É de crer que a cruz de Jesús fosse alta, pois, para oferecer-lhe a es


ponja com vinagre, os soldados tiveram que utilizar um can ico (cf. Jo 19,
20); os pés do Crucificado, portanto, deviam estar a 1 metro ou 1m 50cm
ácima do solo;1 a parte enterrada no solo devia medir 1 m de profundidade.
A cruz de Jesús nao devia ser a crux commissa (em forma de tau, T), mas a
crux immissa ou capitata (munida de um topo de madeira), pois a inscricao
"Jesús de Nazaré, Rei dos Judeus" se achava ácima da cabeca de Jesús (cf.
Mt 27,37; Le 23,38; Jo 19,19). Isto quer dizer que a Cruz de Jesús tinha
quatro extremidades.

Jesús deve ter carregado a cruz vestido, pois lemos em Mt 27,31: "De-
pois de cacoarem de Jesús, despiram-lhe a capa escaríate e tornaram a ves-
ti-lo com as suas próprias vestes, e levaram-no para O crucificar" (Me 15,20).
Depois de o crucif icarem, os soldados repartiram entre si as vestes de Jesús
(cf. Jo 19,23s). Assim procedendo, os romanos se adaptaram aossentimen-
tos de pudor dos judeus. Poder-se-ia daí concluir que Jesús pregado á Cruz
nao estava totalmente desnudo; todavía varios antigos escritores, atendo-se
ao costume dos romanos, julgavam que Jesús esteve, sim, serrt veste alguma
pregado á Cruz.

Jesús foi fixado primeramente á trave horizontal da Cruz, que Ele car-
regara sobre os ombros; depois disto, foi erguido e preso á haste vertical já
fincada no solo do Calvario, é de crer que se tenha aplicado um prego a ca
da mao e a cada pé, portanto quatro pregos, como os representava a antiga
arte crista até o século XIII. A crucifixao deve ter ocorrido nao na palma
da mao, mas no carpo de cada braco, parte mais resistente ao peso do corpo
que pendía.

Jesús deve ter permanecido tres horas pendente da Cruz antes de


morrer. Sao Marcos (15,25) diz que Jesús foi crucificado "na terceira hora";
compreendamos, porém, que "terceira hora", no cómputo dos romanos
(que Marcos adota), correspondía nao a 60 minutos, mas ao período que ¡a

1 As avies eram geralmente de pouca altura, de modo que as feras podiam


atingir o cadáver. Mas. quando os juftes dtstjavam dar um castigo "exem-
plar", punham em relevo o crucificado, erguendo-o numa cruz ala.

369
34 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

das 9 ás 12 horas da man ha.1 Sao Joao d¿ a entender que Jesús foi crucifica
do á sexta hora (Jo 19,14), entendendo sexta hora no sentido nao dos roma
nos, mas dos judeus, que numeravam hora por hora a partir da primeira hora
(correspondente ás nossas seis horas da manha").3 Diremos entao, conciliar»-
do Me e Jo entre si, que Jesús foi crucificado no firn da terceira hora dos
romanos, ou seja, perto da sexta hora (meio-dia) dos hebreus. E morreu á
nona hora, conforme Me 15,34, isto é, no comeco do período que ia das 15
ás 18 horas nossas (o que equivale aproximadamente ás nossas 3 horas da
tarde).

A agonia de Jesús na Cruz nao durou mais do que tris horas aproxima
damente, pois o Senhor estava extenuado pelos suplicios anteriormente pa
decidos (flagelacao, coroacao de espinhos, carregamento da cruz, além do
suor de sangue no horto das Oliveiras).

Importa-nos agora considerar o modo como os cristaos consideraran!


a cruz nos primeiros sáculos da Igreja.

3. O sinal da Cruz

1. Para as Testemunhas de Jeová, a Cruz de dois bracos, como hoje a


conhecemos, só comecou a ser usada pela Igreja Católica no século IV. O
acofitecimento que terá deflagrado tal uso, dizem eles, é a pretensa visao da
Cruz atribuida a Constantino Imperador em 28/10/312.3 Tal visao é tida co
mo lendária pelas Testemunhas, de mais a mais que Constantino em 312
aínda era adorador do deus Sol, cujo emblema era'a cruz.

Após esta visao de Constantino, os cristaos foram usando o símbolo


da Cruz no intuito de facilitar aos pagaos o ingresso no Cristianismo, pois a
Cruz era (dizem as Testemunhas) usual entre os cultores dos deuses.

1 Os romanos dividiam o día em quatro "horas" ou quatro períodos de tres


horas cada um: a la. hora (das 6h ás 9h), a 3a, hora (das 9h ás 12h), a 6a. ho
ra (das 12h ás 15h), e a 9a. hora (das 15h ás 18h).

1 Ver a parábola dos operarios chamados á vinha em diversas horas do día,


conforme Mt 20, 1-16.

3 Narrase que Constantino, tendo de enfrentar militarmente seu rival Ma~


xénch, viu nos céus urna cruz luminosa acompanhada dos dizeres: En touto
nika (Por este sinal vencerás). Em conseqüinda, Constantino colocouasua
pessoa e vseu exército sob a protecao do sinal salutífero da cruz e desbara-
tou Maxéncio numa batalha sobre a ponte Milvia.

370
A CRUZ, SINAL DO CRISTÁO 35

2. Ora quem estuda a literatura antiga. a arqueología e a historia, afir


ma tranquilamente que é falsa a teoria dos Testemunhas. Existem documen
tos que comprovam o uso do símbolo da Cruz entre os cristaos muito antes
de Constantino.

Ássim. por exemplo. o escritor Tertuliano (t pouco antes de 220)


atesta:

"Quando nos pomos a caminhar, guando sairnos e entramos, guando


nos vestimos, guando nos lavamos, guando iniciamos as refeicdes, guando
nos vamos deitar, guando nos sentamos, nessas ocasioes e em todas as nossas
demais atividadcs, persignamo-nos a testa com o sinal da Cruz" (De corona
militis 3).

Diz ainda Hipólito de Roma (f 235/6), descreyendo as práticas dos


cristaos do sáculo III:

"Marcai com respeito as vossas cabecas com o sinal da Cruz. Este sinal
da Paixao opoe-se ao diabo e protege contra o diabo, se é feito com fé, nao
por ostentacao, mas em virtude da conviccao de gue é um escudo protetor.
É um sinal como outrora foi o Cordeiro verdadeiro; ao fazer o sinal da Cruz
na fronte e sobre os olhos, rechacemos agüele gue nos espreita para nos con
denar" (Tradicao dos Apostólos 42).

As Aras dos Mártires, por sua vez, dao a saber que os mártires se per-
signavam com o sinal da Cruz antes de enfrentar a luta final.

É também amigo o anagrama

ZfíH
Z
Tal figura, que tem a forma de Cruz, exprime exatamente as virtudes
atribuidas á Cruz pelos cristaos: Luz (Phos) e Vida (Zoé); cf. Jo 1,4.

3. É de notar também que já nos escritos do Novo Testamento a Cruz


é símbolo de algo de muito valioso, ou seja, da virtude da penitencia; esta
consiste em dominar as paixoes desregradas e sofrer por amor de Cristo e em
uniao com Cristo. Seria preciso apagar muitos versículos do Novo Testamen-

371
36 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

to para dizer que a Cruz é um símbolo introdüzido no século IV na vida dos


cristSos. Tenhanvse em vista, por exemplo:

Mt 10,38: "Aquele que nSo toma a sua cruz a me segué, nao é digno
de mim". Cf. Me 8,34; Le 9¿3; 1427.

Mt 16,24: "Disse Jesús aos seus discípulos: 'Se alguém quer vir após
mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me'".

Gl 2,19: "Pela Leí morri para a Le¡. a fim de viverpara Deus. Fui cru
cificado com Cristo".

Gl 5,24: "Os que sao de Cristo Jesús, crucificaram a carne com suas
paixoes e suas concupiscencias".

Gl 6,14: "Quanto a mim, nao aconteca gloríar-me senSo na cruz de


nosso Senhor Jesús Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e
eupara o mundo".

O sinal da Cruz é o sinal dos cristSos ou o sinal do Deus vivo, de que


fala provavelmente Ap 7,2, fazendo eco a Ez 9,4:

"Um anjo gritou em alta voz aos quatro Anjos que haviam sido anear-
regados de fazer mal é torra e ao mar: 'Nao danifiqueis a térra, o mar e as
árvores, até que tenhamos marcado a fronte dosservos do nosso Deus'".

O fato de que a Cruz era instrumento de suplicio dos malfeitores ex


plica que nao se encontré o símbolo da Cruz nos mais amigos monumentos
cristSos. Todavia no hiposeu (sepultura subterránea) dos Aurelios em Roma,
datado de fins do século II ou comeco do século III, acha-se um afresco
que apresenta um personagem apontando respetosamente o sinal da Cruz.

Durante os tres primeiros séculos, que foram de perseguicSo aos cris-


taos, encontram-se na arte crista alguns símbolos que lembram veladamente
a Cruz. Assim, por exemplo, a áncora, que representava, ao mesmo tempo, a
cruz e a esperanca decorrente da Cruz {cf. Hb 6, 19):

372
A CRUZ, SINAL DO CRISTÁO 37

A áncora se encontra nos recintos mais amigos das catacumbas roma


nas; está gravada em lapides de sepulcros ou pintada sobre monumentos
que podem ser atribuidos ao sáculo I.

O tridente, que tem semelhanca com a Cruz, é um pouco menos ami


go; foi si'mbolo dos cristaos assaz freqüente nos tres primeiros séculos.

O mesmo se diga da letra T, tau, que Clemente de Alexandria no sé-


culo III chamava tou kyriakou semeiou typo», figura do sinal do Senhor
(Stromateis VI 11).

Notemos ainda o símbolo resultante da sobreposicáo das letras gregas


.1
XeP:

A
Este monograma lembrava Cristo e a Cruz e foi representado no lábaro
ou estandarte de Constantino. No fim do século IV, tomou a forma que
mais lembra a Cruz:

A conversao de Constantino ad Evangelho em seu leito de morte e a


profissSo de fó crista dos Imperadores subseqüentes fizeram desaparecer o
suplicio da Cruz. Esta se tomou entlo únicamente sinal da Paixao vitoriosa
do Senhor. Conscientes deste seu valor, os cristaos ornamentavam a Cruz
com palmas e pedras preciosas.

1 Em caracteres gngos. Cristo escreve-se XPICTOC. A fusSo da primeira


e da segunda letras dé o símbolo ácima.

373
38 "PÉRGUÑTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

EsteS: elementos 'de literatura;" historie arte antiga atestam sobeja-


mente qué'a Cruz, como símbolo cnstao, ó'algo de genuinamente neotesta-
mentário. Seü^valor dé smaf sa'gridq,-;tíftfco do discípulo de Cristo, já é
incutido peld'si£'\)angel.isías e pqr-, §5ói Paulo. A vivencia e a iconografía dos
cristaos, desde V-seciito'.LiáeránV ai este sfmbolo sagrado um lugar de escol
entre as expressSes da ~fé crista. Donde se vé que é totalmente descabida a
teoria de que a Cruz é um símbolo pagao introduzido por influencia do pa
ganismo na Igreja e destinado a ser eliminado do uso dos cristaos. Rechacar
a Cruz de Cristo é rechacar o sfmbolo da Redencao e da esperanca dos cris
taos.

***

Tem sentido a confissao? por Gerhard Debbrecht. Traducao do ale-


mió por Joao Aníbal García Soaras Farraira. Colecao "Jovam Hoja". - Ed.
Paulinas, Sao Paulo 1990. 115 x 180 mm, 108 pp.

O autor é capelao universitario, professorde Religiao e pároco na Ale-


manha. Publica urna serie de cartas (reais ou ficticias?) trocadas entra o Pe.
Gerhard (Gerd), seu sobrinho Martín e Monika, a namorada deste. Versam
sobre o tema "pecado a confissao dos pecados". Sio cartas ¡nteressantes, em
que se percebem as ob/ecdes agressivas do jovem Martín contra o sacramento
da Reconciliacao, a posicao mais branda e equilibrada de Monika e a tentati
va, do tío sacerdote, de destazar as dúvidas do Jovem sobrinho.

Assim, por exempfo, o livro apresante seccdes multo válidas: as pp.


15s o autor responde á alegacao fragüente: "Eu sou assim mesmo (víngativo
e ravoltado), vftima da educacao que recebi"; chama a atencao para a res-
ponsabilidade que toca a cada um para que se autoeduque. As pp. 34-36 a
41 evidencia a iniqüídade do aborto provocado. Ás pp. 20-22 a 43 eviden-
cíam-se os aspectos negativos das rolacoes prematrimonial...

Todavía nam sampre o autor val até o ámago da problemática, pois


nSo chaga a mostrar o sentido positivo a teológico do sacramento da Recon
ciliacao (coisa que se esperaría am vista do título do livro). Há também pon
tos falhos no livro: assim o concaito de pecado original ó reduzído ao de pe
cado do mundo em que a crianca nasce (cf. pp. 40s). Ap. 54 lfi-se algo da es-
tranho: "Jesús nSo tinha a intencao da fundar urna instituicSo quepudesse
fazer com que pecadores se tornassem novamente Justos". Ás pp. 64-66 a
historia do sacramento da ReconcíliacSo é nsumlda de manaira que deixa
fugar a /acunas a impracisdes.

Em suma, o livro tem páginas útais a densas, mas aprésente também


deficiencias que o tornam ambiguo e menos aproveitávef.
E.B*

374
Excesso de televisffo:

Síndrome Videocompulsiva

Em smtese: O Dr. Dámele Pauletto, neuropsicólogo italiano, exami


nando o ¡ovem Luciano P., de28anos de idade, acredita poder definir o que
se/a a "síndrome videocompulsiva": Luciano passava as noites diante do
televisor até as S horas da madrugada, tendo em mitos o telecomando, que
Ihe permitía trocar frenéticamente de programa; entrementes era acometido
por insaciável voracidade de batatas fritas, chocolata, bombons, etc. Aban-
donou estudos e namoro por causa da sua adesao compulsiva ao televisor.
Quando seus pais Ihe quiseram cortar a possibilidade deligaroapareiho, foi
acometido de ataques dé ansia. - O Dr. Pauletto tentou iniciar um trata-
mentó para o caso, mas Luciano, após tres sessdes, nao máis voltou ao con
sultorio do médico, preferindo aderir ao seu televisor.

* * *

Na Italia o Dr. Daniele Pauletto, neuropsicólogo do Hospital de Cas-


telfranco Véneto, tem estudado as funcoes mentáis e comportamentais do
sistema nervoso, como sao a memoria, a atencao, a linguagem... Está escre-
vendo um livro sobre a memoria.

Em 1990 o Dr. Pauletto se dedicou especialmente á verif¡cacao das


seqüelas do abuso de televisáo. Ocorreu-lhe um caso, que pode ser tanto um
episodio isolado como um entre muitos outros análogos (hipótese esta mais
provável). Eis o relato dos fatos.

1.0 caso

O jovem Luciano P. manifestou temperamento nervoso, sujeito a an


sias desde os dezoito anos de idade; sofría de obsessio: escrúpulos, dúvidas,
meticulosidade em grau excessivo ou patológico. Até os 24 anos de idade,
experimentou altos e baixos de saúde psíquica. Após esta idade,
entrou dontro da normalidade; pos-se a estudar Engenharia, teve sua namora-
da e freqüentou os divertimentos dos rapazes de sua faixa etária.

375
40 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

Acónteceu, porém, que se deixou mais e mais atrair pelos programas


de televislo. Ficava até as 5 horas da madrugada frente ao televisor, trocan
do de canais emissores mediante um telecomando e gravando programas e
programas; assim criou um acervo de fitas cassetes, que ele simplesmente ia
guardando, sem jamáis as utilízar.Enquanto se mantinha diante do televisor,
era acometido por apetite VoYaz e espasmódico, que o levava a comer bata
tas fritas, bombons, tabletes de chocolate, salgadinhos, etc., a ponto mesmo
de vomitar. Após uma noite diante do televisor, Luciano nao conseguía
dormir.

Em conseqüéncia, o jovem, passando de estados de alto frenesi a ou-


tros de depressao, abandonou os estudos e a namorada. Os genitores passa-
ram a desligar-lhe a televisao e retiraram-lhe o telecomando. Luciano reagiu
a isso, experimentando tremendas crises de ansia.

Em tais circunstancias, com 28 anos de idade, foi levado ao consulto


rio do Dr. Oaniele Pauletto. Reconheceu diante deste a raiz de seus males:
"Estou consciente da irracionalidade do meu comportamento. Sou vi'tima
das suas conseqüéncias, mas nao consigo mudá-lo".

O Dr. Pauletto procedeu a uma serie de exames médicos: nao encon-


trou lesao nos lobos frontais, que respondem pelas funcóes motrizes do or
ganismo; o eletroencefalograma excluiu qualquer forma de epilepsia devida
a bruscos e repetidos estímulos visuais. Restava, pois, ao médico admitir
ou uma neurose obsessiva ou um disturbio psíquico decorrente do abuso da
televisao e do telecomando. Esta última hipótese era a mais provável; o
Dr. Pauletto definiu-a como "síndrome videocompulsiva". Nao seria esta
uma ameaca que pesaría sobre todos quantos abusam da televisao?

O Dr. Pauletto julga que certos programas podem desencadear tais


reacoes mórbidas, cuja gravidade dependerá do tipo psicológico do teles
pectador; até os anuncios comerciáis podem ter efeitos daninhos. O perigo
é grande, quando as imagens televisivas se sucedem rápidamente urnas ás
outras, sem que o cerebro consiga arrúmalas ou concatená-las; tal é o caso
de quem aciona frenéticamente o seu telecomando, por nao ser capaz de se
concentrar sobre o mesmo programa durante alguns minutos.

O médico afirma que certos efeitos nervosos do abuso de televisao ¡á


eram conhecidos antes do caso de Luciano P.; este, porém, apresentando sín
tomas mais nítidos e marcantes, fornece bases científicas importantes para
se aprofundarem as pesquisas.

Quanto ao caso de Luciano, continuou trágicamente: após tres sessoes


no consultorio do Dr. Pauletto, nunca mais ai compareceu. Deve ter prefe-

376
SI'NDROME VIDEOCOMPULSIVA

rido voltar ao seu televisor, diante do qual ele se autodestrói a golpes de tele
comando.

2. Ulteriores estudos

Após a descoberta da si'ndrome videocompulsiva, o Dr. Pauletto deu


prosseguimento aos seus estudos, empreendendo, entre outras; a seguinte
experiencia: formou um grupo de voluntarios, na maioria estudantes, que
se submeteram a prolongado contato visual com os programas de televisao;
depois disto, aplicou-lhes testes de ansia e de freqüéncia respiratoria, batidas
cardíacas, pressao arterial, resistencia da pele e da tensao muscular...

Elaborou também urna escala para avahar o "comportamento televi


sivo"; constava de 22 perguntas, para cada urna das quais haveria urna única
resposta, que seria sempre significativa. Eis alguns desses quesitos: "Vocé
troca de canal muitas vezes?", "Vocé consegue deixar de ligar a televisao?",
"Vocé segura na mao o telecomando enquanto assiste aos programas?",
"Vocé acompanha simultáneamente dois ou mais filmes ou programas?",
"Possui e usa muitos televisores?". - As respostas a tais perguntas mostram
até que ponto as pessoas se tornam dependentes da televisao.

6 psiquiatra Dr. Vittorino Andreoli fala da patologia do "menino tele


visivo": é um sujeito passivo, que reproduz as imagens sem as ter elaborado,
incapaz de conceber idéias próprias, porque se habituou a recebé-las "pre
fabricadas". Quando o cerebro é bombardeado por informacSes, que ele nao
armazena nem seleciona e por isto difícilmente recorda, o comportamento
do individuo é notavelmente perturbado. Para registrar algo na memoria,
requer-se um pouco de tempo, sem o quat a pessoa nao presta a devida aten-
cao ás imagens e a memoria nao as registra.

Outro sintoma patológico é a dependencia televisiva, segundo a qual


só é considerado verdadeiro e digno de crédito o que se torna conhecido
através da televisao. As pessoas afetadas por tal tipo de dependencia apre-
sentam "astenias familiares televisivas", caracterizadas por silencio e falta de
comunicacao entre os membros de urna familia, assoberbados por aquilo
que se torna o novo eixo da familia: o televisor. Nao raramente é um dos
membros da familia que manipula o televisor, saltando de programa para
programa e provocando assim urna "¡ndigestáo" de efeitos negativos.

3. Conclusáo

A noticia que vai aquí apresentada, nao causa espanto, pois é conheci
do o poder de influencia da televisao; ela forma e deforma em grande esca
la. O relato, porém, contribuí para alertar mais vivamente as familias e os te-

377
42 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

¡espectadores a respeito da eficacia desse meló de comunicacao. Já se obser-


vou muito sabiamente que os meios de comunicacao artificiáis, como sSo
os livros, a televisao, os filmes.... tém rnais poder sugestivo do que urna pes-
soa que nos fale; com efeito, quando alguém propSe a seu interlocutor urna
mensagem que contraria as opiniSes dele, o interlocutor reage com certa pron-
tidao, porque se senté agredido e impelido a pór-se em brios ou se autoaf ir-
mar. Quando, porém, a mensagem é proposta por um meio artificial, a pes-
soa interpelada (pelo livro, pelo filme, pela televisao) nao se julga agredida
com a mesma facilidade; nao reage tío decididamente, movida por seus
brios, mas nao raro deixa-se penetrar suavemente pelo que vé e ouve, a pon
to de ir assimilando inconscientemente a mensagem.

A experiencia cotidiana comprova esta afirmacao, corroborando o


brado de alerta que os síntomas patológicos e a síndrome videocompulsiva
lancam ao público.

Este artigo multo deve ao de Franca Zambonini: Quel malechiamiato


TV. em Famiglia Cristiana, 9/01/1991, pp. 42.

Ver também PR 341/1990. pp. 443-454 (Sexo e Violencia na TV).

• **

(continuacao da p. 384)

Na Bulgaria, ao iniciar-se a década de 1960, um bispo de rito oriental


conferiu secretamente a ordenacao episcopal a um prelado de rito latino,
Mons. Bogdan Dobranov. Em 1970 este bispo fez pública profissao de sua
fé e foi reconhecido pelas autoridades comunistas. Faleceu, porém, em 1983.

* * *

Eis alguns fatos que o mundo tem interesse em conhecer, pois revelam
a tenacidade da fé e a magnanimidade de comunidades sufocadas por regí-
mes ateus durante alguns decenios. O Senhor, que vive em sua Igreja, soube
assistir-lhe para que permanecesse corajosa ñas trevas e no silencio, esperan
do melhores días.

Este artigo multo deve ao de Alberto Bobbio e Giovanni Ferro: Esiste


all' Est una Chiesa Clandestina, publicado em JESÚS, feverelro de 1991,
pp. 26-29.

EstAvao Bettencourt O.S.B.

378
Sob a perseguipao:

A Igreja "Clandestina" na
Tchecoslováquia

Em si'ntese: As quatro décadas de perseguido religiosa (1950-1990)


na Tchecoslováquia, na Hungría, na Romanía e na Bulgaria suscitaram o
heroísmo dos católicos, que lutaram para sobreviver; especialmente impor
tante era. para eles, poder contar sempre com o ministerio de seus presbí
teros e bispos. Principalmente na Tchecoslováquia vSm a público pessoas
que dizem ter recebido clandestinamente de bispos legítimos a ordenacao
sacerdotal ou mesmo a episcopal; entre essas pessoas há homens casados e,
a quanto pensam alguns historiadores, também mulheres. Bram ordenados
candidatos que a policía secreta nao suspeitaria pudessem recebar ordens
sacras segundo a praxe habitual da Igreja Católica.

Atualmente a Santa Sé dispoe de um dossié volumoso de casos — bem


ou mal documentados - de presbíteros e bispos ordenados clandestinamen
te, cuja situacao na Igreja deve ser examinada meticulosamente para se ave
riguar o que de fato houve. e se foram válidas as respectivas ordenacoes.

•k * *

A queda dos regimes comunistas no Leste Europeu (1989/90) trouxe


á tona toda urna realidade de Igreja que ficara necessar i amenté oculta du
rante os quarenta e mais anos de perseguicao religiosa. Em Roma a Congre-
gacáo para a Doutrina da Fé e outras instancias que assessoram o Papa,
véem-se diante de casos inéditos: aparecem homens da Tchecoslováquia,
da Hungría, da Roménia, da Bulgaria, que dizem ser auténticos sacerdotes
e bispos ordenados clandestinamente sob o regime comunista, mas nao
acompanhados da documentacao e das testemunhas habituáis. - Impoese.
portante á Santa Sé a tarefa de examinar caso por caso (foram ordenacoes
válidas?... legítimas?) e tomar as providencias daí decorrentes.

É ¡nteressante e útil ao público tomar conhecimento desses fatos, pois


tais noticias manifestam o horror da perseguicao e o heroísmo dos cristaos
que lutaram para defender a sua fé. Comecaremos por examinar a situacao na

379
44 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

1. Tchecoslováquia

O Ecumenical Prest Service, boletim publicado em Genebra (Su fea),


no fim de 1990, deu breve noticia do problema das ordenares clandesti
nas. A seguir, o embaixador da República Federativa Tcheca e Slovaca junto
ao Vaticano, Dr. Frantisek Halas, credenciado no dia 21/12/1990, ampliou
a noticia, declarando:

"Há tres tipos de sacerdotes clandestinos na Tchecoslováquia. Há os


que foram ordenados regularmente por bispos tchecoslovacos, impedidos,
poróm, pelo Governo comunista de exercer o seu ministerio. Há também os
que secretamente estudaram e foram ordenados na Alemanha Ocidental,
na Austria e na Polonia. Existem aínda aqueles que foram ordenados clan
destinamente por bispos tchecoslovacos clandestinos. A situacSo legal dos
dois primeiros tipos é clara. As dificuldades ocorrem, porém, no tocante
á terceira modalidade, pois tudo se fez tao clandestinamente que nem mes-
mo a Santa Sé teve conhecimento de tais ordenacdes. Por isto também nao
há a documentacao respectiva e surgem dúvidas sobre a validado dessas or
denacdes".

Uma.fonte eclesiástica da Tchecoslováquia, mantida em anonimato,


confirma:

"É verdade. Eis ai o problema. Mas nao se podía proceder de outro


modo. Tudo comecou após 1951, quando se tornou claro que o Governo
comunista de Praga tínha em mira extirpar a ¡groja Católica".

Um sacerdote tchecostovaco, já idoso, declarou que na década de


1950 Pío XII "deu ordens para que se formasse um primeiro grupo de bis
pos clandestinos". A minuta de um documento datada no Vaticano de
21/07/1954 (minuta da qual nao foi possível encontrar a redacao e o texto
definitivos) autprizava os Religiosos presentes na Tchecoslováquia "a esco-
Iher. . . um sacerdote idóneo que será sagrado bispo, de modo que. . . fi
que assegurado, para qualquer emergencia, o exerci'cio do ministerio sagra
do no pai's".

Tal minuta observa aínda que "em circunstancias tao excepcional"


se pode contornar "a api ¡cacao de varias disposicSes canónicas concer-
nentes as sagradas ordenacSes". Pergunta-se, porém: tal minuta é autentico
documento? Monsenhor Pavel Hnílica, tchecoslovaco, de 69 anos de idade.
ordenado clandestinamente sacerdote em 1959 e feito bispo aos 02/01/1960
por Mons. Roberto Pobozny (titular de Roznava), admite a existencia de
"disposicSes legislativas especiáis vigentes nos anos de perseguicáo".

380
IGREJA "CLANDESTINA" 45

Foi na base de tais normas de emergencia que se constituiu na Tche-


coslováquia urna hierarquia eclesiástica assaz numerosa e respeitável.

Alguns dos bispos assim ordenados já assumiram o governo pastoral de


dioceses tchecoslovacas após explícita e regular designacáo do Papa. Entre
eles, contam-se Mons. Jan Chryzostom Korec (secretamente ordenado bispo
por Mons. Hnilica aos 24/08/1961) e atualmente, desde 06/02/1990. bis
po de Nitra. Também é claro o caso do bispo clandestino Mons. Karel
Otcenasek, que, aos 21/12/1989, foi nomeado por Joao Paulo II para a dio-
cese de Hradec Kralové. A lista se prolonga a partir do inicio da década de
1960, contendo cerca de trinta bispos e algumas centenas de presbíteros.
Aparecem sempre mais sacerdotes ordenados secretamente no estrangeiro.
O embaixador Halas afirmou que algumas dezenas deles foram ordenados
em Cracovia pelo Cardeal Ka rol Wojtyla (hoje Joao Paulo II).

O receio de que desaparecesse por completo o clero na Tchecoslová-


quia era tao grande que alguns bispos chegaram a ordenar homens casados.
Um destes prelados é Mons. Félix Marín Oavidek, da diocese morávica de
Brno, ele mesmo ordenado clandestinamente e em 1988 falecido. Explica
o embaixador Halas: "Em caso de perseguicao era menos suspeito aos olhos
da Policía". Como se vé, o criterio era ordenar pessoas idóneas que nao des-
sem lugar a suspeitas das autoridades comunistas.

Alias, a própría figura de Mons. Davidek tem seus misterios. O embai


xador Halas, interrogado, respondeu: "Sei que a sua ordenacao episcopal é
fato certo. Mas nada mais posso dizer, porque estou obrigado ao segredo".

O ex-provincial dos Salesianos na Eslováquia confirma: "Davidek


esteve comigo no cárcere de Mirov na Morávia em 1953 e 1954. Naquela
época eu nao sabia que ele era bispo. Mais tarde vim a saber que ordenou-
varios homens casados, e até mesmo um bispo, que ainda vive". Outras ins
tancias eclesiásticas da Tchecoslováquia, interessadas no anonimato, confir-
mam tais noticias. Diz um bispo: "Davidek era um homem genial; fazia coi
sas ousadas e corajosas. Parece que ordenou também mulheres como sacer
dotisas, mas disto nao tenho pravas". O embaixador Halas nao nega a possi-
bilidade: "Sei que o bispo Davidek julgava possível ordenar mulheres, mas
nao sei se o fez realmente. Ouvi contar dois casos de mulheres ordenadas,
mas ninguém me pode dizer os seus nomes".

A Congregacao para a Doutrina da Fé está examinando o volumo-


so acervo de ordenacóes clandestinas na Tchecoslováquia. Cada bispo do
pafs mandou á Santa Sé as fichas daqueles que sao tidos como sacerdotes e
de cuja ordenacao sacerdotal os bispos diocesanos nada sabem dizer.

381
46 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

No tocante aos homens casados, urna das fontes eclesiásticas daquela


nacao esboca urna possível solucao: "Se a ordenacffo ocorreu na Igreja de
rito latino, poder-se-á propor a tais presbíteros que passem para o rito orien
tal, pois este admite regularmente sacerdotes casados. Poderiam ser incardi-
nados na diocese greco-católica de Presov". Para mudar de rito, é necessá-
rio um indulto da Congregado Vaticana para as Igrejas Orientáis.1 Acon
tece, porém, que o Papa pode permitir a existencia de sacerdotes casados
também na Igreja latina em circunstancias excepcionais. Será este o caso de
Igreja na Tchecoslováquia, provada por um regime ateu durante quarenta
anos?
Refere o bispo Mons. Pavel Hnilica:

"As perseguicSes que sofremos, foram plores do que as que Ñero e


Diocleciano no inicio da era crista infligiram aos cristaos. Talvez o prepa
ro doutrinárío dos nossos sacerdotes nao este/a á altura do preparo dos oci-
dentáis, mas certamente é mais profunda a fortaleza espiritual dos nossos.
Isto nos leva a agradecer a Deus o próprio comunismo, porque ele nos fez
realmente experimentara Cruz".

Quando serao dados a lume os resultados das pesquisas feitas no Vati


cano? - Responde o embaixador Halas: "Desejo exprimir um anseio: haja
pressa! Procedam rápidamente! Sei que é muito difícil encontrar adequadas
solucóes canónicas. Mas também é verdade que na minha patria há dezenas
de sacerdotes que, a pos anos de duras perseguicoes, hoje nao desejam outra
coisa senao poder celebrar publicamente a S. Missa. Talvez seja a última da
sua vida".

2. Um caso particular: Frantisek Polak

Eis um significativo espécimen das angustias por que passavam os can


didatos ao sacerdocio sob o regime comunista. Trata-se do Pe. Frantisek Po
lak, de 35 anos de idade, salesiano, que dá o seguinte depoimento:

"Nasci em Vysoka Pri Morave, pequeña aldeia da Eslováquia, perto de


Brastislau. Os meus pais eram religiosos e deram-me urna educacao crista.
Durante a adolesc§ncia tive que lutar pela minha fá: era pouco recomendé-

Na igre/'a Católica, entregue a Pedro e seus sucessores, há diversos ritos:


além do latino (mais conhecido), há o bizantino, o marónita, o copta, o
me/quita, o milanos, o lionas, o mozarábico. . . Cada rito implica a celebra-
ció da liturgia, segundo um cerimonial próprio (com a consagracSo eucarfs-
tica válida) e costumes próprios, entre os quais a ordenacSo de homens casa
dos em alguns ritos orientáis.

382
IGREJA "CLANDESTINA" 47

vel freqüentar a paróquia. Mas o ateísmo do Estado ajudou de certo modo


a minha vocacao. Na minha aldeia havia mais de duzentos anos que nao sur-
giam vocacoes sacerdotais; sou o primeiro desde o fim de 1700.

Em 1974 encontrei um salesiano, Pe. Ivan Grof, que era professor e


fazia apostolado clandestino. Tornou-se meu diretor espiritual, e através dele
aproximei-me dos salesianos. Mas, para tornar-ma aspirante, ti ve que esperar
quatro anos; a policía secreta estava sempre na espreita e nos tintamos que
ser muito prudentes.

Comecei a estudar Pedagogía na Universidade. Quase chegara ao térmi


no quando a policía secreta descobriu que eu era cristao. O Decano da Fa-
cuidado me convocou e ameacou de expulsar-me. Eu era 'causa de vergonha
para 3.000 estudantes', disse-me ele. Felizmente conseguí acabar o curso,
mas, já que estava rotulado, nao obtive a licenca para ensinar.

Em 1980 comecei a trabalhar como simples operario em Pomprad,


numa pequeña fábrica de transformadores de eletricidade. A seguir, tentei
também atuar como educador num Internato para estudantes de escola me
dia; mas, após cinco dias de trabalho apenas, o meu chefe me chamou e me
disse que sabia que eu era cristao. E fui obrigado a deixar o emprego. Por
último encontrei trabalho como técnico de urna firma de implantes de aque-
cimento em grandes condominios.

Entramantes eu estudava ás ocultas Filosofía e Teología. Em 1979


tornara-me novico e em 1980 fiz os meus primeiros votos, tudo sempre ás
escondidas. Até muitos confrades salesianos ignoravam tudo isso; procura-
vamos dar o mínimo de publicidade possível a tais coisas porque havia ¡n-
filtracao e espióos até entre os Religiosos. Sabíamos, por exemplo, que um
sacerdote era capitao da policía secreta.

Fui ordenado clandestinamente sacerdote aos 19/02/1988 em Brastis-


lau por Mons. Jan Chryzostom Korec, que entao era bispo clandestino e ho
ja se tornou bispo residencial da diocese de Nitra. Tudo foí resolvido por
meus superiores, em particular pelo Padre Inspetor Provincial da Congrega-
cao Salesiana, Pe. Kaiser. Sabíamos que se aproximava o día da ordenacao,
mas nao sabíamos nem onde, nem quando, nem o nome do bispo que orde
naría. O lugar em que eu havia que ser ordenado, foi-me comunicado apenas
urna hora antes da cerimdnia. Tomei um bonde e fui para lá; era o pequeño
apartamento em que morava Mons. Korec. A cerimdnia nao foi solana; o ra
dio ficou ligado a todo volume durante a celebracao; havia música rock so
viética para perturbar os microfones de espionagem escondidos pela policía
secreta na casa do bispo. Fora chovia, e mesmo o tempo litúrgico — era

383
48 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 351/1991

Quarasma - pareceu-me um sinal do deserto em que nos, cristaos da Tche-


coslováquia, peregrinávamos naquela época.

Após a ordenacao nenhum dos meus parantes sabia que eu era sacer
dote; nem minha má*e, nem meu pai, nem os meus irmfos. Era demasiado
perigoso para eles. Comuniquei-lhes a realidade tres dias antas de partir
para Roma em dezembro de 1989.

Hoje estudo na Faculdade de Ciencias da Educacáo da Pontificia


Univenidada Salesiana em Roma. Estou-me especializando em catequese
e pastoral da juventude; a principio eu quería estudar teología, mas os
meus superiores me explicaram que há grande necessidade, na Tchecoslo-
váquia, de trabalho pastoral em favor dos jovens".

0 relato, eloqüente como é, dispensa comentarios. Passemos agora a

3. Outros países do Leste Europeu

Também na Hungría, na Romanía e na Bulgaria houve ordenacóes


episcopais e sacerdotal clandestinas. Todavía o fenómeno nao assumiu as
proporcoes que teve na Tchecoslováquia.

O Padre Peter Erdo, professor de Díreito Canónico na Universidade


Gregoriana de Roma, narrou que em 1959 o Governo expulsou de Buda
pest os seminaristas que se recusaram a participar de urna assembléia desti
nada a criticar a obra do Cardeal Josef Mindzsenty, de Budapest: "Contínua-
ram clandestinamente os seus estudos e foram ordenados ás ocultas por dois
bispos: Mons. Zadravec e Mons. Szabo. Na Hungría houve um total de trinta
casos de sacerdotes clandestinos. Todos puderam comprovar a legítímidade
da sua ordenacao, de modo que a maioria deles hoje trabalha em paróquias".

Na Roménia há incerteza no tocante a varias pessoas que afírmam ter


recebído a ordenacao sacerdotal ou até mesmo a episcopal. Os maiores pro
blemas se encontram ñas comunidades de rito bízantino-romeno ou entre os
"uníatas".1 O Nuncio Apostólico está examinando o caso de dois bíspos de
rito grego: para um, parece nao haver problemas; o outro, porém, está me
nos bem documentado, embora insista em afirmar a legitimidade da sua
ordenacao episcopal. (continua nap. 378)

1 Chamamse "uniatas" os cristaos que passaram do cisma bizantino (abano


em 1054) para a Igreja Católica, unindo-se ao Papa e é hierarquia da igreja,
sem perder os costumes próprios dos cristaos orientáis.

384
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da Regra Beneditina - Traducao do alemao por D. Ma-
teus Rocha OSB
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selmo em Roma (Monte Aventino). Tem divulgado suas
pesquisas nao só na Alemanha, Italia, Franca, Portugal,
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tado de vida crista, empenhado na procura crescente da
face e da verdade de Deus, espelhada na trajetória de um
viver humano renascido do sangue redentor de Cristo. -
Assim, o discípulo de Sao Bento ouve o chamado para
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